Livros didáticos em dimensões materiais e simbólicas

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531Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004

Resumo

O texto apresenta o relato de uma pesquisa em andamento sobrea memória de usuários de livros didáticos. As reflexões estãobaseadas no trabalho de história oral, de coleta e análise de en-trevistas com alunos e professores, que interagiram com essesmateriais no espaço escolar, entre os anos de 1940 e 1970, eque são procedentes de diferentes localidades brasileiras. A pro-posta tem sido investigar as reminiscências do livro didático;quais têm sido aquelas que sinalizam suas interferências na for-mação social e cultural das pessoas e no seu imaginário; os pa-péis sociais, educacionais e culturais que o livro didático alcançana formação de gerações ou em localidades; e os valores atribu-ídos a esses objetos, que orientam, por exemplo, atitudes emprol de sua guarda ou preservação.A pesquisa faz parte de um projeto maior, “Educação e memória:organização de acervo de livro didático”, coordenado pela profes-sora Circe Bittencourt, na Faculdade de Educação da USP, do qualfazem parte pesquisadores que trabalham com diferentes proble-máticas, variadas áreas de conhecimento e que utilizam fontes dis-tintas. E, nesse sentido, o trabalho procura contribuir tambémpara a identificação de dados que colaboram para ampliar o núme-ro de informações gerais que instiguem ou com-plementem outraspesquisas possíveis relativas a esse objeto de estudo.

Palavras-chave

Educação — Livro didático — Memória — História oral.

Correspondência:Antonia Terra de Calazans FernandesRua João Miguel Jarra, 135 - ap. 1505417-040 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]

Livros didáticos em dimensões materiais esimbólicas

Antonia Terra de Calazans FernandesUNIFIEO - Centro Universitário FIEO

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Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004532

Abstract

The text reports on an ongoing study about people’s memoriesof schoolbooks. The reflections are based on oral histories andon the conduction and analysis of interviews with pupils andteachers from various places in Brazil, and which interacted withschoolbooks within the school environment between the 1940sand 1970s. The proposal has been to investigate thereminiscences of the schoolbook, which of them point to theirinfluence in the social and cultural education of the users, aswell as in the constitution of their imaginaries; the social,educational and cultural roles achieved by the schoolbook in theeducation of generations and/or localities; and finally the valuesattributed to those objects, which guide, for instance, attitudestowards their guard and preservation.The present study is part of a larger project entitled “Educationand memory: organization of collections of schoolbooks”coordinated by Dr Circe Bittencourt from the Faculty ofEducation, USP. That project has researchers working ondifferent problems, from various fields of knowledge, andutilizing distinct sources in their work. In that sense, the presentstudy seeks to contribute also to the identification of sourcesthat may be of use in increasing the overall information availableto foster or supplement other possible researches about thisobject of study.

Keywords

Education — Schoolbook — Memory — Oral history.

Contact:Antonia Terra de Calazans FernandesRua João Miguel Jarra, 135 – ap. 1505417-040 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]

Schoolbooks in their material and symbolicdimensions

Antonia Terra de Calazans FernandesUNIFIEO - Centro Universitário FIEO

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Dada a sua importância, o livro didáti-co é um amplo campo de pesquisa. Para en-tendê-lo, na sua função educacional, sua his-tória e sua presença entrelaçada na vida socialbrasileira, é necessário considerar diferentescampos de estudo e privilegiar uma diversida-de de fontes. Entre as produções existentes, amaioria tem como base a análise do própriolivro e de seus conteúdos. Os estudos analisam,fundamentalmente, seus discursos textuais eiconográficos, e de que forma difundem conhe-cimentos científicos atualizados ou ultrapassa-dos. Produções recentes, porém, têm diversifi-cado temas e documentos, dando conta desdesua concepção, produção, difusão e uso, quan-to de suas relações com as políticas públicas,os currículos escolares e a indústria editorial.Nessa linha, pesquisas a partir de fontes oraiscomeçam a contribuir também para ampliar acompreensão do papel histórico e social dosmanuais escolares.

O trabalho com depoimentos orais abrea perspectiva para aproximações com diferentessujeitos históricos, de várias classes e vivênciassociais, valorizando a diversidade e a subjetivi-dade (Ferreira; Amado, 2002); e, ao mesmo tem-po, na análise comparativa, indica pistas parapadrões sociais e culturais comuns entre gera-ções, ao longo do tempo e por localidade. É poressas razões que para pesquisar a memória dosmanuais escolares optamos por um trabalhocom história oral, como orientam historiadorescomo Paul Thompson (1992) e AlessandroPortelli (1993). Se a pesquisa se detivesse nosmateriais impressos, as memórias em estudo fi-cariam restritas às dos literatos e memorialistas,já analisados no caso do Brasil, por exemplo, porCirce Bittencourt (1993).

O que se constata é que socialmente,do ponto de vista do usuário (alunos e profes-sores), depois que deixa de ser utilizado comomaterial na sala de aula, o livro didático, só emcasos específicos, foi guardado, revisitado oureencontrado com o passar do tempo. E, nes-sas situações, também cabe questionar suamudança de valor com o tempo.

Quais têm sido os valores atribuídosaos livros didáticos em diferentes épocas? Oque os usuários lembram desses materiais esco-lares? Quais imagens desses livros têm sidopreservadas? Quais conteúdos? Quais identida-des sociais eles têm contribuído para consoli-dar? Quais disciplinas estão a eles associadas?Quais vivências e experiências foram guardadasenvolvendo seu uso na escola ou fora dela? Oque os usuários lembram de como os livroseram utilizados? Os livros didáticos têm sidopreservados por seus usuários? Por quê? Hápadrões nacionais de livros, autores ou de usodesses materiais que a análise das memóriaspermite identificar?

Para responder a essas e outras per-guntas temos entrevistado alunos e professo-res, a partir de fundamentos teóricos da histó-ria oral, que interagiram com esses materiais noespaço escolar entre os anos 1940 e 1970.Assim, inicialmente, estão sendo entrevistadaspessoas que viveram sua escolaridade ou le-cionaram em diferentes épocas, com o objeti-vo de fazer um levantamento que possibilite,por exemplo, entrever indícios de fatores queinterferem, em parte, na quantidade ou quali-dade das memórias, ou seja, se a idade, se ageração, se o grau de escolaridade ou se ocontexto da escolaridade interferem ou não nosdepoimentos e nas lembranças sobre os livros.

Inicialmente, a baliza de tempo da pes-quisa abarcava as décadas de 1930 e 1960. Mas,à medida que as entrevistas foram sendo feitas,o recorte temporal foi sendo ampliado porqueconstatamos que uma das pessoas entrevistadas,nascida na década de 1930, tinha poucas lem-branças do livro didático. Passamos a entrevis-tar, então, pessoas nascidas também nas déca-das de 1950 e 1960 (com escolaridade poste-rior) com a intenção de avaliar, por exemplo, ainterferência da idade nas lembranças.

Até o momento, na medida em queprivilegiamos a diversidade de idade, o queconstatamos é que o que menos interfere namemória do livro didático é o fator idade. Aanálise das entrevistas tem indicado, até o

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momento, que quanto maior a escolaridademaior o número de lembranças sobre o tema,mesmo sendo o depoente mais velho. A pessoaentrevistada com menor escolaridade e, aomesmo tempo, a de menor idade, é a que re-cordou menos dos livros, contou menos deta-lhes, levantou menos dados.

Além da baliza de tempo, outra variá-vel na seleção dos entrevistados tem sido olocal onde o depoente estudou ou lecionou,com o objetivo de identificar a presença dediferentes materiais e culturas escolares deacordo com a região do Brasil: se há padrõesnacionais e se há produções e estudos especi-ficamente locais.

Entre as entrevistas, para este artigo,salientamos depoimentos coletados com asseguintes pessoas e seus contextos escolares,sem contudo identificá-las nominalmente:

a) Entrevistado 1: ex-seminarista, nasceu em1929, no sertão do Rio Grande do Norte, emora hoje em São Paulo. Freqüentou durantedois anos o Grupo Escolar José Marcelino, naVila de Vitória, que hoje é a cidade deMarcelino Vieira, no interior do Rio Grande doNorte. Freqüentou, na seqüência, como interno,o Seminário Santa Terezinha, de padres alemãese italianos, na cidade de Mossoró, entre os anosde 1939 e 1948. No seminário, viveu um anode adaptação e fez dois anos de curso prelimi-nar; cinco anos que corresponderiam ao ginásioe colégio, e dois anos de filosofia.b) Entrevistado 2: nascido em 1930, em SãoSebastião do Paraíso, Minas Gerais, mas quemorou quando criança em Ribeirão Preto, SãoPaulo, e quando adolescente em Barretos,nesse mesmo estado, e em 1956 mudou-separa a capital. Em São Sebastião do Paraíso,na Escola Municipal Coronel Cândido (GrupoEscolar – primário); em Ribeirão Preto, fre-qüentou dois anos do ginásio na escola par-ticular Lacerda Franco, e um ano no ColégioEstadual – artigo 91, e mais um ano de Madu-reza do ginásio, em 1952; depois, em 1953,colégio estadual; três anos na escola do

Senac – Técnico de vendas, 1955; Faculdadede Administração de Empresa, Colégio Brasil,de 1960 a 1964 (o colégio já foi fechado).Trabalhou desde a década de 1950, comofaxineiro, vendedor, gerente de loja, vendedorfarmacêutico. Hoje, aposentado, é síndico.c) Entrevistado 3: nascida em São José do RioPreto, em 1944. Estudou lá até os vinte anos,até ir completar seu curso de pedagogia emSão Paulo. Hoje é professora universitária.d) Entrevistado 4: nascida em 1955, emOsasco, São Paulo, onde mora até hoje. Estu-dou no primário em uma escola estadual, noJardim das Flores, Escola La Torre (1965). NoGinásio, estudou na escola estadual Prof.João Larizatte, entre 1971 e 1973. Saiu daescola para casar, em 1974. Voltou a estudardepois dos filhos crescidos. Fez supletivo,depois a faculdade de Artes e agora está ter-minando a faculdade de História. Ela deu seudepoimento depois de ter encontrado seusantigos livros didáticos. Recorreu, então, aoslivros para lembrar quando estudou e paracontar outras histórias.e) Entrevistado 5: nasceu em 1957, em PortoAlegre. Mudou-se para São Paulo em 1969.De 1964 a 1966, freqüentou, no primeiroano, uma escola estadual, no primário. Quan-do foi morar com a tia, no bairro de Santana,em Porto Alegre, em 1967, passou a estudarno colégio estadual Ildefonso Gomes, e aí fezo 1º e o 2º ano de uma só vez. Foi para SãoPaulo em 1969. Estudou no Colégio EstadualD. Pedro II, na Barra Funda. Em 1970, estu-dou no Ginásio Manoel Bandeira. Fez o cole-gial – 1973 e 1974 – na Escola EstadualMaximiliano, na Vila Madalena. De 1975 a1977, estudou no Colégio Pinheiros (particu-lar). E fez cursinho no Equipe, em 1978. Em1979, estudou Ciências Contábeis e depoisEconomia na PUC, até 1981.f) Entrevistado 6: nascida em 1963, emItambé, interior da Bahia. Residente hoje emSão Paulo. Estudou em escolas de fazendas,até a 5ª série (Escola Municipal de Itambé).Depois mudou para Vitória da Conquista/ BA.

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Da perspectiva do procedimento decoleta de entrevistas, lembramos, como emoutros trabalhos que utilizam a metodologia dehistória oral, que “os depoimentos coletadospoderiam ter sido outros, se tivessem aconteci-do em outros contextos” (Fernandes, 1997). Ofato de informar ao depoente, antes de cadaentrevista, as intenções da pesquisa, ele acabase orientando, de certo modo, a escolher o quefalar e como falar.

Como já pontuamos em outro artigo,entendemos livro didático numa perspectivaampla, isto é,

como publicações diversas, utilizadas em si-tuações escolares por professores e/ou alu-nos para orientação, estudo, leitura e exercí-cios: compêndios, cartilhas, livros literários,paradidáticos, manuais de orientação para odocente, cadernos de desenho, tabuadas ecoletânea de mapas. (Fernandes, 2002)

E entendemos memória como a

organização e o relato de lembranças acercade informações, imagens, idéias, experiências,vivências, emoções e valores que foram sele-cionados, recriados, ressignificados e preser-vados por indivíduos ao longo do tempo.(Fernandes, 2002)

Significados dos livrosdidáticos

O trabalho com história oral impõe aohistoriador a coleta de depoimentos que susci-tam memórias, as quais são narradas e organi-zadas em função de diferentes característicasque lhe são próprias. Uma das características damemória, que é essencial ao historiador, é ofato de, apesar de resguardar sua dimensão sub-jetiva, também expressar na sua constituiçãobases coletivas.

Não é suficiente reconstituir peça por peça aimagem de um acontecimento do passado

para se obter uma lembrança. É necessárioque esta reconstrução se opere a partir de da-dos ou de noções comuns que se encontramtanto no nosso espírito como no dos outros,porque elas passam incessantemente dessespara aquele e reciprocamente, o que só é pos-sível se fizeram e continuam a fazer parte deuma mesma sociedade. Somente assim pode-mos compreender que uma lembrança possaser ao mesmo tempo reconhecida e recons-truída. (Halbawachs, 1990, p. 34)

Valores e experiências comuns a gru-pos e sociedades estão presentes, por exemplo,nos significados atribuídos aos indivíduos, aosacontecimentos e aos objetos que emergem nasmemórias ou que são preservados como supor-tes de lembranças. Assim, cabe perguntar: porque alunos e professores preservam seus livrosdidáticos? Há valores sociais costurando suasmemórias e orientando suas atitudes?

Coletamos o depoimento de uma pro-fessora que estudou nas décadas de 1950 e1960, e que guardou seus manuais escolarescomo símbolo da importância da escola em suavida e de sua família, e como elementos cons-tituintes de uma identidade com determinadogrupo social, de baixo poder aquisitivo e depouca escolaridade, cujo acesso ao mundo le-trado e literário foi por meio desses corriquei-ros, mas antigamente tão preciosos, materiaisdidáticos:

“(...) e aí conforme os irmãos iam estudan-do também, se o livro era o mesmo usava omesmo. Mas, às vezes, na outra escola umoutro professor indicava outro livro e com-prava outro livro e aí a gente foi formandouma pequena biblioteca na casa. Mas nun-ca era uma coisa assim, por exemplo, terlivros de literatura, por exemplo, a gentenão tinha. Eu sempre tive muitos livros de...as Edições Maravilhosas, e livros didáticos...Porque o livro didático realmente pro pes-soal que tinha, por exemplo, a condiçãosocial que eu tinha, era o contato com o

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mundo mesmo da literatura, da produção,porque não tinha essa facilidade, que nemhoje você vai dar um presente e escolheum livro de poesia, vai escolher um roman-ce bom, não tinha, não era assim. Era umacoisa bem mais restrita.” (Entrevistado 3)

E hoje? E para outros grupos sociais?Cabe perguntar se atualmente e para quais gru-pos o livro didático tem tido semelhante valor?Será que as políticas públicas interferem novalor dado ao livro, já que nem sempre elepermanece com seus usuários além do períododo ano letivo, considerando a prática de ado-tar livros não-consumíveis?

A história oral é um caminho potencialpara suscitar e alimentar a memória do livrodidático, indicando representações construídaspelos usuários no contexto de suas vivências;e fornecendo pistas de quais eram esses mate-riais, quais seus usos na escola e qual seu va-lor para indivíduos nas suas trajetórias sociaise para alunos e professores nas suas vivênciaseducacionais.

No caso do trabalho de coleta de de-poimentos referente à pesquisa em curso, umaoutra entrevista exemplifica o processo deconstrução do valor atribuído ao livro. A depo-ente foi entrevistada na seguinte situação: olivro didático estava sendo estudado em sua fa-culdade e por isso ela foi solicitada a procurarseus antigos manuais para analisá-los em salade aula. Por essa razão, vasculhou sótãos eencontrou livros do tempo em que freqüentouo antigo primário e o ginásio. Com os livros namão, passou a lê-los e a recordar as vivênciasda escola. Passou, então, a avaliar a sua esco-laridade e a recordar sua trajetória. Simulta-neamente, descobriu em um livro do ginásiouma dedicatória do atual marido, que até en-tão não tinha notado:

“(...) trouxe para casa, folheando ele, achei adedicatória que meu marido havia feito paramim em 1973. Que eu tinha terminado o giná-sio e ele vendo meus livros fez essa dedicató-

ria (...) e eu não vi. Eu não... não sabia dessadedicatória. Aí folheando o livro [L.G. MottaCarvalho, Ensino moderno de História do Bra-sil. Editora do Brasil S. A., 2º. volume] em casa,eu achei. Aí mostrei pra ele. E falou: não acre-dito, você não viu isso? Falei: não vi! Fiqueiemocionada, até chorei de verdade. Falandosinceramente... sinceramente agora para você.Falei ‘nossa bem...’ a gente se trata por bem,né... moda antiga ainda... Ele falou: ‘pois é, fuieu que fiz, na sala de sua casa e se você qui-ser eu faço a mesma dedicatória na outra pági-na’. Eu fiquei mais feliz ainda.... E isso me in-comodou bastante porque... pra mim o livropassou a ser valioso duas vezes: uma porquepassou a ser um livro que eu estava precisan-do... tem coisa nele que eu precisava... trêsvezes até...; outra, lembrou bastante minhaadolescência; e a terceira, mais importante, adedicatória do meu marido, que eu fiquei bas-tante feliz com isso.” (Entrevistado 4 )

O fato de ter recentemente recuperadoseus livros didáticos contribuiu para valorizaresses objetos em seu depoimento e para des-cobrir um outro sentido, agora emocional, parapreservá-los. Além disso, ter em mãos os livrosmudou também o tipo de lembranças descritas.A depoente recordou com segurança os títulos,os autores, formatos, conteúdos e como erautilizado para estudo.

“No primário também, no primário você vendoo livro Alvorada [Antonio D´Ávila, CompanhiaEditora Nacional, 1965], você vê os conteúdosdo livro. Lógico que tinha umas bobagenzinhasassim tipo da abelha, do macaco, a historinhameio que infantil. Mas tem um belo conteúdo,ensinando bastante coisa de português, coleti-vo... Estava vendo o livro, relendo o livro, e per-guntava pro meu marido: você lembra do cole-tivo de...? Eu lembro, naquela época ficou bemmarcado, a gente aprendeu muito bem. Os pro-fessores faziam questão da gente aprender ebem. Tanto é que nas férias não tinha folganão.” (Entrevistado 4 )

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Um depoimento como esse revela a par-ticularidade da história oral em lidar com ques-tões específicas da memória. Como se tem estu-dado, a memória é sempre uma construção edepende de uma seleção dos acontecimentos dopassado e da criação de significados em funçãodo contexto do presente. Assim, nos depoimen-tos podemos identificar valores atribuídos ao li-vro didático que marcaram a memória dos indi-víduos no passado, como também valores que sãoimpingidos a esses materiais no presente. Um eoutro interferem nos acontecimentos narrados.

a lembrança é em larga medida uma re-construção do passado com a ajuda de da-dos emprestados do presente, e, além disso,preparada por outras recordações feitas emépocas anteriores e de onde a imagem deoutrora manifestou-se já bem alterada.(Halbwachs, 1990, p. 71)

Um outro exemplo dessa reconstruçãoda memória está nas lembranças de uma outradepoente. Para uma professora, que teve suavida profissional organizada em função da es-cola, suas vivências como aluna, no tempo emque freqüentou o primário e o ginásio, ganha-ram aos poucos outros significados. Os mesmoslivros da infância permaneceram em sua vidaquando começou a lecionar, só que com outrouso, inseridos em outros contextos, avaliados apartir de outras perspectivas e narrados pelamemória com sentidos e valores incorporadosa eles com o tempo:

“Quando eu já estava na 3a ou 4a série, eume lembro que algumas professoras da es-cola o utilizavam. Uma professora minha só,que acho que foi da 4a série, utilizou esselivro. Ele tinha lições e exercícios de todasas matérias. (...) Era um brochurão assim etinha todas as matérias em seqüência e ti-nha o texto da questão, pergunta, e espaçopara você responder. E depois eu fui reen-contrar como professora isso. (...) eu pro-

fessora aqui em Osasco, na rede estadual,já tinha terminado a faculdade, fui encon-trar muitos colegas se ‘amuletando’ mesmonesse livro (...) se dispensando de prepararas coisas tal e aí lição tal, lição tal paracasa, corrigir lá no próprio livro, então umacoisa assim que me dava arrepios, de verassim como não deve ser usado mesmo,como uma muleta.” (Entrevistado 3)

De modo geral, o livro didático temsido desvalorizado depois de seu uso imediatopor cumprir uma função específica na vida dosindivíduos, ou seja, por ser intrínseco ao contex-to escolar, tornando-se descartável e sem valorfora de seu contexto original. Todavia, para umapessoa que valoriza a educação, que tem suavida profissional ligada ao magistério, o livro di-dático ganha em sua memória outra coloração.O valor atribuído ao livro e à leitura em geralestende-se também aos materiais didáticos:

“Eles são um símbolo assim. Eu espero quevocê receba com muito carinho os que eute dei, porque eu não consegui me desfa-zer deles. E eu sempre fui muito mais ge-nerosa pra emprestar livro. Perdi mais deduzentos volumes só emprestando tudo.Mas aqueles que foram meus, lá do come-ço, já não têm serventia, ninguém dá valorpra eles e eu nunca quis pôr num sebo,nunca quis me desfazer deles assim... e...então é simbólico pra mim aquilo. Eu achoque foram um símbolo pra mim da escolaque pra mim era tão importante, e o pri-meiro contato mesmo com as coisas escritasassim. E até hoje eu acho livro uma coisa,uma coisa muito importante mesmo, muitoimportante, porque é você jogar sementeno vento, porque não sabe onde que elevai parar.” (Entrevistado 3)

Sem ter o objeto (livro) como suportepara recordar ou sem tê-lo reencontrado ourelembrado em outros momentos da vida, forammais raras as lembranças dos depoentes em rela-

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ção a autores e títulos das obras didáticas. Algunsentrevistados lembraram apenas de fragmentos:

“Eu me lembro muito bem. O livro didáticoque eu lembro era Violeta. Era o nome dolivro. Era de Português. Tinha mais sobretextos. De Língua Portuguesa, histórias.Agora, depois, geralmente o grupo escolarjá oferecia apostilas. Não tinha nome as-sim. Eles editavam naquela época.Era isso, eu me lembro de um livrozinho,pequenino, que era sobre frações.” (Entre-vistado 2)

O que se evidencia, como também apon-tam outros estudos, é o fato de as recordaçõesnão poderem ser confundidas com fatos do pas-sado. São representações ressignificadas no trans-correr do diálogo presente/passado, a partir deum conjunto de lembranças selecionadas ao lon-go do tempo, que se tornaram significativas emum contexto mais amplo da vida do depoente.São, principalmente, memórias recortadas e reor-ganizadas para o interlocutor. Assim, por suasespecificidades, as fontes orais precisam serproblematizadas a partir de valores e significaçõesque estruturam as narrativas, os temas debatidose as histórias de vida:

o realmente importante é não ser a memóriaapenas um depositário passivo de fatos, mastambém um processo ativo de criação designificações. Assim, a utilidade específicadas fontes orais para o historiador repousanão tanto em suas habilidades de preservaro passado quanto nas mudanças forjadaspela memória. Estas modificações revelam oesforço dos narradores em buscar sentidono passado e dar forma às suas vidas, e co-letar a entrevista e a narração em seu con-texto histórico. (Portelli, 1997, p. 33.)

Por exemplo, um dos depoentes, com aseleção de acontecimentos, lugares e persona-gens, ampliando o tema de sua fala para abar-car o cotidiano da escola, tenta explicar seus

princípios para uma escola ideal (já que seestava falando de um objeto escolar), e comoela estava atrelada a uma política educacional.Discorreu, assim, sobre outro assunto, fugindodo tema central que lhe foi solicitado lembrar,sem contudo deixar de apresentar um quadromais amplo de valores onde pode ser identifi-cado também o papel do livro didático no con-junto da vivência educacional.

“Uma coisa que eu lembro também da esco-la, posso falar também do dentista? Que ti-nha dentista? Então, essa escola Ildefonso, agente... tinha dentista, só que em vez de fi-car nessa escola, ficava em outra escola, RuiBarbosa, que era uma escola de material...porque a escola Ildefonso eram galpõesimensos compridos, cheios de salas, de ma-deira, que é do tempo do Brizola. Eram to-das as escolas assim, compridas, as escolasprimárias eram todas compridas, de galpões.E as escolas antigas, que tinham primário,ginásio e científico, eram de material, tipoJúlio de Castilho, Rui Barbosa. Então, o den-tista ficava na escola Rui Barbosa. Era per-tinho, umas duzentas... uns duzentos metrosdessa escola. Então ficava aqui, Ildefonsono meio, que era uma escola nova doBrizola da década de 1960, que era só osgalpões de madeira. Do lado dessa escolaprimária ficava o Júlio de Castilho, que erauma escola grande, imensa, que só tinhaginásio e científico. E a duzentos metrosdessa escola ficava o Rui Barbosa, que tam-bém era uma escola grande que tinha giná-sio, científico e primário. E aí a gente ia, osalunos dessa escola, do Ildefonso, eram.. odentista, médico, ia direto. Se estava comdor de dente ia no dentista... (...) Tinha mé-dico o dia inteiro, plantão. Não precisava ir aoposto de saúde. A própria escola tinha tudo. Eladava merenda, médio, dentista, uniforme, se vocêfosse pobre. Quando eu fui morar com minhatia, já não era pobre.” (Entrevistado 5)

No contexto de um depoimento comoesse, vale questionar como a construção da nar-

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rativa oral interfere no sentido atribuído ao li-vro didático? E como o sentido para a escolainterfere no significado organizado para essesmateriais e na seleção de memórias? Se a me-mória valoriza a escola, o livro didático tam-bém é valorizado?

A resposta pode ser identificada nesteoutro trecho do mesmo depoimento. Nele, oentrevistado ressalta novamente o valor da es-cola, apresentada como uma instituição queatendia às necessidades de crianças sem recur-sos para obter material e que precisavam de as-sistência, em geral, para estudar. E, na seqüên-cia, quando solicitado, descreve um livro sobrea história do Rio Grande do Sul como uma boalembrança:

“Da escola primária eu lembro o seguinte:quando eu fui começar estudar no primário,você era pobre, eles davam uniforme, davamcaderno, todo o material era gratuito, parapessoas pobres. E como você era estudante,você não precisava de passe. Você com uniformede estudante não pagava condução. Eu me lem-bro que eu pegava ônibus. (e material didáti-co?) Eu fui só ler livro didático, eu me lembrono terceiro ano que era livro... era mais livrodo Rio Grande do Sul. Era de uma família che-gando de navio em Porto Alegre, atravessando aponte do Guaíba. Depois eles iam contando ahistória dessa família, e aí misturam muito saci-pererê, com o negrinho do pastoreio. Negrinhodo pastoreio, a história é de lá, né? Tem a bru-xa..., como é a bruxa? É a lenda de uma bru-xa, da serra, uma história do sul. Ensinarammuito... A maior parte é história do Rio Grandedo Sul.” (Entrevistado 5)

Como em outros estudos, confronta-mos com uma outra particularidade da históriaoral quando os depoimentos extrapolam o temapesquisado, mesmo que exista um grande es-forço do pesquisador em orientar as questões.A memória por ser associativa e relacional fazcom que surjam lembranças variadas, de con-textos amplos, ambientes e espaços, objetos,

sentimentos e acontecimentos associados aotema central. Analisados de modo amplo, po-rém, as recordações diversas fazem parte de umconjunto de valores e sentidos (individuais ecoletivos), dos quais não escapam os que sãoatribuídos, por exemplo, ao livro didático.

Muito do que os depoentes recordamextrapola o foco da pesquisa. Lembram da meren-da, das dificuldades enfrentadas, da professora, dorecreio, dos castigos, do espaço físico da escola,dos textos literários, dos desfiles e festas cívicas, dadistribuição de materiais e livros aos mais pobres,das repetências e prêmios, e dos modelos de es-cola (regular, multisseriada, supletiva...).

Há em alguns depoimentos a presençada escola como um espaço que atendia popula-ções mais pobres, cedendo materiais escolarespara quem não podia comprar, fornecendo sopase merendas para crianças que lembram da fome...Isso coincide com o fato de os entrevistados, queassim relatam, terem estudado em escolas públi-cas. Divergem, por exemplo, do entrevistado queestudou em um seminário de padres, pago pelafamília. E diverge do depoimento de uma das de-poentes que estudou em escola pública, mas suafamília teve sempre que se encarregar da comprade seus livros escolares.

Entre outros temas rememorados espon-taneamente, há nos depoimentos lembranças dasrepetências, sem consciência plena do queacontecia para permanecer na mesma série; oua permanência por falta de escolas para conti-nuidade dos estudos, como no interior da Bahia,multisseriada, na qual a criança, mesmo tendoterminado as quatro séries, permanecia na escolaprimária só para continuar estudando.

Materialidades e usos doslivros didáticos

Especificamente sobre livros didáticos, asentrevistas possibilitam, de modo geral, reflexõessobre a história da literatura didática no Brasil. Apartir delas é possível dizer, por exemplo, que,apesar de fragmentadas as memórias, o livro es-teve presente efetivamente no coti-diano da es-cola e há indicações de como era utilizado por

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professores e alunos. Além disso, nas recordaçõeshá relatos que identificam o que tem marcado oimaginário dos indivíduos sobre o tema, quaislivros ficaram na memória de gerações, a relaçãoentre livros e currículos (o que era estudado), adisciplina imposta no ato de ler, a presença delivros com história regional e local, os formatos emodelos de livros didáticos (capa dura, peque-nos, com gravuras...), seus aspectos físicos (cor,grossura, capa...), ilustrações, mapas, quadros eatividades marcantes, etc.

Apesar de mais raras, algumas lembran-ças incluem a recordação dos autores por dis-ciplinas, indicando, por exemplo, um mesmoautor – Aroldo de Azevedo – presente em es-colas, locais e tempos diferentes. No caso, osdepoimentos referem-se ao sertão do Rio Gran-de do Norte na década de 1940; e ao interiorde São Paulo, na década de 1950:

“Eram três ou quatro livros básicos. O livrode Geografia era Aroldo de Azevedo; Histó-ria era Rocha Pombo; Aritmética era de umprofessor de Mossoró, Sollon; o resto eraeditora Vozes, de Petrópolis. Latim era umlivro de gramática. Basicamente era gramá-tica. A língua era o mais fácil de aprenderno seminário. Aprendia Latim e aí falavaFrancês e Italiano.” (Entrevistado 1)

“Os meus livros de Matemática eram do Os-valdo Sangiorgi. (...) Aroldo de Azevedo, deGeografia, Joaquim Silva, de História; dePortuguês eu acho que não tinha livro, ti-nha gramática e a gente fazia redação todasemana, isso me lembro muito bem. Masisso foi um só professor, não tive um profes-sor só de português. Livro de Português? Éacho que não tive livro de Português. Achoque tive gramática.” (Entrevistado 3)

Através da solicitação de recordaçõessobre os livros, têm sido identificados, nas memó-rias dos alunos, os nomes das disciplinas e asmudanças que elas sofreram com o tempo. É ocaso da matemática que aparece como aritméti-ca. O livro estudado era o livro de Aritmética.

“Era isso, eu me lembro de um livrozinho,pequenino, que era sobre frações. Hoje amolecada na boca, na memória não faz.Somar, multiplicar, dividir. Só sobre fra-ções. A vantagem que tinha na época éque esse livrinho era usado três anos. Ma-temática, não era matemática. Era aritmé-tica.” (Entrevistado 2)

Alguns entrevistados lembram de livrosadotados que permaneciam ao longo das sériese outros que continham, numa só publicação,muitas disciplinas. As duas lembranças coletadasreferem-se ao ensino primário.

“Esse livro tinha tudo. Era um livro paratudo. Dentro desse livro tinha geografia doRio Grande do Sul, história do Rio Grandedo Sul, e português. Matemática não tinha,era separado. Na 4a série, eu tinha um livrode religião. Isso eu lembro, eu tinha um li-vro só de aula de religião, que era no sába-do.” (Entrevistado 5)

“Ele tinha lições e exercícios de todas asmatérias. Ele era quadradão assim, horizon-tal, tinha tamanho de um caderno universi-tário, mas na horizontal. Era como os ca-dernos de desenho de cartografia que ti-nha aquele formato. Era um brochurão as-sim e tinha todas as matérias em seqüênciae tinha o texto da questão, pergunta, e es-paço para você responder.” (Entrevistado 3)

Há também referências aos modos deaquisição dos livros, que variavam em funçãoda condição social do aluno, do contexto daépoca e das políticas educacionais:

“O livro durava três ou quatro séries. Livro nemcomprei, ganhei. Minha tia pegou emprestadode quem já tinha cursado.” (Entrevistado 5)“O livro não pertencia a gente. O que eu tiravapara estudar, tinha que tomar conta dele. Umlivro durava dois, três anos. Livro era uma coisarara, não era fácil não.” (Entrevistado 1)

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“É... a escola dava a lista e a gente ia na li-vraria, comprava e passava de irmão parairmão.” (Entrevistado 3)

Como explica Pierre Nora, entre as inú-meras especificidades da memória, ela “se enra-íza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem,no objeto” (1993, p. 9). Dessa forma, os livrostambém são lembrados por suas materialidades(como seus aspectos físicos cor, grossura, capadura, etc.), pelas disciplinas a que se referem(português, história, admissão, etc.) e por teremformatos distintos de acordo com a série:

“O livro de geografia era um livro pequeno,capa dura. Os mapas eram todos de bico depena, preto-e-branco.” (Entrevistado 1)

“E eu me lembro muito bem da escola, dacartilha tinha uma menina de trança dese-nhada na capa, não era foto (...) E aí em ou-tubro a gente recebia o primeiro livro de lei-tura. Desse eu tenho uma vaga lembrançadele... não sei se era da mesma autora ounão. As gravuras eram geralmente bico depena, não eram fotografias e não eram colo-ridas. Mesmo os do ginásio, que depoisvocê me perguntou, das gravuras. O livro deciências era bastante ilustrado, mas geral-mente com desenhos mesmo, que eram fei-tos com nanquim e depois para editar etudo. E a gente não tinha essa coisa de livrocolorido de fotografia, nada assim.(...) Então do primário para o ginásio notei essadiferença dos livros. Um é capa dura, parecialivro de adulto e a gente tinha uma certa ve-neração com os livros.” (Entrevistado 3)

Há lembranças de imagens específicas edo estilo das ilustrações:

“O livro de História Sagrada trazia sugestões.Por exemplo: uma figura que ocupava umapágina inteira, em bico de pena, era a fugade José, do Egito. As imagens sagradas doslivros didáticos se transformavam em painéisdo artesanato popular.“ (Entrevistado 1)

“Essa era preto-e-branco... a história de umafamília chegando em Porto Alegre, num na-vio, pelo Guaíba. Então era a família, vocêvia o navio, a família no convés do navio,Porto Alegre e a ponte.” (Entrevistado 5)

Alguns depoentes lembram das editorasresponsáveis por produzir os livros, distinguin-do por sua produção editorial:

“Os livros da Vozes, de Petrópolis, eram dife-rentes. Eram compridos, com papel bom. Ode aritmética era feito muito artesanalmente.”(Entrevistado 1)

“(...) de francês era Le Français par méthodedirecte [C. Robin, Libraire Hachette]. Deixa euver se eu lembro qual era o autor. Eu tenho oslivros até hoje (...) Esses livros eram os únicosque eram coloridos, esses de francês, os úni-cos. Eram livros importados, deviam ser carosmesmo, a editora Hachette, eles tinham situa-ções desenhadas e pintadas e fotografadas emcolorido. (...) Eu não me lembro direito daseditoras dos outros, das editoras não. Esse euacho que era uma coisa que você tinha queprocurar mais pra achar, que era um nomemuito diferente dos livros das outras matérias.O de inglês eu estou até vendo a capinha delena minha frente. Ele era todo ilustrado, talvezele fosse importado também, mas ele era tudocom bico de pena também. Tinha poucas ilus-trações e com bico de pena, como o de fran-cês. E o volume era bem menor, o tamanhotambém menor.” (Entrevistado 3)

Nas lembranças, são freqüentes as re-cordações de como os livros eram utilizados equais eram os métodos de ensino:

“A alfabetização foi com uma cartilha. Pos-so descrever: cinqüenta, sessenta páginas,tamanho Almanaque Capivarol. Começavacom o abecedário, seguia a separação devogais e consoantes. Em seguida, entravana formação de fonemas. Era decorativo e

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muito exercício de assinar o nome, ferrar onome. (...)No final da aula, a classe inteira ficava de pédiante da professora. Ela ficava lá no lugardela, como se fosse um maestro, segurandona mão direita um instrumento para reger ogrupo. Normalmente, era uma palmatória. Aí,a classe inteira, quando ela dava o sinal,cantava: B e um A, BA; B e um E, BE... Asmães ouviam da rua e sabiam que a aulaestava acabando.” (Entrevistado 1)

“Tinha a professora de português... não, essaera a área geral. Quando faltava as outras,ela substituía. Maria Luíza Fernandes. Eramuito dedicada, muito educada. Ela tinhaum carisma diferente para cativar os alunos.Era diferente também porque ela faziagrupinhos para estudar, entende. Separavaem grupinho para estudar. Ela ensinavamesmo. E depois tomava as lições. Ensinavatudo. Era geral. Era substituta. Quando fal-tava qualquer professora, de qualquer ma-téria, ela dava.... A gente captava melhor oensino dela do que das outras. Como ométodo de ensino, né, cada uma tem dife-rente uma das outras. O método das outras,era rápido e rasteiro, como dizia antes. Rá-pido.... E após... ela largava o estudo e de-pois tomava a lição em separado. Se o alu-no tivesse algum problema, então ela vol-tava ensinava outra vez, voltava até ensi-nar... É só o que eu sei.” (Entrevistado 2)

Uma entrevistada distingue em suasmemórias, por exemplo, o primário e o ginásio,através do método de estudo proposto peloprofessor e do uso do livro ao longo das séries:

“Ah!, sim, cada professor de uma matéria,que era a grande diferença. Você tinha umprofessor só pra tudo e de repente... e aca-bava dando tudo com o mesmo jeitão... eaí de repente você ia pro ginásio e tinhacada professor com seu jeito, suas manias,suas exigências e também com seu materialdidático diferenciado. E então eles passa-

vam, usavam também o... Não trabalhavamo livro... com a gente na classe nunca tra-balhavam. Eu não me lembro de nenhumque trabalhasse com a gente, por exemplo,lendo, discutindo um texto, nunca. As au-las eles expunham, punham coisas na lousa,a gente anotava, e eles marcavam capítulosdo livro pra gente estudar, responder ques-tionários e... ou para estudar pra prova.Então você utilizava o livro sempre fora daescola, não é. Utilizava o livro mais emcasa mesmo, pra fazer as tarefas, que erammuitas, a gente tinha muita tarefa, de todasas matérias.” (Entrevistado 3)

Entre os livros que emergem da memóriados depoentes há livros de literatura, lidos, segundoeles, por solicitação da escola. A partir dessas in-dicações é possível investigar se alguns dos auto-res e títulos foram consagrados como literatura es-colar entre gerações, presentes em diferentes regi-ões do país, ou apenas em certas escolas. Alémdisso, como as lembranças misturam as épocas, hásempre a possibilidade de essa literatura ter sidolida, mas não para trabalhos escolares:

“Isso aí, eu li um livro chamado..., gosteimuito, só não sei quem escreveu, eu lembroque era Pérolas esparsas, só não sei quem es-creveu. Era dessa grossura.” (Entrevistado 2)

“Foi no seminário onde eu li mais livro deaventura. Um escritor alemão, Karl May, ti-nha livros de aventuras no Oriente e entreos índios na América. Era leitura recomen-dada, que se ajustava ao contexto de estu-do da gente.” (Entrevistado 1)

Até algumas décadas atrás havia o quese chamava de livros de leitura. Eram livros dehistórias, de moral ou de literatura, lidos emvoz alta, que tinham depois seu texto explora-do pelo professor. Na memória de uma dasdepoentes, o livro de leitura é recordado comosendo material que solicitava – e, ao mesmotempo, disciplinava – uma postura física corretado corpo para se ler:

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“Lembro... a gente fazia leitura silenciosa,depois procurava a palavra no vocabulário senão soubesse, aí ela fazia... uma leitura oral demodelo e aí fazia uma leitura oral que elamandava alguém ler e depois mandava outrocontinuar, mandava outro continuar...[fazendo os gestos] A gente tinha que ficarde pé, segurar o livro com a mão esquerda,folhear com a mão direita. Segurar o livrocom a mão esquerda assim, com os quatrodedos você apoiava o livro assim, e com opolegar você sustentava assim. E quandovocê tinha que virar a página, você tinha quepegar a página aqui do alto com a mão di-reita e virar o livro. Então era essa coisa devocê ficar prestando muita atenção, porqueela falava fulano continua. E aí ela corrigia eesse negócio das vírgulas, assim você lê compontuação. E isso era trabalhado mesmo, eera com o texto de livro de leitura. Eu nãome lembro muito de ela ficar explorandomuito o conteúdo, de problematizar o que agente... isso não me lembro.” (Entrevistado 3)

O livro de leitura geralmente era dife-rente das cartilhas e dos demais livros didáti-cos. Tinha outra organização interna e outrasproposições. Uma das depoentes lembra queera diferente por não conter exercícios, masapenas textos e vocabulário. Nesse caso espe-cífico, isso tornava o livro de leitura dependen-te do trabalho e da proposição do professor.Todavia, isso podia não ocorrer com outroslivros do gênero, que podiam ter outras pro-postas de atividades escolares:

“Era diferente da cartilha. Não tinha maisaquela coisa da silabação. Ele tinha assimuma gravurinha, mesmo que em branco-e-preto, tinha um texto assim que a gentegostava de ler. Geralmente, era com algu-ma fábula, algum conto assim, muitos ti-nham uma moral da história, e aí tinha umvocabulário com as palavras mais difíceis,que eles já previam que não eram usuais, egeralmente a gente precisava mesmo do

vocabulário porque até as professoras pre-cisavam entrar com outra coisa de vocabu-lário porque às vezes tinham muitas pala-vras que não eram do universo da gente etal. E... mas eles não tinham aquele negóciode questionário, nada. Então era diferenteporque a única ajudinha que tinha didáticaera aquele vocabulário ali.” (Entrevistado 3)

O contato com o livro podia não serdireto. Uma depoente recorda, por exemplo,que uma professora costumava ler e desenvol-ver atividades a partir de um livro que era seu:Fábulas, de Monteiro Lobato utilizadas comomaterial didático. Os alunos ouviam as leituras,recriavam os textos, mas o livro pertencia aoprofessor:

“E quando a gente, às vezes, não tinha olivro texto, teve série que não teve livrotexto, mas ela trabalhava com reprodução.Aí ela tinha um livro, por exemplo, Fábu-las, do Monteiro Lobato. Aí ela lia a fábula,a gente fazia reprodução... [copiava?] Co-piava não, a gente escrevia o que ela tinhalido a história [Ditava?] Não, a gente lem-brava da história. Ela lia a história, conver-sava com a gente sobre a história, sobre amoral da história, trabalhava um vocabulá-rio, uma palavra mais difícil de escrever etal e aí a gente fazia a reprodução. A gentede memória, pela exploração que tinhasido feita, você recontava a história quevocê tinha ouvido. Aí você ficava com umtexto no caderno e às vezes ela corrigia,recolhia, corrigia... então um outro contatocom o texto era assim. Um livro que era daprofessora, que a gente via na mão dela,que via ela lendo (...).” (Entrevistado 3)

Nas lembranças, há indicações de usosde livros com conteúdos ligados à história re-gional:

“A gente estava no primário inteiro só o RioGrande do Sul. Geografia era só Rio Grandedo Sul. A esse livro... era até a 4a, porque ti-nha geografia do Rio Grande do Sul, história

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do Rio Grande do Sul, que era a revoluçãoFarroupilha, só essas coisas. Aí tinha línguaportuguesa, que trabalhava com aqueles textoslá. E matemática não tinha. Lembro que a pro-fessora de matemática de primário, ela davamatemática sem o livro.” (Entrevistado 5)

Há recordações antigas, referentes àdécada de 1950, de situações em que o livroera substituído por apostilas, provavelmentecriadas ou organizadas pelo professor. E fica-ram marcadas as situações em que professores,na década de 1970, não utilizavam livros didá-ticos e nem apostilas. Preferiam propor para osalunos perguntas que deveriam ser pesquisadas:

“Ela fazia um questionário de cem perguntas emandava todo mundo copiar. Ai você copiavaaquele questionário de cem perguntas. E aívocê tinha que responder aquele questionário.Aí ela indicava onde estavam os livros e comoachar, tal, e você tinha que pesquisar e respon-der as cem perguntas.” (Entrevistado 5)

Mudando de perspectiva, uma depoen-te relembrou o uso do livro como professora.Seu depoimento aponta, por exemplo, a impor-tância de investigar como, ao longo do tempo,e, dependendo das concepções pedagógicas,esse uso torna-se variável, com justificativas esentidos de trabalhos pedagógicos distintos. Ou,ainda, se há permanências ao longo do tempo:

“Eu sempre tive dificuldade de usar um só,usar um só. Mas eu sempre achei muito im-portante recorrer a livro didático. Geralmenteutilizava pra uma coisa, introduzia outras.No primário, por exemplo, minha experiên-cia foi mais de pegar o que o MEC mandavapra escola, porque as crianças não podiamcomprar. E de lá eu selecionava, o que euqueria usar de um, do outro, e completavacom coisas que eu pegava de outros livros ereproduzia.... Agora, na escola normal, eu...gostava de adotar coletânea, justamente

porque você trabalha com artigos que apro-fundam coisas, que é difícil um autor, porexemplo, dominar com a mesma profundida-de tudo. E então eu gostava de indicar prosalunos coletâneas ou então trabalhar tam-bém assim diversos livros e a gente provi-denciar que uma turma comprasse um, ou-tra turma comprasse outro, depois rodava,que nem história da educação eu fiz umpouco isso. Eu fazia também alguns resu-mos pra eles, pra reproduzir alguns trechos,ia quebrando o galho. E também isso foidécada de 1960, e como eu fui efetivadaem 1970, começo de 1970 que eu trabalheina escola normal, também não tinha tantafacilidade pra livro também. Acho que de1980 pra cá é que melhorou bastante o pre-ço e a variedade dos livros.” (Entrevistado 3)

Nas últimas décadas, como apontam al-guns autores como Marisa Bonazzi e UmbertoEco (1980), Kazumi Munakata (1998) e EduardoPortela (2003), os livros didáticos têm sido mui-to criticados por educadores. E isso pode, de al-gum modo, interferir nos depoimentos, indepen-dentemente do uso que dele tem sido feito emoutras épocas. O presente acomoda o passado eo transforma. Assim, esperamos avaliar até queponto os relatos de professores podem nos apro-ximar do cotidiano escolar de tempos atrás e re-fletir sobre como os valores atuais podem remode-lar a memória. Como analisa Maurice Halbwachs,há um exercício de análise importante para dis-cernir as camadas das lembranças, sobrepostaspelas vivências sociais e pelo tempo.

A imagem que fiz de meu pai, desde que euo conheci, não parou de evoluir, não so-mente porque, durante sua vida, as lem-branças se juntaram às lembranças: mas eumesmo mudei, isto é, meu ponto de vistase deslocou, porque eu ocupava dentro deminha família um lugar diferente e sobretu-do porque fazia parte de outros meios.(Halbawachs, 1990, p. 74)

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Recebido em 05.10.04

Aprovado em 18.11.04

Antonia Terra de Calazans Fernandes é doutora em História Social pela FFLCH da USP, professora do Departamento deHistória do UNIFIEO, de Osasco, e professora eventual do Departamento de História da PUC-SP.