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O Vicente

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O Vicente

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Este livro foi inspirado no livro “Bichos” de Miguel Torga

mais especificamente no último conto desta obra “Vicente”.

Título

Vicente

Texto e Ilustrações

© Nélson Cardoso

Edição

Palavrão

Projecto Gráfico

© Ana Ferreira, Célia Pereira, Nicolas Kerboëthau

ISBN: 978-972-123-456-7

Rua Isidoro Inácio Alves de CarvalhoApartado 8232500-321 Caldas da RainhaTelefone: 262 830900 E-mail: [email protected]

um Livro duas idades

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O VicenteNelson Cardoso

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Era uma vez Vicente, o bicho preferido de Zeus.

Certo dia o mais poderoso de todos os Reis, Zeus, chateou-se com todos os bichos e todos os homens da Terra e disse:

— Ouçam! Oh bichos do mar e das águas e dos ares! Ouçam-me todos e também homens e mulheres das aldeias e das vilas e das cidades, e meninos e meninas das praias, das planícies e das montanhas!

Ouçam-me!

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Como castigo, durante Quarenta Dias manda-rei chover, sem parar, sobre o vosso Planeta! E tu, Noé, construirás uma Barca maior que o Titanic! Noé, que já era um velhinho com seiscentos anos de idade, respondeu:

— Mas Oh Zeus! Nós não fizemos nada! Por que nos castigas?

E Zeus, o mais poderoso de todos os Reis disse, rindo fortemente e às gargalhadas, que abana-ram o chão (na verdade estava zangado!):

— Então, não fizeram?! Poluíram o vosso Planeta com carros e fábricas e pauzinhos de gelado pelo chão!

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E assim foi. Noé, que já era um velhinho com seiscentos anos de idade, construiu com a sua família e os seus amigos uma Barca maior que o Titanic. Meteu lá dentro tudo quanto eram animais, os bichos do mar e das águas e dos ares… e pessoas, homens e mulheres, meninos e meninas das aldeias e das vilas e das cidades, das praias das planícies e das montanhas.

E a Barca navegou, navegou… navegou no Planeta alagado pelo dilúvio, durante quarenta looogos dias…até que…Vicente, o Corvo, o bicho preferido de Zeus… chateou-se!

Ai Ai…

Disseram em coro todos os animais – os da selva e os da quinta, todos quantos iam naquela Barca. E repetiram, todos cheinhos de medo [de Zeus!, claro]

Ai Ai!...

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Não era preciso ser-se ornitólogo para perce-ber que coração do pobre Vicente estava triste; furioso, até! Iria mostrá-lo a Zeus, que a bicha-rada não tinha nada a ver com aquele cas-tigo!... Se Zeus estava zangado, que castigasse só os homens e as mulheres e os meninos e as meninas! Não castigasse os animais!... Não são os animais que constroem fábricas e andam de carro e deitam pauzinhos de gelado pelo chão!

“Ora essa!… Não temos nada que estar aqui presos! Não é Justo!” – pensou Vicente; e, revoltado gritou…

Cruá! Cruá!

Depois do almoço, o céu parecia um tecto de cimento, tal era a quantidade de nuvens, den-sas, escuras… O mar encrespava-se e as ondas queriam virar a barca. A balouçar, na proa, Vicente encheu o orgulhoso peito lusitano e voou; voou dali para longe.

Cruá! Cruá!

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[ele, que já tinha entrado contrariado na Barca “Não quero ir” “Não quero ir”, andava impossí vel nos últimos dias – percorria o tombadilho da barca a toda a volta, nervoso, de um lado e para o outro a pensar a pensar “Vou-me embora!” “Vou-me embora!...

...ia, agora mesmo… embora… Livre!]

Livre! – gritou; gritou sem parar

Cruá! Cruaá!... Cruaaá!

E foi, sem medo. Da proa da Barca, de peito cheio, lançou-se ao vento frio e chuvoso de asas abertas e livres, sem medo do mar vasto a perder de vista.

Lá em baixo, na Barca, feras e ruminantes, cães e gatos, cavalos e touros olhavam tristes uns para os outros (na verdade, cheios de espe-rança!)…

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Uau!, que corajoso! Quem me dera ser assim, e ter asas para voar!

“Que poliglotas e trogloditas de Babel! Que tropel! À balbúrdia da Barca não a quero! Aqui em cima só ouço o bom silêncio…”

Quando embarcara na Barca, quarenta dias antes, recebera das mãos de Noé um bilhete de ida e volta. Já em alto mar, o Planeta Terra estava submerso pelo dilúvio. Quarenta dias a navegar! Zeus Meu! Tanta água! Aldeias, vilas, cidades, praias, planícies e montanhas, tudo quanto era terra seca estava agora debaixo de um gigan-tesco mar! Já não era Mar Mediterrâneo nem Oceano Atlântico. Era o choro de Zeus. Onde estaria agora o Vicente, sem terra onde pousar?

Zeus, porém, era muito esperto. Sabia tudo e não se deixava enganar. Precavido, cuspiu um mar de fogo nos céus – o mais alto que con-seguiu!

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Mas Vicente, que era forte, e queria muito ser Livre… passou-o! Chamuscou algumas penas, mas fugiu a todas aquelas labaredas rumando ao horizonte.

Na Barca, todos caladinhos que nem ratos… quando Zeus, o mais poderoso dos Reis trove-jou!, relampejou dos céus a pergunta:

— Noé, que é do meu amado Vicente?

Todo aquele jardim zoológico que era a Barca ficou a tiritar de medo. Quem andava sobre duas ou quatro patas parou um, dois, três macaquinho-à-chinês como estátua, à coca e a bichanar

Ai Ai

— Noé, que é do meu amado Vicente?

Nada. Pelo convés Barca, só silêncio.

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— Noé, que é do meu amado Vicente?

À terceira vez todos os bichos desapareceram.

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À proa só Noé, que era já um velhinho com seiscentos anos de idade, todo cheiinho de miaúfa. Esbracejou esbracejou esbracejou defendendo-se como pôde (não tinha espin-gardas, nem espadas, mas um monóculo, uma bússula, um compasso, um mapa, papel pena e tinta-da-china – e um mata-borrão!).

— Vês? Vês aqui no mapa? Ele deve ter rumado a Oeste!

[como se os bichos não soubessem o que sig-nificava “Oeste” Noé repetiu e disse “rumo ao pôr-do-Sol!”]

Ninguém sabia nada do Vicente, o Corvo.

Bem, não seria bem assim! O rato, com pena do incompetente Noé, acabou-lhe com o mar-tírio.

— Então!, o Vicente partiu…

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— Quem disse tamanha barbaridade? Quem fez tamanha afronta? – perguntou Zeus.

O rato, que sempre ouvira dizer que os ratos não se medem aos palmos (da ponta da cauda, à ponta do focinho) repetiu, ainda que meio-encolhido:

— Eu, o rato. O Vicente partiu…

— Partiu?! Partiu?!

— Abriu as asas e voou!

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Não fora por vingança que o rato dissera “par-tiu… voou”, não queria pôr em maus-lençóis o seu amigo corvo, tão pouco quereria atra-palhar Noé – deve dizer-se sempre a verdade. Sem medos! Fugiu!, fugiu Oh meça! Vamos lá agora fazer de conta que o procuramos atrás das cordas?, debaixo das talhas?, por entre as serapilheiras? Nã…

O Noé, que já não era novo, transpirava trans-pirava. Com os nervos, o coração não aguen-tou e… Zau! Noé desmaiou. É no que dá o stress e o colestrol alto!

Zeus também entrou em pânico, pois pensou ter morto o Noé, de susto. Mas não. Deu-lhe um tabefe e o Noé acordou.

Quem ganharia? Vicente, O Corvo? Zeus, o mais poderoso de todos os Reis do Universo?

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Rei que é rei não se pode mostrar fraco; e vol-tou a ribombar nas nuvens escuras:

— Noé, que é do meu amado Vicente?

Atrapalhado… não, trapalhão!, Noé, perante toda a bicharada atónita, de boca aberta, em suspenso, quis enganar Zeus…

... mas arrependeu-se.

— Meu Zeus, o teu amado Vicente escapuliu-se, fugiu. Mas olha, não lhe fiz nada, dei-lhe sempre a sua parte da comidinha… Quem o levou foi a sua rebeldia – não queria estar aqui fechado!… Olha!, desculpa lá. E a ele também, que é o teu bicho favorito!

— Ai o meu Vicente!, Ai o meu Vicente!

Zeus resmungava, Noé choramingava.

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Há muito que a Barca tinha mudado a sua tra-jectória. Já não ia para Norte – seguia agora a Oeste, rumo ao pôr-do-Sol. Como se fosse uma baleia, que soubesse onde comer peixi-nho, foi namorando as ondas até Lisboa.

Cheirava a mar. Mas os bichos só pensavam no castigo que agora Vicente apanharia, se Zeus lhe pusesse as mãos em cima.

Ao quadragésimo-primeiro dia a Barca andava à deriva. Sem rei nem roque vogava ao sabor das marés.

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Qual seria o desfecho da história? Zeus a puxar o corvo por uma orelha? [Ah!, perdão, os cor-vos e os sapos não têm orelhas!] Zeus a dar-lhe umas palmadas, para que ninguém mais repetisse a gracinha? E o Vicente? Teria ven-cido a tempestade e o dilúvio durante a noite? Onde estaria, ensopado, com frio e com fome? Nenhum dos bichos, nenhuma pessoa sabia.

O horizonte não se deixava ver e o Vicente não se via no horizonte.

De repente, um lince com visão raio-x mais forte que a do super-homem, descobriu terra.

Terra! Terra!... Terra! – não se calava.

Ainda o Diabo esfregava um olho e já toda agente sabia da boa-nova. Correu como um boato!, aquela visão de terra rija.

É lá montanha! Qual quê? Só um punhado de terra… Nem sequer um monte.

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Só um outeirito com a crista de fora d’água. Bem, é terra! Terra! Não era uma ilha, nem sequer uma ilhota… mas terra!, a terra que faz lembrar a nossa casa! Há que ter esperança!, pode ser que a água desça…

Mas onde está Vicente? Olha!, está ali!, é ele! É ele! Quanto mais perto estava de si a Barca mais claro era o seu corpo – claro que era preto, tão preto que a sua figura esguia, sobre o horizonte, parecia um melro pousado num estendal de roupa.

Viva! Ganhou o Vicente! – gritaram todos, para orgulho de Noé e fúria de Zeus.

Na verdade o Vicente ainda não tinha vencido. A água subia, subia sempre de momento a momento – e o outeirito a minguar a minguar.

Ai a terra!, que é cada vez mais pequena! Um palmo já tão pequenino! Ai o Vicente! Será que ele se vai afogar?

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— Não sejas orgulhoso, Vicente!, vem para aqui! – pediram-lhe as avestruzes.

Ah, mas os céus estavam rotos como um saco de aveia roído pelos ratos! Parecia que toda a Barca estava a ver um filme. Na verdade era um combate entre Vicente e Zeus. Quem iria ganhar? Os elefantes faziam apostas com os macacos – será que ele vai molhar os pés?, será que desiste e vem a choramingar?

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Asa-a-asa, pena-a-pena, o montículo fora engolido pelas águas. Só havia o cimo se é que cimo havia! Uma mão-cheia de terra, onde repousava, ofegante, vitorioso, o preto Vicente, vendo a Barca a subir com a maré. Era Livre, mas todos os seus amigos tinham comida, e ele não. Mas era Livre!

Em três golfadas ia indo ao fundo do mar o frágil e forte corvo. Ensopado do bico às patas fez uma carantonha às ondas e elas encolhe-ram-se. Na Barca só suspense.

O peito dos bichos pulava de pânico.

“É agora! A onda vai levá-lo!”

Mas não. Noé e toda a restante assistência nem queriam acreditar no que viam daquele com-bate entre Zeus e o corvo negro que o desa-fiava e resistia.

Cruá!

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Apesar das ondas, toda agente viu que Vicente ia vencer, que queria ser Livre – e contra isso Zeus nada podia.

Fechou o Rei as torneiras dos céus, secou o seu bicharoco favorito as penas e disse-lhe adeus!

Vitória Vitória, Ganhou o Vicente…

Vitória Vitória, Corvo bem Valente!

PS: Ninguém sabe muito bem o que terá acontecido

depois ao Vicente. Só que andou a passarinhar pela

Ponta de Sagres, no Algarve a apanhar sol e descobriu

uma ilha nos Açores… de nome Corvo

[mas que poderia ser Vicente, O Corvo Inteligente!].

Ah! E arranjou uma namorada!, uma corvina!, com

quem baila no Atlântico ao Pôr-do-Sol.

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