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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA

8 Abril/ Junho — 1971

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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA

Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura

DIRETOR

Mozart de Araújo

CONSELHO DE REDAÇÃO

Octavio de Faria Manuel Diégues Júnior Adonias Filho Pedro Calmon Afonso Arinos de Mello Franco

Redação: Palácio da Cultura — 7* andar — Rio de Janeiro — Brasil.

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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA ANO H I ABRIL / J U N H O 1971 N.° 8

Sumário

CARLOS CAVALCANTI

BRUNO KIEFER

A R T E S

A Pintura mais Popular no Brasil 9

Função Integradora da Música. 27

CIÊNCIAS H U M A N A S

ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS

GILBERTO FREYRE

CLARIVAL DO PRADO VALLADARES . . .

IRMÃO JOSÉ OTÃO

MANUEL DIÉGUES JÚNIOR

HELIO VIANNA

O Brasil, de 1530 a 1580 . . . . 37

O Conde da Boa Vista, simpa­tizante de idéias de reforma social? 43

Biografia da Lagoa Rodrigo de Freitas 55

Cultura, Tecnologia e Desenvol­vimento 75

Mestiçagem e Transculturação no Brasil de Antes do Sé­culo XIV 91

Manuscritos da Biblioteca Im­perial 105

LETRAS

CASSIANO RICARDO

AFONSO ARINOS DE M E L O FRANCO . . . .

R. MAGALHÃES JÚNIOR

Grafitos 6 Murílogramas 145

Uma Visão de Proust na Se­gunda Metade do Século. . 155

D. Pedro li. Plagiario? 163

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Artes

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A PINTURA MAÏS POPULAR NO BRASIL

CARLOS CAVALCANTI

É a Santa Ceia de Leonardo da Vinci. Ainda hoje não há menino brasileiro, principalmente do interior, rico

ou pobre, que não a conheça. Criei-me, por exempla, vendo-a todos os dias, na sala de jantar de minha casa cearense. Via-a, também, na sala de jantar das casas de outros meninos do meu tempo. Assim, sentia-a e sinto-a. ainda agora, inseparável das imagens de minha meninice. Mais do que isso, como sugestão de algo indefinivelmente nobre e sereno, que existia ou deveria existir na convivência caseira. Uma sala de jantar sem ela. para mim, como menino, estava incompleta. Não era tanto no plano religioso, mas sobretudo no espiritual e moral, uma espécie de lição, numa influência ou poder de persuasão sutil, que não sabia bem definir ou explicar, no dispersivo entendimento infantil, feito mais de emotividade difusa do que de percepção intelectual.

Quando estava ficando taludinho me mudei com a familia para For­taleza. Voltei a encontrá-la, colorida ou em prêto-e-branco, maior ou menor, moldura simples ou caprichada, conforme as posses, nas salas de jantar de outros frangotes do meu tope de ginasiano. Vindo para o Rio, invariavelmente a encontrava, no lar de parentes e de amigos, nas pensões do Catete, pelas quais perambulei quando estudante. Achei uma novi­dade — algumas eram moldadas em gesso, brancas ou coloridas, outras bronzeadas ou prateadas. O conjunto destacava-se sobre fundo de ve­llido de tonalidade carregada, para maior realce do contraste.

Tanto tempo passado, vejo-as hoje diversificadas nas apresentações, enfileiradas, postas à vista e oferecidas às preferências dos fregueses, nas papelarias, casas de molduras e de artigos religiosos. Algumas brilham espaventosas no relevo polido de antimònio e na suntuosidade pretensiosa da moldura, quase sempre de irrepreensível mau gosto.

— Isto vende ?

— Vende, sim senhor! Antigamente vendia mais. Ainda hoje vende bem, especialmente para presente de casamento.

— Tôdas são a mesma. Não há outras diferentes ? — Não, porque esta é a preferida. É a que agrada mais. — Estou vendo que a maioria é em alto-relêvo.

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— Agora isso está na moda. Gostam mais assim ! — É importada ? — Não . Vem de São Paulo.

O luso, maduro e esperta faz sua sociologia prática de mercador do sagrado:

— Antigamente, a coisa era diferente, havia mais respeito e mais sentimento de família. Qualquer sala de jantar do Brasil, Portugal, Es­panha, França e Itália, tinha a sua Santa Ceia. Hoje tudo mudou, prin­cipalmente nas grandes cidades e capitais. Mudaram até as salas de jantar. Aqui no Rio, por exemplo, sala de jantar para muita gente em Copacabana hoje é lanchonete !

! ! !

— No interior, não; como meu amigo sabe, ainda há respeito. Qualquer sala de jantar do interior ainda tem a sua Santa Ceia. Quando menino, mirava-a na minha casa em Portugal. Hoje, tenho-a na minha casa na Aldeia Campista. Mas, sou português antigo !

HISTÓRIA E LENDA

Leonardo pintou-a numa das paredes de fundo, lado norte, do refei­tório do Convento dominicano de Santa Maria das Graças, em Milão, a pedido do duque Ludovico Sforza, o Mouro. Assim o chamavam pelo moreno abaíanado da pele. O duque queria fazer do convento o panteon da família. Enterrar-se ali com a mulher e os filhos, amanhã se enter­rariam os netos. Por isso, mandara Bramante aumentar e embelezar a igreja, enquanto Leonardo trabalhava no refeitório. com as obras desses dois grandes da Renascença, o Sforza esperava ficar, como de fato ficou, na glória das artes italianas.

Deve ter sido iniciada provavelmente em 1495. Os arquivos do Convento dessa época foram destruídos. Os poucos documentos exis­tentes a respeito datam de 1497, quando sabidamente já estava em fase de acabamento, apesar da proverbial lentidão com que, artista ou cientista, costumava êle trabalhar. Em 29 de junho, desse ano, o duque mandava um bilhete a seu secretário, Marchesino Stang, para que o apressasse, porque deveria se ocupar do muro em face. O muro em face era a outra testada da grande sala do refeitório. Ali o medíocre milanês Donato Montorfano (1440-1510) representara a afrêsco complicada, movimen­tada e ornamentada Crucificação, ainda impregnada de sentimento me­dieval. Leonardo deveria acrescentar-lhe as figuras da família ducal — de um lado, Ludovico e o filho maior, Maximiliano; de outro, Beatriz d'Esté e o filho mais môço, Francesco. O acréscimo se fêz. com o tempo, igual à Ceia — logo veremos isso — as figuras começaram a des­botar, transformando-se quase em borrões.

Admite-se tenha sido terminada em 1498. Quem o diz é um espí­rito amante da exatidão, apesar de o chamarem os amigos monge tonto

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de beleza. É o franciscano, matemático, e geòmetra, professor em Pavia e Milão, conhecedor de arte, Luca Paccioli, na dedicatória ão duque de seu tratado Da Divina Proporção, que Leonardo ilustrara. No Iivro, elogia-o e faia da obra terminada.

Leonardo lançou a composição em tôda a extensão da parede, nove metros de comprimento, quatro e meio de altura. As figuras são um terço maior do que o natural ( Fig. 1 ). A técnica empregada, causa da tragédia de sua conservação e integridade, ainda hoje é controvertida, pois não a definiram com precisão. Não foi comprovadamente a do afrêsco, cuja rapidez de execução, cujo impromptu, feito mais de intuição do que de reflexão, não se ajustava a seu temperamento meditativo e à delicada fluidez de sua pincelada. Parece ter sido uma espécie de tempera ou mesmo de óleo, com solventes e secativos especiais, que obtivera na infa-tigável curiosidade de pesquisador. Na solução, foram diluídas tintas cuidadosamente moídas, capazes de permitir particular finura nas tran­sições das tonalidades, luzes, sombras, como numa impressão sobre ma­deira ou tela.

No outro lado da parede, estavam a cozinha e a copa. Havia também um tanque para lavagem de pratos e panelas, que provocava constante infiltração. Ainda por cima, o refeitório fora construido a trancos e barrancos, apressadamente, sem maiores cuidados. Usou-se mesmo ma­terial de demolições. com seu olhar de verruma, Goethe percebera isso. Se a parede era ruim por fora. devia pensar o alemão criterioso, imaginem por dentro. como um artista tão consciencioso e exigente consentira nisso !. ..

O PRESTIGIO DA AURA

Sempre vagaroso em tudo, — a impaciência, escreveu, mãe da tolice, admira a pressa — Leonardo ainda trabalhava na Ceia e o lendário já a envolvia.

como em tôda grande obra de todo grande artista, ambos tocando-se naturalmente de aura, a anedota edificante é inevitável. Não se sabe de grande criador, em qualquer domínio da criação, sem o seu fabulário. Quase sempre há um implicante, um invejoso, um mau caráter, que acaba castigado pelo artista. No Juizo Final de Miguel Ângelo, todos co­nhecem a história de Biaggio da Cesena, mestre-de-cerimônia do papa Paulo III. Nos corredores do Vaticano, vivia falando mal da nudez das figuras. Miguel Ângelo colocou-o então entre os danados do Inferno, canto inferior da extrema direita da composição — também nu, orelhas de burro, serpente enroscada no corpo abocanhando-lhe o sexo. O mestre vai queixar-se ao papa. Pede-lhe ordene ao artista "retirá-lo da grotesca condenação eterna. Paulo III sorri:

- Meu poder infelizmente não chega ao Inferno. Se êle o tivesse posto no Purgatório, meu filho, ainda haveria possibilidade.

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Aqui mesmo no Brasil — eis outro ungido de aura — conta-se aquela passagem do Aleijadinho com o coronel João Romão, ajudante-de-ordem de D. Bernardo José de Lorena, governador da Capitania das Minas. Recebendo-o no palácio, o ajudante o achou, em alto e bom som, feio demais. O artista vingou-se caricaturando-o, para divertimento de Vila Rica, na imagem de São Jorge, que saía nas procissões.

Na Ceia de Leonardo, a anedota não teve o desfecho convencional do castigo. . Dizem que pelo caráter elevado do artista, forte e intocado na sua solidão, avesso por isso a mesquinharias. Quem a contou em 1554 foi J. B. Giraldi, que a ouvira do pai. Stendhal a traduziu e popularizou. Leonardo havia terminado o Cristo, onze apóstolos e o corpo de Judas. Só faltava a cabeça do traidor. A coisa, porém, não andava. Impacientado com a lentidão do gênio e a tralha dos andaimes no refeitório, Vicenzo Bandelle o prior do convento, foi ao duque. Este mandou chamar o artista e estranhou-lhe a demora. Pasmou Leo­nardo com a estranheza da príncipe. Garantiu não se passava um dia sem que trabalhasse, pelo menos duas horas, na pintura. O prior, no entanto, voltava à carga, agora numa reportagem completa.

— Senhor, disse ao duque — não falta senão uma cabeça, a de Judas. Faz mais de um ano, porém, que êle não toca na pintura e nem sequer vem vê-la !

O duque naturalmente subiu por suas suntuosas paredes, ainda hoje admiradas peles turistas no castelo sforzesco. Novo chamado. Assim teria sido a conversa:

— Que sabem os frades de pintura? — responde Leonardo. Eles estão certos quando dizem que há muito tempo não ponho os pés no Con­vento, mas erram quando não dizem que emprego pelo menos duas horas por dia no trabalho !

— como, se não apareces lá ?

— Vossa Alteza sabe que não resta fazer senão a cabeça de Judas, aquêle insigne patife que todos conhecemos. Convém dar-lhe fisionomia que corresponda à tamanha patifaria. Por isso mesmo, há um ano ou talvez mais, todos os dias, manhãs e tardes, vou ao Borgheto, onde Vossa Alteza não ignora que vive a pior canalha de Milão. Ainda não pude achar a cara de celerado que corresponda à minha idéia. Logo que a encontre, num dia terminarei a pintura. Se minha procura fôr inútil, usarei a desse prior, que me serve perfeitamente. Tenho hesitado, porém, levá-lo a ridículo no seu próprio convento.

O duque achou graça. Ao mesmo tempo, vendo a profundidade com que trabalhava o artista, compreendia os motivos da admiração geral que a obra mesmo inacabada já despertava até fora de Milão. A fama do mural, na verdade, estava correndo mundo. Vinha gente admirá-lo, plebéia ou nobre. O caso foi que finalmente encontrando a fisionomia desejada, que anotaria num desenho de singular força expressiva, hoje na Biblioteca Real de Windsor, Leonardo logo o deu por terminado.

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Verdadeiro ou não, o episódio tem sua eloqüência. Serve para mostrar o processo de criação, artístico ou científico característico de Leo­nardo. Sua grande mestra, não se cansava de dizer, era a Natureza, observada diretamente ou submetida, nas causas e efeitos de seus fenô­menos, à prova da experimentação. O artista — está nos seus manus­critos — não deve ser o neto, mas o filho da Natureza. Em outras pa­lavras, não deve se valer da vivência alheia senão da própria se deseja ser realmente criador, isto é, revelar e enlevar.

Sabe-se que quando pintava a Ceia, não tirava os olhos dos judeus milaneses. Observava-lhes tudo, os tipos, as atitudes, a gesticulação. o franzir da testa, o modo de olhar, as grandes e pequenas reações, com a mesma avidez que punha na contemplação do vôo dos pássaros ao se empenhar na construção da máquina para o homem voar. Buscava o caráter. Foi justamente o que fascinou Goethe — a revelação do ca­ráter através do gesto.

A mão esquerda do Cristo, por exemplo, espalmada sobre a mesa, num gesto de resignação superior, dizem que procurou como procurara a face do Iscariotes. Tudo indica que realmente a procurou e encontrou. Num dos seus manuscritos, lê-se: «Alessandro Caríssimo de Parma, para a mão de Cristo.» Teria assim encontrado, certamente num gentilhomem, a mão excelsamente expressiva que buscava (Fig. 2) . Sempre obediente aos conselhos de sua mãe Natureza . . .

A CABEÇA DE CRISTO

Um contemporâneo. Matteo Bandello, jovem frade do Convento, sobrinho do prior implicante, depois escritor, conta não o que ouvia, mas o que via.

Leonardo chegava manhã bem cedo. Subia depressa ao andaime. Pincéis na mão, absorvia-se tanto no trabalho, desde o levantar ao cair do sol, que esquecia até de comer. Só deixava de pintar quando a obscuridade da noite o impedia. Outras vêzes, passava quatro ou cinco dias sem nada fazer. Vinha e ficava, uma ou duas horas, braços cru­zados, a olhar as figuras. Aparentemente, esclarece o jovem frade, estava criticando-as. Via-o, também, em pleno meio dia, quando o calor esva­ziava as ruas de Milão, sair da cidadela onde modelava em barro o cavalo grandioso do monumento a Francesco, pai de Ludovico. Vinha ao Con­vento, pelo caminho mais curto, sem procurar a sombra. Chegava, dava duas ou três pinceladas numa cabeça, voltava imediatamente ao cavalo.

Gian Paolo Lomazzo (1538-1600) foi um pintor que escreveu sobre arte, especialmente depois que cegou. Seu Tratado da Arte da Pintura (1584) foi muito lido. Colaborou também no fabulário de Leonardo. «Este pintor surpreendente — conta Lomazzo — descobria defeitos nas pinturas onde outros só viam miraculosas perfeições. Deu tanta beleza e majestade a Tiago, o Maior, e a Tiago, o Menor, no quadro da Ceia,

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que devendo tratar, em seguida, da figura de Cristo, não pôde elevá-la ao grau de sublimidade que lhe parecia conveniente. Depois de várias tentativas, foi se aconselhar com seu amigo Bernardo Zenale.

— Oh, Leonardo, — disse-lhe Zenale — o erro que cometeste é de tal ordem que só Deus poderá corrigi-lo. Não está mais no teu poder e, mesmo, no de qualquer outro mortal, dar maior beleza e expressão mais divina do que as que soubeste pôr nas cabeças dos dois Tiago. Assim, deves deixar o Cristo inacabado, porque jamais o farás ser o Cristo, ao lado desses dois apóstolos !

E Leonardo — conclui Lomazzo — seguiu o conselho, como hoje se pode ver, embora a pintura esteja em ruínas.»

Realmente, a lenda da cabeça inacabada de Cristo, o artista sentindo-se impotente para dar-lhe a feição ideal que concebera ou buscava na realidade, foi contada e recontada. Na Pinacoteca de Brera, Milão, guarda-se atraente desenho colorido de uma cabeça de Cristo (Fig. 3) . Acreditou-se, por muito tempo, fosse o estudo de Leonardo para a Ceia. Autorizados leonardescos a reconhecem hoje obra anônima de discípulo ou imitador. Acham-na, inclusive, muito piegas, para ser de quem se pretende seja. Entre os apontamentos escritos de Leonardo relativos a Ceia, que não são muitos, encdhtra-se esta indicação — «Cristo, Giovan dei Conte, aquele do cardeal de Mortaro.» Alguém, de feições nazarenas. na comitiva ou corte do cardeal. Aliás, também não são numerosos os desenhos, dispersos por museus e coleções. Um dos mais bonitos é jus­tamente o da cabeça de Tiago, o Maior, na Biblioteca Real de Windsor. Tem ao pé rabiscos de um castelo e de cúpulas, que lembram o estilo de Bramante. Não são poucos os que juram que a cúpula bramantesca teve o «risco» de Leonardo (Fig. 4 ) .

O ETERNO DOENTE

A verdade é que Leonardo ainda vivo — vagando pela Itália, depois da queda do Mouro, para afinal ir morrer na França, precocemente en­velhecido pelo hábito de trabalhar à noite, como César Borgia, de quem fora engenheiro militar e em cuja corte deveria ter conhecido Maquiavel, embaixador da Senhoria florentina — a verdade é que ainda vivo Leo­nardo, começaram não apenas os estragos no mural, pela mistura de óleos e vernizes, umidade da parede, impericia dos restauradores, inaugurando-se assim sua existência de eterno ammalato, eterno doente, como o chamou Mário Salmi, um entre os muitos de seus ardentes devotos. Começavam também e ainda não acabaram as análises, interpretações, críticas. Assim como as cópias, as reproduções inumeráveis, com maiores ou menores, quando não extravagantes infidelidades (Figs. 5 e 6) .

O inglês Kenneth Clark se confessa aterrado com as montanhas de livros e estudos que nos seus mais de quatro séculos e meio a obra tem

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inspirado no mundo inteiro. Para falar a respeito dela diz que se sente inibido. Não há mais o que dizer, tudo já foi dito, a favor ou contra. Conclui, paradoxalmente, que a Ceia não é obra de um homem, mas da própria natureza. Vejam só ! Por isso mesmo, parece-lhe tão absurdo analisá-la e criticá-la, como analisar e criticar num mapa a conformação topográfica das Ilhas Britânicas.

O primeiro grande a contemplá-la, um ano depois de pronta, em pleno esplendor dos poderes de suas formas e cores, foi Luis XII de França. Isso se deu em 1499, nas guerras pelo ducado da Lombardia e o reino de Nápoles, que os franceses reivindicavam e por isso passaram os Alpes, para se encantarem com a [Itália, mas também para ensanguentá-la. Èsse Luis de França entrara faustosamente na capital lombarda. Nos dias seguintes, percorria-a e visitava o Convento. No refeitório, ao vê-la ainda intacta, sentiu-se tamanhamente embevecido, que pensou em levá-la à França. Depois, sempre arrastando seu fausto, foi à cidadela, olhar o modelo em barro do grande cavalo para o monumento ao velho Sforza. que o florentino modelava. Tôda a grandeza de Milão, para os grandes, era Leonardo.

Em 1515, no refeitório, diante da Ceia que se arruinava, está outro e mais faustoso monarca de França — Francisco I, colecionador de pa­lácios, mulheres, obras de arte e livros. como Luis XII, pensa também em levá-la. Dois anos depois, em dezembro de 1517, quem visitava o Convento era Antonio Beatis, secretário do cardeal de Aragão. Ficou famoso pelas referências ao retrato da Gioconda, na visita mais tarde de seu amo ao atelier em Cloux, onde o artista vivia sob a proteção do mesmo galante Francisco. Escreveu ter visto no refeitório uma Ceia, «pintada por Leonardo da Vinci. . . excelentíssima, ainda que começa a se estragar, não só pela umidade da parede ou por outra inadvertencia. . . Os personagens — aqui se insinua o crítico no secretário — são figuras da corte ou milaneses da época. »

Dois sintomas, registrados mais tarde por Gallarati, anunciavam as doenças da pintura — um véu aquoso que transudava da parede e con­seqüente mofo esbranquiçado, que se difundia por tôda a superfície. A química do inventivo Leonardo não estava dando certo.

A ruína do majestoso mural prosseguia. Em 1566, o pintor, arqui­teto e historiador de arte, Giorgio Vasari (1512-1574), foi vê-lo. Disse depois ter visto apenas deslumbradora mancha. Em 1587, outro depoi­mento desolador. Autor de um livro sobre pintura, publicado em Ra-vena, Giovanni-Battista Armenini (1530-1609) dizia-o bastante estra­gado. apesar disso.. . belíssimo !

A HISTÓRIA DA PORTA

O primeiro a considerar a necessidade de restaurá-lo foi o cardeal Frederico Borromeo, no início do século XVII .

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Acariciou a idéia de destacá-lo da parede úmida enquanto pedia ao milanês Andrea Bianchi (?-?), chamado o Vespino, uma cópia feita em 1612, hoje na Ambrosiana de Milão. Multiplicavam-se, aliás, as cópias — a óleo, a tempera, a afrêsco, a mosaico, mesmo em escultura. Isso porque desde o seu primeiro dia, a Ceia demonstrava possuir em alto grau o que hoje se chama poder de comunicação. Nenhuma outra obra de arte, no ocidente latino, parece tê-la superado nessa eficácia, tão cara às especulações da inteligência moderna, particularmente no plano estético.

Não cessavam, por outro lado, os alarmas de novas deteriorações. Todos acreditavam no seu breve e inevitável desaparecimento. Talvez esse clima de pessimismo tenha levado os frades à mutilação de 1652.

Abaixo do mural, existia pequena abertura por onde passavam os pratos fumegantes, pois, do outro lado, como sabemos, estava a cozinha, fumegando ainda mais. Naquele ano, o prior aumentou a abertura, trans­formando-a numa porta, para estabelecer comunicação direta entre re­feitório e cozinha. A porta atingiu quase a quina da mesa, sacrificou os pés de Cristo e, aos lados, os de dois apóstolos, inclusive os de Judas. Interessante notar que os historiadores da Ceia passam em geral por alto nesse episódio, afinal de contas pouco recomendável, para os dominica­nos. Apenas aludem, sem maiores informaões, à abertura da porta, mais tarde murada, sem se fazer a reconstituição da área pintada que fora eliminada (Fig. 1 ) .

O fato é tanto mais significativo quanto se sabe que até o século XVIII, apesar das progressivas deteriorações, ninguém se atrevia a pôr a mão, mesmo para salvá-lo, no mural considerado excelentíssimo e belís­simo, ainda que arruinado. Havia invencível respeito, certamente inspi­rado pelo prestígio da aura. Somente em 1726, Miguel Ângelo Bellotti (? — 1744) tentou a primeira restauração. Ainda hoje, na opinião dos entendidos, sua impericia brada aos céus. No seu Dicionário, Benezit diz que devemos guardar-lhe o nome só para o amaldiçoar, tais os seus desatinos. Em 1657, no Microcosmos da Pintura, Francisco Scanelli considerava-o pràticamente desaparecido. Não restava senão acreditar na fama do seu passado. Em 1670, no Retrato de Milão, Cario Torre o dava como perdido. Em 1770, vinha outro restaurador, Giuseppe Mazza (1653-1741), também duramente criticado na época.

Em 1796, o padre Domenico Pino escrevia a História Verdadeira da Ceia. Não conheço este livro senão de referência. Presumo seja uma defesa dos dominicanos no caso da porta, que teria sido aberta depois de reconhecida a inutilidade dos esforços para salvar o mural.

BONAPARTE E O MURAL

Nesse mesmo ano de 1796, vencedor dos austríacos, aparecendo em Milão, Bonaparte fazia o mesmo que Luis XII e Francisco I — foi ver a Ceia. Verdade que por sugestão do italiano Andrea Appiani (1754-1817), depois pintor de sua corte.

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Ao sair. antes de montar, assinou sobre a perna ordem proibindo serventia militar do refeitório. Um de seus generais, pouco depois, não ligava à ordem. Transforma-o em cavalariça. Os soldados se divertiam atirando bolotas de barro à cabeça dos apóstolos. Depois, melhorou de destino — servia apenas de depósito de forragem. Appiani, porém, pede daqui, implora dali. Percorre, incansável, os canais competentes da buro­cracia militar. Consegue, finalmente, desocupá-lo.

Em 1800, agora desocupado, uma inundação deixou-lhe um palmo d'água, que se evaporou com o tempo. A umidade dobrou. Feito Co­missário de Belas Artes, o devotado Appiani mandava murar em 1802 a porta de entrada, fechar as janelas, para evitar vandalismos de soldados e de visitantes. Os visitantes, porém, pulavam as janelas. Para verem de perto a pintura, encostavam-lhe uma escada. Porta murada e janelas fechadas dificultavam a aeração da sala. O véu aquoso e o mofo esbran-quiçado aumentavam. Desmura-se a porta, abrem-se de par em par as janelas. O doente precisava de ar. Nos azares da guerra, que não são poucos, todo o Convento em 1807 está de novo transformado em quartel.

Nessa altura dos sofrimentos do eterno ammalato, aparece um homem providencial —- Eugène de Beauharnais (1781-1824), filho de Josefina, enteado de Napoleão, Vice-Rei da Itália por dez anos. Mandou res­taurar o refeitório e para lembrança da obra condenada pediu a Giuseppe Bossi (1777-1815) fizesse uma cópia nas dimensões do original. Trans­portada para o castelo Sforza, o fogo a consumiria no bombardeio de agosto de 1943.

Desfeito o império napoleònico, a Ceia continua, no entanto, na ordem do dia. Em outubro de 1819. a Academia de Belas Artes de Milão era chamada a estudar a melhor maneira de protegê-la com um vidro. uma comissão entendeu que o vidro poderia aumentar a concen­tração de umidade da parede, aumentando, em conseqüência, as possi­bilidades de deterioração.

Encontramos agora na história do eterno doente, Stefano Barezzi di Busseto, mestre restaurador, que inventara um processo de transpor aíreseos murais para madeira. Propõe-se transpô-lo por simples amor de artista. Desiste aos primeiros ensaios. Verifica que a técnica em­pregada não ê o afrêsco, como êle próprio e tantos outros ainda pensa­vam ou teimavam.

Sereno e nobre, mesmo na sua ruína, o mural continua inspirando dedicações e padecendo agravos. Depois da insurreição italiana de 1848, as tropas austríacas se alojaram no Convento por três anos.

A DEVOÇÃO DOS AUSTRÍACOS -

Agora comovidos com o mural estão os austríacos. Quando suas tropas se instalaram em 1848 no Convento, a Ceia foi

pro teg ia com uma parede de madeira. Em 1851, a Academia de Belas

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Artes obtém a desocupação da sala e seu presidente, conde A. Nava, chama um químico competente. Jean Antônio Kramer, que faz análises minuciosas da parede, molhada há séculos pela lavagem de pratos e panelas, do reboco, das tintas. As análises revelaram que o suporte sobre o qual Leonardo pintara é uma mistura, certamente de sua inven­ção, de céra e carbonato natural, argila e ferro, além de matéria gordu­rosa. À base dessas análises, Barezzi propõe agora não transposição, mas restauração, que se fará sob a fiscalização dos pintores Francesco Hayez, Antonio di Antoni, Giuseppe Moltani e Giovanni Servi.

As experiências iniciais se fizeram num pedacinho da toalha e no manto do último apóstolo à direita, isto é, Simão, que era chamado o Cananeu. Muitos o identificam como o esposo das nupcias de Cana. quando Jesus transformou água em vinho. como Jesus, morreu também na cruz. O trabalho consistiu em estirar cuidadosamente as escamas que­bradiças — craquelures, como dizem nossos irmãos franceses — a que se havia reduzido a camada de tinta. O ministro da Instrução e Culto mandou então de Viena comissão especial para acompanhar os traba­lhos. Julgou-se melhor fossem suspensos.

Cinco anos depois, novas mazelas no eterno doente. Fazem-se novos diagnósticos, agora para remover ou deter a umidade, embora Con­vento e cozinha tenham deixado de existir. Outro químico, Pavesi — seria melhor dizer outro médico — outro químico demora-se nos exames. Em 1870, balançava desengañado a cabeça — morte inevitável conse­qüente aos óleos, vernizes, secantes, que Leonardo utilizara na sua curio­sidade de experimentador. Experimentava tudo. como sabemos, desde o mecanismo da visão a remédio para enjôo do mar. Por que não iria experimentar a banalidade de misturar tintas e óleos ?

O BOMBARDEIO DE 1943

Quando se abre este século, Luigi Cavenaghi (1844-?), mais tarde diretor artístico do Museu do Vaticano, faz novas tentativas de recuperar a saúde do eterno doente, ao mesmo tempo que ecoam pela Itália artística versos sentidos, In morti di un capolavoro, de Gabriele d'Annunzio.

Entre maio e agósto de 1904, Cavenaghi trata de consolidar a pe­lícula de tinta, que rachava, tornava a se despregar em escamas, tornava a cair (Fig. 7) . Limpou a poeira de algumas áreas. Parecia renascida a luminosidade do colorido de que os antigos falavam. Cauteloso, porém, esperou quatro anos pelos resultados. Só em 1908, antes de ir dirigir o Museu do Vaticano, retomava o trabalho junto com tentativas para dessecar a parede. Contou depois tôda a trabalheira, num livro escrito com Luca Beltrami, amigo e ajudante.

Durante a I Grande Guerra ( 1914-1918), precauções foram tomadas. Sacos de areia nos dois lados da parede. Assim que o conflito terminou. o pintor Oreste Silvestre, discípulo de Cavenaghi, fazia em 1919 nova

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limpeza. Em 1924, a tinta está se desprendendo mais uma vez. em pe­quenas escamas. Silvestre injetou sob cada pequena escama essência de petróleo, para amolecê-las e assegurar a aderência, obtida com um ferro de engomar, passado e repassado com infinita delicadeza. como observador das condições do mural e responsável pelos meios de melhorar o ambiente sempre hostil, indicou Mario Bezzola. Era, por assim dizer, um médico de plantão à cabeceira do eterno doente.

Em junho de 1940, metendo-se a Itália na II Grande Guerra (1939-1945), novas medidas de proteção — sacos de areia, madeira incombus-tível. Numa noite de agosto de 1943, uma bomba caía no claustro do Convento. Italiano vem ao mundo, como sabemos, para se emocionar. Estou tirando essas informações de Giorgio Nicodemi. fervoroso leonar­desco. Não dormiu naquela noite, que chamou apocalíptica, a imaginar o pior com sua amada pintura. Mal rompia a madrugada fumegante, correu ao Convento, para ver a extensão da desgraça. Respirou aliviado. Altaneiras, entre os destroços, sem um arranhão, as duas paredes de fundo do refeitório — uma, com a Crucificação, de Montorfano; a outra, com o seu ídolo (Fig. 8 ) .

Dois anos se foram na restauração do refeitório. Procurou-se repor tudo como no passado, ao tempo em que Leonardo vinha pelas ensola­radas ruas milanesas, subia depressa ao andaime, dava duas ou três pin­celadas, voltava ao cavalo na cidadela, como nos conta Bandello, teste­munha jovem dessas coisas que afinal, tratando-se de quem se trata, não deixam de ter sua aura.

Eram necessários novos cuidados de restauração e conservação, que foram feitos por Mario Pellicioli. Assim, em 1952, quando se comemo­rava o quinto centenário de nascimento de Leonardo, o eterno ammalato pôde apresentar, no meio das solenidades e discursos, uns ares de saúde.

COMPARAÇÕES

São interessantes os estudos comparativos com outras Ceias, ante­riores, contemporâneas ou posteriores.

Entre as anteriores mais famosas está a do pré-renascentista flo­rentino Andrea del Castagno (1423 — 1457), pintada a afrêsco entre 1445-1450, no refeitório do convento de Santa Apolônia, em Florença (fig. 9) . Castagno era um naturalista severo. Filtrara os ensinamentos do realismo de inspiração popular de Giotto e de Masaccio, mas nao se dera conta do sentimento de síntese escultórica das formas, simples e monumentais, desses dois iniciadores de novas visões plásticas. Nas suas formas, ao contrário, surpreende-se certo gosto da minúcia, que revela em tantos pintores a persistência do lavor caprichoso da ourivesaria do quatrocento florentino. A composição obedece à tradição toscana — Judas sozinho do lado de cá da mesa. A multiplicidade dos elementos

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decorativos, traindo a sobrevivência do ornamentalismo gótico, dispersa a atenção, que borboleteia nos detalhes. Não tem onde se concentrar, pois as figuras estão inferiorizadas e esmagadas pelos seis grandes qua­drados de mármore da parede ao fundo. Falta-lhe o que sobra e dá eloqüência à de Leonardo — a perfeita unidade plástica e dramática, tudo nos conduzindo, irresistivelmente, à figura dominadora de Cristo, para a qual também nos leva o ritmo dinâmico e diversificado da gesticulação dos apóstolos.

uma posterior, igualmente admirada, é a de Andrea del Sarto (1487-1531). Está no convento de San Salvi, em Florença (fig. 10). Para resistir à influência dos três reis da pintura no seu tempo, Leo­nardo, Rafael e Miguel Ângelo, já se disse que Andrea se refugiou no cálido colorismo e nas transparências atmosféricas luminosas dos venezianos. Na sua, se inspirou evidentemente na leonardesca ou fundiu na composição recursos de Castagno e de Leonardo. Teve, porém, maior e mais sugestiva percepção do valor do espaço do que Castagno. Nossa atenção vai, no entanto, em primeiro lugar, para os dois garçons, que parolam na janela central ao alto. Depois é que desce amortecida ao acontecimento, com seus figurantes tratados embora com irrecusável grandiosidade (fig. 11) . O impacto inicial está, porém, nos garçons. Eis uma de suas fraquezas, que Leonardo não cometeria e muito menos se perdoaria. como Leonardo, rompeu a tradição toscana, não isolando Judas. Apesar de seus senões, Bernard Berenson diz ser a única que se pode contemplar com agrado depois da incomparável no convento de Milão.

CLASSICO E BARROCO

A comparação mais esclarecedora, pela eloqüência dos contrastes, que definem dois ritmos de vida ou estilos de arte — o clássico e o barroco — será com a de Tintoretto (1518-1594), em San Giorgio Maggiore, em Veneza (fig. 12) .

Tintoretto — desculpará o leitor a informação — foi exasperado barroco veneziano. Criava gigantes convulsivos, entre lampejos fulgu­rantes, nesse particular gênio do maneirismo, semelhante a El Greco. Produziu caudalosamente. Tinha uma destreza de desenhar e pincelar que chegava ao prodígio. Quase não há parede veneziana, santificada ou enobrecida, em que não o encontremos, vertiginoso nos clarões, trepidante no ritmo. Conta-se que Ticiano, também genial na inveja e na maledicencia, o detestava.

Vejam os contrastes. O clássico Leonardo racionalista e científico, apoiou sua composição numa vertical central imaginária, que a divide em duas partes exatamente iguais e nos comunica sentimentos de equi­librio, ordem e unidade. Essa vertical, invisível, mas atuante sublimi-narmente, divide também simétricamente a pirâmide em que se inscreve

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a figura de Cristo. Fala-se muito da calma e superior tranqüilidade do Cristo leonardesco, entre os apóstolos agitados. A calma e superior tranqüilidade de Cristo resultam precisamente da inserção na forma inamovível e incomovível da pirâmide (fig. 2 ) . Nenhuma outra forma abstrata nos sugere tão forte sensação de estabilidade como a pirâmide. A composição de Tintoretto, ao contrário, se baseia numa diagonal audaciosa, visível, porque representada pela posição da própria mesa, diagonal que nos provoca sensação de movimento, de espaço que se desata e de desordem emocional.

Enquanto no barroco Tintoretto predominam as curvas e contra-curvas, criando palpitante e dinâmica atmosfera, no clássico Leonardo predominam as retas, horizontais e verticais, que sugerem atmosfera de tranqüila e natural solenidade.

Utilizando a perspectiva científica, que estudara com Piero della Francesca e aperfeiçoara com Luca Paccioli, aquele frade tonto de beleza, Leonardo fêz com que tôdas as linhas de fuga, desde as das cabeceiras da mesa, das portas laterais às do travejamento do teto, confluissem para o ponto de fuga que colocou na fronte de Cristo, entre os olhos, pelos quais passa a linha do horizonte na paisagem ao fundo (fig. 13) . com esse artifício, capta e conduz insensivelmente nosso olhar à figura de Cristo, que assim fica parecendo a maior. Mas nos parece a maior não apenas por esse artifício de ótica. Também por contrapô-la à luminosidade da paisagem, no retângulo da porta central (fig. 2 ) .

No tumultuoso cenário de Tintoretto, a gente fica procurando Cristo. Afinal o encontramos, no meio daquela algazarra de luzes. Só o encon­tramos pelo maior resplendor da aurèola. Recuada, ao último plano, é quase uma figura secundária. Em Leonardo, não. Ao primeiro golpe de vista, avulta e domina.

Aliás, no tocante à auréola, vem a propósito observar que Leonardo não aureolou ninguém. Certamente não lhe agradava ao espírito cientí­fico esse símbolo sobrevivente das superstições medievais. Acreditava em Deus, não o da Bíblia, que se devia deixar em paz, como transparece nos seus manuscritos. Por isso mesmo, o que aureola Cristo é a luz que considerava sagrada, fonte de tudo na terra — a luz do Sol. Não é de admirar, portanto, que nos seus tratados fale do Sol com a religio­sidade de um egípcio antigo. Alguns escreveram que antes de se completarem os efeitos ruinosos dos óleos e vernizes, mesmo com o véu aquoso e o mofo que a empanavam, a luz solar vibrava, límpida e luminosa, na paisagem dos fundos, pura da quintessência espiritualizada posta no cenário da Gioconda ou na caverna da Virgem dos Rochedos do Louvre. Quando esta tranqüila luz natural, cientificamente contem­plada, poderia ocorrer ao emotivo, cenográfico e noturno Tintoretto?

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MOMENTO HUMANO

A mentalidade humanística de Leonardo se definiu no momento da vida de Cristo que escolheu para a sua Ceia.

Via de regra, o momento preferido dos pintores, antes e depois — seria longa a enumeração — tinha e tem sido o momento divino e místico da instituição do mistério da Eucaristia. Assim fêz Tintoretto e fizeram tantos outros. No próprio Tintoretto, porém, o momento augusto não tem solenidade e transcendência. Está vulgarizado pela labuta dos serviçais, homens e mulheres, que preparam e distribuem os pratos. Até um gato se espicha para uma cesta pejada de alimentos, no primeiro plano. Apesar dos anjos que revoluteiam grandiosos no alto, tudo é assim doméstico ou culinàriamente prosàico.

Leonardo, não. Escolheu um momento humano da vida de Cristo — o momento em que o amigo atraiçoa o amigo. Justamente o instante dramático e surpreendente em que Cristo anuncia que um dos presentes o entregará. A revelação desencadeia verdadeira tempestade de emoções, que se sucedem, a um e outro lado, de sua divina impassibili­dade. É quando Leonardo se revela o psicólogo que encantou Goethe — cada atitude, cada gesto, cada duas mãos, um temperamento, definido com justeza e sobriedade como ainda não se tinha feito.

Entre Pedro e André, face sinistra ligeiramente sombreada, aquela face longamente procurada na canalha do Borgheto, sentindo-se apanhado em flagrante, Judas recua surpreso com o dom divinatório do Supremo Amigo. É também quando Leonardo revela ainda seu gosto por um recurso expressivo que recomendava — o dos contrastes. O feio e o belo, o jovem e o velho, o forte e o fraco, a rudeza e a suavidade, a reta e a curva, a sombra e a luz, sobretudo estas que o fascinavam.

Vejam o velho e impetuoso Pedro. Impulsivamente se inclina para o jovem e angélico João. Vejam ainda o feminino e suave Felipe, mãos cruzadas postas sobre o coração inocente, que se ergue ao lado do másculo e arrebatado Tiago Maior, que abre os braços indigna­damente incrédulo. Fiquemos por aqui. Seria um nunca acabar de anotações psicológicas, que através dos tempos têm feito o regalo de críticos e enchido bibliotecas.

O ESPAÇO SOLENE

Um estudioso já chamou a atenção para os efeitos expressivos que Leonardo obteve, com a representação do espaço, na sua Ceia.

Disse que uma pessoa desconhecedora do conteúdo de sua com­posição ou mesmo ignorando a História Sagrada, logo perceberá que entre aqueles treze homens, reunidos naquela mesa, está acontecendo algo de importante, grave e solene. Essa impressão de importância,

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gravidade e solenidade nos é dada pelo predominio do espaço e pelo modo com que o soube manipular Leonardo. Inclusive com a aplicação rigorosa das regras de perspectiva, conseguiu amplitude quase gran­diosa ao espaço da sala, que ocupa praticamente metade da composição.

Faça o leitor uma experiência curiosa. Esconda o espaço amplo da sala com uma simples tira de papel. Reduzida a composição ao friso movimentado, constituído pelas imagens dos apóstolos, e às para­lelas da mesa, desaparecerá a sensação de grandiosidade, que antes experimentávamos. como outros artistas, Leonardo soube extrair felizes efeitos psicológicos da representação do espaço. Foi o que por sua vez procurou fazer Andrea del Sarto, com o grande arco, as três balaustradas, os dois garçons (fig. 10) . Falou muito e disse pouco, como sentencia o povo.

Tanto na sua representação ilusionista, como na sua realidade concreta, não no caso em termos cósmicos, nem nos puramente concei­tuais, mas nos terrestres e físicos, o espaço é necessário ou decisivo à afirmação de nossa personalidade e ao nosso sentimento vital.

Os espaços diminutos nos oprimem e deprimem. Insinuam-nos sentimento ou sensação de insegurança, vago temor. Os espaços amplos e desimpedidos confortam e exaltam nossa personalidade. Comunicam-lhe sentimentos de afirmação e de segurança. Os espaços centimetrados dos apartamentos populares modernos, por exemplo, são responsáveis em parte, como lemos nos sociólogos e nos jornais, pelas neuroses nas cidades grandes. O amplo espaço de uma grande sala, além de nos inspirar segurança e afirmar nossa personalidade, soleniza-se. Aqui talvez esteja o poder de comunicação da Ceia. Autêntico artista, Leonardo dirige-se assim mais aos nossos sentimentos de vitalidade do que aos religiosos ou à nossa percepção intelectual.

O poder, temporal ou espiritual, sempre se utilizou da força expres­siva, solenizadora e majestática, inerente ao grande espaço, interno ou externo, na ficção ou na realidade. O que ainda hoje cria a sugestão sacramentai do interior na catedral gótica é o espaço em ascenção. O grande espaço público urbano promove, como num sortilègio, a idéia de poder nos regimes políticos. São, por excelência, não tranquiliza­dores, mas intimidadores, como os criados em todos os tempos pelos regimes autoritários. Assim entendia os problemas expressivos da repre­sentação do espaço o arguto Leonardo. Soube solenizar, serenando-o e dulcificando-o, o espaço da sala desataviada em que colocou Cristo e os apóstolos. Eis porque graças à sua espacialidade, a Ceia leonardesca nos sugere que algo de importante, de grave e de solene está aconte­cendo entre aqueles homens.

Na sua Ceia (fig. 14), o surrealista Salvador Dali (1904) também explorou o espaço, numa concepção fantástica, própria de sua escola Obteve igualmente felizes resultados expressivos. Situou a instituição da Eucaristia num ambiente enriquecido de sugestões vindas, a um

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só tempo, dos poliedros desenhados por Leonardo para o Iivro de Paccioli e dos equipamentos astronáuticos dos nossos dias.

PODER DE COMUNICAÇÃO

Não se pode negar o poder de comunicação da obra de Leonardo.

«A Ceia — escreveu Mário Salmi — é uma das criações do intelecto humano mais universalmente admiradas». Não faz muito tempo, realizaram na Europa grande inquérito para saber quais as dez pinturas mais populares. Os dois primeiros lugares couberam à Gioconda e à Ceia. Quando se sabe que a rigor Leonardo jamais se intitulou exclusivamente pintor, mas, acima de tudo, cientista, inventor de máquinas e engenheiro militar, o resultado do inquérito deixa qual­quer um perplexo. A pintura, como a mecânica, a física, a química, a geo­logia, a anatomia e a fisiologia do homem, dos animais e das plantas, a ótica e a geometria, era realmente uma de suas ferramentas de investigação, conhecimento e explicação do universo. Mas, ao que parece, só nas horas de lazer. Para o seu espírito tão complexamente ocupado, a pintura, investigar através das formas e das cores, deveria ser um refrigèrio. Um «hobby», digamos.

Que poderes possuem as pinturas desse pintor nas horas vagas? Sabe-se como relutou a atender o pedido de um quadro vindo de Isabel d'Esté, graciosa duquesa de Mantua, absorvido com trabalhos matemáticos. Naqueles dias, sentia-se matemático, não pintor. No começo deste ano, a imprensa noticiava que a Rússia emitira selos coloridos de cinqüenta kopeks com a reprodução de Virgem de Litta, «do grande mestre italiano Leonardo da Vinci». A Litta está no Ermitage, em Leningrado. Em 1962, levada aos Estados Unidos, milhões de americanos foram ver a Gioconda. Certo que nenhuma outra obra de arte possui sua aura, que se foi tecendo, imperceptível e irresistível, na imaginação da humanidade civilizada, em quase cinco séculos. Apesar disso ou por isso mesmo, que poderes de comunicação de massa possui o «grande mestre italiano» para que ainda hoje essas coisas aconteçam com sua arte, neste século da síntese e da eletrônica, inimigo de valores cultuais, que pareciam definitivos a outras gerações? Por que ainda hoje se cultua uma imagem de mulher simplória como a da Gioconda, tão diversa, no corpo e na alma, do ideal feminino moderno?

Serão poderes ùnicamente de pintor? «Um pintor, perguntou Bernard Berenson — unicamente pintor, um artista mesmo, unica­mente artista, poderia ter visto e sentido à maneira de Leonardo? Duvido!»

Não devemos duvidar com tanta certeza. Leonardo criava na pintura realmente como artista. Só assim poderia obter a plenitude de expressão e de comunicação que ainda hoje está alcançando. O intuitivo ou

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irracional, inseparável da criação artística para que nos possa comunicar o ritmo universal da vida, era nele contido ou temperado, na justa medida, pela disciplina do pensamento lógico de seu espirito científico.

A DOSAGEM FELIZ

Diz-se, ao que parece com sobradas razões, que a universalidade do agrado de sua Ceia, a permanencia de sua facilidade de comunicação, a aura que acabou a envolvendo e ainda hoje a envolve, tudo isso está em que nela Leonardo soube dirigir-se às nossas percepções, a sensível e a intelectual, ao instintivo e ao racional, numa dosagem feliz, graças à harmoniosa convivência e exercício, na sua individualidade, das facul­dades intelectuais e emocionais. Escreveu sobre os fenômenos da erosão da crosta terrestre como geólogo, mas, quando os representou como desenhista, foi um poeta.

O leitor interessado poderá fazer análise ligeira dos elementos plásticos puros de sua composição ( fig. 1 ) . Quer dizer, abstrair-se do que as formas representam, objetiva ou figurativamente, para imaginá-las ou aceitá-las abstratamente, como formas sem representação das realidades visuais.

Verá, no conjunto, o predomínio de retas, horizontais e verticais, representadas pela mesa, portas, ângulos das paredes, travejamento do teto. Em nossa percepção, essas retas fazem apelos a significados inte­lectuais . Dirigem-se, assim, à esfera do racional. Leonardo evitou, porém, a supremacia desses valores ou significados intelectuais. No esquema geral da composição, rigidamente geométrico, estático, quase frio, intro­duziu os dinâmicos elementos, movimentados, quase dançantes, das curvas e contracurvas das figuras dos apóstolos, agitados porque emocionados com a terrível revelação do Mestre. Essas curvas e contracurvas, ao contrário das retas, apelam para a nossa percepção sensível.

É a dosagem — eis a palavra certa — a dosagem desses apelos, entre a vivência do racional e a do vital, do consciente e do inconsciente, intrínsecos à natureza humana, que confere interesse permanente e agrado constante, acima de sua significação religiosa, ao mural famoso de que sobrevive em nossos dias apenas um fantasma do original.

CULTURA E INCULTURA

O nosso papa da História da Arte, Arnold Hauser, dogmatizou:

«As camadas incultas do público se manifestam, porém, sob forma igualmente inequívoca pela arte ruim do que pela boa. O êxito das obras de arte neste público se rege por pontos de vista extra-artísticos. O grande público não reage ao valioso ou não valioso artisticamente, senão por motivo pelos quais se sinta tranquilizado ou intranquilizado em sua esfera vital. Por isso, aceita também o valioso artisticamente,

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quando para êle significa um valor vital, isto é, quando responde a seus desejos, fantasias e ilusões, quando aplaca sua angùstia vitai e inten­sifica seu sentimento de segurança».

Vejam como isso parece se aplicar bem à nossa Ceia, que faia indiferentemente às elites intelectuais e ao «popolo grosso», como diziam os estetas na Florença leonardesca. Será ela, como quer o inglês, obra mesmo da natureza, igual à respeitável configuração topográfica das Ilhas Britânicas?

De minha moradia, em Laranjeiras, vejo do outro lado da rua a sala de um apartamento centimetrado. um jovem casal ali come, numa pequena mesa redonda. Na parede, vistosa Ceia de Leonardo, em alto-relevo colorido. Num encontro casual com o rapaz, aura de bancário bem sucedido:

— Gosto muito daquela sua Ceia! um sorriso de satisfação foi a resposta. — O senhor deve ser muito católico? — Até que não. Sou agnóstico! — E por que a Santa Ceia? — Porque ela é bonita. Faz bem à gente.

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FUNCAO INTEGRADORA DA MÚSICA

BRUNO KIEFER

APÓS 1870 dizia-se na Alemanha que a unificação deste país fora o resultado da música alemã. Descontando o evidente exagero con­

tido nessa afirmação, resta ainda um fundo de verdade. A música alemã surgira com o Romantismo no começo do século passado. Em pouco tempo os alemães, espalhados pelos numerosos estados indepen­dentes e soberanos, cantavam os «lieder» de Schuber, Weber, Men-delsohhn, Schumann, Brahms; reconheciam seu modo de sentir na música do «Freischuetz» de Weber; associavam-se em tôda parte para cantar em coro melodias dos compositores citados e outros. E, ao cantarem, sentiam que algo os unia por cima das fronteiras entre estados indepen­dentes, por cima das barreiras alfandegárias, por cima das divergências religiosas. Através da música desvelara-se algo que já era comum mas que se escondia, algo que era informe e que se estruturou, algo que era disperso e que se concentrou.

Pensamos que a música, como arte, é incapaz de, por mera criação (invenção, novidade apenas como novidade), colocar algo que se possa tornar comum. São inúmeras as obras contemporâneas que, depois de um primeiro impacto, provocado pela novidade, caíram num esquecimento definitivo. É que o novo somente é novo na primeira audição. O novo pelo novo carece de sentido.

Em nossa maneira de pensar, a música só comunica, isto é, só torna comum, a partir do momento em que os ouvintes se reconhecem ou sentem que aquilo que a música desvela já lhes pertencia obscuramente. A criação não reside então na invenção como mera invenção, mas no trazer à tona, no estruturar o que já existia em forma nebulosa, dispersa, no dizer o que ainda não pôde ser dito. O caráter de novidade que acompanha a criação concebida dessa maneira é diferente da novidade como pura novidade. A criação musical, se fosse concebida como mera invenção, traria como conseqüência a possibilidade de seu aprendizado e chegaríamos então ao conceito de música como código, à semelhança do código Morse, por exemplo. Mas a experiência mostra que, a rigor, não se pode aprender a entender a música, como de resto qualquer arte. Isto significa que não é possível ensinar a compreensão da música; o máximo que se pode fazer é mostrar.

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Se aquilo que pertence obscuramente ou mesmo inconscientemente a todos que integram determinado povo, fazendo-o ser o que é, encontra a sua expressão em determinada obra de música, então ela é dita de auto-afirmação nacional. Foi o que aconteceu com a música romântica alemã. Foi o que ocorreu aqui no Brasil com a música criada em torno do movimento da Semana de Arte Moderna. Tais considerações pro­vavelmente serão tidas como superadas, fora de uso, na era tecnológica, da comunicação de massas. Resta ver, no entanto, se isto corresponde à verdade.

Vivemos numa época em que o pensamento pragmático-racionalista encontra motivos para festejar triunfos nunca vistos na enorme expansão da tecnologia. Temos a impressão de que as artes, em particular a mú­sica, fortemente influenciadas por este pensamento, passaram a ser en­caradas, com o máximo de ênfase, do ponto de vista da criação com o sentido de invenção pura, de novidade como pura novidade, à semelhança dos produtos industriais. Já existem inclusive tentativas no sentido de conferir a computadores a tarefa de criar música. Daí para a idéia de con­sumo de arte vai um passo só. E o que é consumido desaparece, se des­gasta, é digerido, necessita de ser substituído, de preferência com me­lhora de qualidade ou com alguma novidade que desperte a atenção. Há, além disso, a concorrência com tôdas as suas implicações. Dentro deste espírito poderemos compreender as últimas conseqüências decorrentes de tal postura, enunciadas por Décio Pignatari: «Podemos dizer que esta­mos assistindo à agonia final da arte: a arte entrou em estado de coma, pois seu sistema de produção é típico e não prototípico, não se prestando ao consumo em larga escala. Não há por que chorar o glorioso cadáver, pois de suas cinzas já vai nascendo algo muito mais amplo e complexo, algo que vai reduzindo a distância entre a produção e o consumo e para o qual ainda não se tem nome . . .» («Informação, Linguagem, Comuni­cação» — Ed. Perspectiva, 3* ed., 1969).

Não concordamos, nesse contexto, com a afirmação de Gerd Born-heim («Sentido e Criatividade» — Correio do Povo — 5-9-70) quando diz que «O homem é essencialmente criador, êle busca o novo, persegue aquilo que não se repete». O novo, o puramente novo, também acon­tece pelo acaso. Tal novo, puramente novo, é provocado, por exemplo, nos trechos aleatórios de numerosíssimas obras musicais contemporâneas. Ocorre também nos chamados «objetos» dos artistas plásticos nos quais um conjunto de luzes coloridas se acende e apaga em combinações sempre novas (porém finitas), imprevisíveis para o observador.

Por outro lado, o novo, puramente novo, pode ser calculado facil­mente. Se submetermos, para citar um exemplo, os elementos de deter­minada estrutura musical a tôdas as permutações possíveis, teremos em cada uma um novo surgindo por mero cálculo. Procedimentos desta natureza têm sido aplicados em larga escala. Mais ainda, há na música contemporânea forte apelo às estruturas axiomáticas. Pierre Boulez, num livro muito sintomàticamente intitulado «Penser la musique aujour-

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d'hui» (1963), diz textualmente: «Quando se estuda, sobre as novas estruturas (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria f ís ica. . . ) o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época, pode-se medir, certamente, que imenso caminho os músicos devem percorrer ain­da antes de chegar à coesão de uma síntese geral».

E mais adiante, citando Louis Rougier, cujas frases adotaria como epígrafe de seus trabalhos: «O método axiomático permite construir teo­rias puramente formais que são redes de relações, sistemas de deduções já feitas. Daí em diante, uma mesma forma pode ser aplicada a diver­sas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, com a con­dição única de que estes objetos respeitem entre si as mesmas relações que as enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria». Pierre Boulez, um dos mais renomados compositores da França em nossos dias, acrescenta a essas frases de Rougier o seguinte comentário: «Parece-nos que tal enunciado é fundamental para o pensamento musical a tua l . . . » .

Refere ainda o mesmo autor que aos mesmos elementos musicais pode ser aplicado um número ilimitado de sistemas axiomáticos. com tudo isto pretende satisfazer «a absoluta necessidade de uma consciência organizada logicamente».

Tal consciência organizada logicamente permitirá criar estruturas sempre novas, puramente formais; o novo, puramente novo, fundado logicamente, é o alvo final da criação. E deste novo, puramente novo, fundado por sistemas axiomáticos, espera o referido compositor, porta--voz de uma geração, «livrar-se da contingência e do transitório». Em outros termos, poderíamos dizer que o compositor francês procura li­vrar-se da angústia decorrente da nossa finitude, refugiando-se num sistema ferrenhamente lógico.

A perseguição do novo pelo novo pode ser também um sintoma psicopatológico. A procura ansiosa de elementos novos, numa série in­findável, sem possibilidade de fixação e incorporação, sem verdadeiro crescimento interior, é sintomática de certos estados patológicos. Cada novidade, procurada com ansiedade, decepciona por não causar a pre­tendida satisfação ou por não resolver o problema oculto. Por esta razão a vítima vai imediatamente em busca de outro elemento novo, com a esperança de que talvez desta vez virá a solução. E assim incessan­temente. A atitude do homem moderno frente à arte contemporânea assemelha-se a isto.

Por outro lado, no entanto, não se pode negar que o homem busca o novo constantemente.

Pensamos que a diferença entre o novo pelo novo (resultado da mera invenção, do acaso, de estruturas axiomáticas escolhidas racional­mente, etc.) e o novo que buscamos verdadeiramente está nisto: o ho­mem busca o novo que o possa conduzir à maior plenitude de ser. O novo concebido desta forma pode ser integrado e tem a sua permanência, maior ou menor, assegurada. As obras de um Bach, por exemplo, per-

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manecem; voltamos a elas repetidamente; elas não se desgastam a partir do momento em que foram novas para nós. O caráter reiterativo da música se funda nisto. Se acrescentarmos que para Heidegger «A arte é um vir-a-ser e acontecimento da verdade» («A origem da obra de arte» — 1960), teremos uma perspectiva que nos permite fixar uma po­sição face à excessiva preocupação com a novidade, pura e simples, que se observa na atualidade.

A partir desta perspectiva torna-se fundamental a intersubjetividade. As relações intersubjetivas do sujeito são, a nosso ver, o fundamento sobre o qual brota a pergunta pelo sentido, estudada com profundidade pelo pensador gaúcho antes referido. A criação artística participa deste perguntar pelo sentido. Colocar o problema da intersubjetividade im­plica pensar o que nos é comum e o que nos separa. O sujeito não pode ser compreendido apenas como sujeito, pois este só é possível den­tro de relações intersubjetivas. O poeta Hoelderlin disse em algum poe­ma: « . . .e desde que somos um diálogo».. . Isto significa que o homem não é um ser que, entre outras coisas, pratica também o diálogo; o sujeito só se constrói mediante o diálogo. Pensamos que o ser-com-os-outros e o ser-para-os-outros é o ponto de partida para a pergunta pelo sentido. É sabido que a desvinculação emocional de um sujeito dos outros con­duz a uma perda de sentido de tudo. Nossa relação com as coisas e com as relações entre as coisas, assunto de que trata, por exemplo, a ciência, também só toma sentido enquanto vinculado, de alguma forma, às nossas relações intersubjetivas. Seria tolice pensar que o homem investiga a lua pelo simples fato de ser a lua.

como conseqüência desta linha de pensamento temos isto: uma obra musical nunca é o produto de um determinado sujeito, concebido isoladamente. Sua magnificência, o gênio, autosuficiente que criaria as suas obras a partir de si mesmo, não passa de uma fantasia. A obra musical é sempre a expressão de uma multiplicidade intersubjetiva. Sua realização concreta, isto sim, dá-se através de um determinado indivíduo. Pensamos aqui nas obras de arte que se confirmaram como tais, que resistiram ao tempo, que estabelecem a comunicação entre as gerações. As noções de verdade, de sentido, de beleza, de obra de arte, não podem ser concebidas meramente a partir do sujeito. Nem tampouco o sujeito isolado tem história. Estamos inseridos, essencialmente, numa coletivi­dade intersubjetiva e esta, por sua vez se liga às gerações anteriores e posteriores também de um modo essencial.

Posto que a obra de arte tem por um dos fundamentos essenciais a intersubjetividade, cabe perguntar pela natureza daquilo que é a fonte da arte.

Por mais que se queira enfatizar a participação da razão na elabo­ração da obra de arte — e ela, sem dúvida, tem a sua participação — o ponto de partida da criação artística não são os conhecimentos racionais. O próprio impulso para a criação artística, muito poderoso e que pode levar a suportar grandes sacrifícios, escapa à razão ou, pelo menos, não é fundado pela razão.

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As fontes da criação artística, em particular da musical, residem nas regiões obscuras das relações intersubjetivas e destas com a natureza. São regiões de coisas informes, nebulosas, de relações difusas, de signi­ficações múltiplas e imprecisas, muitas vêzes contraditórias, regiões que provocam o medo nos racionalistas. São regiões onde atuam, às vêzes estranhamente, o amor, o ódio, a culpa, a angústia, onde germinam os nossos desejos, onde se dá o embasamento na comunidade intersubjetiva e na natureza, onde surgem as perguntas mais fundamentais. Todos estes movimentos, relações e indagações, não são fundados pela razão. Ouçamos Guimarães Rosa: «Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos — não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento ?» (Grande Sertão: Veredas).

A razão vem depois, procurando pôr alguma ordem (vejam-se os sistemas axiomáticos, antes referidos), a delinear caminhos, a unir e se­parar, e muitas vêzes para criar a ilusão de um mundo perfeitamente claro, previsível — sobretudo previsível — ordenado. O embasamento do homem no mundo, primordialmente na intersubjetividade, é, no en­tanto, anterior e independente da razão.

A criação artística parte deste mundo subterrâneo. Ela se dá atra­vés de uma busca nessas regiões, de uma vontade de dar forma ao in­forme, de dizer o não dito, de tornar claro o nebuloso, de trazer à cons­ciência o que era inconsciente. A partir dessa posição poderemos com­preender Paul Klee quando diz que a função da arte é tornar visível o que é invisível. Ou então Herbert Read quando afirma que «sem arte não saberíamos que a verdade existe, pois a verdade só é tornada visível, compreensível e aceitável na obra de arte» («Arte e Alienação» — 1967).

E Heidegger ensina que criar implica em buscar. Mais ainda: «Talvez seja aquilo que chamamos aqui, e em casos semelhantes, de sentimento, mais razoável, isto é, mais perceptivo, porque mais aberto ao ser, do que tôda razão .. .» (obra citada).

As nossas considerações giraram, até agora, em torno da obra de arte musical. Pensando, porém, bem as coisas, constataremos que falta um aspecto essencial. uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, só é sinfonia na medida em que tem ouvintes, atuais ou potenciais. Heideg­ger chama aquêles que se relacionam com a obra de arte e que, por isso mesmo, são essenciais a ela, de «guardiães» da obra. Nesse contexto situa o filósofo a ação integradora da arte. Diz textualmente: «A guarda da obra não singulariza os homens em suas vivências, mas jun­ta-os na pertinência à verdade que acontece na obra, fundando assim o ser-para-os-outros e o ser-com-os-outros . . . » .

Há muitos modos de relacionamento com a obra de arte e, portanto, de se realizar a função integradora que ela exerce.

Vem-nos a propósito a palavra coro. Sua raiz etimológica grega significa: círculo dos que festejam. Jost Trier (revista «Studiam Ge­nerale» — 1949 — Alemanha), diz a respeito: «O círculo dos que fes-

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tejam implica a noção de cerca. Esta une os membros da comunidade, separando-os do cotidiano que fica fora do círculo. Somente esta sepa­ração faz com que a comunidade possa se apresentar como festejante. Isto se dá melhor num círculo, pois nesta configuração cada membro está voltado para todos e, ao mesmo tempo, dá as costas ao que está fora ou seja: ao cotidiano. Neste círculo valem outros costumes, outros modos de expressão, outros meios de comunicação. Fala-se também de outro modo. No círculo que festeja fala-se, por exemplo, em versos, coisas que um homem fora do círculo talvez ache esquisito».

Poderíamos acrescentar ainda que, num círculo que festeja, a lin­guagem é, muitas vêzes, a música. Os integrantes do círculo comuni­cam-se entre si cantando ou participando com gestos rítmicos do acon­tecimento musical.

A prática musical criada pelo individualismo dá-se de maneira di­versa. Os ouvintes não se unem em círculo em torno dos intérpretes mas são dispostos de tal modo que cada um enxerga as costas dos outros. Os gestos são proibidos. Quando um conjunto ensaia, não se pensa, em geral, em algum círculo que festeja, mas em apresentações públicas, em elogios, em admiração. A grande gratificação emocional do músico, que é a de ter feito participar os ouvintes na obra, desaparece, freqüen­temente, diante da preocupação com o sucesso, com a competição e, quem sabe, com a bilheteria.

O homem, ao longo de sua história, tem formado coros com as mais diversas significações. Coros nos quais os participantes se uniam em torno do sagrado; coros em torno de fogueiras nos quais se festejava o calor da amizade; as rodas infantis nas quais as crianças voltam as cos-ras ao cotidiano e se expressam através da linguagem do canto; coros em torno de touradas nos quais os participantes voltam as costas ao cotidia­no pouco heróico para festejar a valentia; coros em torno de aconteci­mentos esportivos que fazem aparecer a agilidade do corpo, que verda­deiramente festejam o corpo.

Em tais coros estabelecia-se a comunidade, aparecia o que era co­mum a todos, surgia a comunicação. Hoje pretendemos resolver o pro­blema da comunicação em termos da teoria da informação. Usamos concentos provindos da máquina para unir as pessoas. Chamamos deter­minada pessoa de receptor em vez de João e cogitamos de seu «reper­tório». Campeia também aqui o mesmo formalismo racional já apon­tado em outro contexto. E èsse formalismo abstrato vem acompanhado de um otimismo enganoso que chama a atenção. ..

A arte, em especial a música, sempre teve, no passado, uma estreita vinculação com tais coros. O círculo dos que festejam propicia o apa­recimento de condições nas quais aquilo que é expresso pela obra de arte pode-se tornar efetivamente comum.

um dos aspectos dos modernos meios de comunicação é a possibi­lidade de dispersão da vida afetiva do homem. Para se dar conta disto, basta prestar atenção nas músicas que se ouvem durante um dia numa

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grande cidade. Ao passar por uma loja de discos, fragmentos de uma cantata de Bach; na próxima esquina, pedaços de alguma música popu­lar; no táxi, os gemidos de alguma cantora; na televisão, cacos de música, chamados jingles; nos concertos, colchas de retalhos com remendos que vão desde o Barroco até os nossos dias. É o pólo oposto daquilo que acontece num círculo que se uniu para festejar.

Os pedaços de música que nos atingem ao longo de um dia numa grande cidade têm um efeito seguro: a dispersão interior. O fato de um grupo de pessoas se unir em círculo implica que prèviamente se te­nham despido do cotidiano, se tenham colocado em disponibilidade inte­rior para fazer aparecer o que irá ser comum. E isto dentro de um clima de estabilidade, de continuidade.

Nesse contexto podemos citar outro pensamento de Heidegger: «Nas proximidades da obra estivemos bruscamente em lugar diferente do costumeiro» (obra citada).

O homem não pode estar em todos os lugares interiores ao mesmo tempo. É necessário que tenha a oportunidade de morar neles, perio­dicamente, demorar-se, em união com outras pessoas. Os modernos meios de comunicação, em especial a televisão e o rádio, têm efeitos con­trários. São sistemas que geram constantemente novidades, sem outro sentido mais profundo.

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Ciencias Humanas

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O BRASIL, DE 1530 A 1580, como CAPÍTULO DA AVENTURA COLONIAL PORTUGUESA

ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS

E M 1530, Portugal era senhor do caminho das índias. A façanha garantia-lhe o domínio da especiaria e servia à potencialidade que

alcançava e procurava manter. A costa africana estava em suas mãos seguras. A outra banda do Atlântico, importante para a empresa daquele domínio oriental, uma vez que evitaria a concorrência que pudesse suceder se outra nação possuísse trecho de costa, nela implan­tando sua soberania, estava também sob a posse física imediata, ne­cessária, fundamental mesmo. As notícias que vinham de França, sobre os preparativos de ações contrárias aos interesses portugueses, falavam clara e objetivamente da conveniência da adoção de providências que impedissem a consumação daqueles propósitos imperiais de outros povos, interessados no estabelecimento de seus respectivos impérios territoriais, para os rendimentos mercantis que todos desejavam.

É preciso compreender, a essa altura, que tudo quanto estava ocorrendo decorria de desejos e de iniciativas privadas, da burguesia, que nascia com um apetite insaciável. Tanto em Portugal como na França, nos Países Baixos, na Inglaterra, em Espanha, essa burguesia, à notícia da especiaria rendosa, armava-se de ímpeto maior para o ne­gócio, para os grandes lances de coragem que levariam aos descobri­mentos e à posse efetiva de vastas áreas dos novos mundos que se revelavam com tanta velocidade. A burguesia das cidades italianas, na façanha anterior sobre o Oriente Próximo, servira de modelo e de incentivo. É certo que o poder real não se mostrou indiferente à operação, dela participando através de medidas diretas, impetuosas também, mas que abriu a oportunidade a que os outros, os da iniciativa privada, associados, muitas vêzes, ao poder real, se realizassem servindo aos interesses desse mesmo poder real.

Portugal, na costa atlântica, onde ia surgir por suas mãos, o Brasil, montara as feitorias iniciais, na execução de seu plano de domínio, como anteriormente procedera no litoral africano. Fizera a experiência do que valia a vasta costa. A experiência valera para que se aperce­besse do quanto fora certa a atitude dos diplomatas que haviam qizado o diploma de Tordesilhas, em 1493. Se não se encontrava, nos pri-

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meiros tempos, a riqueza que o litoral africano e o Oriente estavam proporcionando, nem por isso o litoral do Brasil futuro deveria ser abandonado como presa fácil aos concorrentes europeus. O reco­nhecimento efetuado pelas armadas, despachadas para inventariar o novo império em esboço, tímido esboço, não parecera suficiente. A comercialização, também timidamente iniciada, constante do que se pudera verificar como o interesse mercantil imediato encontrado, não se mostrara animadora. O Brasil, apesar de tudo, continuava nos pro­pósitos de domínio, de exercício de soberania de que Portugal não abria mão. O que explicaria essa decisão senão a consciência de que aquele litoral era fundamental para o domínio efetivo, irrecusável, do caminho para o Oriente? A miragem do Prata? O orgulho ferido pela ousadia dos franceses? O desejo de ter império na América, onde Espanha construía o seu? A propósito vale indagar — porquê em Tordesilhas defendera-se a soberania portuguesa sobre a vasta costa? O domínio do Oriente não se poderia exercer se não houvesse a mon­tagem dos estabelecimentos permanentes que importassem na presença da soberania portuguesa, capaz de enfrentar, insista-se na tese, os pe­rigos que os outros povos já se mostravam dispostos a executar. Àqueles motivos, que não podemos desprezar, junta-se este outro, aliás até mais ponderável no momento a considerar.

A expedição de 1530, atribuída a Martim Afonso de Souza, evi­dentemente estava contida naquela decisão do Estado. O Capitão de 30 anos, o que significava a conveniência de um homem jovem, capaz de engajar-se na empresa com os ímpetos e a energia que os moços possuem, trazia competência ampla, que ia do simples comando militar da expedição à de implantar núcleos, estabelecer o ato administrativo, iniciar colonização, estabelecendo definitivamente, o domínio. A missão era gigantesca, se considerarmos a extensão do território sobre que de­veria atuar Martim Afonso. A fronteira norte e a fronteira sui de­veriam ser atingidas. No norte seria a bacia amazônica; no sui, o rio da Prata, que despertava emoções e provocava o interesse generalizado, às notícias do que nele poderia desvendar-se como empreendimento econômico. Espanha, à notícia da montagem da expedição, prevendo o sonho português sobre o Prata, lançara protesto. Os espanhóis, com um vasto império em construção, não se podiam conformar com a pe­netração portuguesa em área que entendiam, pelo diploma de Torde­silhas, parte integrante daquele império, de tão vastas proporções. E o Prata estava incluído nesse império.

Ora, pelo que sabemos, à falta de melhores elementos elucidativos para a conclusão que teremos de admitir como válida, os portugueses, a fim de assegurar-se o domínio da costa, tinham de ocupá-la. Os limites naturais estavam no norte e no sui, na bacia amazônica e na bacia do Prata. Eram limites naturais. A concepção geopolítica do novo Estado que se ia montar era uma concepção perfeita.

As capitanias hereditárias, com o que Portugal pretendeu mobilizar a iniciativa privada, ao mesmo tempo em que mantinha certos privile-

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gios e direitos de um feudalismo que não se realizara plenamente no Reino, se não lograram o êxito que se imaginava, importaram como experiência, na comprovação de que a terra nova, se continuava um mistério no que diz respeito à riqueza em metais preciosos, ou seja, o ouro, a prata, os diamantes, que faziam a grandeza do negócio colonial de Espanha, era apropriada para uma agricultura tropical, rendosa, ten­tadora. Os engenhos em funcionamento em São Vicente e em Per­nambuco eram a melhor resposta aos que negavam a excelência da terra brasileira. Confirmava-se, desse modo, a informação, que pare­cera apresssada, de Caminha, Pero Vaz Caminha, o relator dos primeiros contactos de Portugal com o espaço litorâneo do Brasil. com as Ca­pitanias hereditárias, Portugal afirmara sua política de preservação do espaço definido em Tordesilhas — as concessões cobririam posterior­mente tôda a vasta área ali fixada.

As Capitanias, de outro lado, significavam também a possibilidade de uma vida menos agressiva entre os que chegavam da Europa e os que viviam anteriormente na nova terra. Ainda — o meio físico, com suas implicações climáticas, não se opunha a uma permanência dos que chegavam e podiam ser seduzidos para um fico definitivo. A visão paradisíaca da terra era, por fim, um convite permanente aos deser­dados de tôda espécie, mundo onde, inclusive, os que se haviam afasta­do das regras do bom viver poderiam obter uma renovação de com­portamento, restituindo-se à sociedade de que estavam egressos.

As Capitanias, como primeiro passo na direção de um propósito oficial de posse útil e de domínio efetivo, portanto, serviriam a esse objetivo político. O fracasso, que se pretende ver na experiência, não ocorreu com as violências características negativas, por que tem sido proposto. Se não houve o sucesso previsto, dizemos muito claramente o sucesso previsto, aquêle da presença da iniciativa e dos capitais pri­vados na empresa política e mercantil, colonial realmente, e com a presença a execução do plano de Estado para o domínio soberano, tirando-se do Estado o peso da iniciativa, quando êle tinha pela frente tôda uma vasta problemática que não se restringia ao território nacional ibérico, mas a todo o ultramar que elaborava incessantemente, o que vale dizer, um peso realmente muito grande, houve aquele outro, o do que se apurava como possibilidade para o futuro. As Capitanias constituíam, assim, um prefácio na tomada de consciência do que valia a colônia que se estabelecia. Os povoadores europeus que, na con­dição de náufragos ou fugitivos de expedições anteriores, estavam na terra, servindo aos que chegavam agora para a empresa mais demorada, falavam de todos aqueles fatores positivos a serem utilizados. A criação do Governo Geral para impor, em forma definitiva, a autoridade de Portugal, ia permitir que todo o passado recente servisse aos objeti­vos nacionais da criação do Brasil.

Os fatos que se seguiram, em nenhum momento podem permitir interpretação diversa. Os conflitos sustentados com os franceses, ou-

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sados impetuosos, decididos a estabelecer o seu ultramar na América do Sul, foram conflitos que serviram ainda mais para testemunhar os obje­tivos nacionais de Portugal sobre o Brasil. Ao invés de ceder aos intrusos, Portugal atirou-se, com vontade, na luta para expulsá-los. E com a expulsão, a ocupação de espaço intermediário, que seria a se­gurança da façanha de preservação do litoral e, com essa preservação, a segurança da colônia, desse modo com sua vida assegurada.

Entre 1530 e 1580, quando Portugal perdeu a autonomia, sob a monarquia comum à Espanha, o Brasil teve seus fundamentos estabe­lecidos. Se o extremo norte só seria alcançado em definitivo em 1616, e Laguna, sobre o extremo Sul, só em 1676 estaria fundada, nem por isso devemos deixar de admitir que, na fase em questão, é que se decidiu da sorte da colônia, seja na institucionalização do poder, seja na elaboração da sociedade, da economia tropical, seja na espiritualidade social e na formação dos primeiros quadros da inteligência local, na obra admirável que os Jesuítas, a serviço do Estado, promoveram sem cessar e sem desfalecimentos e hesitações.

A base física foi assegurada, pela ocupação, através de pequenos núcleos urbanos que vinham do período das Capitanias ou estavam surgindo agora, como foi o caso do Rio de Janeiro, de Cabo Frio, de São Paulo, e os estabelecimentos de pesca e os sítios agrários, as fazendas de criar, os engenhos de açúcar. Essa base física represen­tava-se, no particular dos núcleos urbanos, inicialmente na cidade-militar ou cidade-fortaleza, como lhe chamaram, a cidade do Salvador, onde sediaria o Governo Geral. um planejamento urbano foi traçado e seguido à risca. Plantava-se uma cidade que, a certos aspectos, repetia Lisboa, com a parte baixa e a parte alta. Nela levantaram-se os edi­fícios públicos, necessários à instalação do poder que principiava nos termos do Regimento expedido a Tomé de Souza.

Esse Regimento seria o diploma inicial, com ares de Carta Consti­tucional, como lembrou Pedro Calmon, estatuto que regulava os poderes do Governador, impondo a disciplina política a vigorar na colônia. Fixavam-se ali normas de conduta, estabelecia-se tôda a sistemática de vida a viver-se em coletividade. A administração, em suas linhas centrais, a ordem pública, as relações entre as pessoas de varia côr e situação social, a conduta a ser adotada para que, em nenhum momento, pudesse ocorrer o perigo de uma perda substancial do território que iria crescer pela expansão ao longo do litoral e a penetração sobre o sertão interior, tudo fora considerado para as providências da ordem jurídica. A cobiça, de outros povos, não cessava, agora somando-se aos franceses os ingleses, que começavam a tomar contacto com a ex-plendida realidade que os trópicos representavam e se dispunham a neles criar também suas bases ultramarinas de exploração e de comercialização.

Os fundamentos políticos, não será demais insistir, no Regimento do Governador, nó Regimento do Provedor-mór da Fazenda, no Regi­mento do Ouvidor-mór, no Regimento do Capitão-mór da Costa, por-

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tant numa série de diplomas, estavam regulados exemplarmente. A ordem civil estabelecida, garantindo-se, com ela, o processo de desen­volvimento que se deveria acelerar e assegurar.

A história que se iria escrever nos anos seguintes, até 1580, quando termina o período marcado a este trabalho, foi uma história viva, de defesa da terra, de estabilização do domínio, de estruturação de uma unidade que resultará, inicialmente, do equilíbrio social que se elaborou com a sociedade solidária, de indígenas americanos e de portu-quêses do Reino e logo após também das ilhas madeirenses em especial. Essa sociedade solidária seria o elemento básico, em nosso entender, a explicar tudo quanto ocorreria de então por diante. Principiara sua elaboração muito antes do estabelecimento do Governo Geral, com o relacionamento natural entre corpos de pigmentação diferente, mas tor­nado veloz à medida que os tempos passavam e homens e mulheres se realizavam num sistema familiar que, a certos aspectos, sem as forma­lidades legais, reproduzia as formas portuguesas da sistemática familiar. A essa participação e integração social, que resultava de tal entrosa­mento de sangue, somar-se-ia, em breve, o stock: de mulheres solteiras, as Órfãs da Rainha, trazidas de Portugal, senão num movimento de raiz racista, que não era a característica portuguesa, mas de purificação ética, pois que aquêles relacionamentos, sem o manto da lei, estavam provocando excessos, que as autoridades religiosas desejavam coibir.

Ao equilíbrio social, some-se a economia de plantação, a lavoura canavieira, de rendimento que permitiu uma produção de tipo mono­polista. O que as ilhas tinham, até agora, dado como contribuição nesse particular, alterou-se com a participação brasileira, verdadeira­mente sensacional. O criatório de gado vacum, trazidas as sementes, para os primeiros plantéis, das ilhas, assim transformadas em laboratório experimental do Brasil, foi o outro elemento a importar na existência rápida de uma economia, capaz de comercialização e da manutenção material da sociedade em início. Os engenhos e as fazendas de criar multiplicavam-se. Em 1580, podemos dizer que já constituíam moti­vação fundamental, gênero de vida que movimentava o Brasil na pro­jeção que alcançava. À pobreza com que a terra desanimara muitos, sucedia empresa de possibilidades ilimitadas.

O trabalho para a manutenção desse estado de coisas na economia de produção não fora possível, no entanto, realizar-se com a mão de obra indígena. A colaboração da multidão aborigine não se ampliara até lá. O resultado fora a importação do braço africano, na condição de escravo para as tarefas essenciais à atividade de criação econômica. O índio, todavia, servira no negócio do gado, revelando-se pastor excelente, utilizado sem dificuldades. A importação de africanos aumentou, desse modo podendo acelerar-se a produção. A concorrência das Antilhas não se faria a essa altura e só no século seguinte confu­taría com a nossa produção açucareira, produção que se fazia ali pelos mesmos métodos a mesma sistemática social e com a mesma mão de obra importada da Africa.

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A essa altura de nossas reflexões do que significava o Brasil nascente no período limitado de cinqüenta anos, cabe perfeitamente a pergunta — e a ação da Igreja, no campo da formação ética e da preparação das inteligências moças que teriam de surgir na nova área social? A Companhia de Jesús, antecedida pelos Franciscanos, de muito limitada sua atuação nessa fase, teve a seu cargo justamente essa tarefa. É certo que um Bispo, com os poderes que aquele tipo de autoridade religiosa possuía, já existia em pleno comando da espi­ritualidade em que a sociedade deveria organizar-se e manter-se. Foram, no entanto, os Jesuítas, os que na verdade promoveram o exer­cício das regras espirituais, conformando-as, quando se tratou de agir sobre a multidão gentia, à realidade sócio-cultural com que se defron­tavam. Porque se sobre o colono, vindo de Portugal ou das ilhas, esse agir não foi fácil, não teve de alterar-se na maneira por que era ministrado, nem nas fórmulas por que se enunciava, quando se tratou da gentilidade, precisou ser acomodado àquelas realidades ponderáveis de uma psicologia, de que eles imediatamente se deram conta e soube­ram aceitar para os êxitos que alcançaram. Os Jesuítas, por dele­gação do Estado, não ùnicamente nas igrejas e colégios que foram montando, na faina espiritual, sagraram-se merecedores do entusiasmo por que hoje os compreendemos. Nas escolas de primeiras letras que abriram, nos ofícios que ensinaram, no relacionamento em que puzeram filhos de colonos e filhos de aborigines, no teatro que usaram com a participação do silvícola, que representava, serviram à obra de prepa­ração dos primeiros núcleos de inteligência, dos quadros ilustrados que seriam a semente e a raiz da cultura brasileira.

O Brasil, entre 1530 e 1580, estava lançado em seus fundamentos mais originais, autênticos, capazes de assegurar a continuidade da colô­nia e, com ela, o Brasil de séculos posteriores. Entre 1530 e 1580, entrara na cogitação firme de Portugal, como o espaço que seria a sua grande realização colonial. Se já estava em cogitação, em hora de perigo, a transferência da Corte para o novo Império, que o Príncipe D. João anunciaria dois séculos depois! um prefácio da vida brasileira escrevera-se com a maior segurança e a melhor decisão de Estado.

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O CONDE DA BOA VISTA, SIMPATIZANTE DE IDÉIAS DE REFORMA SOCIAL? (*)

GILBERTO FREYRE

QUE dizer de Francisco do Regó Barros, Barão e depois Conde da Boa Vista, que não seja simples repetição do que nos informam

a seu respeito seus biógrafos e os historiadores? Sob que nova luz poderá ser apreciada ou considerada sua personalidade, sua figura his­tórica, sua ação de homem público no Brasil do seu tempo, agora que se comemora o centenário da sua morte? Haverá aspectos dessa per­sonalidade ou dessa ação a ser senão revelados, reinterpretados?

É possível que sim. A rigor não há biografias definitivas, O modo por que se interpreta hoje uma figura histórica pode ser supe­rado ou alterado, quer por um conhecimento não tanto maior porém mais profundo dessa figura, quer pelo que venha a saber de uma psicologia das relações entre governantes e governados, ou entre au­tores e leitores, ou entre ativos e passivos sociais de qualquer espécie, capaz de alterar nossa sociologia da História; e importando na rein­terpretação do que foi tal ou qual personalidade em relação, quer com o seu tempo, quer com o nosso tempo e com os tempos intermediários. E', afinal, sob perspectivas de tempo social sucessivas e às vêzes con­traditórias que uma personalidade ilustre sobrevive como figura não só representativa de uma época como de valores transtemporais.

Francisco do Rego Barros foi muito da sua época. Foi muito da sua gente. Foi muito da sua região. Foi muito da sua classe. Foi muito, até, da sua família. Será, entretanto, que houve nele alguma coisa de contemporâneo do, para o seu tempo, futuro, e para o nosso tempo, presente? Será que êle foi não apenas o que parece ter sido, mas, em alguns aspectos, o que nós supomos não ter sido, de modo algum? Será que parte de sua personalidade se conserva encoberta? Dúbia? Contraditória? É possível.

Interessante o fato de, pernambucano de origem caracteristica­mente rural, Francisco do Rego Barros ter se tornado o maior amoroso

( ) Parte deste ensaio foi lida, sob a forma de conferência em solenidade comemorativa do falecimento de Francisco do Rego Barros, Conde da Boa Vista", promovida pelo Arquivo Público de Pernambuco no Recife, em outubro de 1970

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do Recife — Cidade sob vários aspectos anti-rural — que jamais exer­ceu o supremo governo de Pernambuco. Foi ao mesmo tempo que homem muito da sua Província e, sobretudo, muito da capital dessa Província, brasileiro, como homem público, a amplo serviço, transpro­vincial, nacional, imperial, do Brasil. Tanto que seu último ofício de homem público assim pan-nacional seria o de Presidente da Província do Rio Grande do Sul.

Exatas estas sugestões, teríamos nos seus traços essenciais, o triângulo biográfico de Francisco do Rego Barros — pernambucanís-simo na origem rural; concentradamente recifense por opção como que amorosa de rurbano; nacionalmente, imperialmente brasileiro, por vo­cação de homem público que nele foi expressão de constante responsa­bilidade cívica — se, à base do triângulo, não fosse preciso acrescentar este característico também essencial de personalidade tão equilibrada: o de ter sido um brasileiro telúrico, nascido em terras de massapê, de formação intelectual feita no estrangeiro. Feita em Paris, na França, na Europa não-lusitana.

Ainda não apareceu o estudo reclamado por este tipo que, sendo histórico, é ainda atual, de brasileiro particularmente benéfico ao Brasil, embora tido às vêzes por menos brasileiro que os demais: o que tendo feito estudos no estrangeiro, reintegrou-se, assim enriquecido, no Brasil para melhor servi-lo, muitas vêzes, que os apenas castiços. Pois acres­centando a constantes inovações, enfrentando arcaísmos com renova­ções, desviando-se aventurosamente de rotinas, sem desobedecerem a essenciais de tradição nacional ou regional, antes, em alguns casos, va-lorizando-os ao extremo, anglicizados, afrancesados, germanizados, ianquizados, vêm se constituindo, em nosso país em inovadores, reno­vadores, revolucionários mais exigidos que apenas reclamados por su­cessivas situações brasileiras de inércia ou de rotina. Francisco do Rego Barros foi um afrancesado desse tipo como, antes dele, desse tipo fora, com maior amplitude e até maior grandeza — como um norte-europei-sado — o mais lúcido, mais harmonioso ao mesmo tempo que mais con­traditório dos estadistas brasileiros, o mais conservador ao mesmo tempo que o mais revolucionário dos nossos homens públicos, José Bonifácio de Andrada e Silva, ao trazer para o serviço do Brasil sua vivência, sua experiência e não apenas sua ciência de pan-europeu, tanto aportu­guesado ao modo coimbrão como norte-europeizado germanizado e afran­cesado naquilo que num homem pode enriquecer sua personalidade sem separá-la das duas raises nacionais ou pré-nacionais.

A esse tipo de brasileiro enriquecido por estudos no estrangeiro que, no jovem de personalidade forte, parece, sempre, antes aumentar que diminuir o vigor de consciência nacional e o senso de responsa­bilidade de dever para com a terra natal, pertencem os dois Rego Barros de Pernambuco, um, Francisco, afrancesado, outro, Sebastião, germanizado, por estudos superiores na Europa. Os dois voltaram a Pernambuco cheios de ânimo brasileiro. Decididos, por isto mesmo, a

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romperem com inercias, com arcaímos, com rotinas; e a acrescentarem à pura lusitanidade que, no Brasil de então, constituía quase inteira­mente, a parte européia da sua cultura, outros estímulos, valores e motivos de vida e de desenvolvimento nacionais: os norte-europeus.

Na realização de tais objetivos, Francisco do Rego Barros foi magnífico. Revolucionou sem deixar de ser à sua maneira, conservador. Explica-se que pelos conservadores do tipo convencional fosse acusado de estrangeirice que fosse caricaturado como excessivo nas suas fran-cesices; que se duvidasse do seu bom senso de homem de governo tal o arrojo como que quixotesco, de algumas de suas inovações: suas ou do Vauthier que foi por vêzes uma projeção do seu ser político. uma projeção do seu ser em termos de ciência aplicada à administração pública.

Foram reações, essas, ao que nele havia de exótico, de diferente, de esquisito, aos olhos de conservadores de um feitio diferente do seu — o de conservador renovador — que enfrentou com uma tranqüila firmeza de aristocrata de casa-grande dos nascidos — o caso de alguns e não de todos — sob o signo de ser uma nobreza, a sua, que obrigava. Que obrigava o fidalgo a comandar, servindo.

Foi o que fêz durante tôda uma vida de exemplar homem público: comandou, servindo. Inovou, conservando. Afrancesou o Recife sem que, sob seu governo, o Recife deixasse, no essencial, de ser recifense, pernambucano, brasileiro. Tanto que do mais ilustre dos franceses — Louis Léger Vauthier — que, a seu convite, veio ser um dos assesso­res técnicos — como hoje se diria — do seu governo, é um dos mais lúcidos elogios que já foram feitos à arquitetura já brasileira, daqueles dias, de casas de residência: a de casas-grandes de engenhos e a de residências senhoris de cidades. Arquitetura desenvolvida, em grande parte, em Pernambuco, à base de combinações, desde o século XVI, realizadas pelo bom senso do colonizador português entre seus próprios tipos de habitação rural e formas orientais de telhado, varandas in­dianas (que aqui se alargariam em alpendres ou copiares), janelas de feitio sabiamente árabe, evitando-se excessos de luz ou de sol dentro das casas.

De que foi encarregado Vauthier pelo Presidente Francisco do Rego Barros desejoso de modernizar o Recife? De várias obras para o Brasil e para a época revolucionárias. De levantar — um exemplo — edifício de teatro num estilo de que não havia modelos portugueses ou tradições brasileiras de arquitetura idônea — a arquitetura de teatro diferente da de casa-grande, da de convento, da de igreja, da de forte, Arquiteturas, essas outras, de que o luso se revelou mestre no setor lusotropical — enquanto os franceses eram mestres dessa arte especia-líssíma: o edifício para teatro. Levantou-se no Recife, com Rego Barros, o mais belo edifício de teatro, de que até hoje, pode orgulhar-se ó Brasil: o Teatro Santa Isabel. Mais: quis êle que se modernizasse no Recife o sistema de ruas e de calçadas, o de suprimento dágua, o de

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defesa contra enchentes. Quis e todos esses serviços urbanos foram senão realizados, iniciados no seu governo, de modo admirável: sob a direção de Vauthier e da sua equipe de técnicos franceses. Iniciados com Rego Barros prestigiando-os contra a gritaria demagógica e a histeria nativista que se levantaram contra os inovadores e as inovações. Outro acomodaticio, ou mais politicóide do que político — teria re­cuado: os franceses que voltassem à França. O Recife que continuas­se arcaico. A rotina que retomasse seu domínio sobre a cidade e sobre a província.

Francisco do Rego Barros, com aquela sua tranqüila firmeza de bom homem público que lhe valeria expressiva consagração popular ou folclórica — a de «Chico Macho» — não fraquejou: a modernização do Recife se fêz dentro do plano para ela traçado por técnicos de um saber, de uma visão, de uma perspectiva do futuro, como na época não havia no Brasil nem em Portugal. Buscou-os o futuro Conde da Boa Vista na Paris onde estudara; que conhecia de perto; que lhe abrira os olhos a valores de que dificilmente teria se apercebido se seus estudos superiores tivessem sido em Olinda ou em Coimbra. A Paris da Escola Politécnica.

Quem diz a Escola Politécnica de Paris na primeira metade do século XIX diz o maior centro, em tôda a Europa, de ciência aplicada ao que hoje chamaríamos desenvolvimento. Foi desse centro de estudos mais que superiores que Francisco do Rego Barros trouxe para Per­nambuco não um aluno qualquer, mas um laureado: Louis Léger Vau­thier. Foi com esse centro de estudos mais que superiores que o então Presidente da Província de Pernambuco pôs em contato sua terra numa como repetição dos métodos de governo do Conde Maurício de Nassau no século XVII, isto é, dando excepcional relevo à cooperação com os responsáveis políticos pela administração pública, de homens de ciência, de intelectuais, de sábios.

O resultado foi a extraordinária época, na história da administra­ção pública no Brasil já nacional, que pode ser designada como a época Rego Barros — Vauthier. Época de modernização não só do Recife como de Pernambuco, em geral, cujo sistema de comunicações Vauthier e os seus técnicos, prestigiados sempre por Francisco do Rego Barros, revolucionaram. Pois o sistema de estradas que desde então alterou as relações entre o interior da Província e a sua capital importou em ver­dadeira revolução que de tecnológica passou a econômica, em particular, e, de modo lato, a social. A social e a cultural.

Realização, de quem? De um homem de radical vocação e do feitio demagógico de um Borges da Fonseca? De um político de tendências bolivarianas como Abreu e Lima? De algum discípulo ardorosamente republicano de Frei Caneca? De modo algum: realização de um per­nambucano de casa-grande de engenho do Sul de Pernambuco. De um antes conservador que revolucionário nos seus modos. De um fris-tocrata pela família, pela origem, pela situação social. De um político

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acusado pelo seu mais terrível adversário na imprensa livre e até des­mandada daqueles dias, o Padre Lopes Gama, de, como membro da chamada oligarquia, então dominante, proteger ladrões, assassinos, con­trabandistas, alguns dos quais, segundo o panfletário, seus parentes.

O paradoxo vai além: esse suposto conservador inveterado trouxe, para Pernambuco, Vauthier, sabendo-o não só adiantadíssimo na sua ciência e arrojado na sua técnica de laureado pela Escola de Paris como socialista. Socialista pré-marxista. Socialista já com alguma coisa de cientifico mas de orientação diferente da que seria seguida judaico-ger-mânicamente por Marx. Socialista discípulo de Fourier. Socialista de uma tendência que os mais modernos desenvolvimentos da filosofia de organização social estão antes reabilitando que desprestigiando, em face dos fracassos de um marxismo, senão mal desenvolvido, mal aplicado que, com tôdas as suas pretensões científicas, várias delas contrárias às próprias idéias do grande humanista e até poeta que foi Marx, vem se revelando, além de inumano, anti-científico, anti-sociológico e mesmo antieconômico. O socialismo que Vauthier trouxe para o Brasil, nos dias de Francisco do Rego Barros presidente da Província de Pernam­buco, era do tipo humanista, socialmente democrático, adaptável a si­tuações diversas e não uniforme. Socialismo que permitiu a um pernambucano de notável inteligência, A. P. de Figueiredo — discí­pulo, como Vauthier, de Fourier — traçar uma das críticas mais pro­fundas do sistema de monocultura latifundiária então, e um pouco até nos nossos dias, em vigor em Pernambuco.

um aspecto esquecido do processo de desenvolvimento, do Brasil tropical, em nação moderna sob influências de tecnologia norte-européia, é esse que vem até nós da época Rego Barros-Vauthier em Per­nambuco. Particularmente no Recife. É esse socialismo por trás de uma revolução neotécnica.

É um aspecto expressivo, quer das relações do Brasil com a França, quer de um processo revolucionário então já em vigor, há anos, no Brasil: o de revoluções tecnológicas, algumas realizadas à sombra de uns como para-socialismos de Estado . Vêm elas afetando o que no nosso país são relações de cultura européia com ambiente ou situação tropical, pela influência que têm chegado a ter além do setor técnico ou do apenas econômico. Inclusive através de sugestões de ordem ideológica que têm acompanhado o impacto tecnológico. O socialismo fourierista como acompanhamento ideológico de renovação tecnológica de importante área brasileira foi um desses impactos.

O mais surpreendente é ter se verificado, ao lado de um impacto revolucionariamente tecnológico, outro sociológico, potencialmente tam­bém revolucionário, durante o governo, em Pernambuco, de um apa­rente ortodoxo de política conservadora como era Francisco do Rego Barros. O que se verificou através de Vauthier, convocado por Rêqo Barros, para dirigir as Obras Públicas da Província. Foi uma atividade, a de Vauthier, animada de tendências que, não tendo chegado a ser

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nunca pròpriamente fourieristas — nem sequer parece ter Vauthier co­gitado de animar em terras brasileiras a criação de falanstèrio — não deixou de ser contrário a interesses então estabelecidos no Nordeste Agrário do Brasil.

A ação de Vauthier, no sentido de contagiar brasileiros com al­gumas das idéias de Fourier ou desse socialismo francês pré-marxista, tomou aspecto singular. O aspecto de difusão entre os mesmos bra­sileiros, de um fourierismo mais plástico, mais psicológico, mais flexi-velmente ideológico e mais realìsticamente sociológico que o dos falans-térios utópicos e sistemáticos. Difusão inteligente e penetrante que alcançando, de modo particular, como parece ter alcançado Antônio Pedro de Figueiredo, teria se comunicado também, segundo boas evi­dências, através de Figueiredo e de outros afrancesados, a Nascimento Feitosa e a Aprígio Guimarães, para chegar ao próprio Joaquim Nabuco.

Nenhum desses se entusiasmaria pela idéia de falanstèrio: do fourierismo absoluto ou perfeito. Ou de uma forma sistemática desse socialismo. Mas não lhes faltaria às tendencias reformistas um fer­mento revolucionariamente socializante.

O que Vauthier parece lhes ter comunicado de essencial direta­mente a uns, indiretamente a outros, como Aprígio Guimarães e Joaquim Nabuco — das novas tendências no pensamento social francês, foi o pendor para as soluções sociais e não apenas políticas ou somente jurídicas, dos problemas brasileiros. Pendor que tanto distinguiria Na­buco, de Ruy Barbosa; e os homens públicos, como Francisco do Rego Barros, e intelectuais do Recife, como Joaquim Nabuco, de outros ho­mens públicos e intelectuais do Império, menos alcançados por idéias francesas do sabor e da amplitude daquelas que Vauthier evidentemente concorreu para propagar no Pernambuco do meado do século passado.

O Recife, Capital de uma Província governada pelo aparente conservador ortodoxo que foi Francisco do Rego Barros, recebeu, assim, desde a primeira metade do século XIX — volto a assunto já ferido em trabalho publicado há alguns anos para considerá-lo aqui sob critério, em parte, novo — uma influência do mais objetivo socialismo premar­xista europeu; e superior ao marxista no seu humanismo: o francês, de Fourier. Essa influência se prolongaria, durante anos, depois de ter concorrido — pensamos alguns — para dar colorido social e até de certo modo, socializante, à chamada Revolta Praieira.

Seria um engano pensar-se que a ação de Vauthier, de sentido revolucionário tanto no plano tecnológico como no social, tenha se limitado, no Brasil, ao período de sua presença por assim dizer física, no Recife. Presente no Brasil como técnico, como orientador, como renovador, não só de paisagem, de vida e de economia tropicais e, na época, ainda sociologicamente coloniais, como também de idéias e de métodos de ação, êle continuou, durante sua vida de europeu reinte-

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grado na Europa, após a aventura brasileira, ligado ao trópico e ao Brasil. Sua aventura brasileira só cronològicamente durou cinco ou seis anos: na verdade durou cinqüenta. Mais de cinqüenta até.

Vauthier — de quem nunca será possível separar-se a figura de Francisco do Rego Barros, que o trouxe da França ao Brasil e pres-tiqiou sua ação renovadora, foi um desses homens tentaculares no espaço e no tempo que se expandem em influência por meios biológicos ao mesmo tempo que culturais, psicológicos ao mesmo tempo que sociais. No Brasil êle deixou filho brasileiro: filho mestiço, Vauthier de côr: franco-africano. Eurotropical. Continua assim biològicamente presente no Brasil. *

E deixou discípulos: o já referido Figueiredo, se não foi discípulo seu e de Fourier tanto quanto de Cousin, não deixou de receber sua influência, receptivo como era, pelo próprio ecletismo aprendido com Cousin. No Brasil permaneceram, abrasileirados ou aculturados em brasileiros, dois dos seus principais colaboradores franceses, o enge­nheiro Milet — que aqui se tornou agricultor e aqui constituiu família, casando-se com uma pernambucaníssima Albuquerque — e Boulitreau; que também aqui se fêz agricultor e constituiu família. Ao Brasil, Vauthier continuou preso, consultado, como sempre foi em sua vida, a respeito de obras de engenharia. Houve obras que dirigiu da Eu­ropa. Por correspondência: à base do seu conhecimento da ecologia tropical do Nordeste. De modo que sua presença, do ponto de vista sociológico, ultrapassou em dezenas de anos sua presença pessoal ou física e sua continuação biológica em filho brasileiro, aliás obscuro e não apenas escuro.

É interessante assinalar-se que os anos imediatos ao regresso de Vauthier à França e à presença de Francisco do Rego Barros na pre­sidência da Província foram, no Recife, dos de mais intenso afrancesa-mento que tem experimentado a capital de Pernambuco. Foi como se Vauthier, prestigiado pelo Presidente Rego Barros, tivesse provocado, regressando à França, um surto ou uma febre de francesismo na Ci­dade brasileira onde acabara de viver e agir, também intensamente. Viveu e agiu como se fosse um homem de dupla e contraditória per­sonalidade: engenheiro que aqui provocaria ou acentuaria, como provocou e acentuou, um surto de progresso industrial e mecânico, perturbador da ordem social, inclusive do que nessa ordem patriarcal, a despeito da escravidão em vigor, era humanismo ibérico, personalís­simo lusocristão, atenção à pessoa humana. Socialista, e também, a seu modo, humanista e personalista, Vauthier — o amigo francês do afran­cesado Francisco do Rego Barros — no Brasil se abrasileirou a pomo de ter aqui, seguido costumes caracteristicamente brasileiros, deixado filho natural. E aqui deixaria — este o grande impacto da sua influên­cia — sugestões no sentido de uma nova ordem que — é-nos lícito imaginar — não sendo mais a patriarcal, fosse, idealmente uma ordem entre traterna e hierárquica: e corrigisse no progresso industrial ou

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mecânico, os seus excessos, tomando esse progresso e aquela ordem aspectos complementares de uma realidade e de uma mística sociais também novas. Brasileiramente novas.

É possível que essas idéias — se é que foram exatamente as suas — êle as tivesse comunicado ao próprio Francisco do Rego Barros. O qual não deixou de tomar, como Presidente da Província de Pernam­buco, umas tantas iniciativas que podem ser classificadas como de so­cialismo de Estado. Socialismo, é claro, humanista. Fourierista. Mas socialismo — como o de Vauthier — bem menos utópico que científico. Ou paracientífico.

O que está aqui se sugerindo com algum escândalo? Que èsse aparente ortodoxo de política conservadora que foi Francisco do Rego Barros favoreceu no Brasil, como Presidente da Província de Pernam­buco, um dos maiores surtos de tecnologia revolucionária que já agitaram o nosso país; e com esse surto, outro — socializante — e ainda outro, intelectual: a primeira presença no Brasil de uma perspectiva quase cientificamente sociológica de problemas brasileiros.

Segundo o Professor Moreno, a Revolução Francesa teria em­pregado sua energia prática na emancipação da burguesia e sua energia teórica na instituição da ciência social ou da sociologia, implicando, este fato na fecundação do socialismo científico por pensadores franceses pré-marxistas. A Revolução francesa, pensa esse moderno sociólogo, hoje tão em voga na Europa, ter feito nascer a sociologia como ciência. Teria sido o ponto de partida de uma série de reações que, segundo êle, através de Saint-Simon, Fourier e Augusto Comte, chegaria a Durkheim. E afetaria — acrescente-se a Moreno — o um tanto so­ciólogo que foi, genialmente, Karl Marx completado por Engels.

Desses pensadores, está provado que pelo menos Fourier — o mestre do Vauthier tão prestigiado por Francisco do Rego Barros — influiu sobre o chamado socialismo científico que veio a desenvolver-se menos na França que na Alemanha e paradoxalmente na Rússia. E provado parece estar também que a idéia de progresso básico para o socialismo chamado científico quando se extremou em movimento messiânico — consolidou-se primeiro na França. Vinha de Voltaire, através de Con-dorcet, e chegaria a Guizot, que dela se ocuparia nas suas famosas conferências de 1828. Conferências cuja repercussão deve ter chegado ainda muito viva aos ouvidos do então adolescente Vauthier.

O socialismo francês da primeira metade do século XIX pretendeu a um tempo socializar e humanizar o progresso industrial. Pretendeu resguardar os valores vitais da civilização humana de sua fragmenta­ção ou desintegração através de atividades industriais, soltas ou des­controladas, corrigindo o Progresso livre — o laissez-faire do libera­lismo econômico — implícito nessas atividades soltas, com a Ordem, como se diria no Positivismo comtista. um Positivismo, em parte con-1

tinuador do sistema de Saint-Simon; e do de Fourier, em vários pontos.

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Vauthier foi no Brasil da primeira metade do sécuIo XIX — no Pernambuco governado por Francisco do Rego Barros — um repre­sentante da situação assinalada pelo Professor Moreno como cruda pela Revolução Francesa; e que, por sua vez, teria criado a Ciência So­cial e contribuído para criar o Socialismo Científico. Introduzido no Brasil, por Vauthier, durante o governo em Pernambuco de Francisco do Rego Barros, o Fourierismo parece a alguns de nós ter dado o primeiro sentido sociologicamente, senão socialista, socializante, a uma das expressões mais características do processo revolucionário brasi­leiro: a que vem tendo sua base no Nordeste. Principalmente em Per­nambuco: no Recife: Num Recife menos pioneiro, no Brasil, de qual­quer socialismo sistemático fácil de tornar-se sectário ou arcaico — como aconteceu com o Positivismo de Comte, sempre fraco no Recife e forte no Sul do país — do que de soluções sociais e brasileiras para problemas sociais e brasileiros. Soluções mais amplas que as jpenas jurídicas ou somente políticas.

Impossível deixar-se de considerar a contribuição fourierista para o que esse processo revolucionário brasileiro, que, irradiando do Re­cife, adquiriu, ainda na primeira metade do século XIX, muito menos de conteúdo que de estímulo sociologicamente socializante: um estímulo hoje presente na obra inconfundível de que socialismo de Estado de um novo tipo — tipo brasileiro — representada pela SUDENE, que, segundo já notou o Professor Munhoz da Rocha, se baseia em idéias de um intelectual recifense. um quase socialismo de Estado que coopera, e busca, a cooperação, de seu suposto opositor inconciliável, que é a iniciativa particular, segundo fórmula consagrada na Consti­tuição Brasileira de 46 e na atual, por influência, em grande parte, de sugestão recifense. Conciliação que já estaria no novo método de administrar Província iniciado por Francisco do Rego Barros assesso­rado por Vauthier.

O nome de Francisco do Rego Barros está associado à primeira presença menos de parasocialismo, com pretensões a científico, embora também humanístico e humanitário, que ao início, em termos já mo­dernos, no Brasil, de uma como sociologia aplicada à administração pública e à política social de um governo. Associado a uma revolução tecnológica a que não faltou — repita-se — o acompanhamento ou o estímulo de elemento parasociológico. Associado, portanto, a um mo­vimento de renovação regional, no nosso país, que implicou em crítica revolucionária à ordem econômica e à estrutura social, monocultora e latifundiária de tôda uma vasta região do então Império. Crítica que seria seguida de alterações consideráveis nessa ordem e nessa estrutura.

De modo que, válidas as sugestões que aqui se esboçam, torna-se necessária uma revisão da figura ou da personalidade de Francisco do Rego Barros que admita nessa figura ou nessa personalidade traços anticonservadores tais que ela deva ser considerada, sob certos aspec-

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tos, mais revolucionária que conservadora. De outro modo, não se compreenderia o prestígio que Francisco do Rego Barros deu, de modo tão incisivo, a um, além de revolucionário tecnológico, opositor à rotina, quer em engenharia, quer em administração de obras públicas, como foi Louis Léger Vauthier. Francês de quem o Presidente durante sete anos da Província de Pernambuco — seria no fim da vida, em dias difíceis para o Império, Presidente da Província do Rio Grande do Sul — vivido em Paris e inteirado de fermentos intelectualmente renova­dores na cultura francesa ou européia de então, não ignorava que fòsse um discípulo de Fourier. E quem diz Fourier, diz não só um precursor, tanto quanto Saint Simon, de Augusto Comte, por um lado, mas tam­bém — sugira-se ainda uma vez — de Karl Marx, por outro. Fourier foi uma das mais nítidas expressões, no seu tempo, do que a cultura francesa apresentava de renovado e de renovador, nas suas projeções intelectuais sobre a ação política ou sobre movimentos de reforma social.

Quem hoje passar pela estátua de Francisco do Rego Barros — à noite, sem iluminação: sempre na sombra — que se ergue no antigo Campo das Princesas do Recife — estátua que o apresenta senhoril­mente sentado como um sedentário e apolíneo conservador — não passa, entretanto, por monumento em honra apenas da memória de um de­fensor da Ordem e da Segurança Nacional: defensor que êle sem dúvida foi contra demagogias rasteiras e antinacionais. Passa também pelo monumento de um dos maiores renovadores, no Brasil, de qualquer época, de perspectivas e de métodos de administração e de governo; de um estadista do Império que favoreceu a introdução no Brasil não só de técnicas como de idéias francesas então de vanguarda. Não só essa estátua de corpo inteiro precisa de ser à noite iluminada em vez de deixada tristonhamente no escuro. É a vida, a pessoa, a persona­lidade, de Francisco do Rego Barros, Barão e depois Conde da Boa Vista, que principalmente carece de ser iluminada por uma biografia mais que biográfica: uma espécie de novo um Estadista do Império.

Há hoje entre certos historiadores menos idôneos o afan retros­pectivamente demagógico de desprestigiar nos passados nacionais quanto foi atuação de elites, de aristocracias, de indivíduos superiores, para exaltar-se apenas o valor dos seus contrários: os elementos de uma população subordinados a dominadores e indiscriminadamente con­siderados sempre mártires ou vítimas totais dessa dominação. Pre­tende-se glorificar apenas as massas só por terem sido massas em relação com indivíduos de qualidades criadoras, quer inatas, quer de­senvolvidas das inatas por aquisição ou por esforço. É uma tendência que se filia a um generalizado afan demagógico sectariamente quan­titativista e antielitista, característico da época de desajustamento entre valores tradicionais e os reclamados por novas circunstâncias de convivência humana que o mundo atravessa; e que vem atingindo o máximo do seu furor, menos, atualmente, na Rússia Soviética — onde há agora forte movimento de revalorização de tradições e valores do passado nacional: inclusive valores culinários, folclóricos e religiosos

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que nos tecnològicamente superdesenvolvidos e, no momento, espiri­tualmente em crise quase mortal, Estados Unidos da América.

Sob esse critério gritantemente deformador do que se possa con­siderar interpretação sociológica do passado ou da atualidade de um conjunto nacional, é claro que «desprezível», «reacionário», «elitista»

dado às elites um sentido pejorativo — quanto se faça a favor da memória de um Conde da Boa Vista ou de um Marquez de Olinda. Só por terem sido titulares do Império e homens bem nascidos e bem educados deveriam ser considerados sumariamente figuras negativas do nosso passado.

A verdade, porém, é que no Brasil de hoje há quem saiba, nos momentos justos, procurar fazer justiça histórica tanto aos que, no passado prenacional e no nacional do nosso país, agiram como elemen­tos de elite, como aos que, nesse passado, contribuíram para a atual grandeza brasileira como gente obscura, plebéia, anônima. Inclusive como escravos. Os escravos a quem o Brasil tanto deve sem que para reconhecer-se essa dívida seja preciso negar os serviço à nação bra­sileira de alguns dos bons, patriarcalmente bons, barões do Império.

Será «saudosismo» reconhecer-se como válida essa dupla ou mista realidade? Será «saudosismo» reconhecer-se no que foi a formação patriarcal do Brasil o positivo para só enxergar-se o negativo? Será «saudosismo» deixar-se de ver o tratamento em geral — nem sempre: em geral — dispensado pelos barões e senhores de terras brasileiras aos seus escravos uma benignidade que de ordinário — de ordinário: nem sempre — faltou — o depoimento de numerosos estrangeiros idô­neos — aos donos europeus ou brancos de terras e de negros noutras áreas escravocráticas do mundo, do século XVI ao XIX? Será «sau­dosismo» deixarmos os brasileiros de estimar valores contraditórios vindos do nosso passado para, negando-os, fazermos passivamente n jogo antibrasileiro de estrangeiros, ajudados por uns poucos brasileiros, empenhados em julgar simplistamente nosso sentido imperfeito, porém mais avançado que qualquer outro, de democracia racial, vinda de uma miscigenação que na própria sociedade patriarcal corrigiu excessos de dominação e de subordinação? Serão nossos julgamentos de raça iguais aos ódios de brancos a negros, aos furores atuais de negros contra brancos, em vigor noutras partes do mundo? De modo algum podemos resvalar nesse jogo sem renunciarmos nossa independência intelectual e nossa dignidade nacional na análise, na avaliação e na interpretação do que em nós são, e vêem sendo, traços positivos e traços negativos de comportamento e de cultura. Toca-nos repudiar as pressões sobre nós de agentes estrangeiros, uns comprometidos com branquitudes, outros com negritudes, e a todos os quais devemos opor cada vez mais a nossa mística que é a da morenidade, ou a da morenitude, ou seja a de uma crescente democracia, ao mesmo tempo racial e social.

Prestigiando a atuação no Brasil no seu tempo — particularmente em Pernambuco - - de um neo-técnico que era também um socialista

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de tipo mais científico ou mais sociológico que doutrinário, Francisco do Rêgo Barros, aristocrata de engenho do Cabo, antecipou-se a Joa­quim Nabuco em ser um tanto desertor de sua própria classe para favorecer interesses e desenvolvimentos sociais contrários aos dessa classe; e desfavorável à própria população então dominada que, com a abolição, se tornaria o grosso do povo brasileiro. A obra de Vauthier, inseparável do governo Rêgo Barros, é o sentido que tem: o neo-técnico em oposição ao paleotécnico; o abridor de novas perspectivas s o c i a i s em oposição à rotina; a valorização do Recife em prejuízo não de legí­timos interesses rurais, mas de privilégios daquela oligarquia territorial-feudal de que Francisco do Rêgo Barros, Barão e Conde da Boa Vista, era, êle próprio, além de membro, figura sob vários aspectos representativa.

um dos encantos do desenvolvimento do Brasil em democracia social, vem sendo o da procedência diversa de seus líderes mais a ser­viço, como homens públicos ou como empresários, dessa democratiza­ção, alguns dos quais procedendo paradoxalmente dos elementos mais privilegiados da população: bem nascidos, bem criados, bem educados. Pela lógica deveriam ter sido conservadores absolutos e até reacioná­rios. Na realidade foram conservadores revolucionários. Francisco do Rêgo Barros merece ser situado entre líderes desse tipo: mistos. Con­traditórios. Não se fixou no serviço exclusivo nem de sua classe nem mesmo de sua região. Foi panhumano e panbrasileiro nas suas princi­pais iniciativas de homem de governo, tendo se antecipado a assimilar menos do socialismo francês, humanístico e não apenas economicista, da sua época, quer de uma então nascente sociologia com pretensões a ciência aplicada à administração pública, sugestões úteis ao Brasil: à modernização técnica e à democratização social da nação brasileira.

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BIOGRAFIA DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS

CLARIVAL DO PRADO VALLADARES

— I —

HISTÓRIA E CRÔNICA

Ão pretendemos fazer aqui um rigoroso estudo historiográfico.

Aliás, a história da Lagoa Rodrigo de Freitas é muito rica de crônica, de informações e impressões dispersas, encontradiças no relato de viajantes e nos escritos de cronistas, porém não no texto histórico de episódios celebrizados.

Nosso comentário sob o título «Lagoa Rodrigo de Freitas» inevita­velmente abrangerá tôda adjacência em que se implica o paisagismo para o qual a lagoa é o epicentro.

Quase nos identificamos com a definição dada pelo urbanista Alfred Agache: « . . . esta lagoa está favorecida de uma maneira excepcional pela natureza. Colocada entre as montanhas e o oceano, ela é desenhada de tal forma, que um passeante que lhe percorra a beira apercebe, ora separadamente, ora num conjunto grandioso, o Corcovado, os Dois Irmãos, a Gávea, o Pão de Açúcar e outras perspectivas entre as mais belas do Rio». ( . . . ) «Quando o Governo de Portugal empreendeu a criação do Jardim Botânico, previu sem dúvida as vantagens que esse bairro poderia oferecer mais tarde e é assim que começou o embeleza­mento da Lagoa,» ( . . . ) «sem plano determinado». (x)

A antevisão de Agache parece sugerir um roteiro para uma sucessão cenográfica da paisagem. Bem diferente é a secura dos historiadores, p. ex. , Melo Morais, quando dedica ao tema as informações precisas sobre « . . . a Lagoa Rodrigo de Freitas, conhecida nos primórdios da Cidade, por Sacopenopã, ou Socopenopã. Em fins do século XVI, Diogo de Amorim Soares tornou-se dono do engenho de açúcar construído pelo Governador Antônio Salema, por volta de 1575-1578, em terras marginais à lagoa. Mais tarde, em 1609, o estabelecimento passou a seu genro Sebastião Fagundes Varela, que o vendeu em 1660 a Rodrigo de Freitas de Melo e Castro, cujo nome batizou definitivamente a lagoa. Em 20 de agosto de 1748, a Gazeta de Lisboa anunciava o falecimento

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de seu filho, Rodrigo de Freitas Castro, Fidalgo da Casa Real, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Senhor do Engenho da Lagoa, e da Mesma Lagoa, padroeiro da Igreja da Conceição na Cidade do Rio de Janeiro». (2)

Vamos, agora, a outros historiadores para melhor conhecimento desses personagens, da Crônica da Lagoa.

Elisio de Oliveira Belchior, biografando Antônio Salema, Gover­nador do Rio de Janeiro entre 1575 e 1578, diz que . . . «Coube-lhe ainda erguer nas margens da Lagoa de Socopenapã um engenho de açúcar que mereceu história controversa» ( . . . ) «pois fora construído com um gasto total de 3.000 cruzados, mas o provedor da fazenda real Cristóvão de Barros, anos depois de sua instalação afirmaria que não valia mais de 500 cruzados, sendo aconselhável sua venda para evitar maiores despesas». (3 )

José Vieira Fazenda (4) — aprofunda-se mais na recomposição da história indicando Diogo de Amorim Soares como primeiro donatário da sesmaria de terrenos próximos à Lagoa, em 1598, fundador do engenho de N. Sra. da Conceição. Foi seu genro Sebastião Fagundes Varela que entre 1609 e 1617 obteve mais terras contíguas, . . . «tor­nando-se possuidor da grande fazenda ( . . . ) com 1.700 braças de testada e 4.500.000 braças de área incluindo a lagoa». ..

Esta foi a enorme propriedade que o pesquisador de história Luis França Almeida e Sá (Rev. Inst. Hist. Geog. Bras, n9 62) indica na medição de 1809, sob a denominação de Fazenda da Conceição de Sacopenan, comprada pelo Govèrno a Dona Maria Leonor de Freitas Melo e Castro, herdeira de Rodrigo de Freitas (falecido em 1803), por 42.193$430, no ano de 1811.

Além dessas origens escrituradas, Pizarro (5) — comentando sobre o Roteiro do Brasil de Pimentel assinala que esta consta de 5 léguas de comprido, desde a barra de Guaratiba até a Marambaia, por onde corre a Restinga. No Roteiro de Pita (liv. 2 ) , numerou 14 l éguas . . . «com pouca verdade por não exceder a mais de légua e meia, em cujo fim principiam as doze léguas de restinga que confinam com a Guaratiba. Marambaia não é ilha — acentua Pizarro — está ligada à terra firme, pois que caminhando pela restinga, e costa do mar, se vai à cidade, entrando pela Lagoa Rodrigo de Freitas». (6)

A casualidade do nome do proprietário Rodrigo de Freitas tornar-se o topònimo da área mais bela de tôda a Cidade do Rio de Janeiro é um dos acontecimentos curiosos de nossa história. Num país em que as ruas e logradouros, túneis, viadutos, estádios e aeroportos consagram vidas ilustres, ocorre a exceção da regra para um topònimo, incidental e tradicionalizado, do latifundiário que nem residia naquelas bandas. . . «tinha êle casa de residência nesta cidade à Rua de São José, e morreu em Portugal no ano de 1748, com 61 anos de idade na sua quinta de Suariba, da freguesia de São Paio de Visela». (7)

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O caso merece atenção dos especialistas em linguistica, capazes de explicar que eufonia predomina para que os tempos aceitem os apelidos Rodrigo de Freitas como topònimo de um acidente geográfico antes denominado de Lagoa de Sacopenapã, Lagoa do Engenho da Conceição, e até de São João, pois foi dentro da Freguesia de São João da Lagoa, criada pelo decreto de 13-6-1808.

A substituição do topònimo original de Sacopenapã para Copaca­bana se explica pela invocação iniciada antes de 1638 de Nossa Senhora de Copacabana, na primitiva Igreja da Misericórdia. Lê-se, no Santuário Mariano de Frei Agostinho de Santa Maria, que o Padre Miguel da Costa, naquele ano de 1638, colocou a Imagem de Nossa Senhora do Bonsucesso na Santa Casa e não na primitiva igreja cujo altar já estava ocupado pela imagem de Nossa Senhora de Copacabana. A única explicação dada pelo autor dos dez volumes do relato universal do San­tuário Mariano, realizado entre 1702 e 1709, consta no seguinte trecho: . . . «e por que não nos referimos nada dela, digo o que se me repre­senta, e é como a Senhora é tida em todo o Império Peruano por um grande prodígio pelos contínuos milagres, que continuamente obra naquela sua sagrada Imagem Peruana, poderia ser a trouxesse de lá algum Português, como a trazem muitos em uns relicarios de prata». (8)

Em terras do Cónego Antônio Duarte Raposo, pequena parte da primitiva sesmaria de Nicolao Baldim (1614) foi fundada a Capela de Nossa Senhora de Copacabana, constituída em Igreja e Irmandade da Freguesia de N. Sra. Copacabana em Suruhi, em 1669.

Conclui Vieira Fazenda: . . . «É hoje quase impossível saber, por que e em que ano saía da Misericórdia a Imagem de Nossa Senhora de Copacabana, para a praia das Pescarias». ( . . . ) «Em 1746 João Gomes Pina doou 100 braças de chão de largo e 200 de comprido em Sacope-napan a Nossa Senhora de Copacabana».

Quando o Bispo D. Antônio do Desterro retornava de Angola para ocupar a diocese do Rio, quase pereceu numa tempestade. Consta, num manuscrito do I . H . G . Bras., que no momento de perigo o Bispo «implorou o amparo de N. Sra. de Copacabana, cuja ermida, em ruínas, divisava em meio aos vagalhões, na altura da Ilha da Cotunduba e prometeu, caso escapasse do naufrágio, tomar a si a restauração da capela. E cumpriu a palavra».

«Quando em 1845 Bernardino José Ribeiro vendeu terras a Carlos Leblon, declarou na escritura que não vendia a Capela por pertencer à Mitra. Havia, junta àquela igrejinha, uma casa para os romeiros mas a assistência religiosa foi dificultada, e por isso relegada pelos beneditinos e carmelitas» ( . . . ) «pelos inconvenientes que sentiu aquela Religião pela residência, no sítio, de alguns de seus indivíduos» (Pizarro) . Assim era Sacopenapã naqueles idos de 1771 a 1773.

Sacopenapan, ou Sacupenupan — derivado conforme opinião de Iheodoro Sampaio, de çocó-pê-nupan. ou çoocó-apê-nupan, pancada

nos socos, caminho batido dos socos. (°)

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Ainda comenta Vieira Fazenda: etmologia bem explicada pela vizinhança da Lagoa Rodrigo de Freitas.

Certo, mas cabe acrescentar: bem denunciada, pois indica a fauna predominante de um pássaro dependente de espécie piscosa lacustre, de água doce.

Noutras palavras: a paisagem de Sacopenupan era decorrente, biològicamente, da lagoa.

Nos tempos primevos, aquela vasta região era povoada por grupos dispersos e não fixados de tamoios, dedicados à pesca, pois as áreas do recôncavo guanabarino e do Norte, ou as mais distantes do Sul, ofereciam melhores condições de caça e plantio de mandioca.

Assim concluímos o primeiro capítulo da Biografia da Lagoa Rodrigo de Freitas, correspondendo ao tempo de uma área selvática habitada mais pelos socos, até a data de desapropriação da Fazenda da Lagoa Rodrigo de Freitas, por Dom João VI, em 13-6-1808 e sua posterior incorporação ao Patrimônio Nacional por lei de 28 de setembro de 1835. (10)

— II —

PERIODO SEGUNDO: FABRICA DE PÓLVORA JARDIM BOTÂNICO

Nenhum cronista deixa claro o verdadeiro motivo, o interesse de aquisição da imensa área compreendida pela Fazenda da Lagoa. O primeiro aproveitamento consistiu na instalação de uma Fábrica de Pólvora e Fundição de peças de artilharia. Somente em 1869 o Governo Imperial pagou 50 apólices à Câmara Municipal para o domínio direto de tôdas as terras, . . . «cuja planta foi levantada pelo tenente general Carlos Augusto Napion e capitão Jacques Augusto Conny». ( n )

Quem era esse General Napion? Simplesmente Carlos Antônio Napione, natural de Turim, nascido cerca de 1758, militar de carreira em seu país de origem e depois contratado para servir a Portugal como inspetor de Arsenal e das Oficinas e Laboratórios dos Instrumentos Bélicos. Transferiu-se para o Brasil com a família Imperial, em 1808, sendo logo, a 13 de maio, incumbido de criar e inspecionar a Fábrica de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi presidente da junta diretora da Academia Real Militar, Brigadeiro, Marechal-de-Campo. Faleceu no Rio em 1814. (12, 13, 14)

Este notável engenheiro militar é autor do levantamento topográfico que consta do Arquivo Militar com o título — Planta topográfica do Terreno ao Sul da Cidade do Rio de Janeiro, compreendido Entre a Dita Cidade e o Oceano», acrescido do projeto das «Fortificações a fazer, para evitar o desembarque na Costa, e no caso déste se efetuar, não poderem avançar os desembarcados para a cidade» trabalho de

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relevante valia na época e na posteridade, pois resultou no documento indispensável para delimitar propriedades e herdades, até à presente centùria.

É cogitável ter havido no encargo do General Napione motivação estratégica, para eventual defesa, ao detalhar a topografia de uma área que foi percurso dos invasores franceses de 1710 e 1711.

Nas Memórias do Rio de Janeiro de Monsenhor Pizarro lê-se, no capítulo sobre a «Entrada dos Franceses na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e seus progressos, no ano 1710» que. . . «da Ilha Grande despediram dois navios com a balandra e sumaca que sondaram a costa nas praias de Sacopenapã, e da Lagoa, e na noite de 10 intenta­vam desembarcar duas léguas distantes da cidade. No dia seguinte chegaram à barra Tojuca, quatro léguas da cidade e à de Guaratiba, quatorze distante».

Noutro trecho o mesmo cronista, (15) Das fortalezas e redutos da cidade e seus subúrbios. Dos corpos de infantaria e cavalaria de linha, e de outros semelhantes de milícia, que guarnecem a Cidade e Capitania-» — dá breve e expressiva notícia de interesse militar, referente ao tempo do Vice-Rei Marquês do Lavradio: «Acautelando o mesmo Vice-Rei ingresso de inimigos pela praia de Copacabana, fêz coroar o monte alto e sobranceiro», ( . . . ) «com um reduto denominado For­taleza do Leme; e na estrada de São Clemente, que de Botafogo segue à Lagoa Rodrigo de Freitas, estabeleceu um presídio a quem protegiam dois pequenos baluartes ocultos dentre os matos a um e outro lado da mesma estrada».

A missão de Carlos Napione se estenderia, entretanto, para uma iniciativa de enorme significação econômica e administrativa. A ferti­lidade daquelas terras era já conhecida em relação ao plantio de cana de açúcar e também de café: . . . «Dos lugares mais fartos dessa planta e melhor cultivados até o ano de 1800, eram superiores o da Tojuca e tôda sua circunferência em volta da Gávea para a Lagoa Rodrigo de Freitas; o da fazenda Medanha, na freguesia de Campo Grande. . .» (16)

Nos «Anaes do Rio de Janeiro — Contendo — A descoberta e Conquista deste pais — A fundação da Cidade com a História Civil e Eclesiástica até a Chegada d'El Rei Dom João VI; além de notícias topográficas, zoológicas e botânicas», da autoria de Balthazar da Silva Lisboa, publicado em 1834, lê-se: «Adiante o Rio da Tejuca, que tem a vertente na Gávea, oferecendo-nos pela semelhança as saudosas lembranças de Cintra; he navegável para lanchas. Passado esse se descobre a Lagoa Rodrigo de Freitas, que tem dous terços de légua de comprimento, e hum de largura, sem foz, mas abundante de pes­cado. Os córregos que nele desaguara oferecem, na sua superfície azougue, rubins e jacintos». ( " ) Num outro tópico, o mesmo cronista da-nos outra notícia de conotação econômica daquela área- «As

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montanhas secundárias são de argila, tabatinga, gesso, espato e amianto: o da praia (Passeio Público) servem-se dela para figuras, e para a porcelana os de diversas qualidades da barreira dos religiosos de Santo Antonio da Cidade, e da Boa Viagem, a argila rubra da Lagoa de Rodrigo de Freitas. (18)

Esta é a única referência que detectamos na vária e numerosa obra dos cronistas da terra fluminense, sobre um aproveitamento de matéria prima para aplicação de artesanato, na Lagoa.

Temos, assim, já caracterizadas duas importantes qualidades da região para justificar o empenho de Carlos Napione no deselvolvi-mento econômico: a fertilidade, com aclimatação favorável e a dispo­nibilidade de materiais de construção.

Determinado trecho de Monsenhor Pizarro (19) informa que a lagoa não era pantanosa, de mangue ou lameira, como por equívoco alguns atribuem, comparando-a com as enseadas do recôncavo guana-barino. Assim descreve Pizarro: . . . «Marchetam o território desta província várias lagoas aprazíveis, onde se colhe sempre o peixe com fartura. A de Rodrigo de Freitas, longe da cidade mais de légua e meia, tem de andadura em redor além. de um quarto de légua, é assaz funda e se despeja no mar de Copacabana, quando assaz farta lhe dão saida abrindo os seus vizinhos o caminho impedido por montões de areia solta».

E, para ser ainda mais explícito quanto à salubridade da lagoa naquela data, descreve: . . . «Nela se nutre saboroso peixe, o lagostin, o camarão e o siri, a que em Portugal dão o nome de carangueijo, por ser ali desconhecido o verdadeiro carangueijo, criado em sítios lodosos, e de construtura diferente, como aparecem balsamados em alguns gabinetes de História Natural; e siri porém suposto seja uma espécie de carangueijo, sustenta-se em lugares menos lamosos, e de ordinário em lagoas comunicáveis com o mar, ou nele».

Não é possível maior clareza numa descrição ecológica. Ali, naquela surpreendente região de natureza diversificada — praieira, lacustre e serrana — haveria com certeza de surgir o Jardim Botânico que em seu próprio tempo de instalação Carlos Napione chamou-o de Real Jardim da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi criado pelo Alvará de 11-3-1811 (art. 32) e regulamentado pelo Decreto de 11 de maio de 1819, porém em virtude das resoluções regias de 27-7-1809 e de 7-7-1810, a primeira premiando e a segunda isentando de direitos e dízimas qualquer especiaria aclimatizada e produzida aqui, aquelas terras marginais da lagoa foram se transformando em campos expe­rimentais, horto e cultivo de plantas exóticas, por interesse de Dom João VI e sob orientação pessoal de Carlos Napione. (20)

História fabulosa foi a que ocorreu com o Chefe de Divisão Luis Abreu Vieira e Silva, náufrago em Goa, prisioneiro de guerra em mãos dos franceses na Ilha Mauricia de onde conseguiu fugir trazendo con-

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sigo preciosa carga de mudas e sementes de várias plantas surripiadas do Jardim Gabrielle. Luis Abreu retornou a bordo do veleiro «La Ville d'Autun» e presenteou-as a Dom João VI que fê-las plantar no Real Horto da Lagoa, em 1809. Eram sementes e mudas da for de coral da índia, caneleira, canforeira, litchi, cravo da índia, ôlho-de-boi, jaqueira, fruta-pão, noz-moscada, cajá-manga, sagù e nogueira, e a célebre palmeira imperial, a primeira e mãe de tôdas as outras que medram pelo Brasil afora. Esta histórica palmeira frutificou pela pri­meira vez ao tempo do diretor Bernardo José de Serpa Brandão (entre 1829 e 1851) que desejou monopolizar o raro espécime, mandando queimar cada ano tôdas as sementes produzidas.

Conforme crônica de C. Sarthou, citado nas anotações da 3* edição de Moreira de Azevedo, o monopólio fracassou porque . . . «os escravos que trabalhavam no jardim levantavam-se durante a noite e subindo à árvore colhiam as sementes que vendiam a 100 reis cada uma». Desse modo a palmeira imperial se espalhou por todo o Brasil, formando os majestosos renques de acesso às casas nobres e marcando a paisagem nativa.

Neste trabalho não pretendemos cobrir tôda a história do Jardim Botânico, aqui incluído como área integrante e decorrente da Lagoa. Cuidar da crônica do Jardim é compromisso para livro. Talvez seja um dos mais empolgantes temas do contexto fluminense, abordado e tangenciado por quase todos que escreveram sobre o Rio de Janeiro, mas ainda insuficientemente historiado. Além do plantio oriundo da aventura de Luis de Abreu, em 1809, Dom João mandou vir de Caiena mais sementes de especiarias e plantas medicinais e do Ceará a planta indígena chamada Carnaúba, em 1810. Em 1896 Vieira Fazenda (-1) se diz incapacitado para dar notícia circunstanciada da história mo­derna do Jardim Botânico e apela para outros mais habilitados, ao tempo em que era diretor o seu ilustre amigo e célebre botânico João Barbosa Rodrigues.

Já na época do Marquês de Sabará (1808), o pequeno jardim e horto atraía visitas que eram então acompanhadas por soldados do arsenal. Em 1819 novo decreto aumentou a área do Jardim Real, anexando sua administração ao Museu e nomeando diretores João Severiano Maciel da Costa e João Gomes da Silveira Mendonça. Em 1822 determina-se a anexação à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, órgão que deu origem às futuras repartições do Ministério da Agricultura. Em 1860 o Imperial Instituto Fluminense de Agri­cultura passa a dirigi-lo, instalando fazenda e oficinas de instrumentos e máquinas de lavoura, chegando a manter milhares de espécies dife­rentes, indígenas e exóticas, vinte e uma variedades de cana de açúcar, vinte e sete espécies de mandioca, várias de aipim, de algodão, plantio de palmeira bombonassa do Peru para fabrico de chepéu de palha, fumos de Djebel e Havana, amoreiras, bicho da seda, chá da índia, e um sem número de plantas ornamentais. Parte da mão de obra e

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do trabalho especializado era ocupado por aprendizes egressos de orfanatos da Santa Casa de Misericórdia.

Cedros do Líbano, longanas, bambus, mangueiras, jaqueiras, a árvore da teca, da cànfora, da goma, formavam bosques e aléias nutri­das pelas águas do Rio Macaco. Ainda na fase inicial, quando era mais uma estação agrícola experimental, tentou-se a mando do Impe­rador o cultivo do chá da India, a encargo de emigrantes chineses especialmente contratados que residiram naquela verdejante várzea e encosta até a remessa das primeiras amostras para Londres onde foram desaprovadas, rejeitadas. com isto abandonou-se o cultivo do chá e todos os sonhos imperiais a respeito. Mas, até hoje, não se soube o que de fato houve com o chàzinho da beira da Lagoa quando posto nas chávenas dos provadores londrinos. Teria gosto de água salobra, sabia a infusão de cororoca, ou simplesmente era assunto incômodo, pretensioso, querendo vez num, comércio oriental dominado pelos preços ditados, ao bel prazer, de Albion?

Outra frustração do Jardim Real, isto é, do campo experimental de esperanças agro-econômicas do Regente foi o fabrico de chapéu de palha, dito Chapéu do Chile, na época, com as fibras da palmeira bombonaça (22) que aliás medravam viçosamente.

Há evidência documental de que Dom João VI convergia grandes esperanças econômicas nos plantios aclimatados, visando distribui-los em diversas outras regiões — Pernambuco, Bahia, Minas e São Paulo, bem como cambiar entre Estados brasileiros, trazendo do Norte espé­cimes nativos p. ex. , a carnaúba do Ceará.

Em 1824, por conseguinte três anos após o retorno de Dom João VI a Portugal, foi nomeado diretor o ilustre botânico Frei Lean­dro do Sacramento, carmelita e a este se deve a transformação do campo de aclimação de plantas exóticas em cultivo de caráter científico. Era Frei Leandro do Sacramento membro das Academias de Ciências de Londres e Munique. O cronista dos Anaes do Rio de Janeiro ( 2 3 ) , Balthazar da Silva Lisboa, assim rememora-o: «Floresceram nesta província Carmelitana homens eminentes em letras e virtudes. Ainda de nossos dias pessoalmente ouvimos lições de botânica no Passeio Público a Frei Leandro do Sacramento, Inspector do Jardim Botânico: dele temos a excelente memória da cultura do chá e seu fabrico no Jardim da Lagoa de Rodrigo de Freitas, tão enriquecido de plantas e árvores exóticas, que atrai a visita e recreio dos nacionais e estran­geiros àquela linda situação. Lastimamos a sua morte tão fatal na­quele ramo de nossa literatura e civilização».

Sacramento Blake informa, no verbete biográfico «Frei Leandro do Sacramento», que êle nasceu em Recife, Pernambuco, em 1778 e faleceu no Rio em 1829 «era licenciado em filosofia pela Universidade de Coimbra, foi lente de botânica e zoologia da academia médico-cirúrgica desta cidade (Rio de Janeiro) mais tarde diretor do passeio

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público e por ùltimo diretor do Jardim Botânico em 1824». ( . . . ) «além de lecionar na Academia, fazia constantemente sábias preleções nos dois estabelecimentos que dirigia, às quais concorriam não só seus alunos, mas também homens de elevada posição. . .» ( . . . ) «não fêz qrandes explorações como naturalista porque disso o impossibilitava sua saúde precária, nem escreveu quanto poderia talvez» (o biógrafo está exigindo demais de um naturalista, religioso e filósofo morto aos 51 anos!) . Seus trabalhos são mencionados, com relevância, por Auguste de Saint Hilaire e Giuseppe Baddi que o consagrou ao clas­sificar e estabelecer o gênero Leandra, na ordem das mellastomaceas.

Era sócio da Academia Real das Ciências de Munique, da Aca­demia Imperial da Rússia, da Real Sociedade Horticultural de Londres, da Sociedade Real de Agricultura e Botânica de Gent (Bélgica) e do Instituto Colombiano etc. Sacramento Blake arrola seis obras de sua autoria, entre tese, monografias e um Compêndio de Botânica, conhecido de seus alunos, historiado por José de Saldanha da Gama (v. Rev. Inst. Hist. , tomo 38), entretanto desaparecido. (24)

De suas obras mencionadas merece destaque, como trabalho pio­neiro da temática de preservação do patrimônio cultural, aquela publi­cação datada de 1819 (LVI-77 págs. in 4' B . N . ) modestamente intitulada «Instruções para os viajantes e empregados nas Colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos de História Natural», originalmente escrita em francês e traduzida por ordem de Sua Majestade Fidelíssima.. . «aumentadas e precedidas de algumas reflexões sobre a história natural do Brasil e estabelecimento do museu e jardim Botânico em a Córte do Rio de Janeiro».

Há, na história do Jardim Botânico, um outro carmelita de des­tacado mérito: Frei Custódio Alves Serrão, nascido na velha Alcântara do Maranhão em 1799 e falecido no Rio de Janeiro em 1873. Desde cedo demonstrou aversão à vida monástica, recusando-se a estudar teologia. Voltou ao Rio, bacharelado com as melhores notas, em 1825 e foi nomeado em 1826 lente de botânica e zoologia da Academia Militar, após de química e mineralogia e, em 1828, diretor do Museu Nacional, onde exerceu o cargo com muito brilho.

— III —

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO JARDIM BOTÂNICO, QUE SE CHAMOU JARDIM DA LAGOA

Em 1859 Frei Custódio Alves Serrão foi nomeado diretor do Jardim Botânico, cargo a que renunciou por discordar da anexação ao Instituto Fluminense de Agricultura. (2») Em quase a totalidade das crônicas, o período de 1860 a 1890 foi estacionário, burocratizado e de pouca ressonância. Interpretamos este fato como a conseqüência dos fracassos do cultivo de aclimação para expectativas econômicas

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O século XIX foi destacadamente o período dos naturalistas e por isso pouco se entende do desinteresse e desestímulo tão prolongados, até que nos primeiros anos da República (1890) se nomeou um dos brasileiros mais ilustres, o naturalista João Barbosa Rodrigues.

No resumo biográfico de Sacramento Blake (26) lê-se que J. B. Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro em 1842, formou-se em economia, foi desenhista por pendor e autodidata em ciências naturais com notáveis obras em botânica, etnografia e antropologia. Comissionado pelo governo imperial, excursionou através da Amazônia classificando numerosas espécies de palmeiras inéditas, mesmo em face da pesquisa pregressa de Martius, Richard Spruce, Alfredo Wallace e outros. Êle próprio desenhava os espécimes estudados. Sofreu usurpação de várias de suas descobertas por parte de James Trail e outros explo­radores visitantes, ambiciosos de prioridade. Em 1884 foi diretor do Jardim Botânico do Amazonas que fundou ao tempo em que aculturava a tribo dos crichanás. Deixou numerosa obra científica e literária numa amplitude de verdadeiro humanista. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1909.

Dos diversos e sucessivos diretores do Jardim Botânico, desta­camos, de acordo com o critério de nosso estudo, Antônio Pacheco Leão, nascido no Rio de Janeiro em 1872 e falecido em 1931. Era médico, formado em 1896, sanitarista, nomeado por Osvaldo Cruz em 1904, no Serviço de Profilaxia da Febre mareia. Em 1911 foi no­meado Diretor Geral da Saúde Pública. Em 1912 excursionou ao Amazonas com Carlos Chagas, experiência que suscitou seu grande interesse pela flora brasileira. Em 1916 era diretor da seção botânica do Jardim Botânico e em 1925 ocupou a cátedra de Biologia Geral e Parasitologia da Faculdade de Medicina. Manteve-se na diretoria do Jardim Botânico desde 1914 até a data de sua morte em 1931. (27)

A importância de Antônio Pacheco Leão como diretor do Jardim Botânico está na luta que manteve, sobretudo entre 1920 e 1922, contra a usurpação do patrimônio original resultante da desapropriação da área marginal da lagoa para a construção do hipódromo projetado pelo arquiteto e diretor do Jockey Club, Mário Ribeiro.

A mutilação foi definitiva, amputando a contigüidade das coleções de aclimação mesológica específica àquela topografia. (28)

O argumento progressista de Mário Ribeiro e outros baseava-se na escusa viciada de falta de verba do Ministério da Agricultura para manter o Jardim Botânico e até mesmo para sanear aquela área lodosa, verdadeiro criatório de mosquitos, pantanoso, de plantas aquáticas. Tais argumentos de Mário Ribeiro, Lineu de Paula Machado e de outros vultos da elite mandatária repercutiam no julgamento do público, sempre apavorado com o espectro da febre amarela, em nada impor­tando que do lado oposto, isto é, do lado dos que defendiam a integridade necessária para manter as características ecológicas de um

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Fig. 2 — LEONARDO DA VINCI (H52-1519). A figura de Cristo, inscrita numa pirâmide, realçada pela luminosidade

da paisagem ao fundo,

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Fig. 3 — ANÔNIMO LEONARDESCO. Cabeça de Cristo. Pinacoteca de Brera, Milão.

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Fig. 4 — LEONARDO DA VINCI (1452-1519). Tiago, o Maior. Desenho a saguínea. Biblioteca Real de Windsor.

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Fig. 7 INARDO DA VINCI (1452-1519). A Santa Ceia. Detalhe da cabeça de São Pedro. Estado atual de conservação depois das últimas restaurações

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Fig. 8 — Refeitório do Convento de Santa Maria das Graças depois do bombardeio de agosto de 1943.

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1) Lagoa Rodrigo de Freitas (dezembro de 1970) vista do caminho para o Corcovado. Exemplo de progresso rio resultante da especulação imobiliária de Leblon e Ipanema e sucessivos aterros desde 1922 com multilação

da primitiva contiguidade do Jardim Botànico a Lagoa. Comparar com a foto XXVII (p. 400-1) do II vol. Aparência do Rio de Janeiro», de Gastão Cruls, 1945. Ed. J. Olimpio — Rio.

Foto: C. P. Valladares

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2) Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Aléia das Palmeiras Imperiais do tempo de Dom João VI com replantio para preservação paisagística, (dezembro, 1970).

Foto: CP. Valladares

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3) Jardim Botânico do Rio de Janeiro, (dezembro de 1970)

Foto: CP. Valladares

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4) Jardim Botànico do Rio de Janeiro, (dezembro. 1970)

Foto: C.P. Valladares

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5) Jardim Botànico — Pio de Janeiro. «Primeira estátua fundida no Brasil no Vice-Reinado de D. Luiz de Vas-concelos, em 1783 — Estátua feita por Valentim da Fonseca e Silva, naturai de Minas Gerais — conhecido

por Mestre Valentim

NOTA: Estátua alegórica da ninfa Eco (Naiade) originalmente do Passeio Público, {dezembro de 1970) Foto: CP. Valladares

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6) Jardim Botànico do Rio de Janeiro. Valentim da Fonseca e Silva, dito Mestre Valentim — Estátua de ferro — «Diana, caçadora». Esta e a da ninfa «Eco» foram feitas para o Passeio Público, trasladadas para o Jardim Botanico.

Foto: CP. Valladares

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7 ) Nesta casa, antiga sede do Engenho de N. Sra. da Conceição da Lagoa, residiram o antigo proprietário do En­genho Rodrigo de Freitas Mello c Castro e o Primeiro Diretor da Fábrica de Pólvora criada em 1808, General Carlos Antonio Napion. Aqui se liospcdava D. João VI e a Família Imperial em vilegiatura. Nela viveu João

Barbosa Rodrigues que aqui faleceu a 9-11-1909». Foto: CP. Valladares (dezembro, 1907)

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8) Jardim Botânico do Rio de Janeiro — Casa do Engenho N. Sra. da Conceição — Veja legenda 7. Foto: C.P. Valladares (dezembro, 1970)

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Ruínas da portada da Fábrica de Pólvora do ¡ardirti Botànico, construída pelo General Carlos Antonio Napion ão tempo de D. João VI — 1808-1810. (Rio de Janeiro — dezembro, 1970)

Foto: C.P. Valladares

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9) Arq. Grandjean de Montigny — pórtico da demolida Academia Imperial de Belas Artes (1937) e reerguido no Jardim Botânico do Rio de Janeiro pelo SPHAN. Relevos em terracota da autoria de Zeferino Ferrez.

(dezembro, 1970) Foto: CP. Valladares

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11) Detalhe do pórtico da Academia Imperial de Belas Artes. Relevo em terracota do escultor Zeferino Ferrez. Foto: C.P. Valladares (dezembro, 1970)

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12) Detalhe do pórtico da Academia Impeciai de Arte — Relevo em terracota do escultor Zeferino Ferrez. escultura desta portada monumental é em cantaria de granito fluminense.

Foto: C. P. Valladares (dezembro, 1790)

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Lagoa Rodrigo de Freitas, vista do Caminho do Corcovado Foto: CP. Valladares — 1971

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Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas do Alto do Sumaré. Foto: C.P. Valladares — 1971

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dos mais ricos e belos jardins botânicos do mundo, legado por Barbosa Rodrigues, estivesse à frente, precisamente, um sanitarista da escola de Osvaldo Cruz, professor de parasitología.

Naquela luta desigual haveria de vencer o prestígio do turfe que concluiu em 1926 suas elegantes construções sobre os aterros na área subtraída do Jardim. O govèrno e o meio social aprovaram com entusiasmo aquelas arquibancadas e instalações, de fato um dos exem­plos pioneiros como estrutura livre de concreto e ricamente decoradas com ornatos e estudo do arr noveau. Analisado sob critério de con­sideração estilística, isto é, de estilo da época, as construções do Jockey Club se integram ao mesmo capítulo da Confeitaria Colombo, da Rua Gonçalves Dias (1912), do Magazin Tórre Eiffel (demolido), da Rua do Ouvidor, da sede do Jockey Club, na Avenida Central, do Edifício do Elixir de Nogueira, da Praia do Russell (demolido), e do notável mausoléu (ossuàrio coletivo) do Cemitério da V. O. Ill de São Francisco da Penitência, no Caju, datado de 1907. (29)

As pretensões do Prof. Antônio Pacheco Leão, fundador dos «Arquivos do Jardim Botànico», careciam de consistência para merecer apoio daquela sociedade festiva de 1922, o ano do ' centenário da Independência, radioso de edificações fantasiadas.

Pacheco Leão lutou pela integridade do patrimônio de características mesológicas particulares a um cultivo experimental e científico. Era seu propósito fazer do Jardim Botânico não só um belíssimo parque mas no­vamente um centro de pesquisas científicas, um centro educacional, um mostruário de plantas nativas e exóticas, devidamente estudadas e cata­logadas.

«Em 1945 a área do parque compreendia mais de 54 hectares, ou sejam 546.343m2, sendo 135.182m2 de matas naturais e o restante cul­tivado.» Nesses últimos anos o paisagista Roberto Burle Marx tem se dedicado à defesa do que resta do Jardim Botânico, delimitado em 1945. Visivelmente inspirado nos anseios de Pacheco Leão e, doutro modo, impossibilitado de corrigir as amputações praticadas de 1922 em diante, Roberto Burle Marx projetou em 1963 uma ilha a ser construída no centro da Lagoa, constituída de ripado e cultivo para as espécies de plantas marginais lacustres e aquáticas da flora brasileira, juntamente com instalações laboratoriais para estudo e controle da ictiología. (80)

Do mesmo modo que como ocorreu a Pacheco Leão, todo e qualquer idealista da preservação da natureza e de seu tratamento lógico e cientí­fico assumirá idêntico risco.

A destruição da paisagem nativa, a diminuição da amplitude original, a mutilação, as deformidades ancilares, o vandalismo estatal contra o seu próprio patrimônio genuíno são contingências e características da pato­logia social, mais exacerbadas nas cidades de maior densidade demográ­fica e de escassa rentabilidade industrial e agrícola. O Estado da Gua­nabara enquanto permanecer como remanescência topográfica de um ex-

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tinto Distrito Federal, agora entregue à pròpria sorte e sob risco de resvalar para autofagia, não terá opção de tratamento de sua natureza fisica primitiva senão a de saturá-la de construções.

Onde não se semeia milho ou trigo, cana ou café, onde não se pastoreia e quando não se tem os ponteiros da civilização bem ajustados com a seiva da cultura humanística e o pulso da tecnologia, então tem que se plantar mesmo edifícios de apartamentos. (31, 32, 33, 34)

* * * *

Nunca faltarão as justificações melifluas para os aterros, mutilações. uso impróprio e sobretudo para o sacrifício dos atributos culturais em favor de um progresso mal digerido.

Em todo o mundo ocorre a mesma coisa. Poucos percebem que a civilização industrial agoniza e, em seu lugar, vem vindo a civilização tecnológica capaz de salvar o homem, ou de simplesmente exterminá-lo.

Chega de embolias, de esclerose, de congestão, de oclusões, de ne­crose e de amputações, que se sucedem e se admitem, em face da lògica do absurdo de que uma desgraça traz outra.

Progresso mal digerido e cultura mal assimilada têm trazido para a Lagoa exemplos de edificações que são mais «modernosas» que moder­nas, ou mais «caluniais» que coloniais.

A mortandade periódica de peixes e, correlatamente, a destruição do equilíbrio ecológico, não deve ser equacionado como um mistério da na­tureza, mas simplesmente como um desproduto da civilização urbana cujo nome é poluição. (3S)

Para tal ocorrência, não se requer fábricas de tóxicos, indústrias químicas nos arredores. Basta que a cirvunvizinhança seja área consu­midora de tôda a prodigiosa escala dos produtos químicos propostos para o bem-estar cotidiano da vida doméstica: detergentes, removedores, aro­matizantes, inseticidas, lubrificantes, desinfetantes, resíduos de combus­tíveis, enfim, a quase infinita lista dos «sprays», plásticos e enlatados.

Quem dá atenção para este terrível e hodierno capítulo da ecologia há-de perceber que a poluição se processa com mais franquia nas áreas consumidoras que nas de fabrico.

Isto é fácil de se compreender, pois nas últimas as medidas de pre­caução e contenção são mais conscientizadas.

Por este motivo, de veracidade científica, tornam-se suspeitas e te­merárias as propostas de se instalar em novas subtrações da área original, isto é, nos aterros em prosseguimento, unidades de grande consumo dos produtos industriais propostos para o bem-estar de todos e felicidade geral da nação, entretanto identificados à linha dos desprodutos.

Supermercados, centros comerciais, áreas de parqueamento e abas­tecimento, postos de lubrificação, mafuás modernizados com maquinaria de «Coney Island», «drive-in», saturação de arranha-céus onde se erra­dicou a favela e até a ameaça de um heli-pôrto — (helipôrto quer dizer

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estação para pouso e decolagem de helicópteros provida de meios de abastecimento, lubrificação, reparos e mais algumas outras implicações da poluição) — são tôdas ameaças e propostas de risco para a nossa desavisada e inocente Lagoa.

Em trabalho anterior, ao qual intitulei «Preservação da Natureza e Integração Social», criticamos a escolha das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas para implanto desse poderoso equipamento da nova sociedade de consumo. Indicamos as extensas margens das novas e belas estradas que saem do Rio como áreas mais compatíveis aos empreendimentos gi-qantescos do complexo industrial-comercial. (3Ú)

A sociedade de consumo se caracteriza pela particularidade de em­pregar o tempo do lazer, condição do homo ludus, — que antes era de­dicado à reza, à leitura, às prendas, aos jogos e ao devaneio — nas idas aos mostruários (vitrines, mercados, magazines, etc.) para exercicio de sua capacidade aquisitiva, ou na atitude passiva, sedentária de submissão à televisão que é o instrumento motivador do interesse de consumo.

Recuso-me a tratar desses assuntos em termos de protesto romântico, de apelo lírico para preservação do que é belo, certo e puro porque foi feito pela mão do Criador e em tempos idos foi usado com respeito pela mão do homem.

Continuo sendo o patologista que fui em minha carreira médica, agora capaz de entender a erradicação de uma favela como meio de se curar uma úlcera, mas também habilitado a reconhecer nas propostas de cons­truções saturadas e fontes de desprodutos, não uma cura, e sim o desen­volvimento de uma neoplasia.

O desenvolvimento histórico do progresso urbano atinente à Lagoa e sua adjacência, considerado na faixa de um século evidencia que a carga de erros se condensa mais nos nossos dias que no passado.

Tentarei agora um resumo cronológico e sinóptico dos eventos mar­cantes:

1868 — ¡Inauguração da linha de bonde de tração animal entre a Rua do Ouvidor e o Jardim Botânico da Lagoa.

1884 — Inauguração da linha férrea para o Corcovado, deslum­brando a vista aérea da Lagoa.

1892 — (regime republicano) — eletrificação da linha de bondes do Largo do Machado ao Jardim Botânico, de investimento inglês, denominada originalmente — «Botanical Garden».

1903 — Presidência de Rodrigues Alves de grande caráter progres­sista. Prefeito Pereira Passos, sanitarismo de Osvaldo Cruz e direção de obras do Engenheiro Paulo Frontín.

1906 — Instalação dos carris urbanos da Light and Power e che­gada dos primeiros automóveis.

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1909 — 1910 •— Serzedelo Correia — Saneamento de Copaca­bana.

1910 — Conde Paulo Frontín — Alargamento da Avenida Atlân­tica e prosseguimento da Avenida Meridional (Ipanema-Leblon) .

1922 — Prefeito Carlos Sampaio — Conclusão da Avenida Nie-meyer. Remodelação da Lagoa Rodrigo de Freitas. Início do desmonte do Morro do Castelo.

1922 — 1926 — Prefeito Alaor Prata. Construção do canal de drenagem e contrôle do nível da Lagoa Rodrigo de Freitas.

Idem, do canal Leblon-Gávea.

1926 — 1930 — Plano Agache — Capítulo Elementos funcionais do Plano Diretor — Fig. 29, texto p. 199.

1926 — 1930 — Obras do Engenheiro Francisco Saturnino Rodri­gues de Brito na Lagoa. Correção das margens. Injeção de água do mar, por comportas, e exclusão das águas doces. Desvio do esgoto de águas pluviais na direção N - O , aber­tura do canal da Avenida Visconde de Albuquerque entre os rochedos da Ponta do Vidigal e da Avenida Nie-meyer. (37)

Propostas do Plano Agache: a) conclusão do sistema viário do contorno da Lagoa. b) sistema de esgoto Ipanema-Leblon. c) desobstrução e limpeza final do fundo da Lagoa. d) aterro da parte denominada Praia Funda mediante desmonte,

em trincheira, (fenda) entre o morro Canta Galo e dos Cabritos. e) saneamento, maior profundidade, eliminação dos bancos de

areia, retificação das margens, maior circulação de água salgada, e vias de abertura a outros bairros.

f) construção de Centro Comercial, Cidade Jardim, parque e pòrto para esportes náuticos. (38)

Ainda não tive tempo suficiente de meditar sobre a história da Lagoa, de 1930 aos dias atuais.

Tenho em preparo um pequeno estudo sobre a Favela da Catacumba visando o aspecto de exemplo de comunidade consistente com profunda diversificação religiosa e, mais destacadamente, com uma das construções mais curiosas do que considero, na temática de meus estudos, o compor­tamento arcaico brasileiro.

Refiro-me àquela já demolida Assembléia de Deus, de caracteres estilísticos ausentes dos figurinos estrangeiros e por isso dificil de se diagnosticar. Talvez menos difícil para os que dela se lembrem, agora quando não mais existe, como se fora uma pintura de Alfredo Volpi.

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Surpreendo-me no risco de parecer romântico. Receio o exem­plo de Monsenhor Pizarro, cronista amoroso da Lagoa, assim como se vê em sua descrição, de 1815: «Farta de belíssimas e puras águas, de que se formam o grande rio da Cabeça e outros menores, cujos despejos recolhe a notável e piscosa lagoa, é seu território repartido em chácaras, sítios e fazendas cultivadas de café, ananazes, diferentes árvores de es­pinho e produtivas de outras frutas, tôdas saborosíssimas, além de legumes vários. Junto à Casa, ou Fábrica de Pólvora, se fundou um jardim, onde felizmente nutrem as árvores e sementes exóticas». (39)

Mas aquele cronista lírico da Lagoa, fluminense nascido em 1753, conselheiro de Dom João VI, arcipreste da Real Capela, deputado da mesa de consciência e ordens, procurador geral de três ordens militares, de tanto amar as belezas de sua terra, teve um merecido fim. «Em 14 de maio de 1830, quando dava um passeio no jardim da Lagoa Rodrigo de Freitas, faleceu de apoplexia, com 77 anos de idade».

Esta é a informação de Rubens Borba de Moraes, prefaciador e anotador de suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro.

Dr. José Vieira Fazenda, outro cronista apaixonado desta cidade, e que também era médico, completa a informação: «Monsenhor Pizarro tendo ido passear no Jardim Botânico, depois de ter jantado, comeu a fruta carambola; isso perturbou-lhe a digestão. Morreu fulminado por um ataque de apoplexia cerebral, em uma das ruas do Jardim da Lagoa».

N O T A S E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 ) v «Cidade do Rh de Janeiro — Extensão — Remodelação •— Embelezamento — Alfred Agache, E. de Groer, W. Palanchon, A Duffieux — p. 199, cap. I l l — Ed. Foyer Brésilien — Paris, 1930.

2) A. J. Melo Morais — «Corografia Histórica, Genealógica e Política do Im-pèrio do Brasil-» — 1858, 1863 — 5 vol. — «Crônica Geral e Minuciosa do Império do Brasi/», Rio — 1879 (v. referida citação em «O Rio de Janeiro — sua historia, monumentos e homens notáveis* usos e curiosidades-», de Moreira de Azevedo, 1' vol., 3' ed. 1969, anotada por Elisio de Oliveira Belchior.

3) Elisio de Oliveira Belchior — «Conquistadores e Povoadores do Rio de Ja-ne-ro», 1965, p. 438.

4) José Vieira Fazenda — «Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro-», Rev. Inst. Hist. Geog Bras. 140, 1921, ps. 341 e seguintes.

5) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — «Memórias Históricas do Rio de Janeiro», INL, Rio, 1945, 1» vol., nota 63 .

6) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit. cap. Il — «Da Instituição da Prelazia, desde o ano 1577».

7) José Vieira Fazenda — op. cit., p. 342.

8) Frei Agostinho de Santa Maria — «Santuário Mariano e História das Imagens Mitagrosas de Nossa Senhora», Tomo X — Lisboa, 1722-1723 — (exemplar existente no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro) .

9) Teodoro Sampaio — «O Tupi na Geografia Nacional», 4ª ed. . Câmara Mu­nicipal de Salvador — 1955, anotada por Frederico G. Edelweiss, p. 277.

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10) Gastão Cruls — «Aparência do Rio de Janeiro'», 2' ed , José Olimpio Edi­tora, Rio, 1952, 2' vol., p. 504 — cap. «As Lagoas».

O autor menciona as diversas lagoas existentes no Rio antigo, na área urbana guanabarina: a de Botafogo, a da Carioca, a de Sto. Antonio da Pavuna, a do Boqueirão, a do Polé, a do Desterro e a da Sentinela, tôdas desaparecidas por su­cessivos aterros resultantes do desenvolvimento urbano. Gastão Cruls conclui: «De tudo isso, nos restam quatro lagoas, tôdas situadas na zona Sul da cidade: a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Gávea e as de Jacarepaguá, Camorim e Marapendi, em Jaca­repaguá. A Lagoa Rodrigo de Freitas, hoje urbanizada e com belas avenidas ao derredor, foi primitivamente conhecida por Lagoa de Sacopenapã, Lagoa de Sebastião Varela e Lagoa de Diogo do Amorim Soares. ( . . . ) Quanto às outras três lagoas, pertencem à zona rural».

Sob critério geológico não se pode incluir a Lagoa de Rodrigo de Freitas entre as do primeiro grupo de dentro da barra da Guanabara. Ela faz parte do conjunto de lagoas do litoral oceânico Sul, da formação das restingas entre os maciços da Tijuca, Gávea e Guaratiba.

No capítulo Copacabana (p. 432) o citado autor comenta:

«Nos primórdios da cidade, a designação Sacopenapã, depois mais restrita à atual Lagoa Rodrigo de Freitas e arredores, abrangia a Praia de Fora, hoje Ipanema, com que se comunicava a mesma lagoa».

11) José Vieira Fazenda — op. cit., p. 344.

12) Moreira Azevedo — op. cit , p. 566, nota XXI .

13) Hélio Viana — «Manuscritos da Biblioteca do Imperador», Folhetim do Jornal do Comércio, Rio, 12-12-1969:

Nº 16 — Carta, em italiano, datada de Turim, 9 de setembro de 1792, de Serra-valle, dirigida ao Cavaleiro Napione, remetendo-lhe, conforme lista anexa, em pacote ã parte, seis amostras de diversos minerais.

O destinatário, Carlos Antônio Napion, em 1807 era Brigadeiro do Exército por­tuguês, vindo para o Brasil com o Principe-Regente D, João. Aqui chegou a Ma-rechal-de-Campo e Tenente-General, tendo sido Inspetor-Geral de Artilharia, membro do Conselho Supremo Militar, Conselheiro de Guerra. Foi incumbido da criação e inspeção da Fábrica Real de Pólvora, no Rio de Janeiro instalado próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas. Aqui faleceu em 1814. (Cf. Laurênio Lago — Brigadeiros e Generais de D. João VI e D. Pedro I no Brasil — Dados Biográficos — 1808-1831, Rio, 1938, pag. 2 1 ) .

14) General Francisco de Paula e Azevedo Ponde — «Tenente-General Carlos Antonio Napkm — Patrono do Quadro de Material Bélico», Rev. Militar Brasileira — Ano L1V — nº> 1 — 1968.

Monografia dedicada ao estudo da personalidade e dos feitos militares do fundador e primeiro diretor da Fábrica de Pólvora do Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa de Rodrigo de Freitas. Deste estudo ressaltam-se as informações do nome original, procedência, formação, atividades pregressas e realizações no Brasil. Cario Antonio Gerolano Maria GaVcanni Napione Di Coconato (Turim, Itália, 1957 Rio de Janeiro, 1814), irmão de Giovanni Francesco Napione, conde e ministro de finanças de Turim. Serviu no Exército Sardo especializando-se em- mineralogia e química, professor e autor de compêndio dessas matérias para o curso dos Oficiais do Labora­tório Metalúrgico do Arsenal de Turim (1786). Foi diretor do Laboratório Químico Metalúrgico e do Museu Mineralògico e membro do Real Conselho de Minas. Con­tratado pelo Ministro Plenipotenciario em Turim, Dom Rodrigo de Souza Coutinho, «para reorganizar o Exército e os Arsenais do Reino de Portugal», no posto de Te-nente-Coronel em 1800; nomeado em 1802 para a direção das Fábricas de Refino do Salitre e da Pólvora e no ano seguinte Vogai na Inspetoria de Artilharia. Integrou a comitiva de 10.000 pessoas da transladação da Córte de D. João para o Rio de

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Janeiro onde foi logo promovido ão pósto de Marechal de Campo, galgando em 1810 o mais elevado pósto no Brasil, de Tenente-General. Fundador e diretor da «Real Fábrica de Pólvora da Lagoa de Rodrigo de Freitas», em 13 de maio de 1808. Presi­dente da Junta Militar encarregada de dirigir o ensino da recém-criada Academia Real Militar, em 1811. Por sua excepcional capacidade administrativa, como engenheiro, químico, professor e militar, e ainda considerando-se sua numerosa obra escrita de mineralogista desde 1784, Napion pode ser reconhecido um dos mais ilustres fatores de civilização trazidos por D. João ao Brasil. Faleceu em 27-VI-1814 e foi sepultado no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro . O Decreto n° 59.363, de 12-8-1966 o instituiu como Patrono do Quadro de Material Bélico, em decorrência do estudo biográfico que lhe dedicou Francisco de Paula e Azevedo Ponde.

15) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit , vol. VII, p. 108.

16) id. ib., vol. VII, p. 92 .

17) Balthazar da Silva Lisboa — op . cit . , vol . , I, p. 166.

18) id. ib., vol. I, p. 197.

19) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit , cap. VIII, vol. VII , pp. 101-102.

20) id. ib., vol. VII, p. 267.

21) José Vieira Fazenda — op. cit , vol. I, pp. 42-43.

22) v. Gastão Cruls — op. cit., p. 606: «Por esse tempo (1809-1821), no Horto Real, além da cultura do chá se fazia bons chapéus do Chile, com as folhas da bom-bonaça, Cadudovica palmata, também aclimada entre nós e reproduzida abundante­mente.»

23) Balthazar da Silva Lisboa — op. cit., Tomo VII, p. 189.

24) Sacramento B!a|ke — «Dicionário Bibliográfico Brasileiro», 5' vol., ed. Cons. Fed. Cultura, 1970, p. 203.

25) id. ib., 2 ' vol., p. 143.

26) id. ib., 3 ' vol., p. 359.

27) Antonio Pacheco Leão — nasceu no Rio de Janeiro em 11 de abril de 1872. Formou-se em Medicina em 1896. Em 1900 foi nomeado Delegado de Saúde e depois foi designado pelo Dr. Oswaldo Cruz diretor da Policia Sanitària para fazer parte do Serviço dos focos de febre amarela, como Inspetor do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela. Em 1911 foi nomeado pelo Presidente Hermes da Fonseca para exercer, em comissão, o lugar de Diretor Geral da Saúde Pública. Em 1922 foi feito Membro do Conselho Superior da Sociedade Nacional de Agricultura. (Nessa ocasião esteve no Amazonas com Carlos Chagas e lá se interessou muito pela flora brasileira) . Em 1914 o Presidente da República nomeia Pacheco Leão para exercer o cargo de Diretor e Chefe da Seção Botânica do Jardim Botânico. Em 1916 êle foi feito sócio efetivo da Sociedade Brasileira de Ciências. Em 1925 o então Presidente, Afonso Pena, nomeou-o Catedrático de Biologia Geral e Parasitologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (cargo que êle exercia há muitos anos como professor substituto) — e também nomeou-o Vice-Diretor da referida Faculdade (14-4-1925). Em 1930 (25-10), Pacheco Leão pede exoneração do cargo de vice-diretor, Pacheco Leão foi diretor do Jardim Botânico desde 12 de novembro de 1914 até a sua morte em 21 de julho de 1931.

Nota: informações biográficas do Professor Antonio Pacheco Leão organizadas e cedidas por cortesia de Rosalina Leão.

28) Sobre a história da construção do hipódromo do Jóquei Clube, ver:

a) Villela dos Santos — «História do Jóquei Clube» — (1868-1922) — Rio, 1922.

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b) Mario de Azevedo Ribeiro — «História da Construção do Hipódromo Brasileiro», (1920-1926), ed. particular do Jóquei Clube, Rio.

c) Carlos Sampaio — «A Lagoa Rodrigo de Freitas», (impresso em Paris, 24-7-1922, quando prefeito do Distrito Federal) .

d) Regnaldo Lloyd, L. T. Delaney, Joaquim Eulálio e outros — «Im­pressões do Brasil no SécuIo Vinte», Londres, 1913, pp. 1.079, ver cap. «sport», pp. 161-166, (precioso reg'stro histórico do furf no Brasil, de 1849 a 1913).

29) Clarival do Prado Valladares — «O Rio de Janeiro da Belle Epoque» in «A Cigarra», Rio, março 1964, n" 3.

30) Clarival do Prado Valladares — «uma Ilha para a Lagoa», in «A Cigarra», junho 1963. nº 6.

31) Walter Gropius — «Apoio en Ia Democracia», Monte Avila, Editores, Ca­racas — Venezuela, 1968.

32) Peter Blaíke — «God's Own Junkyard», (The planned deterioration of America's landscape) —• Holt, Rinehart and Winston — N. York — 1964.

33) Roberto Burle Marx — «Jardim e Ecologìa», Rev. Brasileira de Cultura, CFC — M E C — n ' 1, 1969.

34) Roberto Burle Marx — «Paisagismo e problemas urbanos». Rev. Cultura — M E C — Rio, Ano 4, nº 32 — 1970.

35) v. Berta Chnaiderman Leitchic — «O Problema dá Lagoa Rodrigo de Fre.tas», (relatório apresentado ao Secretano Geral de Viação e Obras da Guana­bara) — pub. na Rev. Municipal de Engenharia — 1954, n° 4, Rio.

36) Clarival do Prado Valladares — «Preservação da Paisagem e Integração Social», apresentado no debate «Defesa da Paisagem», IAB — Clube de Engenharia, Rio de Janeiro, set. 1970 (organizado pelo arquiteto Jorge Moreira Machado) .

37) Alfred Agache — op. cit.

38) id. ib.

39) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. clt., Livro V cap. Ill , p. 238.

40) v. Gastão Cruls — op. cit., pp. 605-608, textos das legendas

XXIII — «A Vitória-régia num dos lagos do Jardim Botánico e

XXVII — «Gávea, Ipanema e Leblon, vistos do Corcovado».

41) J. Fernando Carneiro — «Catolicismo — Revolução e Reação» — Liv. Agir Editora, Rio, 1947.

V. cap. «Guanabara» pp. 103-106. . .. «será preciso também defendermos a lagoa Rodrigo de Freitas. Está desaparecendo a lagoa (1947) diante de cujo cenário se extasiava aquele canadense que tanto amou a nossa terra e que foi autor de um notável trabalho, de uma obra básica sobre geologia e geografia física do Brasil: Charles Frederic Har t» .

Fernando Carneiro temendo naquela data o que ocorreria à lagoa, lembra o vati­cinio amargo de Machado de Ass's, no fim do século passado, através da boca de Aires em Esaù e Jacob, a propòsito da enseada do Botafogo: . .. «A enseado nao difere de sì. Talvez os homens venham, algum dia a atulhá-la de terra e pedras para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corridas de cavalo. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morremos antes.»

42) J. Fernando Carneiro — «Conversa Amarga» — Org. Simões Editora, Rio, 1958, pp. 51-63 — cap. «A Cidade que foi maravilhosa».

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Curioso histórico das tentativas de administradores da Guanabara desejosos de aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas, desde o Império até a data da crônica de F. Carneiro publicada no Diário de Noticias de 2-12-1956.

ICONOGRAFIA (PARCIAL) DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS

(Anotações à margem de catálogos de museus, Bienais de São Paulo, exposições, indicações bibliográficas e coleções pr ivadas) .

I) Nicolas Antoine Taunay — (Paris 1755-1830) — «A Lagoa Rodrigo de Freitas» — painel, oval 10x08 — reg. nº 227. Museu de Arte Assis Chateaubriand,

S. P . II) C. V. Maranhão — desenho, sobre papel, preto e branco, datado de 27

de setembro de 1812 — Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da Tijuca, Rio de Janeiro.

III) Conte de Clarac — (1777-1847) — desenho sobre papel, datado de 1814 Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da Tijuca — Rio de

Janeiro. IV) «Lagoa Rodrigo de Freitas» — óleo sobre tela, assinado (ilegível), datado

de 1825 — Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da Tijuca, Rio de Janeiro.

V) Maria Graham (1785-1842) — «Lagoa Rodrigo de Freitas» (desenho) da­tado de 21 de dezembro de 1821, Col. Museu Britânico, rep. in «Diário de uma viagem ao Brasil...» Companhia Editora Nac'onal, S. P . , 1956 da edição original inglesa, Londres — 1824.

Ver Gastão Cruls, «Aparência do Rio de Janeiro», vol. 2, p. 608, 1952.

VI) Johann Moritz Rugendas (1802-1858) — «Praia Rodrigues» — lit. V. B. Brodtmann — Col. Gilberto Chateaubriand — Rio de Janeiro (sep. «Viagem Pito­resca através do Brasi!», J. M. Rugendas, Liv. Martins Ed. São Paulo, 1967).

VII) Henri Nicolas Vinet (1817-1876) — «Clareira na [loresfa em Cantagalo», óleo sobre tela, assinado, 1865 — Col. Guilherme Guinle, Rio de Janeiro.

VIII) Nicolau Facchinetti (1824-1900) — «Lagoa Rodrigo de Freitas», óleo sobre tela, 0,25 x 0,66, as«. s/d, adq. em 1885.

IX) Luiz Graner y Arrufi (1863-1929) — «Nascer do Sol na Lagoa» — óleo sobre tela, 1,60 x 3,00 c. 1921, v. cat. exposição «Aspecíos do Rio», MNBA, 1965.

X) Oswaldo Gocldi (1895-1961) —• «Lagoa Rodrigo de Freitas» — xilogravura, 0,22x0,28 — col. Gunter Pappe.

XI) Luis Frenandes de Almeida Junior (1894-1970) — «Lagoa Rodrigo de Freitas» (Dois Irmãos e Pedra da Gávea) 1931, óleo sobre tela, 0,61x1.06 — MNBA, nº inv. 44.

XII) V. Gilberto Ferrez — «A M u i t o Leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro» — ed. Raymundo Castro Maya, Paris, 1965.

XIII) V. «¡Cidades e Arredores do Rio de Janeiro, A Jóia do Brasil» — Kosmos Editora, Rio, s .d . _ Fotos 35, 112, 113, de Malta, Rosenfeld e Whitmore.

XIV) Johann Moritz Rugendas — «Lagoa! das Tretas» — Tretas Lagoon» — estampa 3/15 — «Viagem Pitoresca através do Brasil», Liv. Martins Ed., Sao Paulo. 1967.

Sem dúvida trata-se de corruptela da Lagoa Rodrigo de Freitas, representada à

margem da Praia Funda em movimentada cena de embarque em botes de travessia de senhores que chegam em carruagem e montarías e vários escravos de companhia.

XV) J. M. Rugendas — op. cit., estampa 3/25 — «Plantação de Chá por Chi­neses». Cena do cultivo de chá no «Jardim das Plantas» (depois Jardim Botanico)

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com o trabalho bracai de escravos negros, assistência técnica de chineses, e super­visão patronal de brancos encartolados. Ao fundo, aparece a lagoa emoldurada de penhascos e ponteada de velas de barcos. No texto, informa Rugendas: «É, prin­cipalmente ao Conde de Linhares que se devem as tentativas feitas até agora em prol da cultura do chá. Há alguns anos fêz êle vir quantidade de mudas, alguns chineses para tratá-las e formou uma plantação atrás do Corcovado, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Jardim das Plantas. Era de seis mil o número de arbustos em 1825. Plantam-se em fileiras, a três pés de distância uns dos outros, com ótimos resultados» ( . . . ) «Entretanto afirma-se com certa razão que este chá não tem o gosto requintado e aromático das espécies de primeira qualidade da China; ao contrário, tem êle um gosto acre de terra».

Sobre o número de chineses estabelecidos perto da Lagoa Rodrigo de Freitas eram cerca de trezentos e na suspeita de Rugendas, baseado em opinião de conhece­dores . . . «não se teve, tampouco, muito cuidado na escolha dos chineses importados para essa cultura», inexperientes no cultivo do chá, pois muitos daqueles emigrantes da China logo se fizeram em mascates e cozinheiros.. .

Noutro trecho Rugendas enfatiza a paisagem da lagoa num depoimento que de­veria ser considerado pelos atuais aterradores: . . . «Do pé deste rochedo (refere-se ã Pedra da Gávea) parte um caminho, em muitos lugares dificil, por causa dos areões, profundos, mas, que compensa tal inconveniente pelos panoramas magníficos que oferece, de um lado sobre o mar e de outro sobre o Corcovado e a montanha oposta chamada de Dois Irmãos. Passando perto do Jardim Botânico, esse caminho conduz da Lagoa Rodrigo de Freitas ao Botafogo, onde as belezas desse pais encan­tador se desenvolvem com maior variedade ainda», (p. 20, op. c i t . ) .

X V I ) «Pian de la Baie de Rio de Janeiro» — in Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil* de Jean Baptiste Debret, Liv. Martins Editora, São Paulo, 2* ed.

O mapa indica, em continuação à Ponta do Leme e de «Nossa Senhora de Copa-Cabana» a «plage Freitas» em tôda a área que corresponde a Ipanema e Leblon. limi­tada ao Sul pelo «Cap do Irmão» (corruptela de «Dois Irmãos») .

A estampa 54 (terceira da «Suite de Panorama de la Baie de Rio de Janeiro» tomada do alto do Corcovado) mostra a topografia aérea da lagoa e do canal aberto para o mar.

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CULTURA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO

IRMÃO JOSÉ OTÃO

O DRAMA DE NOSSOS DIAS

O MUNDO de hoje vive problemas nunca dantes imaginados. Há uma preocupação pela paz; mas, a turbulência existe em vários

pontos. São os dramas da humanidade.

Sempre tem havido dramas no mundos. Eles não são o privilégio da época atual. Não vivemos na era da dramagenia. Mas existe um DRAMA. O drama de nossos dias é o desnível entre países ricos e países pobres, entre nações que têm e nações que não têm. Essa gi­gantesca disparidade «esse insulto atirado à face da humanidade», con­forme as palavras de Paulo VI, é o problema mais urgente que enfrenta o mundo de hoje.

O drama de nossos dias é que os miseráveis do mundo tomam consciência da disparidade entre sua sorte e a nossa porque o mundo se unifica sob nossos olhos. «O mundo — na feliz expressão do Cardeal Eugênio Sales — é uma casa de vidro», e no dizer de Mc Luhan «é uma aldeia global»: Tudo é logo conhecido por todos.

Por sua vez dizia o falecido presidente Nehru aludindo ao mesmo problema: «A fome e a miséria não são novas. O que é novo, na índia, é a consciência da fome e da miséria».

O drama de nossos dias é que os países ricos são, na grande maioria, países cristãos e os países pobres, que geralmente não são cristãos, irão julgar a cristandade de acordo com nossa atitude neste assunto, atitude que para eles é assunto de vida ou de morte.

«Não é exagero afirmar que um desequilíbrio entre os povos é mais perigoso do que a guerra fria, porque é guerra permanente, é mais explosivo que a bomba atômica, mais escandaloso, em certo sentido, do que a divisão dos cristãos entre si» afirma o cardeal Suenens.

Diante do problema da miséria do terceiro-mundo sob suas diversas formas, a Igreja tem um imenso papel a desempenhar: o DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA CRISTÃ PARA O DEVER DA AUTÊNTICA SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL.

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A Universidade, em geral, e a Universidade Católica, em particular, é a cátedra perene donde a Igreja, através de seus pensadores, anuncia o alvorecer desse sentimento internacional. Nessa cátedra precisamos preparar uma magna-carta da solidariedade internacional, uma nova teologia adaptada a cada continente e a cada país, uma nova ética do desenvolvimento, uma nova teologia da tecnologia, «um NÔvo j u s GENTIUM» de que falou Paulo VI em Genebra, com a finalidade de «DOMAR OS DIREITOS DOS POVOS FORTES E FAVORECER O DESENVOLVIMENTO DOS POVOS FRACOS».

Comentando o pronunciamento do Papa, assim se exprime o jurista Haroldo Valadão: «Esse ideal de um novíssimo Direito Internacional do Desenvolvimento e. mais ainda da integração, acha-se hoje na crista da onda do pensamento jurídico e o vimos defendendo desde 1961, com a socialização do Direito Internacional.» Nota ainda o professor Valadão que «a América Latina sempre foi pioneira do progresso do Direito Internacional. E não podemos perder nosso posto agora».

O Concilio Ecumênico Vaticano II faia que está surgindo no mundo de hoje «um novo humanismo caracterizado pela responsabilidade do homem perante seus irmãos e a História» (GS, nº 55) .

O Brasil, através da Universidade, não pode omitir-se, mas, deve estar presente nesta encruzilhada da História. Não pode esquivar-se ao dever de presença ativa no problema do desenvolvimento integral e harmonioso do homem, mediante o emprego das técnicas humanas e do seu poder intelectual em benefício de todos os povos.

1. O DESENVOLVIMENTO

Na encíclica Populorum Progressio encontra-se o pensamento do Papa concernente ao Desenvolvimento.

«Nos desígnios de Deus — ensina o Pontífice — cada homem é chamado a desenvolver-se, porque tôda sua vida é crescimento, isto é, desenvolvimento.»

O desenvolvimento é. em resumo «a passagem de condições menos humanas para condições mais humanas». O pensamento do Papa é claro. Mas êle teme que a humanidade não o compreenda suficientemente e pràticamente. Por isso êle mesmo explicita o conceito de «condições menos humanas e condições mais humanas», afirmando:

São condições menos humanas:

— as carências materiais dos que são privados do mínimo vital;

— as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo;

— as estruturas opressivas, quer provenham de abusos da posse ou do poder, da exploração dos trabalhadores ou da injustiça das transações,

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E são condições mais humanas:

— a passagem da miséria à posse do necessário; — a vitória sobre os flagelos sociais, pragas, s ecas . . . ; — a aquisição generalizada da cultura; — a consideração crescente da dignidade de todos os homens; — a orientação para o espírito de pobreza contentando-se com o

crescimento médio; — a cooperação no bem comum: — a vontade de paz e de convivência pacífica com todos, — o reconhecimento pelos homens dos valores supremos e sobre­

tudo de Deus que é a origem de todos eles: — a unidade na caridade que chama todos os homens a viverem

na fraternidade a vida de Deus.

Em carta ao Secretário-Geral da O N U , em 26 de maio de 1966, Paulo VI volta a conceituar o Desenvolvimento, pontificando: «Desen­volvimento é a promoção harmoniosa do homem em sua INTEGRIDADE para a satisfação da tríplice fome de sua natureza física, intelectual e espiritual».

Razão dobrada tinha um pensador ao afirmar que o desenvolvimento «é a realização do homem em tôda sua dimensão humana e em tôda sua dimensão divina».

Sem o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens não haverá desenvolvimento verdadeiro, porque, «enquanto há um escravo, todos somos escravos», afirma o saudoso Presidente Kennedy.

Mas o desenvolvimento não é um firn pré-fabricado, um traje que a pessoa enverga de vez. Êle não se faz a partir de fora, mas deve ter seu ponto de apoio no interior. Êle resulta, necessariamente, não de pura assistência mas de cooperação. Por isso, no desenvolvimento é preciso afastar o PATERNALISMO, que é a própria negação do desen­volvimento autêntico. No ponto de partida de qualquer esforço de auxílio mútuo é preciso gravar esta palavra de Lavelle: «O MAIOR DOM

QUE SE PODE FAZER AOS OUTROS NÃO CONSISTE EM COMUNICAR-LHES NOSSA RIQUEZA MAS EM REVELAR-LHES A SUA» .

«A primeira tarefa dos responsáveis pelo desenvolvimento consiste em ajudar os povos a se erguerem em seus próprios pés, dando-lhes uma base para sua auto-expressão como criaturas humanas, proporcionan-do-lhes condições para a eclosão da inteligência e o despertar da liber­dade, levando-os a descobrir a existência de seus semelhantes e a apren­der a integrar e a deixar-se integrar, ajudando a comunidade nascente a ultrapassar o egoísmo, a mobilizar iniciativas e a exigir o respeito e a cooperação das autoridades» (21.8.62)

A Universidade em geral e Católica em particular, como farol aceso da Igreja no seio da humanidade, tem sempre procurado acender

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no mundo o sentido da evolução social humana e cristã. A meta que ela pretende atingir é a realização da plenitude do homem, ser livre e consciente, numa progressiva liberação de mil servidões para que possa crescer na fecundidade da liberdade fundamental, isto é, na ca­pacidade de libertar-se a si mesmo para doar-se aos demais.

Há hoje no mundo todo uma ânsia generalizada para o desen­volvimento. Os governos procuram unir esforços neste sentido, depen­dendo o êxito da sua capacidade catalizadora.

A Igreja Católica por sua vez sempre propugnou pela promoção humana. Aliás, no confronto de tôdas as instituições humanas, técnicas. humanísticas, sociais, espirituais é aquela que oferece ao homem o ideal

mais elevado, o ideal de alcançar tôdas as possibilidades da TEMPO­RALIDADE e tôdas as espeianças da ETERNIDADE. E isto desde sua insti­tuição. Provam-no, à saciedade, o exemplo de Jesus Cristo trabalhando pessoalmente, curando doentes e dando de comer aos famintos, orde­nando aos seus seguidores conquistassem todo o universo, e aspirassem ao desenvolvimento do próprio Pai celeste: «Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito».

Provam-no os missionários, construtores não só de Igrejas mas também de hospitais, escolas e universidades, ensinando aos nativos o aproveitamento dos recursos naturais e protegendo-os contra a cobiça dos gananciosos.

Em muitas regiões foram mesmo os missionários contados entre os pioneiros do progresso material e do desenvolvimento cultural.

A História da América Latina é outro comprovante da iniciativa da Igreja em prol do desenvolvimento humano. Cada país tem longa enumeração de fatos comprovadores da tese. No Brasil, a SUDENE, para não evocar senão o último dos inequívocos empreendimentos pela promoção do homem, a SUDENE nasceu em 1954, em Campina Grande, por iniciativa do episcopado nordestino.

Embora a finalidade da Igreja seja precipuamente de ordem espi­ritual, ela não descura da ordem temporal para a qual fornece a visão global do homem e da humanidade. Assim ela ensina através da Cá­tedra Universitária que «a natureza humana tem o direito de participar dos bens da cultura, dos bens materiais e do banquete social» (João X X I I I , -PACEM IN TERRIS).

Os bispos do Nordeste brasileiro, por sua vez, também ensinam que «não pode haver desenvolvimento ou promoção onde não se coloca o homem em primeiro lugar», porque, invocando o Concilio, «a pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de tôdas as instituições sociais» (GS nº 2 5 ) .

Não há, pois, desenvolvimento efetivo, real e seguro sem a pro­moção humana. O progresso puramente material é apenas uma das condições ou uma das razões do desenvolvimento pròpriamente dito.

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O desenvolvimento é buscado apaixonadamente não só pelos povos desenvolvidos que querem melhorá-lo e expandi-lo sempre mais, mas igualmente pelos povos sub-desenvolvidos e pelo chamado terceiro mundo.

Houve um tempo em que o saber técnico era mais ou menos secreto por ser monopólio do branco. Hoje os amarelos, os pretos e os índios o conhecem. Hoje a técnica é patrimônio e está a serviço da humani­dade. A tese de Spengler sobre a decadência do Ocidente esboroa-se como tantas profecias emocionais e míopes diante do fato de as Uni­versidades e as Empresas estarem construindo uma nova era em que a Ciência e a Tecnologia são, efetivamente, instrumentos de enriqueci­mento coletivo de poder.

A linguagem de hoje é algo diferente da do passado. A Ciência e Tecnologia constituem o instrumento fundamental de desenvolvimento e de poder. A cultura científica, o domínio da tecnologia e da adminis­tração científica, como elementos essenciais à aceleração do desenvolvi­mento, estão sendo implantados em todos os países subdesenvolvidos como meio de queimar as etapas do atraso, procurando reduzir o tão discutido descompasso de ciência e de técnica. Para tanto, tôdas as nações em desenvolvimento enviam estudantes para aprender no es­trangeiro, atraem professores, especialistas e técnicos de nível superior para incorporá-los à Universidade e à Empresa. Num esforço mais agressivo ainda, atraem e apoiam firmas estrangeiras para que contri­buam com a tecnologia avançada para o estímulo das empresas nacionais.

Em matéria de incorporação de cultura e de tecnologia não há mais lugar para o jacobinismo que conduziria a sociedade a fechar-se, a este­rilizar-se e a se estagnar.

Nenhum país em desenvolvimento e sobretudo subdesenvolvido reduzirá o fosso científico e tecnológico que o separa dos povos desen­volvidos se não se apropriar das lições da metodologia e das con­quistas por eles realizadas.

Essa é pròpriamente uma tarefa da Universidade e dos Institutos de Pesquisa: deflagar a batalha pelo desenvolvimento.

Foi assim que procedeu a Universidade no passado e mesmo até os nossos dias? — Não. Todos o sabem e todos o sentem. Decorre dai a reestruturação universitária em curso no mundo inteiro.

A Universidade passou por uma crise. Não só a nossa. O fato é geral no mundo. Mas se em tôda crise há um aspecto de morte de estruturas arcaizadas e de símbolos obsoletos nela há também um aspecto de ressurreição e de vida. A afirmação vem confirmada pelo Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho da Reforma Universi­tária Brasileira que assim se exprime traçando o perfil da Universidade tradicional:

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«A Universidade se expandiu, mas em seu cerne permanece a mesma estrutura anacrônica a entravar o processo de desenvolvimento e os germes de inovação. Se, apesar disso, se fêz pesquisa científica em certos setores, e se a Universidade demonstrou alguma capacidade criadora em determinados ramos da tecnologia, podemos dizer que o sistema, como um todo, não está aparelhado para cultivar a investigação científica e tecnológica. Por outro lado, mantendo a rigidez de seus quadros e as formas acadêmicas tradicionais, faltou-lhe a flexibilidade

necessária para oferecer produto universitário amplamente diversificado e capaz de satisfazer às solicitações de um mercado de trabalho que se diferencia cada vez mais.

«A Universidade em seu conjunto, revelou-se despreparada para acompanhar o extraordinário progresso da ciência moderna, inadequada para criar o know-how indispensável à expansão e à indústria nacional e, enfim desajustada sócio-culturalmente porque não se identificou ao tempo social da mudança que caracteriza a realidade brasileira, poderia dizer, a realidade universal».

O mesmo Grupo de Trabalho, tentando gizar o perfil da Univer­sidade de hoje, assim a caracteriza: «A Universidade que se pretende reformar tem que ser bàsicamente um instrumento autêntico de acumu­lação de cultura, um centro de formação de cientistas, técnicos, artistas, filósofos. Deve ser UMA FRONTEIRA QUE AVANÇA sobre o desconhecido, um núcleo de criação, de vibração intelectual, um cento de desenvolvi­mento de conhecimentos, um núcleo de criação imaginativa e de cultura. Na palavra de W H I T E H E A D : «A UNIVERSIDADE É IMAGINATIVA OU NÃO É NADA, PELO MENOS NADA DE ÚTIL».. («A Educação que nos convém»).

A Universidade renovada que buscamos, só o será se exercer em quantidade e qualidade a sua complexa missão.

A Universidade será instrumento eficiente de educação, irradiação da cultura e do desenvolvimento se possuir elevado grau de produti­vidade, quer em termos quantitativos quer qualitativos. A Universidade será tanto mais útil ao meio social a que serve quanto maior fôr o número de jovens que educa, limitando-se esse número pela capacidade do mercado e pelas exigências de especialização.

Os dados estatísticos revelam que o Brasil possui 1 (um) acadê­mico sobre 300 habitantes. Na França, tal situação é de um para 85; na Finlândia, de 1 para 100 e nos Estadtos Unidos, 1 para 45.

Na América Latina, em geral, a proporção não é superior a 1 acadêmico para 100 habitantes.

O número reduzido de universitários da América Latina explica o descompasso quantitativo e qualitativo de que se ressente o continente tanto no atendimento das necessidades populacionais quanto no da pes­quisa científica e tecnológica.

Pela constatação universal, creio que o desenvolvimento de um país está em estreita relação com a quantidade e a qualidade de universitários

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e de pesquisadores científicos e tecnológicos que possui. Sabe-se que os países, cuja média de universitários ultrapassam os 10% da população etária universitária, estão classificados entre os DESENVOLVIDOS. E aqueles, cuja média universitária não alcance essa percenatgem, gravi­tam ainda na órbita dos SUBDESENVOLVIDOS.

Diante dessa constatação, os responsáveis pelo desenvolvimento dos povos podem antever a chave do desenvolvimento. Basta que Governos, Empresas e Universidades se unam para que o respectivo País ultra­passe o percentual universitário indispensável para ingressar na área dos Países desenvolvidos.

São imprevisíveis os avanços do mundo tecnológico nas próximas décadas. Em seu livro «Perfil do Futuro» Antbur C. Clarke apresenta um quadro lisongeiro daquilo que o porvir reserva à humanidade.

Tudo, porém, será fruto do trabalho e do esforço da humanidade solidária.

2. A TECNOLOGIA

A tecnologia é um dos instrumentos do homem para acelerar o de­senvolvimento. Mas todo instrumento é manejado ou guiado pelo es­pírito. Por isso, a tecnologia é uma espécie de encarnação do espírito humano para manipular as forças do mundo e dirigi-las para as metas, também intencionalizadas pelo espírito. Daí poder dizer-se que tôda tecnologia nova tende a criar novo ambiente. Desse ponto de vista o mundo é uma recriação permanente pois que as novas técnicas são de todos os momentos. A invenção da escrita e a utilização do papiro criaram o ambiente social dentro do qual pensamos. O estribo e a roda criaram ambientes de grande importância em seu tempo de dominação. Os ambientes tecnológicos não são meros recipientes passivos que contêm dentro de si o homem, mas processos ativos que remodelam os povos e também as outras tecnologias, por uma reação em cadeia. Em nosso tempo, o brusco salto da tecnologia mecânica para a dos circuitos elétricos representa um dos maiores avanços de todos os tempos. A imprensa criou um novo ambiente totalmente inesperado, o grande pú­blico, o público planetário.

Os exemplos de tecnologias — que poderíamos multiplicar ao infi­nito — provocam reações em cadeia em todos os sentidos e em velo­cidade cada vez maior entre as diversas ciências e sistemas sócio-eco­nômicos e até as mais profundas reações de cada indivíduo, originando uma verdadeira MUTAÇÃO HUMANA apenas comparável às mutações de ordem biológica sofridas pelas diversas espécies no decorrer de sua evolução multi-milenar.

O Concilio Ecumênico Vaticano II deu-se conta da mutação real que está atravessando o mundo quando afirma: «O espírito científico

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produz um sistema cultural e MODOS DE PENSAMENTO diferentes dos anteriores. A TÉCNICA progride a ponto de TRANSFORMAR a face da terra e tenta conquistar o espaço interplanetário. A inteligência hu­mana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o TEMPO. Sobre o passado pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro pela prospectiva e Planificação. . . (GS, n? 5) .

«Tôda TECNOLOGIA é como que a extensão do corpo humano ou de alguma de suas partes», diz Mc LUHAN. A evolução das armas, atômica. O dinheiro é um modo de ESTOCAR trabalho; a roda é exten­são dos pés; o telefone, o rádio, a TV, o prolongamento do sistema nervoso, do pensamento, etc.

Mas a extensão do ser humano, do olho, das mãos ou do espírito, afeta todo seu complexo psíquico, social, religioso. Tôda invenção é uma extensão ou um superestímulo a um dos sentidos ou a uma das faculdades. um exemplo estupendo entre muitos: o desenvolvimento da palavra escrita possibilita a organização visual da vida, tornando pos­sível ao homem a liberação do INDIVIDUALISMO, da INTROSPECÇÃO com tôdas suas conseqüências sociais. A palavra ouvida, falada, é envol­vente, desperta emoções e atitudes de vida. Liga, de uma forma ou de outra, os interlocutores e mesmo os solidariza, podendo unificar a humanidade ou separá-la sempre mais pelas divergências pessoais.

O fato cósmico de hoje é que a humanidade é bombardeada cons­tantemente por novas tecnologias, novas formas de percepção, novas formas de pensamento, novas formas de ação. Essa mutação humana nada mais é do que a conquista de um nível de SER provocado por este fenômeno completamente novo que está nos marcando a todos.

Disso se pode concluir que o processo tecnológico está desenca­deado. Êle é cego e irreversível. Onde levará a humanidade?

Apenas uma reforma em profundidade no ser humano, reforma de tôdas as estruturas mentais, sociais, econômicas, religiosas, poderá fazer face a esse desafio. O problema que se nos coloca de ora em diante, tanto para os povos desenvolvidos como para os subdesenvol­vidos, é o seguinte: ou se deflagra a REVOLUÇÃO DO HOMEM ou as con­tradição da dominação continuarão até ficarem intoleráveis. Ou o homem readquire o sentido exato e pleno da vida ou as opressões se tornarão generalizadas. Então duas alternativas serão possíveis em nosso horizonte: a destruição da espécie por um cataclisma global ou a divisão da humanidade em duas: a pós-humanidade e a sub-huma-nidade.

A tecnologia, porém, não é e não pode ser estática. Deve atua­lizar-se continuamente.

Por isso não basta a multiplicação pura e simples dos universitários para garantir a entrada e a permanência na área do desenvolvimento por parte dos países subdesenvolvidos. A entrada pode ser conseguida através do esforço de todos os responsáveis pelo desenvolvimento. Mas

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a permanência no desenvolvimento requer um novo esforço, continuado, sistemático sempre mais eficaz. É o aspecto novo da revolução da edu­cação que vai pelo mundo. É a idéia da educação permanente. Ela não significa apenas a criação de cursos de extensão universitária, ou cursos que o adulto deva continuar a freqüentar na Universidade du­rante tôda a vida, como discente regular, mas significa também o pos­sibilitar-se ao adulto retomar estudos interrompidos ou prosseguir além de um curso inicial limitado, ou ainda, poder atualizar-se de contínuo em cursos universitários, em carreiras de curta duração, em ciclos de estudos que vêm melhorar sua profissão e sua atuação. Não são cursos de formação de doutores ou de professores, mas cursos que visam à ampliação e aprofundamento de uma educação começada. Louis Ar­mand, no livro «Plaidoyer pour l'avenir» chama de RECYCLAGE a èsse processo de educação contínua que permite aos homens aprenderem, no decurso de sua carreira não escolar, dez vêzes mais do que apren­deram nos bancos da escola.

A educação permanente, na forma de especialização e de atuali­zação, é condição sine qua non de nao ficar completamente obsoleto em face das conquistas cientificas e tecnológicas modernas.

O segredo da superioridade norte-americana em relação a todos os países do mundo, na opinião irrefutável de Servan-Schreiber, autor do conhecido best-seller «DESAFIO AMERICANO», está precisamente na organização sistemática da EDUCAÇÃO PERMANENTE e da contínua atua­lização e renovação da tecnologia.

Para que a tecnologia seja sempre mais eficaz faz-se mister me­lhorá-la e difundi-la, estendendo seus princípios a um número sempre maior de interessados.

Cabe aqui uma referência ao problema de acumulação e utilização da fabulosa massa de informações técnicas e científicas que é publicada constantemente. Cabe ainda uma referência à cibernética como ciência dos processos de informação.

Se cada empresa procura manter-se a par dos progressos de seu setor, a Universidade deve também participar da tarefa de reunir, clas­sificar e ter à mão e divulgar a parte mais essencial da massa de dados que vem sendo divulgada.

Richard Kaufman, em «Strategies of Atlantic Technological De­velopment», mostra que tal disseminação deve ser considerada tão im­portante para reduzir o «technological gap» quanto ao avanço da própria tecnologia.

Segundo estatísticas, editam-se cerca de 30.000 publicações técnicas e científicas no mundo e èsse número cresce de 1.500 anualmente.

Lembra ainda Kaufman que parte da liderança tecnológica dos Estados Unidos é motivada pelo seu superior equipamento de manusear informações. Computadores de todos os níveis de sofisticação são usados

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pelas empresas, pelas comunidades universitárias e pelos governos. Lá existem cérca de 500 computadores de resumo e catalogação de Ciência e Tecnologia, enquanto que no resto do mundo èsse nùmero deve sêr de 800 a 1.000. O «Chemical Abstracts Service», da American Che­mical Society, é o maior centro de serviço de informação do mundo relativo a UMA ÚNICA DISCIPLINA, empregando um STAFF permanente de cérca de 1.000 técnicos, apoiado por 3.000 voluntários na elabora­ção de resumos e 100 editores de seções especializadas.

Que existe de tudo isto na América Latina?

Que podem ou devem fazer as Universidades para entrar nessa corrida para o desenvolvimento?

como conseqüência destas considerações compreende-se a neces­sidade de garantir a tecnologia, viva e atualizada, por um sistema ou plano de pesquisa.

A Universidade como centro de pesquisa e de inovação tecnológica é talvez o aspecto que mais diretamente interessa aos empresários. Aquêles que têm a responsabilidade de planejar, construir e operar os núcleos de produção de bens e de serviços de uma economia moderna, sabem que um dos maiores riscos da empresa de certa importância está na obsolência de sua tecnologia e na inadequadação de sua estrutura administrativa, tanto quanto na fisionomia de seus balanços financeiros. A empresa espera que a Universidade lhe ofereça pessoal de nível su­perior de educação atualizada. Para isto, esta deve estar sempre em processo de atualização da cultura e da tecnologia. Essa atualização se fará desde que os mestres compreendam que, na palavra de Fourastié, «não podemos ensinar hoje o que nos ensinavam ontem, nem podemos ensinar amanhã o que ensinamos hoje». (Do livro «Quarenta mil horas»).

A Universidade é o berço da pesquisa científica. Hoje, por razões diversas, grande parte da tarefa de pesquisa científica e tecnológica deslocou-se para as empresas e instituições especializadas.

Nos países de maior desenvolvimento econômico as tarefas de pes­quisa são realizadas em cooperação pelos governos, pelas universidades e pelas indústrias ou instituições privadas. As Universidades, no caso norteamericano, lideram a aplicação de fundos em pesquisa básica (47%) , seguidas das indústrias (33%) , do Governo Federal (13%) e de outras instituições ( 7 % ) . Os fundos usados nessa pesquisa se ori­ginam do Governo Federal ( 51%) , das indústrias (30%) , das Univer­sidades (13%) e de outras fontes ( 6 % ) . Convém notar que 95% da pesquisa e desenvolvimento patrocinada pelo Governo Federal é atri­buída a cérca de 100 das 2.000 e poucas Universidades americanas. (A educação que nos convém).

A política de pesquisa nos países subdesenvolvidos difere da dos desenvolvidos. Enquanto nestes o Estado, as Empresas e a própria

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Universidade dispõem de recursos humanos e financeiros próprios, na­queles predomina a incorporação de conhecimentos científicos e tecno­lógicos ao patrimônio cultural do país pela importação de descobertas alheias e pela contratação de técnicos estrangeiros sempre dentro das disponibilidades financeiras. O importante é que esses países periféricos ou satélites da técnica e da pesquisa incorporem a mais avançada tecno­logia dos desenvolvidos nos setores em que estejam preparados para um desenvolvimento dinâmico.

com este processo de incorporação e assimilação das tecnologias os Países subdesenvolvidos estão se organizando para aproveitar oi talentos, os gênios e os recursos materiais, podendo contribuir para o avanço da ciência e da tecnologia, porque, como lembra Mc Ñamara «Deus é um democrata na distribuição do talento e do gênio».

Importante na política de pesquisa è que os governos tenham dire­triz central lúcida, imaginação sem devaneio e mensagem que seja um desafio às capacidades técnico-científicas da população.

Cabe, porém, às Universidades manter um clima de permarfínte insatisfação na escalada do desenvolvimento, procurar e sugerir r ovas formas de ação e, atrair recursos humanos e materiais para os objetivos visados.

3. A CULTURA

Na atual conjuntura do mundo a técnica tem dado saltos tão gi­gantescos em minitempo que, a continuar nesse ritmo, é imprevisível como será a vida humana individual e social no dia de amanhã. Porque a técnica rasga caminhos e a humanidade neles embarca «por mares nunca dantes navegados», na expressão do incomparável vate lusitano.

Aplaudimos as conquistas da técnica porque sabemos que, se guiada pela bússola da razão e dà fé, as estradas do porvir serão mais humanas e mais cristãs.

Enquanto perdurarem e forem operantes as bússolas da razão e da fé não haverá o perigo, antevisto por alguns, de uma extrapola­ção da técnica sobre a cultura, com verdadeira ameaça ao equilíbrio da sociedade.

O sociólogo brasileiro Ovidio Cunha faz a mesma ressalva quan­do escreve: «Os modelos atuais dos chamados grandes países do grupo nòrdico, que já têm um equilíbrio sócio-econômico apreciável e um alto padrão <de desenvolvimento tecnológico, levam-nos a supor que um rápido progresso econômico sem que paralelamente surja o desen­volvimento NÃO MATERIAL (PROGRESSO MORAL) pode conduzir à frus­tração da civilização conforme se revela dos altos índices de suicídios nesses países» (Temática Geral, pag. 116).

Em face dessa constatação, encontrável na maioria dos sociólogos espiritualistas, julgamos necessário que para a era da Tecnologia,

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surja simultáneamente com o técnico em materialidade o técnico que Paulo VI qualifica de TÉCNICO EM HUMANIDADE (PP nº 15) . como o primeiro se apodera da força cósmica e a canaliza para o polimorfo progresso humano, o segundo se apossa da energia espiritual e crista existente na Igreja e a encaminha para a fraternidade universal da justiça e do amor, favorecendo déste modo o aparecimento de «HOMENS SÁBIOS», amantes da verdade e do bem» (GS, nº 5) . Homens portado­res do facho do «Novo HUMANISMO», O qual se define, em primeiro lugar, por sua responsabilidade perante os seus irmãos e a História (GS, nº 55) .

A função da Universidade em Geral e da Católica em particular sempre tem sido a de preparar profissionais competentes, pesquisadores categorizados e técnicos polivalentes. Hoje a Universidade se renova. Em seus laboratórios, além de atualizar-se para preparar melhor os próprios profissionais, técnicos e pesquisadores, ela deve criar uma nova classe de homens, a classe dos HOMENS SÁBIOS e dos TÉCNICOS EM HUMANIDADE, esses líderes de alto nível, espécies de astros de primeira grandeza no firmamento da cultura, cujo prestígio pessoal e cuja atuação no seio da humanidade sejam catalizadores não do espírito de mandar mas do espírito de servir, homens que substituem o relativo pelo abso­luto, a imitação pela criação, o poder pela disponibilidade, o TER MAIS pelo SER MAIS. O que vem a ser, na essência o triunfo do «HOMEM NOVO», o homem que faz do amor e da justiça seu pàbulo e sua men­sagem.

Do alto dessa nova cátedra da Universidade de hoje o TÉCNICO EM HUMANIDADE se encontra em situação muito mais sublime e elevada do que qualquer cientista ou técnico profissional. Pois quem vive do amor do outro vive perenemente em crescimento e, pelo fato mesmo, aumenta de contínuo sua capacidade tecnicizante. A nosso ver, é o AMOR a maior força do técnico em humanidade. Por isso, a NDVA UNIVERSIDADE deve favorecer a multiplicação dos Mestres portadores cesse EXPLOSIVO UNIFICANTE no seio da humanidade.

4. A GUISA DE CONCLUSÃO

Parafraseando célebre poeta que cantava: «Cesse tudo o que a musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta», diríamos hoje: Cessem tôdas as formas de guerra, tôdas as estratégias belicosas, por­que hoje o mundo inteiro está empenhado na batalha do desenvolvi­mento com tôdas suas implicações e resultados benéficos para a huma­nidade.

E o Brasil está vivamente empenhado nesta batalha.

O grande lider militar General Lyra Tavares ao proferir em março de 1969 a aula inaugural no Instituto Militar de Engenharia do Rio

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de Janeiro, assim resumiu a estratégia do desenvolvimento para o caso brasileiro:

— para diminuir nosso descompasso tecnològico não bastam o entusiasmo, a competência, o poder criador, o patriotismo;

— o problema é, antes de tudo, de ORGANIZAÇÃO PARA O DESEN­VOLVIMENTO, com base na educação, na pesquisa e na cultura. Estas tarefas requerem:

— píssoal humano altamente capacitado com cursos de pós-gra­duacão;

— funcionamento permanente desses cursos;

— programação das atividades de pesquisa;

— atração de técnicos estrangeiros;

— a convicção de que a inteligência humana constitui o mais essencial recurso do país.

A batalha para o desenvolvimento demanda ainda o esforço con­jugado do Governo, das Empresas e das Universidades, para efeito de levantamento do mercado de trabalho, de programação e de execução das tarefas necessárias ao êxito pleno e continuado,

É a renovação e atualização da tecnologia.

como em nosso entender a causa principal do desenvolvimento é o HOMEM, somos de parecer que no planejamento, com vistas ao desenvolvimento tecnológico, devem merecer prioridade as áreas que favorecem a humanização e a personalização, como sejam, a educação generalizada, o atendimento da saúde extensivo a todos os cidadãos, a alimentação, a habitação, a convivência social fraterna e as relações internacionais. Desse alvo a atingir, surgiriam, então, os estabeleci­mentos universitários que atenderiam prioritàriamente o setor da VALO­RIZAÇÃO DO HOMEM, tais como as Escolas de Medicina, de Farmácia, de Odontologia, de Enfermagem, de Higiene, de Agronomia e Vete­rinária, de Zootecnia, de Ciências Domésticas, de Educação, de Psico­logia, de Engenharia em todos os ramos, de Serviço Social, de Admi­nistração de Empresas, de Ciências Econômicas. Para essas institui­ções e suas congêneres de grau médio seriam canalizados recursos humanos e financeiros em percentagem elevada para o atendimento global da população. Para as demais áreas, como das Ciências Jurídi­cas e Políticas e outras, o atendimento se faria dentro das disponibili­dades financeiras.

Esta política — verdadeira batalha para o desenvolvimento —, iria preparando o HOMEM como instrumento principal do desenvol­vimento, ao mesmo tempo que suprimiria o luxo e a suntuosidade de obras materiais adiáveis (PP, n? 21), enquanto o HOMEM TODO E TODOS OS HOMENS não entrassem na ESPIRAL DO DESENVOLVIMENTO individual

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e coletivo, plenamente conscientes de que a primeira riqueza das nações é e será sempre o HOMEM .

como bem observa Alceu de Amoroso Lima em conferência sobre «Cultura e Técnica» (Documenta 33 — vol. II, jan. 1965):

«Técnica ou tecnologia é, por natureza, especialização. E não há cultura autêntica sem especialização. Mas, cultura é por natureza gene­ralização. E não há boa especialização sem o preparo por meio das idéias gerais».

Há, assim, necessidade de ligar, de unir, de entrosar os esforços da tecnologia e da cultura para levar ao pleno desenvolvimento.

A cultura geral prepara o caminho para a tecnologia e esta, por sua vez, se bem conduzida, leva ao desenvolvimento.

Cabe, assim, preparar técnicos com boa, com desenvolvida cultura geral e reciprocamente, cabe também, levar aos que atuam no campo da cultura geral os princípios e as normas da técnica.

Evitam-se, deste modo, os perigos da idolatria da técnica e os desvios da vaidade dos humanistas, mantendo-se o equilíbrio na ação que levará ao desenvolvimento.

Em todo este esforço o HOMEM deve estar sempre presente, tor­nando-se mesmo a figura central.

A política de valorizar o HOMEM em primeiríssimo lugar é dou­trina do Concilio Ecumênico Vaticano II, quando afirma: «A pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de TÔDAS AS INSTI­TUIÇÕES SOCIAIS» (GS, nº 25) .

O desenvolvimento só é real quando alcança o homem e o leva à plenitude.

Só com homens plenamente desenvolvidos, plenamente realizados, plenamente livres, plenamente capacitados a conviverem na sociedade pluralista, é que podemos pensar em desenvolver também a natureza material, transformando-a, melhorando-a para torná-la sempre mais útil ao homem. Só com homens desenvolvidos é que eliminaremos pouco a pouco as lacunas científicas e tecnológicas, os descompassos de amizade e de fraternidade, de que padecem não somente os países subdesen­volvidos mas os próprios países desenvolvidos.

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11. Paulo VI: «A PAZ», mensagens e alocuções, Ed. Vozes, 1969.

12 Paulo VI: «O DESENVOLVIMENTO DOS POVOS» — Enciclica — Ed. Vozes, 1968.

13. Pro Deo, Universidade de Roma: «PROBLEMI E PROSPETTIVE DELLE UNIVERSITÀ CATTOLICHE IN AMERICA LATINA» — Roma, 1969 _ 275 p .

14. REB, revista eclesiástica brasileira — junho de 1969.

15. SERVAN SCHREIBER: «O DESAFIO AMERICANO» — 327 p. 4° ed. Rio — GB.

16. «VOZES», revista de Petrópolis, RJ — números diversos.

17. Galvani, Valter: Brasil por linhas tortas — Ed. Sulina, P.A. 1970.

18. Rapp, Hans Reinhard: Cibernetica e Teologia — Vozes, 1970.

19. Clarke, Arthur: Perfil do Futuro — Vozes — 1970.

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MESTIÇAGEM E TRANSCULTURAÇÃO NO BRASIL DE ANTES DO SÉCULO XIX

M A N U E L DIÈGUES JÚNIOR

1. OS GRUPOS QUE SE ENCONTRARAM

I RÊS correntes humanas, distintas em suas origens físicas e não menos - em suas condições culturais, se encontraram no território brasi­

leiro, a partir do momento da descoberta, no século XVI e pelos três séculos seguintes: o indígena, dono da terra, do estoque mongolòide; o português, desobridor e colonizador, do estoque caucasóide: e o negro-africano, vindo como escravo, do estoque negroide. Talvez em nenhu­ma outra terra se tenha verificado encontro tão significativo: repre­sentantes dos três grandes estoques humanos, em pleno processo de contacto fisico e de intercâmbio cultural, na formação do brasileiro.

Nem o indigena, nem o português, nem o negro-africano se podem considerar puros; vinham todos eles de longo processo de formação, a que não eram estranhos elementos mais antigos. Diversidade de tipo físico, às vêzes imperceptível; diversidade de cultura, na variedade de níveis em que se encontravam, um em re!?.ção aos outros, e cada um dentro de seu próprio grupo. No ambiente brasileiro realizou-se este encontro; e abriu margem, o contacto entre os três grupos, para o processo de formação do homem brasileiro, cuja diversidade já come­ça a pronunciar-se no século XVI, e irá acentuar-se nos séculos seguin­tes, para presenciar-se, em nosso século atual, este quadro de plura­lismo étnico que o Brasil apresenta.

De indígena as primeiras descrições de seu aspecto físico encon­tramos em Pero Vaz de Caminha, o cronista da descoberta, cuja carta escrita ao Rei de Portugal, é de importância muito mais etnográfica que puramente histórica. Descreve-o Caminha, na pureza de uma carac­terização ainda não envolvida por qualquer mistura, ao contrário vendo o índio antes de qualquer contacto com o europeu: ;<a feição dêles é serem pardos, à maneira de avermelhados, de bons rostos e bons na­rizes» .. . «os cabelos . . . são corredios» . . . «andavam tosquiados, de tosquia alta», sendo que, quanto às mulheres em particular «com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas», (4)

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O que Caminha disse a respeito do indígena, foi confirmado, quase textualmente por Vespucci, (16) em sua carta a Lorenzo de Medicis, dois anos depois; Vespucci viu os indígenas de côr tirante a vermelha, cabelos negros e crescidos; os homens com face, lábios, nariz e orelhas furadas, e as mulheres furavam somente as orelhas. E seguidamente, outros cronistas, no contacto com o indígena, foram informando sobre seu aspecto físico, numa quase repetição do que observara Caminha, cuja carta, todavia, somente foi conhecida em 1817.

De modo que a descrição feita na carta de 1 de maio de 1500 se foi confirmando com os cronistas posteriores, o que testemunha a acuidade com que Caminha viu os nossos índios. Sua informação, a de Caminha, constitui, de fato, a primeira de uma série, que se desen­rolaria pelos anos afora, neste mesmo século XVI, e nos séculos XVII e XVIII, nos cronistas e nas narrativas de viajantes, nas cartas ou informações dos padres da Companhia de Jesus ou nos tratadistas que procuraram fixar a paisagem brasileira daquelas centúrias. Inclusive nos cientistas do período holandês, como Marcgrave, por exemplo; ou em cientistas já brasileiros, formados na Europa. E não só em relação ao tipo físico, senão ainda em relação às características culturais.

Destas nos dá o mesmo Caminha as primeiras informações: «cor­tam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre talos, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes» .. . «são três traves atadas entre si» (a jangada) . . . «uma povoação em que havia nove ou dez casas, as quais eram tão com­pridas, cada uma, como esta sua nau capitanea. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; to­das duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam». «Debaixo, para se quentarem, faziam seus fogos».

Talvez em nenhum outro povo se encontre depoimento tão preciso com relação a seus primitivos habitantes, como no caso do Brasil. E foi com essa gente, as populações indígenas, classificadas como tupi, que se verificaram os primeiros contactos do português. Este chegava em terra deparando com índias nuas, naquela expressão tão caracte­rística fixada por Gilberto Freyre: «o europeu saltava em terra escor­regando em índia nua» (6) . A atração para a mestiçagem não era difícil; e logo se fêz.

Do português sabe-se que nos primeiros tempos vinham soltei­ros, ou, se casados, tinham deixado a mulher em Portugal. Aqui se deram os abraços, de que resultaria o primeiro produto da mestiçagem brasileira: o mameluco. Não havia restrições ao uso da mulher indí­gena, sobretudo pelas próprias condições em que se implantava a nova sociedade. Predominava, na época, o conceito de que ultra equinoxia-lem non peccavit; abria-se assim o caminho à mais ampla liberdade de relações. E isto se deu, sem dúvida. Debalde os padres da Compa-

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nhia de Jesus, a partir dos começos da segunda metade do século, ten­taram moralizar a sociedade. Tentativas aqui ou ali bem sucedidas, mas, de modo geral, superadas, ou vencidas, pelo próprio ambiente, pela situação em que se implantava a nova sociedade. Talvez a exce­ção tenha sido a capitania de Pernambuco, para onde Duarte Coelho trouxe, em 1535, sua família, seus parentes, seus colaboradores, esta­belecendo desde logo os fundamentos de uma sociedade moralizada, com estabilidade na própria organização da família.

Por outras partes, e sobretudo por todo o século XVI, a situação diferia; as relações ilícitas, de que dão notícias as cartas jesuíticas, abundavam. De Pernambuco mesmo, em carta de 2 de agósto de 1551. dizia o padre Antônio Pires (3 . I I ) que só então os moradores estavam casando; anteriormente «queriam antes estar amancebados com suas es­cravas e com outras negras forras». Da mesma época é o depoimento do padre Nóbrega (3.1) que também registrava: homens casados em Portugal vivendo, por tôda a costa, grandes pecados; pelo sertão se espalhavam filhos de cristãos vivendo e criando-se nos costumes do gentio. Os grandes pecados eram as mancebías; e estes filhos de cristãos, os mamelucos.

As relações ilícitas marcaram assim as origens das populações bra­sileiras, que desde cedo se verificaram entre o português e o indígena; e que igualmente se alongaram às relações entre o português e a negra africana, trazida nos navios negreiros. De quando começa o comércio de escravos no Brasil é difícil fixar a data; sabe-se, contudo, que nas primeiras décadas, já se faia na presença de escravos negros no Brasil; movimento que, ano a ano, século a sécuIo, vai num crescendo acen­tuado, graças ao crescimento da economia, à ampliação das atividades agrícolas e pastoris, às exigências dos trabalhos domésticos. O certo é que a presença do elemento negro importado como escravo da Africa vai abrir um outro quadro de mestiçagem, o que se desenrola entre o português e a negra escrava.

Mas não fica aí a multiplicidade desse relacionamento; negro e indio, sobretudo em certas zonas de penetração interior, dão origem a um outro tipo mestiço que irá incluir-se no quadro da mestiçagem brasileira. É o chamado cafuso ou curiboca. Embora não tenha sido muito grande o volume dessa mestiçagem, tal como se verificou entre o português e o índio, e o português e o negro, a verdade é que êle se manifestou em várias partes do Brasil; e para essa mestiçagem Roquette Pinto chama a atenção dos estudiosos em um de seus exce­lentes estudos.

Este relacionamento — o de negro e índio —- nunca foi bem rece­bido na América Hispânica, segundo a observação de Magnus Morner. Registra este autor que as autoridades locais lutaram contra qualquer forma de relação afro-indígena, mesmo o concubinato; e o faziam de tal forma violenta que, no século XVI, havia ordenações municipais

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impondo como castigo a castração do negro encontrado ou suspeito de relação com índia. E isto, apesar de a legislação règia proibir esta penalidade. O certo — acrescenta Morner — é que as relações conti­nuaram de todos os modos (7) .

De modo que, em pleno século XVI, se abre no território brasi­leiro a formação de nossa população através de uma mestiçagem va­riada e diferenciada, que constitui os alicerces de nossas populações atuais. O século XVI lança os fundamentos da mestiçagem brasileira; desde então começam a formar-se e a caracterizar-se os nossos tipos mestiços, que, no presente, se multiplicam em variados aspectos, decor­rentes de novas participações nesse processo, e não apenas da mesti­çagem que se desenvolveu, através dos séculos seguintes, entre os pró­prios descendentes dos primeiros cruzamentos.

2. INFORMAÇÕES SOBRE A MESTIÇAGEM

Desde cedo tornou-se a terra terreno propício para a mestiçagem. A aventura pelo desconhecido era o que trazia os homens europeus à terra brasileira nos primeiros anos, ou pelo menos nos trinta primei­ros anos: 1500 a 1530. A partir desta última data começa a cuidar-se da colonização, vindo primeiro Martin Afonso de Souza, e logo depois, em 1534, se estabelece o sistema de capitanias. Inicia-se a organização do território. Toda%'ia, a liberdade de costumes continua a existir. com os S. J. começa a disciplinar-se a sociedade que, ressalvados casos esporádicos, nos séculos XVII e XVIII, está inteiramente orga­nizada, através de um sistema de patriarcalismo social, que haveria de marcar a fundo nossa estrutura social, somente começando a modi­ficar-se no século atual.

Em carta do Irmão Pero Correia, de junho de 1554 (3.II) en­contra-se a informação de que em São Vicente há um homem — deve referir-se a João Ramalho — que há 40 anos está na terra e tem já bisnetos. Este fato é confirmado — refere-se ao assunto Magnus Morner (7) — pelo fato de o Governador do Brasil haver escrito a El-Rei dizendo que João Ramalho tinha tantos filhos que não ousava anotar o número. De outro pioneiro no povoamento, este na Bahia, Diogo Alvares, o Caramuru, dizia a mesma autoridade que constava ter pelo menos uns 60 filhos.

De pouco antes, 1549, é a informação do padre Nóbrega (3.1) em carta ao Mestre Simão: nesta terra há um grande pecado que é terem os homens quase todos suas Negras por mancebas. Carta de Leonardo Nunes, de São Vicente, em 20 de junho de 1551 (3 . IJ ) , alude a um filho de Cristão e India, que teria de idade 20 anos. São algumas das informações que encontramos nas cartas jesuíticas, teste­munhando o processo de mestiçagem luso-indígena, já anterior a 1530 ou mais ou menos desta época.

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Sao estes depoimentos, os dos padres da Companhia de Jesus, os mais expressivos como testemunho do que então se verificava, abrin­do a caminhada para o longo processo de mestiçagem das populações brasileiras. Claro que não são únicos; muitos outros poderiam encon­trar-se em pesquisa que se faça sobre documentos dos séculos XVI, XVII e XVII I . E, de outra parte, não são apenas com referência ao elemento indígena; alongam-se tais informações, de modo especial, na segunda metade do século XVI e nas centúrias seguintes, quanto ao elemento negro-africano.

Ao findar da primeira metade do século XVI, encontramos infor­mações a respeito do mameluco em Hans Staden, (15) o célebre viajante alemão que foi prisioneiro dos indígenas. Refere-se êle direta­mente aos indígenas, e no capítulo XV de seu livro, registro de sua vivência entre os índios brasileiros, faia num grupo de mamelucos que, aliados dos portugueses, combateram contra os tupinambás, que eram aliados dos franceses. Todavia não os descreve.

É claro que a leigos, não religiosos, o processo de relações entre portugueses, índios e negros desperta menor atenção; e não atrai tanto registro. O que não sucede com as cartas dos padres jesuítas, e de outros religiosos, cuja preocupação é justamente moralizar a terra. assentando costumes correspondentes aos que se encontravam em Portugal.

Em carta de 1551, de Pernambuco, o padre Antônio Pires (3 . II) refere-se aos muitos casamentos a serviço de Deus, e alguns foram com mulheres da terra. É êle mesmo que alude ao trabalho para pôr em costume o casamento entre escravos na porta da Igreja. De sua parte, o padre Francisco Pires (3.II) pede virem mulheres de Portugal para casarem com os homens da terra. O mesmo que já em 1549, mal chegado ao Brasil, fazia Nôbrega. Este escrevia a El-Rei sobre a conveniência de mandar mulheres a estas partes, ainda que fossem erradas, porque casarão tôdas. Logo depois, em 6 de janeiro de 1550, o mesmo Nôbrega (3.1) insistia na necessidade de que venham para casar aqui muitas órfãs e quaisquer mulheres ainda que sejam erradas. Tal migração — a de mulheres órfãs — não seria muito necessária para Pernambuco, mas especialmente para outras capitanias, era o que acen­tuava Nôbrega em carta a El-Rei de 14 de setembro de 1551 ( 3 . 1 ) .

Em outro jesuíta, ainda no século XVI — quase que nos seus fins — o padre Fernão Cardim (2) , encontram-se também referências às mulheres e homens habitando nas vilas e povoados que visitou acompanhando o padre Cristóvão de Gouveia. Todavia, não se refere diretamente à mestiçagem. Sua narrativa, entretanto, é muito interes­sante como depoimento da vida que levavam então, na terra, portu­gueses, indígenas, mamelucos, enfim tôda a população espalhada em povoados e vilas.

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Mais adiante, ainda nos fins do século XVI, Gabriel Soares de Souza, em seu justamente celebrado Tratado Descritivo (14), se refere à existência de mestiços de franceses na Bahia. Registra que os fran­ceses deixavam, entre os gentíos, alguns dos seus, «os quais se aman­ceba vam na terra», onde viveram como gentíos com muitas mulheres. Quanto ao tipo físico desses mamelucos, que assinalava serem muitos, dizia-os «louros, alvos e sardos». Se bem tenha sido grande a presença de franceses no litoral brasileiro, na luta pelo comércio de pau brasil, antes da colonização sobretudo, talvez se possa atribuir tal descendên­cia de louros e alvos também a portugueses.

De fato, a grande maioria de portugueses vindos para o Brasil, sobretudo no século XVI, procedia do Norte de Portugal. E nesta região portuguesa, predominava o tipo louro e alvo, como influência do elemento suevo que, na penetração germânica nos séculos V a VIII, se arraigou justamente naquela região, influenciando na caracterização física da população que dali surgiu. Desses portugueses louros e alvos é que procedem, no sertão nordestino, as nossas populações de olhos claros, às vêzes tidas como de origem holandesa, o que não é ver­dadeiro .

uma estatística elaborada com dados obtidos em fontes do século XVI, sobretudo as Confissões e Denunciações do Santo Ofício, pelo historiador Tarcizio do Rego Quirino, mostra a evidente supremacia do elemento vindo do Norte de Portugal para o Brasil daquele tempo, o que, aliás, ressalta o autor do trabalho. Tanto na Bahia como em Pernambuco e em outras capitanias, o português do norte predomina­va; somava 181 pessoas, num total de 381, ou seja 47 ,5%. Só em Pernambuco eles representavam 58,6%, e na Bahia 35 ,5%. Dois auto­res confirmavam essa predominância nortista: o S.J . Fernão Cardim, em seu Tratado, e o autor do Sumário das Armadas, e t c , ambos cita­dos pelo historiador Quirino (9) .

De modo que são importantes as informações que se recolhem, pelo século XVI, a propósito das raízes da mestiçagem brasileira, com o que se pode conhecer as atividades então realizadas: de um lado, a mestiçagem se desenvolvendo livremente, alheia às conveniências reli­giosas e aos próprios costumes que a colonização procurava implantar; de outro lado, a procura de estabelecer-se uma sociedade estável, com os casamentos regularizados, mesmo com índias e negras. De qual­quer modo, procurando dar-se aspecto legal ou socialmente regular à mestiçagem que então se processava.

Isto iria acentuar-se nos séculos seguintes, no XVIII principal­mente, com a legislação regia, que então passa a estimular o casamento de portugueses com índias. O alvará de lei de 4 de abril de 1755 não considera infame o que case com índia. A política pombalina, estimu­ladora do casamento entre branco e índio, era, entretanto, contrária ao casamento entre branco e negro e entre índio e negro.

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É certo que, oficialmente, ou pelo menos, assim se considerava, o casamento entre negro e indio era considerado contrário à limpeza do sangue. A legislação pombalina, em que pese seu fundo liberal em alguns aspectos, não estendia seu apoio ao negro. De fato, com o elemento negro, o casamento ainda não era permitido, embora também não fosse rigorosamente proibido. Tratava-se de escravo. E, no caso, a posição social, o status na sociedade patriarcal, era o que importava. Acredito que o fato de não haver casamento, nem sua permissão, não era contra o negro africano, mas sim contra o escravo. Ou, pelo menos, o elemento que vinha como escravo.

3 — O MAMELUCO E O MULATO

Mameluco foi o nome dado ao descendente das relações entre o branco português e o índio da terra. Deste mestiço, já em 1551 dizia o padre Leonardo Nunes (3,11) que são muitos os que andavam pela teira dentro, assim homens como mulheres. Referia-se o S.J . a São Vicente. De outro extremo, de Pernambuco, escrevia Nóbrega (3,1) em 1551: andam muitos filhos dos cristãos pelo sertão perdidos entre os gentíos. Êle próprio repetia, no mesmo ano, em outra carta também de Pernambuco, dirigida a El-Rei: o sertão está cheio de filhos de cristãos, grandes e pequenos, machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos costumes do gentío.

Em carta do padre Leonardo Nunes, de São Vicente, em 1551, (3,11) encontramos a primeira descrição do tipo do mameluco. Referin­do-se a um filho de cristão e índia, com seus 20 anos, e que vivia entre os gentíos, assim o descreve: «JÊ mui alto de corpo e mui alegre». E só; nada mais disse o S.J . Contudo, tem-se a impressão de que o padre Leonardo se entusiasmou com o mameluco, pois, escreve ainda, quisera mandá-lo pelo navio que estava para sair para que vissem em Lisboa o que há por cá, pelas terras brasileiras.

São raras as descrições a respeito do tipo físico do mameluco, e ainda assim sempre incompletas. Os próprios S .J . , em outras cartas ou em outras oportunidades, a êle se referem, sem entretanto pormeno­rizar suas características físicas. Tem-se a impressão, através da carta de Leonardo Nunes, de ser um tipo alto, forte, de ombros largos. Daí seu entusiasmo em revelá-lo aos portugueses da Europa.

Nóbrega (3,1), por exemplo, referindo-se a Pernambuco, registra a presença de mamelucas, filhas de portugueses e índia, as quais po­deriam casar na terra, com portugueses e seus filhos. O que denota serem elas de tipo físico agradável e simpático, pois admitia o S.J. que tôdas agora casarão.

O mameluco, no correr do tempo, com o mestiçamento mais acen­tuado, vai dar margem ao tipo que chamamos hoje caboclo. com a diminuição da população indígena, sobretudo afastada para zonas não

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ocupadas pelos elementos considerados brancos, a mestiçagem entre estes e as índias diminuiu bastante. Acentuou-se, portanto, o relacionamento entre os descendentes, na continuidade das combinações sucessivas; são os hoje chamados caboclos, numa generalização que não sendo profun­damente científica, é, contudo, plenamente aceitável na caracterização das populações brasileiras.

Da importância do mameluco na formação das populações paulis­tas seria supérfluo referir; os cronistas e mesmo os genealogistas são unânimes em ressaltar seu papel na origem das famílias paulistanas. Mamelucos também os que abriram caminhos para as bandeiras, onde igualmente não foi estranha a presença do elemento negro-africano. Contudo, o mameluco conhecia, de certo, pela influência materna, os caminhos, os lugares onde poderia a bandeira abrigar-se e encontrar água, os pontos onde os veios auríferos se achavam. Localizado o ouro, na fase da exploração, outro elemento se incumbia de explorá-lo; era o negro-africano. Ai começava seu papel na escavação da terra, ao pas­so que o mameluco continuava a abrir caminhos e indicar outros veios de ouro.

Esta participação do elemento negro escravo no bandeirismo, a princípio negado, pois se acreditava apenas na presença do índio no empreendimento, está hoje inteiramente comprovada. Abriu perspectivas para o conhecimento dessa presença, sobretudo como elemento de fi­xação do grupo, tal como antes procuramos explicar, o estudo realizado por Cassiano Ricardo (12), verdadeiramente pioneiro ao evidenciar, em trabalho publicado inicialmente em 1938 e desenvolvido no livro de 1940, que o africano escravizado se tornou o elemento de fixação, de perma­nência, do bandeirismo nas áreas desbravadas e ocupadas.

Menores são, sem dúvida, as informações a respeito do mestiço oriundo das relações entre o branco e o negro africano: o mulato. Nas­cendo na senzala, continuando a viver como escravo a exemplo de sua mãe, o pobre do mulato não tinha oportunidade de aparecer na impor­tância do quadro de mestiçamento que se desenvolvia. O contrário do que sucedia com o mestiço do índio: este era exaltado e incorporado à vicènda social que se desenvolvia. Criou-se, inclusive, um sentido de nobreza na descendência indígena. É o que vemos, em séculos posterio­res, no século XVIII quanto a ordens regias permitindo o casamento cem índias, e o que vamos verificar, no século XIX, com o romantismo. Nome indígena passou a substituir nome português em famílias brasi­leiras .

Dessas manifestações nativistas que levaram à mudança de nome português por indígena, numa espécie de reação patriótica contra o co­lonizador, lembro o caso da família Rodrigues Leite nas Alagoas. Conta um de seus descendentes, o antigo Senador da República Francisco de Paula Leite e Oiticica (8) , que numa das reuniões de patriotas, seu antepassado José Rodrigues Leite disse aos amigos que deviam adotar

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um nome brasileiro; e sem hesitar logo acrescentou que de então em diante se chamava Pitanga. E seu irmão adiantou-se: eu me chamo Oiticica. Outro irmão adotou o nome Gejuiba. Assim nasceram as atuais famílias Oiticica, Pitanga e Gejuiba.

Outros exemplos poderiam ser citados: os das hoje famílias Cajuei­ro Gitaí, Jatobá, Xexéu, Tiririca, tudo nome da terra; e também o de Cansanção de Sinimbu, que, no Império, se tornaria ilustre pela presen­ça de João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, Visconde de Sinimbu, como Ministro e Chefe de Gabinete. O mesmo sucedeu em outras então Províncias brasileiras, como é o caso de Montezuma na Bahia. Nomes nativos se incorporaram assim aos de famílias brasileiras, tradicionalmen­te ao menos pelo sobrenome portuguesas.

O mesmo não acontecia, nem poderia acontecer, com o mulato, nem coir nome procedente da África. Filho de escrava, no mais baixo da escala social, numa sociedade rigidamente estratificada, era inevitável que ficasse abandonado, esquecido, e até quase ignorado neste processo de miscigenação, que não era apenas físico, mas também social, que o Brasil presenciava a partir do século XVI, e principalmente neste mes­mo século X V I .

como que eco desse esquecimento do que era o mulato, o próprio Euclides da Cunha (5) para exaltar o mameluco, isto é, o homem serta­nejo, encontrou no mestiço litorâneo «o raquitismo exaustivo dos mesti­ços neurasténicos». Éste mestiço neurasténico deveria ser justamente o mulato, em cuja atividade repousou tôda a construção da economia, da vida urbana, dos serviços domésticos, de tudo quanto se implantou e se desenvolveu na vida de beira-mar do Brasil, onde se construiu até quase nossos dias todo o processo da chamada civilização brasileira. A genialidade de Euclides não percebeu a importância do mulato; e, de resto, de sua pena escapou a afirmação, inteiramente negada pela ciência moderna, de que a mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Donde via na mestiçagem um retrocesso.

Contudo, muitos daqueles mestiços do interior, o sertanejo, eram de origem negro-africana. como de ascendência negro-africana são muitas — é Gilberto Freyre quem lembra (6) — das melhores expressões de vigor ou de beleza física no Brasil: as mulatas, as baianas, as crioulas, as quadradonas, os cabras de engenho, os fuzileiros navais, os marinhei­ros nacionais, os capoeiras, os estivadores. Da mulata, em particular, sabe-se que se tornou verdadeiro símbolo de beleza brasileira, não raro apresentada como «tipo» brasileiro, o que não corresponde rigorosamente à realidade, pois ela é apenas um dos tipos brasileiros, dentro da diver­sidade que o Brasil apresenta em sua morenidade. Na canção popular sua exaltação é notável, através de músicas e cantos que a consagraram, quando menos como «a tal».

Já Roquette Pinto (13) assinalava, em seus estudos acerca da mes­tiçagem no Brasil, que no mulato brasileiro há sensível tendência para

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o grupo branco; e registrava ainda que nenhum dos caracteres estudados nos mulatos permitia considerá-los como tipos involuídos. O que realmente vem sendo confirmado pela antropologia moderna, tal como registrou a declaração sobre raça de 1964: está comprovado que a mes­tiçagem não apresenta inconvenientes biológicos para a humanidade. Mesmo porque não existe na espécie humana uma raça pura.

O caso brasileiro parece justamente negar a afirmativa euclidiana e confirmar a validade da mestiçagem; e é em torno dessa mestiçagem que se processa a formação do homem brasileiro, ainda em pleno desen­volvimento . Mameluco e mulato do primeiro século vão se desdobrar em múltiplos tipos físicos, numa diversidade de características e numa variedade de aspectos, que permitem testemunhar o êxito da mestiçagem em nossa terra, nos séculos seguintes e até hoje. O mestiço brasileiro se constitui evidentemente uma negativa redonda e firme de que a mes­tiçagem é prejudicial. Aí estão nossos mamelucos e mulatos, seus des­cendentes — pardos, cabras, caborés, e tantos mais — exemplificando, com a formação de nossas populações, o êxito, se não a consagração, da mestiçagem brasileira.

O PROCESSO TRANSCULTURATIVO

Longe de nós a idéia de que mestiçagem e transculturação se pro­cessam paralelamente, num mesmo nível. Ao contrário: bem sabemos que a mestiçagem se refere tão só ao relacionamento físico, ao passo que a transculturação exprime o relacionamento cultural. Podem verificar-se separadamente, e os exemplos são múltiplos. Não há dúvida, porém, de que a mestiçagem constitui, muitas vêzes, a oportunidade também para que se desenvolva a transculturação.

No caso do Brasil correram paralelamente, não há esconder. Ao mesmo tempo que se incrementava a mestiçagem, através dos encontros físicos entre portugueses, índios, negros e mais tarde de seus descenden­tes, implantava-se o processo de transculturação, com o intercurso de valores culturais entre os três grupos. Nada o testemunha melhor, e seria supérfluo querer repeti-lo aqui, do que o estudo desse processo em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, de modo especial para reportar-se ao que se verificou a partir do século X V I . Valores, técni­cas, instrumentos, maneiras de viver se intercambiaram entre os três grupos, de modo a constituir os primeiros elementos da formação de uma cultura nova, com a que haveria de surgir e desenvolver-se no Brasil.

Além de Caminha, a que já nos referimos, outros cronistas fixaram aspectos da cultura indígena, principalmente em relação ao processo transculturativo que se iniciou no século X V I . O caso de Vespucci, que entrou em contato com o índio logo depois da descoberta, antes ainda de qualquer relacionamento prolongado deste com os europeus. Vespuc-

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ci (16) observou o uso do arco e flecha, o uso também de raízes de plantas, a ausência de panos, lã ou linho. E numa demonstração de etnocentrismo disse que o indígena nao possuía nem templos, nem leis, nem reis, como se sua organização tivesse de ser igual à européia na prática da religião, na vida social e na ordem política.

Depoimento bem expressivo foi o que nos deixou Cardini, ao des­crever a viagem do Visitador da Companhia de Jesus, em seu livro já referido (2); descreve uma festa de Natal, talvez a primeira em terra brasileira, em 1583, e mais tarde, em 1584, outra festa natalina, esta no Colégio do Rio de Janeiro. Tanto num ano como no outro foi armado um presépio, em torno do qual se juntavam padres, índios, colonos, co-lumins, para ouvir «boa e devota música». Do presépio do Rio de Ja­neiro, acrescenta que fazia esquecer os presépios de Portugal. Can­taram e dançaram autos pastoris, acompanhados pelo berimbau do irmão Barnabe. Primeiro encontro festivo do Natal abrasileirando-se no contato entre grupos diferentes.

A esse relacionamento — a aproximação entre colonos e indígenas — referem-se também outros documentos jesuísticos, inclusive através das referências que se encontram, por exemplo, nas cartas de Nóbrega a propósito das práticas religiosas dos índios. São as primeiras descri­ções, se não interpretações, da religiosidade indígena, nem sempre com­preendida pelos padres, mas sem dúvida evidenciando as crenças existen­tes nas populações aborigines. Ao registrar as idéias dos índios acerca de religião, Nóbrega — e como êle, outros S.J . — estava contribuindo para conhecer-se o processo transculturativo que ia verificando-se.

À proporção que o tempo vai correndo, nos séculos seguintes, o processo vai acentuar-se e, quase diria, multiplicar-se, através das diver­sas formas que a criatividade cultural torna possível. Os elementos que se encontravam vão oferecendo novos valores, capazes de exprimir, de par com o relacionamento entre os grupos, o espírito criador do brasileiro. É um quadro cultural quase todo novo que se vai evidenciar. Se sua base é portuguesa, se há nele ingredientes indígenas e africanos, sua

originalidade, entretanto, já é brasileira. E cada vez mais se acentua neste sentido de uma originalidade brasileira.

É evidente que a mestiçagem e a transculturação são distintas, cada uma se processando à sua maneira; pode haver mestiçagem sem trans­culturação, da mesma forma que pode haver transculturação sem mes­tiçagem. No caso do Brasil, todavia, poderemos dizer que os dois processos correram paralelos, principalmente no século X V I . Ao mesmo tempo que se desenvolvia a mestiçagem, processava-se a transculturação. E tal fato iria tornar-se ainda mais expressivo nos séculos seguintes, criando ao começo do século XIX um quadro perfeitamente definido do que já podemos chamar uma cultura brasileira.

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O português chegado ao Brasil solteiro, ou deixando a mulher em Portugal, teve de participar dos dois processos. Relacionou-se fisicamen­te com as índias e socialmente, para sobreviver, aceitava hábitos alimen­tares indígenas, e também seus costumes, seus usos, sua maneira de viver. Aliás, o mesmo se deu com o português vindo casado. Teve de adaptar-se à alimentação da terra, com o uso da mandioca, pois não podia importar o trigo em quantidade suficiente para o consumo per­manente. Teve de aceitar tipos de habitação adequados ao novo meio. Aceitou, igualmente, hábitos e costumes que o indígena lhe transmitia, de modo a integrar-se, e não apenas adaptar-se, à nova sociedade.

Mais tarde, e mais intensamente já na segunda metade do sé­culo XVI, o mesmo se verificaria, no relacionamento com o africano trazido como escravo. Se em alguns casos não houve o relacionamento físico, não deixou de haver o relacionamento cultural; e a cultura trazida pelos escravos, embora condicionada e perturbada pela própria situação — o regime de escravidão — passou a influenciar na vida brasileira. O processo transculturativo incorporava assim outro elemento — o negro­africano, embora na condição de escravo — que atingiu também nossa formação cultural.

Desta forma são estes três grandes grupos — o indígena, o portu­guês, o negro-africano — que alongam, em terras brasileiras, seu relacio­namento físico ao processo transculturativo. Nossa cultura se vai for­mando, através do tempo, e com origem naqueles elementos intercultu-rados inicialmente no século XVI, com os valores de que são portadores estes três grupos. Trata-se, na realidade, de verdadeiro processo de transculturação, no intercâmbio de elementos oriundos de cada grupo, de modo a criar uma nova cultura: a brasileira. Tal como as populações, também mestiça; e mestiça pelo que cada um dos grupos contribuiu para a criatividade cultural que daí resultou.

Foi este processo de criatividade cultura! que especialmente se verifi­cou no Brasil; e que começou a reformular-se justamente no século XVI com o encontro entre os três grupos étnicos no território brasileiro. Não raro, pela natureza de sua cultura mais desenvolvida, e não apenas a dominante, a influência portuguesa foi mais importante e mais decisiva; serviu de lastro para o acolhimento dos valores de outras procedências, de modo que os elementos dos três grupos se interculturaram e formaram o que podemos chamar hoje de cultura brasileira. O português foi assim o elemento básico, o fundamento sobre que os dois outros se esteiaram, sem prejuízo, é evidente, da interpenetração ou da troca de elementos, surgindo valores que consideramos hoje brasileiros.

Se se verificou esta situação de ser a cultura portuguesa a fun­damental, isto não exclui que se tenha verificado também a assimilação pelo português de elementos indígenas e negros, e recìprocamente entre os três grupos; daí resultou, pela fusão ou absorção, o surgimento de novos valores neste processo de transculturação, de modo a criar uma

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cultura já brasileira, e nao exclusivamente portuguesa, nem puramente indígena ou negro-africana. Claro é que muitos valores conservaram a marca de sua origem principal: a mandioca, e o milho, por exemplo, como influência indígena; o uso da rede de dormir igualmente influência indígena; ainda de influência indígena o uso de frutas como o caju, o jenipapo, a goiaba; os quitutes chamados afro-baianos, como influência neqra; a música popular sincopada, também de marca negro-africana; o samba ou o coco ou o frevo, igualmente de ascendência negro-africana; assim por diante.

De modo que a transculturação caracterizou nossa formação como cultura; e através da criatividade cultural surgiram os elementos que, originados dos três grupos étnicos fundamentais, pela absorção ou fusão, vieram a caracterizar a originalidade de nossa cultura. A cultura brasi­leira representa assim um resultado da transculturação iniciada no sé­culo XVI com portugueses, indígenas e negro-africanos; e que se alongou através dos tempos não raro com a participação de outros grupos. So­bretudo a partir das primeiras décadas do século XIX com a imigração chamada estrangeira.

F O N T E S UTILIZADAS

1 — Buarque de Holanda, Sérgio — Raízes do Brasil. Col. Documentos Brasi­leiros, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro.

2 — Cardim, padre Fernão — Tratados da Terca e da Gente do Brasil, Introdução e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 2" ed. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1939.

3 — Cartas Jesuíticas. Publicações da Academia Brasileira de Letras. Rio de Ja­neiro, 1931, volumes I, II e III .

4 — Cortesão, Jaime — A Carta de Pero Vaz de Caminha. Edições Livros de Portugal. Rio de Janeiro, s /d.

5 — Cunha, Euclides da — Os Sertões. 2ª1 edição. Ed. Laemmert. 1902.

6 — Freyre, Gilberto — Casa Grande & Senzala. Formação da familia brasileira sob o regime de economia patriarcal. 8" ed. 2 volumes. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1954.

7 — Morner, Magnus — La mezcla de razas en Ia Historia de América Latina. Paidos. Buenos Aires. s /d .

8 — Oiticica, Francisco de Paula Leite e, Memorial Biográfico do Comendador Pi­tanga. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Vol . VI , n' 1, janeiro a março. Maceió, 1915, p. 152.

9 — Quirino, Tarcizio do Rego — Os habitantes do Brasil no fim do século XVI. Caderno nº 1. Instituto de Ciências do Homem. Divisão de História. Imprensa Universitária, Recife, 1966.

10 — Ramos, Arthur — Le métissage au Brésil. Hermann et Cie. Editeurs. Paris, 1952.

11 — Ramos, Arthur — Introdução à Antropologia Brasileira. 2 volumes. Livraria da Casa do Estudante do Brasil Editora. Rio de Janeiro, 1943-1947.

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12 — Ricardo, Cassiano — Marcha paca o oeste. Influencia da «Bandeira» na for­mação social e política do Brasil. Col. Documentos Brasileiros. Livraria José Olympio Editora. Rio de Jaeniro, 1940.

13 — Roquette Pinto — Ensaios de Antropologia Brasi/cica. Companhia Editora Na­cional, Sao Paulo.

14 — Souza, Gabriel Soares de — Tratado Descritivo do Brasil cm 1587. Comen­tários de Francisco Adolfo Varnhagen. 3ª edição. Companhia Editora Na­cional. Sao Paulo, 1938.

15 — Staden, Hans — Viagem ao Brasil. Versão de Alberto Lófigren. Revista e anotada por Theodoro Sampaio. Rio de Janeiro, Publicação da Academia Brasileira. História, 1930.

16 — Vespucci, Américo — Cartas, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. XLI, 5.

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MANUSCRITOS DA BIBLIOTECA IMPERIAL

HÉLIO VIANNA

ALÉM dos impressos, mapas e estampas de todos os gêneros, enrique­ciam a «Biblioteca Particular de S . M . J . » (dizeres do respectivo

carimbo-identificador, com o /, em vez do /, à moda antiga), alguns milhares de manuscritos. Muitos dos quais preciosos à História e Letras de Portugal, Brasil e outros países.

Entre eles, devemos distinguir os que fazem parte, propriamente, do Arquivo da Família Imperial, a ela especialmente relativos, dos que lhe são estranhos, em geral comprados ou ganhos por alguns de seus membros: a Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro II (em sua quase totalidade), a Princesa D. Isabel, seu marido, Conde d'Eu, o filho mais velho do casal, D. Pedro de Alcântara de Orleans-Bragança, Príncipe do Grão-Pará.

Os inestimáveis papéis arquivísticos, por resolução de Sua Alteza o Príncipe D. Pedro Gastão de Orleans-Bragança, de acordo com intenção antes manifestada por seu pai, foram, em 1941, generosamente doados ao governo brasileiro. Encontram-se, hoje, no Museu Imperial, de Petrópolis, com grande proveito à disposição dos estudiosos de nosso passado monárquico.

Os demais, que constituem as peças do Catálogo «C», de Códices e Livros Manuscritos, do «Inventário> procedido pelo historiador Alberto Rangel, quando o valioso acervo se guardava no Caste'o d'Eu, em França, pertencem ao citado bisneto do Imperador. Cuidadosamente se conservam na cidade serrana, onde, por sua gentileza e amizade, tivemos a satis­fação de examinar um por um, seus 280 lotes. Completamos, então, muitas das indicações com que foram mencionados no referido Catálogo, incluído nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. LV, de 1933 (Rio, 1939), quando Diretor da instituição nosso saudoso amigo Rodolfo Garcia.

Dão perfeita idéia do valor do contingente de Manuscritos na Biblioteca Imperial, a maior e mais rica no século passado organizada por um particular no Brasil, quiçá em todo o continente americano.

Ao examinar, embora de modo sucinto, o grandioso conjunto, men­cionaremos, primeiramente, peças ligadas à História e Literatura de

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Portugal. Depois, as concernentes ao passado e Letras do Brasil. Ou, simultaneamente, do interesse dos dois países, durante quase três sécuios e um quarto, de 1500 a 1822, de existência comum, política e literária. Na parte final, veremos manuscritos relativos a alguns países estrangeiros.

HISTÓRIA DE PORTUGAL

Estritamente interessam à História Portuguesa muitos manuscritos da Biblioteca do Imperador.

Assim, minuciosa Informação de D. Aleixo de Meneses, Aio d'El-Rei D. Sebastião, sobre sua morte na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578 (n? 219-D, do citado Catálogo, daqui por diante sempre mencio­nado pelos respectivos números) . Sobre o mesmo D. Aleixo, o de nº 82.

Catástrofe de Portugal — Nascimento de D. Afonso VI ( n' 120). Conforme nota do bibliògrafo Inocencio Francisco da Silva, dono ante­rior do manuscrito, a parte final deste, da página 175 em diante, foi impressa em Apêndice à Anti-Catástrofe — História d'El-Rei D. Afonso VI de Portugal (Porto, 1845), mas dela difere. Comprára-o em Lisboa, 1867. Passou à posse de D. Pedro II, diretamente ou por aquisição no leilão posterior à morte de Inocencio.

Também do século XVII é outro manuscrito longamente inédito, do português Antônio Coelho Gaseo, magistrado no Brasil falecido em 1666: Primeira Parte das Antigüidades da Mui Nobre Cidade de Lisboa, Empório do Mundo e Princesa do Mar-Oceano (nº 28) . Dedicado ao Cardeal Eduardo Farnese, Governador de Parma. Os bibliógrafos Inocencio e Brito Aranha, relacionaram, no inestimável Dicionário Biblio­gráfico Português, vols. I, VIII, XX e XXII, os poucos exemplares desse manuscrito, existentes em Portugal. Podemos supor que o per­tencente à Biblioteca Imperial tenha procedido do leilão da Livraria dos Marqueses de Castelo Melhor, cujo Catálogo dos Preciosos Ma­nuscritos, sob nº 152, declarava não haver notícia de outra cópia em Portugal, — o que não era exato. De uma das que existiam, somente em 1909-1910 e 1911 publicou-o Simões de Castro, no Arquivo Biblio­gráfico da Universidade de Coimbra, vols. IX, X e XI, daqueles anos.

De interesse para a História de Portugal, embora em grande parte se refira a assuntos eclesiásticos, é a Correspondência de D. João V, contida em cinco volumes, relativa ao período de 1736 a 1742, existente na Biblioteca Imperial (n° 37) . De tanta importância, que para ela chamou especialmente a atenção do Advogado e Procurador da Casa Imperial, Conselheiro Silva Costa, o Conde d'Eu, em nota sobre o destino a ser dado aos mais preciosos manuscritos e livros conforme registramos em trabalho anterior, sobre a Doação da Biblioteca do Imperador, de D. Pedro II, publicado no n' 6 desta Revista, à pag. 9 1 .

A Série dos Reis de Portugal reduzida a Tábuas Genealógicas (n? 209), de D. Antônio Caetano de Sousa (1674-1759), embora

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Carta do Imperador D. Pedro II, dirigida ao Conselheiro de Estado Dr. José da òilva Costa, Advogado e Procurador da Familia Imperial Brasileira, generosa-mente doando a sua riquíssima Biblioteca Particular, Museu Arqueológico e Antro­pologico, Coleções Mineralógicas e Botânicas, à Biblioteca Naconal da cidade de seu nascimento, em que viveu sessenta dos seus sessenta e seis anos de vida; ao Instituto Histórico e Geografico Brasileiro, de que era Protetor; e ao Museu Nacional. Instituições, tôdas, do Rio de Janeiro.

Original no inestimável Arquivo da Família Imperial, pela mesma também doado ao governo brasileiro, que o destinou ao Museu Imperial de Petrópolis, ond* se encontra, com grande proveito posto à disposição dos estudiosos do nosso passado monárquico.

ao escritor Eugênio Gomes, quando este dirigia a Biblioteca Nacional do Rio de janeiro.

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publicada em 1743, era de suma raridade, pela exígua tiragem de 25 exemplares, segundo o Manual Bibliográfico Português de Livros Raros, Clássicos c Curiosos, de Ricardo Pinto de Matos, revisão e Prefácio de Camilo Castelo Branco (Porto, 1878), pag. 534.

Competem simultaneamente, às Histórias Política e Literária de Portugal e do Brasil, por serem de patrício nosso, as Carras, Discurso c Representação de Alexandre de Gusmão (n° 148) . Pertenceram a Inocencio Francisco da Silva, conforme nota sua, de 1855. Segundo a qual, muitas saíram truncadas, no periódico Investigador Português, de Londres; outras seriam inéditas. Razão por que deveriam ser estes manuscritos alexandrinos confrontados com os que coordenou e publicou o benemérito Jaime Cortesão, nas Obras Várias de Alexandre de Gusmão e em seus Documentos Biográficos, parte II, tomos I e II, de Alexandre de Gusmão c o Tratado de Madrid, edições de nosso Ministério das Relações Exteriores (Rio de Janeiro, 1950) . É de nosso interèsse, conquanto já conhecido e publicado, seu Discurso sobre os Tratados de Limites, dirigido ao heróico Antônio Pedro de Vasconcelos, Governador e intransigente defensor da Nova Colônia do Santíssimo Sacramento do Rio da Prata.

Também constam da Biblioteca Imperial manuscritos relativos à Inquisição em Portugal (nº 217) . E lista de presos no Forte da Jun­queira, feita pelo Marquês de Alorna (nº 123).

Cartas de Portugal, sobre o Estado Passado e Presente do Reinei; e juízo crítico às mesmas, por Sebastião José de Carvalho e Melo, é cópia, como outras no Rio adquiridas pela Imperatriz D. Leopoldina a José Maria de Andrade Cardoso, conforme documento n° 482, do maço 9, sem data, do Arquivo da Família Imperial, hoje no Museu petropo-litano (nº 147-B) .

Obras do Marquês de Pombal, em oito códices, como outras peças manuscritas do Imperador pertenceram a Inocencio, conforme nota de sua autoria (nº 40) . A propósito de uma edição de 1820, em 5 vols., de Cartas e Obras de Pombal, assinalou o bibliògrafo, em seu Dicionário, vol. VIII, pag. 215, quanto é incompleta essa publicação. Que talvez possa ser ampliada com os diversos manuscritos pombalinos da Biblioteca Imperial, acrescentamos.

Também Camilo Castelo Branco possuiu, na parte de sua Biblioteca posta em segundo leilão, em 1883, dois exemplares manuscritos daquelas Cartas escritas sobre o Passado e o Presente de Portugal. com o acréscimo das Cartas e Juizo que o Marquês escreveu em 1778. Tiveram o nº 1.861, à pag. 73 do Catálogo da Preciosa Livraria do eminente escritor Carràio Castelo Branco, leiloada em dezembro de 18S3 por Matos Moreira & Cardoso, de Lisboa.

De interesse tanto histórico quanto literário, são as Obras Poéticas contra o grande herói Marquês de Pombal, Secretário d'Estado que foi de Portugal, por desgraça dos portugueses, códice de 372 folhas, com

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copioso indice, em que se recolheram numerosas peças satíricas aparecidas depois da destituição do famoso Ministro de D. José I (N° 151). Pertenceu a um «João Antônio», em 1777; no sécuIo passado, a Ino­cencio, de quem passou a D. Pedro II . (Conforme informação no Dicionário daquele, vol. VII, pag. 215) .

Igualmente contêm escritos contra Pombal, as Queixas apologé­ticas do povo da Córte e Reino de Portugal ( n º 147-B).

Digno de nota é que, entre os escritos do próprio Marquês (N n 40, já mencionados), apareça um contra a Inglaterra, em suas relações com Portugal.

É também este o tema de outro códice, redigido em várias letras, com epígrafe de «Ph. Peine» (Thomas Paine?) ao célebre Abade Raynal: Ensaio Político sobre os crimes de Inglaterra tem cometido contra Portugal (sic) (N 0 147-A).

Assunto a que não foi estranho, na parte econômica, com idêntica veemência, o nosso José Bonifácio de Andrada e Silva, conforme documento da parte de seu Arquivo recolhida ao Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro, do Rio de Janeiro. O qual revelamos por ocasião das comemorações do Bicentenário do Nascimento do Patriarca da Independência (x) .

Ligado à pombalina Reforma da Universidade de Coimbra, de tantas conseqüências para a cultura luso-brasileira, é a cópia de um caderno (conforme nota de Inocencio), sobre a Polêmica matemática, de 1786, entre os lentes Drs . José Monteiro da Rocha e José Anas­tácio da Cunha (N° 147-F) . O último também atingido no poema cômico-satírico O Reino da Estupidez, do mineiro Francisco de Melo Franco (1757/1823). Obra, em nossa opinião, mais contra a detur­pação da Reforma que contra a própria Alma mater coimbrã.

Da Regência e Reinado do Príncipe, depois Rei, D. João VI, em Portugal (1792/1807), e no Brasil (1808/1821), muitas são as peças histórico-literárias manuscritas da Biblioteca de seu neto D. Pedro I I . Citaremos algumas, reservando outras para a parte mais estritamente relativa às letras portuguesas da época.

Relação das Festas do Casamento da Infanta de Portugal, D. Maria Teresa, com o Infante de Espanha, D. Pedro Carlos de Bourbon, a 13 de maio de 1810, 43 ' aniversário do então Príncipe-Regente D. João, pai da nubente (N° 60) . Riscada está a afirmação de ter sido posta em ordem, pelo Padre Joaquim Dámaso Álvares, da Congregação do Oratório, de Lisboa. Figurou entre as cópias vendidas por Andrade Cardoso à Imperatriz D. Leopoldina.

(J) Hélio Vianna — «Economia luso-brasileira no Arquivo do Patriarca», Fo­lhetim publicado no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a 26 de julho de 1963: transcrito na Revista cb Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol 260 de julho-setembro de 1963, p. 321-324.

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Ao Infante D. Miguel dedicou Elogio em versos Bernardo Cunha Ferreira, recitado pelo autor Manuel Álvares Ferreira ( n º 35, omitido no Catálogo de Rangel) .

Alusivo à expulsão de Portugal dos invasores napoleónicos é o «drama alegórico» — A Lisia Libertada ou a Gália Subjugada, em arranjo de obras de Bocage e Pedro Inácio Ribeiro Soares, por um anônimo de 1808 ( n º 34-M) .

um parecer do Desembargador, Conselheiro, depois Ministro Tomás Antônio de Vila Nova Portugal ( n º 35-A); três cartas auto­grafas, a êle dirigidas por D. João VI; uma, não assinada, da Rainha D. Carlota Joaquina (Código nº 221, documentos B, C, D e E) (2) .

De Francisco Joaquim Moreira de Sá o poema O Real Plano, com o retrato de D. João VI, a quem se refere ( n º 45) .

Dirigida ao médico brasileiro Dr. José Corrêa Picanço (1 o Barão de Goiana), foi a «Notícia de um parto bastante raro e extraordinário», dada por Manuel da Costa, da cidade da Guarda (Nº 35) .

Clamando contra a prolongada permanência da Família Real no Brasil, foram as Vozes de Portugal na ausência de seu Soberano (Nº 35-E, onde figura como «Panfleto político»).

Referem-se a episódio da época, versos de D. José Manuel da Câmara, dedicados à D. Luisa de Oeynhausen, a Infeliz (N'º 35-B) . Poeta cujas composições figuram entre as de cópias vendidas por Andrade Cardoso a Imperatriz D. Leopoldina. A citada D. Luisa (1791/1817), que se casou com Heliodoro Jacinto Carneiro d'Araújo, Fidalgo-Cavaleiro da Casa Real, do Conselho de D. João VI, Minis­tro Residente na Suíça — era a sétima filha da famosa Alcippe, 4ª Marquesa de Alorna, 6ª Condêssa de Assumar, pelo casamento Con-dêssa de Oeynhausen, a poetisa D. Leonor d'Almeida Portugal. Autora, esta, de Paralelo da Política, da Potência e Meios dos Roma­nos e dos Franceses ( n º 147-G) . Trabalho que não consta dos ver­betes a ela dedicados por Inocencio, no Dicionário Bibliográfico Por­tuguês, vol. V, nem no respectivo Suplemento, vol. XIII, de Brito Aranha. Igualmente omitido por Olga Morais Sarmento da Silveira, em Mulheres Ilustres — A Marquesa de Alorna (Lisboa 1907) .

Outras poesias, algumas das quais de interesse histórico, do tempo da Regência e Reinado de D. João, fazem parte de quatro conjuntos de cópias vendidas à nossa primeira Imperatriz: Poesias de vários autores, copiadas dos próprios originais; Poesias anônimas, copiadas dos próprios originais, ou Coleção de diversas Obras Poéticas; Coleção de Poesias Várias, dignas de tôda a estimação, que copiou em exação o Padre Joaquim Dámaso Álvares, de bons manuscritos,

(2) Às cartas de D. João a Tomás Antônio, aludimos em Folhetim intitulado «Códice luso-brasileiro de D. Pedro II», publicado no Jornal do Comércio de 7 de novembro de 1969; no qual também aludimos à carta de D. Carlota Joaquina; duas, das de D. João integralmente publicamos em Folhetins do mesmo jornal intitulados: «D. João VI e a carne nos açougues» (de 28 de dezembro de 1969), D. João VI e a questão da Banda Oriental (1820)» (de 1º de janeiro de 1970).

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dos quais a maior parte cram os mesmos originais; Coleção de Obras Poéticas dirigidas ao Marquês e Marquesa de Aguiar, por diferentes autores, em que entra o Barão de São Lourenço (Targini) (Ns. 34, 34-A e 34-U) . Muito há a pesquisar, a respeito, se se quiser iden­tificar os respectivos autores, sabendo-se se são publicadas ou inéditas. Dentre elas, algumas são de brasileiros natos, conforme depois indicaremos.

Conseguida a Independência do Brasil, continuou a História de Portugal a figurar entre os manuscritos da Biblioteca de D. Pedro II.

Assim, no códice de cópias de cartas por nosso Imperador D. Pe­dro I (em 1826 transitório Rei D. Pedro IV, de Portugal), de 1826 a 1828 escritas sobre assuntos de política lusitana, em letra do dili­gente Secretário e Oficial do Gabinete Francisco Gomes da Silva, o Chalaça ( n º 176) . Do ano de 1828, cópias de Portarias relativas a negócios de Portugal (N° 177). De 1831/1832, índice de Corres­pondência do mesmo D. Pedro, então Duque de Bragança, Regente de Portugal em nome da filha D. Maria II, temporariamente des­tronada pelo tio e ex-noivo, D. Miguel ( n º 155).

Do mesmo Duque, ex-Imperador e Rei, é uma bela carta, de São Migue', nos Açores, em 1832 dirigida ao tutor dos filhos que havia deixado no Brasil, José Bonifácio, que, de acordo com outra via, exis­tente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicamos na Revista deste, vol. 260, de julho-setembro de 1963 ( n º 221-A) .

De 1853 será o Pranto pela Morte de D. Maria II, como pêsames enviados a seu irmão D. Pedro II por Fidélis Honorio da Silva dos Santos Pereira ( n º 145).

LITERATURA PORTUGUESA

Deixando a parte histórica, em que também várias vêzes necessa­riamente entraram as letras, e passando a mais pròpriamente literária, nos manuscritos da Biblioteca Particular de D. Pedro II, muito temos a registrar, embora sem esgotar o tema. Mais uma vez se verificará a infiltração de motivos históricos, impossíveis de serem separados daqueles.

Preliminarmente, devemos nos reportar à nossa opinião, expen­dida em Folhetim a 31 de outubro de 1969 publicado no Jornal do Comércio, intitulado «Três fases intelectuais do Imperador». Nele sustentamos que, em seu primeiro período de formação educativa, rece­beu D. Pedro II a influência de um Preceptor pernambucano de formação portuguesa, Frei Pedro de Santa Mariana, Bispo de Crisó-polis, e de brasileiros formados em Coimbra, inclusive o próprio primeiro Tutor, José Bonifácio de Andrada e Silva, e o mais estimado de seus Professores, Cândido José de Araújo Vianna, Visconde e Marquês

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de Sapucaí. Teria sido, portanto, luso-brasileira, essa fase inicial, caracterizada pelo respeito aos clássicos e a outros escritores lusitanos de seu próprio século. Motivo pelo qual figuram estes, em grande número, em sua Livraria, tanto na parte de impressos como na de manuscritos, assim como em sua Correspondência, até agora divulgada. (Notadamente em «Pedro II e intelectuais portugueses», trabalho de Alcindo Sodré, no Anuário do Museu Imperial, vol. VIII, de 1947). como nos diversos relatos, até agora aparecidos, das várias estadas de nosso monarca em Portugal, pátria de seus antepassados do lado paterno.

Além dos manuscritos que já tivemos ocasião de mencionar, no capítulo anterior, a seguir acrescentaremos outros, sucinta ou indireta­mente indicados no Catálogo «C», de Códices e Livros Manuscritos, da Biblioteca Imperial, principalmente sediada no Palácio de São Cristóvão.

Obra impressa, não manuscrita, de 1630, é uma que ali erronea­mente figura: a Breve Composição e Tratado novamente tirado das Antigüidades de Espanha, de João Vaz (nº 43, onde aparece como de João Paz — «Poemas sobre o Rei Almançor». uma nota de D. Pedro II assinala que ganhou o volume quando de passagem por Braga, a 3 de março de 1872, oferecido por Ferreira Caldas, Professor do Liceu bracarense.

Do cronista Rui de Pina, possuía o Imperador cópia manuscrita da Crônica de D. Afonso IV, só publicada em Lisboa, 1633 (nº 160).

Do Padre Antônio Vieira há, no já citado códice n° 121-F, cópia (se não fôr o original, como não parece impossível) do notável Voío sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo, acerca da Adminis­tração dos índios, de 1694. A êle já nos referimos, no citado Folhetim «Códice luso-brasileiro de D. Pedro II», do Jornal do Comércio. Convém acrescentar que no códice intitulado Brasil, sob nº 1.915, à pag. 79 do Catálogo da Preciosa Livraria do eminente escritor Camilo Castelo Branco, também aqui já citado, que entraria em leilão em Lisboa, dezembro de 1883, apareceu cópia desse mesmo parecer vieirino, embora com a data por engano dada como «1691». Teria sido a adquirida pelo Imperador, sempre atento aos leilões de livros, mapas e manuscritos de seu interesse? Em caso afirmativo, tê-lo-ia feito encadernar no citado códice nº 221, se coincidissem as respectivas dimensões, com as de outras valiosas peças nele contidas.

Erroneamente atribuído a «Teixeira Pinto» (aliás o portuense Bento Tei xeira, apenas), mas, na verdade, como depois apuraram Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, aceitando-o Jaime Cortesão, de autoria do também português Ambròsio Fernandes Brandão, constou dos imperiais manuscritos cópia do inestimável Diálogo das Grandezas do Brasil, do primeiro terço do século XVII (nº 204) . Constou, porque não está no Palácio Grão-Pará, de Petrópolis.

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Do poeta Pedro Antonio Joaquim Corrêa Garção (1724-1772), várias são as composições contidas na Biblioteca de D. Pedro II (nº 18). Sabendo-se que suas Obras só postumamente se publicaram, em 1778 e 1812, delas edição mais completa, dedicada ao nosso Impe­rador, em Roma, 1888, artisticamente publicou o brasileiro Conselheiro José Antônio de Azevedo Castro.j

Do erudito D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, Bispo de Beja (1744-1814), obteve cartas inéditas a Biblioteca Imperial (nº 147-E).

Acreditamos que tenha sido dada a D. Pedro II por Monsenhor Joaquim Pinto de Campos, uma carta do militar e matemático por­tuguês Francisco de Borja Garção Stockier (1759-1829), também incluída no códice 221-1. Dirigida ao pernambucano João de Deus Pires Ferreira, seu conhecido de Portugal. Datada de Angra, Açores, 21 de dezembro de 1820, quando o então Tenente-General governava o Arquipélago, contém referências ao poeta, orador sacro e epistològrafo brasileiro Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814). Stockier, que tinha e tem parentes no Brasil, foi, em 1823, intitulado Barão da Vila da Praia. (3)

De José Agostinho de Macedo (1761-1831), possuiu curiosissima carta o Imperador, de grande interesse para a História do Romantismo em Portugal. A 20 de agosto de 1824 dirigida ao então jovem Antônio Feliciano de Castilho, seu ofertante a D. Pedro II (Códice 221-K). Por sua importância, já a divulgamos. (4)

Do polígrafo, eventualmente político e Ministro Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), tinha a Biblioteca Imperial duas peças valiosas. A primeira, uma Mémoire sur l'origine et les progrès pontonniers chez les anciens (n° 142-B) . com texto em francês, grego e latim, datada de 1788, quando o depois filósofo teria apenas 19 anos de idade, atestará sua precoce erudição. A outra, trabalho muito posterior: um exemplar da De la Nature de l'Univers, de Lucano, impresso, mas repleto de notas de sua autoria, com uma carta do Abade Delacouture e a declaração da oferta do livro a D. Pedro II, pela filha de Sil­vestre (nº 41).

A primeira grande figura do romantismo em Portugal a desapa­recer, como Antônio Feliciano de Castilho e Alexandre Herculano ligada à corrente política liberal, em Portugal chefiada por nosso D. Pedro I — foi João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett,

(3) Hélio Vianna — «Códice luso-brasileiro do Imperador», Folhetim do Jornal do Comércio de 15 de novembro de 1969; «Carta de Garção Stockier a um amigo pernambucano», idem, de 16 e 23 de janeiro de 1970.

(4) Hélio Vianna — «Importante documento para a História do Romantismo cm Portugal — Carta de José Agostinho de Macedo ao jovem Antônio Feliciano de Castilho», no boletim Cultura, do Conselho Federal de Cultura, Rio de Janeiro nº 32, de fevereiro de 1970.

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Visconde de Almeida Garrett (1788-1854). Não o conheceu pessoal­mente D. Pedro II, como ocorreu aos dois antes citados. Era, entre­tanto, seu admirador, como prova a concessão, que em 1852 lhe fêz, da Grã-Cruz da Ordem da Rosa. Pelo escritor agradecida em carta que o Imperador guardou. (5)

Em 1864, anunciando-se a realização, no Rio de Janeiro, de leilão de livros remetidos de Lisboa pelo escritor Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), amigo e biógrafo de Garrett, apressou-se o Imperador a mandar que o Dr . Antônio d'Araújo Ferreira Jacobina, Ajudante do Mordomo da Casa Imperial, nele tentasse comprar volumes que tivessem pertencido ao grande escritor, talvez com suas anotações. (6) Entre­tanto, por intervenção de um amigo de Amorim, o bibliófilo luso-brasileiro Francisco Ramos Paz (1838-1919), não se efetivou o referido leilão, devolvendo-se a Portugal os respectivos livros, acompanhados da importância desejada pelo pretendente a vendê-los, 1:472$552 fortes (moeda portuguesa), presente de seus admiradores do Brasil. (7)

Mais tarde, pela primeira vez indo a Portugal D. Pedro II, em 1871 presenteou-o o teatrólogo Francisco Palha (1826-1890), ou o bibliófilo Fernando Pereira Palha Osório Cabral, falecido em 1897, com um original garrettiano, luxuosamente encadernado, o da peça um noivado no Dáfundo, ou Cada terra com seu uso, cada roca com seu [uso (nº 191). A dúvida quanto ao ofertante vem de constar, no volume, apenas « F . Palha»; e na publicação do Catálogo «C», des­conhecido «Flaminio Palha». Se Francisco era elemento oficialmente ligado aos teatros lisboetas, (8) Fernando foi bibliófilo, sendo o Catálogo de sua Biblioteca, em quatro tomos, impresso em francês, Lisboa, 1896. (°) Quanto à peça, teve publicação póstuma, no Teatro Moderno (Lisboa, 1857), conforme Inocencio, no Dicionário Biblio~ gráfico Português, vol. X, pag. 183.

Outro autógrafo de Garrett possuiu nosso Imperador: a carta, datada apenas de «Julho 21», provavelmente de 1847, em que benèvo­lamente apreciou A Festa do Baldo — «Poema misto em oito cantos»,

(5) Alcindo Sodré — «Pedro II e intelectuais portugueses», no Anuário do Museu Imperial, de Petrópolis, vol. VIII, de 1947, págs. 91-92.

Duvidosa cópia de obsceno soneto atribuído a Garrett, intitulado Cupido maganão, contém-se no conjunto do nº 142-C.

(6) Bilhete ao Mordomo Conselheiro Paulo Barbosa da Silva, pertencente à Sra. Carmen Rabelo Penido Monteiro, copiado por gentileza do Professor Américo Jacobina Lacombe, também neto do Dr. Jacobina.

(7) J. Capistrano de Abreu — Francisco Ramos Paz (Rio de Janeiro, 1920), reproduzido em Ensaios e Estudos (Crítica e História), 2' Série (Rio, 1932), pag. 208.

( 8 ) MEndes dos Remédios — Historia da Literatura Portuguesa. 6? ed. (Lisboa, 1930), pag. 516.

(9) Rubens Borba de Moraes — Bibliografia Brasiliana (Amsterdam — Rio de Janeiro, 1958), vol. II, pag. 129.

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naquele ano em Lisboa publicado pelo diplomata brasileiro Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849). Em reedição de 1868, do Rio de Janeiro, de A Festa, reproduziu-se a honrosa apreciação crítica gar-rettiana. Que também figura nas Obras de Almeida Garrett, vol. I (Porto, 1963), pag. 650. Original no citado códice 221-L, da Biblioteca Imperial.

Ainda quanto aos poetas portugueses que do século XVIII pas­saram, ou não, ao seguinte, outra curiosa observação deve ser feita, relativamente aos de cujos versos possuía cópias, ou originais, o Imperador D. Pedro I I .

Assim, do citado Corrêa Garção, teve o editor Azevedo Castro o cuidado de excluir, de suas Obras Poéticas e Oratórias, todos os sonetos que, com benevolência, julgou apenas do «gênero picaresco» — «a fim de não macular o livro» (págs. XXXVI e XXXVII da respectiva «Introdução»).

Não incluindo, portanto, versos fesceninos, que, não se sabe com que procedência, também lhe atribuiu o coletor dos Sonetos inéditos do nº 142-C, do Catálogo «C», de Alberto Rangel. Nos quais, a poesia erótica portuguesa daquela época tem larga e impressionante repre­sentação. Quanto aos versos de «demasiada soltura», existentes em coleção que pertenceu ao Morgado de Assentis (também citado quanto a Francisco de Paula Cardoso), confirmou sua existência o bibliògrafo Inocencio, em seu Dicionário, vol. VI, pag. 392.

Além de Garção, no pequeno e sujo códice está mais longamente presente o famoso Antônio Lobo de Carvalho, nascido, supõe-se, em Guimarães, por volta de 1730, falecido em Lisboa, 1787. (10) José Daniel Rodrigues da Costa (1757-1832), chistoso pasquineiro migue-lista; João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838), Deputado às Cortes, preso de 1828 a 1833, poeta em grande parte inédito; Ricardo José Fortuna (1776-1860), ponto dos Teatros Nacionais, folgazão e plagiàrio autor de farsas e de uma Elegia ao verdadeiro patrono da classe, que seria o famigerado José Agostinho de Macedo; Pedro José Constancio (1778-1818), irmão de Francisco Solano Constancio, autor de versos publicados em coletânea de Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas de Manuel Maria Barbosa da Bocage, outro astro do gênero, aparecida em Bruxelas, 1854; Antônio José Maria Campeio (1780-1851), poeta de muitos inéditos; de Domingos Monteiro de Albu­querque e Amaral (1744-1830), de quem muitas poesias se perderam, segundo Inocencio, é um soneto em que advertia a José Agostinho ser «tempo de mudar de ofício». E ainda o já mencionado Francisco de

(10) Segundo Inocencio, no Dicionário, vol. I, pag. 186, Poesias Joviais e Satíricas de Antônio Lobo de Carvalho somente em 1852, publicaram-se em Cádis, com 200 sonetos e 10 décimas, Apontamentos sobre sua vida: «a frase descomposta e termos obscenos as tornam incapazes de serem lidas pelas pessoas que se abonam de exemplares e modestas».

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Paula Cardoso de Almeida e Vasconcelos, Morgado de Assentis ( 1769-1847). autor e tradutor de peças teatrais, segundo Inocencio, Dicionário, vol. III. págs. 21-22. Súcia das mais representativas, no setor da obscenidade poética, cujas produções, não se sabe como, foram parar na Biblioteca Imperial. Talvez provindas das coleções do bibliógrafo português, de quem nos servimos, para as informações acima. Ainda no mesmo grupo, incluem-se Pedro Caetano Pinto de Morais Sar­mento e o Padre Henrique José de Castro (1764-1829), de quem Inocencio não cita obras satíricas, no Dicionário, vol. III, pag. 185.

De Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), o Elpino Nona-críense da Arcàdia, muitas são as poesias, em cópias (quem sabe se algumas originais?), existentes na Biblioteca Particular de Sua Majes­tade, inclusive as relativas a sua nada brilhante passagem, como magistrado, pelo Brasil. Assim, dedicada a «José Antônio da Silva, assistente em Pernambuco», é «O Cristal e o Topàzio». «O Cauibi» (sic) — «ao Sr. Luis Botelho». «O Tyé» (sic), com anotações. Em conjunto oferecido à Princesa do Brasil, D. Maria Francisca Benedita (n° 18) . Das Metamorfoses, notas e variantes dignas de estudo por quem superar a antipatia que merece o julgador dos conjurados mineiros de 1789. Talvez contribuíssem para diminuir a dura opinião de Nuno Álvares Pereira Pato Moniz, de «que mais parecem prosa arrevezada que versos endecassílabos» (nº 35-F) .

Menos conhecido é outro poeta português também representado nos manuscritos da Biblioteca Imperial: Bento José de Sousa Farinha, em 1820 falecido em Lisboa. Dele é uma Análise da Epístola «ad Pisones», vulgo «Arte Poética», de Q. Horacio Flaco (n° 39) . Quando a redigiu, era Professor Règio de Retórica, na cidade de Lamego, a 9 de junho de 1801.

com, Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875), manteve D. Pedro II boas relações epistolográficas e pessoais, como atestam documentos de sua Biblioteca.

Primeiramente, quatro cópias vendidas por Andrade Cardoso à Imperatriz D. Leopoldina: Monólogo recitado pelo autor, no Domingo Gordo do ano de 1817, antes da representação do entremez intitulado «O Manuel Mendes»; Epístola ao Sr. ]osé Peixoto do Vale; Epístola ao Marquês de Aguiar; A Desesperação — Idilio (nº 130) . Conjunto que no Catálogo «C» figura como Menoliso teatral. Obras da moci­dade do autor.

De maior valor, o Camões — Estudo histórico-poético. Ubèrrima­mente fundado sobre um drama francês dos Srs. Victor Perrot e Armand du Mesnil. Dedicado a D. Pedro II, a quem Castilho enviou o respectivo autógrafo. A publicação foi de Ponta Delgada, Açores, 1849; tendo segunda, em três tomos, Lisboa, 1863.

Castilho, que em 1855 esteve no Rio de Janeiro, foi espontâneo fornecedor de manuscritos literários portugueses à Biblioteca do Impe-

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rador do Brasil. É o que se comprova em três cartas que dirigiu ao amigo deste, o então Barão (depois Visconde) de Bom Retiro, em 1872. com tôdas os enviou, «para o repositório do nosso Imperial coletor, se êle se digna de os aceitar». ( n ) um dêles, a interessante carta que a 20 de agosto de 1824 lhe dirigiu José Agostinho de Ma­cedo, acima mencionada.

Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810-1877), talvez o mais notável escritor português do século passado, sem dúvida o maior historiador de seu país, na mesma centúria, também figurou entre as amizades literárias do Imperador D. Pedro II . como Castilho superior às vaidades dos que se contentam com a obtenção de distinções honoríficas, também pediu licença para recusar a Grã-Cruz da Ordem da Rosa, com que o distinguiu o soberano. Por coincidência, ambos o fizeram no mesmo dia, em cartas de 20 de agosto de 1872: de Lisboa, a do já Visconde de Castilho; de Val-de-Lôbos, a de Herculano. Este, com justo motivo para a recusa: o ter também recusado a Comenda da Tórre e Espada, Que lhe oferecera o falecido amigo D. Pedro V, de Portugal. Castilho, um tanto cáustico, ao acentuar, quanto às «honras que se despem com a casaca», como dizia o próprio monarca: «Reserve-as Vossa Majestade para quem mais valha, e não lhe faltará em quem as Empregue. Poupe-as, sobretudo, para quem necessitar desses estímulos; para os que julgam ocultar-se nas veneras (sic) uma virtude transmutativa do interior, que basta aplicá-las a um peito, para que um espírito se ilumine». (12) Acreditamos, porém, que a causa da indelicadeza teria sido outra: o não ter o Imperador galardoado com uma condecoração brasileira o irmão de Castilho, desde 1847 aqui residente, José Feliciano. Para o qual inùtilmente solicitou uma, em setembro de 1866, em, carta ao prestigioso amigo de D. Pedro II que era o então Visconde de Sapucaí, o desabusado Deputado Monsenhor Joaquim Pinto de Campos. (13) A razão da má vontade do Imperador quanto a José, terá sido, provavelmente, as más informações a seu respeito dadas, quando de sua trasladação para o Brasil, pelo então Ministro brasileiro em Portugal, Conselheiro Antônio de Meneses Vas­concelos de Drummond, conforme minutas da correspondência deste, guardadas no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

um original por Camilo Castelo Branco atribuído a Alexandre Herculano, mas não de sua autoria, na autorizada opinião de seu amigo Antônio de Serpa Pimentel, e do meticuloso crítico de sua obra, J. J. Gomes de Brito, ambos citados pelo bibliògrafo Brito Aranha, o conti­nuador de Inocencio Francisco da Silva no Dicionário Bibliográfico

(11) Alcindo Sodré — op. cit., págs. 98, 100 e 101.

(12) Alcindo Sodré — op. cit., pag. 104-105, 130-133.

(13) Original no Arquivo da Família Imperial do Brasil, no Museu Imperial, de Petrópolis, maço 139, documento nº 6.806, do «Inventário» de Alberto Rangel.

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Folha de rosto de cópia da Parte I do Castrioto Lusitano — Entrepvesa e Restauração de Pernambuco e das Capitanias Confinantes. Varios e Bélicos Sucessos entre Portugueses e Belgas, acontecidos pelo discurso de vinte e quatro anos, e tirados de Noticias, Relações e Memórias certas. Compostos em forma de História. Obra de 1679, em louvor do madeirense brasileiro Mestre-de-Campo João Fernandes Vieira. escrita pelo beneditino português Frei Rafael de fesus.

Códice que pertenceu à Livraria de um Convento português, conforme se lê na última linha desta folha de rosto; depois à Coleção de Manuscritos da Biblioteca Particular de Sua Majestade o Imperador do Brasil, D. Pedro II; hoje de seu bisneto, Sua Alteza Imperial o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, no Palácio Grão-Parã, Petrópolis.

Fotocópia mandada fazer pelo falecido historiador pernambucano Guilherme Auler (1914/1965), que a ofereceu ao autor deste trabalho dedicado aos Manuscritos da Biblioteca Imperial.

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Português, — também possuiu D. Pedro II . Talvez dado pelo diplo­mata e poeta Luis Caetano Pereira Guimarães (1847-1898), antes possuidor do exemplar quanto àquela autoria anotado por Camilo. Trata-se da sátira Os Pedreiros, cujo autógrafo (ou cópia) tem o nº 134 no Catálogo «C», de Alberto Rangel. Escrita em 1828, quando Herculano tinha apenas 18 anos de idade, não poderiam ser dele, apesar da precocidade de sua inteligência, as eruditas notas que acompanham o trabalho, em comentário a versos de Homero. Será, antes, de autoria do famoso panfletário José Agostinho de Macedo. (14)

No já citado códice 221, da Biblioteca Imperial, letras Y e Z, figuram duas cartas de Herculano ao então Padre, depois Monsenhor Joaquim Pinto de Campos, político e escritor pernambucano (1819-1887) . Pelo destinatário certamente oferecidas ao Imperador, como outras que no mesmo precioso conjunto se encontram. São, aquelas, de 1856 e 1857. Documentam o estado de espírito do escritor, então desanimado com o incidente que determinou a interrupção de sua monumental História de Portugal, indignado com a Concordata por seu país assinada com a Santa Sé, a propósito do Padroado do Oriente, causa de veemente folheto seu, de protesto, do último ano citado. (15)

De 1815 possuía a Biblioteca Particular de Sua Majestade o Impe­rador, uma cópia da terceira edição da Nova Castro, de João Batista Gomes (Nº 29) .

Grande como era a «Camoneana» de D. Pedro II, natural é que também entre os manuscritos de sua Livraria aparecesse o drama Ca­mões, do português, radicado em Santos, Francisco Manuel Raposo de Almeida ( n º 194). Publicou-o nessa cidade, em 1851, conforme regis­trou Inocencio em seu Dicionário, vol. II, pag. 458.

uma cópia do poema As Abelhas, em quatro cantos, do Dr. José Pinto Rebelo de Carvalho, português falecido em Campos, estava acom­panhada, na Biblioteca Imperial, de carta de José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, de 31 de dezembro de 1867, dirigida a um Visconde, certamente o de Sapucaí. Diz tratar-se de um «dos primeiros poemas didáticos de nosso idioma». Desejava mandar a cópia a Lisboa, mas antes o fêz àquele titular, porque algumas oitavas eram dedicadas ao seu «imperial discípulo», — o que identifica o destinatário. Acompa­nhava o poema, sugerido pela leitura de Virgílio, o respectivo «Argu­mento» (N'º 74).

(14) Os argumentos citados são de Antônio de Serpa Pimentcl e J. J. Gomes de Brito, no vol . do Dicionário Bibliográfico Português dedicado a Herculano, o XXI, 14: do Suplemento de Brito Aranha (Lisboa, 1914).

(15) Hélio Vianna — «Cartas de Alexandre Herculano a Joaquim Pinto de Campos», na Revista Brasileira de Cultura, do Conselho Federal de Cultura, n° 4, de abril-junho de 1970, págs. 145-151.

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HISTÓRIA DO BRASIL

como é natural, a História do Brasil está bem representada, nos manuscritos que fizeram parte da Biblioteca do Imperador, hoje per­tencente a seu bisneto, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans,-Bra-gança, que gentilmente os colocou à nossa disposição, para este ensaio.

Já mencionamos algumas de suas peças, devidas a autores portu­gueses, quando tratamos da História de Portugal naquela Livraria.

A propósito, poder-se-á afirmar que também quanto à organização de uma «Brasiliana», bibliográfica e em manuscritos, foi precursor Dom Pedro II.

Do começo de nossa História, de meados do século XVI, possuía cópias de cartas de Duarte de Lemos, irrequieto sesmeiro da Capitania do Espírito Santo, bem como do grande Governador Mem de Sá. En­viadas pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, como tantos outros frutos de suas pesquisas nos Arquivos europeus ( n º 192).

Relativo ao lendário quinhentista Frei Pedro Palácios c a Penha (o Convento do Espírito Santo), é um manuscrito datado de 1879, de autoria de Joaquim José Gomes da Silva Neto ( n º 161).

Também se refere a episódios do século inicial do Brasil, outra có­pia pelo futuro Barão e Visconde de Porto Seguro enviada ao Impera­dor: a do Sumário das Armadas que se fizeram e Guerras que se deram na Conquista do Rio Paraíba, inestimável depoimento atribuído ao jesuíta Padre Simão Travassos ( n º 219-B).

Cópia de obra da centúria seguinte, interessante ao nosso país, é a das Observações sobre a transplantação dos [rutos da índia para o Brasil, em 1675 publicada em Paris por Duarte Ribeiro de Macedo ( n º 141-A).

A luta contra os invasores holandeses do Nordeste do Brasil, está representada, entre os manuscritos da Biblioteca Imperial, por um apò­grafo do Castrioto Lusitano, de 1679, de Frei Rafael de Jesus, relativo a João Fernandes Vieira (Nº 207). Dele tirou cópia fotostática integral o pesquisador pernambucano Guilherme Auler (1914-1965).

Do Padre Antônio Vieira, já mencionamos, na parte relativa às Ierras Portuguesas, seu Voto . . . sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo, acerca da Administração dos índios.

Também guardou D. Pedro II os originais de A Vida de Antônio Vieira, de João Francisco Lisboa, dado apenas como «Escritos diversos», datados de 14 de junho de 1872, no «Inventário» de Alberto Rangel {Catálogo «C», nº 152). Incluíram-se no quarto volume das Obras Completas do escritor maranhense. Ofereceu o manuscrito ao Impera­dor seu dedicado editor, Antônio Henrique Leal, em Lisboa, naquela data.

Também enviadas por Varnhagen a D. Pedro II, foram cópias das Notícias Práticas, relativas às Minas Gerais, do jesuíta Padre Diogo Soares, já do Reinado de D. João V (N? 193).

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Já aludimos, na parte referente à História de Portugal, às Cartas do brasileiro Alexandre de Gusmão. Além do que ali foi citado, também de grande interesse nosso, pelo seguimento cronológico e fatual, são cer­tas Carras courra os Jesuítas do Paraguai, de 1753 e 1754 ( n º 119), em espanhol, alusivas ao Tratado de Madrid, de 1750, e suas conseqüências, quanto à cessão, a Portugal, em troca da Colônia do Sacramento, dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Razão pela qual deve­rão ser confrontadas com os «Documentos sobre o Tratado de 1750», publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vols. LII e LIU. de 1930 e 1931 (Rio, 1938), oriundos de cópias na Espanha feitas por Varnhagen, hoje no Arquivo Histórico do Ministério das Re­lações Exteriores. E com os Manuscritos da Coleção De Angelis, vo­lume IV, que na mesma Biblioteca publicamos, contendo peças relativas àquele período.

Ainda com ligação ao assunto da exploração de nossas futuras fron­teiras, é o manuscrito da Navegação do Pará a Mato Grosso, partindo de Belém a 14 de julho de 1749, atingindo o porto da Pescaria, no Rio Madeira, a 14 de abril de 1750, de José Gonçalves da Fonseca ( n º 158). Embora impressa na Coleção de Noticias para a História das Nações Ultramarinas, da Academia Real das Ciências, de Lisboa, tomo IV, de 1826, lembrou Varnhagen, em nota à História Geral do Brasil (3* ed., tomo IV, pag. 108), que se deveria acrescentar o apenso publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 29, parte I, de 1866, vol. 32. Acrescentando Rodolfo Garcia (idem, pag. 109), que boas notas contém a publicação devida a Cândido Mendes de Almeida, nas Memórias para a História do Extinto Estado do Maranhão (Rio, 1874), vol. II, págs. 267-416. A cópia do Imperador, procede de venda feita à Imperatriz D. Leopoldina por Andrade Cardoso.

Diretamente ligada ao Marquês de Pombal e às questões de limites, ao Norte, Noroeste e Oeste do Brasil, é a Instrução Política dirigida a seu meio-irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão ( n º 214). Conviria fossem confrontadas com as Instruções Regias, Públicas e Se­cretas, a êle dadas a 31 de maio de 1751, publicadas por Marcos Car­neiro de Mendonça em A Amazônia na Era Pombalina, edição do Insti­tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo I (Rio, 1963), págs. 26-38.

Não teve a sorte de um bom aproveitamento erudito, certo Roteiro dos Rios da Amazônia, de Monteiro de Noronha, pois o exemplar do Imperador ( n º 55), está truncado, começando à pag. 18, notas de nú­meros 39 a 192. Contém «Lista de Povoações do Bispado do Pará». Tratar-se-á do trabalho do Vigário-Geral do Rio Negro, José Monteiro de Noronha, que o original paraense Filipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente primeiramente publicou no Jornal de Coimbra, número LXXXVII, parte 1?; saiu, depois, na Coleção de Notícias para a His~ tória e Geografia das Nações Ultramarinas, tomo VI, nº I; no Pará, em 1862; afinal, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 67, parte 1\ de 1904, vol. 109. Somente um confronto do manus-

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«i to imperiai com os textos já publicados permitiria a conclusão quanto a conter alguma parte inédita ou diferente, útil à Geografia e História Amazônicas.

Do Reinado de D. Maria I, talvez em parte reabilitando seu, para nós tão antipático Secretário de Estado, Martinho de Melo- e Castro, será sua Memória para o Melhoramento dos Domínios de Sua Majes­tade no Brasil (Nº 220-A).

um Roteiro Corogràfico de 1781., do Sargento-Mor Engenheiro João Vasco Manuel de Braun, é o de mais uma Viagem entre Belém do Pará e Vila Bela de Mato Grosso ( n º 220). Publicou-se na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 23, de 1860, parte 1 ', vol. 23, com outro trabalho seu, que Rodolfo Garcia citou em nota à História Geral do Brasil, de Varnhagen, 5* ed., tomo IV, pag. 277.

De interesse tanto histórico quanto literário, são duas cópias do poema Vila Rica, do conjurado mineiro Cláudio Manuel da Costa, da­tado de 1773, com o respectivo «Prólogo». Embora uma delas muito estragada, talvez a mais antiga, não a adquirida pela Imperatriz D. Leo­poldina a Andrade Cardoso (Nº 36).

Datada de 1799 é a Memória sobre a Capitania das Minas Gerais, de José Vieira Couto, em cujo manuscrito anotou D. Pedro II: «Impressa na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XI», de 1848 ( n º 142-A).

Do último ano do século XVIII, 1800, é uma prudente carta do Ministro da Marinha e Negócios Ultramarinos do Príncipe-Regente D. João, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois Conde de Linhares, aliás neto de brasileira do Rio de Janeiro. Dirigida a D. João de Al­meida Melo e Castro, depois Conde das Galveas, então Ministro de Portugal na Inglaterra, pedia-lhe chamasse a atenção do governo britâ­nico para a necessidade de socorro de seus navios aos portugueses, que iam e vinham do Brasil ( n º 221-N). como de costume, foi bom pro­feta o missivista, pois, no ano seguinte, em conseqüência da Guerra Peninsular, atacou a fragata francesa La Chiffonc, nas costas da Bahia, a portuguesa Andorinha. (16)

Entrando o século XIX, avulta a contribuição relativa à História do Brasil, nos manuscritos da Biblioteca Imperial.

De sua mãe, a Imperatriz D. Leopoldina, guardou D. Pedro II um caderno do ano de seu casamento, 1817, contendo Mes Résolutions. com uma gravura de caráter religioso, e, impresso, seu sinête (Nº 25).

Duas cartas e um bilhete de D. João VI a seu bom Ministro Tomás Antônio de Vila Nova Portugal, de 1818 e 1820, — já foram mencio­nados na parte relativa à História de Portugal, embora interessem à do Brasil.

(16) Hélio Viana — "Manuscritos da Biblioteca do Imperador", Folhetim publi­cado no Jornal do Comércio de 12 de dezembro de 1969.

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De reconhecida importância são as cartas do Príncipe-Regente D. Pedro, logo depois Imperador D. Pedro I, ao pai, Rei de Portugal, datadas de 17 de setembro de 1821 e 6 de agosto de 1822. Embora muitas vêzes publicadas, nem sempre com inteira fidelidade, dúvidas que a respeito ainda se mantêm poderão ser esclarecidas mediante consulta a esta fonte fidedigna. Mais raras, provavelmente inéditas, duas cópias de cartas de D. Pedro à sua mãe, D. Cariota Joaquina, de 7 de novem­bro de 1821 e 14 de março de 1822. como outra, déle dirigida a outro «Pedro», talvez o então Conde de Pálmela, D. Pedro de Sousa Hol-stein. (Tôdas no nº 233, em «Copiador de cartas», «começado de um e outro extremo», conforme a anotação de Alberto Rangel, no Catá­logo «C»).

Ainda quanto à Princesa do Brasil, Rainha de Portugal e Impera­triz nominal do Brasil, D. Carlota, profundamente interessam à História das intervenções luso-brasileiras no Rio da Prata, no período joanino carioca, quatro grandes volumes de copiadores de sua Correspondência ( n º 261). Em um dêles, encontramos decisiva documentação quanto ao famoso e indecoroso Plan de Moreno, por ela enviado ao irmão Fer­nando VII de Espanha. Aproveitou-a, no livro Epifanía de la Libertad — Documentos secretos de la Revolución de Mayo, o historiador argen­tino Enrique Ruiz-Guiñazú (Buenos Aires, 1952), decidindo, de vez, a questão da autenticidade daquele documento.

Do mesmo período é a Descrição ou Roteiro da Viagem às Feitorias do Maranhão e Goiás no ano de 1815, de Francisco de Paula Ribeiro ( n º 124).

Simples extratos das Memórias para servir à História do Reino do Brasil, do Padre Luis Gonçalves dos Santos (Padre Perereca), relativas ao ano de 1818, numa das cópias vendidas por Andrade Cardoso à Imperatriz D. Leopoldina ( n º 121).

Também se refere a acontecimentos anteriores à Independência do Brasil, a Recordação dos Acontecimentos da Bahia em 1821, de Antônio Ferreira Rebouças ( n º 179). Publicadas no Rio de Janeiro, 1879, em suas Recordações Patrióticas, com ocorrências posteriores.

uma Carta sobre a Agricultura e Comércio da Bahia ( n º 141), ampliou-se para Cartas-Econômico-Políticas sobre a Agricultura e Co­mércio da Bahia, do português João Rodrigues de Brito (Lisboa, 1821 ), há anos reeditadas pela Livraria Progresso, da Bahia, com o título A Economia Brasileira no alvorecer do século XIX.

Importantes, embora já exploradas por Alberto Rangel, em Trasan-tcontem (São Paulo, 1943), em síntese, são as Aras do Apostolado (Ns. 42 e 243), a Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, socie­dade secreta andradina, de que fêz parte o Príncipe-Regente D. Pedro, logo depois Imperador. Datadas de 1822-1823 e de 23 de fevereiro a 27 de maio de 1823, estas as da Terceira Palestra.

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Também de interesse histórico, pelas identificações que contém, é o livro de Juramentos Maçônicos (N° 44) . Provavelmente arrecadado por D. Pedro I, quando temporariamente fechou a Maçonaria em outu­bro de 1822. Além de sua assinatura, «D. Pedro de Alcântara», em primeiro lugar, mais as de José Bonifácio de Andrada e Silva, Luis da Nóbrega de Souza Coutinho, Joaquim Gonçalves Ledo, João Mendes Viana, José Clemente Pereira, José Joaquim de Lima e Silva (depois Visconde de Majé), Manuel Carneiro de Campos, Albino M. dos Santos Pereira, Pedro José da Costa Barros, Ataíde Moncorvo, Manuel Joaquim de Meneses (depois historiador da Maçonaria Brasileira), Luis Manuel Álvares de Azevedo, João Egidio Calmon, Manuel da Fonseca Lima e Silva (futuro Barão de Suruí), Francisco José dos Reis Alpoim, Amaro Velho da Silva (depois í" Visconde de Macaé), Rui Germano Possolo, Joaquim Francisco Leal, Manuel Inocencio Pires Camargo, Bernardo José de Figueiredo, Joaquim José de Sequeira, Antônio Cor­rêa Picanço, José Maria Pinto Peixoto, João Martins Lourenço Viana, Francisco de Paula e Vasconcelos, Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto (mais tarde \° Barão de Igaraçu), Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Frei Francisco de S. Paio (sic), Francisco Maria Ve-loso de Barbuda (Barão de Pati, Visconde de Lorena e Marquês de Jacarepaguá), João Vieira de Carvalho (Barão, Conde e Marquês de Lajes), Manuel Antônio Farinha (Conde de Souzel), José Egidio Gor-dilho Veloso de Barbuda ( 1 ' Visconde de Camamu ), Antônio Gomes Barroso Filho, José Muniz de Amorim Rangel, C. ten Brinck, Manuel José de Sousa França, Manuel Teodoro d'Araújo Azambuja, João da Rocha Pinto E.S. (Eleito Secreto), João Crisóstomo Passo (Rosa Cruz), Manuel Antônio Álvares de Azevedo, João Maria da Gama e Freitas Berquó (Barão, Visconde e Marquês de Cantagalo), Luis de Saldanha da Gama (Visconde e Marquês de Taubaté). Figuras, como se vê, das mais representativas da Regência de D. Pedro, da Independência e do Primeiro Reinado.

Pela Constituição do Oriente Brasileiro, juravam os maçons: «Pro­meto não ter tratos ilícitos com esposa, mãe, filhas e irmãs de Mações (sic) e ser extremoso pai, desvelado esposo, obediente filho, honrado cidadão, exemplar religioso e prestável amigo».

A Abdicação de D. Pedro I, sua estada no porto do Rio de Janeiro, de 7 a 12 de janeiro de 1831, a viagem para os Açores e Europa, estão bem documentadas em seu Copiador denominado «Miscelánea» (Nú­mero 163) . «Atos públicos e particulares», como esclareceu Alberto Rangel, em grande parte já explorados por Otávio Tarquínio de Sousa c pelo autor destas notas, por gentileza de D. Pedro Gastão de Orléans--Bragança, trineto do Fundador do Império.

Ainda de 1831 existe na Biblioteca Imperial um poema «semi-bur­lesco» — A Piriseida ou os Rusgucntos, contra o então Presidente da Província de Santa Catarina, Feliciano Nunes Pires (N: 53-A).

Do tempo da preparação, para o exercício de suas funções majestá-ticas, do Imperador D. Pedro II, é a Católica Instrução de um Pai a seu

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Filho, de 1838, de Baltazar da Silva Lisboa (1751-1840), dedicada ao Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, destinada aos alunos do recém-criado Imperial Colégio de Pedro II, mas que permaneceu inédita ( n º 12). Talvez pela saída do governo de Bernardo, em 1839, e morte do autor, no ano seguinte. Não consta da lista das obras de Baltazar, apresentada por A. V. A. Sacramento Blake, no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, vol. I.

Do diplomata Miguel Maria Lisboa, depois Barão de Japurá, guar­dou D. Pedro II o manuscrito de uma Memória sobre as Relações entre o Brasil e a Venezuela, de 1847 (N'-1 46).

Quando o Imperador foi visitar Provincias da Costa Leste e Nor­deste, em 1859-1860, procurou informar-se, por escrito, sobre os locais históricos que visitaria. Motivo pelo qual para êle redigiu o pernam­bucano Adelino Antônio de Luna Freire — Apontamentos sobre Igaraçit ( n º 11). Guilherme Auler, quando preparou a publicação da imperial Viagem a Pernambuco em 1859, edição do Arquivo Público Estadual, do Recife, em sua Revista, vol. 7-8, de 1950-1951, e em separata, ã instituição também enviou cópia daquela monografia, para posterior di­vulgação. O autor era Juiz Municipal de Igaraçu (op. cit., pag. 89).

Também tem interesse histórico, além do geográfico, a Viagem ao Paraguai, em fevereiro e março de 1869, em forma de cartas ao Tenente--Coronel Benedito Marcondes Homem de Melo, escrita por Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo (Barão Homem de Melo). O original contém parte manuscrita, parte em recortes de jornal, colados em folhas de papel ( n º 6) . Dado por Joaquim Luis Osório, filho do Marechal Marquês do Erval, ao ex-Príncipe do Grão-Pará, D. Pedro de Orléans-Bragança. Não figurou, portanto, na Biblioteca do Impe­rador. Publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra­sileiro, tomo 36. parte 2*, vol. 47, de 1873.

Para a boa compreensão da orientação política de D. Pedro II, como titular do Poder Moderador, tem grande importância o manuscrito nº 255 de sua Biblioteca, no Catálogo «C» apenas apresentado como «Livros (sic) de Rascunhos». Trata-se, nada menos, que das Instru­ções pelo Imperador dadas à filha D. Isabel, Princesa Imperial, quando, pela primeira vez, iria ausentar-se do país, deixando-a na Regência do Império. Publicou-as, em 1956, em fac-símile, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança. No ano seguinte, devidamente aprovei­tou-os, em A Democracia Coroada, João Camilo de Oliveira Torres. Transcreveu-as, o mesmo historiador, em erudita edição crítica — Con­se jos a Regente (Rio, 1958).

A emancipação da escravatura foi assunto tão empolgante, no mes­mo ano de 1871, que Idéias para coordenar a respeito, escreveu e publi­cou, nesse ano, a parteira Maria Josefina Matilde Durocher (1808--1893), ficando com o Imperador o respectivo manuscrito ( n º 47). Nascida em França, a autora aqui se integrou, diplomando-se e perten­cendo à Academia Imperial de Medicina.

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De Roberto Armênio é um manuscrito da Biblioteca Imperial dedi­cado à Guerra Platino-Brasileira, datado de 14 de abril de 1874 (Nú­mero 258 ). Do autor, declarou Sacramento Blake, em seu Dicionário, vol. VII, não saber se se tratava de nome autêntico ou pseudônimo, apontando-lhe outras obras, relativas às máquinas a vapor e Estrada de Ferro de São Fidélis a Santo Antônio de Pádua, na Província do Rio de Janeiro.

Interessando-se por tudo quanto se referisse ao Brasil, inclusive quanto às possibilidades de desenvolvimento econômico, natural é que fosse ter à Biblioteca do Imperador, embora com oferta a seu neto, o Príncipe do Grão-Pará, filho de D. Isabel e do Conde d'Eu, um Catá­logo de Madeiras do Brasil, do Capitão de Estado-Maior de Artilharia Norberto de Amorim Bezerra, datado de 1887, acompanhado das res­pectivas amostras ( n º 38) .

De José Augusto Caldas, um Vocabulário dos Bororós ( n º 89).

LITERATURA BRASILEIRA

Muitos manuscritos da Biblioteca Particular do Imperador, que po­deriam ser classificados entre os de Literatura Brasileira, já foram men­cionados, em páginas anteriores, dedicadas à História e Letras Portu­guesas, como à própria História do Brasil. São os casos, por exemplo, das cópias de trabalhos e cartas do santista Alexandre de Gusmão. Do original da biografia do Padre Antônio Vieira, por João Francisco Lisboa. E ainda as cópias do poema histórico Vila Rica, do conjurado mineiro Cláudio Manuel da Costa.

Neste capítulo não os repetiremos, acrescentando apenas os a ela especificamente ligados. Também não poderemos manter ordem rigo­rosamente cronológica, embora às vêzes nos atenhamos às datas de nas­cimento dos autores, noutras ocasiões às dos trabalhos em apreço.

Começando pelo século XVII, convém lembrar que pertenceram a D. Pedro II, sendo, atualmente, da Seção de Manuscritos de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, dois códices de poesias do famoso satírico baiano Gregorio de Matos Guerra (1623-1693), o Boca do Inferno. Serviram, parcialmente, para as últimas publicações de suas Obras: a da Academia Brasileira de Letras, em seis volumes, de 1923-1933, organizada por Afrânio Peixoto; da Editora Cultura, de São Paulo, 1943, em dois volumes; da Editora Janaína, da Bahia, em sete tomos, de 1970, arbitràriamente preparada por James Amado sob o título Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Procederam, aqueles dois códices, da Livraria do bibliògrafo Inocencio Francisco da Silva, que os mencionou em seu Dicionário Bibliográfico Português, tomo III.

uma tradução do poema Sacchari Opificio Carmen, do carioca Pa­dre Prudencio do Amaral (1675-1715), sobre a indústria do açúcar, fêz João Gualberto Ferreira dos Santos Reis, nascido em Santo Amaro,

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Bahia, falecido cm meados do século passado, irmão de Ladislau dos Santos Titara. Sob o título Geórgica Brasileira possuia-a D. Pedro II, tendo o nº 132 no Catálogo «C», do «Inventário» de Alberto Rangel. Datada da Bahia, 1845, em dois tomos, dedicada ao Imperador. com o mesmo título, passado para o plural, acompanhado da tradução do De Rusticis Brasiliae Rebus Carmine, publicou a Academia Brasileira de Letras, em 1941, os dois trabalhos, preparados por Regina Pirajá da SiK'a como Geórgicas Brasileiras. Rubens Borba de Moraes datou a tradução de João Gualberto de 1817.

De José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), de grande im­portância histórica e biográfica, é o seu Discurso de posse na Maçonaria Brasileira, a 23 de julho de 1822, incluído em décimo-terceiro lugar (le­tra M ) , no precioso códice nº 221, da Biblioteca Imperial. Integral­mente o publicamos, anotado, em três dos Folhetins do Jornal do Co­mércio, do Rio de Janeiro, de 21 e 28 de novembro, 5 de dezembro de 1969; incluindo-o no livro José Bonifácio — Acréscimos à sua Biografia, a ser publicado pela Comissão Estadual de Literatura, do Conselho Es­tadual de Cultura, de São Paulo. Trata-se de documento indispensável à História da Independência do Brasil.

Dentre as obras andradinas puramente literárias, também na Biblio­teca de D. Pedro II, inclui-se Titiro, tradução do Primeiro Idilio de uma das Bucólicas de Virgílio (nº 56). Consta das Poesias Avulsas de Américo Elisio, em suas três edições, de Bordéus, 1825, Rio de la-neiro, 1861 e 1942. Note-se que, ao contrário do Discurso maçônico, não está essa versão na conhecida letra de José Bonifácio.

Quando no exílio, em Cauderan, perto de Bordéus, a 23 de outubro de 1824 escreveu o Andrada a seus amigos Antônio de Meneses Vas­concelos de Drummond e José Joaquim da Rocha, que continuavam em Paris: «Traduzi a Primeira Écloga de Virgílio, e estou com a Segunda entre mãos». (17) Realmente, a última das Poesias Avulsas de Amé' rico Elisio, na edição princeps, é exatamente «Titiro — Idilio primeiro de Virgílio». Precedida da «Advertência» seguinte: «Não chamo às Bucólicas de Virgílio Éclogas, mas sim Idilios, como os de Teocrito, a quem imita; porque a palavra Écloga, em grego, não significa, em geral, poesia pastoril, mas somente Obra escolhida, entre outras várias». (18)

Talvez seja do baiano Luis Antônio de Oliveira Mendes, nascido em 1748, o Canto heróico a propósito da Fundação do Templo e Con­vento de Mafra ( n º 34-1). Conforme Rubens Borba de Moraes, «dei­xou inúmeros trabalhos inéditos, que estão provavelmente perdidos». Dele citou, na Bibliografia Brasileira do Período Colonial (S. Paulo, 1969), págs. 230-234, duas Memórias de 1792, relativas à sua Máquina de Dilatação c Contração.

(17) Cartas Andradinas", nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XIV, de 1886-1887 (Rio, 1890), pag. 3.

(18) Op. cit., pag. 141.

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No capítulo dedicado à Literatura Portuguesa, mencionamos a co­leção de «Sonetos inéditos», quase todos obscenos, do nº 142-C da Biblioteca Imperial. Nele também figuram dois autores brasileiros: Ma­nuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), numa simples sátira estu­dantil, intitulada «Quem não souber que coisa é sabatina»; e o piauiense Ovidio Saraiva de Carvalho e Silva, estudante em 1810 formado na Universidade de Coimbra «que presumia de só fazer tão bons versos como o grande poeta Ovidio», seu xará ou tocaio, autor de outro soneto da suja coletânea.

Do dicionarista Antônio de Morais Silva (1757-1824), há uma surpresa entre os manuscritos do Imperador: uma ode «À Grã-Breta­nha», de 1808, em que exalta a aliada de Portugal, em sua luta contra Napoleão ( n º 221-V). Embora assinada apenas pelas iniciais «A. M. S.», contribui para essa atribuição de autoria o fato de ter o futuro Senhor do Engenho de Muribeca se abrigado naquele país, quando perseguido em Portugal pela Inquisição. Além de ter escrito pelo me­nos outra ode, esta já a favor do novo Império do Brasil e contra os portugueses. (19)

De seu amigo, o poeta orador sacro e epistològrafo Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), há uma carta no mesmo códice 221-H, dirigida à jovem pernambucana D. Joaquina Angélica Pires Fer­reira, filha de seu contemporâneo de Coimbra João de Deus Pires Ferreira, futura Baronesa de Cimbres. Publicamo-la no boletim Cultura, do Conselho Federal de Cultura, do Rio de Janeiro, nº 31, de janeiro de 1970.

Dentre os escritores brasileiros pouco conhecidos, de que possui manuscritos a Biblioteca Imperial, inclui-se o baiano Professor José Francisco Cardoso de Morais. Sua Carmen, em latim, dirigida ao Príncipe-Regente D. João, lá está, talvez no próprio original ( n º 108). Para português vertida por seu amigo Bocage. Refere-se à expedição de portugueses a Trípoli. Publicou-se em Lisboa, 1800, nas duas lín­guas, conforme referência de Rubens Borba de Moraes na Bibliografia Brasileira do Período Colonial (S. Paulo, 1969), pag. 82.

Do maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864), vários são os autógrafos da Biblioteca Particular de Sua Majestade. Nada menos que a cópia da tão discutida tradução em verso da Odisséia, de Homero, em dois volumes ( n º 271); a tradução do Livro Primeiro da Eneida Portuguesa (sic) ( N ' 95) ; e a da Primeira Écloga de Virgílio (Nú­mero 139). A segunda, muito combatida por um protegido de D. Pe­dro II, por muito tempo residente em Paris, onde faleceu, o Dr. Caetano Lopes de Moura (1780-1860).

A primeira obra, inteiramente ultrapassada, pela moderna versão do Professor Carlos Alberto Nunes (S. Paulo, 1960).

(19) Hélio Vianna — "Manuscritos da Biblioteca Imperial", Folhetim publicado no ¡ornai do com^-cío, do Rio de Janeiro, a 19 de dezembro de 1969.

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Depois da cópia do Livro Primeiro, vem a do Livro Segundo; esta, porém, começando pelo Livro XVI, à pag. 88, vai até o XXIV, pag. 147, com «Nota» e «Advertência». O total, segundo um esclarecimento, seria de 24 livros, com 12.106 versos. Ou, de acordo com outros da­dos: a versão em 9.398 versos, o original com 13.116. Grande total: 2 2 . 5 H versos. Cópia feita por Carlos de Barros Falcão Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, em 51 dias, não em 31, como fora calculado. com duas datas, que perfazem os 51 dias: 23 de dezembro de 1870 e 11 de fevereiro de 1871, Acompanha o artigo autobiográfico de Odo-rico, de 13 de março de 1860, aproveitado no Panteon Maranhense, de Antônio Henriques Leal, vol. I (Lisboa, 1873).

De acordo com sua biografia, depois de viver na Europa de 1847 até 1864, quando faleceu na Inglaterra, lá conseguiu publicar, em Paris, 1854, a Eneida Brasileira ou tradução poética da epopéia de Virgílio Maro, em 392 págs., com anotações. É, também na capital francesa, em 1858, o Virgílio Brasileiro ou tradução do poeta latino, 2' edição, aumentada, da obra anterior, com a Bucólica e Geórgicas, também ano­tadas, em 800 páginas. No Rio de Janeiro, já em edição póstuma, de 1871, saiu a Iliada, poema de Homero em verso português, 312 páginas. Conforme informação do bibliógrafo Sacramento Blake, em seu DÍCIO-nário Bibliográfico Brasileiro, vol. VI, Odorico deixou inédita a tradu­ção da Odisséia. Seria esta a edição para a qual o Imperador fêz co­piar o manuscrito acima descrito, que permaneceu em sua Biblioteca. Antônio Henriques Leal, no Panteon Maranhense, cit., registrou o boato de que o Magnânimo a faria publicar em Leipzig. Mas, tendo a irmã do tradutor, Militina, trazido da Europa seus autógrafos, não se fazendo, não se sabe por que motivo, aquela edição, na Saxônia, arrecadou-se no Maranhão a quantia de 6:590$268, que, com o mesmo fim, enviou-se ao Rio de Janeiro. (20) Somente em 1928 foi publicada a Odisséia, «em verso português», de Odorico. Teve novas edições, em São Paulo, do Professor Silva Bueno, em 1955 e 1957. Em nova tradução, de Carlos Alberto Nunes, também edições paulistas, em 1960 e 1962.

A propósito, convém notar que também D. Pedro II traduziu a Iliada, em 444 páginas de texto manuscrito, hoje no Arquivo da Família Imperial do Brasil, no Museu Imperial, de Petrópolis. (21) E, quanto à Odisséia, já no exílio ocupou-se em comparar a tradução de Odorico com o original. (22)

Versão poética da Eneida, anterior à citada, foi a dedicada a Dom Pedro II, que guardou os dois tomos de seus manuscritos, encadernados em couro (N° 76), de autoria de João Gualberto Ferreira dos Santos Reis, na Bahia publicada em 1845, também em dois volumes.

(20) Op. cit., págs. 97-98. (21) No maço 47, documento nQ 1.077, do Catàlogo "B", de Manuscritos sem

Data, do "Inventário" de Alberto Rangel. (22) Hélio Vianna — "Diários do Exílio de D. Pedro II (1889-1891)", em

D. Pedro / e D. Pedro II — Acréscimos às suas Biografias (S. Paulo, 1966), pag. 268.

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Passando a um amigo de Odorico, Joaquim Caetano da Silva (1810--1873), guardou a Biblioteca do Imperador parte dos originais das lei­turas prévias da inestimável memória L'Oyapoc et l'Amazone, quando feitas em português, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Nú­mero 232). Da quarta, de 7 de maio de 1858, à vigésima-sexta. Co­meçando, esses originais, por uma carta do autor a D. Pedro II, de Paris, de 6 de fevereiro de 1859. Quando tratava da publicação, em francês, do referido trabalho, em sua forma primitiva aparecido na Revista do Instituto, tomo XIII, de 1860. A conclusão do manuscrito, de tanto valor para a decisiva argumentação brasileira na questão de limites do Amapá, traz, depois da palavra «Fim», um registro sentimen­tal: «Paris, l9 de maio de 1860, 15° aniversário de minha filha». (23)

como se sabe, a obra foi impressa no ano seguinte, na capital francesa, em dois volumes, a expensas do Imperador. Reeditou-a, pela terceira vez, entre os tomos relativos ao arbitramento para a solução daquele dissídio fronteiriço, o nosso representante perante o árbitro, o Conselho Federal Suíço, o Barão do Rio Branco, em 1899. como to­mos IV e V de Le Mémoire et les Documents soumis par les États-Unis du Brésil à l'Arbitre, com Sumário e Notas.

De Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Barão e Visconde de Araguaia, são igualmente valiosos os manuscritos, tanto da Biblioteca do Imperador como de seu Arquivo, este por seus descenden­tes generosamente doado ao governo brasileiro.

Naquela, datada de Porto Alegre, 1844, aparece o original ou cópia, com notas no final, da tradução do poema de Lamartine A Morte de Sócrates ( N ' 53-B3). Não consta da coletânea de traduções brasi­leiras do poeta francês intitulada Lamartineanas, no ano de sua morte, 1869, publicada no Rio de Janeiro. Entretanto, no respectivo Prefácio, com razão assinalou o editor, Antônio Joaquim de Macedo Soares, ter sido Magalhães um dos poetas brasileiros por Lamartine influenciados. Consta, aquela tradução, do vol. VI das Obras Completas do Visconde de Araguaia, publicadas em Viena.

No citado Arquivo, há outra poesia de Magalhães dedicada «À Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro Segundo, no Faustosíssimo Dia 2 de Dezembro, Aniversário de seu Glorioso Natalicio». É o se­guinte, o respectivo estribilho:

«Brilha, ó Dia de Esperança ! Brilha de novo, almo Dia ! Cresce ó Núncio da bonança ! Mensageiro de Alegria !»

(23) Esta, Laura, casou-se depois com João Antônio de Oliveira. Filha de Joa­quim Caetano e da francesa Susana Clotilde de Moinac, que êle conhecera quando estudante em Montpellier.

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Em bela caligrafia, não traz data, mas alguém assinalou, a lápis: «1851»; 269 aniversário do Imperador. (24) Não se incluiu nas Obras de Magalhães.

Mais importante é a cópia integral de seu poema A Confederação dos Tamoios ( n º 57). Pelo próprio autor enviada ao monarca, con­forme carta de Paris, 12 de julho de 1855, no mesmo Arquivo. (25) São 306 páginas, em papel de Breton Frères & Cie. com «Argumento» e texto, «Notas», estas às págs. 307-326.

Obras anônimas, versando temas brasileiros .permitem a suposição de ter sido nosso patrício, ou estrangeiro aqui radicado, seu autor. Será o caso dos versos de trinta Noites Brasileiras, em 1813 oferecidas ao então Príncipe da Beira, nosso futuro D. Pedro I (Nº 35-C) .

Clemente Ferreira França, no Primeiro Reinado Visconde e Mar­quês de Nazaré, era poeta, em 1815, conforme versos desse ano. na Biblioteca Imperial. Datado às «margens de Aguiar e Margura» (Nú­mero 34-P) . Não mencionou versos seus o bibliògrafo Sacramento Blake.

Do também baiano Paulo José de Melo de Azevedo e Brito (1779-1848), é um Elogio em aniversário de D. João VI (Nº 1 ) .

Igualmente d» Bahia, Frei Francisco de Paula de Santa Gertrudes Magna, >eneditino nascido em 1770 ou 1780, autor de Canto Poético ao então Príncipe Real D. Pedro ( n º 4 ) .

Do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878), Barão e Visconde de Porto Seguro, já registramos, na parte de / 7 Í S -tória do Brasil, várias cópias de documentos da especialidade, que enviou ao Imperador e ficaram em sua Biblioteca Particular.

Vinte e duas cartas suas, de 1852 a 1871, inclusive duas sem data, dirigidas a D. Pedro II, publicaram-se no Anuário do Museu Imperial, vol. IX. de 1948, págs. 157/236. Guardadas no Arquivo da Família Imperial, com vários Anexos. Outras, aí omitidas, embora em grande número existentes na mesma fonte, incluiu Ciado Ribeiro de Lessa, na Correspondência Ativa, de Varnhagen, em 1961 publicada pelo Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação. A tôdas acrescentamos mais duas dezenas, pelo diplomata e escritor dirigidas aos Mordomos da Casa Imperial. Conselheiro Paulo Barbosa da Silva e Barão (depois Visconde) de Nogueira da Gama, à nossa disposição colocadas pelo Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança. Procedentes do Ar­quivo da Mordomia, publicaram-se na Revista de História, de São Paulo, em 1970.

(24) Maço 23, documento n° 849, dos Manuscritos sem Data, no "Inventário" de Alberto Rangel.

(25) Maço 115, documento nº 5.738 do "Inventário" de Rangel. Transcrita em nosso artigo "D. Pedro II, a distribuição e a revisão da Confederação dos Tamoios", publicado na Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.

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De Varnhagen também é o drama histórico americano, em quatro atos e três mutações. Amador Bueno, de manuscrito com introdução em letra diferente do texto. Fundamentado na História de São Paulo (aliás Memórias para a História da Capitania de São Vicente ), de Frei Gaspar da Madre de Deus. Não teve numeração no Catálogo «C», de Alberto Rangel, situando-se entre os de números 35 'E e 35-F. Publicou-se em Lisboa. ]#47: com segunda edição em Madrid, 1858.

De Antônio Gonçalves Dias (1823/1864), possuía o Imperador preciosos autógrafos. com o respectivo carimbo, numerado «2», datado do Porto, 1844. um «Prólogo», os poemas «1 — O Satélite», «II — Passamento». E fragmento de Meditação. (Conjunto nº 112). O último, datado de 8 de maio de 1846. Dessa Meditação, em estilo bíblico, escrita quando Gonçalves Dias voltou de Coimbra para o Maranhão, publicaram-se os três únicos capítulos existentes, com exceção das últimas partes, de VII a XIII, do Capítulo III, na revista Guanabara, do Rio de Janeiro, de págs. 102, 125 e 171. Segundo o bibliógrafo Nogueira da Silva, «é esta uma das produções mais originais que em prosa deixou Gonçalves Dias. Filha de dupla inspiração, reflete superiormente o seu acendrado amor pátrio e patenteia finalmente os altos e raros recursos de sua potente e fecunda imaginação» ( 2 6 ) . Seria útil que se fizesse o confronto entre os originais dos «Fragmentos» da Biblioteca Imperial e o texto publicado.

«O Satélite», poesia datada de Pitões, 1844. faz parte do conjunto de «Visões» dos Primeiros e dos Segundos Cantos. O autor, julgando-a, talvez, inferior àquelas, deixou-a inédita, só se publicando nas Obras Póstumas, organizadas por Antônio Henriques Leal, no Maranhão, 1868 ( 2 ? ) . «Passamento» é a terceira parte das citadas «Visões».

Maior conjunto de manuscritos gonçalvinos é o de nº 273 da Bi­blioteca do Imperador. Contém cartas e poesias, com uma nota final: «59 volume de Dias».

Sua peça mais antiga é o drama Beatriz Cenci, de 1845. Outro, o Boabdil, em 5 atos, traz a declaração de autoria substituída por estre­linhas .

uma das missivas, dirigida a um «mano», que realmente o não era, seu amigo de Coimbra, o também maranhense Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, de 10 de abril de 1848, contém notas à margem, do punho do próprio Imperador, nela mencionado. Opiniões políticas e o nacionalismo do poeta, aí aparecem. Comentou a pouco anterior inau­guração, no Instituto Histórico, dos bustos de dois de seus fundadores, o Cónego Januário da Cunha Barbosa e o Brigadeiro Raimundo José

(26) M. Nogueira da Silva — Bibliografia de Gonçalves Dias, ed. áo Ins­tituto Nacional do Livro (Rio, 1942), pag. 51.

(27) Manuel Bandeira — Obras Poéticas de Gonçalves Dias (São Paulo, 1944), 2* tomo, pag. 350.

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da Cunha Matos. Sessão de 6 de abril, em que recitou seu «Canto inaugural», dedicado à memória daquele sacerdote. Mencionou essa carta o biógrafo de Gonçalves Dias, Antônio Henriques Leal, no Pan­teon Maranhense, tomo III (Lisboa, 1874), págs. 219/220.

com a declaração de redigida em Lisboa, consta da coletânea a poesia «É alegre a flor que brota». Depois incluída em seus Versas Póstumos. H-448/449.

Datadas de maio e junho de 1861, de Manaus, são: «O nosso índio errante vaga», «Se o que somos, se o que temos sofrido», «A minha rosa». «Ciúmes», «Se te amo, não sei», «Se muito sofri, já não m'o perguntes», «como, és tu?» — tôdas coligidas nos Versos Póstumos! (Maranhão. 1868J .

Do mesmo ano de 1861 é «Que coisa é um Ministro», sátira contra o titular da pasta do Império, João de Almeida Pereira Filho, do Ga­binete presidido pelo Conselheiro Angelo Muniz da Silva Ferraz, depois Barão de Uruguaiana

«Carta a um amigo», de 15 páginas, assim termina: «Visto que cheguei aos índios, faço aqui ponto, para tomar fôlego».

A poesia intitulada «A minha Filha», datada de Manaus, l9 de maio de 1861, figura na edição Gamier, de 1910, organizada por Joa­quim Norberto de Sousa Silva, págs. 292/293.

Do Arquivo de D. Pedro II, ora pertencente ao Museu Imperial, publicadas no respectivo Anuário, vol. XI, de 1950, existem 22 cartas de Gonçalves Dias ao Imperador, datadas de 1854 a 1858, de quando o poeta esteve na Europa, comissionado para superintender a cópia de documentos interessantes à História do Brasil em Portugal e, nesse e noutros países, estudar a organização da instrução pública, tendo em vista o aperfeiçoamento da brasileira.

Muitos são os dados puramente literários dessa correspondência. Inclusive a sua crítica, com várias restrições, ao, poema A Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, depois Barão e Visconde de Araguaia, de que D. Pedro II, seu editor, lhe enviara exemplar, por intermédio da Mordomia da Casa Imperial.

Também digna de nota, a carta em que Gonçalves Dias ofereceu a D. Pedro II o poema Os Timbiras, a êle dedicado.

como se vê, valiosa é a gonçalvina da Biblioteca e do Arquivo do Imperador.

Do baiano Demétrio Ciríaco Tourinho (1826/1888), possuía a Bi­blioteca Imperial, datada de 1885, a tradução, ao monarca oferecida, de A Feiticeira, de Teocrito, «Idilio Segundo» (nº 21 ) . Traduções, do mesmo ano, dos Cantos VI, XI e XVI, da Odisséia (nº 102). E de Odes, de Anacreonte (nº 116). Trabalhos, estes, não citados por Sa­cramento Blake, no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, vol. II.

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A ascensão ao Trono de D. Pedro II ofereceu ocasião para que o Dr . Joaquim José Teixeira, datado de 20 de agosto de 1840, com­pusesse um Elogio Dramático, de que eram personagens o Brasil, a Anarquia, a Paz e Fúrias. como outros originais oferecidos ao Im­perador, muito bem caligrafado (nº 9 8 ) .

A Coroação do monarca, no ano seguinte, deu oportunidade para o aparecimento de muitos versos comemorativos. Entre eles, um Hino, de Joaquim José de Sousa Rios, 39 Escriturario da Tesouraria da Pro­víncia do Rio de Janeiro, em papel especial e bela caligrafia, com mú­sica de Francisco Manuel da Silva (nº 78) .

Será, talvez, mais um medíocre precursor do romance brasileiro, José Rufino Rodrigues de Vasconcelos, Amanuense da Contadoria-Geral anexa à Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, que em 1841 ofereceu a D. Pedro II, em boa caligrafia, a história de Idalina, ou A Rainha das Fadas (nº 63) .

De Francisco José Pinheiro Guimarães (1809/1867), «Bacharel em Leis», havia, na Biblioteca Imperial, uma tradução de Sardanápalo. «tragédia histórica de Lorde Bvron. vertida do original inglês e adap­tada ao gosto do Teatro Nacional» (nº 50) . Também de sua autoria, uma «tentativa» de versão do Child Harold, do mesmo Byron, em quatro pequenos volumes (Nº 61 ) . Publicaram-se em 1863. conforme o Di­cionário de Sacramento Blake, vol. III .

Entre as muitas traduções manuscritas guardadas pelo Imperador, não poderia faltar alguma de Shakespeare: Macbeth, de Augusto Fer­reira dos Santos, médico carioca, autor de obras de sua especialidade (nº 110).

Para que se veja a variedade dos manuscritos remetidos ao Impe­rador, registre-se o Breve Compêndio de Música, de 1855, de João Apilo Moniz (nº 51 ) . E, de Fìdélis Honorio da Silva dos Santos Pereira, uma Tese sobre a Pureza da Conceição de Maria Santissima, Nossa Senho­ra ( nº 53 ) .

De Custódio de Oliveira Lima, português, brasileiro adotivo, é um Ramalhete Poético, de 1854, oferecido ao Imperador (nº 77). Começa com mais uma glosa à famosa quadrinha de D. Pedro II ao «Fiel povo ituano». como versos alusivos a D. Pedro IV, D. Maria II, ao Prín­cipe D. Pedro Afonso, à Princesa D. Leopoldina. Publicara, antes, em 1835, um Elogio a D. Pedro, Duque de Bragança, conforme Sacra­mento Blake, Dicionário, vol. II .

Do brasileiro Júlio Constancio de Villeneuve, ao fim do Império diplomata e Conde papalino, um dos principais proprietários do Jornal do Comércio, guardou D. Pedro II, em manuscrito, o libreto do poema lírico em três partes. Paraguaçu, baseado no poema Caramuru, de Frei Santa Rita Durão, pósto em música pelo mesmo Villeneuve e por J. O. Kelly. Paris, 1855 (nº 181).

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Do filho c homônimo do Padre José Mauricio Nunes Garcia (1808/1884), é uma poesia, em bonita letra, «Ao Memorável Dia 2 de Dezembro — Aniversário Natalicio de Sua Majestade o Senhor D. Pedro II», oferecida por aquele «humilde súdito».

De Joaquim Norberto de Sousa e Silva ( 1820/1891 ), são os Cantos Épicos (Nº 34-0), dedicados ao Imperador, publicados em 1861. como em outros casos, terá submetido, antes, ao soberano, um exemplar ma­nuscrito, para autorizar a dedicatória.

Teatrólogo dos mais abundantes, Francisco Travassos Valdez, a 30 de maio de 1878 requereu. alegando ter escrito e oferecido um Teatro Trágico, «de sua propriedade», com mais de cinqüenta (!) tragédias inéditas, em manuscritos e em versos, de 5 atos cada uma. Semelhantes às que em 1866 ofereceu ao Imperador, intiHiladas As Amigas Ricas. Demétrio Griska e Romeo. Embora o Conservatório Dramático tivesse tido ordem para examiná-las, não recebera seu parecer ( 2 S ) . Realmente, entre os papéis da Biblioteca Particular de Sua Majestade, existem aquelas três peças, que o Catálogo «C». de Rangel, registrou como «Tra­dução» (Nº 114).

Bem conhecida a proteção por D. Pedro II dispensada ao Maestro Antônio Carlos Gomes. Entre os manuscritos de sua Biblioteca, figura, encadernada em couro, a letra de sua primeira ópera lírica, A Noite no Castelo, de autoria de A. J. Fernandes dos Reis (n1? 2 ) . E o libreto de 11 Guarany, de A. Scalvini, de 1866, com mensagem sua (nº 118) . Terminado, como se sabe, para as representações de 1870, em Milão e Rio de Janeiro, por outro libretista, Cario d'Ormoville.

Do baiano Antônio José dos Santos Neves, militar, depois funcio­nário do Ministério da Guerra, é um poemeto oferecido a D. Pedro II, sobre O Marquês de Caxias, de 1870. Refere-se à Guerra do Paraguai esse manuscrito encadernado, como tantos outros da Bibliote?a Impe­rial (Nº 15). Faz parte de obra maior, intitulada Homenagem aos Hérois Brasileiros na Guerra contra o Governo do Paraguai sob o Comando-em-Chefe dos Marechais-de-Exército Sua Alteza Real o Senhor Conde d'Eu e o Duque de Caxias. Oferecida «a Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro II», publicou-se no Rio, naquele mesmo ano. Primo­rosamente impresso, contém oito poemas e sonetos. Inclui retratos do Imperador, dos Almirantes Barão do Amazonas e Visconde de Inhaúma, dos Marechais Duque de Caxias, Marquês do Erval e Conde d'Eu.

Obras dos mais diversos gêneros guardou a Seção de Manuscritos da Biblioteca Imperial. Até um Compêndio de Civilidade em forma de Silabario, de Carlos Augusto Soares Brasil (nº 189). O autor, Pro­fessor de Instrução Primária na Província do Espírito Santo.

(28) Documento 8.176, maço 179, do Arquivo da Família Imperial, no Museu Imperial, em cujo verbete se declara que o autor da mensagem propunha-se a engajar imigrantes para o Brasil.

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De José Maria Maso (não «Manso», como está no Catálogo «C»), de 1843, um Método para garantir os limites das propriedades das terras (Nº 146) .

De Alfredo Seelinger, uma Idiomografia — «Quadro das línguas e dialetos vivos e mortos do Globo», já com a folha de rosto impressa, do Rio, 1873 (nº 162).

De Luis Maria Vidal Júnior, oferecido à Imperatriz D. Teresa Cristina, datado de 1862, do Seminário do Caraça, Minas Gerais, é o manuscrito de Painéis do Universo ou Explanações sobre a Geografia Física e Matemática. Inclusive algumas observações geológicas (Nº 62). E, oferecidos ao Imperador, seus Ensaios Filosóficos (Nº 169). Obras, estas, não incluídas nas que Sacramento Blake, Dicionário, vol. V, in­dicou como do professor barbacenense. falecido em Juiz de Fora, 1882, «Luis Maria Vidal» (sem o Júnior).

De Joaquim José Fulgencio Carlos de Castro (1817/1880), o manuscrito, de 1873, de seu Guia para uma viagem às águas minerais de Caxambu, acompanhado de uma breve notícia sobre a povoação e de um esboço sobre as mesmas águas (Nº 219-A). Publicado no mesmo ano.

Também figura entre os vários tradutores, de manuscritos incluídos na Biblioteca Imperial, José Pedro Xavier Pinheiro (1822/1882), com pequena parte da Divina Comédia. Tradução apenas do Canto I, iniciada a 26 de dezembro de 1874, encerrada a 26 de fevereiro de 1875 (nº 59) . Pòstumamente publicou seu genro todo o trabalho, em 1888, 487 páginas, compreendendo Inferno, Purgatório e Paraíso. Do mesmo ano em que apareceu outra tradução póstuma integral, da Di' vina Comédia, esta do médico e amigo do Imperador, Francisco Boni­fácio de Abreu (1819/1887), Barão da Vila da Barra.

De José Alexandre Teixeira de Melo, guardou o Imperador as Efemérides Nacionais, inicialmente publicadas na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1881 (nº 30 -A) . Em cópia contendo a lista dos Ministérios e uma Notícia dos Senadores.

Do último ano da Monarquia brasileira, 1889, existem ainda algumas peças em manuscritos da Biblioteca imperial. Do Barão de Paranapia­caba, companheiro de D. Pedro II na tradução do Prometeu Acorren­tado, de Esquilo, um «Soneto e glosa» (Nº 272) . Do ex-hóspede do Palácio de São Cristóvão, Múcio Scoevola Lopes Teixeira, datado de Caracas, onde era nosso Cônsul, o poema bíblico em sete cantos Mu­lheres do Evangelho, de Larming. com a capa desenhada para com­posição na Imprensa Nacional e página reservada para o retrato da Princesa D. Isabel, que nesse ano festejou Bodas de Prata, um mês antes da Proclamação da República (nº 90 ) .

Tradução das mais interessantes, dentre as do acervo de manus­critos imperiais, a da Escola dos Maridos, de Molière, feita e autenticada

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nor Artur Azevedo. Ofereceu-a ao Imperador com a seguinte explica­ção: «Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Santana, aos 4 de junho de 1889, 227 anos, 11 meses e 21 dias depois de apresentada pela primeira vez, em Paris. Cópia tirada pelo próprio tradutor Artur Azevedo. Rio, 1* de agosto de 1889, pertencente a Sua Majestade Imperial» (nº> 87) .

De autoria do próprio D. Pedro II, figuram entre os seus manus­critos, não propriamente trabalhos literários merecedores dessa classifi­cação. Mas simples exercícios do constante estudioso que sempre foi. Traduções da Biblia, versículos dos Provérbios e Eclesiastes. em latim. com emendas, talvez de um de seus últimos professores, que estuda­remos em trabalho especial (nº 5 ) . Trechos de traduções do latim para português, de alguns dos livros bíblicos, o de Ester, de fó, de Daniel (nº 113). como a letra não é do Imperador, e uma está datada de Paris, 6 de fevereiro de 1868, sefá lícito supor seja do primeiro dos mestres estrangeiros que em sua idade adulta contratou, o alemão Fer­dinando Koch, então Preceptor do filho de sua amiga, a Condêssa de Barrai e da Pedra Branca, Dominique, depois Conde de Barrai e Marqués de Montserrat.

Seus, ainda a modo de exercício ou distração, pois nao se consi­derava poeta, serão alguns versos (nº 10) . Talvez os publicados pelos netos, filhos de D. Isabel e do Conde d'Eu, em volume, hoje rarissimo, de 1889: Poesias originais c traduções de Sua Majestade o Senhor Dom Pedro II (Homenagem de seus netos), (Petrópolis, 1889), 106 págs. , edição limitada.

LETRAS ESTRANGEIRAS

Conhecido, sobretudo depois de suas primeiras viagens à Europa, como Mecenas literário, D. Pedro II passou a ser reqüestado por escri­tores, de vários países, que à sua munificencia recorriam, como já vimos quanto a brasileiros, para a eventual publicação de suas obras, nem sempre de real valor.

É o que atestam numerosas peças de sua correspondência. Tanto a constante do Arquivo da Mordomia da Casa Imperial, como a por seus descendentes generosamente doada ao governo brasileiro, que a destinou ao Museu Imperial, de Petrópolis. Daí a remessa, ao Brasil, de muitos originais manuscritos, que permaneceram na Biblioteca Par­ticular de Sua Majestade.

Outros, êle os adquiriu em leilões públicos, realizados em Portugal (conforme aqui anteriormente comprovamos), em livrarias especializadas da Europa, etc. E também os ganhou, oferecidos pelos próprios au­tores. Ou remetidos por amigos e admiradores, a respeito conhecedores de seu amor pelos livros, publicados ou inéditos.

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Embora não seja completo, oferece boa amostra, a propósito, o Ca­tálogo «C», de Códices e Livros Manuscritos, última parte do «Inven­tário» no Castelo d'Eu procedido pelo historiador Alberto Rangel. Per­tencem seus exemplares, presentemente, ao Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, que muitas vêzes gentilmente nos permitiu sua cosulta. Graças à sua amabilidade e interesse pela cultura, aqui po­demos divulgar outros dados, quanto a esse importante setor das ativi­dades intelectuais de nosso grande Imperador.

Note-se que, além de manuscritos, pròpriamente ditos, também fi­guram, entre os adiante citados, vários trabalhos litografados, como à época se usava fazer. Serão devidamente assinalados.

FRANCESES — Não se devendo considerar estrangeiros aos por­tugueses, a primazia entre os autores alienígenas presentes em manus­critos da Biblioteca Imperial, cabe, naturalmente, aos franceses.

Dos que trataram das línguas de nossos indígenas, destacou-se o Cónego Vigário João Pedro Gay, com seu Manuel de Conversation en Portugais, en Guarany, en Espagnol et Français (nº 201), de 1865. Ano em que o remeteu ao General Barão (depois Visconde e Conde) de Porto Alegre, com carta de 7 de abril, para que o entregasse ao Imperador ( 2 9J .

E Leon Mounier, com um Vocabulário Botocudo (nº 23), de 1875. Do mesmo autor e do mesmo ano, oferecido ao Conde d'Eu, hâ um Étude sur la méthode d'instruction en général (nº 26 ) .

um Cours d'Huppologie, de 1862, de Félix Vogeli, professado na Escola Militar do Rio de Janeiro, onde era Mestre de Hipiátrica (nº 182), serão as mesma Lições de Hipologia, igualmente em francês, depois men­cionadas (Nº 275). Êquitation-Dressage, de Alexis de Reus, de 1888, em bela caligrafia (nº 84), também tinha cabimento em Biblioteca de descendente de D. Duarte, autor do Livro de Ensinança de bem ca­valgar .

Tema brasileiro, o de dois volumes oferecidos ao Imperador pelo autor, Dr. Roux, de Brignolles — Le Brésil — Ses maladies endémiques — Ses épidémies (nº 8 ) . uma apreciação desfavorável sobre o medíocre trabalho, já antiquado, do Dr. Roux, encontra-se, em sete páginas manuscritas, no Arquivo da Família Imperial, no Museu Imperial, datada de 17 de outubro de 1881, assinada por «N. de A . » . Iniciais do então jovem, mas já brilhante médico Dr. Nuno Ferreira de Andrade ( 3 0 ) .

Da conhecida parteira do Rio de Janeiro, nascida em França, Maria Josefina Matilde Durocher, já mencionamos Idéias para coordenar a respeito da Emancipação (nº 4 7 ) .

(29) Maço 136, documento Nº 6.671 do '"Inventário" de Alberto Rangel, no Museu Imperial.

(30) Maço 185, documento Nº 8.436 do "Inventário" de Alberto Rangel, no Museu Imperial.

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Ainda no setor da medicina à época de D. Pedro II, muito nos interessariam anteriores Observações sobre a Febre Amarela, de Bazin de Fontenele (nº 34 -V) .

Igualmente de assunto nosso, o trabalho de Eugène Collin — Recherches sur quelques plantes utiles du Brésil (Nº 265) . Dentre elas, pelo menos económicamente interessante, embora para a saúde do homem até hoje muito discutida, a que mereceu as Boutades humoristiques contre l'Abus de Tabac, de J. Mouillet (Nº 14) .

uma tradução francesa dos Lusíadas, do Rio, 1875, de Al. de Cool, morador no Beco das Carmelitas, 4 (nº 154), será peça manuscrita da notável «Camoneana» do Imperador, hoje na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. como se sabe, no exílio dedicou-se D. Pedro II a estudos de literatura comparada, inclusive no setor das traduções do maior épico da língua ( 3 1 ) .

Não faltou, no conjunto de manuscritos franceses, um poema de 1850, em dez cantos, Le Christ, de I. Castel (Nº 101). Ou simples petição versificada, de A. de Villermont (Nº 52) . Ambos muito bem caligrafados, como de uso em originais destinados ao Imperador.

Também é sabido que D. Pedro II em 1872 visitou Mistral, subsi­diou comemorações do Félibrige, chegando a publicar, pouco antes de morrer, em Avignon, um pequeno volume de Poésies hebraïco-proven-çales du Rituel Israélite Comtadin, aqui reeditadas em 1968. Motivo pelo qual também existe, entre manuscritos de sua Biblioteca, uma co­leção de Poucsio Prouvençalo (Nº 69) . De Remilly, na Alsácia-Lorena, a êle remetida pelo Dr . Frédéric Estre, que conhecia aquela predileção de nosso culto soberano. Ao manuscrito acrescentou um exemplar do Perir Almanach Mosellan, redigido por alguém que usava o pseudônimo Chan heuvlin, destinado a propagar o patois loreno, que dizia ameaçado, tanto pelos ocupantes alemães como pelos próprios franceses. Lamentou, a propósito, que o Imperador não conhecesse a língua maternal da Lorena, rica de humor e de sentimento.

Indiretamente, mais nos interessaria o Étude sur la Langue et la Littérature Portugaise, de 1884, de Louis Alphonse Gavard (Nº 103).

Autores franceses de assuntos militares tiveram manuscritos na Bi­blioteca Imperial. Trabalho em dois volumes, do General François Perrier (1833/1888), da Academia de Ciências do Instituto de França, muito interessado em geografia e cartografia, sobre Les Connétables, les Maréchaux et Amiraux de France, veio tanto para o Imperador (Nº 274), como para o Conde d'Eu, Marechal do Brasil (nº 156) ( 3 2 ) .

(31) Helio Vianna — D. Pedro I e D. Pedro II — Acréscimos às suas Bio­grafias* cit., págs. 273 e 276.

(32) Perrier, colega e correspondente de D. Pedro II, conforme cartas suas, de 1880, 1884 e 1887, no Arquivo da Família Imperial, cit. Na primeira das quais agradeceu a Comenda da Ordem da Rosa, com que fora agraciado.

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Ao Príncipe Gastão de Orléans pertenceriam, talvez, outras obras da especialidade, no «Inventário» de Rangel arroladas. Assim, de 1864, trabalho litografado, sobre o Serviço de Saúde Militar (nº 65 ) . De 1869, mensagem de Robert Gillon, sobre um novo fuzil (nº 66) . (Lembre-se que, como Presidente da Comissão de Melhoramentos do Exército, ao Principe-Maréchal, genro do Imperador, coube cuidar do aperfeiçoa­mento do respectivo material bélico, inclusive a introdução das armas Comblain) ( 3 3 ) . De Ch. Kunerte, um memorial sobre Telegrafia Mi-\itar, com fotografias coloridas (nº 185). De Júlio Pontié, a segunda parte de um Tratado sobre a esgrima (nº 184). Matéria de que foi Mestre do jovem D. Pedro II, ao tempo das Regências, o então Major Luis Alves de Lima, depois Marechal-de-Exército, Barão, Conde, Mar­quês e Duque de Caxias.

Quaisquer assuntos que pudessem ter ligações com a economia bra­sileira, figuravam na Biblioteca Imperial. Assim, tanto uma Mémoire sur les teintures alcooliques, de Joseph Bonjean, 1851 (nº 166), como Le Sucre en France, 1888 (nº 173). Ou que pudessem significar algo para o nosso progresso, como a Memoria sobre a Telegrafia Submarina, de 1857, de Baleffrini (nº 172-A). Ou a Nouvelle Organisation de l'École Royale des Ponts et Chemins, trabalho litografado, de Defre-taine, 1839 (nº 235) .

Pertencendo o Imperador, no Instituto de França, inicialmente, à Seção de Geografia, natural a existência, em sua Biblioteca, de ma­nuscrito sobre a Expedição à Terra do Fogo, de E. Pertuiset, 1877 (nº 183). |

Interessarão à História Francesa, um Discours du siège de la Ville de Rouen, em 1591 (nº 140), como o ¿issai Statistique à l'Étude de la Presse Franco-Allemande de 1870-1871, de J. Marchner (nº 9 4 ) .

Curiosa peça manuscrita é constituída pelos Souvenirs intimes, de Monsenhor Félix Dupanloup, Bispo de Orléans, e Alexandre Dumas Filho. Trata-se de carta dirigida a Robin de Scévole, Deputado do Cher, bisavô do brasileiro pelo nascimento Dominique de Barrai, filho da Condessa de Barrai e da Pedra Branca, que parece ter feito a res­pectiva cópia (nº 33-E) ( 3 4 ) .

Álbum franco-brasileiro, é o que sob nº 19 contém, na Biblioteca Imperial, desenhos de Luis Aleixo Boulanger (Mestre de D. Pedro II ) ,

(34) Monsenhor Dupanloup foi autor de Estudo sobre a M acortaría, no Brasil traduzido pelo então Padre João Esberard, depois primeiro Arcebispo do Rio de Janeiro. — Hélio Vianna — «Bibliografia da Qeustão Religiosa», nos Estudos de 'História Imperial, citados, pag. 285.

(33) Helio Vianna — "Zelando pelo melhor armamento do Exército", ca­pitulo de "O Conde d'Eu, advogado dos que serviram na Guerra — Cartas do Prín­cipe Gastão de Orléans ao Tenente-General Caldwell", nos Estudos de História Im­peria! ( S . Paulo, 1950), págs. 252-253.

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de um dos Taunay (vista de Jurujuba), mas também do nosso Manuel de Araújo Pôrto-alegre, futuro Barão de Santo Ângelo.

ITALIANOS — Depois dos franceses, aparecem, relativamente à quantidade, na Biblioteca Imperial, os autores italianos. O que em parte se deverá à nacionalidade napolitana da Imperatriz D. Teresa Cristina Maria de Bourbon-Sicílias.

O que com maior número de peças aí figura (cinco), é o drama­turgo e comediógrafo Conde de Prota. Que também comparece com um códice de Pensamentos, outro de Discurso, este de 1865 (ns. 196 a 200).

Segue-se-lhe, em Dissertação Teológica, três volumes em latim, de Falletti (nº 58) .

Depois, La Guida del Popolo, de Luigi Benedicti, dois volumes, de 1871 (nº 68 ) .

Alguns títulos exemplificarão a variabilidade dos manuscritos ita­lianos do Imperador. De urti Rietreto della Storia de Maccabei (Nº 208), a Lavori Chimici i Tecnici, de Vicenzo Manteri, 1844, parte do traballio jã impressa (nº 72) . De um Tratado sobre o Bicho da Seda, de Victor Giandoni (nº 186), a Elementos de Pedagogia, de Giovano Giuseppe (nº 195). De Pasquale Manfré, de 1846, muito bem litografada, uma História da Mediana Mitica (nº 73 ) . De Marzial Perri, de 1889, La Storia Sacra narrata al popolo in 107 sonetti, obra oferecida a D. Pedro II (nº 22) . De Socrates Cadet, Tese sobre Colera (nº 92). outra ter­rível doença de interesse do Brasil oitocentista.

Parecem referir-se ao nosso país certas Noticias de História Pátria. em italiano (nº 208-A). Talvez o Tributo di un Italiano, ossia Storia del Brasile narrata ai giovani delle Scuoti italiani, de Domenico Ionata, Mestre-Escola de Guglionesi, Provincia de Molise. Ou opúsculo sobre o nosso país, do Padre Giovanni Dulcetti, de Borgo Laino, Calabria. Ambos constando da Correspondência da Mordomia da Casa Imperiai do Brasil com a nossa Legação em Roma, Arquivo hoje pertencente a Sua Alteza o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, igual­mente colocado à nossa disposição ( 3 5 ) .

ESPANHÓIS — A mais valiosa peça manuscrita espanhola da Bi­blioteca Imperial, será o drama sacro de 1619, de Lope de Vega — Las Hazañas del segundo David (nº 143) . Tão importante que o Príncipe D. Pedro Gastão levou-a para a Espanha, a fim de ser estu­dada por especialistas.

Impresso, ali também se encontra o trabalho de 1751, do beneditino e polígrafo Frei Benito Jerónimo Feyjóo y Montenegro (1676/1764), intitulado El Terremoto y su uso (nº 28-A) .

(35) Helio Vianna — "A Biblioteca do Imperador", na Revista Brasileira de Cuitara, n» 5, de julho-setembro de 1970, pag. 54.

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De 1849 é o Nuevo Colón o El Libro de los Fiscales Escribanos, de D. Juan Bautista Simo y Cifuente (nº 33-A) .

uma Historia Genealógica de algumas Famílias de España (nº 32), e outros trabalhos, participam dos manuscritos da representação espa­nhola na Biblioteca de D. Pedro II .

Sem incluir, é claro, a já mencionada cópia, feita pelo alemão Júlio Platzmann, da Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil, de 1595, do canarino Padre José de Anchieta (n° 99) . com reedição pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, conforme já as­sinalamos.

ALEMÃES E AUSTRÍACOS — De germânicos que vieram ao Rio Grande do Sul, existiam, na Biblioteca Imperial, dois valiosos álbuns ilustrados, ainda não reproduzidos, embora disto presentemente se cuide.

O primeiro, de Carlos Emil, é o Álbum Imperial — Lembrança da Rio Grande, que só tem impresso o respectivo título (nº 16) . Encader­nado em seda, ferros dourados. Contém interessantes desenhos a lápis, litografados, de cidades e aspectos gaúchos, com legendas ainda ma­nuscritas. Trata-se de verdadeira preciosidade iconográfica, pois data da primeira viagem de D. Pedro II àquela Província, em 1845, logo após a pacificação da Revolução Farroupilha.

O segundo, do mesmo Carlos Emil Buhlmann, agora com o sobre­nome declarado, já é de 1857; contém desenhos a aquarela, carta e so­brecarta do autor (Nº 218) . No fim, um mapa geográfico do Rio Grande do Sul. com o anterior, foi, por D. Pedro Gastão de Orléans-Bra-gança, emprestado ao gaúcho Sr. Jaime Bastían Pinto, para que provi­denciasse sua artística e necessária publicação.

De Jordan, em alemão, dois manuscritos na Biblioteca Imperial: Princípios de Química, de 1801/1802 (nº 249); e Bases da Economia, dois volumes (nº 252) .

Dentre as cópias pela Imperatriz D. Leopoldina adquiridas a An­drade Cardoso, inclui-se uma da Memória sobre o Brasil para servir de Guia aos que nele desejam estabelecer-se, do Cônsul-Geral da Rússia no Rio de Janeiro, o alemão Barão Georg Heinrich von Langsdorff (nº 35 -D) . Publicou-se em francês. Paris, 1820; no Rio, em português. tradução de A- M. de Sam Paio, 1820 (" 6 ) .

Também pertenceu à então Arquiduquesa, depois Princesa Real e Imperatriz D. Leopoldina, uma História da Religião, antes do Nasci­mento de Jesus Cristo, de Vicente Arnanet, datada de 1813 (nº 248) . como poderão ter sido seus, outros manuscritos em alemão: uma Geo­grafia, de 1817 (nº 54); outra Geografia d'Alemanha (nº 253) . Obras

(36) Rubens Borba de Moraes — Bibliografia Brasiliana (Amsterdam—Rio de Janeiro, 1958), vol. I, págs. 388-390.

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que, a rigor, poderão ser de austríacos, nao, pròpriamente, de alemães. (Lembre-se que o pai de D. Leopoldina foi Francisco II da Alemanha, I da Áustria).

uma Descrição da Ilha da Madeira ( nº 33); Pflanzeureich von Cuba, de Tito Visino, 1858, com desenhos de plantas, a pena e sépia, dois vols, (nº 259), — são outros manuscritos germânicos. Catálogo de livros em alemão (nº 251), e até Anotações sobre o enjôo, do Doutor Hufeland (nº 250), também da Biblioteca de nosso «Kaiser», como a D. Pedro II chamavam os alemães de Petrópolis.

Talvez provenham do Ministro austríaco no Rio de Janeiro, antes no Cairo, Barão Gustavo von Schreiner, Princípios elementares de língua árabe vulgar. Acompanhados de uma coleção de Diálogos familiares, também em árabe e francês (nº 104). Porque, com êle travando nosso Imperador cordiais relações no Egito, 1871, teve-o na Corte do Im­pério, inclusive como seu professor daquela língua, quando aqui re­presentou a Áustria-Hungria, entre 1875 e 1882.

como indício de que até estudos da língua turca teria feito D. Pedro II, entre os manuscritos de sua Biblioteca constam Elementos de Gramática Turca, de 1885, atribuídos ao nosso diplomata Barão de Aguiar de Andrada (Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrada), (nº 107).

INGLESES — Do clérigo e químico inglês, simpatizante da Revolu­ção Francesa, Joseph Priestley (1733/1804), é uma cópia de Revoluções dos Impérios (nº 33-C) .

De J. R. Young, seu Catecismo de Algebra (nº 48), com Apêndice do Conselheiro Cândido Batista de Oliveira ( nº 49 ), Professor de Geo­metria das Princesas D. Isabel e D. Leopoldina, filhas do Imperador, em 1862 ( 3 7 ) .

GRÉCIA — Traduzido do grego para o inglês por George D . Ca­nale, «a Iacynthian», figura entre os manuscritos da Biblioteca Im­perial a Ode to Liberty, de Dionisos Salomos (nº 105) .

HÉBREU — Bem conhecido é o interesse de D . Pedro II pelos estudos hebraicos. Razão por que, entre os manuscritos que possuía, encontram-se, já de 31 de ianeiro de 1890, portanto depois que seguiu para seu amargo e injusto exílio, Deux poèmes Hébreux, em hebraico e francês, oferecidos por Roubin Solomon Brechinski (nº 88 ) .

PARAGUAI — A Guerra contra a República do Paraguai fa­cultou à Biblioteca do Imperador a posse de alguns manuscritos desse país procedentes. Tais são os de números 125 a 129, 135 e 202 do Catálogo «C»: três Regulamentos Militares, um dêles grosseiramente

(37) Lourenço Luis Lacombe — "Arquivo do Museu Imperial — A Educa­ção das Princesas", no Anuário do Museu Imperial, vol. VII, de 1946, págs. 252 e 256.

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escrito sobre couro; Ordenança militar espanhola, acompanhada de Pro-clamação e Decreto do Ditador Carlos Antônio López, de 1848; Tes-temonic de Ordenes escripias, dadas a la Mayoría, de 1867; Ordenança militar paraguaia, no verso da capa tendo um retalho do jornal El Semanário, do tempo da Guerra; Livro de Ordens do Exército paraguaio, de 1864.

* * # Não será preciso exemplificar mais, para que se possa concluir pela

variedade e valor da parte de manuscritos da Biblioteca Particular do último Imperador do Brasil. Isto, de acordo com o aliás incompleto estudo aqui feito, quanto aos que pertencem a seu bisneto, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, que gentilmente os colocou à nossa disposição.

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Letras

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GRAFITOS & MURILOGRAMAS

CASSIANO RICARDO

I

ONOVO Iivro de Murilo Mendes, «Convergência», desperta tôda uma sedutora problemática em nossa poesia de vanguarda. Creio que

pode ser apontado como a mais ousada fase de sua numerosa e extra-comum viagem poética, desde o surrealismo até hoje.

A surpresa dos seus «grafitos» nos assalta em cada página e os «murilogramas» — fina «trouvaille» favorecida pela eufonia do seu nome — constituem tôda uma parte da insólita beleza que caracteriza o volume, em geral.

como defini-lo, in totum?

Só me arriscarei a fazê-lo mui perfunctòriamente, dados os conhe­cimentos que seriam necessários para uma crítica mais sistemática.

Tome-se, por exemplo, o murilograma a Baudelaire. É um poema que excele pela novidade, marcado por pequenas definições em série, rápidas e extremamente lúcidas; para serem degustadas (diga-se assim) muito mais à margem do silêncio do que pelo discurso:

Eis algumas dessas definições:

«Traz o pecado origin = existir».

«Maneja o caos que regula».

«Palavra: pessoa, despessoa».

«Desventra a rua-universo».

«Enfanterrible totalizador».

«Debruça-se à janela da pintura».

«Poesia e coração, áreas opostas».

«Heautontimoroumenos».

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«Inventa a simetria dissonante».

«Negro luminoso: a côr do seu estema».

«Telefona = lhe a Medusa».

«Sofre de modernidade ou de ser B?».

«Fundo um reinoilhasalão».

«Assume o espaço da música».

Seguem-se outras, com a mesma nitidez poética em definir Bau­delaire:

«Terrible Bandelaire, toujours recommencé».

Realmente, que é a poesia senão, como perguntava o próprio autor de «Fleurs du Mal» (em que Marcel Raymond situa a origem da modernidade) senão a infância «toujours recommencée»?

Debussy, o dos ritmos descarnados e aéreos, mereceu outro mu-rilograma, em que o poeta descobre «a estrutura do silencio» e está também condensado em «flashs» que valem como sentenças que só a poesia, pelo poder de síntese, consegue alcançar.

Além dos murilogramas, figuram em «Convergência» os grafitos a que me referi, sua mais recente invenção gráfico-visual-cinética.

O «Grafito Segundo Kafka», em que Murilo armou, magistralmen­te, encerrada em hábeis nós de marinheiro, a dialética de sucção, reflete bem o desajustamento que faz o clima do autor de «A Metamorfose».

«A mensagem era de outro. Para outro.

Deram-me por engano. Quem sou eu» ou

«não pedi para nascer, não escolhi meus pais.

Fui imposto a mim próprio. O enigma permanece».

O problema faz sugerir aquela situação de perplexidade criada pelo desencontro do dizer e do falar a que se reporta Merleau Ponty.

«Dans la mesure où ce que je dis a sens je suis pour moi même, quand je parle, un autre, «autre» et, dans la mesure où je comprends, je ne sais plus qui parle et qui écoute».

Em sentido oposto (não atormentado) está a inscrição viva que é o grafito em Marrakehs (p . 19) tão visual-concreto que nos faz ver fisicamente o que Murilo viu — êle com a sua agudeza ótica direta, nós com os olhos da imaginação suplementar que é, para mim, uma modalidade de olhar interno.

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O homem «sendo julgado pela pedra», no «grafito para Pira-nesi» me deixou também forte impressão.

Outros grafitos me feriram, por assim dizer, o intelecto e a sensi­bilidade com uma direção certeira, matemática. Pelo menos notei eu o seu amor ao «geométrico», em certas composições. Não porque o poeta fale em «peixe triangular» (p . 56) e tenha escrito mesmo um poema sobre; (p . 175) nem porque aluda a uma «geometria gótica» (p . 47) ou ao triângulo antropomorfo» (p . 6); nem porque, no muri-lograma a Leopardi»: «destrói o quadrado «conservando a esfera»; m a s isto sim — pelo plano geométrico-lírico» em que me parece estar colocado o livro todo, em seu alto sentido.

uma expressão sua (p. 73), até no domínio do abstrato, — «sonho, sinal matemático» — reforça minha suposição.

Também porque parece, para mim, que Murilo insculpa sua poesia quase sempre em «ângulo agudo», pra observar cidades, coisas, mo­numentos, criaturas humanas, ou olhar mais de frente a forma, o con­creto das figuras e muitas vêzes presentificá-las com rara nitidez.

III

Em «Poetry and Mathematics» Scott Buchanan aponta o paren­tesco da composição técnica com a poética. Acentua mesmo que uma figura em geometria projetiva, interessada na transformação do objeto, é algo que retém um caráter de poema, que é também uma figura em ação, transformando-se; um campo de projeções, apesar da estrutura que condiciona o «rigor» da imaginação especulativa.

Essa transformação constante não se desliga, porém, do ponto de nuclearidade que por seu turno permanece constante apesar de suas infinitas variações; a ponto de Leibniz e Bruno, filósofos matemáticos cuja imaginação, segundo Buchanan toca o poético, ( 1 ) afirmarem que aí está a causa de todo o sistema cósmico.

Compreende-se um Einstein ao declarar que para a sua nova concepção do universo se havia baseado mais na sensualidade da ima­ginação do que no conhecimento científico (ou matemático) .

Assim, geometria e poesia se entendem — ainda de acordo com Buchanan. Muitos fatos da ciência de hoje, como certas invenções de Murilo, parecerão inexplicáveis ao homem comum e à mentalidade ca­duca. Serão uma espécie de «secção cònica».

O observador desprevenido, ou empedernido, fica diante do acon­tecimento que lhe escapa à compreensão prática como o Caterpilar dian­te da Alice de Lewis Carrol.

As linhas angulagudas da fome, as curvas que se aproximam de Deus (nesta esfera se estudou Deus, p. 51), aturdem igualmente,

(1) SCOTT BUCHANAN, «Poetry and Mathematics», p. 36 — Philadelphia.

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pela convergencia; as próprias linhas gráficas que compõem a capa do livro, onduladas ou retas, pretendem (suponho) indicar que con­vergimos para um só destino. Cortadas nas extremidades mostram que elas mesmas caminham até nós, até esbarrar em nosso corpo, ou chegam até ao infinito. Ou não se sabe para onde vão .. .

O grafito para Malevitch e alusivo ao «quadrado negro em campo branco» cabe muito bem nesta pequena relação de amostras geométri­cas (p . 51) Estema do tempo moderno, diz o poema, e muito ade­quadamente. Houve, nós o sabemos, várias homenagens ao quadrado como as de Albers (o quadrado é humano porque não existe na natu­reza) e não lhe deixou o japonês de prestar a sua, em poesia: «quadra­do branco/ dentro do / quadrado amarelo/ dentro do / quadrado preto/», etc.

Também não faltou quem associasse o neoplasticismo de Mon-drian ao cúbico-analítico, mas, incontestavelmente, o parentesco com a tetrada (número poético grego) é o ponto mais atraente dos seus tetrângulos.

Posso estar me aventurando no sentido de atribuir a «grafitos» e «murilogramas» intenções que talvez não tenham ocorrido. Não obstan­te seria «Convergência» um caso de «opera aperta» originalíssimo, e nisto já haveria uma qualidade a mais, no computo dos valores que elevam o autor de «Metamorfose» em minha já incondicional admi­ração .

com olhar retilíneo, Murilo descobre, a todo momento, a origem das coisas no esconderijo de que elas se nutrem, e daí as arranca, em forma de poema, não raro ostensivamente.

como já se disse algures «poetry is the imitation of action, the generation of a form».

IV

Refiro-me à geometria, (esclareço) como sendo, mais do que uma ciência matemática, aquela que figura em certos rituais. Não será sem razão que a letra G (G maiúsculo) tanto vale ainda pra significar Deus («Got») como se vê em «A Revolução da Arte Moderna», p. 97, (2) de Hans Sedlmeyer.

Deus faia, como ensinam os adeptos do G, à linha curva, ao esférico, como o demônio falaria à reta cintilante de uma espada, de uma flexa ou de uma lâmina.

O «Convergência» de Murilo se me afigurava, enfim, tocado pelo «sprit de geometrie» a que muita gente chegou a emprestar, como é sabido, algo de divino.

(2) HANS SELDMEYER, «A Revolução da Arte Moderna» (p. 37) trad. portu­guesa.

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E que dizer de suas invenções no domínio da palavra?

Trata-se de uma incursão que produz, a meu ver, experimentos e frutos notáveis. São inúmeras as provas, «Isabel» e «Ademanes», por

se não realizam, por deliberação sua, a «enumeração caòtica» de Spitzer (a que alude uma pergunta à página 208) realizam alguma coisa de mais espicaçante e com inegável mestria; instituem, pela reduplicação (uma palavra pluri-repetindo outra) pequenos poliedros, ainda no plano geométrico, além das coisas imprevistas que acidental­mente se atraem mostrando como a disparidade delas resulta em alta poesia, pelo provocante acaso vocabular que as reúne num só todo múltiplo e uno. Se não me engano, já Lautréamont se enlevava jus­tamente com a beleza do encontro casual de uma máquina de costura, com um guarda-chuva, numa mesa de operações . . .

«Desdêmona» é outro poliedro enumerativo bastante convincente como o é também «Arcanos» na página que se lhe segue. Os objetos mais díspares se agrupam num denominador comum. O encontro incoe­rente lhes dá nova dimensão semântica, ou sintático-lírica, e eles pró­prios, palavras ou objetos, dirão, cada qual de per si, e reciprocamente, aquele «enchanté» dos que se conhecem pela primeira vez. A «Rota­tiva» me deu uma grave lição de «semântica fònica», além do que possui de poder comunicativo pelo som natural das palavras e pelo ritmo surdo do «vai-e-vem». um caso de gesticulação poética, aue se faz táctil pelo repentino do desfecho. É uma rotativa que vai-e-vem, vai-e-vem, até que

«puxa o revólver do livro e a faca do jornal».

V

As várias «Metamorfoses», notadamente na parte que tem esse títu­lo (p. 70 e segs . ) ; as diabruras do «V» que voa (p . 53) obedecem a processo idêntico — palavras que se agrupam, se agridem ou se amam — ora pela gramática fònica, ora pela contigüidade irrecorrível, ora pela fusão dos contrários (chove na vidraça do vidromem) formariam um léxico inventado por Murilo, com a estranha propriedade das im­propriedades. As palavras criadas (em forma de Tanden) realizam, estou certo, nova descoberta de um estranho jogo do raciocínio com a criação vocabular.

Seriam muitas as surpresas que seu livro me causou e causará a quem o 1er, mas bastam as aqui já apontadas um tanto caòticamente (este caòticamente por minha conta e risco) .

A criação de palavras em «Convergência», se se admite a com­paração, assemelha-se ao episódio biblico da multiplicação dos peixes.

«Pedra Pomes», «Formidando», «Metafora» e palavras inventadas em forma de Tandem (p . 190) poderiam resvalar por uma «idolatria

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da palavra» na opinião dos críticos ranzinzas, nao fòsse a riqueza de criação que predomina poèticamente em todo o Iivro, a começar pelo concreto-lírico do grafito para Li-Po (p . 31) e que o coloca a salvo de qualquer increpação de tal natureza.

A resposta está em:

«A palavra nasce-me

fere-me

mata-se

réssuscita-me» ( p . 207)

Do caótico se passa para o paralelismo das «láminas» de modo que não lhe escapa um só ângulo da multifoice (multilâmina) ou das lâminas (p . 116) ou da multiface que através de um poema possa suscitar em nós uma inteligência afiada como a de Murilo que parece ter, sob tal aspecto, a luminosidade mesma da lâmina.

E assim como os triângulos e os ângulos agudos que se deparam na sua composição de hoje não se limitam ao pormenor geométrico mas obedecem a um plano geométrico-lirico no contexto geral amplo e significativo, o mesmo ocorre com as palavras consideradas em si mesmas ou nos textos a que pertencem, ou a que deram causa.

Elas são pormenores de uma linguagem poética mais ampla, que em mim aumentou a convicção de que «poetry is a kind of language», como diria Jakobson. Linguagem que comunica, que transmite pensa­mentos altos como os que assinalam o conteúdo de «Convergência».

A palavra brilha e é «lâmina», ou rescende, e é «magnòlia»; atravessa o osso duro da matéria como um «roentgen»; desperta coisas esquecidas que só os grafitos fazem ressurgir, na pedra, em alto relevo. Ou desperta raciocínios atordoantes, como no murilograma a Leopardi e no grafito sobre Kafka, a que já me referí.

VI

Por mais que o mecanicismo oponha o antiverbal ão verbal, não acredito que Roger Caillois tenha razão quando profetiza a morte do livro e das bibliotecas, passando o homem da «biosfera» de hoje para a exclusiva «iconosfera» do amanhã.

A poesia recriará a palavra, apesar da civilização icônica, e até se afirma — e quem o afirma é Cassirer — que a criação lírica, que vem da origem do mundo, constitui a linguagem materna do gênero humano.

As palavras, mesmo as de invenção mais recente, todos o sabemos, nunca são gratuitas. Ao contrário, mesmo quando as bacantes laçaram Orfeu, visíveis, tácteis, audíveis, Orfeu se recriará em outras palavras nascidas do seu próprio corpo como Orfelo, Orfnós, Orfvós, Orfêles.

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Do seu «Exergo» Orfeu se amplia e se multiplica em novas soluções vocabulares, dirigidas a todos os homens, ressurretas.

Também não lhe escapa a poesia coletiva, sem abandono sequer daquele coração que, para Archibald MacLeich, não é apenas individual; é também social, deve também tratar das questões públicas.

O grafito para Sousandrade se reveste, a meu juízo, de uma beleza única com aquele

«onde fulge o esqueleto do Cruzeiro que o homem faminto não pode contemplar-».

O gavião da usura, o tubarão adornado de lustres, o analfabeto que apenas desulula, simbolizam bem a atmosfera criada pelo autor de «Wall Street», no famoso «Guesa Errante».

«Qual a solução, «o solução?»

Nem tudo, pois, no inteligentíssimo brinquedo com as palavras é apenas «léxico», já por si espantoso. Ninguém desconhecerá o «hu­mano», o «cordial» que mora em Murilo e nas suas invenções pes­soais insuspeitadas.

VII

Certos críticos pensam que nós, os poetas, nos imitamos uns aos outros, nesta fase de pesquisa e vanguarda. Não é exato. O que há, quer-se crer, é antes a «convergência» de motivos e formas decorrentes ou impostas pelo clima cultural que a todos contagia.

«A work in progress», «opera aperta», «enumeração caótica», Cas­sirer, Mallarmé, Eliot (que estão citados no texto de consulta); Klee, colagem, Cummings, «Noigandres», «praxis», «minimo telegráfico» — oe nomes e teorias, tôda a terminologia do nosso convívio diário, se encontram realmente em voga; marcam a poética do último minuto, tão sedutor quanto complexo. No mundo da convergência dos processos, ousaria eu acrescentar, de minha parte, aos seus murilogramas os meus modestos «linossignos»(3) dentro da nova técnica; Murilo no «Exergo», o «Jeremias Sem-Chorar» à procura de um pormenor compositivo, o linossigno, a que Eduardo Portela, a propósito, chamou o «substitutivo planetário do verso».

O crítico norte-americano Dimmick, da Universidade de Oklahoma, compreendeu muito bem o meu intuito (permito-me citar o que de mim se faia) ao esclarecer que «the author clins no longer to write verses, but «linossignos», («signe-lines») the physical dispositions of words on a page or orthographical similarities between them often being of as much significance as their essencial meaning or their syntactical re­lations one to another».

(3) C.R., «ReflexOes Sobre Poetica de Vanguarda», p. 39 e segs.

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Prosseguindo no meu raciocínio apraz-me lembrar que ainda há pouco, e isto aqui em São Paulo mesmo, se fêz curiosa experiência com o objetivo de provar a estética de um computador que trabalha com linhas à Mondrian (composição em linhas).

Mondrianiza-se.

O computador que faz poemas, notadamente «haikais», está em caso identico.

VIH

E num mundo intrincado, em que estas questões nos assustam pela inauguração e semelhança, não havemos de incorrer em certos pontos obrigatórois e coincidentes? A microfísica, «la pensée planétaire», a teoria dos sinais, a dos «quanta», o argol, o «substantivo totalitário» de Marcuse, as siglas, as «urssas», o homem na Lua indicam a pro­cedência de minha pergunta.

Não cabe confundir tendenciosamente uma coisa com outra: coinci­dência com influência de uns sobre outros (duas realidades diversas) quando o que existe e se escamoteia é a identidade, é a convergência de propósitos dentro da civilização que nos impõe um rumo comum.

Os fatos coincidentes, em arte, «se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histórico; deduzem-se quase automàticamente do estado das pesquisas em curso» — na incisiva observação de Umberto Eco (4) .

Digo «convergência das divergências» sem prejuízo destas, uma vez que até nas divergências ocorrem pontos de contacto que o universo tecnológico suscita por identidade de problemas simultâneos — «con­vergência e paralelismo cultural» — (a) na procura de novos rumos.

O bom senso ruminante (6) é que só vê semelhança em fudo e julga que um poeta se baseia em outro por imitação ou influência — e até por disparidades concomitantes.

A dialética do «Texto de Consulta» sobre «poema», «poeta», «texto» e «contexto», o «real» e a «palavra» levanta e denuncia tôda uma problemática que obrigará muita gente a pensar na tremenda contradição que a arte nos oferece, atualmente mais do que nunca.

«Convergência das divergências» é o que Murilo realiza com a sua poética de agora ( 7 ) . Alguém já observava — e ora se nota com que

(4) UMBERTO Eco, «Opera Aperta» ed. bras., p. 17.

(5) RALPH LINTON, «A Study of Man», p. 398.

(6) C.R., «A Academia e a Poesia Moderna», 1939, p. 106 e outras.

(7) MURILO MENDES, «Convergência» ed. «Duas Cidades», 1970.

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r a z g 0 — que nada se afirma em arte como verdade que não possa ser combatido vantajosamente pela verdade contrária.

«O rexío é o contexto da poesia? ou o poeta o contexto do texto?» «A palavra cria o real? o real cria a palavra?»

Soffici saiu-se com esta: «l'arte non é una coisa séria».

Todo o poema do «Texto õ Contexto» será uma interrogação contra outra, num quase irônico contradizer pra dizer.

Não terá sido, pois, senão apoiado em muita sutileza de pesquisa que Roland Barthes considera o escritor consciente de que sua palavra intransitiva por escolha e labor, inaugura uma ambigüidade, mesmo se ela se dá como peremptória (8) .

No fim, porém, alguma coisa de patético:

«Morrer, perder o texto ser metido numa caixa

com testo. sem texto».

Conclusão: a arte é uma coisa séria.

IX

Só discordo de Murilo quando chega a dizer:

« Wébernizei^me. João-cabralizei-me.

Francispongei-me. Mondtianizei-me.

Isso não.

Murilo será sempre o Murilo, genuino, com seus automurilizados murilogramas, multiplicado peias palavras que inventa e saem do seu próprio ser. Diferente dos demais, já porque «soldou concreto e abstra­to»; o Murilo que se dobra «ao fascínio dos fatos» e lhes dá a configu­ração que eles exigem, a linguagem, a «coluna vertebral» que os iden­tifica.

E se faltar um dia o dicionário de nossa língua comum, haveria o da linguagem que seus poemas estão elaborando diacrònicamente, para gáudio de «poiésis» no universo cinético, semiotico e visual em que vivemos.

«Saio da noite amarela onde a laranja sibila»

«Tanger», p. 27.

(8) ROLAND BARTHES, «Crítica e Verdade», p. 36, Ed. «Perspectiva».

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X Há uma década, talvez, um fato científico seria pura «science

fiction». Hoje é pura realidade.

Refiro-me à ocorrência de se alcançarem raios cósmicos (fato único no mundo) pouco acima de 20 quilômetros de altitude (mas quem disse? mas onde? em que ponto do globo?) . Aqui mesmo, em S. José dos Campos, no Vale do Paraíba. Sim, por maravilhosa coincidência, minha cidade natal, justamente ela, apresenta esse portentoso fenômeno («magnetic fail»).

E serei eu, porventura, quem irá dizer que «par droit de naissance» tenho o direito de o celebrar, sozinho, num poema? Apenas porque, modestia à parte, graças a Deus (dá licença, Noel Rosa?) nasci em São José, iria eu declarar-me proprietário de um raio cósmico joséense ou de um simples pedaço do «caixilho» dessa janela aberta para o céu?

Hoje, ao lado da poesia e da matemática, está presente o «homo tecnologicus»; e o cosmos não é privilégio de Ninguém.

É de todos.

XI

Mas quero parar aqui. Tôdas as tentativas jovens de vanguarda ficaram sendo devedoras de Murilo Mendes, depois de «Convergência».

O que pretendi foi simplesmente demonstrar, a meu modo, o cuidado e o encanto com que li murilogramas, grafitos e demais poemas do seu maravilhoso livro — que se me afigura «outra janela aberta para o céu».

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uma VíSÃO DE PROUST NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO

É lugar comum o dizer-se que as centurias cronológicas não cor­respondem às históricas, ou literárias. Assim, tomado nestes últimos aspectos, o século XIX transbordaria politicamente do período compreen­dido entre os anos de 1800 e 1900, para abarcar a vida do Ocidente em tôda a fase que vai da Revolução Francesa à primeira Guerra Mundial; enquanto que, literariamente, os limites do mesmo século se­riam semelhantes, pois poderíamos marcá-los entre as obras de J. J. Rousseau e Marcel Proust.

Na verdade, para os fins didáticos de periodização da História da Literatura, é razoável ver-se — como habitualmente se faz no grande painel proustiano, o fecho triunfal do século passado.

Outra observação muito repetida, mas que não perde, por isso, seu cunho de autenticidade, é a de que «À la Recherche du Temps Perdu», ao lado do seu significado estético, possui extraordinário valor descritivo, do ponto de vista social. Máo-Tse-Tung, segundo tal ponto de vista, poderia estudar a liquidação de uma classe de proprietários urbanos parisienses, nesse depoimento recuado de mais de meio século, tal como, ao que se diz, Lénine considerava a novela de Balzac, «Les Paysans», um dos melhores estudos sobre a decadência da classe de proprietários rurais da França à mesma distância de tempo.

Ainda uma terceira observação aparece, com freqüência, nas aná­lises críticas do romance proustiano: a de que êle conseguiu transportar, com especial êxito, para o plano da experiência vivida, as revelações da Psicologia e da Filosofia — expressas principalmente na obra de Bergson — sobre as realidades mais profundas do nosso ser. Tem sido discutido o grau de influência do pensamento de Bergson no apro­veitamento, feito por Proust, da noção de tempo e da faculdade da memória. De fato, o nome do ilustre filósofo aparece pouco no ro­mance, uma ou duas vêzes, mas isto não significa que suas idéias não tenham atuado. É uma questão especializada, a ser debatida pelos historiadores de Filosofia. Os historiadores da Literatura se contentam em observar que Bergson casou-se com uma prima de Proust, e que o jovem Marcel, nos seus 20 anos, foi um dos «garçons d'honneur»

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do casamento, o que autoriza a supor a existência de próximas rela­ções pessoais, e, portanto, de intercâmbio de opiniões e idéias,

De qualquer maneira, a dimensão humana da obra de Marcel Proust se acrescentaria por este seu estravasamento, do campo literário, para o territòrio científico da historia, da Sociologia e da Filosofia.

A bibliografia critica proustiana, inclusive a brasileira, desde o seu início repete, com maior ou menor ênfase, essa generalizada presunção.

Aparentemente, são essas maneiras de se considerar o romance proustiano outros tantos processos de ampliação do seu significado cultural, porque chamam a atenção para a importância de que êle se reveste, em aspectos essenciais da cultura, situados fora do plano li­terário.

Mas, se nos deixarmos levar com demasiada docilidade, ou es-treiteza, pelos referidos processos de aproximação crítica, sentiremos, afinal, que a pretendida ampliação de significado pode se transformar na verdade, em uma limitação mutiladora; e, mesmo, em uma espécie de negação do conteúdo e do sentido de «À la Recherche du Temps Perdu».

com efeito, o que acontece, através de tais processos críticos, é a transferência da Literatura para o plano da Ciência, com todos os graves riscos, para a duração mesmo da obra examinada, que tal ma­nobra pode determinar. Verifica-se a confusão entre dois mundos, os quais Henri Bergson, precisamente, na parte menos discutível do seu pensamento, conseguiu isolar e individualizar de forma reveladora.

Graves são, de fato, os riscos de se prender os valores da pro­dução estética, por sua natureza estranhos às influências da técnica, com os científicos, que são a ela irremissivelmente sujeitos. Para usar do conceito bergsoniano, diríamos que a técnica científica se enquadra no Tempo, considerado como grandeza mensurável, e sofre da contínua evolução deste, enquanto que a criação artística se insere na Duração, que é uma multiplicidade qualitativa, mas não numérica. Daí poder-se falar em evolução científica, enquanto que, na criação estética, não há, propriamente, evolução, no sentido de progresso, mas, apenas no de transformação de gêneros. Esta diferença fundamental se manifestaria se comparássemos, de um lado, a Física de Heráclito com a de Einstein, e, de outro lado, a Escultura de Fídias com a de um grande escultor moderno. Ali o progresso, com a sucessão de estágios transitórios; aqui somente a apresentação diferente de permanências autônomas.

O extraordinário destino de Marcel Proust, o dado mais importante para explicar a mágica vitalidade da sua obra, reside na intuição segura que o fêz utilizar os elementos da Ciência do seu tempo, de que pôde se assenhorear, apenas como instrumentos de captação de uma outra rea­lidade. Esta outra realidade, desvendada pela sensibilidade e pelo gosto, é íntima e substancial, e não externa e formal como a da escola realista, que, por isto mesmo, tanto envelheceu. Ainda uma vez, as duas con-

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cepções do Tempo se defrontam: em Proust o Tempo como duração qualitativa; nos Goncourt ou em Zola o tempo como enumeração quan­titativa. Na narrativa realista a Literatura é composição; no memoria-lismo proustiano, ela é criação.

Por isto mesmo Proust dizia que, ao contrário do que afirmavam comentadores superficiais da sua obra o aprofundamento da análise psicológica, em que foi mestre, não significava, nele, um esforço de particularização, senão que ao contrário, um processo de generalização. O individuo em Arte, em efeito, só é durável quando exprime uma ver­dade genérica.

O espírito criador, em Literatura, é aquele que desvenda e fixa a mutável realidade por meio da imagem; que dá maior substância ao real, ao transportá-lo para o plano estético. Dizem que Balzac, ao le­vantar o gigantesco painel da sociedade francesa sob a Restauração e a Monarquia de Julho, deu, a princípio, a vários personagens, os nomes verdadeiros que tiveram em vida. Depois trocou-os por nomes imagi­nários. o que, precisamente por dar maior liberdade criadora ao escritor, aumentou a realidade da sua obra.

Foi, senão em escala maior, seguramente de maneira mais pene­trante e profunda, o que também fêz Marcel Proust.

Sua vida, que podia parecer a de um ocioso diletante, apresenta-se, de fato, como um raro exemplo de equilíbrio, como único caminho capaz de levar à realização a que estava destinada.

Intelectualmente, preparou-se traduzindo crítica de Arte; parodian­do estilistas famosos; frequentando pintores e músicos; observando dou­trinas de filósofos. Os resíduos dessa acumulação meditada surgem-nos nas páginas densas, vibráteis e coloridas que nos deu sobre os escritos de Bergotte, a sonata de Vinteuil, as telas de Elstir. Mas não era a Estética propriamente, ou seja a Ciência do belo, que representava, para êle, o objetivo final, como, de resto, nenhuma outra Ciência. Êle não seria um novo Ruskin, nem um novo Sainte-Beuve. A Estética era o campo da sua criação, mas não propriamente a matéria dela. Os próprios estetas reconhecem que a Ciência da Arte, que praticam, não se con­funde com a própria Arte, tanto que grandes artistas podem existir, que desconheçam as leis que regem as suas faculdades criadoras.

Em Proust o conhecimento avisado de tais leis, pelo menos as vigentes na sua época em todo o vasto campo da criação artística, deu-lhe a consciência da obra que estava realizando, mas tal conheci­mento não se substitui a esta obra, não alterou a natureza especifica­mente literária do seu ímpeto criador.

Talvez a consciência estética do que estava realizando é que tenha dado a Proust a energia necessária para levar a termo a tarefa gigan­tesca, resistindo à pressão sofrida por todos aqueles que, dela tendo conhecimento, se chocavam com os seus aspectos inovadores. um es­critor menos seguro do que fazia e de por que o fazia, sobretudo no

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estado de desgaste físico em que viveu a fase final da sua criação, não teria resistido à indiferença ou, mesmo, à hostilidade do meio.

Neste ponto é que devemos reconhecer a provável importância que teve a formação estética e filosófica de Proust na tenacidade extraor­dinária com que, concentrando tudo o que lhe restava de vida na ulti­mação do seu livro, pôde terminá-lo, embora talvez sem lhe dar o aca­bamento final que, possivelmente, lhe daria, segundo alguns dos seus biógrafos, caso tivesse mais algum tempo de vida.

Mas este aprimoramento da parte já escrita, caso a ela se dedicasse, talvez consumisse, no escritor, os restos de vida necessários à redação do que faltava. Por isto mesmo devemos agradecer ao seu instinto heróico, que o levou a penar até os últimos dias, na faina da construção, deixando a outros os retoques finais da obra terminada. A idéia de heroísmo não é exagerada, na consagração de escritores, como Proust. Criadores como êle são heróis da Humanidade, como os que se revelam nas guerras, nas revoluções e na santidade.

Não poderia ser somente o desejo da glória, de permanência na lembrança dos pósteros, que levaria aquêle homem sem fé nem espe­rança, sem amores nem interesses, sem passado pessoal a justificar nem futuro a defender, a se agarrar desesperadamente aos últimos farrapos de uma existência de sofrimentos, na luta implacável contra o Tempo, enchendo páginas que, sabia, não iria reler. Atuava nele, como nos heróis, o sentimento da obra de que se é portador; da ação de que se é instrumento; da voz de que se é intérprete. Os heróis literários, cono Balzac ou Proust, sentem-se depositários de um legado que enriquecerá as gerações, mas que não se transmitirá pela morte, senão que pelos restos de vida que puderem usar até o fim.

Sabemos que «Du Coté de Chez Swann», editado pela primeira vez em 1913, o foi por conta do autor. Aquêle Iivro estranho, como os demais que se lhe foram seguindo, provocavam natural desconfiança, pela completa desconformidade com os padrões aceitos.

Sem dúvida, um Rimbaud, um Jarny, para não falar em um Mal­larmé, tinham revolvido as noções assentes da composição literária. Mas a interpretação, às vêzes penosa, das criações desses três escritores, todos contemporâneos de Proust (e os dois últimos produzindo ao mesmo tempo que êle), coloca-os em um campo de procura muito diverso do da obra proustiana. Em primeiro lugar, nas poesias de Rimbaud e de Mallarmé, todo o esforço se concentra em uma direção que nunca atraiu a Proust; a procura do Absoluto, por meio de processos a bem dizer metafísicos. Em Rimbaud a videncia poética, por êle mesmo cha­mada «Iluminação»; em Mallarmé o mistério poético, depois transformado em escola, com o nome de simbolismo. Nada de parecido no romance de Proust, no qual a matéria — inclusive a matéria dos sentimentos — atinge aos derradeiros graus de fluidez e de transparência de colorido, mas nunca aparece sob aspectos visionários ou místicos. Longe disso,

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a obra de Proust é a mais terrivelmente materialista de tôda a História da Literatura, precisamente porque leva aos extremos limites a descrição e a interpretação da matéria, viva ou sem vida, iluminada pelo intelecto ou agrilhoada por paixões, instintos e emoções. Mas o que se pode chamar espírito está ausente da obra de Proust, e, com êle, as visões e os misterios. Tudo o que é propriamente espírito não atrai nem preo­cupa os infatigáveis personagens de Proust, que se agitam deseperada-mente num mundo sutil, refinado, mas sem alma. O amor humano só é entrevisto nas figuras da mãe e da avó — que parecem, de resto, a mesma pessoa. Fora disso não há amor que dure ou que resista à corrupção da vida. O amor de Deus — a idéia religiosa mesmo — são ausentes. A própria criança que encarna a um tempo o amor humano e a luz de Deus, não aparece verdadeiramente naqueles maciços vo­lumes. Se não trabalhou com as forças da inquietação espiritual que levaram poetas como Rimbaud e Mallarmé a romper com tôdas as convenções, inclusive a da linguagem, Proust tão pouco lançou mão do inverossímil, como fêz Jarny, que seguiu este outro meio de se afastar dos modelos formais e lógicos.

A obra de Proust pareceu estranha e, às vêzes, incompreensível aos contemporâneos, por outros motivos, quer dizer, pela sua origina­lidade básica, porque reveladora de uma imensa e escondida realidade. Nada tinha de visionário, misterioso ou inverossímil este infundável romance, nem mesmo acontecimentos extraordinários, embora abordasse diretamente temas humanos, velhos como a civilização e mesmo exis­tentes fora dela, que são colocados, não no rol do extraordinário mas do anormal. Nas milhares de páginas em que pouca coisa realmente acontece, o que flui é a vida humana, em tôdas as suas manifestações, cruelmente perseguidas pela impiedosa lucidez do escritor.

Essa obra chocou, a princípio, por si mesma, por sua riqueza des­bordante, que exigia uma composição fora de normas; por sua pro­fundidade analítica que derrotava os leitores mais corajosos; por sua audácia inovadora, que fazia titubear os moralistas; e, finalmente, pelo que havia nela de mais inusitado e ostensivo; a capacidade de tragar todos os temas estéticos sem se propor nenhuma tese; de montar todo um imenso panorama social sem se engajar em nenhuma doutrina; de levantar, como até então ninguém havia feito, o traçado de uma memória vivida, sem o intuito de se engrandecer, de se justificar nem mesmo de ensinar nada a ninguém.

Já tem sido lembrado que, entre as influências da literatura clás­sica atuantes sobre Proust, estarão, provavelmente, Montaigne, (apesar do autor de «À la Recherche du Temps Perdu» nao se referir ao dos «Ensaios», no seu romance), e, seguramente, Saint-Simon, cujas «Me­mórias» são por êle citadas repetidamente.

Insistindo, ainda, na questão da presença de Montaigne na ins­piração de Marcel Proust, observamos que o fato verdadeiramente inex­plicável, do romancista não se referir — salvo erro — ao nome do

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filòsofo, nao impede o leitor habitual dos «Ensaios» de sentir, nitida­mente, uma certa atmosfera montaigniana na trama complicada de «A la Recherche du Temps Perdu». Sem falar que certas influências di­retas são inegáveis, como, por exemplo, aquela reminiscencia da sensa­ção de acordar com música — tão famosa nas recordações de Montaigne — que vamos encontrar logo no começo de «La Prisonnière».

Há, com efeito, muito de comum, não apenas entre a substância do romance proustiano, as «Memórias» de Saint-Simon e os «Ensaios» de Montaigne, mas, também, na forma das respectivas composições. E, muitas vêzes, a forma da composição é uma resultante, uma conseqüên­cia, e não uma causa, do gênero da obra composta.

São três livros caudalosos, escritos por três autores encerrados, e cujo sucesso foi uma espécie de descoberta, que veio coroar uma mo­numental originalidade. O castelão da Gasconha, fechado na sua tórre; o duque Cortesão, garatujando no segredo do seu quarto palaciano e o burguês diletante, enclausurado na sua cela de enfermo lançavam, às escondidas do mundo, sondagens reveladoras no coração humano.

Montaigne deixava-se arrastar pelo curso caprichoso do pensa­mento; Saint-Simon acumulava narrativas; Proust recriava, na ficção, a realidade. Cada curso criador encontrou o fim natural: o pensamento do ensaísta, na Filosofia; a narrativa do memorialista, na História; o romance do artista, na Estética.

Nunca será demais insistir sobre este ponto, por mais que tenha sido êle atentamente perquirido pelos analistas de «À la Recherche du Temps Perdu». A obra de Proust, essencialmente ligada ao Tempo, tornou-se intemporal porque fundiu elementos éticos, sociológicos, ar­tísticos, históricos e psicológicos em uma grande harmonía estética. Êle soube enlaçar os valores do Tempo na finalidade da sua obra, tor­nando-a permanente, em vez de fazer dela uma simples projeção da­queles mesmos valores, o que a tornaria temporária, como tantas outras.

Ao descrever as angústias dos desvios amorosos êle não moralizava; ao exibir os excessos de uma classe decadente, não fazia sociologia; ao transmitir impressões sobre a literatura de Bergotte, a pintura de Elstir, a música de Vinteuil, não escrevia crítica de Arte; ao penetrar nos labirintos genealógicos, não cultivava a História; ao captar as mais tênues reações da alma, não realizava experiências psicológicas. Tudo o que fazia era exprimir-se esteticamente, no sentido moderno da expressão estética, que é, como reconhecem os filósofos da Arte, a penetração da essência mesma da realidade, pela idéia do belo. Neste sentido é que Proust foi um dos pioneiros da estética contemporânea, pois, ao se evadir da vida real, refugiando-se no isolamento, êle, de fato, viveu uma outra vida; viveu a vida de outros seres humanos, recriando-a es­tèticamente, indiferente à moral, ao amor, ou à piedade.

Esta intenção, que constitui a trama sensível, embora invisível, de tôda a obra, vem à tona afinal, explicitamente, no coroamento do ro-

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mance. Nas páginas derradeiras, que são como que a abóbada da imensa construção, cuidadosamente colocada pelo autor, Proust apre­senta, com nitidez, o plano que o conduzira em tôda a complicada e lenta arquitetura. Ao contrário do construtor comum, o seu plano só nos é mostrado no fim. como se estivesse falando de uma catedral e îsta comparação êle a repete em carta a um amigo — desvenda-nos as re­lações e conexões profundas, que interligam os diversos personagens e os seus destinos, como se fossem os elementos de apoio, divisão e sustentação de um templo material. A jovem filha de Robert de Saint-Loup e de Gilberta Swann surge como a chave da abóboda, o elemento final que une, na sua fragilidade, todo o sistema, reunindo os elementos antes separados, e até opostos, do lado Swann e do lado Guerman-tes. Seria a união final das aparências no grande nada. Mas, neste momento, falando do Iivro em si mesmo, que estava terminando. Proust nos dà, sùbitamente, a decifração dele, nas seguintes palavras: «Mas, para voltar a mim mesmo, eu pensava mais modestamente no meu Iivro, e seria inexato dizer que pensava nos que o leriam, nos meus leitores. Porque êles não seriam, para mim, meus leitores, senão que leitores dêles mesmos, meu livro não sendo mais que uma lente de aumento.. . meu livro, graças ao qual eu lhes forneceria o meio de se lerem neles próprios. De sorte que eu não lhes pediria para me louvar, nem para me denegrir, mas, somente, para me dizerem se estava bem certo, se as palavras que êles lêm, em si mesmos, são bem aquelas que escrevi».

Por isto é que, nesta já avançada segunda metade do século XX, a obra de Marcel Proust adquiriu tôda a sua dimensão.

Não se pode pretender que uma visão contemporânea de Proust seja nova, ou melhor, não se pode afirmar que, ao leitor de hoje, ocor­ram julgamentos não entrevistos pelos leitores de há quarenta inos passados. Ao contrário, o que existe de substancial para a compreensão de «À la Recherche du Temps Perdu» já foi dito pelos principais bió­grafos e críticos do romancista nos primeiros anos seguintes à descoberta da sua obra e ao seu falecimento, assim como os erros a seu respeito são hoje, os mesmos de antigamente. Mas o que se pode afirmar é que a imánente vivência, a intemporalidade e a amplidão humana do romance proustiano encontram agora a sua melhor comprovação; agora, quando o ambiente que suscitou a obra foi substituído por outro, completamente diverso.

O próprio autor não estaria em condições de prever esses elementos de vitalidade e sobrevivência da sua obra, inexistentes na de outros contemporâneos, tidos, no tempo, como superiores a êle. Proust viveu em uma França que era potência mundial de primeira grandeza, e em um Paris que era a mais importante cidade do mundo. Conseguiu pene­trar no segredo de uma sociedade que exprimia o mais alto requinte desse poder e dessa cultura. Hoje, menos de meio século passado de sua morte, todo esse panorama histórico e social se desfez, como se dissolvem as formas das nuvens no céu. Nem a França, nem Paris sao

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hoje o que então eram, não propriamente porque hajam perdido de subs­tância, mas porque na África, na Ásia, na América e no próprio Oriente europeu, uma imensa e nova realidade histórica se levantou. Assim, se tivesse ficado preso ao interesse específico do mundo que criou, re­criando, a obra de Proust seria considerada, pelos leitores de agora, como sendo o crepúsculo literário do século passado, como tantas vêzes foi dito, erroneamente, a seu respeito.

No entanto, não é o que se observa. Ao contrário; é das culturas mais deferenciadas e distantes que procedem os mais vigorosos estímulos de curiosidade, estudo e admiração pela obra do grande escritor. Lei­tores provindos de países longínquos acorrem às peregrinações prous-tianas, não com o interesse turístico de ver o exótico (pois os antigos povos metropolitanos devem se habituar também à idéia de que são exóticos para os antigos povos coloniais) mas na necessidade de en­contrar o centro de criação de uma obra que, por caminhos fabulosos, os faz compreender certos caminhos da vida.

Sem dúvida Proust não satisfaz totalmente ao leitor dos nossos dias atormentados, pois, se lhe sobra alma, no sentido de sensibilidade, fal­ta-lhe alma, no sentido de espírito. E esta restrição, também apresentada pelos seus primeiros exegetas, tornou-se crucial nos dias de hoje, e muito mais significativa do que nos da sua descoberta.

Os riscos de destruição nuclear; os conflitos e dramas do desen­volvimento desigual; os desequilíbrios sociais internos; a brutalidade das guerras feitas em nome da paz; tudo isto exige, de muitos espíritos, o complemento espiritual que não podemos encontrar em Proust. Porque, nas épocas como a nossa, o que nos falta não é somente a verdade estética, que nos completa a vida. Também carecemos de outra verdade, a que nos aplaque a inquietação pelo que se desdobra além da vida, nesse mundo transcendente tão aproximado de nós, hoje, pelos riscos e conquistas da vida mesma. Ou, em palavras mais claras: nunca, mais que agora, a Humanidade precisou que a Arte, tal como a Ciência, sejam caminhos que levem à transcendência espiritual, e dela não se afastem, nem, mesmo, a esqueçam.

Esta é, pois, em resumo, a posição sincera de um leitor desta fase do século, diante da obra de Marcel Proust . Em tudo que se refere à vida, êle atingiu à eternidade pela estética. Mas a falta irremediável que sentimos na sua obra imortal é a do sentimento, mesmo, da Eternidade.

* * «

(Conferência proferida no Rio de Janeiro, no encerramento da «Semana de Proust») .

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D. PEDRO II, PLAGIÀRIO?

R. MAGALHÃES JÚNIOR

DPEDRO II teve relações tormentosas coin a poesia. Admirava, sem dúvida, os grandes talentos poéticos. Promovia tertúlias literárias

no Paço de São Cristóvão. Promoveu a edição da Confederação dos Ta-moios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Ë não só fêz isso, mas ainda defendeu o poema dos ataques desabridos do jovem jorna­lista e crítico José de Alencar, mobilizando, ainda, penas como as de Manuel de Araújo Porto-Alegre e Frei Francisco de Monte Alverne. Tentou aliciar ainda outras, como as de Alexandre Herculano e Fran­cisco Adolfo de Varnhagen, que preferiram ficar à margem da peleja. Seu entusiasmo pela Confederação dos Tamoios, em que foi muito exal­tado num dos cantos em que há uma visão profética do Brasil futuro, era tão grande que, ainda nas Lettres Brésiliennes, do Conde de Gobi­neau, editadas em 1969, há uma referência ao livro de Gonçalves de Magalhães. Diz o então ministro da França no Brasil que, um dia, em São Cristóvão, o imperador, a título de testar os seus conhecimentos de português, leu-lhe tôda uma passagem da Confederação dos Tamoios, a fim de verificar se êle, Gobineau, realmente a tinha entendido. . . Amigo de poetas, deu títulos de nobreza a alguns dêles, como Gonçal­ves de Magalhães, de quem fêz primeiro barão e, depois, Visconde de Araguaia; a João Cardoso de Meneses e Sousa, participante dos saraus literários de São Cristóvão, a quem deu o título de Barão de Parana­piacaba; e a Franklin Dória, a quem deu o título de Barão de Loreto. Distinguiu também um prosador, com o título de Visconde de Taunay. Mas, singularmente, nenhuma das figuras de capital importância das nossas letras no século passado mereceu mais que uma simples conde­coração, como Machado de Assis e como José de Alencar, que, aliás, a recusou, orgulhosamente.

como cultor da poesia, D. Pedro II escreveu versos originais e esmerou-se, principalmente, em traduzir poetas estrangeiros. Traduziu Dante e Manzoni, traduziu Jean Richepin e Sully Prudhomme, traduziu Melène Vacaresco e traduziu Victor Hugo, a quem tanto admirava e a quem foi visitar, em Paris, como um simples fã, num tributo de respei­tosa admiração. Mas não se limitou a traduzir do francês e do italiano. Ë sabido que fêz uma versão do hino dos Estados Unidos da América do Norte, o famoso Sfar Spangled Banner, e traduziu, entre outros, um

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poema do norte-amencano John Greenleaf Whittier, de assunto brasi­leiro, intitulado The Cry of a Lost Soul. Este foi traduzido, também, pelo poeta Pedro Luis Pereira de Sousa, elogiado por Machado de Assis numa crônica publicada a 22 de agosto de 1864, no Diário do Rio de Janeiro. O confronto entre o original e as duas traduções ilustra o que valia o imperador como poeta e como tradutor. Comecemos pelo texto de Whittier:

In that black forest, where, when day is done, With a snake's stillness glides the Amazon Darkly from sunset to the rising sun.

Pedro Luis desdobrou o terceto de Whittier numa quadra, em ver­sos decassílabos:

Quando, à tardinha, na floresta negra, Resvala o Amazonas qual serpente, Sombrio desde a hora em que o sol morre Até que resplandece no oriente.

Ao mesmo tempo que acrescentou um verso, Pedro Luis suprimiu uma das rimas do original, mas na verdade transcreveu, integralmente, o pensamento do autor. D. Pedro II foi mais fiel no tocante ao número de linhas e à rima tríplice, mas os seus versos são indiscutivelmente piores:

No mato escuro, aonde, o dia já ausente, Dcslisa-se o Amazonas, qual uma serpente, Do pôr do sol à aurora tenebrosamente,

Whittier faia, na poesia, do grito melancólico de um pássaro, que os índios chamam de «alma-perdida»:

A cry, as of the pained heart of the wood, Tlie long, despairing moan of solitude And darkness and the silence of all good,

Pedro Luis transpôs èsse terceto nesta quadra:

um grito, qual gemido angustioso Que o coração do mato soltaria Chorando a solidão, aquelas trevas, O não haver ali uma alegria,

E D. Pedro II o fêz neste terceto de versos irregulares, o primeiro com doze sílabas, sem ser rigorosamente um alexandrino, pois lhe falta a cesura, o segundo com onze e o terceiro também com doze, mais cor­reto, mas nem por isso mais feliz:

como d'alma penada na floresta errante Choro extenso, gemido d'ermo cruciante, E das trevas, o bem dali então distante,

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Levemos a comparação a mais um dos quinze tercetos de Whit-tier:

Startles the traveller, with a sound so drear, So full of hopeless agony and [ear, His heart stands still and listens like his ear.

Pedro Luis assim traduziu e rimou:

Agita o viajor, com som tão triste De medo, do ansiar da extrema luta, Que o coração lhe pára nesse instante E no seu peito, como o ouvido, escuta.

A idéia é a mesma de Whittier, mas o cacófato do quarto verso, que soa igual a «comovido», por efeito da elisão de «como» e «o ouvido», não faz honra às habilidades do autor de Terribilis Dea. Mas bem menos feliz é a tradução do imperador:

Tanto abala o viajor com o hórrido sonido De angústia e de terror, que todo combalido Lhe pára o coração, e escuta comovido.

Não vale a pena alongar o confronto, para mostrar quanto o impe­rador era fraco, como autor de traduções poéticas. No volume Ao Redor de Machado de Assis (Pesquisas e Interpretações), dedicamos algumas páginas à poesia de Whittier e às suas traduções brasileiras, mencio­nando, de passagem, a correspondência trocada entre o imperador e o pastor James Cooley Fletcher, que refundiu e ampliou o livro de seu colega Daniel P. Kidder sobre o Brasil e parece ter sido o divul­gador de A Cry of a Lost Soul no Brasil.

O poema de Whittier, de quem Cooley Fletcher era amigo pessoal, fora divulgado pela primeira vez no Natal de 1862 no jornal The Inde­pendent, de Nova York, e mais tarde incluido no volume In War Time and Other Poems, editado já durante a guerra civil norte-americana (1864) . como disse naquele livro, o imperador teve o capricho de man­dar a Whittier um cópia autografa de sua má tradução, acompanhada de duas almas-perdidas capturadas na Fazenda de Santa Cruz. Os dois pássaros foram empalhados e montados sobre um galho de árvore pelo taxidermista francês Auguste Bourget, com loja à rua do Ouvidor, e que se anunciava como «naturaliste», especializado em «insectes, coquilles et oiseaux». Quando Whittier morreu, em 1892, deixou o mimo imperial, por testamento, à filha Elizabeth Whittier Pickard e a seu marido, S. T. Pickard, que as doaram ao New England Museum of Natural History, onde ainda se encontram. É o que sabemos por Fletcher, que ampliou e reescreveu o livro de Daniel Pariseli Kidder, Sketches of Residence and Travel in Brazil, publicado em 1845.

Não são melhores as traduções que o imperador esforçada e labo­riosamente fez de poemas de Longfellow e de outros autores, inclusive

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a do famoso soneto de Félix d'Arvers, que poderia ser confrontada com muitas outras, entre as quais a de Pedro Luis. como autor de versos originais, D. Pedro II era igualmente fraco. Corerm, com o seu nome, alguns sonetos, de qualidade acima da média, mas se trata de peças que lhe foram atribuídas e que o soberano deposto realmente não escre­veu. São os chamados «Sonetos do Exílio», um dos quais é este, inti­tulado O Adeus:

Mensageiro do amor e da saudade, Toma teu vôo pela azul pianura; Vai dizer ao Brasil em que tristura Tu nos deixaste aqui na soledade.

Vogam comigo os meus na imensidade Buscando em terra estranha sorte escura; E eu mais longe ainda irei; que desta agrura Sei que caminho vou da Eternidade.

Mas ah! que vejo! Apenas te remontas, Entre dois pegos voejando às tontas Rápido tombas em revoltas águas. . .

Bemvindo sejas, ó celeste aviso! Que assim me revelaste de improviso A morte como termo a tantas maguas!

Outro dos sonetos apócrifos de Dom Pedro II é o que foi composto com o título de A Imperatriz e divulgado no Brasil pouco tempo depois da morte de Dona Teresa Cristina. Soneto indiscutivelmente saído da mesma pena de que saíra o anterior:

Corda que estala em harpa mal tangida, Assim te vais, ó doce companheira Da fortuna e do exílio, verdadeira Metade de minha alma entristecida!

De augusto e velho tronco haste partida E transplantada à terra brasileira. Lá te ¡izeste a sombra hospitaleira, Em que todo infortúnio achou guarida.

Feriu-te a ingratidão no seu delírio; Caíste, e eu fico a sós, neste abandono, Do teu sepulcro vacilante cirio!

como foste feliz! dorme o teu sono . .. Mãe do povo, acabou-se-te o martírio; Filha de reis, ganhaste um grande trono!

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Mas os mais divulgados e mais populares desses sonetos apócrifos foram os que receberam os títulos de Ingratos e de Terra do Brasil. O primeiro foi levianamente colocado numa antologia de sonetos brasi­leiros de Laudelino Freire, que assim contribuiu para a consagração de um embuste. E dizia de início:

Não maldigo o rigor de iníqua sorte, Por mais atroz que [osse e sem piedade, Arrancando-me o trono e a majestade, Quando a dois passos só estou da morte.

E terminava com estes tercetos:

Mas a dor que excrucia c que maltrata, A dor cruel que o ânimo deplora, Que fere o coração e pronto o mata,

Ê ver na mão cuspir à extrema hora A mesma boca aduladora e ingrata Que tantos beijos nela pôs outróra.

Terra do Brasil também chegou a figurar com o nome de D. Pe­dro II em alguns almanaques e antologias poéticas. É, na verdade, o melhor dos sete «sonetos do exílio»:

Espavorida agita-se a criança, De noturnos ¡antasmas com receio, Mas se abrigo lhe dá materno seio, Fecha os olhos doridos e descansa.

Perdida é para mim tôda a esperança De volver ao Brasil; de lá me veio um pugilo de terra; e nesta creio Brando será meu sono e sem tardança.. .

Qual o infante a dormir em peito amigo, Tristes sombras varrendo da memória. Ô doce Pátria, sonharei comtigo!

E entre visões de paz, de luz, de glória, Sereno aguardarei no meu jazigo A justiça de Deus na voz da história!

Esses sonetos entraram para o rol das grandes mistificações lite­rárias, tais como a dos falsos poemas de Ossian, na verdade escritos

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por James McPherson e atribuidos ao inexistente bardo gaèlico, e os igualmente falsos poemas medievais de Thomas Rowley, na verdade escritos pelo jovem poeta Thomas Chatterton. Que D. Pedro II não escreveu tais sonetos — nem mesmo os piores dêles, que deixamos de transcrever — é mais que evidente, pelo confronto com os seus verda­deiros versos, inclusive com os da tradução de O Canto de uma Alma-Petdida, de Whittier. No entanto, muita gente ainda acredita que o imperador destronado os escreveu. Ainda na semana em que ocorreu no ano passado o aniversário da proclamação da República, o Jornal do Brasil transcreveu alguns dêles, ao pé de um artigo do professor Tra-jano Quinhões, diretor do Arquivo Histórico do Estado da Guanabara.

Mas já em 1932, Medeiros de Albuquerque tinha mostrado que se tratava de sonetos fabricados pelos sebastianistas da propaganda monarquista, que ainda sonhavam com a restauração do trono dos Bra­gança e assim apelavam para o sentimentalismo brasileiro.

Os «sonetos do exílio» foram inicialmente divulgados no jornal A Tribuna, sucessor de A Tribuna Liberal, cujo redator-chefe era Car­los de Laet, monarquista intransigente até o fim de sua vida. O jornal, aliás, era de propriedade do Visconde de Ouro Preto, o último chefe de governo parlamentar da monarquia, e acabou sendo empastelado em fins de 1890, em razão de seus virulentos ataques à República e ao Ma­rechal Manuel Deodoro da Fonseca. Houve quem, a princípio, os atri­buísse ao Barão de Loreto e a Afonso Celso Júnior.

Medeiros e Albuquerque disse, no volume intitulado Poesias Com­pletas de D. Pedro IT. «Até os 64 anos o imperador sempre fêz versos errados, banais, de uma indigencia de idéias e de uma imperfeição de forma tais, que se recusariam a assiná-los até os mais incorretos prin­cipiantes. Depois dos 64 anos, doente, alquebrado fisicamente, acabru-nhado moralmente, mas viajando junto de um poeta, atribuem-lhe ver­sos, de que ninguém viu os originais e que, pela primeira vez, são bons, certos, elevados no pensamento e na forma.. . uma hipótese corrente é a que atribui a Carlos de Laet a autoria dos Sonetos do Exílio. É bom, de fato, notar que essas composições, embora passando por ter sido escritas a bordo, só no Brasil foram primeiro divulgadas. Quando, em artigo publicado na Revista da Academia, eu discuti o caso e aventei as hipóteses acima, não conhecia esta última. Desde, porém, que para ela me chamaram a atenção, notei uma circunstância curiosa. Laet nunca perdeu ocasião, nem de me agredir, nem de defender o imperador. Dessa vez, entretanto, em que podia satisfazer simultaneamente esses dois grandes prazeres, ficou silencioso. Isso não basta, é claro, para provar nada; mas foi tão es t ranho. . .»

Fosse quem fosse o autor dos versos atribuídos a D. Pedro II, o fato é que este não os escreveu.

A autoria dos «Sonetos do Exílio» foi posta em cheque por ocasião do movimento de saudosistas da monarquia que resolevram erguer, no

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Ceará, um monumento a D. Pedro II. Os representantes da dinastia deposta sugeriram que o ex-soberano fosse representado com a farda de almirante, que tinha o direito de usar. Era uma homenagem a um amplo setor da Marinha de Guerra que participara da revolução de 1893. com tendências restauradoras a partir da adesão de Saldanha da Gama. uma comissão foi a Paris e tentou obter os autógrafos de dois sonetos, um dos quais T'erra do Brasil, para serem reproduzidos, em bronze, no monumento. Mas o Conde d'Eu e a Princesa Isabel, com quem se entrevistaram, disseram não conhecer tais sonetos, não podendo assegurar que fossem de autoria do imperador. Note-se que estava em poder dêles tôda a papelada de D. Pedro II . O fato transpirou e José do Patrocínio Filho, que se achava em Paris, mandou para A Imprensa, de Alcindo Guanabara, um artigo, narrando o que teria sabido por um dos membros da referida comissão. Entretanto, como quase sempre fazia, exagerou a nota, afirmando que a filha e o genro do imperador tinham dito que êle «nunca» escrevera versos.

Tanto bastou para que se estabelecesse acirrada discussão na imprensa carioca. Interveio nela Victor Viana, no Jornal do Comércio (edição da tarde), a 24 de julho de 1913: «Nestes dois últimos anos, em diversas publicações vindas de Paris, tem-se contestado os predi­cados intelectuais e os dons poéticos de D. Pedro II . Outro dia, num artigo de Antônio Simples (era este o pseudônimo usado por José do Patrocínio Filho), apareceu uma contestação formal. Segundo o ele­gante jornalista, o Sr. Conde d'Eu e outros membros da família imperial declararam firmemente que o Sr. D. Pedro II nunca fizera versos. Não se compreende a vantagem que poderá haver em contrariar uma supo­sição que só honraria a memória do imperador. A mesma tendência em desvirtuar a figura histórica do último soberano do Brasil fêz com que os seus descendentes aconselhassem ao escultor a fazer a estátua para o Ceará de um D. Pedro II vestido de almirante».

uma carta, assinada apenas com a inicial M . , imediatamente pôs em dúvida tais declarações, dizendo que «não foram feitas nem pelo Sr. Conde d'Eu, nem por sua Augusta espósta, nem pelo Príncipe D. Luis». Acrescentava: «Nenhum dêles podia ignorar que o Senhor D. Pedro II fazia versos, entre os quais figuram o belo soneto consa­grado à memória do seu primogênito, a que faz alusão o Sr. Afonso Celso» que também saíra a campo. A carta lembra ainda traduções como a da ode de Mazoni, // Cinque Maggio, e os versos que foram impressos no Correio Imperial, jornalzinho que seus netos faziam em Petrópolis sob as vistas do Barão de Ramiz Galvão. Concluía dizendo que Antônio Simples (José do Patrocínio Filho) se equivocara ou fora induzido a erro por seu interlocutor.

Do Ceará, o jornalista João Brigido dos Santos, monarquista e antifederalista enragé que dirigia o jornal O Unitário, escreveu ao Conde d'Eu, que pôs as coisas nos seus lugares e acabou justificando

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a exclusão, do monumento, dos dois medalhões, com os sonetos gravados cm brome. Limitara-se a dizer que «não conhecíamos os dois sonetos que se projetava transcrever sobre o monumento e, portanto, não poderemos, como ainda hoje não podemos, afiançar que eles fossem da lavra do magnânimo imperador». Acrescentava, contudo: «Não nos opusemos, porém, a que a Comissão seguisse o seu propósito de transcrevê-los. Foi o estatuario que algumas semanas mais tarde avisou que êle não encontrava no pedestal do monumento espaço suficiente para estas transcrições». (*) Explicações com as quais se deu por satisfeito o destabocado jornalista, dizendo que a carta do Conde d'Eu, datada de 24 de setembro de 1913, tornara «mais solene o desmentido de terem sido postas em dúvida por V. A. as aptidões literárias de S. M . , o Imperador». Avisava ainda que a publicara, considerando que ela «não traria inconveniente algum e firmaria mais a verdade, sem molestar a imprensa do Rio de Janeiro, aliás a pior do mundo», pois nada conhecia «mais venal e malicioso que esse jornalismo, sem excetuar mesmo os jornais de mais circulação e soberba». O caso é que o desmentido ressalvou apenas o fato, notório, de que o imperador versejava, mas em coisa alguma encampou a autoria dos Sonetos do Exílio, que, a serem autênticos, não podiam deixar de ter chegado ao conhecimento da família imperial, figurando necessariamente os manuscritos originais nos cadernos em que D. Pedro II costumava lançar suas produções em prosa e verso.

Não foram, porém, as dos Sonetos do Exílio as únicas atribuições de obras poéticas a D. Pedro II. Êle mesmo se atribuiu uma compo­sição, que o expôs a grande vexame, quando um jornal do Rio de Janeiro o denunciou como plagiario. Tais versos apareceram no livro Brazil and Brazilians, dos pastores protestantes Daniel P Kidder e James Cooley Fletcher.

No apêndice C, à página 595 desse volume, havia uma notícia que assim pode ser traduzida: «As seguintes linhas foram compostas por D. Pedro II e escritas de seu próprio punho no álbum de uma das Damas de Honra. Sem dúvida nunca foram destinadas aos olhos do público, mas foram obtidas através de um membro do corpo diplomático do Rio de Janeiro. O seu caráter didático e a natureza compacta da língua portuguesa tornam a tradução extremamente difícil, mas esta foi cuidadosa e fielmente realizada em versos ingleses para este volume, pelo Sr. D. Batas, de Filadélfia, cuja poesia Speak Gently se tornou popularíssima em todo o país».

A tradução de D. Bates começou por transformar 19 versos em quatro oitavas rimadas, isto é, em 32 versos, estes, contudo, mais breves

(1) A correspondência trocada nessa ocasião pode ser consultada no Arquivo do Museu Imperial, em Petrópolis.

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Reprodução da página n° 595, da obra «Brazil and the Brazilians», de Kidder e Fletcher, edição de Filadelfia, 1857.

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do que os do texto traduzido. Transcreveremos apenas a primeira dessas oitavas:

If I am pious, clement, just, I am only what I ought to be: The sceptre is a weighty trust, A great responsibility; And he who rules with faithful hand, With depth of thought and breadth of range, The sacred laws should understand, But must not, at his pleasure, change.

Ao lado das quatro oitavas que começavam por esses versos, Kidder e Fletcher colocaram este texte com a assinatura de D. Pedro II:

«Se fui clemente, justiceiro e pio, Obrei o que devia. É mui pesada A sujeição do cetro; e quem domina Não tem a seu arbítrio as leis sagradas; Fiel executor deve cumpri-tas; Mas não pode alterá-las. Ê o trono Cadeira da justiça; quem se assenta Em tão alto lugar, fica sujeito À mais severa lei: perde a vontade; Qualquer descuido chega a ser enorme Detestável, sacrilego delito! Quando no horizonte o sol espalha Sobre a face da terra a luz do dia, Ninguém o admira, todos o conhecem; Mas se eclipsado acaso se perturba, Nesse instante infeliz todos se assustam, Todos o observam, todos o receiam: Logo se premiei sempre a virtude, Se os vícios castiguei, nada mereço».

Aliás, a transcrição no volume Brazil and Brazilians estropiou esse último vocábulo, dando-lhe uma forma disparatada: «merecei». Em seguida, vinha a assinatura: P. II, e a data: Dez. 1852. Quer dizer: fôrr. alguma coisa que escrevera no décimo terceiro ano de seu reinado, quando mal completara 28 anos. Na tradução do livro, publicada na Brasiliana, com revisão e notas de Edgard Sussekind de Mendonça, lê-se que o poema constante desse apêndice desapareceu de Brazil and Brazilians a partir da sexta edição, «por terem surgido suspeitas sobre a autoria». Entretanto, nr.da mais a nota esclarece.

Acontece, porém, que nos primeiros meses de 1870, tal poema foi objeto de vários artigos na secunda página de A Opinião Liberal (a coleção, fora de lugar na Biblioteca Nacional não me permite, no momento, fixar o dia exato, que não consta das notas que tomei), um

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dêles com o título de um Plagiario Coroado. E, na verdade, o jornal provou o que alegava, demonstrando que o jovem imperador lançara como seu, no álbum de uma dama do Paço, um trecho do poema do vate lusitano do século dezoito, Pedro Antonio Joaquim Corrêa Garção, o famoso Córidon Erimantêu da Arcadia Lusitana e inimigo visceral do nosso José Basilio da Gama, a quem dedicou vitriólico soneto. A poesia de Corrêa Garção se intitula Faia do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, aos Portugueses querendo levantar uma estátua por seu bom govèrno, o que êle não consentiu. Tal poesia em honra do famoso Regente do trono português começa por estes versos, que A Opinião Liberal transcreveu:

«Não, lusitano povo, eu não consinto Que estátua ao meu nome se dedique: O amor da pátria, o zelo da justiça, Não sede de mandar ou de vangloria, Me fêz tomar as rédeas do governo-. Se fui clemente, justiceiro e pio.. .

Segue-se o trecho copiado por D. Pedro II, após o qual a poesia de Corrêa Garção assim continua:

«E não queirais, vassalos generosos, Lisonjeiros tentar minha constância, Honrosa estátua pretendendo erguer-me Porque bem vos regi...»

Paremos aí, pois não vale a pena transcrever os 45 versos restan­tes. (2) Evidentemente, o imperador cometeu uma pequena leviandade, transcrevendo, como seus, versos alheios, que a dama de honra, cheia de sincera admiração, de boa-fé transmitiu a terceiros, assim chegando, por cópia, às mãos desavisadas de Fletcher, que com igual boa-fé os fêz traduzir para o inglês. Tal foi o alarido na imprensa do Rio de Janeiro que, sem dúvida, a verdade chegou aos ouvidos dos autores do livro, que da sexta edição em diante suprimiram o malfadado apêndice, sobre o qual D. Pedro II, ao que parece, silenciara... Quando A Opinião Liberal pôs a boca no mundo, o imperador fêz divulgar a sua explicação. Nunca dissera, a ninguém, que os versos eram de sua autoria. E mais: «Se os assinei, foi porque, na ocasião, exprimiam exatamente o meu sentir».

Parece que, poeta frustrado, o nosso imperador tinha a tristíssima sina de só fazer sucesso com os versos alheios. Nunca com os próprios.

(2) Remeto os leitores curiosos de conhecer todo o texto de tal poesia ao volume das Obras Poéticas e Oratórias, de Corrêa Garção, impresso em Roma, na Tipografia dos Irmãos Centenari, com introdução e notas de Azevedo Castro, onde figura às páginas 220/224. A Biblioteca Nacional possui triplicata dessa edição.

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DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL

1972

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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA

9 Julho/Setembro — 1971

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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura

DIRETOR

Mozart de Araújo

CONSELHO DE REDAÇÃO

Octavio de Faria Manuel Diégues Junior Adonias Filho Pedro Calmon

Afonso Arinos de Melo Franco

Redação: Palácio da Cultura — 7" andar — Rio de Janeiro — Brasil.

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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA

ANO III JULHO /SETEMBRO - 1971 N.° 9

Sumário

ARTES

CELSO KELLY A Arte como Expressão do Tem­po 9

CIÊNCIAS HUMANAS

GILBERTO FREYRE

AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO ..

VERÍSSIMO DE MELO

ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS

JOSÉ ALIPIO GOULART

VICENTE SALLES

A Propósito de Cultura Hispâ­nica como Cultura Transna­cional Projetada sobre o Futuro 21

Constituição: Mito e Realidade 33

Antropologia e História 43

A Conferência de Veneza e os Problemas da Cultura 55

As Monarquias Ibéricas e a Pro­teção ao Incoia 67

Guajarina, Folhetaria de Fran­cisco Lopes 87

LETRAS

FERNANDO DA ROCHA PERES

CARLOS DANTE DE MORAES

ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO ..

Gregorio de Mattos: os códices em Portugal 105

Augusto Meyer 115

Cecilia Meireles, Pastora de Nu­vens e Mitos 125

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Artes

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A ARTE como EXPRESSÃO DO TEMPO

CELSO KELLY

I

P O R quê faço arte ?

Essa pergunta tem sido respondida de tantas maneiras. Cada qual com sua justificativa. Boas razões invocadas. Cada artista tem sua motivação. Daí, explicações contraditórias. Ou, pelo menos, va-riadíssimas.

2. Comecemos pela resposta mais simples:

— Porque me sinto impelido a fazer alguma coisa!

Está no artista essa força de comunicação que transfere do mais íntimo um sentimento que tem de exteriorizar-se Muitos praticam a arte por necessidade. Entenda-se: a necessidade de uma confissão com o mundo exterior. Assim como, em certos momentos, qualquer pessoa experimenta a urgente precisão de confidenciar a outrem um segredo, uma mágoa, uma inquietação. O artista toma do lápis — simples e boêmio lápis, o mais elementar dos instrumentos do desenho, e põe-se a rabiscar ingênua e distraídamente : saem coisas, compreensíveis ou não, sem qualquer sentido utilitário. Construídas por construir. . . Somam soluções plásticas, que têm significação orgânica, unitária, na aparência da despretensão. Nada dizem à criatura vulgar: falam talvez transcendentalmente, aos sensíveis, aos intérpretes do singular fenômeno plástico. Já a criança havia deixado no papel as suas enig­máticas garatujas, — registros secretos do intrincado imagismo infantil. Criança ou adulto, há momentos de criação: a extroversão é tão na­tural e espontânea que, por vêzes, lhes escapa a consciência do que estão a fazer . . .

3. Porque sou tocado pela inspiração!

Essa a resposta que não responde: transfere. Transfere à ins­piração a razão de ser da obra. Inspiração será um estado de espírito, que, de quando em quando, nos assalta, a querer dizer coisas inte­riores. De súbito, o artista se encontra nesse estado: um chamamento à produção, em termos irrecorrível, sob o imperativo de uma deter­minação. Será um estado de graça, propiciado por Deus ao homem:

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do Criador à criatura para também criar na órbita humana. Privilégio contido nos milagres da inteligência e da sensibilidade, distribuídas em doses desiguais pela humanidade afora. Será um dom — uma fa­culdade especial de que são possuídos alguns, pródiga virtude de tão poucos, a iluminar a visão de tantos.

4. Porque quero comunicar-me!

Tal como acontece à linguagem falada, certos artistas sofrem o anseio de passar a seus semelhantes uma mensagem, mesmo que ci­frada ou hermética. Quando atingem a plenitude do processo criativo, reclamam logo o teste da comunicabilidade. Tal como acontece a ora­dores e comediantes, exigem público: a obra de arte se completa no consumidor, intuitivo ou iniciado, numa ou noutra hipótese, capaz de receber o convencional ou de interpretar a mais estranha das criações.

5. Porque o meio social me solicita!

Tem sido verdade através dos tempos. O meio acorda no artista a virtude da criação. Pelo menos, estimula. Seguramente lhe garante o consumo. Estabelece a relação de criador e público, o que implica uma excitação às faculdades do artista. A história registra momentos altamente propícios à elaboração estética, com mercado assegurado, com compreensão fácil, com interesse generalizado. Também há os momentos de ocaso. O pêndulo da receptividade oscila continuamente. O artista percebe quando a receptividade lhe sorri. Abrem-se-lhe as portas para as grandes encomendas. Papas, imperadores, nobres, bur­gueses vaidosos, mulheres deslumbradas querem do artista a imorta­lidade de seu prestígio. A arte sela o requinte de sociedades ou grupos, em determinados momentos. Ou lhes aponta a decadência irremediável.

6. Porque, engajado, estimo colaborar na expansão de uma idéia!

É o artista a serviço de uma ideologia, de um partido, de uma crença, de uma propaganda. A palavra engajado há de ser lomada no sentido de adesão ou submisão: engajado a uma religião, engajado a um governo, engajado a uma atitude revolucionária. Em regra, a expressão engajado é usada em referência aos que integram regimes totalitários: engajamento integral. Entretanto, quem quer que coloque sua arte como instrumento de proselitismo — da ordem constituída ou de uma nova ordem — em termos incondicionais, engaja-se. Perde a liberdade de crítica ou de criação, para identificar-se com o ponto-de-vista único, absoluto, soberano. A atuação política sobrepõe-se ao instinto da criação livre. A densidade estética cede lugar à densida­de social.

7. Porque me dirijo no sentido das encomendas!

Até mestres — que foram pintores reais — curvaram-se, de algum modo, aos desejos e vaidades dos poderosos. O retrato pode trans-

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formar-se num drama, tôda vez que o artista não sente o modelo da maneira que o mesmo estimaria ser sentido. Isso ocorre muito com personalidades femininas, em busca de uma cirurgia plástica... atra­vés do pincel. A encomenda pode corresponder ainda a propósitos comerciais. um dos mais atraentes setores da arte contemporânea é o da arte de propaganda. Pode ser arguto o artista que aceita as im­posições dos que lhes fazem encomendas. Mas será pouco artista quando cede às concessões. .. A obra de arte há de ser íntegra e autêntica. Sob pena de não ser arte.

8. Porque faço da arte uma experiencial

O artista sente que tem à sua disposição algumas técnicas (ou maneiras) e variado material. Há que optar. Há que ir além. A arte pretérita já lhe fatigou a vista. E fatigou a vista de seus con­temporâneos. Vale a pena tomar dos elem|entos e tentar soluções novas. Sem idéias preconcebidas. Pelo prazer da experiência. Tôda a vida humana soma um rol de experiências nos mais diversos campos. É da condição humana ser um explorador de caminhos. A reconstru­ção da experiência enriquece a cultura. O grande capítulo da cultura humana tem sido escrito a custo da audácia e do pioneirismo de alguns. Há extraordinária beleza em perseguir a be leza . . .

9. Porque, na busca do inédito, aspiro também a ter minha par­cela na obra da criação!

Embora arrogante, a atitude se explica. Configura-se o desejo de acrescentar algo de pessoal ao processo artístico: uma contribuição técnica, uma posição estética. O espírito humano vive o desafio dos insatisfeitos e dos renovadores. O que dele emana se traduz por um vir-a-ser contínuo: pequenas ou violentas mutações. A mira está sempre longe, a despertar motivações indeterminadas e rebeldes. É preciso que a visão seja larga.

10. Variam as explicações. Umas sinceras, outras pretensiosas, qualquer delas aceitável, conforme o ângulo em que nos situemos. O, temperamento variável conduz a afirmações tão diferentes. O artista não é um ser bitolado: eis porque cada um toma seu rumo. Regra geral, não se analisam. Muito menos analisam suas obras. Os crí­ticos é que descobrem intenções e virtudes. Os artistas se surpreen­dem com o que se lhes atribui.. . Mas é função da crítica re-criar, quando pode; ou destruir impiedosamente, quando é pérfida. As res­postas acima ilustram a diversidade de opiniões. Há quem produza pelo gosto de produzir, sem motivação nem conseqüência: a obra responde a um impulso. A elaboração foi um gosto estético praticado. Há também quem se deixa levar pelas influências do meio em que vive: idéias, solicitações, encomendas; trabalham acionados. Adotam atitudes por convicção ou por moda. Sob outro ponto de vista: o que faz arte pela arte em busca do estético — convencional ou inédito;

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e o que faz da arte a sua tribuna, imprimindo-lhe sentido demagogico, mesmo que discreto. São as contingências do momento, em oposição às razões da personalidade. Nem sempre esta resiste àquelas contin­gências. Também as circunstâncias interferem poderosamente no pro­cesso da criação.

11. Essas considerações são de todos os momentos. Sêr neces­sário, indispensável mesmo a qualquer comunidade, o artista capra e exterioriza. Capta à sua maneira: exterioriza à sua maneira. Coinci­dências favorecem, por vêzes, a formação de escolas, no sentido de movimentos. Porém os grandes mestres, os grandes realmente, não cabem nas molduras doutrinárias. um Goya ou um Daumier — para citar dois caracteres bem diversos — não podem ser classificados, se­gundo o discutível catálogo das tendências estéticas. E que dizer de um explosivo, como Van Gogh, em cujas telas nasce uma pintura inédita, tão só pintura, sem se deixar conter nas figuras luminosas do impressionismo em voga? Que dizer de um compòsito, como o nosso admirável Aleijadinho, encontro miraculoso do barroco, do gótico e do expressionismo? Não há palavra ou termo didático que contenha o gênio. ÊJe ultrapassa as fronteiras. Êle cria novos cânones. Ou melhor os cânones são eles próprios. Apesar disso, os contemporâ­neos insistem em arie moderna, em modernidade. A partir de quando? Todo novo ciclo marcou uma era nova: o gótico, o ba r roco . . . Tôda verdadeira arte é sempre nova. Porém, quando imita ou copia; quando servilmente segue a receita compendiada; quando se enquadra passi­vamente numa fórmula; quando nacía elabora — não é arte. É papel-carbono. E o tempo? Mesmo que, em princípio, a arte seja atemporal, a presença dos tempos é das mais marcantes, sobretudo em período de mudança. A pesquisa — em qualquer que seja a área — motiva renovação. A atualidade experimenta uma inquietação geral, em busca de soluções adequadas, de revelações, de revisão e de novidades. Na forma e na comunicação, assistimos a um momento de elabora­ção frenética.

II

12. Sim. Temos vivido, neste meio de século, uma larga fase de deslumbramento. Nunca os ateliers de pintura e escultura estive­ram tão revoltos, desinibidos de preconceitos, em busca de soluções novas. E tais soluções brotam pródigamente, em número e em varia­ções, como se o mundo — pelo menos nesse setor — estivesse a rein­ventar-se. A fertilidade é tal que ninguém se fixa num achado, e tem logo a atenção solicitada por outra aventura, já sofre a concor­rência de terceiras e quartas soluções. Dentro dessa oficina, sem a regência de espíritos superiores que lhe tentassem alguma unidade, tudo é permitido: tem-se a impressão de que cada qual saca do seu buril ou do seu pincel, do seu pedaço de madeira ou ferro, ou de sua substância corante, e dá curso à imaginação: transpõe-se ao estado

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criativo e, pósto nessa condição mágica, realiza o que lhe vem à ca­beça, espontâneo ou premeditado, no extremo da originalidade, como se respondesse ao dever de dar uma nova escritura ao mundo. . • como espetáculo, o quadro é de euforia e entusiasmo, e não há como negar validade a tantas expressões que se competem, substituindo uma fórmula envelhecida por numerosas proposições no campo da estética. E o entusiasmo aumenta quando a tarefa se vai personalizando, cada um dentro de suas fronteiras, como dono de uma área que explorará ao sabor de suas preferências.

13. Eis porque não há uma arte moderna, em oposição à es­cultura grega, ou à arquitetura gótica, ou à pintura impressionista — capítulos admiráveis de precisão e de síntese, cada um dêles corres­pondente a uma maneira integral de sentir e de conceber. Hoje existem várias modalidades que somam o desconcertante e inquieto acervo da arte moderna, e as múltiplas variações chegam às oposições frontais: primitivismo e neo-cubismo, figurações e abstrações, escultura ovòide e mobiles, expressionismo e surrealismo, pop e op, «minimal» e objeto. Mais de dez caminhos paralelos são seguidos ao mesmo tempo, sem prejuízo dos que ainda continuam serena e impertubàvel-mente a tendência conservadora que abraçaram. Em qualquer dos rumos, a renovação não se cinge à maneira ou ao assunto: compreende a matéria. Assim o objeto resultará tanto dos velhos materiais nobres, como de material vulgar; tanto de tintas, como de collage; tanto de mármores e pedras, como de cascalho de lixo. Em meio a isso, surgem metais de fino trato e, por vêzes, uma peça suíça flexível é um meio termo entre um relógio e um instrumento musical. Na tendência oposta, de motivos populares, a intenção reside na pretensa identidade com as camadas incultas da população. Tomado esse panorama em sua im­pressionante totalidade, é de energia criadora por excelência o espe­táculo a que se assiste. Mas, transferindo do esforço da criação para o da assimilação ou consumo, as distâncias entre artista e público se agigantam.

14. Em verdade, caducaram as velhas formas acadêmicas. Aquela arte serena e refletida, que tinha, em cada obra, uma definição ou uma mensagem, esborôa-se numa sociedade sacudida por tôda a sorte de problemas morais, religiosos, econômicos e políticos. Per­dida a unidade, multiplicados os rumos que se delineiam aos grupos, instalada a controvérsia, a mesma dúvida que devora os espíritos em geral castiga igualmente o artista. Êle se sente vítima do comum estado de coisas, onde mal se vê o horizonte, e as coordenadas lógicas que presidiam a pensamentos e atos são sùbitamente afastadas pela presença de acontecimentos inesperados, atrevidos, arrogantes, — por vêzes baseados em razões da ciência, sem que o sejam em pressupos­tos morais. A arte reflete as dúvidas e angústias contemporâneas, não podendo oferecer a esse quadro de sofrimento e desafio a tranqüilidade de obras para a doce contemplação dos homens. E, ante o impacto sucessivo de negações do mundo real, à dúvida sucede a evasão, e a

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arte se perde no indefinido e no abstrato, com o que tenta conquistar para o atormetado espírito humano alguma solução, mesmo que tran­sitória. É preciso falar às estrelas, já que não se pode falar aos homens.. .

15. A ausência de definições, a fuga para o subjetivo, os lances mais audaciosos de imaginação coincidem na vida como na arte. Ape­nas há quem pense, chegado o momento artístico, que o homem se exonera das circunstâncias que o cercam para voltar ao estado de idealidade e coloquiar com as obras clássicas. . . O contraste é severo: debruçados em seus laboratórios, cientistas pesquizam o infinitamente pequeno, no qual vêm virtudes surpreendentes, enquanto outros alon­gam os seus olhos, por processos artificiosos, para alcançar o infinita­mente distante e desvendar novos mundos. A visão do homem comum é contaminada pelos resultados dessas incursões pioneiras. Privile­giada, a visão dos artistas tem antecipações que perturbam a marcha normal da percepção e só justificam as suas fórmulas proféticas nas liberdades permissivas do gênio. Já a aviação havia dado à visão humana, — com a anulação do horizonte convencional — uma paisa­gem inédita. Vivendo em termos de altitudes, o homem moderno ex­perimenta um novo arranjo da natureza. Fato inconteste reside no enriquecimento de sua visão e na derrocada definitiva de alguns pre­conceitos que, tentando clareá-la, a viciavam de base.

16. O paralelismo continuará entre a vida e a arte. Agora não apenas na pesquisa, tornando legítima nas artes como nas ciências a deliciosa aventura do descobrimento. Agora, também, em outro campo de buscas, mais afim pelo domínio das formas, que é a indústria; nesta, as ambições não se contém, e os processos de produção atingem proporções ameaçadoras, já a caminho da automação. Assim também os artistas se interessam — voltando à sua condição de artesãos — por fazer de qualquer nada alguma coisa diferente, e daí as variações mais excêntricas, até o momento em que se encontram com a forma pura, que os excita e aguça segundo requintes de sensibilidade ou ca­prichos de imaginação. Quantas dessas experiências legítimas ao serem tentadas — não lograrão sobreviver, por absoluta falta de inte­resse, reduzida a um exercício, mesmo que admirável! Mas a faina de inventar continua: na arte como na indústria, a caracterizar uma fase do mundo moderno em que certas criaturas — sejam compreendidas, ou não, pelos outros — representam o papel pioneiro de intérpretes da inquietação e do desvario contemporâneo. Nisso, no caótico das va­riantes, a arte moderna se enquadra na cultura do tempo: não é uma extravagância marginal, porém a integração numa cultura dominada pela renovação e pela pesquisa, pela aventura do novo e do inédito, pela psicose da originalidade. O objeto, seja o que a indústria produz com fins utilitários, seja o que o artista inventa no devaneio da forma, representa, numa hipótese e noutra, uma solução plástica, para a qual houve um tratamento intencional. E nessa intencionalidade reside o caráter artístico que se lhe não pode negar.

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17. Embora se explique a arte moderna de conformidade com tendências da cultura contemporânea, fato é que nenhum aconteci­mento marcante do século motivou qualquer pintura ou escultura. A perda da condição representativa retirou às artes o selo da contem­poraneidade, com que, em outros períodos, a pintura histórica marcava a sua função como nas cortes napoleônicas. Certo, há acentos de pro­testo e de angústia em pintores que dizem do desajustamento geral, até mesmo em composições não-figurativas. O grupo socialista mexi­cano, permanecendo dentro do representativo, buscou à época e ao meio temas de inspiração política, que encontraram, em Diogo Rivera, uma tribuna de protesto. A arte soviética não agasalhou, nem esti­mulou a arte moderna, por considerá-la experimental demais, fugindo à essência dominante de uma mensagem: para sua destinação social, integrando a cultura preconizada pelo regime, a linguagem acadêmica oferece condições positivas insuperáveis. O mesmo país, empenhado nas mais audaciosas pesquisas espaciais, levando a ciência a progres­sos incríveis, fechou as portas às pesquisas artísticas e literárias. E a arte moderna não medrou em seus imensos domínios.

No Brasil, Lazar Segali deixou testemunhas eloqüentes de uma arte de protesto, dentro do expressionismo, e Portinari — o grande mestre do modernismo brasileiro, que nunca abandonou a figura — renasceu, em nova fase, a pintura histórica. Todavia, as gerações que mediaram entre 30 e 70 não legaram contribuição que, sob qualquer aspecto, fixasse acontecimento desse meio de século. A arte moderna, em sua generalidade, malgrado sintonizar-se com o espírito de pes­quisa e renovação que marca a atualidade, não reflete os fatos da época.

18. Destituída de conteúdo ideológico, seca de presença hu­mana, sem mensagem aparente, sem comunicação objetiva, é uma Iin­guagem para os deuses, no hermetismo a que se condena, pois suas virtudes em regra são sentidas e conhecidas pelos iniciados e pelos mestres, limitando profundamente os seus efeitos, numa época em que a comunicação das massas constitui uma das preocupações da cultura popular. O hermetismo, ou seja, essa limitação aos entendidos, vem a ser o orgulho e o prejuízo da arre pela arte, isolada em seu castelo da criação, para gozo do autor ou dos que comungam com sua santa cartilha. No meu egoísmo de artista, creio que o artista se terá realizado, desde que haja alcançado o seu propósito, independente de satisfações alheias. Porém, no meu altruísmo de educador, dói-me que os grandes frutos do talento sejam tão só o privilégio de alguns. A distância que separa a arte moderna do público — apesar dos pesares — tende a reduzir-se. Se decorre de velhos padrões estéticos, herda­dos e transmitidos pela escola, afastando de plano as inovações, po­de-se, contudo, encaminhar as gerações novas para a compreensão progressiva e simultânea de várias linguagens artísticas, até aquelas que, por sua aparência fechada, nem parecem ser linguagem.. . Pode-se educar um adolescente, ensinando-lhe, ao mesmo tempo a sua língua

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e um outro idioma. Pode-se certamente dar-lhe simultânea educação musical e matemática, o que importa em duas linguagens tão diversas. Pode-se também — com proveito para o enriquecimento de sua per­sonalidade — treiná-lo dentro de várias visões: a visão comum, que corre paralela à visão acadêmica, pela coincidência representativa; a visão cubista, no procasso analítico sintético; a visão das formas puras; a visão surrealista e tantas outras visões. Isso equivale a um esforço nobilissimo: abrir os olhos para a expressão do tempo, e fazer da ex­pressão do tempo — não um tabu, intocável e indiscutível — porém alguma coisa que desafia a nossa sensibilidade, pedindo integração na cultura contemporânea. Excessos e facilidades se perderão, mas as composições que denunciem a energia de nossa época, estas ficarão como atestados de que, até no caótico aparente, haverá sempre a transparência de uma solução, ditada pela sensibilidade profética e poética de alguns grandes artistas.

III

19. A posição do artista no mundo contemporâneo e sua proje­ção no futuro oferecem também algumas considerações importantes. Insiste-se na política desenvolvimentista como tônica dos governos para felicidade do povo. Pelo menos, para a grandeza econômica do país. À idéia de desenvolvimento ligam-se, de pronto, duas outras: o pro­gresso da ciência e o apuro da tecnologia. Todos os apelos são feitos à tecnologia e à ciência. Duas figuras emergem do meio por sua im­portância — a do cientista e a do técnico. Nessa mira pela prospe­ridade, há quem não veja lugar próprio para o artista, considerando-O um sonhador, um fabricante de imagens e ilusões, uma vocação para o devaneio, um ser sem papel definido na era da competição produ­tiva. Aí reside o grande equívoco, a desfazer-se com urgência, antes que cresçam os adeptos de concepção tão estreita. A técnica não é fruto exclusivo da ciência; não é apenas ciência aplicada, embora lhe deva o principal de suas conquistas. O fazer não dispensa, ao lado dos processos que lhe aumentam a capacidade de multiplicar e aper­feiçoar o produto, a contribuição da arte. É da arte — e não da ciência — que se parte para a técnica. A arte está presente na in­dústria, desde o momento fundamental do projeto até o termo delicado do acabamento. um projeto industrial, embora encare os aspectos eco­nômico e técnico-específico, tem a sua coordenação natural no senti­mento estético: este lhe dá harmonia, interesse, condições de recepti­vidade. Em certos ramos, o gosto vale tudo. uma das maneiras de captar o público reside justamente na multiplicidade de aparências, ou maneiras de oferecer o objeto à sua escolha. Automóvel, indumentá­ria, máquinas e aparelhos de uso caseiro ganham, sobremodo, pela apresentação agradável. Arte e ciência se aplicam fundidas, na tecnologia,

20. Não se trata apenas do jovem e vitorioso desenho indus~ trial — a arte do projetista. Trata-se de tôdas as artes, pois elas

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influem poderosamente na formação do gosto de um povo. A moda feminina, por exemplo, está estreitamente ligada às artes em geral, e vários figurinistas se vão inspirar em telas e esculturas de perenidade reconhecida. Soluções admiráveis de proporção e originalidade, tais peças ficaram a provocar na sensibilidade das gerações posteriores um senti­mento de equilíbrio e beleza, que se não apaga. A educação artística, iniciada na escola comum, quer no domínio do plástico, quer no do mu­sical e do teatro, responde pelo cultivo indispensável da sensibilidade. Só com a sensibilidade cultivada, pode um povo responder às contin­gências de uma civilização de competição e procura.

2 1 . Aspecto bem mais relevante resultará da automação. Esse assunto precisa de ser aprofundado convenientemente. Até previsões hão de ser feitas com urgência e clarividência. A automação trans­fere a poucas mãos de engenheiros e técnicos aquilo que hoje ainda vem sendo realizado por milhares ou centenas de operários. Pon­derável parcela da população perderá sua condição proletária, pela nova condição de terciários, — o grupo humano que crescerá de dia para dia. Os primários extraem, os secundários manipulam, os ter­ciários prestam serviços. Serviços que vão de um delicado aten­dimento clínico (nível universitário) à entrega de uma mensagem (para o que pouco se reclama de escolaridade). No bojo dos terciá­rios, colocar-se-ão os que tomarão a si a tarefa de criar, promover e difundir recreação. As horas de lazer se avolumam em ritmo progres­sivo. A recreação passará a constituir a oportunidade que a civiliza­ção futura proporcionará para dar sentido aos momentos de folga. A indústria do lazer, até certo ponto confundida com a das comunica­ções, convocará — como já convoca os elementos de capacidade cria­tiva, para seus programas e realizações. Os artistas tornarão à cena, procurados, procuradíssimos, talvez como nunca o tenham sido. Te­rão a grande tarefa de alimentar o espírito humano, servindo a nume­rosas comunidades, senão a tôda gente, dados os processos de difusão que cobrem a superfície da Terra. Museus, bibliotecas, teatros, cine­mas agasalharão multidões. Televisão, rádio, discos, fitas magnéticas entrarão por todos os lares. Que é que uns e outros apresentam? O talento artístico, nas mais variadas modalidades. E a arte passará a ser uma das razões da existência humana, como o mais precioso e disputado produto de consumo, restaurando, numa sociedade sacudida por tantas inovações e crises, o equilíbrio de uma vida usufruida em seus melhores pretextos, em suas origens eternas.

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Ciencias Humanas

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A PROPÒSITO DE CULTURA HISPÂNICA como CULTURA TRANSNACIONAL PROJETADA

SOBRE O FUTURO

GILBERTO FREYRE

AOS atuais estudos universitários, no Brasil, parece que está fal­tando sensibilidade, no setor humanístico, às bases pré-nacionais e

às projeções transnacionais do que é brasileiro na cultura nacional. Entretanto, é desejável que os jovens brasileiros de hoje estudem a sua condição cultural, considerando essas bases e essas projeções. Inclusive as que se alonguem em implicações para um possível futuro comum ao conjunto hispânico: principalmente o hispano-trópico.

A cultura hispânica — cultura no seu sentido sociológico, hispânica no sentido de ibérica, convindo que, dos espanhóis alguns deixem de pretender monopolizar o adjetivo «hispânico» e dos portugueses e bra­sileiros, outros tantos deixem de temer nele o espantalho de um suposto imperialismo: o da «hispanidade», como significando exclusiva espa-nholidade — está à base das novas estruturas nacionais — a argentina e a brasileira, a peruana e a colombiana, a mexicana e a cubana para só falar nessas — como um elo transnacional, vivo e germinal na sua capacidade de aproximar nações, quase-nações, populações neo-hispâ­nicas, no essencial tanto das suas formas modernas de vivência e de convivências como de num possível futuro cultural comum a essas nações, quase-nações e populações.

Digo, além de nações, quase-nações e populações, porque estas existem ao lado dos Estados-nações de cultura básica ou principalmente hispânica. Quase-nações talvez a caminho de se tornarem Estados-nações. E há em espaços hoje politicamente não-hispânicos populações, marcas arquitetônicas sobre a paisagem, sobrevivencias culturais e lin­güísticas, que fazem dêles projeções de presença ibérica ou hispânica, por mais que aos olhos do político e do jurista pouco tenham esses valores de ibéricos ou de hispânicos. O sociólogo da cultura, porém, vê nessas sucessões de domínio político, jurídico ou econômico, de hispanos ou não-hispanos, episódios de superfície que raramente chegam a descaracterizar, no essencial, as situações mais profundamente étnico-culturais ou psico-culturais: as que refletem decisivas influências éticas,

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estéticas, lingüísticas, religiosas, sobre populações que podem passar de um domínio político ou jurídico a outro sem perderem o essencial da sua formação. O homem de Pòrto Rico se apresenta hoje anglo-saxonizado antes na superfície que no essencial do seu modo de ser homem: no essencial êle continua a ser ibérico ou hispânico. Não se conhece nativo de Porto Rico que tenha se tornado poeta ou escritor notável em língua inglesa; ou que haja conseguido superar, neste setor, e utilizando-se da mesma língua inglesa, um Rubem Dario ou um Amado Nervo.

O mesmo se poderá dizer do homem de Goa. Mesmo hindu ou persa ou muçulmano e sem uma gota de sangue europeu e há anos cidadão de república não-hispãnica, poderosa, o goês típico é um homem ibérico ou hispânico no essencial do seu modo de ser homem e nas formas decisivas da sua cultura. O que talvez seja também exato do filipino verdadeiramente típico, que pode ser entusiasta da coca-cola como refrigerante sem deixar de ser um maior entusiasta do vinho de Málaga como estimulante.

A cultura hispânica é uma cultura que se vem exprimindo mais em vinhos tradicionais e, ao mesmo tempo, sempre mais em seus sabores e em suas virtudes que em refrigerantes de fabrico industrial ou de fabrico caseiro, embora não lhe faltem tais bebidas. É também uma cultura em que o popular, o rústico, o folclórico está sempre a juntar-se ao erudito. E à qual não falta aquela sensibilidade ao mistério que Cervantes fixou em termos caricaturescos: «Yo no creo en bruxas pero que las hay las hay».

Do hispano tipicamente hispânico destaque-se que, nos contatos, no século XVI, com não-europeus, foi antes cristocêntrico — teològi­camente cristocêntrico e, diminuída a flama teológica, politicamente ou sociologicamente cristocêntrico — do que etnocèntrico. Sua própria maneira de ser cristão foi o que quase sempre exprimiu: uma relação entre a força não só teológica como sociológica de religião e o poder, <— ou o mito — biológico da etnia, com a predominância daquela força sobre este poder ou sobre este mito. Embora o poder biológico da etnia não deixasse de atuar a seu modo entre hispanos — daí exigências quanto à pureza de sangue para a admissão de indivíduos a cargos ou em ordens e confrarias — foi contido, em suas tendências a excessos, pela força sociológica da religião. Nunca chegou a ser, de parte de hispanos, em suas relações com não-europeus, o mesmo fator decisivo que foi nas relações de europeus não-hispânicos com os mesmos não-europeus .

Significativos são os cultos que se desenvolveram, na África, na América e no Oriente marcados pela presença ibérica ou hispânica, de Nossas Senhoras, de santos e até de Cristos de côr ou associados principalmente às devoções de gentes de côr: de não-europeus. Basta que nos recordemos do culto de Nossa Senhora de Guadalupe —< tão

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forte no Mexico — e, no Brasil, do de Nossa Senhora do Rosàrio e do de São Benedito. A pintura cusquenha marca a tendência hispâ­nica r - e o faz com extraordinário vigor estético — para a identificação dos mais altos símbolos e das figuras máximas da religião cristã com tipos físicos não-europeus, desfazendo-se assim o mito de uma religião etnocèntrica: de um cristianismo só europeu. Parado no tempo europeu. Só identificado com a etnia caucasoide. Sem projeções aventurosas sobre futuros não-europeus como tendem a ser, em grande parte, os hispânicos.

Repugna a alguns de nós, hispanos, um presentismo com pretensões a modernismo que ignore as suas dimensões de tempo além da do ime­diatamente atual ou do apenas moderno. E nessa atitude creio expri­mir-se antiga tendência hispânica para situar o Homem num tempo que longe de ser apenas o presente é também o que foi e o que será — inclusive o além-tempo — os três interpenetrando-se. Tríbio: constan­temente tríbio. É assunto, este, a que dediquei já um ensaio escrito e publicado na língua inglesa e, posteriormente, na alemã; e que cons­tituiu também tema de conferência que proferi em 1961, na língua inglesa, na Universidade de Princeton, sob a presidência do Mestre Américo Castro, então professor naquela universidade; e do qual venho me ocupando, desde então, em conferências em universidades alemãs e suíças, nas quais um dos meus afãs tem sido procurar sugerir que, quem diz «cultura hispânica» não se refere só aos valores de um passado de glória mas às possibilidades de um futuro hispánicamente aventuroso.

Quem considera problemas de sociedade e de cultura através de uma concepção tríbia de tempo dificilmente pode resvalar num conven­cional tradicionalismo: tem que ser também adjetivado como futurolo-gista. Foi o que destaquei no primeiro curso universitario de Futuro­logia, do ponto de vista sociológico, professado no Brasil. Proferiu-o há três anos na Universidade Federal de Brasília, este conferencista, tendo repetido parte dele na Faculdade de Direito de Pelotas no Rio Grande do Sul, outra, na de Filosofia, de Porto Alegre e ainda outra parte no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Lisboa; e uma tentativa de síntese dessas várias conferências na Universidade de St. Gall, na Suíça; e sempre ouvido com extremo interesse por jovens e estudantes. O que indica não serem todos os das novas gerações inimigos das ciências e dos estudos e das preocupações sérias. Sou dos que não desejam ver transformadas nem a França nem o Brasil em repúblicas de estudantes. Mas sou também dos que não concebem culturas nacionais desdenhosas da participação dos jovens ou de ligações objetivas, constantes, entre os três tempos: passado, presente e futuro. Daí entender que as universidades devem tornar-se cada dia mais lu­gares de encontros entre jovens e provectos em que os jovens sejam ouvidos pelos provectos em vez de serem reduzidos a passivos ouvintes dos mestres convencionalmente mestres.

Relembro atividades aparentemente desligadas do assunto que ora procuro menos versar do que comentar, porque é dentro dessa mesma

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concepção tríbia de tempo que me parece justo empreender-se uma ten­tativa mais ampla do que as até agora esquematizadas no sentido de uma caracterização não só histórica como sociológica do complexo de civilização ibérica ou hispânica. Pois sendo um complexo em desen­volvimento, o tempo em que se acha imerso não é o apenas histórico. O que nele é história — ou tradição — é história — ou tradição ~ projetada num presente que a cada momento se projeta em futuro, tal a vitalidade do todo: um todo desobediente de rígidos controles crono­lógicos. Reciprocamente pode-se dizer do passado ibérico ou hispânico e do presente em que êle se projeta que são passado e presente que quase nunca têm existido, ou existem, à revelia do futuro. O futuro os tem condicionado sob místicas messiânicas, esperanças míticas, sonhos de recuperação de paraísos perdidos ou de conquista de paraísos ter­restres. Inclusive os messianismos anarquista e socialista-marxista. São míticas, quer as teológicas, quer as materialistas, tão características do ethos hispânico como a nostalgia do que foi, a saudade, o gosto pela recordação de vida que, já vivida, tem sabor especial ao ser revivida. «Recordar um amor é amar outra vez», diz muito hipânicamente um poeta português em verso medíocre porém célebre; enquanto outro poeta também português, o admirável Teixeira de Pascoaes, fêz do «saudo­sismo» uma como filosofia de vida nacional portuguesa que, embora pouco profunda, como filosofia, atraiu a simpatia de Miguel de Una­muno pelo que nela é intrusão efusiva e sugestivamente lírica em me­ditação filosófica.

Ao mesmo tempo, o messianismo, em suas várias expressões inclu­sive a anarquista e a socialista-marxista: que o diga o sugestivo ensaio do pós-marxista argentino Juan José Sobreli, Buenos Aires. Vida Co­tidiana y Alienación — está muito presente tanto na literatura de ex­pressão portuguesa como nas de expressões espanholas; e o messianismo é a preocupação com o futuro; é aquela atitude de «esperança», tão ca­racteristicamente hispânica, estudada com espírito filosófico e senso so­ciológico pelo Professor Lain Entralgo, de Madrid, em obra que é uma das mais penetrantes análises do ethos ibérico ou hispânico aparecidas nos últimos anos. E não raras vêzes esse messianismo, esse incessante e nem sempre paciente no esperar, em que a espera se alonga quase sempre em esperança, tem sido,, da parte dos portugueses talvez mais do que da dos espanhóis — porém também de espanhóis — uma espécie de idilio, projetado sobre o futuro, com terras quentes e gentes de côr nas quais o hispano mais aventuroso encontrasse ou recuperasse um como paraíso perdido ou desejado. Terras de ainda mais sol, mais luz e, sobretudo, mais espaço — a pampa, argentina, por exemplo, ou os espaços anfíbios da Amazônia brasileira — que as hispânicas da Europa.

Nenhum esforço de interpretação da civilização hispano-americana — parte considerável da pan-hispânica — pode ser realizado, indepen­dente da consideração do fato de que, à base da unidade desse sistema moderno de civilização, está a sua americanidade senão como uma con-

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dição física ou ecológica no sentido apenas biológico, considerável, como uma condição psicocultural ou sociológica de desenvolvimento. Sob este último aspecto, a americanidade vem atingindo as próprias culturas his­pânicas situadas em espaços maternos — a própria Espanha e o próprio Portugal — por força de seus contactos com as populações em grande parte mestiças de origem ou cultura principalmente hispânica situadas em espaços americanos. Inclusive as situadas em espaços tropicais da América. Se é certo que até data relativamente recente, as élites mais europeizadas dos países americanos do mundo hispânico procuraram comportar-se estritamente como se não vivessem em áreas não-européias, a verdade é que, nos últimos tempos, vêm cedendo à ecologia da sua situação, dentro da qual sempre procurou telúricamente viver a gente do povo através de estilos de habitação, de trajo, de alimentação que deixaram de ser castiçamente hispânicos para se tornarem, como em certas áreas, a própria condição étnica de grande parte dessa gente, mestiços. Verdade é também que o gosto por certos valores não-eu-ropeus *— os gauchescos, por exemplo — desenvolvidos em países do mundo hispânico mais pela gente do povo do que pelas élites, mais pelas plebes que pelas burguesias, vem se comunicando, com crescente intensidade, às élites burguesas e intelectuais desses países e das próprias nações euro-hispânicas. Por este modo, e através de crescente valoriza­ção de usos não-europeus pelo próprio europeu — cujo status de bur­guês à moda do século XIX e do começo deste século, é um status em dissolução, estando também a dissolver-se o status convencional de pro­letário — vem se alargando a base não-européia do sistema hispânico ou ibérico de civilização, de base de diferenciação apenas ecologicamente física ou bio-social, em base psicocultural. Mas, sem que esse alarga­mento e essa diferenciação impliquem em empobrecimento do complexo pan-hispânico de sociedade e de cultura transnacionais. Ao contrário: parecem implicar no seu avigoramento através da sua crescente definição como um sistema mais que europeu e não apenas europeu.

É uma expansão, a euro-ibérica ou euro-hispânica, em espaços ame­ricanos, que se vem processando antes simbioticamente, e tornando-se indo-hispânica ou indo-afro-hispânica, ou ítalo ou teuto-hispânica, e em todos esses casos, parte de um complexo pan-hispânico de cultura, através da interpenetração de hispanos e populações e culturas não-européias ou não-hispânicas, quando européias, de origens não-hispâ-nicas, do que imperialmente, através do domínio econômico e político de europeus sobre não-europeus, de hispanos sobre não-hispanicos, com as culturas invasoras ou conservadoras ou imperiais — isto é, imperialmente européias ou hispânicas — mantendo-se à parte das indígenas ou fe­chadas às adventicias, quer como colonizadores europeus, em face das populações nativas, quer como antigos hispanos em face de neo-his­panos; e evitando-se casamentos mistos, de hispanos com não-hispanos. Os que propõem, para o estudo desse tipo de relações humanas de europeus com não-europeus, e de relações culturais de europeus com

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ambientes não-europeus — ambientes nos quais o hispano vem se inte­grando de modo quase sempre simbiòtico, pela adoção, através de mo­tivos com quem se tem misturado, de numerosos costumes, usos íntimos, conhecimentos de plantas, animais e alimentos não-hispânicos: cacau, quinino, erva-mate, ipeca, lhama, peru, tomate, tabaco — uma especial sistemática de estudo histórico, antropológico e sociológico, fazem-no considerando a expansão ibérica ou hispânica em áreas não-européias, um tipo de expansão nitidamente diferenciado do inglês ou do francês, do holandês ou do belga, com suas tendências a segregações quer de ordem étnica, quer de ordem cultural.

À sombra dessa possível sistemática de estudo especial, poderíamos desde já esboçar respostas não de todo retóricas ou sentimentais ou simplesmente políticas, a perguntas como «Qual o papel — no sentido sociológico de papel-cultural que vem desempenhando o Homem hispano-americano? Ou: qual o papel sociológico que vem desempe­nhando um sistema de civilização ou de cultura como o hispânico, cuja unidade de desenvolvimento histórico, de desenvolvimento ecológico e de projeções sobre outros espaços e outros tempos, vem se revelando maior que a sua diversidade, quer histórica, quer ecológica.

Considerando-se do modo por que aqui se sugere, o papel desem­penhado não só pela América Hispânica como pelo complexo pan-his-pânico, ou total, de cultura ou de civilização — complexo em desen­volvimento extra-europeu em diferentes partes do mundo — dele pa­rece poder afirmar-se que constitui já esse complexo um desmentido à tese de que as civilizações mistas e as populações mestiças são inca­pazes de competir, em virtudes criadoras, com as civilizações chamadas puras e com as raças também intituladas puras. É um desmentido que vai da arte cusquenha à moderna arte mexicana; que vai das realizações do «Bandeirante» brasileiro dos dias coloniais do Brasil — mestiço de branco e de ameríndio •— ao moderno brasileiro não só do tipo «Paulis­ta» como do tipo «nortista» ou «nordestino» e do tipo «gaúcho» — notáveis os três pela energia pioneira e pelo ânimo empreendedor — e, ainda, do tipo «Baiano» e do tipo «Mineiro», caracterizados pelo vigor da ação estabilizadora de sociedade e de cultura que vêm desenvolvendo dentro do conjunto brasileiro: parte do complexo pan-hispânico. Tipos psicoculturais e bio-sociais que ou muito me engano ou têm seus equi­valentes, como tipos aparentemente contraditórios mas, na verdade, complementares, dentro dos outros complexos nacionais e quase-na-cionais — o argentino, o mexicano, o chileno, o colombiano, o cubano, o paraguaio, o peruano, o filipino, o goês, o luso-angolano, o luso-mu-çulmano, o luso-cabo-verdiano — que constituem o conjunto ibérico ou hispânico de cultura ou de civilização.

Talvez a definição mais satisfatória do conjunto hispano-americano seria a que o considerasse uma interpenetração tal dessas duas rea­lidades que nem a ecológica seria maior do que a histórica nem a his­tórica maior do que a ecológica. O espaço americano e o tempo hispâ-

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nico seriam aspectos de uma só vivência, de uma única experiência, do mesmo processo de desenvolvimento de vários grupos humanos de comum origem européias em terras americanas — terras diversas, umas das outras, em vários aspectos do seu físico e habitadas, antes de mar­cadas pela presença hispânica, de modo diverso, por grupos indígenas de civilizações desiguais. Desiguais porém tôdas americanas no essen­cial de suas condições de espaço; e constituindo uma só área americana dividida em várias sub-áreas conforme maiores ou menores desenvolvi­mentos culturais e maiores ou menores interpenetrações entre suas po-populações e culturas. Sobre esse lastro fundou-se a também vária cultura hispano-americana.

Assim considerada, a América Hispânica se apresentaria como um todo que tanto na sua base física como na formação básica das so­ciedades humanas que sociologicamente a constituem formaria um sis­tema tanto ecológico como cultural, cujas características gerais dificil­mente seriam anuladas pelas diferenças nacionais ou regionais que den­tro dela se vêm desenvolvendo há quatro séculos. Tais diferenças são evidentes. Elas tornam a Argentina, por exemplo, uma nação estensi­vamente diferente do México; o Uruguai, quase um contraste com o Equador. Mas sem que deixe de haver entre essas expressões diversas da mesma civilização — a hispânica — em espaço americano, alguma coisa de comum que vem daquelas duas condições básicas: a de serem expressões diversas de uma mesma civilização — a hispânica — que se desenvolve num mesmo espaço: o americano.

É certo que no México essa civilização se vem desenvolvendo em sub-área marcada pela presença, antes da ocupação hispânica, de uma elevada cultura indígena. Cultura anterior à presença hispânica mas com a qual a hispânica tem entrado — após agudos conflitos nos pri­meiros tempos — em íntimas e fecundas relações das quais já resultou mais de uma feliz combinação de valores artísticos — o caso também do Peru. Certo que na Argentina, do mesmo modo que em certas partes do Brasil, ao elemento hispânico se vêm juntando, desde o co­meço do século XIX, de modo considerável, outros elementos europeus de colonização, como o germânico e, principalmente, o italiano. Certo que em várias sub-áreas hispano-americanas a presença do negro afri­cano vem reforçando nelas, desde o século XVI, seus característicos de sub-áreas de civilizações eurotropicais, tornando mais difícil, nessas sub-áreas, a afirmação de outra presença européia ou caucásica, além da hispânica.

Mas com tôda essa diversidade, existe uma América que é um conjunto de expressões de uma mesma civilização hispânica a integrar-se num mesmo espaço americano: este — o espaço americano marcado pela presença hispânica — um espaço em parte frio, em parte temperado e, em grande parte, tropical. Pelo que é uma civilização^ a hispânica, na América, que, por alguns dos seus traços mais originais, vem signi­ficando principalmente — embora não exclusivamente — um triunfo

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ou uma vitória de civilização européia em espaços tropicais. A própria Argentina tem o seu trópico; e teve o seu negro; teve e tem o seu ameríndio; tem o seu gaúcho. Mesmo admitindo-se a insignificancia das circunstâncias ecologicamente tropicais, ou das repercussões dessas circunstâncias em espaços fisicamente não-tropicais, que vem condicio­nando o desenvolvimento — sob tantos aspectos, notável — de tropi-calismos na Argentina, no Chile e no Uruguai, essas repercussões têm ocorrido e ocorrem. As demais nações hispânicas da América, estas vêm tendo desenvolvimentos europeus sob condições em grande parte tropicais de vida.

com a Argentina, o Chile, o Uruguai não se tendo guardado de todo — felizmente para elas — das influências americano-tropicais ou afro-tropicais em suas etnias e em suas culturas »— pois o negro não esteve de todo ausente nem da formação argentina nem da uruguaia — compreende-se que se atribua extensão considerável à presença do trópico e do próprio negro sobre o todo hispano-americano. Presença que se estendeu a outras partes do mundo marcadas, desde o século XVI, pela presença hispânica: uma presença quase sempre receptiva e até simpática a influências tropicais, africanas e semitas. Receptiva, porém receptiva de maneira ativa: sempre conseguindo hispanizar, atra­vés principalmente da cristianização, senão sempre teológica, sociológica, tais influências, de maneira a com elas formar novos tipos ou novas expressões físicas de homem pela miscigenação — e de sociedade de cultura i— pela interpenetração de etnias, de heranças sociais e de substâncias culturais adaptadas a formas predominantemente, porém não exclusivamente, hispânicas, de cultura. Inclusive de religião,; de arte, dei política. Inclusive, também, de atitude para com o tempo, para com o ócio, para com o lazer.

Em recente artigo publicado numa revista de Madrid, o Príncipe de Starhemberg — como é estranho citar-se num trabalho sociológico com pretensões a atual, um autor príncipe: é como se se convocasse um personagem de Proust para um atualíssimo anti-romance — de­monstra seu íntimo conhecimento do ethos hispano-americano — conhe­cimento adquirido nos seus dias de jovem e de estudante universitário na Argentina e no Chile — ao traçar um perfil do homem desta Amé­rica que, aliás coincide com o que eu próprio tenho tentado esboçar, em trabalhos pouco divulgados em línguas espanholas. É assim que o sociólogo austríaco destaca o que considera «a imunidade» do hispa­no-americano àquelas teorias e àqueles estilos de vida «tan racionalis, frios y duros como los que propugna el marxismo-leninista», para, em seguida, salientar na mesma gente hispano-americana transnacionalmente considerada — no homem ibero-americano ou hispano-americano —* «un profundo sentido de Io religioso y de liberdad que sabe apreciar el ocio para meditation y tertulia», sabendo, além disso, e «a pesar de pobreza y dificuldades . .. conservar una considerable dosis de humor».

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Do sentido do religiose do gosto da liberdade e da capacidade de apreciação do ócio para meditação e para tertúlia, talvez se possa dizer que é característico distribuído quase por igual entre hispano-america­nos, a exata verificação dessa afirmativa dependendo de pesquisa psi­co-social que venha a realizar-se um dia. Do humor talvez seja possível dizer-se que, como humor com alguma coisa de autocrático, talvez seja mais vivo entre brasileiros que entre alguns dos seus vizinhos, do tipo mais bolivariano, da América Espanhola.

Note-se, entretanto, da forma mais pungente de humor que pode tornar-se de tal modo excessiva em sua ação autocrítica que se cons­titua em obstáculos ao élan criador — pessoal ou nacional. Foi do que padeceu, em Portugal, a geração dominada pelo gênio de Eça de Quei­roz, de tão forte repercussão no Brasil. O desejável é o humor auto­crítico que, sendo atuante, não chegue a esse extremo. Dos hispano-americanos é justo dizer-se que precisamos todos, quer na América por­tuguesa, quer na espanhola, de todo o élan criador de que sejamos ca­pazes, tratando-se de nos afirmarmos como portadores ativos e inces­santemente renovadores de uma civilização já diferente tanto das eu­ropéias como da anglo-americana. Precisamos de ter aquela coragem dos nossos próprios valores e dos nossos próprios estilos de vida, aquele desdém de modernices, embora não de modernidade, aquela fidelidade a tradições válidas, aquelas visões de futuros que correspondem a pre­disposições, a esperanças, a mitos desenvolvidos da nossa própria vi­vência, aquela lealdade a constantes que, consideradas, por algum tempo, arcaísmos por povos tecnològicamente mais avançados, estejam para se fazerem sentir a esses próprios povos como pós-modernismos necessitados por eles próprios que é uma coragem, uma fidelidade, uma lealdade a que convém não se oporem excessos de humor autocrítico.

Venho encontrando a melhor das receptividades, da parte de não poucos provectos e de numerosos jovens, em universidades da Europa e dos Estados Unidos, para a tese de que aparente arcaismo hispânico — a idealização do ócio, da meditação, da tertúlia — está para como que se impor às sociedades mais avançadas de hoje, com os aumentos de automação, de tempo livre e de média de vida, como pós-modernismo a projetar-se já sobre a atualidade. Os ativistas ¡moderados que até há pouco se compraziam em ridicularizar nas gentes hispânicas o que consideravam sua indolência, seus vagares volutuosamente preguiçosos, sua tendência para deixar para amanhã parte dos afazeres de hoje, sua siesta, seus muitos dias santos, devotos ou festivos, estão agora na de­fensiva. Ëles é que se estão tornando um tanto ridículos por força da automação: uma automação que torna insuportável seu excessivo ati­vismo. Eles é que precisam de reeducar-se e de educar filhos e netos para um futuro humano no qual os hispanos tendem a tornar-se mes­tres de ócio, de lazer, de meditação, de anglo-saxões, de germanos, de suíços, de escandinavos, que atualmente chegam ao extremo de recorrer ao suicídio como solução à sua acedia de homens incapazes de ócio:

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homens que não sabem o que fazer com o tempo livre, com o tempo desocupação, com o tempo inútil. Não sabem viver o tempo assim inutil, saboreando-o ou degustando-o; não sabem libertar-se da preocupação de ser qualquer tempo, dinheiro; e o dinheiro, um quase deus, a impor-se aos seus adoradores através do tique-taque dos relógios que marcam minutos e segundos e não apenas horas.

Se para o homem o tempo é aquela «continuidade sucessiva de estar sendo» da concepção orteguiana, a que se refere, em lúcido ensaio e desenvolvendo idéia de Ortega y Gasset, o Professor da Universidade Católica de Valparaíso Juan Antonio Widow Antonicich, compreen­de-se que essa continuidade não seja só de trabalho porém de lazer; não seja só preocupação com o presente porém saudade do que foi; nem apenas saudade do que foi porém esperança do que venha a ser. É através dessas alternativas de estados de espírito que o homem é contínuo em relação com o tempo; e, no caso do hispano, é considerando essa continuidade que se compreende que o homem histórico seja o tempo, isto é, o sujeito com relação ao seu viver contínuo mas diverso no tempo, a ponto de os filólogos destacarem das línguas hispânicas que são as únicas, dentre as européias^ em que é possível dizer-se «ama­nheci alegre» ou anoiteci triste» como se houvesse entre tempo e homem uma identificação além de psicológica, sociológica, existencial.

Nenhuma tentativa de caracterização do que seja civilização ou cultura ibérica ou hispânica pode ser concebida sem que, de início, se considere essa especialíssima relação do homem hispânico com o tempo. É relação significativa para a compreensão do que, na mesma civili­zação, é importância ou valor da pessoa; e significativa, também, para a compreensão o que, na civilização hispânica, é personalização da própria história, tanto individual como nacional, de cada hispano senão singular, típico e do inteiro conjunto hispânico, como uma série de bio­grafias e autobiografias que desaguassem no que em modernissima so­ciologia da biografia se chama biografia ou autobiografia «coletiva». É a luz dessa interpretação do ethos ibérico ou hispânico — e quem pode separar o ethos de um grupo humano de sua cultura? — que melhor se compreende quanto foi especificamente ibérico ou hispânico Miguel de Unamuno ao dizer, certa vez, angustiado: «a Espanha me dói». Que Espanha doía a esse hispano ou nesse hispano? A Espanha confi­gurada socialmente só em espaço? Decerto que não. Também a Es­panha configurada socialmente em tempo. Mais a Espanha do seu tempo singular que a Espanha tríbia no tempo. Mais o tempo, na vida hispânica, vivido pessoalmente, historicamente, biogràficamente, por êle, Miguel de Unamuno, que os tempos anteriores ou futuros. Espaços e tempos diversos, porém, é que formam o conjunto hispânico de cul­tura ou de civilização; e a esses espaços e tempos é que precisa de se sentir preso, como participante de uma cultura tríbia num tempo sempre vibrantemente pessoal-social e sempre passado, sempre presente, sempre futuro, o hispano-homem ou o hispano-pessoa, com um sentido geral

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de espaço-tempo unificador de diversidades, que só excepcionalmente terá faltado a Unamuno.

A Espanha mais do seu tempo que do tempo tríbio doía a Unamuno como lhe poderia doer o fígado ou o coração ou o pulmão ou a espinha: como se fosse carne ou nervo. O hispano mais hispânico sente sua cul­tura como se essa cultura fosse parte da sua carne de homem; parte irredutível do seu corpo de pessoa ou de indivíduo, como é o seu sis­tema nervoso provavelmente insubstituível à maneira das substituições atuais de coração ou de pulmões, fonte de sua vida; constância da sua experiência. É como se essa cultura cada dia amanhecesse nele e com êle, e como que só para êle, pessoalmente, e não apenas socialmente para êle e para os demais; amortecesse nele e com êle e para êle como aliás o próprio tempo ou a própria morte, que, como expressão e, ao mesmo tempo, condicionamento de cultura, é um tempo com que o homem hispânico se identifica; que lhe dói ou que o alegra. Daí »— repita-se — só nas línguas hispânicas entre tôdas da Europa — dizem-nos filólogos autorizados — o homem poder dizer «amanheci alegre» ou «amanheci» triste, satisfeito ou inquieto, zangado ou traqüilo ou «anoiteci» contente ou descontente, esperançoso ou desalentado. O homem é como que um tanto senhor do tempo que não amanhece nem anoitece de todo inde­pendente desse mesmo homem quando verdadeiramente hispânico. Ou hispanizado como se tornou El Greco.

A civilização hispânica é, assim, uma civilização que vem se ca­racterizando pela variedade de projeções pessoais e não apenas nacionais sobre o que nela é complexo. Mais: pela variedade de expressões lin­güísticas — o castelhano, o português, o catalão, o galego — de que se vêm servindo e se servem agora, não só grupos nacionais e quase-nacionais diversos como personalidades também diferentes, em proveito do complexo ou do todo hispânico. um crítico francês, Maurice Lé-gendre, já observou da língua portuguesa ser língua ideal para confi­dencias, para intimidades, para ternuras, enquanto o castelhano seria a língua hispânica por excelência vigorosa: pública através desse seu vigor. É claro que a simplificação vai ao extremo: a língua portuguesa é também a língua dos vigorosos «ão» que a castelhana desconhece e a castelhana tem os seus suaves diminutivos em «ito» quase tão doces quanto os diminutivos portugueses em «inho». De qualquer modo, porém, é dado ao hispano 1er obras primas hispânicas no original em quatro línguas hispânicas de diferentes ressonâncias e ênfases: sabo­rear em português o lirismo de Camões e, em castelhano, os vigores dramáticos de Calderón; em galego, outros tantos lirismos, e, em catalão, outros tantos vigores dramáticos de expressão hispânica. Vigores e doçuras que se interpenetram na poesia e na prosa dos grandes autores pan-hispanos, havendo portuguesismos em Cervantes e castelhanismos em Euclydes da Cunha. São interpenetrações que testemunham na li­teratura o que ocorre noutros setores de cultura ibérica ou hispânica: que é uma cultura que se desenvolve com diferenças, contrastes, contra-

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dições que, por vêzes, se interpenetram, se harmonizam, se completam em culminâncias, voltando, porém, quase sempre, no cotidiano, os con­trastes continuam a ser contrastes, as diferenças a ser diferenças, as contradições a ser contradições. Nem poderia ser outro o processo de o gênio hispânico de civilização ser transnacional sem repudiar o na­cional; supra-pessoal, simbólico, universal nas suas culminâncias, sem rejeitar o pessoal, o individual, o particular, nas suas raízes; busca do essencial, sendo constantemente existencial; projeção aventurosa sobre o desconhecido, em espaços e tempos, sem repúdio a experiências já vividas também em espaços e tempos vários.

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CONSTITUIÇÃO: MITO E REALIDADE

AFONSO ARINOS DE M E L O FRANCO

INTRODUÇÃO

A S idéias de Constituição e de Direito Constitucional apareceram no quadro geral da Jurisprudência muito antes que ocorresse o seu

nítido delineamento científico e que fosse assegurada a sua autonomia conceituai e metodológica.

A idéia de Constituição corresponde, no grupo social, à necessi­dade da organização do poder, em termos de generalidade e estabilidade. O mais absoluto despotismo não pode prescindir destas condições, pois o capricho e a incoerência permanentes do poder seriam incompatíveis com a existência de qualquer sociedade. A sociedade política (quer dizer estatizada) pressupõe o poder, mas este só se exerce através do governo, que por sua vez só pode existir num quadro mínimo de generalidade de decisões e de estabilidade de processos de ação, cuja normatividade é a substância mesma das Constituições.

Mas estes pressupostos da sociedade política não eram reconhe­cidos juridicamente. Isto é, quando, na antigüidade, um escritor como Aristóteles ou Cícero abordavam os problemas referentes aos funda­mentos do poder e ao exercício do governo, eles o faziam ou através do método comparativo histórico, ou em termos de filosofia e doutrina polí­ticas. A sistemática e a metodologia peculiares ao direito não são encontradas nessas obras. Igualmente, nos primeiros séculos de exis­tência do Estado moderno, não existia uma teoria jurídica da Consti­tuição. Havia, sem dúvida, uma noção política da existência de leis fundamentais do país, leis não escritas que, no entanto, condicionavam a ordem estatal e a conduta individual. Mas tal noção, freqüentemente invocada como escudo conservador da Monarquia absoluta, não impli­cava em conceituação, nem em métodos de pesquisa propriamente jurídicos. i

Pode-se afirmar que tais representações materiais da Constituição não se inseriam no quadro do pensamento jurídico, que se apresentava tão desenvolvido em outros setores.

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A apreciação jurídica da Constituição inaugurou-se com a sua representação formal, ou, em palavras mais explícitas, a inserção do fenômeno constitucional no terreno da técnica jurídica só se verificou depois que a idéia material de Constituição se formalizou no texto das leis básicas, chamadas Constituições.

Obviamente, a ciência do Direito Constitucional só se organizou depois desse processo de formalização.

Esta introdução tende a demonstrar que não podemos exercer realmente a pesquisa comparativa, no Direito Constitucional, em relação a fases históricas anteriores à conceituação jurídica da Constituição. É portanto, a partir da época das Constituições escritas, que poderemos exercitar o método comparativo em termos jurídicos. Isto não significa que, num quadro de comparativismo histórico, sociológico ou político, não possamos proceder de maneira diferente. Mas tais estudos estariam fora da nossa área atual de preocupações.

FORMALISMO CONSTITUCIONAL E REALIDADE SOCIAL

Delimitado o conceito jurídico de Constituição, cumpre agora acentuar um aspecto que lhe é inerente, qualquer que seja o tipo de lei constitucional que se tenha em vista. Este aspecto pode ser definido como sendo a contradição permanente que opõe a transitoriedade da Constituição, tomada como produto necessário do tempo em que foi feita, e a perenidade da Constituição, tomada como instrumento orga­nizador de uma sociedade política em inevitável e contínua mutaçáo. A letra de uma Constituição exprime os interesses e as idéias da época em que ela foi produzida. Isto é inegável e, mesmo, óbvio. Mas, pela sua própria razão de ser, uma Constituição é destinada a firmar a estrutura do Estado, sem ter em vista o tempo, porque os seus princípios destinam-se precisamente a superintender as modificações que vai sofrendo a legislação subordinada, esta sim, mais condicionada às trans­formações trazidas pelo tempo. Por esta razão precisamente é que, desde logo, se estabeleceu como princípio constitucional geral, o de que a reforma das Constituições impõe dificuldades maiores que a das leis ordinárias. É o princípio chamado da rigidez constitucional. A superioridade da Constituição sobre a lei apresentou-se como ponto central do Direito Constitucional muito precocemente, e de forma dramática, na longa luta que se travou em tórno do controle jurisdi-cional das leis ordinárias, nos Estados Unidos. É sabido que esta luta de idéias começou bem antes da independência daquele país, limitada às Constituições das colônias, prosseguiu, sem dúvida, na Constituinte de Filadelfia, apesar de não aparecer claramente nos debates, resolveu-se em 1803, na decisão de Marshall no caso de Marbury contra Madison, mas continuou nas controvérsias sobre o papel da Suprema Córte, que, de certa maneira, até hoje subsistem.

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O Direito Constitucional dos Estados Unidos exerceu, neste par­ticular, muito maior influencia sobre o nosso do que o direito francês, o inglés, ou de qualquer outra procedencia.

A colocação, como princípio aplicável, da superioridade da Cons­tituição sobre a lei, princípio cuja exeqüibilidade imediata só existe quando existe contrôle jurisdicional, foi que abriu caminho para resolver a contradição entre a Constituição, produto do tempo, e a Constituição, lei permanente.

A maneira de se resolver esta contradição, com fundamento naquele princípio, foi muito simples. Deu-se pelo uso da interpretação consti­tucional. Pela interpretação, atinge-se com felicidade ao duplo objetivo. De um lado, mantém-se indefinidamente a forma da Constituição, atendendo-se à sua perenidade e, portanto, à sua superioridade sobre a lei. De outro lado adapta-se continuamente esta forma às novas exigências da sociedade em mutação, e, assim, se atende à necessária transitoriedade constitucional.

Várias conclusões importantes podem ser tiradas destas obser­vações. A primeira é que não existem constituições rígidas, a não ser formalmente. Tôdas as Constituições são flexíveis, no sentido material, e o processo da sua mudança está na interpretação. Assim, a superio­ridade da Constituição sobre a lei significa, de fato, a superioridade da interpretação da Constituição sobre a interpretação da lei. É um processo de raciocínio, em que o pensamento sociológico condiciona o pensamento jurídico.

A segunda observação é a de que, em razão mesmo do que acaba­mos de dizer, a ciência ou a arte da interpretação (como queiram) é muito mais freqüente e muito mais apurada no Direito Constitucional, do que em qualquer outro ramo da ciência jurídica.

A interpretação constitucional pela doutrina, pela legislação e pela jurisprudência, nos países providos de sólidas instituições políticas, é o grande fator de estabilidade e de coexistência pacífica entre os grupos sociais. É o fator capaz de equilibrar o formalismo constitucional com a realidade social.

RUPTURA DO EQUILÍBRIO

O século XX presenciou, em grande número de países importantes, à ruptura do equilíbrio entre o formalismo constitucional e a realidade social. Este fato histórico, de tremendas conseqüências, pode ser espe­cialmente observado no período situado entre as duas guerras mundiais.

Nesse período verificou-se uma extraordinária contradição. No campo do Direito Constitucional, as noções fundamentais e a técnica normativa adquiriram enorme aprimoramento, a ponto de falar-se em Direito Constitucional Geral, ou em «racionalização» do Direito Cons­titucional .

Para os juristas, pelo menos aquêles dos países considerados mais civilizados, os princípios do Direito Constitucional interno se tinham

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espalhado a ponto de constituírem um sistema de idéias, não pròpria­mente internacionais, porém transnacionais. E estes princípios gerais fundavam-se mais na razão jurídica do que na experiência histórico-sociológica.

Se esta aceitação racional se processava no mundo jurídico, muito outra era a situação no mundo histórico-político, dentro do qual a violência pairava sobre a dúvida, a contradição e a irracionalidade. A Austria de Kelsen, a Alemanha da Constituição de Weimar, eram as terras do nascimento e da ascenção de Hiiler. A Itália de Labiola e de Benedeto Croce foi o centro de onde Mussolini começou a pregar a negação de tôdas as idéias jurídicas do constitucionalismo geral e racional. Na França, os princípios da soberania do Estado, da perso-nalidade jurídica ao Estado, da vontade geral, da representação, típicos da tradição francesa, desde 1789, passaram a ser combatidos por escolas respeitáveis do pensamento jurídico. A branca, antes de ser derrotada na segunda guerra, já havia sido vencida pelo abandono do seu próprio pensamento. O grande campo de ba^aiha em que a França perdeu a guerra foi a sua Universidade. De Gaulle foi muito mais o restau­rador de uma idéia de Estado, do que o vencedor em batalhas militares.

Nos países em que estes fenômenos foram observados, entraram em crise o conceito de Constituição e o Direito Constitucional.

A impossibilidade de se atingir, por meio da interpretação, ao desenvolvimento dos quadros constitucionais existentes, levou os juristas, juntamente com o movimento inútil de racionalização, a um, esforço também inútil de negação.

Houve juristas que chegaram a afirmar que a idéia Constituição era uma sobrevivência mais ou menos superada, como se fosse possível pensar em poder político, no plano jurídico, sem pensar também em Constituição. Se os juristas pensavam assim, não era de estranhar que os homens de governo agissem em conseqüência.

Muitas razões concorreram para a segunda guerra mundial. É inegável, porém, que uma das mais importantes foi a ruptura do equi­líbrio entre o formalismo constitucional e a realidade social. Os países que se perderam nesta contradição perderam, também, a guerra. Os dois países, que já vinham anteriormente de condições de equilíbrio entre uma coisa e outra, foram os principais ganhadores da guerra: Inglaterra e Estados Unidos.

O MUNDO JURÍDICO DO APÓS-GUERRA

No mundo do após guerra observa-se uma atmosfera pouco tran­quilizadora, no plano do Direito Constitucional. É a tendência de separar a letra das Constituições da sua Operatividade histórica, ou seja, a tendência de se colocar a Constituição como uma espécie de mito, útil como declaração de intenções, ou como instrumento de

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propaganda, mas sem nehuma vigência efetiva, como norma superior de organização do Estado.

A Constituição-propaganda é característica do mundo jurídico Soviético e das Repúblicas Populares, que giram na órbita da União Soviética. Pertence aos processos do mundo comunista este uso, de explicação bastante misteriosa para o jurista de formação racional, uso segundo o qual, a existência de um texto escrito de Direito Público praticamente não tem relação com a sua aplicação efetiva.

No Direito Constitucional soviético, aceita-se por escrito a liber­dade de secessão das Repúblicas soviéticas, segundo o artigo 17 da Constituição de 1936 que diz: «Cada República federada conserva o direito de livre separação da U . R . S . S . » É para nós, repetimos, bas­tante misteriosa a causa da inserção de uma norma como esta, no texto constitucional.

Nos Estados Unidos, o direito de secessão não existe na Cons­tituição, mas foi construído teoricamente pelos federalistas radicais e justificou a gravíssima tentativa da Guerra de Secessão. Na União Soviética, ao revés, êle é juridicamente reconhecido, não se compreende bem porque, mas nunca será objeto de qualquer iniciativa, pelo menos em futuro previsível.

Só a explicação da propaganda pode justificar normas como a citada, que poderia ser multiplicada com outros exemplos, como o da reforma de 1944, que outorgou às Repúblicas federadas o livre direito de estabelecei relações internacionais (art. 18-A) . Aqui, a propaganda tem um fim definido, pois aumenta o número de votos da União Soviética dentro das organizações internacionais. São estes aspectos da Constituição-propaganda.

Passemos ao mito das Constituições tomadas como declarações de intenções. Antigamente as declarações de intenções, no Direito Constitucional, apareciam no preâmbulo das Constituições escritas. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Fran­cesa, foi o primeiro documento desse tipo e os seus princípios imortais foram inúmeras vêzes traduzidos em forma de preâmbulo, por Cons­tituições posteriores. Grande foi a controvérsia, entre os autores de Direito Constitucional, sobre se os preâmbulos das Constituições eram juridicamente aplicáveis, ou se serviam apenas como inspirações para legisladores e juízes. Esta última opinião era a mais corrente. Os preâmbulos deviam ser considerados como declarações de intenções, ou, em outras palavras, como princípios compendiados de Direito Natural.

Pois bem, hoje há exemplos de declarações de intenções que aparecem não mais nos preâmbulos, mas nos próprios textos das Cons­tituições. Muito importante, neste particular, é a Constituição da índia, que introduz no seu texto prescrições cuja aplicação não é exigível e que valem como fontes de inspiração ética para os governos. O

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professor indiano Das Basu reconhece expressamente isto, e chama tais prescrições de «judicialmente não exigíveis». Trata-se, assim, da inserção, no texto, de princípios antes confinados aos preâmbulos. É um novo aspecto do mito constitucional.

Versão muito interessante da mitologia constitucional é a que diz respeito à manutenção de uma Constituição escrita e a aplicação, em vez delas, de outras normas constitucionais, também escritas.

Que me lembre, o primeiro regime político a usar tal sistema foi o fascismo italiano. Oficialmente, a Constituição do Reino da Itália (que era, em substância, a mesma do Reino de Savoia de antes da união italiana) permaneceu em vigor depois da instalação do regime fascista, e perdurou quase até o seu desaparecimento. Mas o que prevalecia, na realidade, eram as normas de organização do partido e do Estado fascistas, também escritas e operativas. Não devemos esquecer que foi em aplicação dessas normas que Mussolini foi legal­mente deposto, pelo Grande Conselho Fascista, na madrugada de 25 de julho de 1945. O próprio Mussolini, ao submeter-se ao resultado da votação, disse aos membros da maioria que o depunha: «provocastes a crise do regime».

Esta tradição de possuir um texto constitucional em vigor, mas não aplicado, enquanto são aplicados outros textos que anulam o pri­meiro, é adotada no Brasil desde o regime de 1937.

A Constituição de 1937 era declarada em vigor pelo Estado Novo. mas dela só se aplicava o artigo 180, que permitia ao Presidente da República a expedição de decretos-leis, os quais eram. a verdadeira ordenação jurídica. Este sistema prevaleceu até 29 de outubro de 1945. O Presidente Vargas aprovou, mesmo, várias emendas constitucionais a uma constituição que não aplicava, servindo-se dos poderes que esta Constituição lhe dava, para a legislação ordinária, mas nunca para a legislação constitucional.

Este tipo de mito constitucional é o que prevalece, atualmente, no Brasil. Formalmente, o que está em vigor é a Constituição votada em 1967, com a Emenda nº 1, de 1969. Mas, efetivamente, todo o sistema constitucional depende do Ato Institucional Nº 5. Há, mesmo, juristas, que sustentam que não há incompatibilidade entre o Ato e a Constituição, e que a inserção de um na outra pode ser permanente. Raciocínio para nós, também, bastante misterioso.

Vem, como vimos, da experiência italiana este mito constitucional, caracterizado pela permanência de um texto inoperante e pela aplicação de outros textos supervenientes.

AS CAUSAS DOS MITOS CONSTITUCIONAIS

A separação entre o positivismo constitucional e a realidade social tem sido estudada, recentemente, em vários países. É, mesmo, um

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dos temas preferidos do Direito Constitucional comparado. Notada­mente, a propósito da Constituição de Bonn, da República Federal da Alemanha, o assunto tem sido observado de perto. Ainda éste ano o professor de Ciência Politica de uma das mais acreditadas univer­sidades da Alemanha Ocidental, escreveu que a Constituição de Bonn «funciona essencialmente de acordo com os velhos conceitos clássicos do Direito Constitucional», e que isto marca a sua «inutilidade caracte­rística em face dos problemas constitucionais de todo dia».

Tomada na sua significação mais profunda, esta separação entre o formal e o real, é própria do direito que, como se sabe, é uma ciência normativa, uma ciência em que o dever ser (sollen) supera o ser (sein) . E é evidente que, no campo da conduta, nunca o que é atinge completamente ao que deve ser. Mas, no Direito Constitucional con­temporâneo, este processo de distanciamento é muito maior do que em qualquer outro setor do direito transformando-se em caso de patologia jurídica. Pessoalmente, venho me preocupando com este assunto há bastante tempo. Em 1966-1967, ao terminar o meu mandato no Senado Federal, proferi ali uma série de discursos, nos quais procurei analisar a matéria à luz da reforma constitucional, que então se processava.

Tentei, naquela oportunidade, traçar a diferença que existe entre as Constituições que chamei sumas, e as Constituições que denominei instrumentos.

As primeiras são aquelas que mantêm a perenidade formal, me­diante a utilização de processos de renovação material. São as Cons­tituições estáveis. As segundas trazem em si a marca da transitoriedade. São os instrumentos de uma transformação que se processa, seja ela renovadora ou reacionária. com efeito, as Constituições-instrumento tanto podem ser revolucionárias, como reacionárias.

São estas, as Constituições-instrumento, as que se transformam habitualmente em mitos, e mais se afastam da realidade, por qualquer dos processos que acima ficaram indicados.

Posteriormente, em aula dada no ano de 1970, no Seminário de Tropicologia do Recife, sobre Ciência Política e Trópico, avancei um pouco o campo das primeiras reflexões, mostrando que os países tropicais, que se confundem com a área subdesenvolvida do planeta, não estabilizam as instituições político-jurídicas porque não se des-colonizam intelectualmente, não confiam na própria iniciativa, em matéria de construção constitucional.

É partindo deste ponto que tentarei avançar ainda um pouco mais, no remate deste desvalioso trabalho.

O Direito Constitucional comparado vai nos ensinar algo impor­tante sobre a nossa mitologia constitucional, ou melhor, sobre a separação cada vez maior, que se verifica nos países como o Brasil, entre a Constituição e as instituições. Êle pode explicar porque, na

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América, a estabilidade constitucional é peculiar aos Estados Unidos, e praticamente não existe nos países latinos.

A razão disto é que a Constituição norte-americana foi uma criação política original, mas esta originalidade se enraizava sòlidamente na autenticidade de uma herança política, que era a herança inglesa. A Constituição americana que é, no seu conjunto, uma das maiores criações do engenho humano através da História, foi um esforço de adaptação do direito costumeiro de um Estado unitário e monárquico, a um Estado federal e republicano. Para o observador atento, as similitudes entre a lei escrita americana e a lei não escrita inglesa, são, nos pontos fundamentais, talvez maiores que as diferenças entre as mesmas. Quando se tornaram independentes, os países latino-americanos não tinham tradição constitucional própria. Pode-se dizer, sem exagero, que não há uma só idéia básica por nós adotada, em matéria de Direito Constitucional, que venha da nossa própria formação ibérica. Tôdas elas, também sem exagero, vieram das experiências inglesa, francesa e americana, mais tarde alemã, italiana ou russa. Nossa formação nacional, neste terreno, é rigorosamente internacional. A razão disto é que o constitucionalismo jurídico, tal como ficou definido na parte introdutória deste trabalho, simplesmente não existia, nem na Espanha nem em Portugal. Na era da nossa independência, aquela geração política teve de recorrer a uma mescla de costumes ingleses, de idéias francesas e de soluções norte-americanas. Sem dúvida, todo este conjunto compreendia princípios de ordem geral, necessários à expansão da personalidade humana em um mundo livre. A falta de tradições ibéricas no direito político fêz, porém, que a adoção dessas normas gerais fosse processada através de instituições inadaptáveis, fora do contexto sócio-histórico que as gerou.

como acreditar, como esperar, pois, que sistemas jurídicos adotados mas não adaptados, possam se enraizar na realidade? É evidente que, à medida em que esta realidade fôr se tornando mais nacional, aquêles sistemas serão cada vez mais mitológicos, porque cada vez menos capazes de abraçar uma realidade, que se acentua e diferencia à pro­porção que o tempo passa.

Assim, às observações a que chegara nos trabalhos anteriores, devo juntar mais esta: a observação de que a extraordinária estabilidade jurídica norte-americana é o resultado da herança adaptada de uma realidade, enquanto que a nossa instabilidade decorre do contraste entre as formas que adotamos e a nossa realidade. A este propósito, e como fecho desta pequena dissertação, quero valer-me de uma altís­sima autoridade, a de S . S . o Papa Paulo VI, manifestada em recentissimo documento.

O Papa não é um jurista profissional, nem um político militante, mas, nem por isto, os pensamentos que externou são menos influentes no campo temporal das idéias jurídicas e políticas.

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A Carta Apostòlica publicada por Paulo VI, ao ensejo do 80' aniversário da enciclica Rerum Novarum, traz contribuições importantes para o nosso tema.

Sem qualquer comprometimento das posições próprias do cristão, o Papa exorta-os à meditação e à ação politicas, como complementos necessários à sua própria existência terrena.

Partindo deste princípio, a Carta Apostólica expande-se em con­siderações da maior importância sobre as ideologias políticas, as crises sociais, a mudança das estruturas, as conseqüências da ciência e da tecnologia, os efeitos da urbanização, a discriminação racial e muitas outras.

A parte que mais interessa, para os fins deste trabalho, é, porém, aquela que diz respeito ao processo jurídico-constitucional propriamente dito. Sem empregar expressões técnicas, que seriam incabíveis no contexto do documento, o Papa expôs, contudo, idéias muito precisas sobre o problema da inadequação das instituições jurídicas democráticas à realidade social.

Nas suas próprias palavras, «a dupla aspiração à igualdade c à participação procura promover um tipo de sociedade democrática. Diversos modelos foram propostos e alguns dêles ensaiados; nenhum dêles, porém, proporciona completa satisfação; e, por isso, a busca permanece aberta entre as tendências ideológicas e pragmáticas. O cristão tem o dever de participar, também êle, nesta busca diligente na organização e na vida da sociedade política».

como sempre, a posição verdadeiramente cristã coincide com a melhor razão jurídica e os compromissos da fé não limitam em nada, senão que ampliam a visão e o dever dos homens na sociedade política.

Realmente, o princípio da liberdade é um instrumento de construção gradativa daquilo que Paulo VI chamou «a dupla aspiração à igualdade e à participação». Mas, (e esta é a parte de culminante interesse que as suas palavras têm para esta lição) os modelos possíveis de democracia não funcionam, quando baseados em um conceito de uniformidade estranho à realidade.

Isto o Papa repete nas seguintes palavras: «Nas diferentes situações concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes». Pa­lavras perfeitas.

As «opções possíveis» na organização democrática fundam-se, cerno acentuou Paulo VI, «nas solidariedades vividas». Esta expressão corresponde exatamente ao que o sociólogo ou o historiador denomi­naria: «formações nacionais».

Assim, é com grande encorajamento e confiança que podemos insistir na idéia da necessidade, para nós brasileiros, de construirmos

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as nossas instituições nacionais aplicando os princípios gerais e imutáveis da democracia às nossas «solidariedades vividas».

As instituições de países como o nosso não se estabilizarão nunca, enquanto os juristas não tiverem a compreensão destas necessidades e a competência para transpô-las do reino das realidades sociais, ao domínio abstrato que é o do direito.

Até lá a nossa Constituição será cada vez mais um mito e cada vez menos uma realidade jurídica.

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ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA

VERÍSSIMO DE M E L O

INTRODUÇÃO

A ntropologia, no seu sentido mais amplo, é o estudo do Homem e da Cultura. Do homem como produto da evolução animal e da

soma total de suas criações materiais ou não-materiais, isto é, da cultura. Do que se evidencia que a Antropologia é, ao mesmo tempo, ciência biològica, ciência social e urna das Humanidades. Alguns autores ainda a consideram ciência física, por exemplo, quando o seu enfoque recai sobre a anatomia humana ou sobre qualquer manifestação da cultura material.

Não há outra ciência de campo mais vasto e mais universal do que a Antropologia. Onde estiver ou esteve o homem ou um produto do seu trabalho, seja o mais primitivo ou o mais desenvolvido, — aí estará, certamente, o interesse antropológico.

A espécie humana, apesar de suas variedades, é uma só. Mas as culturas são extremamente variáveis no tempo e no espaço. E já se vê que a Antropologia não pode prescindir do relacionamento com tôdas as ciências que estudam o homem e o meio geográfico onde as culturas estão inseridas.

Bieals e Heijer afirmam que, «em essência, a função do antro­pólogo é integrar as diversas disciplinas que tratam do Homem». E pela amplitude de suas preocupações especulativas, a Antropologia deve ser entendida como a síntese de tôdas as ciências que tratam da natureza humana. O que não quer dizer que seja mais uma ciência do homem. Sua característica própria e inconfundível reside no fato de ser, ao mesmo tempo, — e só ela, — a única ciência que estuda os aspectos biológicos e culturais do homem. Ou como frisava Kroeber: «E nenhuma outra ciência enfrentou esse grupo de problemas como seu fim fundamental. A Antropologia definiu seu problema».

Misha Titiev, o eminente professor da Universidade de Michigan, observou que «a vasta maioria das ações voluntárias dos seres huma­nos são produtos mistos de duas forças diferentes, que atuam simul­taneamente de forma a produzir uma atividade única». Forças bioló­gicas e forças culturais. Por isso propôs a expressão «comportamento

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biocultural» para tôda categoria da atividade humana, entendendo que a competência do antropólogo cultural consiste em adquirir o conheci­mento de como essas forças interatuam.

Esta a característica específica da Antropologia, seu problema bá­sico e nuclear.

Hoebel, num esquema expressivo, mostra-nos o vastíssimo territó­rio das ciências que se relacionam com a Antropologia, segundo a orien­tação que se deseje dar a uma abordagem antropológica. Numa orien­tação biológica, incluiremos a Anatomia, Fisiologia, Psicologia Fisioló­gica, Genética, Geologia, Paleontologia e Primatologia. Numa orien­tação cultural, teremos a História, Geologia, Arqueologia, Arte, Litera­tura, Música, Tecnologia, Lingüística, Ciência Política, Direito, Psico­logia, Economia, Sociologia e Geografia Humana.

Para Clyde Kluckhohn, «a História é a tentativa de descrever os acontecimentos passados da maneira mais precisa, concreta e completa possível, estabelecer a seqüência desses acontecimentos, apontar os pa­drões porventura existentes nas seqüências». Adianta que «a História é tanto um método quanto uma ciência independente, e a Antropologia possui o seu lado histórico. O decorrer do desenvolvimento humano, a dispersão da espécie sobre a terra, a evolução das culturas, tudo isso são investigações históricas».

Mas, há outros pontos de vista extremados em relação à História, como os de Malinowski e Radcliffe-Brown, ao declararem que a An­tropologia só tem sentido enquanto ciência. Excluem a História, por considerarem que um fato determinado carece de interesse por si mes­mo. O objeto da ciência, •— aduzem, — é relacionar fatos e dêles formular proposições válidas em torno da natureza das coisas.

Já outros autores adotam posição inversa, entendendo que a An­tropologia «ou é história ou não é nada». Acrescentam: «Tudo ocupa um lugar no tempo. A cultura é uma continuação, nunca é o mesmo de um dia a outro. Tôda observação antropológica é o registro de um fato histórico».

Modernamente, a orientação mais segura sobre o assunto é a de que o antropólogo deve manter uma abordagem ampla do seu trabalho isto é, holística. Orientação que acentua a integração da cultura. O homem é um só. O seu estudo interessa a tôdas as ciências. Kluckhohn, numa metáfora sugestiva, anunciou, por exemplo, a queda de todos os muros que antigamente limitavam as ciências sociais. Hoje, o antropó­logo irá a qualquer campo de qualquer ciência que possa trazer mais luz ao conhecimento da natureza humana e das forças que agem na sociedade, — os fins supremos da Antropologia.

Reconheça-se, entretanto, humildemente, que a Antropologia está ainda longe de alcançar aquêle estágio das ciências físicas e mate­máticas, estabelecendo leis fixas e imutáveis, obtendo resultados com a precisão e rapidez dos computadores atuais.

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Não lidamos com números frios, embora eles sejam úteis aos nos­sos trabalhos de pesquisas. jNein com léñemenos tísicos, fáceis de manipulação em laooratorio e sempre de resultados exatos, invariáveis, matemáticos. O objeto de nossas preocupações, — a natureza huma­na — é sempre imprevisível em suas reações, atitudes, tormas inume­ráveis de comportamento biocultural.

O estudo comparativo das culturas demonstra que, aquilo que é normal numa comunidade, pode ser anormal noutra cultura. Os xamãs siberianos são neuróticos incuráveis. Numa comunidade como a nossa, eles estariam adequadamente continados num manicômio. Na Sibéria, todavia, são considerados pessoas de grande respeito, desfrutando de alto status social, üs homossexuais entre os indios Pueblos, nos E E . U U , são igualmente acatados e podem vestir roupas femininas, pre­parando medicinas amorosas para os jovens. No Brasil, eles seriam de­gradados. Na Bolívia, há uma tribo onde os homens e mulheres dormem a qualquer hora e lugar, interrompendo o trabalho ou outra atividade. Não há horários pré-determinados para dormir. O sono é quem deter­mina o momento. No nosso país, um funcionário que dormir na hora do expediente é execrado pelo seu chefe. Eis a extrema variabilidade do comportamento biocultural. como nivelar tôda essa gama de com­portamento e estabelecer leis rígidas para sociedades e culturas ?

Apesar disso, antropólogos ilustres, como um Ralph Linton, acre­ditam num estágio superior a ser alcançado pela Antropologia, no futuro. Entende que caminhamos para a compreensão dos fenômenos da natu­reza humana. Dessa compreensão, — virá a possibilidade de controle. E então a Humanidade, pela primeira vez num milhão e tantos anos de existência, poderá modelar deliberadamente e inteligentemente o seu futuro».

E aos que julgam os antropólogos visionários, por tentarem com­preender a natureza humana neste mundo louco e contraditório, lembra­mos as afirmações de Edwin Embree, citado por Kluckhohn: « . . . não mudamos a natureza do universo físico, mas, compreendendo-o, de uma infinidade de maneiras, nós o usamos para nosso serviço e nossa con­veniência. Não removemos a força da gravidade quando aprendemos a voar. Não tivemos de emendar as leis físicas, mas bastou-nos apenas compreendê-las, para construir pontes e arranha-céus ou para conduzir máquinas a cem milhas por hora. Não alteramos o clima e contudo, pelo sistema central de aquecimento, conseguimos obter conforto em meio aos invernos mais rigorosos e, por meio de instrumentos refrige­radores do ar, estamos começando a ter igual conforto nos verões mais quentes. Não alteramos as leis da biologia para criar cavalos de corrida e porcos gordos, para produzir milho e trigo de qualidade muito superior a qualquer coisa conhecida em estado selvagem, nem mesmo ao pro­duzir híbridos tão úteis como as mulas e o grapefruit. Assim, no que diz respeito à natureza humana, a questão não é «mudar» os impulsos e instintos fundamentais; trata-se simplesmente de compreender tais

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forças e utilizá-las para canais mais construtivos e sadios do que as lutas e frustrações que compõem parte tão grande da vida, mesmo em meio à nossa abundância material».

PERSPECTIVAS PARA A ANTROPOLOGIA NO BRASIL

Nos currículos universitários brasileiros, desde a fundação das Fa­culdades de Filosofia, a disciplina Antropologia Cultural foi incluída sabiamente nos cursos de Geografia e de História. O legislador al­cançou, desde cedo esse relacionamento da Antropologia com a História. E já agora, com a reforma universitária, a disciplina foi introduzida no Diferenciado, o que está proporcionando aos alunos que cursam Peda­gogia, História, Direito, Geografia, Serviço Social e no próximo ano Ciências Sociais, uma visão mais ampla dos problemas universais da cultura em suas implicações com os diversos campos das ciências hu­manas. Gilberto Freyre, há vários anos, vem propugnando pela intro­dução de cursos de Antropologia nas escolas de engenharia e faculdades de medicina. Na Universidade Federal do Ceará já há mesmo curso de introdução à Antropologia na Faculdade de Medicina. Na nossa Universidade, temos um Jnstituto de Antropologia em pleno funciona­mento e se afirmando cada dia que passa dentro e fora do Estado. Nas Faculdades de Sociologia figura igualmente a nossa disciplina e nas Faculdades de Jornalismo estuda-se Cultura Brasileira com enfoque antropológico.

Abrem-se, assim, perspectivas novas para a Antropologia no país. Mas é ainda timidamente que nos apresentamos como professor de Antropologia, por não existirem no Brasil nem o curso específico de Antropologia e nem a carreira de antropólogo. Todavia, há cursos de especialização em várias instituições, como o Museu Nacional e o Con­selho Nacional de Pesquisas anuncia a estruturação do pós-graduacão em Antropologia.

Apesar da fase altamente dinâmica da Antropologia no mundo de hoje, do seu reconhecimento como disciplina em nível universitário, suas atividades práticas, aplicadas, no Brasil, são quase nulas. Aliás, no con­tinente americano elas só se exercem atuantemente nos E E . U U . e no México, através de trabalhos de desenvolvimento de comunidades, orientação em fábricas e reservas indígenas. Na América Latina, os técnicos em antropologia aplicada são quase sempre oriundos de centros norte-americanos e mexicanos.

Estamos ainda marcando passo nesse terreno, no país. Nossas autoridades responsáveis pelos setores desenvolvimentistas ainda não descobriram o valor da contribuição da antropologia nos trabalhos de desenvolvimento de comunidades, por exemplo.

Sabe-se que há no mundo de hoje cerca de 5 milhões de comuni­dades rurais estancadas, por falta de estímulos e oportunidades. Dois terços da humanidade aguardam o momento em que técnicos e nações

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mais progressistas possam ajudá-las a encontrar soluções para os seus problemas crônicos de subdesenvolvimento. O Brasil tem grande parte de suas áreas inseridas nesse infeliz contexto. E na tarefa de integração nacional dessas comunidades marginalizadas, cremos que não se pode dispensar a contribuição dos antropólogos, como de nenhum outro téc­nico. Eis ai um campo vastíssimo para a antropologia aplicada no Brasil.

Nossa competência para opinar em trabalhos dessa natureza de­corre principalmente da experiência do conhecimento de todos os povos que têm sido estudados exaustivamente por especialistas. Dispondo de acervo, de informações desse porte, o antropólogo deve estar natural­mente mais categorizado para os trabalhos de mudança social e cultural do que qualquer outro profissional. Inclusive munido de base em teoria social e utilizando instrumentos poderosos como o conceito de relativis­mo cultural, etnocentrismo e o princípio de que a cultura é um todo integrado, nao se podendo influir numa área sem que a estrutura cultural automàticamente se ressinta. Daí a política de «neutralidade ética» preconizada por Robert Redfeild, que deve ser preocupação cons­tante do antropólogo aplicado.

DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA — FONTE COMUM AS DUAS

CIÊNCIAS

No campo pròpriamente dito do nosso relacionamento com a His­tória, há diversos aspectos a considerar.

um dêles, dos mais expressivos, talvez seja a contribuição comum que antropólogos amadores e historiadores antigos deram tanto à His­tória quanto à Antropologia Cultural.

Foi através de informações de Heródoto, Tácito, Ibn Khaldun, de viajantes famosos como Marco Polo, o Capitão Cook e outros, de nar­rações de missionários e descrições de povos os mais diversos, que a Antropologia pôde coligir precioso manancial de documentos sobre sociedades e culturas em todo o mundo.

Alguns desses documentos são fontes definitivas sobre a organi­zação social de povos antigos, como o que se observa da descrição de Heródoto, — citado por Peito, — sobre os lícios: «Eles têm, porém, um costume singular, pelo qual diferem de tôdas as outras nações do mundo. Tomam o nome da mãe, e não o do pai. Pergunte-se a um lício quem é, e êle responde dando o seu próprio nome e o de sua mãe, e assim por diante, na linha feminina».

Após a passagem em que registra o funcionamento de um regime matrilinear, isto é, sucesso por linha materna, cremos que nenhum outro documento antigo dará mais clara noção de etnocentrismo do que neste ponto, quando afirma Heródoto: «Se oferecêssemos aos homens a esco­lha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem me-

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lhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos».

O que Heródoto não podia explicar, — e hoje é objeto da doutrina do relativismo cultural, — é que os valores de uma cultura só podem ser verdadeiramente compreendidos pelas pessoas que possuem a mes­ma cultura. Ou como refere Herskovits: « . . . os juízes de valores se baseiam na experiência e a experiência é interpretada por cada indiví­duo em termos de sua própria cnculturação. Em outros termos, é o mesmo conselho picante, mas sábio, de Bernard Shaw, ao afirmar: «Não faças aos outros o que desejarias que te fizessem, pois seus gostos podem ser diferentes».

Dessa forma, nunca poderemos entender claramente os valores de outras culturas em suas implicações mais sutis, desde que o façamos com base na experiência de nossa própria cultura. Porque cada cultura é uma configuração singular. Embora seja possível perceber muitos aspectos de qualquer cultura, — conforme aceitam outros autores, — nunca, porém, em sua totalidade e complexidade.

As observações de Ibn Khaldun, citadas por Peito, sobre as várias formas do governo islâmico .escritas há mais de 500 anos, conti­nuam válidas como documento histórico e antropológico imperecíveis. Eis alguns dos seus principios, — a título de exemplo, — que parecem escritos nos dias de hoje, por um especialista: «As sociedades não são estáticas, pois as formas sociais se modificam e evoluem. Essas leis são tôdas sociais, e não meros reflexos de fatores biológicos ou físicos. Os fenômenos sociais obedecem a leis suficientemente constantes para fazer com que os acontecimentos sociais sigam padrões regulares e seqüências bem definidas. Essas leis funcionam sobre as massas, e não podem ser influenciadas de forma significativa pelos indivíduos isola­dos. (Segue-se o exemplo das tentativas do reformador em rejuvenes­cer um Estado corruto. Esses esforços de reforma são geralmente mal sucedidos: os esforços individuais são esmagados pelas forças sociais muito maiores».

Cremos suficientes esses dois exemplos para demonstrar o ponto de vista que já esposamos, linhas atrás, ao ressaltar a importância da documentação histórica na compreensão das culturas e dos povos.

CIVILIZAÇÃO — um ESTÁGIO DA CULTURA

A história das civilizações, sem pretender minimizar-lhe a relevân­cia, nada mais é do que a história de um estágio da cultura. O mais e!evado estágio do seu desenvolvimento.

Em 1877, quando Lewis Morgan divulgou a sua teoria da evolu­ção da cultura, — todos os povos passando por uma seqüência neces­sária e pré-determinada de três estágios, — Selvageria, Barbarismo e

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Civilização, — êle situava o alfabeto e o uso da escrita como os acon­tecimentos culminantes da última fase do desenvolvimento cultural.

A sua formulação era unilinear, isto é, êle admitia que a cultura em sua evolução seguiria sempre um caminho único, através dos três estágios já mencionados. Apesar de Engels e Marx aceitarem o es­quema de Morgan, — porque servia de antemão aos princípios de sua doutrina social, — a maior deficiência daquela formulação reside no desprezo aos fatores históricos e na difusão dos elementos culturais, como acentuou Franz Boas com seu autorizado saber crítico. Sabe-se agora que a evolução da cultura, em termos universais, é sempre multi­linear. Julian Steward é o mais destacado defensor dessa corrente nos dias atuais, com fundamento na variabilidade das culturas e conseqüen­te impossibilidade de enquadrá-las em esquemas rígidos e de tendências uniformes.

Os fatores históricos, — destaque-se, — são os mais fortes acele­radores do progresso cultural da humanidade.

Em teoria recente e significativa, Leslie White situa outro fator, — o maior ou menor volume de energia sob controle humano, — como o principal responsável pela evolução da cultura. Fator esse último que não afasta os contatos históricos de povos, antes os acentua. Desde a infância do homem, quando apenas dispunha da energia do próprio corpo, a evolução das culturas se verificou lentamente, através de des­cobertas e invenções decisivas para o progresso dos povos, como estas, além de outras: A descoberta do fogo, do arco e da flecha, a domesti­cação dos animais e plantas, a fundição do ferro, o domínio do vapor, a invenção do motor de combustão interna, a produção artificial da eletricidade, com as grandes usinas, a descoberta do petróleo, até à maior conquista energética de todos os tempos, em 1945, — a energia atômica. com base na teoria de Einstein, segundo a qual a matéria é igual à energia, um quilograma de matéria pode ser convertido em 25 bilhões de kilowatts-hora de energia, ou sejam, aproximadamente, 33 bilhões de cavalos-hora.

Este fato histórico transcendental, — pensamos nós ,— deve assi­nalar o fim da civilização moderna e iniciar nova etapa da evolução da cultura, para a qual não há ainda denominação adequada.

Ainda aqui, a Antropologia e História das civilizações se entrela­çam e explicam mùtuamente.

REFLEXÕES DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS

Na sua «Antropologia Estrutural», Claude Lévi-Strauss dedica uni capítulo ao relacionamento da História e a Etnologia, — tornado este último tèrmo como sinònimo de Antropologia Cultural. Traçando um paralelismo metodològico entre as duas ciências, êle afirma que, mesmo na Sorbonne, ambas as ciências se opuseram freqüentemente, «sob o pretexto de que a primeira repousa sobre o estudo e a crítica de do-

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cumentos de inúmeros observadores, que se podem confrontar e sobre­por, ao passo que a segunda, (a etnografia) se reduziria, por definição, à observação de um único».

Propõe-se então a demonstrar que a diferença fundamental entre História e Antropologia Cultural «não é nem de objeto, nem de obje­tivo e nem de método; mas que, tendo o mesmo objeto, que é a vida social; o mesmo objetivo, que é uma compreensão melhor do homem; e um método onde varia apenas a dosagem dos processos de pesquisa, elas se distinguem sobretudo pela escolha de perspectivas complemen­tares: a história organizando seus dados em relação às expressões cons­cientes, a etnologia em relação às condições inconscientes da vida social».

Na natureza inconsciente dos fenômenos coletivos está a origina­lidade da Antropologia Cultural, — para êle. Mostra que, «na maioria dos povos primitivos, é muito difícil obter-se uma justificação moral, ou uma explicação racional de um costume ou de uma instituição: o indígena interrogado se contenta em responder que as coisas foram sempre assim, que tal foi a ordem dos deuses ou o ensinamento dos ancestrais». Acrescenta : « . . . as razões inconscientes pelas quais se pratica um costume, se partilha uma crença, estão bastante afastadas das razões que se invoca para justificá-la». Mesmo na nossa socie­dade, «as maneiras à mesa, os usos sociais, as regras do vestuário e muitas de nossas atitudes morais, políticas e religiosas, são observadas escrupulosamente por cada um sem que sua origem e função reais te­nham sido objeto de um exame refletido».

Na frase de Marx, «os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem», — êle justifica, em seu primeiro termo, a história, e, em seu segundo termo, a Antropologia Cultural.

Para Lévi-Strauss, o etnòlogo e o historiador caminham na mesma direção: «O etnólogo procurando atingir, através de um consciente que jamais ignora, cada vez mais o inconsciente, para o qual se dirige; ao passo que o historiador avança, por assim dizer, recuando, conservando os olhos nas atividades concretas e particulares, das quais se afasta apenas para considerá-las sob uma perspectiva mais rica e completa. O etnòlogo ze interessa sobretudo pelo que não é escrito, não tanto porque os povos que estuda são incapazes de escrever, como porque aquilo por que se interessa é diferente de tudo o que os homens se preocupam habitualmente em fixar na pedra ou no papel». Concluindo suas reflexões, Lévi-Strauss fixa a importância da colaboração entre a história e a etnologia, frisando que «elas nada podem uma sem a outra».

DA HOMINIZAÇAO A NOOSFERA DE CHARDIN

Outros aspectos, no relacionamento da Antropologia com a His­tória, nos parecem de suma relevância. A história das civilizações se

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desenvolve num período de tempo que não deve ultrapassar de 5 a 6 mil anos. Mas, antes disso, há uma longa, controvertida e empolgante história, que vai da hominização, — ligada, portanto, ao surgimento dos mamíferos, há 75 milhões de anos e que por sua vez se relaciona com todos os seres vivos, — até se perder nos idos quase impenetráveis do aparecimento da vida neste planeta, há dois bilhões de anos, talvez.

Só a Antropologia, por um dos seus setores especializados, — a Paleontologia, — poderá oferecer explicação plausível e científica em torno das variedades extintas do homem e dos seus próximos parentes animais.

Por outro lado, quanto às primeiras manifestações da cultura, des­de às mais rústicas pontas de flechas de sílex do Paleolítico até às formas já evoluídas de expressão artística ou talvez mágica dos fantás­ticos desenhos das cavernas de Altamira, na Espanha, tôdas essas ma­nifestações só se explicam através de outro setor da Antropologia, que é a Arqueologia ou Pré-história. Por intermédio de técnicas apropria­das, análise e classificação dos artefatos primitivos, o pré-historiador ou arqueólogo procura ordenar, numa seqüência histórica, os povos desaparecidos. Utilizando o método comparativo, êle poderá tentar iden­tificar a que tipo de sistema econômico, por exemplo, (caça e pesca ou agrícola), pertenceu tal ou qual instrumento litico, reconstituindo, assim, o desenvolvimento das culturas ágrafas. Mas com aquelas limi­tações de que falava Glyn Daniel na sua «Introdução à Pré-História»: «A pré-história preocupa-se com os tipos de vida das sociedades remo­tas; mas é certo que não se refere à cultura espiritual, mental ou moral dessas sociedades. Não pode falar da organização social e crenças religiosas da sociedade pré-histórica, o que é uma das suas limitações fundamentais. Quando os pré-historiadores falam das idéias e ideais do homem anterior à escrita, apenas imaginam hipóteses inteligentes, feitas por pessoas qualificadas para fazê-las, mas, assim mesmo, hipó­teses». Ponto de vista também esposado por Gordon Childe, ao inda­gar se «era legítimo deduzir fatos não-materiais do homem pré-histó­rico através de remanescentes materiais». E noutro ponto, o mesmo autor de Evolução Social afirma: «O conteúdo da crença religiosa e o grau de prestígio das classes sociais (da pré-história) estão irrecuperà-velmente perdidos». Mas, não há dúvida de que a Arqueologia é uma disciplina histórica, que tenta reconstruir a cultura do passado até nos­sos dias, sobretudo desvendando, na linguagem muda dos traços huma­nos impressos nos artefatos de tôda natureza, a possível história que não está escrita.

O historiador não pode prescindir desses conhecimentos, mesmo com as suas limitações, como embasamento lógico e racional para com­preensão da evolução do homem, das culturas e conseqüentemente das civilizações.

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Nao seria aqui o momento para esboçar, mesmo perfunctòriamente, a problemática da irradiação adaptativa dos priniatas, como um ramo privilegiado dos mamíferos, e que culminaria, mais tarde, com a nomini-zação. Acontecimento a que estão ligados os australopitecus, os pite-cantropus, o homem de Neandertal e o Homem de Cró-Magnon, isto é, o Homo sapiens fossil. Nao apenas pela complexidade e profusão de problemas que deveriam ser, pelo menos, aflorados. Mas sobretudo pela necessidade de aclarar posições, expor teorias, enfim, demons­trar, nos seus ângulos mais significativos, que o homem é um produto da evolução. Não um anjo decaído, — como lembrava Linton, repetin­do Darwin, — mas um animal aperfeiçoado. O mais diversificado de todos os animais, com suas características que o distinguem de qual­quer outro, inclusive a característica única e singular, rigorosamente própria do homem, que é a cultura.

A história das civilizações estuda esta característica nas suas mani­festações conscientes mais complexas e mais altas do gênio humano. A Antropologia extrapola ainda mais desses conhecimentos, porque se interessa pelo inconsciente coletivo, pelos povos sem história, pelos primitivos, pelas culturas que ainda hoje não conhecem o uso da escri­ta, pelos povos que estão em vias de extinção, pressionados por pre­mentes problemas de saúde ou pela ambição de vizinhos ou nações poderosas que visam ameaçadoramente as riquezas naturais do seu habitat.

Franz Boas destacou de forma definitiva e lapidar a íntima relação entre a História e a Antropologia, ao escrever: «Para compreender a história, não basta saber como são as coisas, mas como chegaram a ser o que são».

Se a história das civilizações complementa a história do homem e da cultura, no seu mais belo e trágico período de florescimento, a Antropologia, por sua vez, fornece-lhe a base indispensável à sua com­preensão universal. •

Daqui para a frente, até a Noosfera de Teilhard de Chardin, acre­ditamos que a História e Antropologia caminharão juntas, como juntas estiveram a partir do aparecimento da escrita. Sejam quais forem os estágios de grandeza ou miséria, a que possam atingir as civilizações, no futuro, será sempre a natureza humana o problema maior, comum a uma e a outra ciências do homem, a causuística fundamental de tôdas as transformações da humanidade e da cultura.

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A CONFERÊNCIA DE VENEZA E OS PROBLEMAS DA CULTURA

ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS

O problema da conceituação de cultura, para compreendê-lo prin­cipalmente em face da diversificação que apresenta, constitui hoje,

uma preocupação de antropólogos, de cientistas sociais, que ampliam ou limitam o campo sobre o que deve incidir a atenção, a curiosidade científica. Morgan, no ensaio que escreveu acerca das sociedades pri­mitivas, entendeu a cultura como uma expressão restrita aos homens dos primeiros tempos da vida social. Taylor Goldenwayser, Fraser, padre Schmidt, Grabner, Frobenius, Herkowits já se libertaram desse conceito restritivo.

Há, hoje, no entanto, um consenso em que tôdas as manifestações da criatividade humana devem ser consideradas como manifestações culturais, em maior ou menor grau, a definirem grupos, povos, comu­nidades com maior ou menor dinâmica. como também há consenso na conclusão de que as culturas, como expressões da vida coletiva, crescem, transformam-se, enriquecem-se, empobrecem, intercomunicam-se, morrem, São criações dos homens e como tal sujeitas aos altos e baixos das so­ciedades humanas. E face a impactos mais ou menos sensíveis, expan­dem-se e ampliam-se perdendo, aqui e ali, suas características mais pro­fundas e mais definidoras, numa alteração que só o isolamento impede e cristaliza.

Quando os homens elaboraram suas linhas legais de convivência, adotaram práticas de vida coletiva, organizaram-se sociedades, estabele­ceram a disciplina de seus falares, construíram as suas moradias, riscaram as pedras com que produziram as primeiras manifestações da arte rupes­tre, fizeram o fogo, dominaram o espaço físico, construíram seus ins­trumentos de trabalho, adotaram dietas alimentares, mantiveram suas tradições orais, que importavam na história do passado e asseguravam a continuidade do grupo, evidentemente estavam elaborando cultura, que os singularizavam entre os outros animais e dessa maneira dêles dife­renciavam e sobre eles exerciam o domínio. Nesse particular, os homens estabeleceram-se fronteiras, que os contiveram, marcaram e lhes permi­tiram ou determinaram os traços culturais.

Heródoto, consciente do que tudo isso representava, já se preocupava em examinar as diferenças e variantes culturais da humanidade então

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existente ou revelada. Outras grandes expressões da inteligência antiga também registraram as diversificações do comportamento social, lançando os fundamentos do que já poderíamos denominar de culturologia.

As culturas são, portanto, variadas e mesmo aos impactos violentos da tecnologia mantêm-se distintas e a marcar a individualidade dos povos.

Muitas dessas culturas, todavia, foram ignoradas ou contestadas de acordo com os critérios limitativos de povos que se consideravam os detentores da verdade, da superioridade, do poder de arbítrio no reco­nhecimento da capacidade criadora de outros povos. Haveria, para estes, os selvagens, os bárbaros, os ingênuos, os primitivos, os incapazes de se realizarem sem o subsídio, a contribuição, a exportação, até eles daqueles padrões de culturas que eram o privilégio dos outros, dos que exportavam cultura depois de a terem criado, polido, alimentado e tornado gloriosa. Essa a história de ontem e ainda de hoje. Gregos, romanos, pretenderam o monopólio da cultura pela excelência de sua produção e de sua força. Já então, porém, aquêles padrões gregos e ro­manos alimentavam-se, enriqueciam-se ao contato com os bárbaros, com os primitivos, de valores que incorporavam e depois transmitiam como valores autóctones gregos e romanos. Depois foi a Europa que, após seu esforço de unificação política, passou a aglutinar-se à idéia de sua supe­rioridade cultural. Descobriu continentes, naturezas, viajou por oceanos, mares e complexos fluviais que revelou, tomou contato com humanidades desconhecidas e se impôs sobre elas pela ação de soldados, de adminis­tradores, de missionários, de mercadores. Durante 400 anos, governou muitas dessas humanidades. Desprezou-lhes os «stocks» culturais: as re­ligiões pré-européias, os costumes, os usos, os comportamentos. Negou-lhes a posse da própria alma. um debate incrível, entre homens de espí­rito, ocorreu a propósito da possibilidade de um crédito aos selvagens da América e à própria América, impossível de habitar ou de habitar em termos da ação criadora, dignificante da espécie humana. Antonelo Gerbi, em «La Disputa del Nuevo Mundo», como anteriormente em «Viajas polêmicas sobre el Nuevo Mundo», historiou e analisou as conclusões simplistas do debate. A África era outra área sob negativa. Foi só quando Frobenius, depois de décadas de estudos no interior do continente, revelou a existência de grandes culturas negras, que se co­meçou a alterar a imagem. E hoje, o que sabemos acerca das culturas da África, ao Sul do Saara, a África negra, permite o reconhecimento do que elas importam como valores estéticos e institucionais. A literatura abundante, que se escreve, a respeito, na própria Europa e nos Estados Unidos, assume proporções quase inacreditáveis. (1)

1 ) O problema da presença européia no mundo exótico, tropical, tem dado motivo a extensa literatura. como a preocupação mais atual referente à importância de que se revestem as culturas européias. Citaríamos, nesse particular, como exce­lentes fontes de informação a obra coletiva «L'Europe du XIX et XX siècle

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Já não ocorre o mesmo, é certo, com relação às culturas do Oriente. Quando os europeus aportaram à índia, e depois à China, se não abriram inão de sua preocupação de superioridade, nem por isso deixaram de constatar os aspectos mais visíveis e mais intensos das culturas ali exis­tentes. A influência da filosofia chinesa, transmitida à Europa na infor­mação de missionários, foi grande e, em muito, responsável por certos princípios que europeus se atribuem como fruto de seu próprio espírito criador. Em Iivro famoso, «La Chine et la formation de l'esprit philo­sophique en France», V. Pinoti deu-nos uma lição magistral a respeito. como anteriormente, François de Daineville, em «La géographie des Hu­manistes» . como as notícias proporcionadas, nos relatos dos viajantes, influíram também para que a Europa tomasse consciência de que havia outras humanidades capazes de criar culturas cheias de vigor.

Essa penetração da «novidade» cultural com que a América, a África, a Ásia contribuíram, apesar de tôdas as reservas que se lhes opuseram, foi uma contribuição ponderável que serve também para expli­car o que denominaríamos de Renascimento e permitiu o exotismo lite­rário, tão bem estudado por Atkinson, Martino, Chinard e, entre nós, por Afrânio Peixoto e Afonso Arinos, isto é, os motivos daqueles con­tinentes, vigentes na literatura que a Europa escreveu a principiar do século X V I .

Ora, as culturas desses mundos, que já se libertaram do sistema de dominação política da Europa e se reencontraram com seu passado e se encontraram com um novo presente, provocando o maior interesse nos meios, ontem hostis, constituem preocupação das organizações interna­cionais como a UNESCO, pelo que representam como valores representa? tivos de poovs, de épocas, e como características desses mesmos povos. Tal interesse ou preocupação pelos estudos dessas culturas para uma política de preservação, que se promove através de providências obje­tivas e dignificantes, não levam, no entanto, a ignorar os outros valores, os que não se descobrem agora porque preexistem à descoberta daque­las culturas exóticas e compõem o acervo criador daqueles contingentes humanos da Europa, ainda responsáveis, até certo ponto, pelos destinos universais. O inventário das culturas, tôdas elas, note-se bem, compreen­dendo as raízes e o desenvolvimento de cada uma delas, suas condicionan­tes, seus reflexos, sua impetuosidade, sua expansão, seus relacionamen­tos, está, em conseqüência, na ordem do dia, prevalecendo, porém, aten­te-se, uma curiosidade mais intensa, não mais para as dos aborigines das Américas ou dos povos da Ásia, mas, preferentemente, da África negra.

A UNESCO, que é o organismo da ONU, a que se atribuem a área da educação e da cultura no processo mundial de convivência espiritual,

(1815/1870). Problèmes et interpretations historiques». Milão, 1959; e André Amar. «L'Europe a fait le monde. Une histoire de la pensée européenne». Paris 1966. Sobre o reverso, isto é, a contribuição que a África tem dado, Eugene Guernier, «L'Apport de l'Afrique a la pensée humaine», Paris, 1952.

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balanceando o esforço mundial na difusão e na preservação das culturas, com instrumentos apropriados, além da obra de assistência e de divul­gação que vem executando, com revistas especializadas, coleções de arte, livros, entre eles um «História da Cultura Humana», em que há capítulos sobre o Brasil, escritos por membros deste Conselho, tomou a ombros a realização de um primeiro encontro de nações, visando ao exame das políticas que se estão adotando.

A U N E S C O já promovera, anteriormente, inquéritos e mesas redon­das acerca do racismo, do problema da revolução tecnológica, das tensões sociais, da unidade e diversidade das culturas. como a U N E S C O , or­ganizações privadas do tipo da Fundação Pró-Helvetia, de Neuchatel, que pelo ensaio de Carl Dora já fixara os grandes caminhos das rela­ções culturais no plano internacional. Na América Latina, o Instituto Pan-americano de Geografia e História, pelas revistas de Folclore, An­tropologia e das Idéias encarava com propriedade a matéria, numa con­tribuição excepcionalmente importante. Os estudos africanos, na In­glaterra, na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na Espanha, em Por­tugal, na Itália, na Rússia, autorizavam, como os que se faziam também sobre o Oriente, um vasto conhecimento de tudo quando afirma a exis­tência de culturas autônomas, diversificadas, autênticas, com vasta tra­dição no tempo e amplitude do espaço.» (2)

Todo esse material conduzia, também, à formulação de sentimentos nacionalistas exaltados, sentimentos que expressavam um anticolonialis­mo, e, até certo ponto, um racismo contra o branco, de raiz européia.» (3)

No particular da África negra, debatiam os próprios africanos a tese — haverá uma cultura negro-africana, unificada, que os europeus teriam destruído ou confundido, ou haveria culturas variadas, diferentes, autônomas, perfeitamente distintas? Tais culturas realmente teriam sofrido a pressão das culturas européias que as perturbassem em sua evo­lução natural e as corrompessem? E face ao mundo reformulado pela tecnologia, como se comportariam aquelas culturas tradicionais? O pro­cesso de mestiçagem cultural, velho de séculos, mas tornado mais di­nâmico com os descobrimentos geográficos, que pôs em relacionamento

2) No Brasil, o interèsse pelos assuntos africanos negros e asiáticos pode ser constatado pelo que realizou o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, e rea­liza hoje o Centro de Estudos Afro-Orientais, sediado na Universidade Federal da Bahia. Suas publicações são excelentes, sendo de assinalar a revista «Afro-Â^ia», que alcançou o número 7. Nós próprios, em nosso livro «Rotina e Dinâmica na vida brasileira», Manaus, 1965, fizemos estudo preliminar, em dois ensaios, acerca do que a África negra estava significando.

3) Sobre o assunto, recomendaríamos, a leitura de: Eduardo dos Santos, «Pan­africanismo de ontem e de hoje», Lisboa, 1968; Eduardo dos Santos — «Ideologias politicas Africanas», Lisboa, 1968; André Gonçalves Pereira — «Sobre os naciona­lismos Africanos», Lisboa, 1956; Jacques Lombard, «Autorités tradicionelles et pouvoirs européens en Afrique Noire», Paris, 1967; A. Malileau et I. Meyriart, «Descolo­nisation et regimes politiques en Afrique Noire», Paris, 1967; Fernand Von Lange-nhove, «Consciences tribales et nationales en Afrique Noire», Haya, 1960.

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interno sociedades as mais diferentes entre si e com elas aqueles patri­mônios exóticos, estaria encerrado?

«Chekh Anta Dio, em «Antériorité des civilisations nègres». «Myrthe ou vérité historique?», em «L'unité culturelle de l'Afrique noir», e em «Nations Nègres et culture», como Jacques Maguet, em «Africanité tra-ditionelle et moderne», Jean-Pierre N. Diaye em «Elites africaines et cul­tures occidentales, assimilation ou resistence?» e Jarnheinz John, em «Mo­butu — Las culturas de la negritud», examinaram com muito calor o assunto, concordando na existência de valores pré-europeus que era preciso defender porque refletiam o estado cultural dos povos africanos negros anteriormente à presença européia, e porque estavam sofrendo uma desfiguração como resultado dessa mesma presença. A unidade ocorrera, depois de desfigurada como um todo pela variação natural que o tempo e outros fatores explicavam. George Pater Murdock, em «África. Its peoples an their culture history», já sustentara como ver­dadeira a tese da variedade e multiplicidade cultural, agora também ex­posta, no particular das manifestações artísticas, em livro excelente, «Arts et peuples de l'Afrique noire», por Jacqueline Delonge.

Duas assembléias de africanistas haviam pretendido formular a pro­blemática africana negra, incluindo os aspectos materiais e espirituais das culturas ainda existentes, em suas formas menos impuras.

uma reunião promovida pela U N E S C O em Dakar, de 6 a 10 de outubro de 1969, deu os passos preliminares para a grande assembléia que se decidiu reunir em Veneza. Ali se haviam proposto os problemas da «negritude cultural» que, como os problemas das culturas asiáticas, deveriam merecer ênfase, estas expressas no que a India e o mundo árabe particularizavam. As culturas da índia e do mundo árabe voltavam a provocar interesse nos meios científicos. A chamada civilização árabe-islâmica, como as que haviam definido e continuavam definindo aquêles mundos estavam em pleno reflorescimento, defendidas, amparadas, exal­tadas. Orgulhavam-se os que a representavam do que elas haviam significado e voltavam a significar.

As culturas pré-européias da América já não despertavam o mesmo interesse. Estavam estudadas em profundidade. Pouco restaria para constatar como novidade. E no que diz respeito à sua preservação, tam­bém não havia motivos para maiores preocupações — estavam extintas como valores atuais, e o que delas restava encontrava-se devidamente pre­servado nos museus da própria América ou nos momentos que haviam resistido à ocidentalização. » (4 )

4) Excelentes balanços do que representam as culturas indígenas da America podem ser encontrados em: Herman Trimborn; «Las culturas dei mundo antiguo», «América Precolombiana», Madri, 1965; José Manoel Gomes Tahanera e outros, «Las Raizes de América», Madri, 1968; Domingo Martinez Pereatez, «Un continente y una cultura», México, 1960; Felipe Gonzales Ruiz, «Evolución de la cultura en América», Madri, 1953.

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Quanto, por fim, às culturas do Ocidente, a U N E S C O não tinha também porque afligir-se. Os povos do mundo ocidental ou resultantes da ocidentalização, como é o caso das Américas francesa, inglesa, espa­nhola e portuguesa, estavam com seu patrimônio cultural definido e exe­cutavam as respectivas politicas por decisão própria, recursos nem sempre abundantes convenhamos, mas com resultados fáceis de imaginar. Não corriam os riscos que as outras corriam. Sua história e sua defesa eram uma tarefa nacional efetiva. O de que careciam era de mais intensa difusão pelo exercício constante de políticas corajosas que impulsio­nassem, valorizassem e assegurassem as condições vitais de sua conti­nuidade. (B)

A Conferência Intergovernamental sobre os aspectos institucionais, administrativos e financeiros das políticas culturais, promovida pela U N E S C O na cidade de Veneza, de 24 de agosto a 2 de setembro, rea­lizou-se, com sucesso integral, presente a Delegação brasileira, que tive a honra de chefiar, na conformidade da agenda prevista, inclusive em termos de período, cumprido fielmente.

Foi instalada na noite de 24 de agosto, solenemente, no Palácio dos Dodge, sob a direção preliminar do Diretor-Geral da U N E S C O e pos­teriormente sob a presidência do Chefe da Delegação Italiana, Ministro Angelo Salazzani, Subsecretário de Estado e Deputado ao Parlamento Nacional, escolhido, em reunião preliminar dos Chefes da Delegação, quando se fixaram linhas de ação e se fizeram as primeiras indicações para os postos de coordenação, comando e redação e se constituíram duas grandes comissões.

A Conferência, cuja realização fora determinada em deliberação da Assembléia Geral da UNESCO, em sua décima quinta sessão (1968) tinha seus objetivos contidos naqueles ângulos já referidos, elaborados em reuniões preliminares, celebradas em Mônaco (dezembro de 1967), Budapest (julho de 1968), Paris (junho de 1969). Dois encontros anteriores haviam tido lugar para o exame da problemática cultural de certas áreas geográficas — América Latina (Lima — novembro e de­zembro de 1967) e África (Dakar, outubro de 1969). Naquela, repre­sentaram o Brasil os professores e escritores Afonso Arinos de Mello Franco e Sérgio Buarque de Holanda. Não seria demais lembrar, que, no particular da América Latina, em Caracas e em Trinidad, já haviam sido examinados aspectos da conjuntura cultural dos países que integram a latinidade americana. É certo que tais assembléias não resultavam de convocação da U N E S C O e sim da OEA o que nem por isso deixa

5) O estudo das culturas européias, no que expressam, no que transferiram às culturas dos outros continentes e delas se enriqueceram está, presentemente, sendo promovido com o maior interesse por centros universitários e organizações especiali' zadas, como a Fundação Européia da Cultura, com sede em Amsterdan, e o Centro Europeu de Cultura, com sede em Genebra, tôdas elas a provocarem debates, mesas redondas, simpósios e a publicarem revistas e monografias que refletem a preocupação que a matéria sugere.

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de merecer a nossa reflexão pelo que já registrava como preocupação governamental para o encaminhamento da problemática cultural, con-vindo registrar que, para essa última, o Conselho Federal de Cultura elaborou texto em que sugeriu a adoção de medidas conformantes da área de política visando ao aceleramento do processo cultural. (6)

O que se pedia, para a Conferência de agora, especificamente, era informações sobre o orçamento cultural de cada pais, formas de finan­ciamentos governamentais direto e indireto, papel da iniciativa privada para o fomento da cultura, recursos humanos disponíveis ou em forma­ção no campo das atividades culturais. Por fim, diretrizes oficiais, no paiticular das relações internacionais, exportação e importação de cultura, seja no qualitativo, seja no quantitativo.

A ênfase maior, que era visível, dirigia-se, no entanto, para a área africana, especialmente a dos países ao Sul do Saara, portanto a África negra. A seguir, a Ásia. A América Latina não entrara em cogitações maiores senão no exótico que ainda se pudesse encontrar nas manifesta­ções, em processo rápido de desaparecimento, de suas populações abo­rígenes. De logo fique claro que a América Latina, como nos séculos XVII e XVIII a Ásia, despertara, nos séculos XIX e primeiras décadas do século XX, o interesse europeu, provocando estudos da maior im­portância, agora mais voltados para as circunstâncias de natureza eco­nômica. Ademais, a América Latina, despontara como maior anteriori-dade para a sua problemática cultural, criando-se uma tradição que não podia existir, em termos de civilização de linhas ocidentais, na África negra. Esta cogitava, incessantemente, não apenas na sua ocidentazi-negra. Esta cogitava, incessantemente, não apenas na sua ocidentali-zação, isto é, integração no conjunto de universalidade cultural que a Europa criara e difundira, mas na revalorização de suas raízes mais distantes no tempo, as raízes anteriores à presença européia, portanto anteriores aos fins do século XV. Tais preocupações, sobre o que há hoje imensa literatura especializada em francês e inglês, o que importa em reconhecer a importância que se está concedendo ao mundo africano negro, creditando-se perante a UNESCO, interessada na contribuição que poderia proporcionar aos países africanos, constituíram, em conse­qüência, uma tônica natural na Conferência.

Estiveram presentes à Assembléia, 86 Nações, além de representa­ções e observadores de organismos não governamentais e de fundações. Da América Latina, compareceram delegações diminutas, diga-se de passagem, de apenas 10 países: Brasil, a maior, Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Colômbia, Venezuela, Panamá, México e Cuba. Trinidad-Tobago, Guiana, Canadá e Estados Unidos completaram o quadro do Continente americano.

6) Esse texto não logrou exame naquela assembléia porque a matéria foi trans­ferida a outra reunião, quando, então, mais detidamente seria examinada para a adoção de providências. Tem o seguinte título: «Projeto para o Estudo das Carac­teristicas Culturais da América Latina.» Será divulgada na revista «Cultura». Foi elaborada pelo Conselheiro Manuel Diégues Júnior.

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As duas comissões que se organizaram para o exame das proposi­ções que se foram apresentando, cogitaram do seguinte:

a) — função dos Poderes Públicos na determinação e na realização dos objetivos do desenvolvimento cultural, compreendendo o acesso e participação na cultura, proteção e desenvolvimento das culturas nacio­nais e sua ampla difusão, técnicas áudio-visual de criação e de comu­nicação, conteúdo cultural da educação.

b) — promoção e organização da ação cultural pelos Poderes Pú­blicos, compreendendo os aspectos institucionais e administrativos, fi­nanciamento, a utilização dos recursos humanos, pesquisas sobre as po­líticas cultueis, cooperação cultural internacional e papel da U N E S C O no domínio das políticas culturais.

Fora deliberado e distribuído com antecedência um documento de base, em que se haviam indicado os problemas a serem examinados cora a indicação de experiências alcançadas e de algumas particularidades para as quais a U N E S C O pretendia o pronunciamento favorável das Delegações, como a utilização cultural dos lazeres, a ajuda às artes plásticas e as medidas práticas para assegurar o direito à cultura nas regiões africanas. Esse documento valeu, realmente, bastante para os trabalhos da Conferência e o encontro normal de conclusões.

É de notar que em nenhum momento a Conferência abandonou seus objetivos para descontrolar-se em debates estranhos aos mesmos. O entendimento havido entre tôdas as Delegações foi uma constante que permitiu os resultados alcançados com tanto sucesso e rapidez. Re­gistre-se , para exemplificar, o caso de proposição da Delegação da União Soviética, com que não concordávamos. Alinhava-nos com a África e a Ásia na constatação de um subdesenvolvimento cultural que não podíamos reconhecer, pois que era falso. As Delegações Latino-Americanas reuniram-se, por sugestão do Professor Pedro Calmon, as­sentando contestar a posição que nos davam. Não nos consideraríamos diminuídos na companhia de africanos e asiáticos. O que recusávamos era a condição de inferiorização cultural a que nos limitavam, confun­dindo o primitivo, o exótico, que caracteriza ainda hoje as culturas da­quelas áreas, com o primitivo das culturas dos aborígenes americanos, que não constituem mais a marca das culturas latino-americanas, mar­cadas pela ocidentalização, e, certos aspectos, por alguma autonomia e criatividade ponderáveis. Procurada, a Delegação Soviética concordou imediatamente na modificação do texto, com o que se refez a proposi­ção, sob forma aceitável e que não globalizava a situação proposta an­teriormente.

Presentes continuadamente às duas comissões e ao Plenário, a De­legação Brasileira apresentou seis (6) proposições, que versavam sobre os pontos seguintes:

a) — inventário das instituições culturais mundiais; cada Estado indique uma de suas instituições para estabelecer os intercâmbios;

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b) — estudo sobre as repercussões que a urbanização está promo­vendo sobre as atividades culturais das populações rurais, figurando esses estudos entre os temas da próxima reunião para o exame de «O homem e o meio»;

c) — encorajamento aos Estados membros para providenciar a de­fesa, não só dos monumentos arquitetônicos, mas também dos conjuntos urbanos, incitando as autoridades responsáveis à utilização adequada de tais conjuntos;

d) — estudo das culturas em perigo de extinção e o estabeleci­mento de um centro internacional de documentação, relacionado com a preservação das culturas e a divulgação dos estudos pertinentes;

e) — fomento ou apoio da U N E S C O aos estudos de medidas para ajudar financeiramente as atividades culturais nos Estados Membros mediante a participação, nos impostos ou taxas provenientes de ativida­des econômicas que, direta ou indiretamente, se beneficiam da contri­buição cultural;

f) — patrocínio na realização de estudos sobre os sistemas de isen­ção ou redução fiscal, do imposto de renda para as pessoas físicas ou jurídicas que prestem ajuda às atividades culturais de interesse nacional ou internacional, ou que colaborem com os Poderes Públicos na con­servação do patrimônio histórico e artístico do país;

Tais proposições objetivavam prioridade na UNESCO para os programas, a curto e longo prazo, visando à elaboração de uma cons­ciência mundial sobre a importância dos problemas de ordem cultural, para o que devem ser postos à disposição, dos países membros, meios que lhes permitam formular suas respectivas politicas culturais, inclusive pelo fornecimento de especialistas que colaborem, e a compilação e difusão da documentação que registre a cultura de cada país.

Nossas proposições foram aceitas e incorporadas às recomendações finais. Assinamos proposições, propostas pela França, Bélgica, Came-rum, Canadá, Líbano, Cuba, Guiné, Irã, México, República Árabe Unida, Togo, Tunízia, Uruguai, República Federal da Alemanha, In­glaterra, Senegal, Suissa, Colômbia e Itália.

No Plenário, o Chefe da Delegação Brasileira fêz, como sucedia com os Chefes das demais Delegações, uma exposição sumária, em fran­cês, sobre o que distinguía a política cultural do país. (7)

As recomendações, aprovadas pela Conferência, atingiram o número de oitenta e cobriram, efetivamente, os ângulos mais variados da pro­blemática cultural. Não foi possível fixar uma definição exata da ex-

7) A delegação brasileira esteve assim composta: Professor Arthur Cezar Fer­reira Reis, chefe; Professor Pedro Calmon, Arquiteto Renato Soeiro, Secretário de Embaixada Luiz Felipe Macedo Soares Guimarães. A delegação brasileira elaborou uma comunciação mais longa, mas, à exeguidade de tempo, não foi possivel sua edição. Havia documento anterior, integrante de uma série, preparada pela UNESCO, mas de circulação limitada, organizada pelos Senhores A. Miennot, A. Battaini, R. Said.

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pressão cultura. Havia dúvidas na conceituação, que variava de país a país e, em muitos dêles, incluia aspectos educacionais, nem sempre aceitos como integrantes exclusivos do processo cultural, como era o caso das sociedades primitivas, em que a atividade cultural, expressiva de sua capacidade criadora, não é resultante de qualquer participação da ação educacional, nelas inexistentes.

As recomendações aprovadas partiam do princípio de que o direito de acesso à cultura é inerente à pessoa humana, pelo que as autoridades responsáveis pela existência e funcionamento das comunidades humanas devem proporcionar facilidades, dentro dos limites de recursos disponí­veis, para que se efetive esse acesso.

Assinalaram a exigüidade de recursos, na maioria dos países, cons­tantes dos orçamentos oficiais para o empreendimento cultural, como é o caso do Brasil, em que essa percentagem não passa dos 0,4764%, certas inexpressividades das relações culturais internacionais e intercon­tinentais, a necessidade de uma contribuição universal mais decisiva e mais elevada como meio de fortificar o desenvolvimento cultural nas áreas menos favorecidas ou desenvolvidas, inclusive pela adoção de normas e mais modernos processos de difusão cultural além dos clássicos ou rotineiros. Insistiu no reconhecimento de que a cultura não é um adorno, mas alguma coisa importante, muito importante, como valor, na vida social, o que exige, como conseqüência, a consciência, do Poder Público, e da iniciativa privada, da existência de obrigação, constante de uma política constante, objetiva e penetrante para o planejamento cultural das comunidades, também considerado como aspecto especial importante dos planejamentos globais nacionais.

No particular do problema dos países em que as diferenciações étnicas,lingüísticas e culturais existem, a autonomia cultural deve ser mantida, sem prejuízo da unidade nacional. Da mesma forma, aos ar­tistas deve ser reconhecido o direito de se realizarem livremente, parti­cipando dos organismos que formulem as políticas culturais.

A Conferência decidiu, ainda, recomendar, entre outras medidas, à U N E S C O :

a) reuniões regionais para, em nível ministerial, examinar as ques­tões fundamentais da política cultural;

b) — estudo da possibilidade de declarar o ano de 1975 o Ano Internacional do Desenvolvimento Cultural;

c) — encontro de meios de ajuda aos países para que possam pre­servar suas culturas indígenas contra as influências externas nocivas, inclusive favorecendo o intercâmbio de experiências e projetos para o fomento e respeito das tradições orais;

d) — ajuda aos países em vias de desenvolvimento para que esta­beleçam infra-estrutura necessária ao funcionamento de serviços de rádio e de televisão;

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e) — cooperação, no sentido de divulgação dos valores das cultu­ran primitivas negro-africanas, através de películas, rádio e televisão;

f) — ajuda ao fomento da cultura árabe; g) — exame da possibilidade de estabelecer um instituto latino-

americano de cinema; h) — preparação de uma série de publicações institulada «Inven­

tário dos Monumentos e Obras de Arte Tradicional»; i) — publicação, a partir de 1971, de nova revista, sob a denomi­

nação de «Problemas do desenvolvimento das culturas nacionais»; ;') — estudo da possibilidade de estabelecer um centro internacio­

nal de intercâmbio de informações, sobre as culturas preindustriais so­breviventes;

k) — estudo para identificar as zonas, na América Latina, mais afetadas pelo rápido desaparecimento dos valores nacionais populares ao impacto das novas formas de meios de informação comerciais, fixando a maneira pela qual possa ajudar na conservação de tais valores;

1) — estudo da possibilidade de coordenação dos centros de in­vestigações existentes, encarregados das políticas culturais como partes integrantes dos planejamentos nacionais, regionais e locais;

m) — solicitação aos Estados Membros para que formulem dis­positivos legais visando à conservação de monumentos arquitetônicos in­dividuais e de grupos de edifício»,

n) — por fim, estudo da possibilidade de estabelecer um Banco ou um Fundo de Desenvolvimento Cultural, ou ambas as coisas, que atuem como organismos financeiros auxiliares dentro das normas que regem os bancos internacionais.

Considerou, ainda, a Conferência, que o desenvolvimento cultural de um país tem estreita relação com o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento geral, pelo que as inversões de caráter cultural devem considerar-se como inversões para, a longo prazo, o desenvolvimento geral da sociedade em seu conjunto.

A Conferência Intergovernamental para certos aspectos das polí­ticas culturais foi a primeira, no gênero, realizada até o presente, evi­denciando a elaboração, já avançada, de uma consciência em torno da tese de que o Estado Moderno não pode ausentar-se do problema cultu­ral como parte integrante da política do governo. O processo de desenvolvimento de uma Nação não pode mais limitar-se aos aspectos sociais, econômicos e educacionais a exigirem planejamentos específicos e mobilização de recursos humanos e financeiros. Inclui também os de ordem cultural, a curto e a longo prazo, devidamente considerados para os programas que cumpre elaborar e executar. As culturas nacionais, ficou evidenciado, são instrumentos de segurança, valores a preservar, pois que dignificam as Nações, suas sociedades e refletem a capacidade que possuam para criar nos domínios do espírito.

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AS MONARQUAS IBÉRICAS E A PROTEÇÃO AO ÍNCOLA

JOSÉ ALIPIO GOULART

ANTE o reconhecimento tácito da liberdade dos índios, pelo poder vaticânico, é a vez das monarquias, a lusa e a espanhola, seguirem

os passos da Igreja; e aquelas, antes francamente favoráveis à cati-vação da bugralhada, já agora, mais por interesse político do que por convicção de qualquer outra sorte, seguem as pegadas do Papa apro­fundadas estas pela ação itimorata dos loyolistas. Começam, então, os avanços e recuos das coroas peninsulares da pretensão de solucionar definitivamente o assunto. Ao ocupante da cadeira de São Paulo cabe injetar-lhes, vez por outra, por meio de bulas e de breves, dosagens medidas de coragem, sempre que pressente fraquejarem os reis ao im­pacto da reação interesseira dos colonos.

No Regimento de 17 de dezembro de 1540, dado a Thomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil, já se fazia, talvez, a pri­meira tentativa de regulamentação do cativeiro do índio, quando naquele documento lia-se que o principal fim de povoamento do Brasil era a redução do gentio à fé católica, convindo atraí-lo à propagação da fé porque de tal passo sobreviria o aumento da povoação e do comércio. Proibia-se, no mesmo Regimento, fazer guerrear e saltear gentio, por terra ou por mar, ainda que estivessem levantados, sem ordem do Go­vernador e dos Capitães; e estes só a dariam a pessoas de confiança, sob pena de morte e perda de tôda a fazenda. (Isso porque, constava do documento, «era costume saltear e roubar os gentíos de paz por diversos modos, atraindo-os enganosamente, e indo depois vendê-los, até aos próprios inimigos, donde resultava levantarem-se eles e fazerem guerra aos Cristãos, sendo esta a principal causa das desordens que tinham havido.» (*)

Por outro lado, e pelo que ficou patente consoante o trecho trans­crito, a Coroa não demorou a tomar conhecimento das misérias que aqui se praticavam com os índios, desde os primeiros instantes; e quem se apressara a denunciá-las não haviam sido os loyolistas, porque esses chegaram ao Brasil juntamente com o portador do Regimento. Dessarte, alguém, antes dos roupetas, cochichara aos reais ouvidos o que àquela altura já se estava passando nestas partes, com os filhos da terra.

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Apesar, porém, das mencionadas disposições regimentais, a escra­vização do indígena foi aspecto relegado a segundo plano por força dos pesados encargos da organização econômica e administrativa da colonia, que assoberbavam o governador-geral. Não se deve esquecer, entre­tanto, que já então aqui estavam alguns jesuítas, aos quais, ao contrário, a qeustão se apresentava vivíssima; eles se dispuseram a enfrentá-la, brandindo no rosto dos colonos os atos reais favoráveis à libertação, ou obstaculizando, por mil modos, a ação dos que favoreciam aos escra­vistas. E. para tanto, batiam à porta do Vaticano sempre que preciso.

Datados de 7 de julho de 1550, e 21 de setembro de 1556, foram os decretos do Rei D. Carlos declarando livres os índios no Brasil, atos dos quais ninguém tomou conhecimento e nem levou em consideração, na colônia. A 20 de março de 1570. uma lei sancionada por El-Rei D. Sebastião modificou o status quo; pois esta, posto condenando a cativação de indígenas por meios ilícitos, terminava por permiti-la desde que decorrente de guerra justa previamente autorizada por Sua Majes­tade ou pelo Governador; e, ainda, em se tratando de prisioneiros de outros índios e destinados à antropofagia.

Considerando que os índios tinham por hábito reagir às provo­cações dos brancos, em regra por se verem acuados por estes e sem saída além da explosão; considerando, por igual passo, o costume da antropofagia em muitas nações indígenas, conclui-se que a lei de D. Se­bastião trazia, implicitamente, ampla autorização para a cativação do brasilíndio. E como por tradição, as cabildas se costumassem guerrear com o intuito de fazer escravos, contava ainda, o invasor, com o recurso de incitar discórdia entre aquelas, para depois, a pretexto de salvar os prisioneiros, tomarem a estes e, de cambulhada, os livres, escravizando a todos indistintamente.

Estava, dessarte, respeitado o contexto do ato sebastiânico. As demais exigências do instrumento de 20 de março de 1570 eram cum­pridas como possível, ou nem isso, que as delongas e as distâncias se encarregavam de relegar o fato ao esquecimento. (2)

Apesar das facilidades conferidas pelo ato de D. Sebastião, para o aprisionamento do gentio, os colonos não se deram por satisfeitos: queriam total liberdade de ação. E, de tal forma reagiram contra o ato de 20 de março, que, acovardando-se ante o clamor de seus súditos na América, El-Rei apressou-se a expedir carta regia de 1573. ou até antes, restabelecendo o antigo sistema dos resgates, posto que recomen­dando, como a imitar o avestruz quando em perigo, que: «No que toca ao resgate dos escravos, se deve ter tal moderação, que não me impida de todo o dito resgate, pe'a necessidade que as fazendas dele (índio) tem, não se perm'tam resgates manifestamente injustos e a devassidão que até agora nisso houve.» (*) Pois, sim. Seria D. Sebastião tão ingênuo que não compreendesse, até a reação à lei de 20 de maio de 1570, que esta sua nova recomendação não passava d e . . . palavras ao vento?

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De tal importância se revestia a questão da liberdade dos índios, que quando a carta règia de 10 de dezembro de 1572 estabe'eceu dois qovernos para o Brasil, os respectivos titulares — Antonio Salema, da parte Sul e Luiz de Brito e A'me'da, da parte Norte — antes de assu­mirem seus postos reuniram-se na Bahia, com o Ouvidor-Geral, e Padres da Companhia, para assentarem uma ação coordenada com relação àquela melindrosa situação. Desse encontro resultou um documento firmado a 6 de janeiro de 1574, estabelecendo os seguntes pontos: 1». Que seria legítima a escravização do índio aprisionado em guerra manifestamente lícita, entendendo-se como tal a guerra feita pelos Go­vernadores, segundo seus Regimentos, ou as que os Capitães se vissem forçados a levar a cabo precedendo, nesse caso, resolução com voto dos Oficiais da Câmara e outras pessoas experientes, dos Padres da Com­panhia, do Vigário e do Provedor da Fazenda, do que se deveria lavrar auto. 2 ' . Que também se reputaria legitimamente cativo o Índio que, maior de 21 anos e escravo de outros índios preferisse sê-lo de cristão. 3*. Que o resgate não era aplicável ao índio manso, o qual não podia ser, por aquele título, reduzido ao cativeiro, exceto se, fugindo da aldeia para o sertão, estivesse ausente mais de um ano. 4 ' . Que nenhum res­gate seria válido, quando feito sem licença dos Governadores ou Ca­pitães, devendo decidir sobre sua validade os Provedores e mais dois adjuntos eleitos em Câmara no princípio de cada ano. 5 ' . Que as pessoas que trouxessem índios de resgate, ou por mar ou por terra, dessem dêles entrada na respectiva Alfândega, antes de qualquer co­municação com alguém. 6' . Que só seria garantida aos colonos a pro­priedade sobre o índio de resgate, quando registrado, tendo por livres os que não estivessem. 7* Que os índios apreendidos em guerra que não fosse feita nas condições estabelecidas, seriam livres. 8* Que os infratores ficariam sujeitos à pena de açoites, multa e degredo, além das outras a que pudessem incorrer.» (4)

A lei de 20 de março de 1570 foi posteriormente confirmada por outra datada de 22 de agosto de 1587, na qual declarava-se que os índios que trabalhassem para os portugueses, não deviam achar-se como es­cravos; antes, como jornaleiros livres, a cujo arbítrio ficava trabalhar ou não, segundo lhe conviesse. Era, com efeito, uma novidade; e, nessa nova Lei, foi que se fundamentaram os jesuítas para se constitu'rem protetores e defensores dos indígenas. Atos como o de 1587 mais acirravam a luta entre os colonos e os roupetas; porque sabendo-se, como se sabe, que nos afazeres da colonização o português não levantava uma palha, atribuindo todo o trabalho aos escravos, conferir ao bugre arbítrio para aceitar ou não os encargos de tais atividades, era o mesmo que jogar pólvora na fogueira da contenda pela libertação do mesmo. E, entre o mar e o rochedo, sofria o marisco.. .

como se pode verificar, a questão da liberdade dos índios começava a tomar corpo, já se notando, à luz dos atos expedidos, a insegurança da Coroa, motivada, de um lado, pela ação dos missionários e catequistas; e, de outro, pelo comportamento rebarbativo dos colonos daquelas áreas

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em que não havia suficiente lastro econômico e financeiro para a impor­tação da mão-de-obra negra.

A 11 de novembro de 1595, uma Lei de Felipe II, derrogando a de D. Sebastião, surpreende os colonos e, pelos seus dispositivos, pro­voca forte abalo no sistema anteriormente estabelecido. Ao tempo, Por­tugal submete-se ao jugo de Espanha. A Coroa, em tôda a Península, é uma só. A novel legislação dispõe, para desespero dos invasores, que daí em diante «guerra justa» só seria considerada aquela determinada expressamente por Provisão particular de Sua Majestade, e não mais ao talante de Governadores nem de Capitães-mores, como atè então. (5) E, como para enfrentar a agitação que tal ato motivara entre os colonos, Felipe II, mostrando-lhes punho forte na decisão, expede Provisão a 26 de julho de 1596, confirmando a decisão do ano anterior. Logo se espalha a notícia por tôda a colônia de que haviam sido os jesuítas os mentores dos atos de 1595 e 1597. com isso, cresce o ódio dos pre­judicados aos loyolistas.

Mais apertada torna-se a situação para os colonos quando, sentando no trono de Espanha, Felipe III assina Provisão a 5 de julho de 1605, abolindo as hipóteses admissíveis de cativação dos índios, reconhe-cendo-os, ipso [acto, completa e inteiramente livres. E o faz sob a alegação de «ser assim mais fácil propagar-se a fé; porque conquanto houvessem alguma razões de Direito para se poder em alguns casos de introduzir o dito cativeiro, eram de tanto maior consideração as que haviam em contrário, especialmente pelo que tocava à conversão dos gentíos à nossa Santa Fé Católica, que se deviam antepor a tôdas as mais; e também pelo que mais Convinha ao bom govèrno e conservação da paz daquele Estado», que era o Brasil. E, como fuera o II, o III dos Felipes também achou de bom alvitre confirmar seu ato, o fazendo por Provisão de 4 de março de 1608. (6)

Prova do que na colônia os ânimos continuavam exacerbados e que pouco ou nenhuma obediência era prestada aos ditames do ato de Fe­lipe III, é que este Monarca viu-se na contingência de voltar ao assunto a 30 de julho de 1609, insistindo na manutenção da liberdade dos índios. O novo instituto tornava livres, segundo o direito e seu nascimento na­tural, todos os indivíduos da parte do Brasil, sem distinção alguma entre batizados e não batizados, que vivessem ainda como gentíos, conforme seus ritos e cerimônias; e determinava, por igual passo, que os silvícolas não podiam ser obrigados e nem constrangidos a serviços ou ao que quer que fosse contra sua livre vontade; e que os moradores e fazen­deiros que dêles se servissem, lhes pagariam seu trabalho, como a qual­quer outra pessoa; que os Religiosos da Companhia de Jesus, «por serem os mais bem aceitos dos gentíos» que dêles faziam grande crédito e confiança, e pelo muito conhecimento que tinham da matéria, «fossem ao sertão para os domesticar, e assegurar em sua liberdade, encami-nhando-lhes no que lhes convém, assim nas coisas tocantes à sua salvação, como nas da vida ordinária e comercial, precavendo-os dos enganos e

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violencias com que os capitães, donatários e moradores costumam traze-los do mesmo sertão». Fica patenteado, nesse final, que os dirigentes da colônia se mancomunavam com os colonos na perseguição e maltrato ao gentío.

Prosseguia o ato de Felipe III : que nas povoações portuguesas lhes seria guardado o direito de propriedade da mesma forma que nos bosques .— e por nenhum se lhes tomariam suas casas, nem se toleraria que sobre isso se lhes fizesse moléstia alguma; que o Governador, ouvido os Re­ligiosos, aos índios que descessem da serra assinassem terras para la­vrarem e cultivarem; que, uma vez estabelecidos, não pudessem ser des­locados para outros lugares, contra sua vontade, senão quando eles bem quisessem; que se lhes ordenaria um Juiz particular (nas povoações onde não os houvesse d'El-Rei ou dos donatários) português e cristão velho de satisfação com alçada no cível até dez cruzados e no crime até trinta dias de prisão; e que também se lhe ordenaria um Curador que. sob a direção dos Padres, olhasse pelos seus interesses, quando houvesse de ser empregados no serviço real ou particular, ou no dos mesmos Padres, que pelo seu trabalho lhes pagariam salários como a quaisquer outras pessoas, procedendo-se sumariamente e exclusivamente na cobrança dos ditos salários; que sobre os índios moradores nas po­voações das capitanias, não tivessem os Capitães e Donatários mais juris­dição e senhoria que sobre as outras pessoas livres, sendo-lhes absoluta­mente defeso lançar sobre eles quaisquer tributos reais e pessoais, anu­lando o Governador tudo que se praticasse em contrário e fazendo res­tituir os tributos ilegalmente cobrados.

A Lei de 609 ia mais longe: mandava libertar todos os índios que se encontrassem cativos em decorrência de compra ou de preia (o que modificava dispositivos de leis anteriores) posto permitindo aos com­pradores agirem contra os vendedores. Dispunha, por fim, que aos es-cravizadores da gente da terra fossem aplicadas as penas previstas nas Ordenações para os que o faziam a pessoas livres, no que se deveria proceder breve e sumariamente sem quaisquer restrições. (7)

Era, com efeito, o mais largo e corajoso passo dado em prol da li­bertação do silvícola; por essa razão é que, conhecidos os termos de tão magnânima lei, sobrevieram violentos protestos contra a mesma, na co­lônia, de que são exemplos: representação da Câmara da Paraíba datada de 19 de abril de 1610; cartas de 8 de maio de 1610 e de 7 de fevereiro de 1611, assinadas pelo governador D. Diogo Meneses Sequeira, de­pois Conde de Ericeira. E a Coroa, no caso barco a deriva, nave­gando ao sabor das correntes, tão logo informada das agitações advindas do ato de 1609, não titubeou em promulgar nova lei, esta com data de 10 de setembro de 1611, fazendo reviver disposições contidas na de 11 de novembro de 1595, em detrimento dos direitos dos índios. com isso, dava El-Rei longo passo à retaguarda.

A Lei de 1611, posto recapitulando determinações de atos ante­riores, no que concerne à confirmação da liberdade do índio, dispunha,

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consoante a síntese de João Francisco Lisboa, que: «sucedendo caso que os gentíos movam guerra, rebelião ou levantamento, convocaria o Governador uma junta composta dele, do Bispo (se fosse presente), do chanceler e mais membros da relação e de todos os prelados que pre­sentes fossem no lugar; e na dita junta se averiguasse se era justo, necessário e a bem do Estado, fazer-se a guerra ao gentío, e do assento que se tomasse, dar-se-ia parte a El-Rei com larga informação de tôdas as causas que a justificassem, e uma vez deliberada a guerra por El-Rei, e efetivamente feita, seriam escravos todos os gentíos que nela se ca­tivassem . Mas se houvesse perigo na dilação até vir a decisão, a guerra se faria desde logo, se assim fosse assentado. Todavia, os gentíos que se tomassem na guerra assim declarada, só ficariam cativos pro­visòriamente, para o que seriam assentados em um livro, com declaração dos lugares donde eram, nomes, idades, sinais e circunstâncias que se dessem na sua apreensão, a fim de que, sendo a guerra aprovada, ficassem também definitivamente apurados os cativeiros. Não sendo preenchidas as formalidades do registro, ficariam os índios livres ainda que aprovada fosse a guerra. Desaprovando-a, porém, El-Rei, obser-var-se-ía a respeto dos índios provisoriamente cativos o que êle fosse servido determinar. Mas seriam cativos os índios que estivessem presos para serem comidos por outros que os houvessem capturado em suas guerras intestinas, e ficariam pertencendo aos que os comprassem ou resgatassem, o que era para remédios bem seu, e salvação de suas almas. Se o preço da compia fôr taxado pelo Governador e adjuntos, o cati­veiro durará dez anos somente, no fim dos quais ficará o dito índio in­teiramente livre; se exceder, porém a taxa, ampUar-se-á o tempo da escravidão proporcionalmente. A legalidade do cativeiro, no alegado caso de resgate, depende de justificação, feita pelos compradores, das circunstâncias supramencionadas, atestando as pessoas que em con­formidade desta Lei podem ir ao sertão com ordem do Governador.

A mesma lei dispunha, ainda, que: «O mesmo Governador, ouvido o chanceler, e provedor-mor dos defuntos, nomeará sujeitos seculares casados e de boa vida, e de boa geração e abastados de bens, podendo usar, os que lhe parecerem mais capazes para serem cap taes das aldeias dos gentíos. Nomeará tantos quantas forem as aldeias, e por tempo de três anos, ou mais, enquanto El-Rei não mandar o contrário. Os capitães assim nomeados irão ao sertão persuadir aos gentíos desçam abaixo, usando para isso de meios e palavras brandas, afagos e pro­messas sem lhes nunca fazer força ou mol-éstias a'guma, por não que­rerem vir. Cada capitão levará consigo um relig'oso, preferindo sempre os da Companh :a de Jesus, praticados da língua, com que melhor per­suada o gentío a descer. como tenham descido, o Governador os repartirá em povoações de até trezentos casais, assinando-lhes lugar con­veniente, onde possam edificar a seu modo, e a tão razoada distância dos engenhos e matas de pau-brasil, que não possam prejudicar nem a uma, nem a outra coisa. O ouvidor, o chanceler e o provedor-mor, repartirá com 05 mesmos índios terras devolutas, pora as lavrarem e

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cultivarem. Em cada uma de suas aldeias haverá uma igreja, e um cura ou vigário, clérigo português, que saiba a língua, e em sua falta, religiosos, de preferência os da Companhia. O cura residirá na aldeia, e prestará seus ofícios aos índios, confessando-os. sacramentando-os e doutrinando-os nas coisas tocantes à sua salvação. Outrossim, residirá na aldeia o capitão com tôda família.» «Governá-los-á em sua vivenda comum, e comércio com os moradores. Promoverá a cultura das terras, e o ensaio das artes mecânicas. Apresentá-los-á ao Governador quando forem necessário ao real serviço. Dá-lo-á para o serviço particular, pela taxa geral que para todo o Estado do Brasil fôr estabe1 ecida pelo Governador de acordo com o chanceler da Relação.» «Fiscalizará a exatidão dos pagamentos, não consentindo que sejam lesados. Será juiz dos índios, esforçando-se pelos compor. Terá alçada civil e no crime já declaradas na lei anterior; e no que exceder dará apelação para o ouvidor da capitania; e déste haverá, se também exceder, para o pro-vedor-mor dos defuntos da relação do Estado; o qual será o juiz de tôdas as ape'açôes que houver das causas dos índ-os, e as despachará com adjuntos, como se pratica nos mais feitos. Terá regimento, orde­nado pelo governador de acordo com o chanceler e o provedor-mor, o qual logo se há de pôr em execução, não obstante ficar dependendo de aprovação regia. No regimento se determinará o modo e ordem que hão de guardar o capitão e o cura no governo temporário dos índios, bem assim como os ordenados que hão de vencer, pagos à custa dos mesmos índios, e não da real Fazenda.» (8)

Sobre a lei que se vem de referir, Perdigão Malheiro diz que: «Os colonos haviam assim conseguido a vitória, abrindo-se novo lugar à es­cravidão dos índios; o interesse pecuniário e metálico, a pretexto de paz do Estado. .. e mais b^m dos miseráveis que por tal sorte se pre­tendiam civilizar e cristianizar — levou de vencida a causa da justiça, da humaNºdade e da verdadeira religião, aliás bem ju'gada na anterior Lei de 1609. Em vez de progresso, foi um passo altamente retrógado, como a experiência veio confirmar.» (9) Tem-se, porém, a impressão, de que quando devidamente informado das fraudes às suas ordens, El-Rei não se quedava indiferente. Por exemplo, no regimento dado ao Ouvidor-Geral das Capitanias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Vicente, com o distrito das Minas, Bacharel Amancio Rebelo, datado de 5 de junho de 1619, Sua Majestade mandou — item V — tirar de­vassa «dos culpados em fazer entradas no Sertão e Patos, a resgatar gentio, e o venderem contra minhas ordens.» (10)

No Regimento para o capitão-mor do Maranhão, Antonio de Albu­querque, datado de 22 de março de 1619, lê-se o seguinte: «O negócio de mais consideração e importância para a dita conquista do Maranhão se poder conservar em paz e quietação como a experiência tem mostrado é o bom tratamento que se faz aos índios sem os agravar nem escanda­lizar de maneira que oprimidos e obrigados de nossas sem razões se alevantem e afastem de nossa obediência e amizade. E assim devem procurar êle capitão-mor e adjunto de guardar em tudo igualdade e

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justiça aos ditos índios não lhes tomando seus mantimentos, mulheres e filhos ou consentindo que lhes torne constrangimento a servidão alguma contra sua vontade ou as que a que como gente livre deve em razão de Vassalos a Sua Majestade porque do contrário sucede gravíssimos inconvenientes, e desordens e porquanto em seu informado que neste particular se tem procedido com grande devassidão na dita conquista, encomendo, e encarrego muito a eles capitão-mor. e adjunto que em nenhuma maneira tal consinta nem ponha tributos ou darios alguns aos ditos índios resgatando somente com eles os seus mantimentos e outras coisas no modo em que se permite com verdade e inteireza guardando-lhe e fazendo guardar em tudo inviolàvelmente.» «6. E porque só assim de continuarem índios buscando motivos, e causas frivolas e de pouco fundamento rompem com eles em guerra, hei por bem que nenhuma se possa dar daqui em diante sem primeiro preceder a causa e rompimento da parte dos mesmos índios e serem ê!es os que nos provoquem, e antes que assim se faça a dita guerra a justificação por outros com as pessoas religiosas que andarem na dita conquista declarando as razões e motivos porque se dá a dita guerra, e os que houve a parte dos índios que na dita guerra se tomarem serem e ficarem sempre forros, e como tais se revendicarem das pessoas em cujo poder estiverem se procederá contra eles capitão-mor e adjunto, e contra as mais pessoas que forem culpadas nesse caso por ser mui prejudicial, e contrário ao serviço de Deus e de Sua Majestade.» «7. E havendo acontecido que semelhantes guerras se tenham dado eles capitão-mor e adjunto procurarão sobre os índios que delas se trouxeram, e os porão em sua liberdade para fazerem de si o que quiserem como forros que são tirados das pessoas em cujo poder estiveram e querendo contudo alguns dêles ficar com as tais pessoas servindo-as voluntariamente por suas soldadas os registrarão nos livros onde se registram os índios forros da dita conquista para se saber como o são declarando o nome do tal índio, e da pessoa com quem está para a todo o tempo constar de sua liberdade.» (11)

Em 1625, chega ao Maranhão o Capitão-mor Baltazar de Souza Pereira, para governá-lo, trazendo a incumbência, em um dos capítulos do seu Regimento, de liberar todos os índios que se encontrassem es­cravizados. Tentou agir; mas o clima que se formou no Maranhão, e no Pará, contra dita ordem, levaram-no a sustar a execução da mesma, até que a corte se pronunciasse. Enquanto isso, pela mesma época, Bento Maciel Parente, terrível preador de índios, arrasava várias ca-bildas no extremo-norte. E, enquanto no Norte se tentava providência daquele alcance, posto obstada pela ação dos colonos, no Sul, a 9 de março daquele mesmo ano, bandeirantes de São Paulo, repartidos em quatro corpos, atacavam as Missões entre o Uruguai e o Paraguai, (12) com o objetivo de prear índios. Dai o decreto de 18 de setembro de 1628, que mandava proceder contra moradores de São Paulo que iam às aldeias dos índios reduzidos pelos jesuítas do Paraguai, e os cativavam, levando-os para vendê-los .como escravos. (13) . . .

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A carta regia datada de 5 de outubro de 1628 dizia que: «Neste despacho vai um papel, sobre as moléstias e agravos que se diz que os índios do Brasil, Maranhão e Pará, recebem dos Portugueses, e o remédio com que convirá atalhar a eles: — ordenareis que se veja na Mesa da Consciência, e tomadas as informações necessárias acerca do que se deve prover, fará melhor execução da Lei, e ordens dadas, to­cantes à liberdade do gentio, se consulte o que parecer, ordenando desde logo que os Clérigos que no Maranhão e Pará se ocupam em ensinar os índios, sejam primeiro examinados, e aprovados, para que conste que concorrem neles as partes e suficientes necessárias. — Cristóvão Soares». (14)

No Rio de Janeiro, a revolta ante a proibição de escravizar gentio foi de tal ordem, que a 13 de setembro de 1623 o prelado da cidade, D. Lourenço de Mendonça, descobre um barril de pólvora debaixo de sua cama. com mecha que ia ter à rua, atentado que foi atribuído a negociantes de escravos índios, irritados com a oposição que lhes fazia o prelado. (15)

Não termina, aí, a luta entre perseguidores e defensores dos índios; entre adeptos e não-adeptos da escravidão dos íncolas. A Lei de 10 de setembro de 1611 vigora até 1648. Durante mais de trinta anos o bugre sofre desenfreada perseguição dos preiadores, acobertados estes pelas facilidades que a referida Lei lhes oferta. É quando um Alvará, este datado de 10 de novembro de 1647. seguido de dois outros, expe­didos, respectivamente, a 5 e a 29 de setembro de 1649, dispuseram que sendo livres os índios, como fora declarado pelos reis de Portugal e pelos Sumo Pontífices, não houvesse administradores e nem adminis­trações (previstas na Lei de 1611) para os mesmos; e que estes, ao gozo de sua liberdade, pudessem servir e trabalhar com quem lhes pare­cesse e melhor os remunerasse. (16)

Pelo que ficou dito, posto de modo superficial, já se pode concluir dos incômodos com que se deparavam os exploradores da colônia, para utilização da mão-de-obra indígena, não só pelo despreparo do homem da terra como, e sobretudo, pelos fluxos e refluxos da política de liber­tação e de reconhecimento dos direitos naturais do mesmo. Mas. como também já ficou salientado, enquanto em certas áreas o colonizador se dispusera a importar africanos, como nas de plantação de cana e de fabricação de açúcar, em outras, de economia puramente extrativa, in­sistia êle na redução do íncola. Em razão disso, prossegue a questão.

Na Bahia, a Relação extinta em 1626 veio a ser restabelecida quase trinta anos depois, dando-se-lhe novo Regimento com data de 12 de setembro de 1652; e no § 21 desse instrumento, recomendava-se ao Go­vernador proteção aos índios de paz: «não consentindo que fossem mal­tratados, fazendo punir com rigor quem os molestasse e maltratasse; assim como que dessem ordem para que pudessem viver junto das po­voações dos portugueses, de modo que os do Sertão folgassem de vir

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para ditas povoações, obser\ando-se a lei de D. Sebasfão (a de 20 de março de 1570) e provisoes posteriormente promulgadas.» (1T)

Voltemos, porém, ao Norte. A 14 de abril de 1655, foi expedido por D. João IV o regimento disciplinador do governo do Estado do Maranhão e Grão-Pará, novamente reunidos. E, em tal documento, previa-se bom tratamento aos Índios, colocando-os ao abrigo de ve-xações e respeitando-se tudo que com eles se pactuasse; que se evitasse e impedisse o comércio dêles com estrangeiros, estes já em grande número estabelecidos naquele Estado, persuadindo-se os índios de só comerciarem com os portugueses. E, ainda, que a repartição dos índios fosse feita por dois arbítrios, um de escolha da Câmara e outro dos pá­rocos e missionários, à vista de um rol organizado no princípio de cada ano, com os nomes de todos os capazes de serviço, e dos moradores em condições de recebê-los, de maneira que a repartição fosse tão per­feita e igual, que grandes e pequenos, ricos e pobres, seculares e ecle­siásticos. sem exceção, ficassem satisfeitos consoante suas qualidades e estados.

Dispunha mais o Regimento, reproduzindo preceitos de lei ante­rior, sobre o tempo de serviço alternado, salários, modos de pagamento, depósitos prévios, etc.; que o prelado ou superior das missões marcaria c tempo das entradas; que o governador lhe daria a guarda militar que lhe pedisse, nomeando cabo dela pessoa indicada pelo prelado; que o cabo permaneceria a serviço da missão por todo o tempo a critério do prelado, e em nada mais interferiria, a não ser no comando militar da força, e nem se entenderia com índios sob pena de rigorosos castigos. Aos religiosos das missões não era permitido lavrar com índios, em tempo algum, canaviais, tabacos, nem qualquer outra lavoura ou en­genhos; o número das aldeias seria reduzido e aumentada a população de cada uma para ao menos cento e cinqüenta casais; aos índios era livre declarar se queriam ser vassalos ou simples aliados d'El-Rei; e, se não aceitassem qualquer de tais condições, nada lhes deveria acon­tecer, contanto que, não impedissem a pregação do Evangelho; e os índios que cometessem latrocínios e malefícios, ainda que em ajunta­mentos, como bandoleiros, seriam castigados consoante a lei comum do Reino. (18)

com o falecimento de D. Pedro IV. e a substituição de André Vidal de Negreiros na governação do Maranhão e Grão-Pará, fatos que ocorreram em 1657, os povos das capitais daquele Estado viram-se à vontade para contraporem-se às decisões do rei defunto e, por igual passo, vingarem-se dos sotainas; e, com efeito, rebelaram-se, de lá ex­pulsando os jesuítas a 17 de julho de 1661. Vieira foi preso no Pará, encaminhado ao Maranhão e, em seguida, deportado para Lisboa, tor­nando-se figura non grata à Coroa. Estendeu-se a impopularidade dos roupetas do Pará ao Rio de Janeiro e a São Pau'o, ùnicamente pela opo­sição que eles faziam à cativação dos índios. ( l0)

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A 20 de março de 1662, promulgou-se nova lei impedindo o cati­veiro dos índios, salvo quando estes fossem prisioneiros de guerra e esta declarada e levada a cabo mediante prévia licença do Governa­dor (20) Era a hita que recrudescia, após a aludida vitória obtida contra os loyolistas. A 12 de setembro de 1663, é expedida uma Pro­visão responsabilizando os jesuítas por abusos da lei de 1655; e, do mesmo passo, procurando atingir frontal e principalmente o Padre An­tônio Vieira. Abole o exercício da jurisdição temporal de qualquer ordem religiosa no governo dos índios; equipara as índias às órfãs do Reino segundo as Ordenações; permite «entradas» a qualquer tempo e sob a direção religiosa da Ordem à qual tocasse o turno, posto o repre­sentante dessa, que acompanhasse a «entrada», não pudesse trazer para si ou para a sua agremiação escravo algum dos resgatados, o mesmo acontecendo com os cabos da escolta, capitães-mores, governadores e ministros. Por fim, manda guardar a lei de 1655, mantidos os jesuítas no exercício da missão respectiva, exceto o Padre Vieira que caíra em desgraça: a Inquisição o condenara não só à privação de pregar e de voz ativa e passiva para sempre, como à reclusão por tempo indeter­minado numa Casa da Companhia.

Carta regia, datada de 29 de abril de 1667, assinada por D- Afonso e que vem ter às mãos do Governador Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, mantém a lei anterior, isto é, a de 1663, alterando-a, apenas, quanto à repartição dos índios, de maneira a não intervirem nela os missionários das aldeias: os Juízes Ordinários é que passam a ser os repartidores. como dita Carta Règia recomendasse ao Go­vernador pusesse ordem nur.ia situação que se arrastava há vários anos, Antonio Albuquerque aproveitou-se disso e acrescentou à Lei de 1663 algumas disposições da Carta Regia, com o que concentrou em suas mãos tudo que interessasse à situação dos índios, consoante se lê da carta datada de 3 de agosto de 1667, por êle remetida às Câmaras do Maranhão e Pará. (21) E para dirimir dúvidas que se levantassem sobre a execução das derradeiras leis, El-Rei expediu Carta Regia a 21 de novembro de 1673, dirigida ao então governador Pedro Cezar de Menezes, mandando que se publicasse e cumprisse as leis de 1663 e 1667; e que só os Governadores autorizariam a eleição dos cabos das entradas, dos repartidores, e as idas ao sertão para descer gentío.

A verdade, porém, é que na colonia, vasta e longínqua, os preia-dores não davam maior atenção ao chorrilho de atos proibitóríos de cati-vação dos índios, inclusive descumprindo as permissões contidas em tais atos. Leis, Proivsões, Cartas Regias, Regimentos, e t c , eram, a bem dizer, letras mortas. Haja vista que em 1664 os Tapuias do Urubu eram aniquilados; a 14 de fevereiro de 1676, paulistas comandados por Francisco Pedroso Xavier, depois de destruir aldeias indígenas, che­garam a São Paulo com 4.000 índios cativos. í22) Enquanto isso, o governo da metrópole insistia em recomendar bom tratamento aos índios, como constava do novo Regimento dos Governadores Gerais do Brasil, fechado a 23 de janeiro de 1677.

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Mas, para mais se afirmar a insegurança da Corôa, vai-se ver que esta, no Alvará de 12 de fevereiro de 1682, pelo qual conferia mono­pólio a uma companhia de comércio do Grão-Pará e Maranhão, modi­fica, em parte, a Lei de 1680. ao permitir aos contratadores ou assen-tistas fazer entradas ao sertão, e ter na Capitania até 100 casais de índios a seu serviço, contanto que os deixassem à sua custa e lhes dessem um sacerdote para os catequizar. Proibia, ainda, que qualquer pessoa, até mesmo o Governador, se intrometesse nesse negócio. (23)

como era de esperar, a lei de 1680 provocou graves manifestações de desagravo do povo maranhense, tanto que se fêz necessária a ida, para aquela Capitania, do General Gomes Freire de Andrade, senhor de extraordinários poderes, a fim de restabelecer a ordem. A tal ponto chegou a efervescência que com um Bando datado de 18 de março de 1684. Manoel Beckman (ou Bequimão) e mais procuradores do povo expulsam os jesuítas do Maianhão, que a 26 daquele mês embarcam para Lisboa. (24)

O ato de Beckman restabeleceu as administrações particulares dos índios, sob a alegação de que as aldeias, dirigidas pelos jesuítas, estavam muito minguadas, não baixavam indígenas para o serviço dos parti­culares e nem os havia para as entradas no sertão; com isso, scbrevinha o perigo de interromper-se o comércio, que aliás consistia na indústria dos mesmos índios, e até de perder-se a sua comunicação. «Era a es­cravidão disfarçada que se restabelecia», segundo Perdigão Ma-lheiro. (20)

Serenados os ânimos, no Maranhão, graças à ação do General Gomes Freire de Andrade, tornou-se possível a execução do «Regimento das Missões»; e, bem assim, da ordem de 21 de dezembro de 1686, re­pondo nas aldeias e roças dos índios os missionários delas retirados por força do levante de S. Luiz, entregando a direção daquelas, no espiritual e no temporal, aos jesuítas e a membros da Ordem de Santo Antônio e de outras, a quem permitia aldeiar índios. (26)

Abramos, aqui, rápido paréntesis para informar que por essa época franceses da Guiana vinham aprisionar e escravizar índios em terras brasílicas, levando a que El-Rei determinasse a Gomes Freire impedisse tais entradas, prendendo, inclusive, os que insistissem na empresa. (27)

Atendendo a sugestões feitas por uma junta composta do gover­nador Artur de Sá e Menezes, Padres Superiores, Ouvidor, e Desem­bargadores expediu El-Rei um Alvará com data de 22 de março de 1688, fazendo aditamentos ao Regimento, tais, como: l9, que os índios ou índias que casassem com escravos ou escravas, não pudessem servir aos senhores dstes, nem a seus ascendentes, descendentes, ou parentes de 2" grau por Direito Canônico, pelo dolo que nisso poderia haver; 2", que os que fossem às aldeias com licença do Governador, a apresntariam logo aos missionários ou diretores delas; nem se demorariam aí mais de três dias, salvo por causa justa atestada pelos missionários; tudo sob

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penas severas; 3 ' , que nos contratos com os índios interviesse o Gover­nador; mas com audiência do Ouvidor-Geral, quando fossem relativos à matéria de Justiça.

Tôdas as providências para reprimir os abusos, tornavam-se inúteis ante o inconformismo do colono com as dificuldades que se lhe opunham para cativar índios a seu talante. De nada valeram, ainda, as cartas regias de 15 de março de 1696 e 20 de novembro de 1699, (28) reco­mendando às Juntas das Missões que zelassem pelo cumprimento das leis; e nem modificaram a situação as providências sugeridas pela refe­rida Junta aos governos da colônia e da metrópole. com a faculdade de resgatar e cativar, constante da lei de 28 de abril de 1688, tal foi o abuso na violação das determinações ali contidas; e de tal forma se generalizaram as infrações, que foi necessário um ato d'El-Rei per­doando os infratores, pois raro o morador que não estivesse incurso nas penas da lei: o Alvará de 6 de fevereiro de 1691, assinado por D. Pedro II.

Carta Regia de 15 de junho de 1706, mandou que os índios des­cidos pelas tropas de resgate, posto em cativeiro já admitido pelos mis­sionários do distrito onde se desse o resgate, seriam submetidos nova­mente à Junta das Missões, no Pará, para serem segunda vez exami­nados acerca de seus cativeiros, e reconhecer se o Missionário fêz bem, ou mal sua obrigação. . .», quando, no último caso, o índio seria posto em liberdade. (29)

A 5 de junho de 1715, foi expedida uma carta regia proibindo o cativeiro injusto dos índios, coisa vaga e sem contextura que, por sinal, não mereceu a mínima atenção. Tanto assim que apenas decorridos menos de três anos, ou seja, a 9 de março de 1718, uma nova Provisão, posto reconhecendo a liberdade do Gentio, recomendava e sancionava a escravização dos que andassem nús, atropelassem as leis da natureza, não fazendo diferença de mãe e filha para satisfação de sua lascívia, e comerem-se uns aos outros. (30)

É admirável como a Coroa, na questão da liberdade dos índios, decidia ora de uma, ora de outra forma. Por Carta Regia de 30 de maio de 1708, por exemplo, El-Rei autorizava o resgate de 200 índios para com o produto da venda dos mesmos, auxiliar-se a construção de uma Igreja Catedral no Maranhão. (31) E, pela Carta Regia de 10 de julho de 1726, El-Rei D. João manda dizer a Rodrigo Cezar de Me­nezes, Governador de São Paulo, que posto reconhecendo o valor dos Paulistas e os enormes serviços por eles prestados à Coroa, não podia atender ao pedido daquele Governador no sentido de permitir a cati-vação de índios pretendida pelos mesmos Paulistas. No entretanto, a 25 de setembro de 1727, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, substi­tuto de Rodrigo Cezar, baixa ato dizendo-se autorizado por Sua Ma­jestade a permitir que «todos os moradores desta Capitania poderão ca­tivar a todo o gênero de Gentio. . .» (32)

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Quando Sua Majestade se irritava com nações indiáticas brasílicas. mandava que se lhes fizesse guerra feroz, aprisionando-os e escravi-zando-os. Assim, foi, apenas para exemplificar, com os índios Paiaguá que atropelavam o caminho para as minas de Mato Grosso; e a Provisão de 15 de dezembro de 1728 determinou «mandar dar guerra em obser­vância da minha lei em que dispensa lhe façam cativando-os e vendendo-os em praça pública tirando os quintos para a Minha Fazenda Real depois de satisfeita a despesa que se fizer com a tropa se repartam as peças que sobejarem com os Cabos e Soldados dela. . . (33) E não ficou só nessa ordem, pois outra provisão, esta de 6 de março de 1732, deter­minava idêntica medida. (34)

com apoio, por certo, naquela provisão de 6 de março de 1732, é que a 1* de agosto de 1734 uma expedição partida de Cuiabá, sob o comando de Manoel Rodrigues de Carvalho, composta de 28 canoas de guerra e mais oitenta e tantas canoas e balsas de transporte, levando 842 homens, quatrocentos dos quais chegados de São Paulo, desceu o rio Paraguai e derrotou uma flotilha de Guaicurus e Paiaguás, aiiados, ficando cativos 292 indios. (35) Era a chamada «guerra justa», tantas vêzes alegada e outras tantas autorizada contra diversas tribos.

Coube a D. José expedir a Lei de 6 de junho de 1755, mandando observar a bula de Benedito XIV e a Lei de 1" de abril de 1680, de­clarando os índios do Maranhão livres em tudo e por tudo, facultando-Ihes servir a quem bem quisessem, julgando-os capazes de tôdas as honras, privilégios e liberdades, extinguindo as antigas administrações e administradores, etc. (n) Por Alvará de 7 de maio de 1758, amp.¡ou­se a todo o Brasil as disposições da Lei de 1755, acabando com o cati­veiro dos índios. (37)

como, no Maranhão e no Pará, o Diretório organizado pelo Gover­nador Francisco Xavier de Mendonça Furtado teimasse em conservar resíduos da escravidão dos índios, foi expedida a Carta Regia de 12 de maio de 1798, extinguindo o Diretório e considerando os índios de todo livres.

Aconteceu, porém, que D. João VI achou por bem pôr as unhas de fora: por cartas regias de 13 de maio, de 5 de novembro e de 2 de dezembro, de 1808, a Corte, instalada no Brasil, autorizou guerra contra os índios de São Paulo e de Minas Gerais, devendo os prisioneiros gentios ficarem cativos por prazos que iam de 10 a 15 anos. Mas a Lei de 27 de outubro de 1831, tornou sem efeito aquelas cartas regias, e consolidou, definitivamente, a liberdade dos índios no Brasil. (38)

Mesmo assim, ainda havia quem se comprazesse em perseguir e maltratar índios, como, por exemplo, aquêle Governador de Mato Grosso, que foi censurado pelo Aviso de 15 de junho de 1850, do Ministério dos Negócios do Império, pela violência que empregava contra os ín­colas. (39)

* * *

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N O T A S E BIBLIOGRAFIA

I ) Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, 2* Parte, pg. 27, Rio de Janeiro, 1866.

2) Artur Cezar Ferreira Reis explica o eufemismo das «guerras justas» com as seguintes palavras: «A guerra justa», todavia, para ser declarada, tinha de ser precedida de um exame prévio da situação. Ouviam-se os depoimentos dos que haviam padecido o ataque. Examinava-se o caso em si, e se se chegasse à evidência de uma agressão ao colono pacífico, decretava-se a punição. De tudo lavrava-se a competente ata e se dava ciência a Sua Majestade. Os abusos, porém, não tinham conta.» ( . . . ) «A «justa guerra», sempre invocada, nem sempre era justa ou quase sempre era injusta. E quando ocorria a circunstância de ser aprovada por Sua Majestade, ouvido antes o Conselho Ultramarino, através de expediente buro­crático demorado pela distância e pelo próprio emperramento da máquina administra­tiva, a desaprovação constituía letra morta. A guerra já fora levada a efeito e a escravização conseqüente não se revogava. Não havia possibilidade de descobrir onde pairava o índio de que se furtara a liberdade, vendido a uns e outros, como uma mercadoria de alto preço, passando, por transferência na operação mercantil, a possuidores diferentes.» (Artur Cesar Ferreira Reis, Tempo e Vida na Amazônia, pg. 50, Manaus, 1965) .

3) Perdigão Malheiro, op, cit., 2* parte, pg. 4 1 .

4) Perdigão Malheiro, op. cit, 2' parte, pg. 42.

5) O governador D. Francisco de Souza foi que não deu maior importância ao Alvará de 11 de novembro de 1595 que proibiu a escravidão do índio. Ao revés, não só não se esforçou em cumprir aquele ato, como até protegeu, ajudou e fomentou as entradas ao sertão, na esperança de que estas descobrissem minas de metais preciosos, que era o seu sonho.

6) Perdigão Malheiro, op. cit., 2" parte, pg. 46.

7) João Francisco Lisboa, Obras, I, pg. 372, Lisboa, 1901.

8) João Francisco Lisboa, op. cit., pg. 375.

9) Perdigão Malheiro, op. cit., 2* parte, pg. 52.

10) Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa, 1613-1619, pg. 382-384, Lisboa, 1855.

II ) «Livro Segundo do Governo do Brasil» in Anais do Museu Paulista, III, 2* parte, pg. ,93-94.

12) Barão do Rio Branco, Efemérides Brasileiras, pg. 150, Rio de Janeiro.

13) J. J. de Andrade e Silva, Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa, 1627-1633, pg. 35, Lisboa.

14) J. J. de Andrade e Silva, op. cit. pg. 137.

15) Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 429.

16) Martins Junior. História do Direito Nacional, pg . 233.

17) Perdigão Malheiro, op. cit., 2' parte, pg. 59.

18) No Regimento dado a André Vidal de Negreiros, Governador do Maranhão e Grão-Pará, por D. João IV, a 14 de abril de 1655, constava o seguinte: «3 . Pri­meiro vos encomendo as coisas da nossa Santa Sé, que procurareis com todo o cuidado por aqueles Gentíos; entendendo que este é o negócio a que principalmente vos enviei a esse Estado; e assim favoreceréis muito aos Religiosos e Pregadores, e a tôdas as outras Eclesiásticas, que nele hão de tratar da conversão dos Infiéis, pro­curando que sejam muito respeitados dos Portugueses, e de tôda a outra gente, como 0 devido; para que com este exemplo, se movam mais os Gentíos, e sejam de mais fruto as pregações entre eles. » ( . . . ) «8. Os Gentios que se vierem converter, e

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para isso baixarem dos Sertões, favoreceréis muito em tudo que puder ser; ordenareis que sejam bem tratados, que não recebam vexações de meus vassalos, nem de obras, nem de palavra, para que esta boa correspondência seja parte, para que todos julguem de ser Cristãos, e viverem à sombra dos Portugueses; e ordenareis que a gente de guerra, e os povoadores os não agravem, nem as suas mulheres, e filhos; porque sou informado que são tratados rigorosamente não lhes guardando concerto, nem palavras, de que tem resultado grandes desordens. Enquanto as coisas desse Governo não estão mais fundadas, importa muito encaminhar os Jndios à minha obediência pelos meios mais suaves, e seguro que possa ser.» ( . . . ) «42. Sobre a forma que é licito haver cativeiro dos índios naturais desse Estado: mandei passar agora nova lei que se vos envia, revogando as mais antigas, a qual guardareis vós, e vossos sucessores, e também a farei guardar a todos tão inteiramente como nela se contêm; e fio de vós o fareis da maneira que resulta em grande serviço de Deus, e Meu. e que tenha em muito que vos agradecer; o que se necessário é vos torno a encomendar, e a encarregar de novo, e que logo a receberdes, o façais.» (Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, tomo I, pgs. 27, 29 e 42, Pará, 1902) .

19) Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 328.

20) José Justino de Andrade e Silva, op. cit., 1657-1674. pg. 128, Lisboa, 1856.

21) Idem, ibidem.

22) Barão do Rio Branco, op. cíí., pg. 81 .

23) Perdigão Malheiro, op. c.V., 2" parte, pg. 72.

24) Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 165.

25) Dispunha a Lei de 1684: «1 ' , que os moradores, ou individualmente ou reu­nidos em sociedades e companhias, averiguando o número de indios de que houvessem mister para suas fazendas e serviços, e com a devida autorização do Governador, pudessem fazer descimentos; 2º, que os indios fossem sustentados pelos administradores e se lhes dessem as suas lavouras; 3", que para as entradas iria sempre um Religioso da Companhia, ou de Santo Antônio; ao qual ficariam sujeitos no espiritual, levantando os moradores Igreja para o culto; 4' , que, no temporal, seriam livres os descidos conforme as leis em vigor; decidindo o Governador as suas dúvidas, ouvindo sempre o padre respectivo; 5' , que a distribuição dos índios entre os moradores seria feita na proporção do cabedal com que cada um houvesse concorrido para a entrada, des­cimentó e fundação da aldeia; 6', que os índios trabalhariam, por salário, uma semana para os moradores; ficando-lhes uma semana livre para si em suas aldeias e lavouras; 7°, que não seriam obrigados a trabalhar se lhes não fosse pago o salário do mês antecedente; 8°, que, para as entradas, só haveriam os moradores metade dos da sua lotação, ficando a outra nas aldeias para conservação desta; 9°, que destes serviços eram isentas as mulheres; podendo elas, se quisessem, acompanhar os maridos ou pais no trabalho, contanto que viessem dormir à aldeia.» (Perdigão Malheiro, op. cit*, 2* parte, pg . 7 3 ) .

26) O Regime das Missões reconhecia, inicialmente, que as leis beneficiárias dos índios haviam sido inutilizadas «pela malícia dos moradores que inventam e descobrem novos modos de se não observarem,» razão pela qual, dispunha: 1", que os Padres (jesuítas) tornassem ao dito Estado; 29, que teriam o Governo não só espiritual, como dantes tinham, mas também o temporal e político as aldeias de sua administração, como igualmente se concedia aos padres de Santo Antônio relativamente às suas; com declaração de se observarem nesse governo as leis regias, em ordem a prestarem-se os índios para o seu serviço, sem que contudo fossem sempre os mesmos à arbitrio dos procuradores dos índios, um em São Luiz e outro em Belém; aos quais se dariam alguns índios para o seu serviço, sem que contudo fossem sempre os mesmos ã arbitrio dos Padres; 4 ' , que seriam eleitos pelo Governador sob proposta do Superior; e se lhes daria Regimento; 5', que nas aldeias não poderiam morar senão os índios e suas famílias, sob pena de açoites e degredo para Angola; 6', que ninguém poderia ir às aldeias tirar índios para seu serviço ou para qualquer outro fim, sem licença; tudo sob pena de prisão, multa e degredo para Angola; 7', que, constando que os índios e índias

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eram induzidos a saírem das aldeias para se casarem com escravos, ficassem em tal caso livres os escravos, e se mandassem para as aldeias; mas que, não constando do induzimento, ficariam sempre os índios e, índias obrigados a permanecer nas aldeias, embora com licença do Bispo lhes fosse lícito sair para ver o cônjuge; Outrossim que, pela fraqueza das indias, verificando-se adultério, de que provinham graves danos às aldeias, o Ouvidor Geral tirasse devassa (por exceção à lei geral em contrário sobre tal crime) em cada ano, punindo com degredo para Angola o adúltero e a adúltera (caso o marido não a quisesse receber) como parecesse mais benignamente à Junta das Missões; 8°, que os padres tivessem muito em cuidado o aumento das povoa­ções Indianas aldeias, por ser isso conveniente não só à segurança e defesa do Estado. mas às entradas nos sertões e serviço dos moradores; 9°, que igual cuidado tivessem de descer dos sertões novas aldeias de indios, persuadindo-os no trato e comércio dos colonos; 10', que, para evitar engano no comércio e serviço dos índios, seriam os preços dos gêneros taxados pela Câmara com assistência do Governador, Ouvidor Geral, e Procurador da Fazenda; e os salários pelo Governador com assistência dos Padres da Companhia e de Santo Antônio, ouvidas as Câmaras; de que tudo se deveria lavrar assento; 11 ' , que os salários seriam pagos metade no começo e o resto no fim do serviço; 12', que se criassem dois livros para matrícula dos Índios capazes de servir, a saber: de 13 a 50 anos de idade; 13', que dêles se iriam eliminando os falecidos e incapazes de servilo; e seriam reformados bienalmente; 14', que a repartição dos índios se fizesse por tempo de seis meses para Belém, e de quatro meses para São Luiz (podendo permitir-se até seis); derrogada nesta parte a lei de V de abril de 1680; 15', que a repartição seria em duas partes, e não mais em três (como fora orde­nado), ficando uma das aldeias, enquanto a outra ia ao sertão; 16', que os Padres da Companhia não seriam contemplados nessa repartição por assim o haverem eles pedido, dando-lhes o Governador, em compensação, para os seus serviços ou das aldeias de Pinaré e Gomaré, ou de outras que pudessem (em falta) descer, com a condição de não servirem aos moradores; 17', que para cada residência dos Padres em distância de 30 léguas de São Luiz e Belém, o Governador daria 25 índios; que nas outras residências só poderiam servir os das aldeias próximas; 18', que a repartição dos índios pelos moradores seria feita pelo Governador, e em Sua falta pelo Capitão-mor com assistência de duas pessoas eleitas pela Câmara, do Superior das Missões, e Párocos das aldeias, sem que nelas fossem contemplados o Governador e tais pessoas; expedindo-se licença aos moradores para irem às aldeias receber os do seu quinhão; 19', que atenta a falta de índios nas aldeias de repartição, e tendo os moradores necessidade de ir ao sertão por motivo do comércio, determinado que fosse o número de índios necessários para os acompanharem, apenas metade se tirasse das aldeias ditas, c os outros das outras aldeias mediante o salário taxado; contemplados também os moradores que tivessem escravos próprios, visto a necessidade de ficarem, estas nas fábricas e o perigo de fugirem nos sertões; 20', que algumas índias poderiam ser repar­tidas. a salário, pelos moradores, para fazerem a farinha quando fosse tempo apro­priado, e lhes criarem de leite os filhos, a arbítrio dos Missionários; 21 ' , que as aldeias fossem de 150 vizinhos, na forma do Regimento dado ao Governador; exceto quando se compuzessem de nações inimigas, caso em que dentro do distrito das resi­dências poderiam ser estabelecidos em pequenas freguesias; 22', que os índios descidos de novo seriam isentos de servir por dois anos, por ser necessário este lapso de tempo para serem doutrinados na fé (primeiro motivo de sua redução) e para fazerem suas raças e se acomodarem à terra; antes que se arrependessem por causa do jugo do serviço; que a respeito de todos os índios descidos se deveriam religiosamente observar os pactos que os mesmos se fizessem no sertão pelos missionários por ser isto conforme a fé pública, fundada no Direito Natural Civil, e das Gentes; que se não quisessem os índios descer, mas se mostrassem inclinados a observar a fé de Cristo nos seus sertões, os Padres se estabelecessem nas aldeias nos mesmos sertões de modo o mais cômodo — porque não permite a justiça que sejam tais homens obrigados a deixar as terras que habitam — quando não repugnam ser Cristãos, e além disso é conve­niente que as aldeias se dilatem pelos sertões para que se possam mais facilmente penetrar e se tirem as vantagens pretendidas; 23 ' , finalmente que os Governadores dessem aos Missionários todo o auxilio, ajuda e favor para a sua segurança nas estradas nos sertões, e para mais fàcilmente fazerem as missões; que, outrossim, a

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Junta das missões, ã qual se daria Regimento, fizesse cumprir e executar fielmente o presente Regimento. — Junta das Missões — do Maranhão e Pará; que efetivamente aí funcionou. — (Extraído do Regimento das Missões para Redução do Gentío, do Estado do Maranhão e Pará ao Genfio da Igreja, e Repartição do Serviço dos Índios que depois de Reduzidos Assistem nas Aldeias, tirado de um manuscrito quase ilegível por Perdigão Malheiro, op. cit., 2? parte, pgs . 76-79) .

27) Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. I. pg. 84. com re­lação a holandeses, veja-se a carta à pg . 111. Veja-se, também. Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil, I, pg . 320, Lisboa 1955.

28) Melo Moraes, Corografia, IV, pg . 129. 29) Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, I, pg. 125. 30) Martins Junior, op. cit., pg. 277. — Em seu preâmbulo dizia a Provisão:

Acedendo às representações do Governador e tendo em vista os pareceres das Juntas sobre descimentos de índios para abastecer as aldeias, e as lavouras e fazendas dos moradores, e para a defensa do Estado, livrando-os sobretudo da barbaridade em que vivem, devorando-se uns aos outros; sobre consulta do Conselho Ultramarino foi de­cretado: 1', que, quanto aos descimentos voluntários dos índios que, a instâncias e diligências dos Missionários, se quisessem de'xar conduzir e reduzir, tratados, não como escravos, mas como livres, não podia haver dúvida que fossem lícitos; 2", que, quando, aos descimentos [orçados, precedendo ameaças ou força, podia haver escrúpulo porque — estes homens são livres e isentos da minila jurisdição (dizia El-Rei) que os não pode obrigar a saírem de isuas terras para tomarem um modo de vila de que eles se não agradam, o que, se não é perigoso cativeiro, em certo modo o parece pelo que ofendo a liberdade'.. Contudo, se estes índios (continua a Provisão) são como os tapuias bravos, que andam nús, não reconhecem Rei nem Governador, não vivem com modo e forma de República, atropelam as leis da natureza, não fazem distinção de mãe e filha para satisfação da sua lascívia, comem-se uns aos outros, sendo esta gula a causa injustíssima de suas guerras, e ainda fora dela os excita a frecharem os meninos e inocentes, neste caso será permitido fazê-los baixar à força e por mêdo para as aldeias, por ser isto conforme à opinião dos Doutores sobre a matéria; com as duas limitações referidas na mesma lei a saber: 1", que se não façam tanto à força que hajam mortes, exceto quando se torne indispensável ju^ta defesa pela oposição dos mesmos índios; 2' , que, se depois de aldeiados, fugirem para viverem bárbaros com ofensa das leis da natureza, possam ser constrangidos a voltar, sem que sejam mortos, e não se entende cativos os que voluntariamente tornaram.» (Perdigão Malheiro, op. cit., 2» parte, pg. 86) .

31) Perdigão Malheiro, op. cit., 2* parte, pg. 88.

32) Documentos Interessantes, XVIII , pg. 201 e XXVI , pg. 32 .

33) Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, XXXV, pg. 221 .

34) Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 146.

35) Idem, pg. 355.

36) «que os indios, como livres e isentos de tôda a escravidão, podem dispor de suas pessoas e bens como melhor lhes parecer, sem outra sujeição temporal que não seja a que devem ter às minhas leis, para à sombra dela viverem na paz e união cristã, e na sociedade civil, em que, mediante a Divina Graça, procuro manter os povos, que Deus me confiou; nos quais ficaram incorporados os referidos índios, sem distinção ou exceção alguma, para gozarem de tôdas as honras, privilégios e liberdades de que os meus vassalos gozam atualmente conforme as suas respectivas graduações e cabe­dais.» (J . Barbosa Rodrigues, Exploração e Estudo do Vale do Amazonas, Rio Ta' pajoz, pg. 128, nota, Rio de Janeiro, 1875) — A Lei de 6 de junho de 1755, no seu preâmbulo dizia: « . . . mandando examinar pelas pessoas do meu Conselho e por outros Ministros doutros e zelosos do serviço de Deus e meu, e do bem comum dos meus vassalos, que me pareceu consultar, as verdadeiras causas com que desde o cobrimento

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do Grão-Pará e Maranhão até agora não só se não tem multiplicado e civilizado os índios daquele Estado, desterrando-se dele a barbaridade e gentilismo, e propa-qando-se a doutrina Cristã, e o número dos fiéis alumiados da luz do Evangelho, mas antes pelos todos quantos índios se desceram dos sertões para as Aldeias, em lugar de prosperarem e propagarem nelas de sorte que as suas comodidades e fortunas ser­vissem de estímulo aos que vivem dispersos pelos matos para virem buscar nas po­voações pelo meio das felicidades temporais o maior fim da bemaventurança eterna, unindo-se ao Grêmio da Santa Madre Igreja, se tem visto mui diversamente, que, ha­vendo descido muitos milhões des índios, se foram extinguindo de modo que é muito pequeno o número das povoações e dos moradores delas, vivendo ainda estes poucos em tão grande miséria que, em vez de convidarem e animarem os outros indios bár­baros a que os imitem, lhes servem de escândalo para se integrarem nas suas habitações silvestres com lamentável prejuízo da salvação de suas almas, e grave dano do mesmo Estado, nao tendo os habitantes dele quem os sirva e ajude para colherem na cultura das terras os muitos e preciosos frutos em que elas abundam: — «foi assentado por todos os votos, que a causa que tem produzido tão perniciosos efeitos consistiu, e consiste ainda, em se não haverem sustentado eficazmente dos ditos índios na liberdade que a seu favor foi declarada pelos Sumos Pontífices e pelos Senhores Reis, meus predecessores», observando-se no seu genuíno sentido as leis por eles promulgadas. . . «cavilando-sc sempre pela cobiça dos interesses part iculares. . .» Conseqüentemente dispôs-se: l9, que os índios são livres em tudo e por tudo, conforme a lei de l9 de abril de 1680, que se mandou observar; 2'', que não houvesse mais administrações, nem administradores; sendo facultado aos índios, como livres que são, servir a quem bem quiserem, na forma da lei de 10 de novembro de 1647; 39, que como tais ficariam sujeitos às leis por incorporados aos confiados ao governo de El-Rei, e hábeis, como os outros súditos, sem distinção nem exceção alguma, para tôdas as horas, privilégios e liberdades; 49, que a respeito dos então possuídos como escravos, o mesmo se enten­dera, observado o § 9° da lei de 10 de setembro de 1611, com exceção somente dos descendentes de prêtas escravas que continuarão no domínio dos senhores enquanto outra providência se não desse; 59, que, porém, para obviar os abusos que esta exceção poderia criar, os indios se poderiam ter por livres só pela presunção do Direito Divino, natural e positivo a favor da liberdade; incumbindo a prova do contrário a quem requeresse contra a liberdade, ainda sendo réu; 6', que estas questões seriam tratadas sumariamente, pela verdade sabida, em uma só instância, e decididas em Juntas com­postas do Diocesano, Governador, Superiores das Missões de Jesus, Santo Antônio, Cario e Mercês, Ouvidor-Geral, Juiz de Fora, e Procurador dos índios; sendo necessário pluralidade de votos contra a liberdade e bastando a seu favor o empate dêles; devendo a apelação ser apenas no efeito devolutivo, e não suspensivo, para a Mesa da Cons­ciência e Ordens, onde seriam tais causas decididas de preferencia a quaisquer outras; 7°, que, convindo promover a lavoura e indústria, interessando nisso reciprocamente os moradores e os índios, o Governador, em Junta de Ministros letrados, e ouvindo o Governador e Ministros de São Luiz do Maranhão, com acordo das duas respectivas Câmaras, taxasse os salários ou jornais devidos aos índios conforme o preço comum do Estado; os quais seriam pagos por férias no fim de cada semana, em dinheiro, pano, ferramenta, ou outros objetos, como melhor parecesse aos trabalhadores; autorizada a sua cobrança executivamente, conforme o Alvará de 12 de novembro de 1647, e abolidas quaisquer outras taxas; 89, que aos índios ficava restituído o livre uso de seus bens, até agora impedido com manifesta violência; observando-se o § 49 do Al­vará de 1' de abril de 1680; e conseqüentemente se deveriam erigir em vilas as aldeias que tivessem o competente número de índios, e em lugaras as mais pequenas; reparitndo-se pelos mesmos as terras adjacentes às suas respectivas aldeias; sustentando-se os Índios no domínio e posse das terras para si e seus herdeiros; e castigando-se com todo rigor quem os perturbasse; 9". que, sendo o principal fim dilatar-se a pregação do Evangelho e trazer os índios ao Grêmio da Igreja e sendo dificil persuadi-los a descer as povoações, nos sertões fossem aldeiados na sobredita forma, levantando-se

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Igrejas, e convidando-se missionários que os instruíssem na fé; 10', que aos mesmos índios seria livre o seu comércio ,ainda no sertão, por convir a eles próprios e aos moradores, cuidando-se igualmente da sua instrução civil.» (Perdigão Malheiro, op. cíí., 2' parte. pg. 98) .

37) Barão do Rio Branco, op, cit., pgs. 296 e 232.

38) J. Mendes Junior, Os Índios do Brasi!, pg. 53 . — Antes da lei revogadora das Cartas Regias de D. João VI, em 1808, uma resolução do Senado, tomada a 3 de novembro de 1830, sancionou Lei decretada pela Assembléia Legislativa em favor dos Índios que ocupavam a parte oeste da estrada da Vila de Faxina à de Lajes, até então tratados como prisioneiros de guerra.

39) Coleção Decisões do Governo do Império do Brasil, 1850, pg. 32.

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GUAJARINA, FOLHETARIA DE FRANCISCO LOPES

VICENTE SALLES

INTRODUÇÃO

E M 1914 surgiu, em Belém do Pará, uma editora que fundiu dois campos aparentemente opostos, por que dedicados cada qual a

suprir mercado de natureza diversa e especializada: respectivamente, o de consumo da «literatura sertaneja», ou cordel, semelhante à nordes­tina, e a do cancioneiro popular urbano e seresteiro, conforme o modelo carioca.

A empresa foi iniciativa do pernambucano Francisco Rodrigues Lopes. Denominou-se Editora Guajarina e alcançou largo prestígio de folhetaria, concorrendo, durante várias décadas, com as mais reno­madas do Nordeste.

Da biografia de Francisco Rodrigues Lopes consta que nasceu em Olinda, Pernambuco, no dia 12 de outubro de 1883 e que faleceu em Belém a 29 de junho de 1947. Filho de João Rodrigues Lopes e de Guilhermina Rodrigues Lopes. Viveu na Capital paraense mais de quarenta anos, considerando-se que se casou em Belém com Elvira Ny-lander e, nesta cidade, em 1907 lhe nasceu o filho Amadeu Lopes. (1)

Francisco Lopes (êle geralmente suprimia o Rodrigues) tinha sido operário gráfico em Belém e em 1914 instalou sua primeira tipografia. Ao lado desse negócio, começou a agenciar as editoras do Nordeste da chamada «literatura sertaneja» — aventuras, fatos, narrações, roman­ceies, contos e novelas — como lemos nos seus primeiros anúncios, historietas em versos: «Para distrair, lede as historietas em verso de que a nossa casa é a única agência nesta Capital. Preços para tôdas as bolsas. Grande redução para revendedores». Dessa tipografia, sai­riam logo folhetos de poetas nordestinos, livros de orações, pequenas narrativas em prosa e algumas revistas. A primeira publicação perió­dica parece ter sido O Martelo, jornal crítico-humorístico, de que não temos outras notícias. Em 1919 lançou mais duas publicações: O

(1) Amadeu Nylander Lopes nasceu em Belém a 18 de abril de 1907 e faleceu nesta cidade recentemente (abril de 1971). Foi poeta e muito colaborou nas inicia­tivas do pai. Dele consegui apreciável documentação.

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Mondrongo, (2) também humorístico, e Guajarina, revista quinzenal, cujo primeiro número data de 1« de fevereiro de 1919, dirigida por Tito Barreiros e secretariada por Peregrino Júnior.

Tendo jovens intelectuais à frente dessas publicações, a iniciativa de Francisco Lopes logrou rápido desenvolvimento. Em torno dele girava a inteligência moça do Pará: Peregrino Júnior, Osvaldo Orico, Jõnatas Batista, Eneida, Ernani Vieira, De Campos Ribeiro, Paulo Oli­veira, Bruno de Menezes, Martins e Silva, Eustaquio de Azevedo (tal­vez o mais velho do grupo). Jaques Flores e Lindolfo Mesquita, muitos dêles ainda vivos e o último também autor, com o pseudônimo «Zé Vicente», de inúmeros folhetos editados pela Guajarina.

O Mondrongo não ficou apenas na sátira e no humorismo. Ainda em 1919 lançou um volume de pouco mais de 100 páginas com o título Ao Som da Lyra, contendo letras de modinhas, canções e cançonetas. Essa publicação, réplica dos famosos livrinhos da Editora Quaresma, do Rio de Janeiro, e de outras coleções que se imprimiam no Sul do País, esgotou-se ràpidamente. Em 1920. ainda sob a chancela de O Mon­drongo, iniciou a publicação mensal de folhetos de 8 páginas, além de capa, contendo «modinhas», sob a rubrica «Bibliotheca d'O M O N ­DRONGO», iniciativa que teve a maior repercussão.

Mas O Mondrongo teve existência efêmera, ao passo que Gua­jarina. revista mundana, pretendendo ser uma publicação «moderna», conseguiu firmar-se. E logo se transformou na base de próspera em­presa, absorvendo não só os títulos e colaboradores, mas tôdas as de­mais iniciativas da outra.

como tôda publicação que se inicia, Guajarina expôs o seu pro­grama no editorial de apresentação, intitulado «Em vez de profissão de fé . . .», talvez redigido por Peregrino Júnior:

«Aqui está uma revista. Aqui estamos nós enfileirados ao lado dessa audaz legião de sonhadores que, de quando em vez, se aventuram escrever para analfabetos. É um pecado feio neste norte extremo do Brasil, onde só se pensa em borracha, crise e football, querer fazer um jornal moderno. Não é que esta boa gente esteja convencida, com Fradique Mendes, de que a idéia de fundar um jornal seja daninha e execrável, mas é que poucos sabem 1er, e os que o sabem preferem 1er, de empréstimo a folha do vizinho.

Daí a vida efêmera que têm logrado viver as revistas malaventu­radas do Pará.

Embora certos disto, porém, vimos dispostos, senão na segurança de vencer. E por que não ?

(2) Mondrongo é termo pejorativo com que se designa, no Pará, o português (Cf. Peregrino Júnior, A Mata Submersa), figura satirizada pelos nossos humoristas e contadores de anedotas, o que também era comum na imprensa caricata do Pará, como podemos ver na coleção da Revista Paraense, editada em 1909 pelo major Pin-dobussu de Lemos e outras congêneres.

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Não trazemos na bagagem o tradicional calhamaço de programa . .. Era-nos excusado trazê-lo.

O nosso fim ? como seremos ? Entre um sorriso e uma ironia, verão sempre a «Guajarina», elegante, delicada, inofensiva.

O nosso título é singelo e fácil, o nosso fim alegre e bom.

Seremos, no torvelinho desta vida agitada e frivola de cidade, o periódico moderno, leve, galante, fino, esvoaçante, brejeiro que, num afã bisbilhoteiro incansável, tudo vê, tudo escuta, tudo diz . .. um zumbido suave de vespa, uma alfinetada inofensiva, um olhar indiscreto talvez.

E lá se vai a figurinha delicada da «Guajarina», que entra no salão, passeia na avenida, freqüenta o cinema, aparece nos teatros, anda nos bondes . . . Murmurando segredos nos ouvidos aristocráticos das damas, ferroando levemente a pele espessa dos cavalheiros, ade-jando alada como um madrigal em volta das moças, fazendo rir as crianças e os velhos . .. Sem veneno, mas com graça, irá por aí afora esvoaçante e ligeira como uma borboleta; tagarela e boêmia como uma cigarra, gentil e volúvel como um beija-flor. A um contará uma breve e palpitante novela de amor, a outro revelará um segredo curioso, a todos sempre risonha e breve narrará o que ocorrer na cidade, fará a crítica ligeira e incisiva da vida, da arte, da sociedade. E, assim lã irá a «Guajarina», de quinzena em quinzena, gozando o aconchego macio das mãos patrícias da mulher paraense.

E, basta !»

A revista, conquanto vitoriosa e muito interessante — pois reuniu a juventude intelectual da época — foi suplantada pela editora. com a revista, a Guajarina passou a distribuir um suplemento com o título Modinhas, formato de folheto de cordel, com 8 páginas, contendo cinco ou seis poesias, i.é, letras de canções populares. Colecionados em se­parado, formam hoje vastíssima coleção.

Essas publicações constituem capítulo à parte, e da maior impor­tância.

Era o mesmo folheto — de «modinhas» — cuja publicação se ini­ciou em 1920 para constituir a «Bibliotheca d'O M O N D R O N G O » . A coleção representa capítulo à parte, e da maior importância, sem dú­vida, relativamente ao movimento editorial de Belém no setor musical, pois se trata apenas da publicação de textos poéticos, as «letras» da­quelas canções seresteiras muito em voga no momento. Interessam, e muito, à história da música popular brasileira.

* * *

Francisco Lopes, assim como editava «modinhas», passou também a publicar a chamada «literatura sertaneja», o cordel propriamente dito, atividade editorial igualmente pioneira. Num e noutro setor, o sucesso

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foi imenso. Belém vinha de um passado de glórias artísticas e estava povoada de seresteiros. A grande crise da borracha impediu a con­tinuação daquela espécie de orgia de arte, que tanto movimentou seus teatros e salões, mas não freou o gosto popular pela música ligeira. Ainda se espalhavam, pelos bairros, os famosos conjuntos de «pau-e--corda», réplica quase perfeita dos conjuntos cariocas de «choro». Havia também um teatro popular muito ativo, onde predominavam revistas, burletas e outros gêneros de espetáculo musicado. Esse teatro tinha seu ponto alto durante os festejos nazarenos, no mês de outubro.

Seresteiros havia em tôda a parte. Alguns pontificavam com imen­sa popularidade: Juvenal Gomes, Dico Rocha, Edilberto Domont, Teo-domiro Cantuária, entre os locais mais festejados; o carioca Alfredo de Albuquerque; o baiano Frontino Santiago; o potiguar Luis Santa Cruz, famoso por suas canções e pelo violão que sabia tocar como ninguém, proprietário do «Bar Kean», centro da boêmia intelectual e artística de Belém de outróra; violões famosos como os de Aluísio Santos, Bem-Bem, Pedro Mata Fome, Tó Teixeira; e tantos outros.

Havia também um grande mercado consumidor de poesia ou da literatura popular em verso praticamente inexplorado. Depois da mi­gração em massa da mão-de-obra nordestina para os seringais e as lavouras amazônicos — a lavoura especialmente ao longo da ferrovia (hoje extinta) bragantina e os seringais estendendo-se aos mais dis­tantes rincões da planície — a grande crise reteve na Capital paraense muitos dos que pretendiam voltar à terra natal e estavam despossuídos de meios. É preciso assinalar, porém, que muitos nordestinos não se endereçaram diretamente aos seringais e às lavouras. Permaneceram nas capitais (Belém e Manaus). Esses sertanejos urbanizados forma­ram, em Belém, alguns bairros típicos, tais como o dos «alagoanos» e o dos «cearenses» (cearenses ainda habitam grande parte dos «covões» de São Brás e adjacências da estação da extinta Estrada de Ferro de Bragança, agora transformada em estação rodoviária). Não há notícia de bairro de «pernambucanos», «paraibanos», «riograndenses do norte» etc , embora tenha havido considerável migração destes. De interesse histórico e/ou sociológico, aparecem apenas os bairros de negros (o Umarizal), alagoanos e cearenses, pelo caráter de segregação — não muito rígida, tanto que se fundiram lentamente — observável num certo período em que se formaram na Capital paraense esses grupos solidários social e culturalmente.

A grande vitalidade desses bairros sempre se manifestou através das tradições populares, tornando Belém de outróra um caleidoscópio vivo, fàcilmente retratável. Infelizmente, a cidade não encontrou cro­nistas e/ou ficcionistas à altura do fenômeno, que lhes perpetuassem a fisionomia, naquele exato momento, de sorte que hoje há poucas re­cordações. Os escritores paraenses «esqueceram» pràticamente essa ex­traordinária motivação; alguns buscaram cenários distantes para com­porem seus ensaios naturalistas, como se prova com a Hortensia, de Marques de Carvalho. Esqueceram-na no momento em que deveriam

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retratá-la. Há algumas exceções, sem dúvida, e uma delas é o romance O Gororoba, de Lauro Palhano, e poucas mais que precederam a obra cíclica de Dalcídio Jurandir.

Mas onde havia certa nucleação mais ou menos homogênea de nor­destinos, deveria haver também poetas sertanejos. E, de fato, muitos dêles residiram em Belém. Isto será demonstrado depois.

* * *

Estas considerações preliminares, já um tanto longas, julgamos ne­cessárias para compreender o «fenômeno» da Guajarina e o sucesso de Francisco Lopes, na sua ascensão de manipulador de tipos e caixotins para editor-proprietário da mais popular e fecunda empresa editorial, especializada em folhetos, que existiu na Capital paraense com irradia­ção para todo o extremo norte e nordeste. A larga repercussão de seus folhetos, o grande consumo de literatura popular, em verso ou prosa, atestado pelas numerosas e sucessivas edições, estão exigindo estudo mais profundo do que o que tentamos agora motivado apenas pelo de­sejo de chamar a atenção dos estudiosos para este caso singularíssimo.

Abordaremos a seguir os dois aspectos que julgamos mais impor­tantes nas atividades desse editor, sem desmerecer os demais.

CANCIONEIRO POPULAR URBANO

Ao Som da Lyra, no gênero de publicações que nos interessa foca­lizar, foi certamente o primeiro volume editado por Francisco Lopes, ainda sob a chancela de O Mondrongo. A literatura do intròito assim o apresenta:

«Vendo que ainda há em o nosso meio muito gosto por essa junção da música com a poesia, por excelência as duas artes verdadeiras, — pois a primeira enleva vibrando, e a se­gunda vibra enlevando — por essa junção, dizíamos, mais vul­garmente denominada MODINHA; e mais: havendo já rece­bido, não um, mas inúmeros pedidos referentes à publicação do livro que a leitora vai dar-nos a honra de 1er, resolvemos colecionar as mais novas e mais belas produções do gênero, e publicá-las enfeixadas em um volume.

Eis porque está este livro humilde recebendo o confor­tante e velutíneo afago das mãos esguias da leitora amável.

Que todos recebam AO SOM DA LYRA, o nosso livri­nho, com o mesmo sentimento de gratidão com que uma prin-cesinha recebe um diamante não lapidado das rudes mãos de um mineiro ousado, que para buscá-lo penetrasse aventurosa-mente o âmago do globo e enfrentasse, estoico, os maiores perigos, e eis o que desejamos das nossas melindrosas e dos nossos encantadores romeunizados.

E é o quanto basta.»

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Francisco Lopes, pouco depois, muda a orientação de seus negócios. De editor de revistas humorísticas se transforma em editor de livrinhos de canções populares, folhetos de modinhas e de literatura de cordel, divulgados como «suplemento» Guajarina. Lançava-os de início quin-zenalmente. Em 1932 passou a fazê-los semanalmente. Houve época que tal era o consumo de folhetos, que os lançava dois, três, ou mais no espaço de uma semana. Da Rua Nova de Santana, onde começou a publicação da revista, estabeleceu-se depois na Manuel Barata nº 64; em 1929 mudou-se para a Padre Prudencio Nº 17 e o editor abriu loja no Mercado de Ferro (Ver-o-pêso) e contratou agente em Manaus; em 1931, com os negócios já bastante ampliados, mudou-se novamente para a Manuel Barata nº 99; por fim, instalou-se na Trav. Padre Eutíquio, onde ainda hoje outros proprietários a mantém sob nova razão social.

O conteúdo dos folhetos da série Modinhas também se transforma radicalmente — e essa mudança reflete os fenômenos que influíam e determinavam a criação artística popular brasileira. No início, repro­duzia com freqüência peças dos compositores locais e muitas modinhas anônimas. Era o repertório clássico dos nossos seresteiros e dos artis­tas-cantores de companhias mambembes que faziam sucesso nos palcos paraenses, em especial na quadra nazarena. Depois, por influência do disco, o repertório começou a diversificar-se e a constituir-se quase in­teiramente da produção carioca e, nos últimos tempos, também estran­geira, por influência do cinema sonoro. Contam que as letras eram tiradas diretamente dos discos, por audição. Essa história parece ser verídica, já que as letras divergem, confrontadas com os textos originais, tanto na ortografia e pontuação, como, muitas vêzes, nas palavras e na própria construção de frases, talvez por deficiência de audição ou quiçá da reprodução sonora.

De 1920, data do lançamento do primeiro folheto de «modinha», até 1942, quando compulsamos o último, portanto no espaço de 22 anos consecutivos, Francisco Lopes editou nada menos de 846 folhetos. Ela­boramos o catálogo dessas «modinhas», compulsando a coleção perten­cente ao Dr. Alceu Mariz, que, infelizmente, não é completa (soma apenas 392 folhetos). Nossa pequena coleção serviu apenas para pre­encher algumas lacunas e grande parte do catálogo foi reconstituída graças às relações quase invariavelmente publicadas na contracapa dos folhetos, à guisa de propaganda. Não foi possível estabelecer a data precisa da circulação do primeiro folheto, em virtude de só encontrarmos a 9* edição, provavelmente de fins de 1921, e os vários seguintes tam­bém encontrados em segundas, terceiras edições. Não obstante, pos­suímos os folhetos ns. 6 e 10, ainda editados sob a chancela de O Mon-drongo e que nos permitem fixar o lançamento da série no ano de 1920.

É curioso que o editor, familiarizado com o cancioneiro popular, tenha denominado genèricamente «modinhas» a heterogênea coleção. Na realidade, há muito poucos exemplares de modinhas propriamente ditas; compõe-se, sobretudo, de valsas, sambas, maxixes, tangos, mar­chas carnavalescas, foxs, enfim todo o tipo de canção popular urbana,

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Capa do follicto publicado pela editora Guajarina, Belém, cm 1929 (Col. Dr. Alceu Mariz)

e O TROVADOR. Volume II, Belém. 1930

(Col. Vicente Salles).

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A capa do Volume I de «Lyra do Cantor» (suple­mento da Guajarina, Belém, 1932) apresenta o

i curioso detalhe da ornamentação «estilo marajoara» (Col. Dr. Alceu Mariz)

Suplemento lançado em 1934 (Col. Vicente Salles)

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Suplemento lançado em janeiro de 1939 (Col. Vicente Salles).

Capa do 1º fascículo da série 'Violão, (1» [ase, 1934)

(Col. Vicente Salles)

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Capa do '7º fascículo da série «Violão» (2ª fase, 1948), sob a direção de N. A. Souza (Co!. Vicente Salles)

Série lançada em 1947, Edição de Guajarina, propriedade

de N. A. Souza (Co!. Vicente Salles)

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Capa do folheto de J. Costa e Silva «História

de Guajarina a Rainha das Florestas», Belém, s.d. (Col. Vicente Salles)

1ª página do folheto de João Alves Moreira, «História do Dr. Sabe Tudo», Belém, s.d.

(Cot. Vicente Salles)

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1ª pàgina do folheto de Aitino Alagoano, «O Corcunda de Notre Dame», Belém, 1941

(Col. Vicente Salles)

Capa do folheto «História de José do Egypto» (Completa). Belém, s.d. (Col. Vicente Salles)

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vulgarizada pelo disco e depois pelo cinema sonoro. Desde 1921, faz intensa divulgação no Pará da mùsica carnavalesca carioca. Muitos exemplares são inteiramente dedicados ao gênero. A palavra modinha no frontispicio dos folhetos encadernados parece ser assim bastante arbitrária.

Ao lado da série de folhetos de 8 páginas, Francisco Lopes con­tinuou a publicação de outras coleções mais volumosas. Em 1929 lança a série Ao som da lyra, o mesmo título do volume publicado pelo O Mondrongo, em 1919, como anotamos. Estes volumes aparecem anual­mente e, em 1934, a série alcança o nº 6, sempre com o subtítulo: «Co­leção de Modinhas e Canções Brasileiras». Paralelamente, publicou de 1929 a 1935 O Trovador (9 volumes), contendo as «últimas novidades musicais». Seguem-se: Lyra do cantor, cujo primeiro volume apareceu em 1932 e o último (não numerado) em outubro de 38; O Violão, lan­çado em dezembro de 1932 e que também alcançou 6 volumes e, por fim, a série Cantor Brasileiro, iniciada em dezembro de 1938 e que alcançaria 11 volumes, o último lançado em maio de 1946.

A guerra de 1939-45 trouxe dificuldades para o editor e a publi­cação de folhetos se torna muito irregular. Ainda em 1946, cessando a publicação da série Cantor Brasileiro, confessava êle as dificuldades de obtenção do papel, o que restringia notavelmente suas atividades. Porém, no final desse ano, reaparece a série O Violão e logo a seguir outra série denominada Serenata. Nos carnavais de 1946 e 1947 apa­receram numerosos folhetos contendo o repertório em voga.

Anotamos que, em 1929, foi lançado o volume intitulado Cancio­neiro do norte (apareceu outro em 1936), com este sugestivo subtítulo: «coleção escolhida do que se canta no Pará». O volume, de 145 pá­ginas, contém 85 letras selecionadas dos repertórios de alguns cantores populares e outras selecionadas do repertório do Jazz-Band City-Club, que era, no momento, a mais importante orquestra de salão em Belém, dirigida pelo violinista e compositor santareno Isaías Oliveira da Paz. A apresentação do Cancioneiro do Norte é outra peça de inestimável valor :

«um sentimento de amor às trovas e trovadores nos fêz editar as trovas que aí vão. como sabemos todos, os livros deste gênero que aparecem, vêm do Sul. Parece que o Norte é mudo.

Entretanto, quanta coisa bonita a gente canta por aqui ! Quão inúmeros e aplaudidos os nossos trovadores ! E vós mesmas, leitoras jovens, — quanta beleza sai vocalizada das vossas gargantas pássaras e amenas ! E que emoção serena quando cantais as nossas trovas, as canções regionais, da au­toria dos bardos mais conhecidos, e que encerram a vibrati-lidade da natureza nortista, ora impetuosa, ardente, quase brusca como as águas revoltas da Guajará raivosa, ora suaves, mansas como o deslisar sereno da mesma Guajará quieta; ora

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nevoentas como as nossas manhães de inverno, ora coloridas como a policromia das velas pandas das nossas canoas tão ligeiras.

Tudo isso nos forçou à edição déste Iivro, agora que a cidade tôda está cheia de excelentes cantadores brasileiros e artistas outros de renome.

E nestas circunstâncias, deveras confiados no êxito da nossa empresa, depomos, com respeito e com afeto, o CAN­CIONEIRO DO N O R T E em vossas mãos, diante dos vossos olhos, submisso às vossas gargantas de ouro e de cristal.

E sabemos que melhor paraninfo não teremos para o nosso esforço, do que a mulher patrícia, na serenidade da sua graça, como na serenidade do seu todo encantador e forte, enamorado e lindo !»

Assim, mais uma vez, com lisonjas à mulher, o esforçado editor prometia-lhes as trovas, as canções regionais, da autoria dos bardos mais conhecidos etc. Entretanto, quem procurar nessas páginas — tão evocadoras de nossa terra são as palavras do editor — «as canções regionais» — vai ter enorme decepção. Todo o repertório dos nossos cantores — Cantuária, Juvenal Gomec de Abreu, os Curingas (cearen­ses e que só cantavam coisas do sertão nordestino), Dico Rocha, Geor-gina Lima — aqui representados no Cancioneiro do Norte, é todo êle de música popular urbana carioca . . . de Sinhô, Pixinguinha, Francisco Alves, Ari Barroso, Lamartine Babo, Vicente Celestino, Cândido das Neves ! A única exceção é mesmo o repertório dos irmãos Curinga, mas eles nada recordam a paisagem guajarina raivosa ou quieta. A ausência quase completa do cancioneiro nortista — mesmo no repertório de Juvenal Gomes de Abreu, talvez o mais notável desses cantores e que, aliás, tinha bom número de modinhas e canções regionais — não justifica nem o titulo, nem o prefácio da publicação. Dos poetas regio­nais aparecem, quando aparecem, «paródias» sobre aquelas mesmas músicas dos compositores populares do Sul. Especialistas em «paró­dias» foram, entre outros, Arinos de Belém (pseudônimo) e Ernesto Vera. Estão ausentes os compositores e letristas regionais: o Elmano Queiroz, o Cirilo Silva, para falar apenas nos dois mais fecundos e inspirados. Também ausente está Edilberto Domont, outro cantor de repertório vastíssimo de modinhas e canções regionais, já bastante co­nhecido na época.

Contudo, a busca nas coleções — em especial na grande série de Modinhas, 846 folhetos — não será de todo improdutiva. Além dos inúmeros compositores e letristas regionais, anotamos cerca de 40 mo­dinhas e canções anônimas só encontradas, até agora, em nossas buscas, nas edições da Guajarina, depois de compulsar demoradamente as cole­ções de Melo Morais Filho, Joaquim Norberto, Brito Mendes e as di­versas edições da Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro e de José Vieira Pontes (Livraria Teixeira), de São Paulo. Temos aqui a matéria-prima

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para a elaboração do futuro cancioneiro popular paraense, na parte que incluir as modinhas e canções seresteiras em geral.

As coleções da Editora Guajarina têm portanto considerável im­portância. Podem mesmo considerar-se um dos mais valiosos documen­tários do cancioneiro nacional. Contribuíram, além disso, para dar certa unidade às criações populares, numa relação dialética entre o nacional e o regional, na época em que eram outros os meios de comunicação de massa e os homens desconheciam praticamente a máquina. Mas não eram menos ativos e cabe destacar ainda o papel importante e tão pouco estudado do teatro popular, o chamado mambembe, dos cantores carac­terísticos (Alfredo de Albuquerque, Os «Geraldo») e dos circos que ainda, durante muito tempo, concorreram como o fonógrafo, o cinema e, por fim, o rádio.

E assim no meio da avalancha de compositores cariocas, vários no­mes locais se incluem: Emílio Albim, Raimundo Pinto de Almeida, Tra­vassos de Arruda, Cirilo Silva, Tó Teixeira, Edilberto Domont, Elmano Queiroz, Gentil Puget, Valdemar Henrique e outros mais todos eles simultaneamente influenciados pelo regional e pelo nacional. O minu­cioso estudo da obra que produziram nos levará a resultados surpreen­dentes.

LITERATURA POPULAR EM VERSO

O Pará não possui a tradição da cantoria, do desafio ao som da viola, em porfías poéticas infindáveis, como ocorre com freqüência nos sertões do Nordeste. Os cantadores populares cultivam outros gêneros, alguns romances e baladas, «chulas atrevidas» ou «desfeiteiras», sem aquêle cunho peculiar do canto improvisado e memorizado narrador de estórias extensas e novelescas, como as que circulam impressas nos livri­nhos de cordel. O desafio aparece, quando aparece, no boi-btumbá, mas tem outro caráter e outro sentido: é coletivo, dele participando todo o grupo, e não individual, entre dois contendores, como o nordestino. Tôda tentativa de aproximação, neste sentido, será certamente exage­rada.

Mas houve a transmigração em massa de nordestinos para os se­ringais e as lavouras amazônicas. O homem espalha cultura: crenças, costumes, tradições. Assim, cantadores se aventuraram nas plagas ama­zônicas, tangidos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Ala­goas etc. E como essa migração criou um mercado consumidor de poesia em potencial, a chamada literatura de cordel também se espalhou largamente na planície.

Famosos poetas populares do Nordeste tiveram sua experiência na Amazônia e lá encontraram motivos para poetar e pelejar. Das primi­tivas levas de cantadores que se estabeleceram no Pará, Romeu Mariz documentou a presença de paraibanos e cearenses, aí por volta de 1908. O poeta e jornalista paraibano chegou a surpreender esses cantadores

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batendo-se em desafios, dando-nos noticia dos encontros nas crônicas que publicou na seção «Casos da Rua», de «A Província do Pará», depois reunidas no livro intitulado Chronicas sertanejas (Belém, Im­prensa Of. do Estado do Pará, 1908) . No livro, as crônicas aparecem com o título «A Musa Sertaneja» e estão divididas em duas partes. Na primeira, trata dos cantadores José Raulino e Chico Carnahuba, os quais, acossados pela seca, vieram dar com os costados na Capital pa­raense. Raulino era do Icó (Ceará) e Carnahuba era do Catolé .do Rocha (Rio Grande do Norte) . Fizeram-se amigos em Fortaleza e dali saíram juntos para Belém, «indo arranchar-se ali em Canudos, na barraca de João Cearense».

Narra o cronista a acolhida que o cearense João deu aos emi­grantes: «Vosseis aqui tão ca vida ganha, rapaziada. Cantado de viola é passo que aqui Nºura ai e muita gente apreceia», disse João Cearense aos seus hóspedes, e acrescentou: «Quando fizé uma boa lua, nós dá aqui um samba pr'a esses bestaião do Pará vê cumé qui home canta».

O samba logo se realizou e deve ter sido assistido pelo cronista, que tudo documentou, transcrevendo o desafio dos cantadores nordes­tinos. É uma peça mal conhecida, em virtude da pequena circulação do livro, hoje rarissimo. Infelizmente, a documentação se destinava a preencher crônica de jornal, daí terem sido publicados apenas alguns trechos do desafio.

Na segunda crônica, Romeu Mariz registra a chegada a Belém do cantador paraibano Zé Maria, apelidado Pafaíma (vários cantadores assim se apelidaram), em virtude do belo timbre de voz, informando ainda que era o cantador mais popular e respeitado nos sertões e brejos paraibanos. Esta segunda crônica é bem mais informativa e extensa, nela reproduzindo Romeu Mariz copiosa produção de Patativa, além de narrar sua vida e as peripécias de seu desembarque no Pará, onde foi reconhecido pelo cafuso Mané Paraíba, ali estabelecido e que, diz ainda Mariz, forçou o destino do famoso cantador: Patativa pretendia subir o Amazonas, «ditriminado a dêxá a viola e me dana a trabaiá». Mané Paraíba lhe propôs: «Apois Zé Maria você num tá dêreito não, home. Se você subesse cantado de viola cumé aperciado aqui, você num dizia isso não. Sarte, sarte e vamo lá pr'a nossa casa qui im poucos tempo você tem dinheiro aí pá dá eu pau».

Patativa ficou realmente em Belém e Mané Paraíba tratou do en­contro do seu conterrâneo com o cantador Carnaúba. O que se realizou também está documentado por Romeu Mariz. De Patativa são os ver­sos, cantados após esse desafio, e que têm sido largamente repetidos:

«Seriam mió qui o céu Paraíba e Ceará, Si chuvesse cuma chove Na cidade do Pará».

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Outro documentário sobre a existência de cantadores nordestinos em Belém deu-nos o folclorista José de Carvalho no livro O Matuto cearense c o caboclo do Pará, também impresso em Belém (1930). José de Carvalho narra seu encontro com outro Patativa, Antônio Gon­çalves da Silva, através do seguinte repente:

JC — Você, que agora chegou do sertão do Ceará me diga que tal achou da cidade do Pará ?

P — Quando eu entrei no Pará achei a terra maior vivo debaixo de chuva mas pingando de suor.

Fato marcante, na crônica da poesia e da música populares, foi o concurso entre tocadores de viola e violão promovido em novembro de 1916 pelo matutino «O Estado do Pará», ao qual concorreram muitos poetas. O concurso consistiu em três partes: l9, desafio entre canta­dores, de improviso; 2', verificação do melhor executante de violão; 3?, escolha da mais bela modinha brasileira, na letra e música, exigindo-se que ambas fossem criações originais dos executantes.

O cego Aderaldo também esteve no Pará e diz, em suas memórias, que em Belém conheceu muitos cantadores, porém, o mais afamado, que emendou a camisa com êle, foi o índio (sic) paraense de nome Azuplin — personagem talvez criada pelo imaginoso cantador — desafio datado por Aderaldo de junho de 1919, na cidade de Bragança. Após des­crever a viagem de trem, pela região bragantina, o poeta recorda o en­contro com o cantador paraense — que tocava instrumentos típicos da região:

«Eu perguntei: — Meu senhor ! Será algum rio-grandense Ou mesmo um paraibano, Ou um cantor cearense ? Êle disse: — Não senhor, Ê um cantor paraense ...

Quando findei a palavra Vi o paraense chegar, Êle trazia consigo uma viola e um ganzá, E trazia um tamborim, Que é instrumento de lá ...

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Êle afinou a viola, Quando bateu no ganzá, Deu um tom no tamborim Para o baião entoar, Eu tirei a rabequinha E fiz a prima chora. . .»

e o ceijo deu início ao desafio que terminou sem vencedor, cordialmente. Aderaldo coloca Azuplin em lugar de honra e o desafio deixa-nos algu­mas dúvidas sobre sua autenticidade. Folcloristas bragantinos con­sultados a respeito — entre eles o Prof. Armando Bordallo da Silva — desconhecem a existência desse poeta — ainda por cima «índio» — que teria pelejado em alto nível com o famoso cantador cearense.

* * *

A iniciativa de Francisco Lopes de implantação da pequena indús­tria de folhetaria na capital paraense encontrou assim condições muito propícias. Logo a coleção da Guajarina, também neste setor, alcança apreciável repercussão e se estende ao Nordeste, através de seus agen­tes. A irradiação da editora era tal que seus folhetos podiam ser ad­quiridos em Manaus (Amazonas); Rio Branco e Xapuri (Acre): San­tarém, Marabá (Pará) ; São Luis, Caxias, Amarante e Icatu (Mara­nhão); Teresina e Parnaíba (Piauí); Fortaleza e Joazeiro (Ceará) ; Natal (Rio Grande do Norte) e Campina Grande (Paraíba). Ao mesmo tempo, Guajarina agenciava editores nordestinos de literatura sertaneja. A grande maioria de seus lançamentos era de literatura popular em verso, anunciados como desafios, narrações, contos, aven­turas, fatos, romancetes, novelas e pelejas.

Embora não se dedicando exclusivamente ao gênero, a Guajarina especializou-se contudo na publicação desses folhetos e foi, seguramen­te, a mais importante editora no extremo Norte. Não temos dados precisos para determinar a data das primeiras publicações de literatura sertaneja, mas, em 1920, já temos no folheto nº 11, da coleção de «mo­dinhas», um catálogo enumerando 35 títulos: História do Valente Vil-leia e o Alferes, O Diabo e o Soldado, Batalha de Olivciros com Fer-rabcaz. História de Juvenal e Leopoldina, A Lâmpada Maravilhosa, História do Grande Roberto do Diabo, A Morte do General Pinheiro Machado, Casamento e Divórcio da Lagartixa, História da Donzela Theodora, A Chegada do Dr. Lauro Sodré no Pará, O Leão na Jaula (Antônio Silvino), Allemanha nadando sobre o mar de sangue, A Guer­ra do Brasil com a Alemanha, O Mal em paga do Bem, Peleja do Cego Aderaldo com o Zé Pretinho, A Vida do Seringueiro, Peleja de Manoel do Riachão com o Diabo, O Rio de São Francisco, O Brazil na Guerra, História da escrava Izaura, O Príncipe e a Fada, O Govèrno e a La­garta contra o fumo. História de Pedro Cem, O Torpcdeamento do va­por «-Macau». A Mulher Roubada, Echos da Pátria, Branca de Neve

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e o Soldado Guerreiro, Historia de Tito Silva e As Promessas do Govèrno, Peleja de Bernardo Nogueira com o Preto Limão. A Menina que falou, o Cantor da Borborema, a Grande Guerra, o Naufrágio do «Uberaba», A Sorte dos Náufragos do «Uberaba», A Morte do Poeta.

Em 1922 eram catalogados 45 títulos e os folhetos se dividiam de acordo com o número de páginas: 16, 24, 32, 40 e 48. Acrescenta­vam-se, entre os novos títulos, a Peleja do Cego Aderaldo com o Jaca--molle, a Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (talvez reedição com título mais completo), A Sorte dos Náufragos, folheto de Ernesto Vera, A Festa dos Bichos ou aventuras d'um porco embria­gado, Peleja de João Peroba com o menino Perico, A Mulher e o Im­posto, Desafio do Cego Aderaldo com Zé Francalino, O Escravo do Diabo ou o afilhado de Santo Antônio, todos de 16 páginas; História de Zezinho e Mariquinha, de 24 páginas; Princesa Pedra-Fina, de 32 páginas- História de João de Deus e o Diabo Negro, de 40 páginas; A Rosa do Adro, A força do Amor, A Vida de Canção de Fogo e O Boi Mysterioso, de 48 páginas.

A simples leitura dos títulos nos informa da penetração da litera­tura popular em verso nordestino na Amazônia, através de seus maiores poetas, entre eles Leandro Gomes de Barros, e dos temas mais verseja-dos naquela área. Mostra da importância do folheto como meio de comunicação é a versificação dos acontecimentos mais recentes, como a guerra européia e o envolvimento do Brasil no conflito. Já então aparecem também folhetos com assuntos locais. A rápida evolução da folhetaria não pode ser demonstrada senão através da multiplicação dos títulos, já que as sucessivas reedições não eram sequer datadas. Mas a editora se mantém rigorosamente em dia com os acontecimentos e, cm 1930, a revolução, que estourou em outubro, teve logo, no mesmo ano, o folheto consagrador: A Revolução Vitoriosa, que se anunciava como «interessante poemeto da grande revolta que derrubou o poder civil, para renascimento melhor de um Brasil de Ordem e Progresso».

Além de publicar a obra de numerosos poetas nordestinos, desde o grande Leandro Gomes de Barros, com dezenas de títulos na coleção, aos poetas mais modestos — entre os mais editados: Aitino Alagoano, Tadeu de Serpa Martins, Luiz da Costa Pinheiro, Tomás Félix de Sou­za Pinho, Orlando de Almeida Santos, Raimundo Castilho e Silva, Apo-linário de Souza, Ernesto Vera etc. — Guajarina possibilitou o apare­cimento de poetas paraenses também dedicados ao gênero, entre os quais ficou famoso o hoje ministro do Tribunal de Contas, Lindolfo Mes­quita, que assinou, com o pseudônimo Zé Vicente, algumas dezenas de folhetos, quase todos de conteúdo histórico, social e político: A Bata­lha da Alemanha contra a Rússia, O Brasil rompeu com eles, A Guerra da Itália com a Abissínia, O Macaco Revoltoso, o Rapto Misterioso do Filho de Lindbergh, Santa de Coqueiros etc.

Guajarina também se dizia editora exclusiva do saudoso poeta ser­tanejo Firmino Teixeira do Amaral e a única de modinhas no norte do

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Brasil. Ela pôs em prática variado sistema promocional que incluia até a troca de cartões por coleções encadernadas de folhetos. Seus anún­cios são, às vêzes, engraçadíssimos. Em 1929 era anunciado O Gaio de Botas como curiosa novela de um gatinho que elevou seu dono ao apogeu da glória. Outros anúncios curiosos:

— «única editora das obras do saudoso folquilorista (3) Firmino Teixeira do Amaral e dos aplaudidos poetas Apoli-nário Souza, Thadeu de Serpa Martins e outros»;

— O Crime da Maia: «narração, em verso, do horrendo crime praticado em São Paulo e cujo enredo com tôdas as minúcias foi visto na tela num dos cinemas de Belém»;

— Peleja de Chico Ray mundo com Zé Mulato: «inte­ressante desafio caipira, original do poeta humorista paraense Zé Vicente, de engenhoso enredo emocional»;

— O Matuto que não quer ser eleitor: «história em verso de um matuto que embora lhe dessem tôdas as nações do mundo e tôdas as riquezas, preferiu ser tudo na vida, menos . . . eleitor»;

— Peleja de João Barreira com Zé Buraco: «no gênero «pé de viola» é daquelas de prender a atenção do ouvinte ou deleitar durante muitos minutos de intensa curiosidade. Tem a tirada interessante.. .»;

— «O Padre Cícero, o manda-chuva do Joazeiro, fêz uma vez um milagre. E Apolinário Souza aproveitou o milagre para fazer uma história engraçadíssima».

Além das estórias tradicionais do Nordeste, geralmente inspiradas na literatura européia medieval, os folhetos narram as proezas de Lam­pião, ainda vivo, de Antônio Silvino, os feitos extraordinários do Padre Cícero e muitas pelejas. Havia também, como já referimos, de caráter político, os relacionados com as guerras européias e a fase do Estado Novo, e, naturalmente, assuntos regionais, fatos acontecidos no Pará e em Belém. O catálogo de Literatura Popular em Verso (Tomo I) , editado pela Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro, 1961) inclui 36 folhetos editados pela Guajarina, 8 anônimos e os restantes assinados pelos seguintes poetas: Aitino Alagoano (1) , Firmino Teixeira do Ama­ral (4 ) , Leandro Gomes de Barros (3) , Arinos de Belém (4) , Floriano Nabuco de Campos ( 1 ), Antonino Geofre ( 1 ), Thadeu de Serpa Mar­tins (5) , Raimundo Castilho e Silva (1) , Apolinário Souza (2) e Zé Vicente (6) . Num só dos catálogos divulgados pela Guajarina, e que temos em nossa coleção, enumeram-se nada menos de 140 títulos.

(3) Grifado, como no original.

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CONCLUSÃO

Francisco Lopes, assim como deu sentido genérico à palavra «mo­dinha», também encontrou interessante vocábulo para designar certo tipo de folhetos: «románcete», significando certamente «pequeno ro­mance», ou seja os folhetos de proporções mais reduzidas. A sua pro­dução, conhecida dos especialistas em literatura popular em verso, como Peregrino Júnior, Umberto Peregrino, Cavalcanti Proença, Eneida e tantos outros, não mereceu ainda estudo minucioso, com referência local. Alguns dados informativos, com transcrição de textos, encontramos na obra de Umberto Peregrino Imagens do Tocantins e da Amazônia (Rio de Janeiro, 1942, págs. 49-78), especialmente no capítulo que trata da «Feira Literária» do Ver-o-Pêso. A ela também se refere o citado catálogo da Casa de Rui Barbosa e, na «Antologia», a transcrição in­tegral do folheto Casamento e Divórcio da Lagartixa, atribuído a Lean­dro Gomes de Barros e que já aparece no catálogo da Guajarina de 1920.

com a morte de Francisco Lopes, em 1947, a tipografia passou para outras mãos. O sucessor imediato foi N. A. Souza, que continuou a publicação de algumas séries de folhetos, como a de sucessos carna­valescos, lançou a segunda fase de o Violão (valsas, sambas, canções) e iniciou a série Serenata. Em 1949 a editora e suas instalações grá­ficas foram incorporadas à firma proprietária da Livraria Vitória, de Raimundo Saraiva Freitas, e os novos donos desinteressaram-se por estas publicações.

O caminho desbravado por Francisco Lopes está hoje quase aban­donado. Outras editoras têm-se dedicado esporàdicamente à divulga­ção da literatura popular em verso, entre elas a Tipografia Sagrada Família, de José Marques dos Santos, mas sem adquirir o caráter tão típico e peculiar das «folhetarias» nordestinas. Mas aonde o interes­sado pode encontrar, em Belém, grande estoque de folhetos nordestinos é no Mercado-de-Ferro, no «aparador» de João Oliveira, também poeta (publicou, entre outras, A História do Boi Araçá e A História de Aga­menón), cearense, nascido a 29 de junho de 1911 e que reside na Ama­zônia desde os 12 anos de idade, tendo trabalhado com Francisco Lopes. Também apareceram novos poetas: João do Couto, José Cunha Neto, Antônio de Barros, que se diz com orgulho «Poeta Paraense», e outros que colocam assuntos palpitantes em versos, exercendo o papel de in­formadores das massas através do seu mais legítimo meio de comunica­ção — a poesia — e dando continuidade à tradição.

Permanece pois ainda em nossos dias o interesse popular pela lite­ratura de cordel. Os folhetos continuam encontradiços em Belém, no Ver-o-Pêso e na feira do Mercado de São Brás, poucos produzidos localmente e a grande maioria importada do Nordeste. É a voz lírica e sentimental do sertanejo que se enraizou na Amazônia, com sua feição própria e sua forma às vêzes rústica, porém sempre comunicativa: o folheto.

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Registramos, para finalizar, a colaboração do Dr. Alceu Mariz, residente aqui na Guanabara, que nos cedeu por empréstimo sua cole­ção de folhetos (modinhas e canções), de Clovis de Melo Salles que, em Belém, coletou muitas peças para nosso arquivo, de Amadeu Nylan-der Lopes, há pouco falecido e também do folheteiro e poeta João Oli­veira, que entrevistamos pessoalmente.

Além de antigas aquisições de folhetos no Ver-o-Pêso, popular mercado de Belém, mencionamos as doações de amigos, particularmente Eneida, Amadeu Lopes, João Oliveira e o cantador Joaquim Batista de Sena, também poeta e editor, antigo proprietário da Folhetaria São Joa­quim, de Fortaleza, Ceará.

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Letras

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GREGORIO DE MATTOS: OS CÓDICES EM PORTUGAL

FERNANDO DA ROCHA PERES

A publicação das «Obras Completas de Gregorio de Mattos» (*) significou um fato cultural de relativa importância para uma reto­

mada dos estudos gregorianos. Lamentamos somente que tenha sido adiada por tempo indeterminado a tão esperada edição crítica.

Antonio Houaiss em lúcido artigo (2) assinalou as várias implica­ções cientificas para a feitura da edição crítica, salientando a urgência de uma equipe para a realização da tarefa, considerando-a irrealizável por um só indivíduo.

Entendemos que o trabalho a ser iniciado agora, com vistas a uma remota edição crítica, será uma análise comparativa dos apógrafos exis­tentes em Portugal e no Brasil, não com o objetivo de fixar as varian­tes poéticas, mas com a finalidade de determinar as produções mais ocorrentes e a elaboração de um Índice Geral dos Apógrafos. Depois deste estudo preliminar far-se-ia uma edição diplomática dos códi­ces-apógrafos mais importantes.

Esta nossa preocupação com os apógrafos tem um certo sentido, pois observamos que a recente edição das «Completas» só contou com

(1) —Gregorio de Mattos, Obras Completos. Organizada por James Amado. Salvador, Editora Janaina, 1968. 7 v.

— Anteriores a esta edição das «Obras Completas de Gregorio de Mattos, foram publicadas: a) Obras Poéticas: Sátiras. Organizada por Alfredo do Vale Cabral. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882. v. I; b) Obras. Organizada por Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro, Academia Brasileira, 1923/1933, 6 v.; c) Obras Completas. S. Paulo, Ed. Cultura. 1943, 2 v.

(2) — Antonio Houaiss, «A tradição de Gregorio de Mattos» (in 1' Simpósio de Lingua e Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro. Edições Gernasa, 1967. pp. 27/33) . Este mesmo trabalho de Houaiss foi publicado com o título «Tradição e Problemática de Gregorio de Mattos» in (Gregorio de Matos, Obras Completas, Edi­tora Janaina, 1968, vo. VII, pp. 1725/1734).

— De Antonio Houaiss deve ser lembrado o excelente livro Elementos de Biblio­logia, Rio de Janeiro, INL, 1967, 2 v. , que contém preciosas informações para aquêles que pretendem realizar edições criticas.

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os poemas dos apógrafos existentes no Brasil e copias de alguns apógrafos portugueses, fato que comprova a frustrada pretensão de um corpus poético compieto.

Quando de nossa pesquisa em Portugal (3) procuramos seguir as indicações dos códices de Gregorio de Mattos e Guerra elencados por Houaiss (*) que diz: «Quanto aos apógrafos, aqui e ali há referências à sua existência. Ora fala-se em três, ora em catorze, ora em dezessete, ora em inúmeros. Mas é quase certo que, entre os efetivamente loca­lizados e os de comprovação positiva ou negativa fácil, há os seguintes:

«1) o de Évora, de que não se terá até hoje feito nenhum uso para fins editoriais tipográficos;

2) o da Biblioteca Nacional, dito Códice D. Pedro II; 3) o da Biblioteca do Itamarati, dito Códice Varnhagen; 4) um segundo da Biblioteca Nacional, duvidoso, pois também pode

ser que seja a mera cópia fotomecânica do aqui capitulado como nº 5, já que Afrânio Peixoto de fato doou um à Bibllioteca Nacional;

5) o da Academia Brasileira de Letras, dito Códice Afrânio Peixoto;

6) um segundo da Academia Brasileira de Letras, duvidoso, que seria o Códice Afrânio Peixoto II;

7) o da Biblioteca do Porto; 8) um recentemente adquirido pela Biblioteca Nacional, na gestão

de Adonias Filho, e que pertenceu a Camilo Castelo Branco; 9) o Códice Asensio-Cunha, da propriedade do professor Celso

Cunha; 10) o Códice da propriedade de um erudito português, funcionário

da Alfândega de Lisboa».

Diante deste esquema pouco claro procuramos ver se Houaiss (op. cit., p. 29) tinha razão quando disse «que, entre os efetivamente loca­lizados e os de comprovação positiva ou negativa fácil, há os seguintes», para logo após nomeá-los.

Antes de situar o resultado, ainda parcial, de nossa pesquisa, vale salientar que James Amado ( s) acaba de fornecer um quadro dos apógrafos existentes no Brasil, com vários acrescentamentos.

(3) — como bolsista do Ministério dos Negócios Estrangeiros, realizamos uma investigação em torno da vida e da obra de Gregorio de Mattos e Guerra. Sobre o aspecto biográfico já divulgamos três trabalhos: I) «Gregorio de Mattos e Guerra: seu primeiro casamento», (in Universitas, Revista de Cultura da Universidade Fe­deral da Bahia. Salvador, 1968, nº 1, s e t . / d e z . ) ; II) «Documentos para uma Biografia de Gregorio de Mattos e Guerra» (in Ocidente, Lisboa, 1969, v. LXXVI, n° 373, maio); III) «Os Filhos de Gregorio de Mattos e Guerra», Publicação do Centro de Estudos Bahianos, Salvador, 1969, nº 64.

(4) — O p . cit., p . 29.

(5) — James Amado, «RelaçSo dos Códices Estudados» (in Gregorio de Mattos, Obras Completas. Salvador, Editora Janaína, 1968, v. VII, pp . 1744/1753).

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Foi-nos possível, em Portugal, localizar uma quantidade considerá­vel de apógrafos, alguns já sumariamente apontados por Houaiss (op. cit., p. 29) cuja noticia agora complementamos, e outros sem registro anterior por nós conhecido. Para uma melhor descrição dos Códices abaixo relacionados resolvemos inquirir bibliotecas e estudiosos em Por­tugal sobre as características dos manuscritos de referência a encader­nação, dimensões, número de páginas (ou fólios), carimbos, qualidade do papel e escrita.

Existirão outros apógrafos em Portugal, talvez dezenas, porém estes agora anotados por nós chegam ao conhecimento dos especialistas, em nota prévia, a saber:

Códices em Lisboa:

I — Biblioteca Nacional de Lisboa.

— «Obras / do Douctor / Gregorio de Mattos e Guerra».

— Secção dos Reservados, Colecção do Fundo Geral, Códice nº 3576, antiga numeração M-3-35. a) Encadernação: Pergaminho flexível. Na lomba­

da vai escrito, à pena, «Obras do Do / uto (r) / Matto (s)». A encadernação sofreu restau­ração recente, que compreendeu a aposição, por colagem, de novas folhas de guarda.

b) Dimensões: Altura 20,1 centímetros por, Largu­ra, 14,7 centímetros. Papel aparado.

c) Número de páginas: No início do volume três fólios não numerados. A numeração das folhas vai de 1 a 251, com falta do fólio 250.

d) Carimbos: Carimbo de pertence da Biblioteca de Lisboa em diversas folhas e dentre estas, a 1, 240, 246, 251, com as armas Reais e nas folhas 50, 100, 151, com as armas da República.

e) Qualidade do papel: Papel de linho, avergoado com a marca de água.

/) Escrita: Caligrafia da segunda metade do sé­culo XVII, ou inícios do século XVIII .

II — Biblioteca Nacional de Lisboa. -— «Obras do Doutor / Gregorio de Mattos» — Secção dos Reservados, Colecção do Fundo Geral,

Códice 3238. antiga numeração L-3-59. a) Encadernação: Pergaminho flexível. Na lom­

bada vai escrito, à pena «Boca / do Infer- / no». b) Dimensões: Altura 24,5 centímetros por, Lar­

gura, 17,5 centímetros. Papel aparado.

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e) Nùmero de páginas: No início do volume, duas folhas não numeradas. A numeração das fo­lhas vai de 1 a 142.

d) C&rknbo: Carimbo da Real Biblioteca Pública — RBP com a Coroa Real no fólio 1. Carim­bo da Biblioteca Nacional de Lisboa nos fólios 50, 101, 126 com as armas da República, e no fólio 142, com as armas Reais.

e) Qualidade do papel: Papel de linho, avergoado, sem qualquer marca de água.

f) Escrita: Caligrafia da primeira metade do sé­culo XVIII, muito legível.

III — Biblioteca da Ajuda.

— «Muza / Protterva / Lira desonnante / Dezatinnado emprego / Infelice dfsvello / Obras / Do Doutor Gregorio de Mattos / Bahia / Recolhidaz por hum curiozo / Anno de MDCCVI» .

— Códice 50 — ¡I — 2.

a) Encadernação: Em carneira parda com ferros a seco. Na lombada os dizeres: «Obras / De Gregorio / De Matos».

b) Dimensões: 220 mm x 160 mm. Papel aparado. c) Número de páginas: 965 pp. d) Carimbos: Os carimbos de pertence usados pela Biblioteca

da Ajuda e o ex-libris da « B . M . Virginis de Necessitatibus»-e) Qualidade do papel: Não obtivemos informação sobre o tipo

de papel. /) Escrita: Caligrafia do sec. XVIII, bem legível.

Códices no Porto:

I — Biblioteca Pública Municipal.

— «Obras / De Gregorio de Matos e Guerra / Natural / Da Cidade do Salvador, Bahia / de todos os San­tos. / Feitos avarias pessoas no anno de / 1690 / Enovamente copiadas neste volume no de / 1748»./

— Códice 1388.

a) Encadernação: Da época (Séc. X V I I I ) . Na lombada, com cinco divisões, rótulo em carneira encadernada com: OBRAS / DE GREGOR / D E M A T O S .

b) Dimensões: Exteriores: 217 x 153 mm; Interiores: 208 x 150 mm; Mancha: 185 x 114 mm. Papel aparado.

c) Número de páginas: 214 fls., sendo que 6 em branco. d) Carimbos: Não existem. No fl. 1 (em branco), à cabeça,

aparece a assinatura de Dr . Miguel Gomes Soares. Na contra-capa o ex-libris da Biblioteca Municipal do Porto.

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«Obras / do Douctor Gregorio de Ma-1 ttos e Guerra»/. Codice Nº 3.576. Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa. Seção de Reservados.

Coleção Fundo Geral.

Fólio 247. Cesta de Frutas (na qual vemos vários elementos da flora brasileira) . Desenho.

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«Obras / do Doucíor Gregorio de Ma-/ ttos e Guerra» /. Códice nº 3.576. Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa. Seção de Reservados.

Coleção Fundo Geral.

Segundo folio, nao numerado, início do volume. Brasão dos Mirandas Henriques Salemas. Desenho.

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¿Obras / do Douctor Gregorio de Ma-/ ttos e Guerra» /. Códice nº 3.576. Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa. Seção de Reservados.

Coleção Fundo Geral.

Terceiro [òlio não numerado, início do volume. Frontispicio do manuscrito. Desenho.

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e) Qualidade do papel: Do século XVIII, com vergaduras horizontais e marca de água na linha de costura, represen­tando uma flor de lis simples.

f) Escrita: Do século XVII I .

II — Biblioteca Pública Municipal.

— «Poesias / (inéditas) / de / Gregorio de Mattos Guerra». /

— Corresponde ao códice Nº 22 do legado do Conde de Azevedo. Códice em 2 volumes. a) Encadernação: Vulgar, do século XIX.

b) Número de páginas: V volume: 555 pp. 2" volume: 556 pp.

c) Carimbos: Não tem. Ex-libris, da Biblioteca Pública Municipal do Porto.

d) Qualidade do papel: Vergaduras horizontais. Marca de água na linha de cozedura do volu­me, representando um escudete, com a legenda em diagonal LIBERTAS. Na base, fora do escudete, as letras S . F . P .

e) Escrita: Caligrafia do fim do século XVII I .

Códices em £?t»ora:

I — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.

— «Obras Sacras / d o / Dr . Gregorio de Mattos Guerra / precedidas / da sua vida e morte / por / Manoel Pereira Rebello».

— 'Códice do Inventário de cedência e entrega do Núcleo Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Pú­blica e Arquivo Distrital de Évora, sob o n° 587, da II Parte dos Manuscritos.

a) Encadernação: Inteira de carneira, de lombada de quatro nervos com filetes de ouro.

b) Dimensões: 206 mm x 153 mm. c) Número de páginas: 2 páginas sem número se­

guidas de 211 numeradas e mais 11 sem nume­ração.

cf) Carimbos: Não obtivemos informações sobre a existência de carimbos.

e) Qualidade do papel: com marca de água cons­tante de uma flor de lis coroada.

f) Escrita: Caligrafia do século XVII I .

II — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.

— «Poesias Sacras do Doutor Gregorio de Mattos Guerra».

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— Còdice do Inventàrio de cedência e entrega do Nùcleo Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Pú­blica e Arquivo Distrital de Évora, sob o nº 303 dos manuscritos.

a) Encadernação: Inteira de carneira, de lombada de quatro nervos com filetes de ouro.

b) Dimensões: 201 mm x 145 mm. c) Número de páginas: 342 folhas numeradas re­

centemente. d) Carimbos: Não obtivemos informações sobre a

existência de carimbos. e) Qualidade do papei: com marca de água que

apresenta um escudete floreado com as letras TC inclusas.

/) Escrita: Caligrafia do século XVIII .

III — Biblioteca Pública c Arquivo Distrital.

— «Poesias Lyricas / de Gregorio de Mattos». — Códice do Inventário de cedência e entrega do Núcleo

Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Pú-ca e Arquivo Distrital de Évora sob o nº 552 dos manuscritos.

a) Encadernação: com inteira de carneira, de lom­bada de cinco nervos, lavrada de filetes e or­natos a ouro. Na lombada os dizeres P O ­ESIAS / LÍRICAS, e a indicação T. IJ.

b) Dimensões: 216 mm x 158 mm. c) Número de paginas: 184 folhas recentemente

numeradas. d) Carimbos: No foi. 1 lê-se Poesias Lyricas / de

Gregorio de Mattos, e em baixo a marca de pertence em letra de tipo de carimbo lê-se o nome Francisco de Mello Breyner.

e) Qualidade do papel: a marca de água do papel apresenta o nome do fabricante C. & I Honnic.

f) Escrita: Caligrafia do século XVII I .

Códice em Braga:

I — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.

— «Coleção de poesias»

— Códice Nº 591 a) Encadernação: Pergaminho sem dizeres na

lombada. b) Dimensões: 270 mm x 155 mm. Papel não

aparado.

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e) Nùmero de páginas: 338 fólios, numerados desde fol. 356 a 693. No final existe uma «tábua» (índice) de dois volumes, que ocupa 13 folios nao numerados. A tábua refere-se a dois volumes, mas na Biblioteca Pública e Ar­quivo Distrital de Braga existe apenas um, o qual pela numeração dos fólios depreende-se que é o segundo.

d) Carimbos: Dois carimbos a óleo da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga, no pri­meiro e no último fólio.

e) Escrita: Do século XVII I .

como vemos este nosso levantamento dos apógrafos de Gregorio de Mattos e Guerra — ainda imperfeito com tôda certeza, mas dando pistas precisas de localização e cotas — muito acrescenta ao rol elabo­rado por Houaiss (op. cit., p- 29) . com exceção dos códices de Lisboa (em número de três) e ao de Braga (cm dois volumes), aos quais o citado autor não faz qualquer referência, aqui vão constatados os de Évora (e não o de Évora), os do Porto (e não o do Porto), sendo que de todos estes já possuímos cópias microfilmadas.

Só não conseguimos localizar o códice que segundo Houaiss ( O p . cit., p. 29) é «da propriedade de um erudito português, funcionário da Alfândega de Lisboa». Estivemos nesta instituição mais de uma vez, inclusive no seu Arquivo, falamos com funcionários e ex-funcionários e, lamentavelmente, não foi possível localizar o tal erudito.

Vale salientar ainda que na lista dos apógrafos feita por Houaiss, notamos uma certa imprecisão na denominação dos mesmos, pois o autor refere-se à Biblioteca Nacional sem situá-la no Brasil, no Rio de Janeiro, o que poderá provocar uma confusão com a Bibliotaca Nacional de Lis­boa, principalmente de referência ao códice capitulado no Nº 2, pois tanto aqui como lá houve um Pedro II, sendo que o Pedro português rei­nou com a presença de Gregorio de Mattos e Guerra, durante certo período, ainda em Portugal.

Gostaríamos de informar que estamos elaborando um trabalho em torno do Códice nº 3.576 da Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção dos Reservados, Colecção Fundo Geral, «Obras / do Douctor / Gregorio de Ma-/ttos e Guerra» / (vide nossa relação: Códices em Lisboa), o qual possui características diferenciadoras relevantes.

O que faz este Códice destacar-se dos outros? Sendo um conjunto de poemas, como todos, este manuscrito apresenta em especial:

1 ) no início do volume, três fólios, não numerados, contendo o primeiro um desenho a pena, representando uma cesta de flores e borboletas; o segundo outro desenho a pena representativo de brasão, sob coroa de nobreza, e o rerceíro

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um frontispicio desenhado a pena, em estilo da época (barroco), com flores, pássaros, anjos, e a legenda «Obras / do Douctor / Gregorio de Ma- / ttos e Guerra».

2) no fólio 230 um frontispicio do índice, desenhado apenas, em estilo da época (barroco), com a legenda «A taboada seguinte he de to- / das as Obras deste livro». Nos fólios que seguem «A Taboada», no início de cada letra do alfabeto aparece uma curiosa capital desenhada.

3) nos fólios 242, 247, 248, 249. 251, aparecem desenhadas a pena cestas de frutas tropiciais e européias, flores, in­setos, aves.

De pronto poderemos deduzir que a presença destes elementos tro­picais (frutos, flores, aves, insetos) fornecem uma indicação de que o desenhista, quem sabe o próprio calígrafo andou pelo Brasil, seria bra­sileiro ou talvez lusitano.

Todos sabem que a totalidade dos Códices de Gregorio de Mattos e Guerra, até agora conhecidos, são fatura de copistas do século XVIII, trabalho posterior à morte do poeta. A datação destes manuscritos tem sido feitas com base em anotacões contidas nos apógrafos, em palpites ou conclusões através de estudos caligráficos efetuados por algum pes­quisador mais criterioso.

Este códice da Biblioteca Nacional de Lisboa, de nº 3.576, é de suma importância pois nele aparece um dado, uma fonte para datação não aleatória. Trata-se do brasão, já referido. Esta marca de per­tença nobre permite-nos adiantar que o manuscrito foi de propriedade dos Mirandas Henriques Salemas de um membro desta ilustre família ibérica.

É Jorge de Moser, nosso saudoso amigo e parceiro neste estudo sobre o Códice Nº 3.576, quem diz : « . . . penso poder atribuir a pro­priedade do manuscrito que nos ocupa a Fernão de Miranda Henriques Salema, nascido em Setúbal, no ano de 1641 e falecido em Lisboa, a 7/11/1697, viúvo desde 1679».

com esta preciosa informação não será temerário dizer que este códice poderá ser considerado seiscentista.

uma outra pista leva-nos a admitir esta fixação no tempo: o papel empregado no manuscrito é de fabricação Genovêsa (1675/1725), e usado na era do seiscentos, conforme consulta feita por Moser, a nosso pedido, ao Diretor da Biblioteca Universitária de Gênova.

Claro que estas fontes (brasão e marca do papel) não afastam, para uma datação de manuscritos, as implicações lingüísticas e filológicas a serem levantadas por especialistas nas tentativas de fixação do do­cumento no tempo.

Dos códices efetivamente datados e existentes em Portugal (e no Brasil), queremos assinalar aquêle por nós levantado, e pertencente à

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Biblioteca da Ajuda (vide nossa relação dos Códices em Lisboa), com a data de 1706 no frontispicio ou fôlha de rôsto, sendo éste o manus­crito mais próximo do poeta.

De referência aos Códices da Biblioteca Pública e Arquivo Distri­tal de Évora provenientes da Biblioteca do Visconde da Esperança ou Biblioteca da Manizola, especialmente o códice nº 587, citado em nossa relação no ítem I, temos a acrescentar que este manuscrito é aquêle que foi de propriedade do bibliófilo e escritor Inocencio Francisco da Silva, referido no seu «Diccionario Bibliographico Portuguez», Lisboa, Impren­sa Nacional, Tomo Terceiro, MDCCCLIX, p. 166: «Eu possuo tam­bém dous volumes do mesmo formato, dos quaes o primeiro, de letra dos primeiros annos do século XVIII, contém as Obras sacras e divinas, precedidas da vida e morte do poeta pelo sobredito licenceado Rebello, que occupa 57 pag. As seguintes até 170 são preenchidas com versos de Gregorio de Mattos, e de págs. 171 a 214 com outros do irmão d'esté, Eusebio de Mattos, que o collector declara ter incorporado aqui «por não desmerecerem no estylo, e serem merecedores de egual applauso». O tomo II de 456 pag., contém promiscuamente obras de todos os gêneros, e repetidas algumas, que se acham no tomo I».

Inocencio Francisco da Silva foi fornecedor de manuscritos e obras raras para a Biblioteca do Visconde da Esperança, e este códice de Nº 587, de poemas apógrafos de Gregorio de Mattos e Guerra, traz uma anotação apensa e escrita por Antonio Francisco Barata, bibliotecário do Visconde, na qual diz: «Pertenceu a Innocencio Francisco da Silva, que o menciona no Diccionario. . . ».

como se não bastassem estas provas para vincular o códice n° 587 a Inocencio Francisco da Silva, o próprio conteúdo do manuscrito é co­incidente com a descrição contida no «Diccionario Bibliographico Por­tuguez», na p. 166, pois os poemas apógrafos de GMG aparecem até a página 171, e desta em diante até a página 214 encontram-se as pro­duções atribuídas ao seu irmão Eusebio de Mattos.

Todas estas colocações sobre o códice nº 587. da Biblioteca Pú­blica e Arquivo Distrital de Évora, visam trazer de novo a baila a no­tícia sobre a propriedade de um dos códices do Imperador D. Pedro II, hoje pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e que teria sido adquirido pelo monarca brasileiro em leilão da biblioteca de Ino­cencio Francisco da Silva. Estes códices são aquêles que Afrânio Peixoto (6) aponta como «adquiridos provavelmente pelo Imperador do Brasil» quando foi do leilão dos livros daquele insigne bibliophilo: assim, pois, esses dois códices devem ser, para facilitar as referências, designados: Códices Innocencio — Pedro II, I e II, respectivamente».

(6) — Afrânio Peixoto — «Éditos e Inéditos de Gregorio de Mattos; (Nota Bio-bibíiographica) in Obras de Gregorio de Mattos. I — Sacra, Rio de Janeiro, Academia Brasileira, 1929, p. 14.

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Mais recentemente o escritor James Amado (Op . cit. p. 1747/ 1749) menciona, em sua relação sob o Nº 8, a existencia de uní «Códice Imperador de propriedade de D. Pedro 1,1, hoje na Bibl. N a c » . Éste códice diz Amado, e os do seu rol sob os ns. 9 («Códice Imperador 2-independente do anterior») e 10 («Códice Capitão Mor»), e 11 («Có­dice João Ribeiro»), «foram adquiridos ao espolio de Inocencio Fran-cisco da Silva». Também o historiador Hélio Viana em artigo intitu­lado «A Biblioteca do Imperador» (in Revista Brasileira de Cultura, MEC, Rio, 1970. Nº 5, p. 40-41). diz a respeito do assunto: «Se D. Pedro II não conseguiu comprar livros e manuscritos no frustrado leilão de Gomes de Amorim, pode adquirir peças que pertenceram ao seu correspondente, o bibliògrafo português Inocencio Francisco da Silva (1810/1876), no leilão em Lisboa, realizado depois da sua morte. Nele adquiriu, sem dúvida, dois códices de poesias do famoso poeta satírico baiano Gregorio de Mattos Guerra (1623/1693) (7) , hoje pertencentes à Secção de Manuscritos da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro».

como vemos, o códice que foi de Inocencio Francisco da Silva e vem nominado e descrito sumariamente no seu «Diccionario Bibliogra-phico Portuguez», p. 166, é o códice nº 587 da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora — que pertenceu ao Visconde da Esperan­ça e foi adquirido a Inocencio — ou é aquêle que pertenceu ao Impe­rador D. Pedro II — adquirido ao mesmo Inocencio — e hoje faz parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Somente uma análise mais detalhada e realizada por especialistas poderá resolver a questão. Por enquanto achamos que a prova mais evidente é aquela anotação do bibliotecário do Visconde da Esperança, apensa ao manus­crito, que diz: «Pertenceu a Innocencio Francisco da Silva, que o men­ciona no Diccionario.. .» . O códice descrito de modo tão sumário por .Inocencio deu lugar a que Afrânio Peixoto cogitasse ter sido um da­queles comprados «provavelmente (o grifo é nosso) pelo Imperador do Bras i l . . . », e a que vários pesquisadores e autores palmilhassem a mesma senda.

(7) — Não entendemos porque o historiador Hélio Viana ainda apresenta estas datas para nascimento e morte de Gregorio de Mattos e Guerra.

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AUGUSTO MEYER

CARLOS DANTE DE MORAES

E MBORA já o conhecesse através de alguns artigos, somente travei relações com Augusto Meyer em 1925. Estávamos então em pleno

Modernismo. Época eufórica, de abertura de sensibilidade e de espirito, de receptividade aguda aos valores novos que os vanguardeiros daquela corrente buscavam revelar e impor à literatura brasileira. Se houve aqui, no Rio Grande, quem mostrasse uma sensibilidade ardente e vibrátil a tôdas as manifestações literárias da hora, foi por certo Augusto Meyer. E estaria apto como ninguém a espelhar a dualidade de tendências da­quele movimento: de um lado, a procura de uma arte nova e de uma completa liberdade de expressão, hauridas na literatura da velha Eu-ropa; de outro, corrigindo o excesso de individualismo, a aspiração de encontrar e concretizar uma arte brasileira, contraposta ao academismo, entranhada fundamente na matéria-prima nacional.

Discorrer sobre Augusto Meyer me é fácil e ao mesmo tempo di­ficil. As lembranças afetivas e a grande admiração que nutri por êle, poderão deformar talvez a visão límpida e fiel de sua personalidade literária. Posso dizer que, desde o começo, enxerguei nele uma criatura privilegiada em que o cerebral agudo, forrado de cultura, se aliava, sem contradições, com uma sensibilidade fértil, rica em matizes, ondulante e dúctil. Jamais poderei esquecer as longas horas proveitosas que passei em sua companhia, debatendo os mais variados temas. Não que êle fosse um homem de fácil comunicação, um temperamento expan­sivo e um verbo fluente. Bem ao contrário. Era um profundo intro­vertido, que parecia cauteloso ao externar-se, cujos conceitos, porém, denunciavam a sua riqueza interior e uma precoce maturidade. Seus juízos, freqüentemente, vinham acompanhados de um sorriso, uma ex­pressão irônica, de quem não quer assumir uma atitude de «mestre» ou emitir opiniões definitivas. Tal modo de ser, porém, jamais lhe ini­biu a admiração, o louvor, a alegria, ante o que lhe parecia valioso e autêntico.

De que modo abordar uma personalidade literária complexa como a de Augusto Meyer? Ante a mente evocativa, emergem o poeta, o memorialista da infância e da juventude, o crítico, o ensaísta, o pro­fessor de literatura, o filòlogo, o folclorista. . . Mas o que me aparece

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em primeira plana, numa seqüência cronológica, é o poeta de Coração Verde. Há muitos anos passados, antes da publicação de suas poesias completas, escrevi um estudo sob o título A Poesia de Augusto Meyer e a Infância, o qual foi apenso, em posfácio, ao volume em questão. Em tal estudo, tentei mostrar que a sua poesia é uma permanente procura daquele estado virginal que emparelha o poeta, diante da vida, à criança que a descobre embevecida e maravilhada.

Nada iguala, em Coração Verde, o sentimento da natureza. Aqui se ouve um clamor, um grito de todos os sentidos e de tôda a gama dos sentimentos afetivos. Em regra, imprime-se na sensibilidade da criança uma infinidade de sensações variadas e confusas, provindas de todos os elementos do mundo físico. Experiência primitiva e avas­saladora, mas pouco lúcida, e que na maioria das pessoas, sem vida interior, pode permanecer até o fim surda e informulada. No poeta que descobre a natureza, porém, a sua força invade a consciência em tumulto, ilumina-se em prodígios, multiplica-se na refração cerebral da poesia. Entre o poeta e as árvores, as ervas, as águas e o sol, já não há estranheza ou separação. Voltou a identificar-se com eles, tal como na infância, mas a experimentar lìricamente, conscientemente, a volúpia dessa maravilhosa identificação,

Volúpia de gozar as sensações, de sentir junto a mim o coração da terra, no seu trabalho milenario e silencioso, como se eu fosse longamente uma raiz profunda. ..

(«Sombra verde»)

Tôda a minha alma em névoas, tôda a minha alma perdeu-se nas águas claras, nos capões verdes, na areia branca dos veios de á g u a . . .

(«Raiz nova»)

A obra-prima de Coração Verde é, sem dúvida, «Serão de Junho», versos de sete sílabas, em forma de romance popular. A sensação aguda e deliciosa do vento gélido que revoluteia três dias, assobiando nas frinchas e arrepiando as carnes, vem do fundo longínquo da infância e encontra ali um intérprete magistral. Duas das melhores peças que compôs têm a mesma origem: o «Minuano» dos Poemas de Bilu e a versão em prosa poética de Literatura e Poesia. Os temas regionais, para Augusto Meyer, constituem uma agreste matéria de que a sua sensibilidade, sem desfigurar a feição nativa, tira partido pessoal. Nada aí fica restrito ao ambiente regional, às suas limitações pitorescas ou episódicas, porque se universaliza na imaginativa lírica e nas intenções subjetivas. Disto o melhor exemplo será a «Oração ao Negrinho do

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Pastoreio», inserta na plaqueta Duas Orações. Ali a matèria folclòrica se enriquece nas tonalidades pessoais com que o poeta, apoderando-se do tema, faz transparecer, numa verdadeira descoberta lírica, a sua significação eterna

Eu quero achar-me, Negrinho! (Diz que Você acha tudo.) Ando tão longe, perd ido . . . Eu quero achar-me, Negrinho! a luz da vela me mostre o caminho do meu amor,

Negrinho, Você que achou pela mão da sua Madrinha os trinta tordilhos negros e varou a noite tôda de vela acesa na mão, (piava a coruja rouca no arrepio da escuridão, manhãzinha, a estrela d'alva na voz do galo cantava, mas quando a vela pingava, cada pingo era um clarão) Negrinho, Você que achou, me leve à estrada batida que vai dar no coração.

(Ah, os caminhos da vida ninguém sabe onde é que estão!)

Em Gicaluz, dois anos depois de Coração Verde, o poeta é um artífice perfeito. Não há desigualdades de tom nem o eco de outros poetas. O verso livre, a utilização habilidosa das formas populares, nada disso tem segredos para êle. Não se sente a mão alada no de­buxo e na cromatização variada das imagens, nem qualquer esforço no ajuste das sonoridades agudas, graves ou discretas, na combinação feliz da dissonância e a doçura melódica. Ao lado de notas altas como o «noturno da iluminação» ou a «balada do carreteiro», pode permi­tir-se caprichos líricos, a sugestão de um arrepio, como em «susto». Mas a sua concepção da poética permanece a mesma, não obstante a perícia técnica de que se enriqueceu. O gozo poético é o momento em que, simples e inocentes como as crianças, nós abrimos os olhos maravilhados para a vida. ..

Eternidade do minuto milagroso: a erva cresce, os grilos cantam sob o olhar antigo das estrelas. Tão simples o mistério que uma criança pode soletrar . . .

(«Milagre»)

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Mas neste Iivro de 1928, o poeta chega a um aparente impasse, estimulante e criador. Ou continua repetindo, forçando-a, a nota de pureza, inocência, virgindade, ou rompe com todos os seus processos, buscando o objetivo num registro muito diverso. A solução que adota é Bilu, personagem já nosso conhecido através das crônicas sobre o Modernismo. Na crise lírica a que o poeta chegou, Bilu é a sua ma­neira moleque e travessa de ser criança. Solista consumado, debalde êle tocará sonatas, cavaquinhos, prelúdios, em contraponto sarcástico. com melodia meio séria, meio bufa, cantará baladas, canções, ma-drigais. A frase da gíria, o traço grosso e satírico, a falta de pon­tuação e a gramática errada por cálculo, serão freqüentemente o seu regalo zombeteiro. Tudo, porém, não passa de um grande disfarce lírico e um modo de não comprometer-se. Sob a pele de Bilu, perma­nece o mesmo desejo e a mesma precisão de novidade e alvoroço ante o mundo, de frescura de visão ante as coisas,

Tudo é puro como o sol que vai nascer Vai tocando: o teu destino foi gravado na areia. Tudo é poema, criança. Você não sabe nada, felizmente: Saber é saber que não se sabe.

Ó terra terra beijos-polens respirações m a r é s . . . Cada jeito meu reproduz o milagre, no pulso ouço bater a força obscura, sou carregado na infinita adoração.

(«Bilu»)

Parece que o mundo nasceu de novo. («Força»)

Bilu, pensa nas madrugadas que virão, aspira a força da terra possante e contente.

(«Chewing gum»)

Sob certos aspectos, Poemas de Bilu é a culminância poética de Augusto Meyer. Atinge êle, em vários daqueles poemas, uma com­pleta liberdade, numa forma muitíssimo mais familiar, mais enxuta e concisa, despida de qualquer solenidade poética. Quem esquecerá, por exemplo, a admirável «Balada e Canha»? No livro seguinte, Literatura e Poesia, publicado em 1931, a prosa se torna poética e a poesia, para desferir com mais largueza os seus temas, se disfarça em prosa. .. Delicia-nos ali uma liberdade de imaginação, um jogo variado e im­previsto de reminiscências literárias e sentimentais, que mal caberiam no feitio musical cancioneiro de Poemas de Bilu. O egocêntrico que mal consegue desprender-se de si, quer sempre a mesma coisa: ver

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tudo com olhos novos.. . Fita as coisas simples, estas que nos ofere­cem todos os dias a mesma cara, e diz a poesia funda que elas contêm. E, noutra página, passa ao extremo oposto: aos jogos mais arriscados da imaginação, em que esta se complica, às vêzes com requintes na memória densa de literatura. Mas o seu principal escopo é encarar tudo de novo, mesmo os lugares-comuns, sem os entraves que os livros puseram ante os nossos olhos. «Porque o luar ainda existe, puro como o primeiro sonho nos olhos de um menino manhoso que não ganhou chocolate e ficou de castigo no quarto escuro» («Sonata ao luar»), Mas o nosso olhar está carregado de experiências e tudo enxerga atra­vés de um reticulado de idéias, de esquemas, de dados científicos, de planos racionais de agir. Por isto, como já o fizera em Poemas de Bilu, o poeta apresentará aqui o elogio irônico da burrice, enquanto des­morona as pilhas abafantes de cultura, que lhe ardem no cérebro e lhe queimam os sentidos sedentos de virgindade. ..

Literatura e Poesia dá-nos a impressão de uma despedida: a festa de um espírito que parece não mais voltará aos caminhos líricos. Há nele o ardor, a policromia, a fantasia solta de um baile de máscaras. O poeta chegou a um novo impasse aparentemente definitivo. Porque agora são as palavras que o traem. como poderão elas exprimir o «novo», se estão demasiado comprometidas com associações lógicas e literárias? Por isto, antes de quebrar o instrumento poético, dir-se-á que o poeta se diverte como o mascarado barulhento, que amanhã de­verá entrar na regra e na vida prosaica. Porque «silenciosa é a beleza e nós falamos t an to . . . » Chega o momento em que tôdas as palavras parecem mentirosas. A página final de Literatura e Poesia se intitula «Psiu». Êle prefere calar-se e ser, diante das coisas, apenas «uma pupila inocente e profunda.» Mas esta já não pode dissociar-se da bulha indiscreta das palavras. Impossível a identificação ingênua com as coisas. O espírito amadureceu. E o crítico prosseguiu na sua mar­cha ascendente, desvendando almas, interpretando segredos psicológi­cos, obras individuais e obras de inspiração coletiva e folclórica. Mas um reclamo subiu do mais íntimo de si mesmo. «Voltar! diz uma voz interior, voltar enquanto é tempo à manhã da tua v ida . . . » Os rin­cões encobertos da infância iam emergindo, e êJe se voltou para lá, sedento e nostálgico. Daí as páginas de evocação, tão cheias de en­canto, que o memorialista escreveu.

Antes da publicação das poesias completas de Augusto Meyer, pareceu-me que Literatura e Poesia encerrava o seu ciclo poético. Êle que era, incontestavelmente, uma das maiores expressões da poesia moderna no Brasil, teria preferido silenciar para não ser infiel às emo­ções mais autenticamente líricas. Prevalecia o espírito crítico, já agudo na fase poética, e êle passara à falange dos homens «aperreados pelo demônio das f ichas. . .» A um crítico é sempre perigoso fazer prog­nósticos ou vaticinios sobre o futuro de um poeta. Se de um modo geral as asserções críticas estão sujeitas a permanente revisão, as que se formulam no sentido do futuro correm o risco de um completo de*-

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mentido. Mas talvez o poeta se tenha surpreendido a si próprio na quadra dos quarenta. . . No caso, terá êle compreendido que os ca­minhos líricos nem sempre são irreversíveis. Não lhe bastava vibrar com emoção poética nos estudos de análise e interpretação literária. Haveria por certo um elemento em deficit na economia do artista, in­satisfeito com a tarefa absorvente de analista e pesquisador. Por isto, quando êle recomeça a poetar na primeira aura fria do outono, terá obedecido ao acicate de uma necessidade profunda.

Folhas arrancadas, prosa poética escrita de 1940 a 1944, será um

eco tardio de Literatura e Poesia. É como se Augusto Meyer arran­casse do passado páginas em recesso, que teriam ficado apenas esbo­çadas, para trazê-las à luz da maturidade. Últimos Poemas, porém, ela­borados de 1950 a 1955, nos oferecem depurada poesia, que acrescenta aspectos novos ao seu itinerário. Sua posição interior é a do poeta que, ao entrar no outono, se debruça nostálgico sobre tôda a sua vida. É por isso elegíaca a tonalidade dominante nesta série de poemas, Não haverá neles a côr viva, os enleios de luz tepida, e viço e o sumo ca-pitoso dos versos da juventude. Sugerem o crepúsculo, quando as sombras se alongam, os matizes se apuram, a paz e a quietude envol­vem os seres, e a natureza parece imobilizar-se para receber a noite que desce. Então, a alma é tôda disposição e brandura para captar as sonoridades sutis que vêm do mundo exterior, associadas pela magia poética às lembranças que sobem do mundo pessoal e invisível.

Em comparação com os livros anteriores, Últimos Poemas paten­teiam uma submissão maior ao metro e um domínio completo das for­mas poéticas. Na maior parte dos poemas, a melancolia, a evocação ou invocação são vertidas em estrofes bem escondidas, com a incidên­cia da rima ou da assonância, sem sacrifício da variedade rítmica e das liberdades formais. A linguagem deste livro é mais descarnada, o traço mais fino e fugidio, os tons de contraste justapondo-se numa tes­situra mais encantatória. A mirada introspectiva, acentuada ao extremo, surpreende as imagens de ângulos imprevistos, tocados pelo iris cam­biante dos reflexos. E a lembrança, emergindo do mundo escondido, assume o caráter de sombra, de fantasma, de criação noturna, indecisa entre a realidade, o mito e o sonho. «Há uma várzea no meu sonho. Mas não sei onde s e r á . . . » Pungencia, melancolia funda a ressair do tempo escoado, mas também paz e plenitude, a sensação de que a exis­tência, longe de vã, deu flor e fruto generosamente.

Gosto amargo e tão doce de ter sido Poroso a tudo, alma aberta às auroras Que hão de nascer, e ao lembrado e esquecido!

(«Soneto II»)

Estamos longe da colheita exuberante que a mão recolhe ávida na primavera e no começo do estio. Últimos Poemas é messe parei-

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moniosa de outono. Mas há nos seus frutos um sabor acre e doce, que não se encontra no ciclo anterior, e sobretudo um refinamento de qualidade.

uma questão que se impõe aos que fazem crítica, não apenas como cogitação teórica, mas também como orientação prática e normativa do seu exercício, é a de saber se a crítica deve ser preponderantemente subjetiva ou objetiva. Costuma-se chamar depreciativamente, entre nós, de crítica impressionista, a um labor interpretativo, que é às vêzes muito mais fundo, pois, se põe em realce a sensibilidade do analista, os seus dons e qualidades pessoais, implica um esforço de penetração no âmago das intenções do autor, no emaranhado de emoções e idéias que estão na gênese da obra. Sem dúvida, a crítica tem de caminhar para um terreno de compreensão segura e firme, apoiada nos mais variados ele­mentos culturais, a principiar pela técnica literária, utilizando-se de processos que assegurem o quanto possível a sua objetividade. Isto não quer dizer que deva marchar a um compasso estritamente científico. Haverá sempre na crítica uma quota de pessoalidade, de intuição e adivinhação, sem o que ela deixará de ser criadora, para se transformar numa análise fria e meticulosa. No seu núcleo essencial, a crítica é uma psicologia viva, uma exegese muito especial de obra e autores. Se essa é a sua dinâmica, urdida por variados fatores pessoais, ela não poderá nunca pretender o título de científica.

Poderia buscar apoio a tais asserções no estudo de Augusto Meyer sobre «Le Bateau Ivre» de Rimbaud. Este estudo é um anexo do seu Curso de Teoria da Literatura, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade do Brasil. Augusto Meyer mostra-se aqui sob uma feição em que se conciliam perfeitamente o professor universitário e o agudo crítico, tão nosso conhecido, de Machado de Assis. Não sei se outras páginas se escreveram, em que a figura esquiva e dúbia do autor de Dom Casmurro nos apareça sob aspectos tão cativantes, como nos en­saios «A sensualidade na obra de Machado de Assis» e «Capitu», e enfeixados no livro A sombra da Estante. Se alguém negar à crítica um papel criador, tais estudos vêm contrapor-se-lhe, afirmando da ma­neira mais expressiva a qualidade sonegada. Aqui já não é apenas o «monstro cerebral» o que lhe absorve a atenção, o prazer psicológico de descarná-lo segundo certas direções interiores, temário persistente do seu primeiro Machado de Assis, mas sim o homem de sentimentos e instintos, em tôda a sua compleição moral, manobrado nos meandros escusos da sua personalidade pela «libido cientiendi», apesar de sua terrível autocrítica. São obras-primas de interpretação, em que a su­tileza da análise e a intuição da profundeza se aliam à graça, à leveza dos toques, ao sentido dos matizes íntimos, à desenvoltura de um es­pírito que não encontra barreiras em seus ágeis movimentos.

Para abordar um dos poemas capitais de Rimbaud, de sua cátedra universitária, o mestre vem aparelhado de um conhecimento perfeito do tema e do terreno a explorar. Esmiuçando as fontes inspiradoras do «Bateau Ivre», a sua linguagem, sua versificação, seu opulento ero-

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inatismo, êle se entrega a uma análise de ordem estilística e técnica percuciente e exaustiva. A desbastar eruditamente todo esse campo, o seu escopo é ressaltar o que o poema revela de original, mesmo de «violentamente original», no seu dizer.

Mas o poema de Rimbaud, como significação psicológica, é dúbio e enigmático, e sobre êle já se forjaram hipóteses e conjeturas literá­rias as mais discordantes. Que significa esse navio doido e solitário que, largando o rio, desanda pelos sete mares nas mais incríveis aven­turas, até o cansaço e a desilusão? Será meramente gratuito ou lúdico aquêle desfilar magnífico de ritmos e imagens violentas ou nos escon­de algo mais fundo e simbólico, em consonância com a vida do poeta?

Após análise estilística, feita com argúcia e finura através dos quatro movimentos em que divide o poema, procura o crítico a con­cordância dos valores literários com o sentido psicológico. «Não será difícil tomar impulso agora», diz êle, «para o salto simbólico e a reve­lação de um segundo sentido, mais profundo e humano, o que de outro lado representa um retorno à realidade psicológica do poema.» O Ba­teau Ivre», aquela fúria que arremete pelos sete mares, ébria de mara­vilhas, para depois aplacar-se num retorno desencantado, seria uma prefiguração do próprio destino de Rimbaud. «como o seu navio des­garrado, o poeta corta as amarras que o prendiam a tôdas as pequenas misérias quotidianas e caminha ao encontro do seu destino». Embora premunido contra as tentações fáceis da crítica biográfica, êle asse­vera que ninguém poderá reler os versos finais «sem traduzi-los em termos de vida e fatalidade.»

A análise e a interpretação que nos deu Augusto Meyer de «Le Bateau Ivre» constituem um exemplo magistral do alcance e valor da crítica, firmada em bases objetivas, mas inspirada por esse sopro in­tuitivo e criador que é da sua essência.

Ainda haveria muito que dizer sobre o Augusto Meyer crítico e ensaísta. Nas páginas de «Preto & Branco» e de «A Chave e a Más­cara», deparamos a cada passo com a agudeza de sua inteligência in­terpretativa, a versar os mais diversos temas, da nossa e da literatura universal. Mas o erudito que êle era, ledor infatigável, conhecedor de várias literaturas e variadas áreas culturais, jamais se deixou sopear ou embaraçar pela carga do saber e das idéias. Sob a construção dos seus estudos, mesmo aquêles de mais acurada pesquisa estilística, como o vemos, por exemplo, em «Camões, o Bruxo», havia sempre uma fluência de sensibilidade lírica, a suavizar e a aquecer a dura objeti­vidade interpretativa, verdadeiros achados metafóricos, que lhe permi­tiam associar o encanto ao rigor exegético. E quando abordava um assunto com a aparente ligeireza da crônica, êle aí imprimia a sua finura, a sua marca indelével, às vêzes com uma ponta de humour ou de ironia.

Nenhum escritor rio-grandense terá espelhado como Augusto Meyer, de maneira tão cativante, a dualidade de tendências que carac-

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terizam boa parte de nossos escritores: a atração das idéias universais e o apego aos assuntos regionais. Este humanista consumado sentia-se fortemente atraído pelos temas do pago, pela nossa formação histórica, pela figura do gaúcho, assim como pelo cancioneiro, a linguagem e o folclore tecidos pela inventiva agreste da psique popular. Os seus dons agudos de pesquisador arraigaram-se fundamente na terra natal. Ê reler Prosa dos Pagos, Cancioneiro Gaúcho e Guia do Folclore Gaúcho. E a natureza do Rio Grande, com os seus campos infindos, capões e coxilhas batidos de sol, assim como esta cidade de Porto Alegre, onde nasceu, estariam no âmago de seu coração. Quando êle descobre a natureza, em pleno Modernismo, é que a sua poesia irrompe com força e plenitude. Já ficara longe o adolescente sério e comedido de Ilusão Querida. .. Daí por diante, qualquer que fosse o registro literário em que se expressasse, a terra natal estaria sempre impregnando, como seiva generosa, a sensibilidade delicada e a penetração sutil deste espírito universal que foi Augusto Meyer, uma das maiores figuras da nossa história literária.

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CECÍLIA MEIRELES, PASTÓRA DE NUVENS E MITOS

ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO

ESTOU seguro de que conheci Cecília Meireles na Semana Santa de 1949 em Ouro Preto. Antes de lhe ser apresentado, vi-a descer com

as dificuldades e os cuidados naturais a ladeira quase a pique que leva à velha igreja de Santa Efigenia. Soube então que aquela suave figura feminina, muito cordial e sorridente, era a grande poetisa que eu admi­rava à distância, já íntimo dos seus versos admiráveis. Mais tarde se daria o nosso encontro no Grande Hotel, onde se encontrava igualmente o saudoso Edgar Cavalheiro. Creio mesmo que foi o escritor paulista que me aproximou de Cecília Meireles.

Andava ela então ocupada com todos os assuntos referentes à In­confidência Mineira. Lia, estudava, pesquisava. A gente, lendo o extraordinário Romanceiro da Inconfidência, sente logo que uma obra como aquela não se improvisa, é antes resultado de um convívio muito longo e mesmo exaustivo com o tema. Cecília Meireles não escreveu apenas um poema sobre a Inconfidência; na verdade nos deu a visão total do movimento, tudo isso sem perder nunca o seu poder de co­municação poética, o seu imenso lirismo dotado de prodigiosa técnica, sem permitir, em suma, que a prosa viesse maltratar o que devia ser um vasto panorama lírico, de beleza que nos empolga desde o primeiro verso e nos vai conduzindo nas suas asas poderosas pelos altos cami­nhos em que vidas e acontecimentos ressurgem ao sopro misterioso de um estro que atinge não raro a força e a pujança da epopéia mas na verdade é sempre, invariavelmente, pura e tocante poesia ceciliana.

A inconfundível, pura poesia ceciliana . .. Dela ainda falarei, mas o que quero agora é me voltar, um tanto nostàlgicamente, para esses recuados dias em que pela primeira vez estive com a nossa poetisa e, também, com Edgar Cavalheiro. Lá se foram ambos, Edgar Cavalheiro tão mais cedo, e é de alguma forma sentir-nos novamente com eles recordá-los em momentos que se gravaram em nós com o vinco do que realmente impressionou nossa sensibilidade e ficou, digamos assim, res­soando em nosso espírito.

Reunimo-nos no Grande Hotel, falamos de coisas várias, sobretudo de poesia. E desse encontro o que guardo são dois «Improvisos» que Cecília Meireles me ofereceu com o desprendimento de quem conhece

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a própria riqueza, ou sem pensar nisso, talvez desejosa apenas de ser amável, daquela gentileza que foi tão dela e que tão definidora nos parece ser da sua personalidade, da sua inteligência fascinante, da sua sensibilidade riquíssima e tão marcantemente pessoal.

O primeiro desses improvisos nos faia de Guignard. Já o divulguei num trabalho que não teve maior circulação, num suplemento literário. E me lembro de ter falado dos assuntos que Cecília Meireles evoca aí, ao tratar lìricamente de Ouro Preto, sobretudo da alusão a Guignard, que lá estava também, na antiga capital mineira, onde viria a falecer em 1966. Guignard e Ouro Preto, pode-se dizer, entenderam-se à maravilha. De tal forma que ao 1er o «Improviso» de Cecília Meireles temos de lhe dar plena e total razão quando afirma que Deus botou no mundo o grande pintor Guignard para pintar Ouro P r e t o . . . Mas não nos detenhamos em árida prosa, carente do sopro que têm os versos de Cecília Meireles, ainda mesmo aquêles que guardam, como esses, a espontaneidade natural do gênero. Vamos logo ao «l9 Improviso», tal como o denominou a autora:

O que é que Ouro Preto tem ? Tem montanhas e luar. tem burrinhos, pombos brancos, nuvens vermelhas pelo ar; tem procissões nas ladeiras, com dois sinos a tocar, opas de tôdas as cores, anjinhos a caminhar; tem Rosário, S. Francisco, Sta. Efigenia, Pilar; tem altares, oratórios, cadeirinhas de arruar; casas de doze janelas, estudantes a cantar; tem saudades, tem fantasmas, tem ouro em todo lugar; santos de pedra sabão, pedras para escorregar, e ali na rua das Flores, na varandinha do bar, tem a figura risonha do grande pintor Guignard que Deus botou neste mundo para Ouro Preto pintar.

Será preciso dizer algo mais ? Conversa puxa conversa, e me vejo inclinado a falar tanto de Edgar Cavalheiro como de Guignard. Vou fazê-lo com brevidade, apenas para evocar os poucos encontros que tive com Cavalheiro (que cavalheiro foi mais do que ninguém e era o pri­meiro a reconhecer a fatalidade de certos nomes . . . ), sobretudo a visita

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que com êle fiz, em 1954, ao túmulo de Mário de Andrade no Cemitério da Consolação. Êle me foi buscar no Hotel Esplanada, ou Esplanada Hotel, para ser mais exato, que já desapareceu também mas era impor­tante, ou o foi em determinada fase, a ponto de merecer uma referência nitidamente oswaldiana em . . . Oswald de Andrade (onde foi que eu a li, meu Deus ?). Dali saímos rumo à nécropole, numa fresca manhã. Detivemo-nos bom tempo junto do túmulo do nosso inesquecível Mário, depois falamos de outros mortos que estão sepultados perto do grande escritor, tais como a Marquesa de Santos, Libero Badaró, Monteiro Lobato . . . Edgar Cavalheiro, com a boina azul que lhe dava um ar tão pessoal e característico, apontou para o céu amplo e azul e disse estas palavras que não esqueci mais: «As almas estão voando por aí». Não tardaria muito e sua delicada e sensível alma iria fazer companhia às que voavam por ali.

De Guignard, este me lembro muito mais, por efeito de um convívio mais freqüente. Quanta vez fui visitá-lo na sua escola de arte, no Par­que Municipal, em Belo Horizonte. Êle era todo vibração, entusiasmo, ardor de moço perdido entre moços e moças que não eram apenas discí­pulos mas amigos por quem se desvelava. Os discípulos de Guignard se lembram dele como nos lembramos todos os seus amigos: com a me­lancolia da sua ausência mas também com a lição de ternura e afeto que foi tôda essa vida voltada para a arte e para o belo, esse espírito de uma dimensão que assentava sobretudo na simplicidade, na singele­za, na alegria espontânea de quem parece ignorar o mal de tanto se preocupar com o bem. O bem era, aliás, o clima em que navegava essa alma puríssima, até mesmo ingênua, desprendida de bens terrestres, ávida apenas de participar das alegrias alheias ou, se possível, propor­cionar a alguém essas alegrias. Recordo particularmente a manhã em que entrou na minha casa sobraçando uma tela que ofereceria a mim e minha mulher e em que fixara exatamente a sua escola de arte no Parque Municipal, cercada daquelas árvores esguias e diluídas que são de Guignard e apenas de Guignard. Foi decerto a contemplação dessa tela e a evocação do amigo agora descansando no silêncio maior, den­tro da velha cidade que tanto amara, essa Ouro Preto tão presente na sua obra, que me levaram a compor, em 6 de abril de 1965, um soneto que não aproveitei e que trago para aqui exclusivamente como homena­gem, das poucas e sei que inexpressivas que posso render à memória do artista extraordinário. Dei-lhe o título de «Sobre uma tela de Gui­gnard» :

Na tela data o claro parque: em ti, essa manhã das árvores, da grama. Em ti, qualquer oculta e vaga chama, talvez a mesma que pousou ali.

De quem são esses vultos ? Foi aqui, nesta casa que o mestre, todo [lama, comunicava sua arte (que êle ama, sempre amou, dar de seu, dar mais de si.)

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Lembro-o por entre tintas, cavaletes, entre moços e môças sorridentes, álacre e matinal, de mão segura.

Que ginetes do tempo, que ginetes levaram mestre, moços, manhãs quentes ? — Não busques este olhar, lágrima pura . ..

O «2' Improviso» também vem falar-nos de outro excelente artista plástico, o mineiro Amílcar de Castro Filho, como tudo faz crer, em virtude da alusão final ao quadro de Amílcar. Logo se vê que Cecília Meireles se inspirou, para a composição desse improviso, a meu ver ainda mais belo do que o outro, num quadro de Amílcar sobre Ouro Preto. E o fêz de maneira a, interpretando-o ou traduzindo as suges­tões que êle despertava na sua sensibilidade agudíssima, transmitir-nos muito da sua poesia, da inconfundível torrente lírica em que nos dei­xamos levar como num suave rio de frescas e diáfanas águas. Que esse foi o segredo de Cecília Meireles: poeta como poucos, havia nela uma força lírica formidável (haja vista o que pôde realizar, com sopro épico, no inigualável Romanceiro da Inconfidência) expressa em lingua­gem encantatória a que, paradoxalmente e na verdade bem feminina-mente, não falta uma delicadeza e doçura de embalo ou canção de berço. Não sei se consigo me fazer entender. Talvez o melhor seja recorrer a um outro «Improviso», este do nosso Manuel Bandeira, que em 7 de outubro de 1945 dedicou a Cecília Meireles estes versos, in­cluídos no livro Belo Belo:

Cecília, és libérrima e exata como a concha. Mas a concha é excessiva matéria E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil como a onda ao termo da luta. Mas a onda è água que afoga: Tu não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar, Diáfana, diáfana. Mas o ar tem limites: Tu, quem te pode limitar ?

Definição: Concha, mas de orelha: Água, mas de lágrima; Ar com sentimento. — Brisa, viração Da asa de uma abelha.

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«Diáfana, diáfana: «Brisa, viração / Da asa de uma abelha»: aí nos parece que Manuel Bandeira captou o essencial da poesia de Cecília Meireles, pelo menos algumas das suas notas mais definidoras.

Mas vamos ao «2? Improviso»:

Cidade não vejo, não. Ê fumaça de candeia, passado, superstição. — Chico Rei, que ê dos tesouros ? — Foi tudo pra fundição. Deus me livre 1 a Zua cheia correu pela minha mão. Subi, desci, — pura treva. E os escravos, no porão. Passei pontes de água e areia com os anjos da escuridão. O regato é que falava na sua murmuração. Se batesse em porta alheia e desse meu coração, quem é que receberia esse ramo de ilusão ? Cidade, porém, não vejo: vejo a memória das chaves sobre as cruzes do portão.

A dona, pálida e feia, também morreu de paixão. Jesus Cristo ! era tão bela às luzes da procissão I «O nome dela me esquece. O pai chamava Leitão». «Uns dizem que foi punhal, mas outros que foi facão.» (Não se importe, que eu lhe conto mais casos de escravidão.) Uns morrem na sua alcova, outros com o sangue no chão . . .

Eu levo o quadro de Amilcar: cidade não se vê não. Mas vê-se o perfil do tempo chorando ressurreição.

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No Iivro Viagem, Cecília Meireles se definiu admiràvelmente num poema também admirável, «Destino», como «pastóra de nuvens». Dei­xem que eu transcreva a primeira estrofe:

Pastóra de nuvens, fui posta a serviço por uma campina tão desamparada que nao principia nem também termina, e onde nunca é noite e nunca madrugada.

Vale a pena procurá-la em outras estâncias, que ela está presente na sua poesia. Tomo do Mar absoluto, que editou em 1945, pela Li­vraria do Globo. Vou à pag. 72, onde figura este «Beira-mar»:

Sou moradora das areias, de altas espumas: os navios passam pelas minhas janelas como o sangue nas minhas veias, como os peixinhos nos rios ...

Não têm velas e têm velas; e o mar tem e não tem sereias; e eu navego e estou parada, vejo mundos e estou cega, porque isto é mal de familia, ser de areia, de água, de ilha ... E até sem barco navega quem para o mar foi fadada.

Deus te proteja. Cecília, que tudo é mar — e mais nada.

À pag. 103, «Interpretação»:

As palavras ai estão, uma por uma ! porém minh'alma sabe mais.

De muito inverossímil se perfuma o lábio fatigado de áis.

Falai ! que estou distante e distraída. com meu tédio sem voz.

Falai ! meu mundo é feito de outra vida. Talvez nós não sejamos nós.

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Ah, a poesia de Cecilia . . . Ela bem que tinha razão de dizer, essa estranha pastóra de nuvens e mitos, rematando o poema «Noite» (pá­gina 165 ) :

Pergunto a Deus se estou viva, se estou sonhando ou acordada. Lábio de Deus ! — Sensitiva Tocada.

Talvez nós não sejamos nós . . . Sua voz é sempre assim, a de alguém que está mas parecendo não estar. Pego da sua Obra Poética (Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1958) e vou abrindo a bem dizer ao acaso. E leio na pág, 502:

Dize-me tu, montanha dura, onde nenhum rebanho pasce, de que lado na terra escura brilha o nácar de sua face.

Dize-me tu, ó céu deserto, dize-me tu se é muito tarde, se a vida é longe e a dor é perto e tudo é feito de acabar-se !

Na pág. 553:

Passeio no gume de estradas tão graves que afligem o próprio inimigo. A mim, que me importam espécies de instantes, se existo infinita ?

Na pag. 578:

Eu, pastóra que apascento estrelas da madrugada pelas campinas do vento . ..

Para lembrá-la agora, a essa pastóra admirável de mitos e nuvens, a essa incomparável intérprete do fluido, do incorpóreo, do mistério que tudo impregna e fascina o homem, frágil e atônito transeunte, para lem­brá-la releio cartas que me enviou, elas também cheias da mesma e ¡material delicadeza, nascida de uma linguagem evanescente.

Em 20 de julho de 1962, já enferma, falava-me dos inúmeros poe­mas que tinha inéditos: « . . . ficarei por aqui catando versos pelas gave­tas, para editar tudo antes que me sinta sem mais ligação com o que escrevi». A realidade, contudo, doía na sensibilidade agudíssima:

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«.. . tenho uns programas de rádio que me tomam muito tempo. En­fim, é a minha contribuição à cultura, contribuição um pouco desalenta­da, considerando-se a importância do futebol . . .».

Em 6 de abril de 1954, referindo-se à inauguração do mausoléu de Alphonsus de Guimaraens em Mariana: «Não me agradeça ter compa­recido à solenidade de Mariana ! Foi um momento de Poesia. Mesmo a chuva era bela, e voltei com o coração cheio de música e flores, por­que havia sido homenageado um Poeta».

Em 22 de setembro de 1945, quando a procurei no Rio houve um desencontro que não permitiu que nos conhecêssemos: «Os ares não andam bons para ninguém. E nós, pobres poetas, caímos por aí, como andorinhas sufocadas . . .» .

E, finalmente, um episódio curioso em nossas vidas. No encontro de abril de 1949, em Ouro Preto, propusemo-nos uma espécie de torneio. Seria escrevermos ambos um poema sobre um tema que apaixonava especialmente a Cecília Meireles: a estranha figura de Olímpia, que depois ainda mais se populizaria e ainda hoje faz parte da paisagem da antiga Vila Rica. Pus mãos à obra e me saiu este «um poema, em Ouro Preto», que dediquei a Cecília, e cuja transcrição aqui se torna necessária para um confronto com o dela, tão mais completo e impor­tante:

Mas a louca de Ouro Preto será louca ? com a sua estranha figura estranhamente vestida o negro chapéu de flôres e a cabeça sempre erguida — magra, alta, cncarquilhada — que notícias tem da vida ? Que sabe acaso da morte ?

Será louca ?

Herdeira de poesia de um alto sonho frustrado, arrastará um passado tão grave tão dolorido que nem mais haverá dia e ver o mundo é ter visto e partir é já ter ido.

Será louca ?

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Vamos vê-la, vamos vê-la na Ladeira do Pilar ! Conduz o facho da estrela e a maresia lunar. Pois assim como do Oreb {sombriamente elucida) Moisés, com o seu bastão, diante da multidão, fêz água pura fluir, e à multidão que pedia: «Água / Água !», respondia: «Há de vir !» também ela tocando com o seu bastão a laje a cruz a vidraça o chafariz as igrejas as cornijas o balcão, as clarabóias das almas minaretes do perdão, tocando com o seu bastão a tarde o silêncio a fluida triste cidade suspensa na cerração do luar, também ela ao irmão vento ao céu revela o seu mais forte segredo: «Há de vir !»

Cecília Meireles me enviou o poema de sua autoria juntamente com uma carta datada de 23 de maio de 1949. Vê-se que já havia recebido o meu, tanto que comenta: «Achei interessantíssimo o seu poema, so­bretudo por essa prova a que nos submetemos de tratar do mesmo tema ! Veja só como dois poetas, diante do mesmo assunto, reagem de modo tão diverso ! Creio que o nosso caso poderá ilustrar qualquer estudo de composição poética. É certo que V. não falou com a Olímpia no dia seguinte: ela me contou coisas antigas: suas liteiras, que estão no Museu, seu prestígio sobre políticos e generais (foi ela que conseguiu isenção do serviço militar para os lavradores, o fim da guerra e t c ) , e aquelas grandezas longínquas, bem evidentes, aliás, na sua linguagem e nos seus modos. Gosto muito dela. Aquilo é o que se pode chamar

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uma loucura distinta». Vinha o poema, intitulado «Monólogo de Olímpia» :

«.Meu berço jaz num campo altivo de privilégios e mercês, encostado à lira de um poeta, sob a coroa de um marquês.

Dos meus brocados roçagantes, hoje ninguém já veste mais: jura que fiz de assim compor-me para honrar os meus ancestrais.

(Se bem que eu caminho no mundo penando um recusado amor que eles do meu peito arrancaram como a abelha o néctar da flor.)

Pelo orgulho de meus parentes, apanho estes papéis do chão, roçando no lixo das ruas minha predestinada mão.

Meu berço está quebrado longe. entre lavras de ouro sem fim. A alma dos escravos, nas covas, ainda trabalha para mim.

Só me restam cesta e cajado e os girassóis do meu chapéu. (Deus perdoe meus pobres parentes e os guarde no reino do céu.)

Em cada capela onde passo, ponho meu beijo sobre o altar e prometo a Deus e a seus santos esta Vila ressuscitar.

Pois vedes que tudo se perde: as fontes já não têm. mais voz, morreram os jardins de aroma que eram glória de meus avós,

sumiram minhas sesmarias, e nunca mais encontrarei velhos papéis que me roubaram, e onde havia a firma do Rei.

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Morrem as próprias sepulturas: gasta-se na lousa a inscrição. Mas os meus sonhos reprimidos em chama perpétua arderão.

Êste cajado que carrego é como o que levou Moisés: Eu farei reviver o povo que está soçobrado a meus pés.

Por aquelas brenlias escuras, córregos de ouro vão brotar. Vede- torres, sinos e cruzes, altos palácios novos no ar !

Vede: arcos, pontes, chafarizes ... Vede as janelas ! E escutai pelas calçadas procurar-me, em cavalo de ouro, meu pai.

Vede os brocados que me envolvem ! E vede quem me beija a mão, entre os candelabros de prata e as pinturas de meu salão !

Os parentes mortos assistem meu dia de triunfo, que vem. Eu sou o cinamomo e o nardo e a rosa de Jerusalém.

Na arca da minha camarinha, dobrei as sedas do enxoval. Nunca ouvi falar de princesa que tivesse possuído igual.

Nem os bispos sob o seu palio cintilaram jamais como eu. Que a opulência da antiga Vila pelas minhas mãos renasceu.

Por estas mãos que andam na terra catando trapos e papéis, só com seu sangue de turquesa, sem braceletes nem anéis.

Ah ! meu leito com seus pastores amando-se em música e luar ! Liteiras de damasco .. . Espelhos onde foi tão belo mirar !

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Pelo orgulho de meus parentes, só tenho as flores de chapéu. (Desejo que estejam no inferno ! — peço a Deus que fiquem no céu.)

Meu berço era de rosas de ouro em colunas de ostentação. Serafins que havia, mataram. Guardo o punhal no coração.'»

Vinha a data: «Vila Rica, 17 de abril de 1949». E logo se vê que um poema como esse, tão povoado das recordações de Olímpia, tinha de ser datado mesmo de Vila Rica, jamais de Ouro Preto. Eu tornei a escrever-lhe, com o devido entusiasmo. Respondeu-me em car­ta de 7 de julho de 1949: «Alphonsus — uma carta rápida, porque estou presa a un trabalho urgentíssimo; mas uma carta para agradecer suas bondosas palavras. Quanto ao seu poema, não tremeu nada: ficou ali firme, sereno e belo.» ( u m parêntese: cumpre transcrever também o elogio, mesmo porque eu já lhe tinha manifestado o sentimento da supe­rioridade do seu poema, e ela gentilmente, como sempre, acudiu com palavras, estas sim, bondosas.) Prosseguia: «Há dias, li os dois, numa reunião — e acharam interessantíssimo. (V. notou que escrevemos no mesmo dia ?) — Se V. prefere o novo título, talvez acrescente clareza ou atmosfera.»

Houve ainda outra tentativa dr. fazermos um poema sobre outro tema. Mas tudr. ficou apenas no projeto, de que ela se ocupou em carta de 25 de julho de 1949: «Èsse Deslandes, mais do que um nome de rua, merece um poema. Vamos fazê-lo ? V. me disse em Ouro Preto que andava sem inspiração. . . — e descreve-me esse homem de tal maneira que eu já não sei agora como me livrar dele, das suas frutas e dos passarinhos .. . Acho que êle agora andará com Santo Isidro, que é o santo lavrador, plantando as chácaras do céu. Deve ter-se en­contrado por lá com Francis Jammes, e com arados de cometas revolvem o solo celeste, e colhem cachos de constelações.» Não haverá aí, nessas palavras de uma carta, todo um poema ?

Cecilia Meireles . .. Disse de início que a conheci em Ouro Preto na Semana Santa de 1949. Teria sido? Por mais certeza que possa ter, sempre nos acode aquela insegurança (e tão seguro estava eu a princípio) natural em quem convive com uma poetisa assim, de tamanha diafaneidade que a própria figura humana que foi como que transparece e nos foge, entre nuvens e mitos, na penosa e implacável realidade em que rastejamos. Ela, a admirável Cecília, é que deverá estar, liberta de todo sofrimento, revolvendo com arados de cometas o solo celeste e colhendo cachos de constelações.

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