Livros Santos Dumont

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Livros de autoria do Pai da Aviação

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Mais de um sculo se passou desde o seu maior triunfo, o voo do 14-Bis, mas o mundo no esquece Alberto Santos-Dumont. A cada ano, novos autores buscam desvendar os segredos deste pequeno grande gnio brasileiro. Afinal, quem resiste saga de um jovem rico e interiorano que, pouco depois de desembarcar anonimamente na cosmopolita Paris, passa a ditar moda e superar os maiores desafios da histria da aviao? A coleo Santos-Dumont, de prprio punho vem ampliar essa descoberta com a reedio de duas obras indispensveis para conhecermos o inventor: os seus livros autobiogrficos Dans LAir - No Ar e O Que Eu Vi - O Que Ns Veremos. Os lanamentos, alm de seguirem rigorosamente os contedos originais, em textos e imagens, contam com uma apresentao grfica indita, tornando a leitura muito mais interessante e reveladora.

uma experincia inspiradora ler as suas memrias. Santos-Dumont era um idealista com os ps no cho. Fincado nas maiores realidades, resolveu uma quantidade de problemas e, quando seu 14-Bis decolou pela primeira vez, em 23 de outubro de 1906, tomou posse do ar, submeteu os elementos da natureza e provou ao mundo que o homem podia voar. E o melhor, meus amigos, era brasileiro! Ozires Silva Oficial aviador, engenheiro aeronutico, membro fundador e primeiro presidente da Embraer. Honrado e com grande surpresa e prazer, recebi o convite para dar testemunho sobre o relanamento dos dois nicos livros editados pelo tio Alberto. Este trabalho, primoroso e especfico, retrata fatos histricos e acontecimentos cotidianos pelo melhor ponto de vista, o do prprio autor. Em complemento, aconselho uma visita ao Museu de Cabangu, casa natal de Santos-Dumont, em Minas Gerais, onde possvel conhecer em detalhes muito do que narrado nestas duas importantssimas obras. Parabns, tio Alberto, voc foi o homem que aproximou o mundo encurtando distncias e deu glrias ao Brasil. Jorge Henrique Dumont Dodsworth Sobrinho-neto de Alberto Santos-Dumont.

Em www.santosdumontdepropriopunho.com.br, conhea o resultado de anos de pesquisa e milhares de quilmetros rodados em busca das memrias de Santos-Dumont. Acompanhe o cotidiano do inventor numa srie de imagens rarssimas, acesse uma vasta bibliografia, descubra as marcas que ele deixou em diversas cidades do mundo e muito mais.

Patrocnio:

ISBN 978-85-62342-00-4

9 788562 342004

A. SANTOS-DUMONT

Obra ilustrada com numerosos desenhos executados por Santos-Dumont para os seus diferentes dirigveis.

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Lembro que estava nos primeiros anos de escola quando descobri quem era Alberto Santos-Dumont. Sua histria me despertou grande curiosidade. Como um brasileiro poderia ter inventado algo to fantstico, como o avio? At ento, eu nunca tinha ouvido falar que o nosso povo havia criado alguma coisa importante para a humanidade... Anos depois, num fascculo da coleo Grandes Personagens da Nossa Histria, fiquei sabendo que Santos-Dumont tambm tinha lanado dois livros: Dans LAir e O Que Eu Vi - O Que Ns Veremos. De sebo em sebo, acabei encontrando as obras. Foram nessas pginas que acabei descobrindo um inventor genial e uma pessoa singular. Hoje, por essas felizes coincidncias da vida, mal consigo acreditar quando vejo os dois volumes renascendo pela minha editora. Meu pequeno sonho, de homenagear esse grande dolo, agora uma realidade. Para tanto, contei com o apoio decisivo do Ministrio da Cultura, da 3M e de dezenas de pessoas que ousaram apostar num annimo jornalista. Agora, falando um pouco sobre Dans LAir - No Ar, gostaria de destacar uns pontos muito interessantes da obra. O primeiro a sua qualidade literria. Nas prximas pginas, voc no encontrar um simples relato tcnico. A narrativa de Santos-Dumont cheia de detalhes e sensaes, uma saga de vitrias, derrotas, medos, tristezas e alegrias.

Tambm a histria de um exemplo de brasileiro: batalhador, intuitivo, curioso, modesto, caridoso e... genial! Mesmo sendo um milionrio, se no tivesse essas qualidades, Santos-Dumont no teria feito histria. At hoje, impressionante pensarmos que, em apenas dez anos, esse tmido garoto de fazenda do Brasil se tornou uma personalidade mundial. Voc tambm ter a oportunidade de acompanhar, em pormenor e por meio de desenhos do prprio inventor, toda a intensa produo de Santos-Dumont nos seus primeiros anos em Paris. De 1898 a 1904, quando Dans LAir foi lanado, ele havia criado dois bales e dez dirigveis. A maioria construda em seu prprio hangar com alguns mecnicos. Mas, acima de tudo, penso que o maior legado desta obra seja a inspirao que Santos-Dumont deixou em cada pgina. Quando a escreveu, no intervalo entre a conquista do prmio Deutsch e a criao do 14-Bis, tinha apenas 30 anos e havia realizado os mais impossveis sonhos. Se ele conseguiu, fica para ns o desafio: por que no tentar? Boa Leitura e timos Sonhos! Douglas Cavallari de Santana

A. SANTOS-DUMONT

DANS LAIR NO ARPatrocnio:

SANTOS-DUMONT, DE PRPRIO PUNHO

DANS LAIR - NO AR VOLUME ICoordenao Editorial Douglas Cavallari de Santana Restaurao Fotogrfica Paulo Ricardo Pedrosa e Jlio Ricc Reviso de Portugus Paulo Roberto de Morais Sarmento Traduo do Francs Luc Robert Jean Matheron Impresso Grfica Criao Crdito das Imagens Acervo do Coordenador: pginas 32, 48, 68, 76, 82, 88, 94, 96, 122, 150, 166 e 184 Fundao Casa de Cabangu: pginas 13, 34, 45, 50, 54, 58, 119, 135, 136, 179 e 187 Museu Aeroespacial da FAB: pginas 7, 37, 47, 70, 78, 139, 174, 200 e 207 Museu Paulista da USP: pginas 1, 17, 19, 21, 25, 56, 61, 72, 79, 80, 81, 85, 90, 91, 92, 93, 98, 102, 104, 105, 107, 108, 110, 112, 115, 116, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 137, 147, 153, 157, 159, 161, 171, 173, 177, 181, 189, 191, 192, 195, 197, 199, 205 e medalha a Santos-Dumont (por Jos Rosael) Santos-Dumont, Alberto (1873-1932) Dans LAir - No Ar / Alberto Santos-Dumont: Bauru: Taller Comunicao, 2009. ISBN 978-85-62342-01-1 1. Santos-Dumont 2. Aeronutica 3. Aviadores 4. Avies 5. Inventores 6. Biografias ndices para catlogo sistemtico: 1. Aviao: biografias de aeronautas 629.130092 Taller Comunicao Editora Caixa Postal 207 - 17015-970 Bauru - So Paulo - Brasil Tel.: +55 (14) 3204-1884 www.taller-comunicacao.com

ALGUMAS PESSOAS VEEM AS COISAS COMO SO E PERGUNTAM: POR QU? SONHO COM COISAS QUE NUNCA EXISTIRAM E PERGUNTO: POR QUE NO? GEORGE BERNARD SHAW (1856-1950)

ESCRITOR IRLANDS E PRMIO NOBEL

APRESENTAO

INOVADORES, INDISPENSVEIS

A busca incansvel pelo novo e o desejo de ir alm, acumular conhecimentos, superar os desafios e melhorar as condies de vida so uma constante na histria da humanidade e, certamente, a sua maior fora. Foi com esse esprito que Alberto Santos-Dumont, um pequeno e tmido jovem criado em fazendas pelo interior do Brasil, partiu para a efervescente Paris da belle poque e, em apenas dez anos, revolucionou a histria da aviao. Na mesma poca, em 1902, cinco empresrios dos Estados Unidos resolveram apostar no ramo da minerao e criaram a Minnesota Mining and Manufacturing. A mina no se mostrou rentvel e, diante da adversidade, decidiram criar uma inovadora linha de abrasivos. A partir de ento, a sigla 3M tornou-se conhecida em todo o mundo. Hoje, a 3M uma empresa de tecnologia diversificada, detentora de milhares de patentes e vrias marcas de sucesso, como Scotch-Brite MR, Scotch , Scotchgard TM, Post-It , Durex MR, Ponjita MR, Nexcare MR, Command TM e Nomad MR. Sua ampla linha de solues se faz presente nos mais variados momentos da nossa vida. Na indstria aeroespacial, onde atua desde os primeiros momentos, a trajetria da 3M tambm marcada pela constante pesquisa e inovao. Seus produtos esto presentes desde o projeto at a manuteno de aeronaves e foguetes. Mas a 3M consciente de que a inovao ganha um sentido muito mais amplo quando colabora com a melhoria da sociedade. Presente no Brasil h 63 anos, a empresa reconhecida pelo exerccio da responsabilidade social e apoio de aes sustentveis, por meio do Instituto 3M de Inovao Social. Diante de tantos ideais em comum, com grande satisfao que apoiamos a publicao da coleo Santos-Dumont, de prprio punho, responsvel pelo relanamento dos livros de memria deste exemplo de inventor e pessoa. Esperamos que muitos brasileiros conheam, ou recordem, os ensinamentos deixados por Alberto Santos-Dumont e sintam-se inspirados a seguir o seu caminho, nas mais diversas reas. A humanidade ter muito a ganhar. Carmella Carvalho Presidente do Instituto 3M de Inovao Social

ALBERTO SANTOS-DUMONT

DANS LAIR - NO AR

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RACIOCNIOS DE CRIANAS

INTRODUOEM FORMA DE FBULA

RACIOCNIOS DE CRIANAS

Dois jovens brasileiros passeavam pela sombra, conversando, dois ingnuos garotos do interior, ignorantes de tudo, a no ser da riqueza das primitivas plantaes, onde nenhuma das invenes feitas para aliviar o esforo do trabalhador tinha ainda perturbado a Natureza, que ali dava seus frutos ao homem pelo custo do seu prprio suor. Tal era a ignorncia deles sobre as mquinas que nunca tinham visto uma charrete, nem um carrinho de mo. Cavalos e bois transportavam no lombo os objetos necessrios vida da fazenda, enquanto os calmos lavradores nativos lhe agregavam valor com a enxada e a p. Eram garotos reflexivos. Os assuntos que discutiam no momento excediam, em muito, tudo quanto eles haviam visto ou ouvido. - Por que no se arranja um meio de transporte melhor do que o lombo dos animais?, dizia Lus. No vero passado, atrelei uns cavalos a uma porta de celeiro; sobre esta, carreguei sacos de milho; e assim transportei, em um s carregamento, mais do que 10 cavalos teriam levado. verdade que foram precisos sete cavalos para arrastar a carga, alm de dois homens ao lado para impedi-la de escorregar. - Que voc quer?, respondia Pedro, tudo se compensa na Natureza. No se pode tirar alguma coisa do nada, nem muito do pouco! - Coloque rolos debaixo desse tren, e precisar de uma menor fora de trao. - Ora! Os rolos se deslocaro, ter de recoloc-los sempre, e perderemos, neste trabalho, o que houvermos ganho em fora. - Mas, esses rolos, observava Lus, poderiam ser unidos ao tren em certos pontos fixos, fazendo um furo no centro deles. Ou ento, por que no adaptar peas circulares de madeira aos quatro cantos do tren? Olhe, Pedro, l em baixo, na estrada... O que vem chegando? Exatamente o que eu imaginava, ainda melhor realizado. Basta um cavalo para pux-lo, em boa velocidade.

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Uma carreta parou, a primeira que aparecia nesta regio interiorana; o condutor ps-se a conversar com os nossos garotos. - Essas coisas redondas, disse-lhes, as chamamos de rodas. Pedro custou a aceitar o princpio. - O processo deve esconder algum defeito, insistia ele. Olhe em volta. A Natureza usa esse instrumento que voc chama de roda? Observe o mecanismo do corpo humano. Observe a estrutura do cavalo. Observe... - Observe que o cavalo, o homem e a carreta com as suas rodas esto nos deixando aqui..., interrompeu Lus, rindo. Voc no se rende ao fato consumado. Voc me enfastia com seus apelos Natureza. Ser que o homem jamais realizou um verdadeiro progresso que no fosse uma vitria sobre ela? No lhe fazer violncia derrubar uma rvore? Atrevome a ir mais longe nesta questo da carreta. Suponha um gerador de energia mais poderoso do que este cavalo... - Atrele dois cavalos carreta. - de uma mquina que estou falando, disse Lus. - De um cavalo mecnico, de pernas muito poderosas?, sugeriu Pedro. - No. Gostaria de um carro motor. Se pudesse descobrir uma fora artificial, eu a faria atuar sobre um determinado ponto em cada roda. Assim, a carreta levaria por si mesma o seu propulsor. - como tentar elevar-se do solo puxando os cordes dos sapatos!, zombou Pedro. O homem est na dependncia de certas leis fsicas. O cavalo, verdade, carrega mais do que o seu peso, mas a prpria Natureza o proveu de pernas apropriadas para tanto. Tivesse voc a fora artificial de que fala, seria obrigado, na sua aplicao, a conformar-se com as leis fsicas. Entendi! Voc exerc-la-ia sobre longas hastes, que empurrariam a carreta por detrs. - sobre as rodas que quero levar a fora. - Pela ordem natural das coisas, haveria uma perda de energia. mais difcil movimentar uma roda aplicando a fora motriz no interior da circunferncia que dirigindo-a diretamente sobre o exterior, como, por exemplo, impelindo ou arrastando uma carreta. - Para diminuir o atrito, eu faria correr o meu veculo motor sobre trilhos de ferro muito lisos. Assim, a perda de energia seria compensada por um ganho de velocidade. - Trilhos de ferro muito lisos!... gargalhou Pedro. As rodas patinariam na superfcie. Teria de colocar encaixes na borda dos aros e encaixes correspondentes nos trilhos; e como, dessa forma, voc impediria que o veculo motor sasse dos trilhos? Nossos garotos tinham andado depressa. Um silvo agudo os fez estremecer. Diante dos olhos surgia-lhes a linha de uma estrada de ferro em construo e, dentre as colinas, avanava um trem de lastro, com uma velocidade que lhes parecia enorme.

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RACIOCNIOS DE CRIANAS

- Uma avalanche!... exclamou Pedro. - Aqui est a realizao do meu sonho, disse Lus. O trem estacou. Uma turma de trabalhadores desceu; e enquanto comeavam a trabalhar na obra, o maquinista, respondendo s perguntas dos dois meninos, explicava o funcionamento da sua mquina. Pelo caminho de volta, Lus e Pedro discutiam sobre a maravilha que acabava de se revelar a eles. - Se o homem aplicasse o mesmo uso aos rios, dizia Lus, tomar-se-ia senhor da gua como j da terra. Bastaria inventar rodas que pudessem agir sobre a gua; fix-las-ia a um grande quadro, parecido com o corpo de uma carreta, e a mquina a vapor os faria andar sobre o rio. - No diga tolices!, exclamou Pedro. Os peixes flutuam? Na gua, devemos viajar como eles, no superfcie, mas embaixo. O seu quadro, cheio de ar leve, emborcaria no primeiro movimento. E as rodas, voc acha que fariam alguma fora sobre um corpo lquido? - O que sugere ento? - Isso: que o seu veculo aqutico fosse construdo com uma meia dzia de peas articuladas, de forma a poder serpear na gua qual um peixe. Um peixe navega. Voc quer navegar: estude o peixe! H peixes que utilizam barbatanas propulsoras e nadadeiras. Assim sendo, voc poderia imaginar um sistema de largas palhetas, que batam na gua como o fazem nossos ps e nossas mos quando nadamos. Mas no me fale em roda de carreta na gua! Os dois encontravam-se, agora, margem de um grande rio. O primeiro navio que singrava suas guas aparecia ao longe. Para os nossos jovens, era apenas, ainda, uma forma indistinta. - Parece, evidentemente, uma baleia, disse Pedro. O que que navega? O peixe. Qual o peixe cuja metade do corpo emerge quando nada? A baleia. Veja como ela esguicha gua! - No gua, mas sim vapor ou fumaa, opinou Lus. - Nesse caso, uma baleia morta; o vapor da sua decomposio, que a faz flutuar alto sobre a superfcie. Uma baleia morta flutua muito alto sobre as costas. - No mesmo!, disse Lus. decididamente uma carruagem aqutica a vapor. - Soltando fumaa produzida por um fogo interno, como na locomotiva? - Perfeitamente. - Mas o fogo a queimaria. - certo que o bojo de ferro, como o da locomotiva. - O ferro afundaria. Atire um machado ao rio, se quiser ver. O navio atracou prximo aos jovens. Dirigindo-se at ele, tiveram a alegria de ver no convs um velho amigo da famlia, plantador das vizinhanas.

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- Subam meninos, disse ele. Venham conhecer o navio! Examinaram demoradamente a mquina; depois disso, com o velho amigo, foram sentar-se proa, na sombra de uma tenda. - Pedro, disse Lus, ser que algum dia os homens no inventaro um navio para navegar no cu? O fazendeiro, homem de bom senso, olhou com ar apreensivo para o garoto, que enrubesceu. - Teria permanecido demais no Sol, Lus?, perguntou-lhe. - No faa caso, tranquilizou Pedro, ele somente fala assim, levianamente. mania. - Nada disso meu filho, disse o fazendeiro, o homem jamais pilotar um navio no espao. - Mas, insistiu Lus, na vspera de So Joo, quando acendemos as fogueiras, fazemos elevarem-se no cu pequenas esferas de papel cheias de ar quente. Se encontrasse um jeito de construir uma esfera muito grande, o bastante para levantar consigo um homem, um carrinho leve e um motor, o aparelho no poderia ser guiado nos ares, do mesmo modo que um navio nas guas? - Meu amiguinho, no diga tolice!, replicou o velho amigo da famlia com vivacidade, enquanto o capito do navio se aproximava. Tarde demais. O capito tinha ouvido a observao do jovem; longe de cham-la de tolice, justificou-a. - O grande balo que voc idealiza, disse, j existe desde 1783. Porm, embora capaz de levantar um ou mais homens, no pode ser dirigido. Est merc do mais leve sopro de brisa. Em 1852, um engenheiro francs, chamado Giffard, experimentou uma derrota gloriosa em sua tentativa de balo dirigvel munido de um motor e de um propulsor, tais como sonhou Lus. O mais claro resultado das suas experincias foi evidenciar a impossibilidade de dirigir um balo nos ares. - Somente haveria uma coisa para fazer, falou Pedro, categrico: construir uma mquina inspirada no modelo do pssaro. - Pedro um menino de bom senso, observou o velho fazendeiro. Pena que Lus no se parea mais com ele e se deixe dominar por suas vises. Diga-me, Pedro, por que motivos voc prefere o pssaro ao balo? - Motivos muito simples, respondeu Pedro, suavemente. de uma lgica elementar. O homem voa? No. O pssaro voa? Voa. Portanto, se o homem quiser voar tem que imitar o pssaro. A Natureza fez o pssaro; e ela no se engana. Se o pssaro fosse apenas um grande saco cheio de ar, talvez pudssemos pensar no balo. - Bem pensado!, exclamaram conjuntamente o capito e o fazendeiro. Lus, porm, sentado no seu canto, murmurava, com a incredulidade de um Galileu: - Ele ser dirigvel!

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HENRIQUE DUMONT, PAI DE ALBERTO SANTOS-DUMONT E O PRIMEIRO REI DO CAF DO BRASIL

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UMA PLANTAO DE CAF NO BRASIL

CAPTULO I

UMA PLANTAO DE CAF NO BRASIL

Pela maneira como fui agredido pelos partidrios da Natureza, os leitores poderiam reconhecer-me na figura do ingnuo e utpico Lus da fbula. De fato, sabido que iniciei as minhas experincias em iguais condies de desconhecimento, tanto da mecnica como da aeronutica. Estas experincias no eram consideradas impossveis at o momento do seu xito? E a condenao categrica do racional Pedro no continua a pesar sobre mim? Apesar de ter dirigido, sob a minha vontade, um navio no cu, ainda ouo alegarem que todos os seres que voam so mais pesados que o ar. Pouco falta para que me tornem responsvel pelos trgicos acidentes ocorridos a outros que, em mecnica e aerostao, no possuam a minha experincia. Tudo considerado, melhor vale que a minha narrativa comece na fazenda de caf onde nasci em 1873. Os europeus imaginam as plantaes brasileiras como pitorescas colnias primitivas, perdidas na imensidade do pampa, no conhecendo nem a carreta nem o carrinho de mo, tampouco a luz eltrica ou o telefone. H, de fato, em certas regies recuadas do interior, colnias desta espcie, em que se fazem nas costas de animais os transportes agrcolas, e onde plcidos caipiras manejam a p e a enxada. Atravessei algumas delas durante as minhas caadas. Tais no eram, porm, as plantaes de caf de So Paulo. * * * Nota: por razes desconhecidas, naquela poca o mineiro Santos-Dumont costumava dizer que havia nascido na fazenda de caf da famlia, na atual cidade paulista de Dumont. A mesma afirmao encontrada, por exemplo, numa entrevista que deu para a revista francesa Lectures pour Touts, na edio de 01/01/1914.

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Dificilmente se conceberia um meio mais sugestivo para a imaginao de uma criana que sonha com invenes mecnicas. Aos sete anos, eu j tinha permisso para guiar os locomveis de grandes rodas empregados na nossa propriedade nos trabalhos do campo; aos 12, tinha conquistado o meu lugar nas locomotivas Baldwin que faziam o transporte do caf nas 60 milhas de via frrea assentadas na fazenda. Enquanto meu pai e meus irmos gostavam ir a cavalo a locais mais ou menos distantes, para ver como os cafeeiros eram tratados, se a colheita ia bem ou se as chuvas causavam prejuzos, eu preferia fugir para a usina, para brincar com as mquinas de beneficiamento. Imagino que, em geral, no se faa ideia de todo o mtodo cientfico que rege a explorao de uma fazenda brasileira. Desde o momento em que os gros verdes de caf, trazidos por um trem, chegam usina, at a hora em que, pronto para o consumo e classificado, o produto embarcado nos transatlnticos, nenhuma mo humana toca nele. Sabemos que os gros de caf preto, quando ditos verdes, so... vermelhos. Apesar do risco de complicar ainda mais, diria que parecem cerejas. Descarregados aos montes no edifcio central da usina, os gros vo primeiramente para grandes tanques cheios de gua, continuamente agitada e renovada. A terra agarrada aos gros e as pedrinhas acumuladas no transporte vo depositar-se no fundo; os prprios gros e os detritos vegetais flutuam e so carregados para fora do tanque pelo meio de uma calha inclinada, cujo fundo crivado de pequenos orifcios. Atravs destes passa o caf com um pouco de gua, ao passo que os pedaos de madeira e folhas continuam flutuando. Nesse ponto esto os gros limpos. Guardam sempre a cor vermelha, com o aspecto e tamanho de cerejas. Essa cor vermelha se deve casca que os reveste e que chamada de polpa. Cada fruto contm duas sementes, cada uma delas envolvida por uma pelcula. A gua que cai com os frutos os leva at uma mquina chamada de despolpador que esmaga a casca externa e libera as sementes. Longos tubos, ditos secadores, recebem as sementes ainda molhadas e revestidas da pelcula; ali, so permanentemente agitadas sob a ao de ar quente. O caf, sendo muito delicado, precisa ser tratado com cuidado. Uma vez secas, as sementes so apanhadas pelas caambas de uma elevadora sem fim e, para evitar qualquer risco de incndio, elas escorregam sobre uma calha inclinada at outro edifcio, onde ficam as mquinas. A primeira destas um ventilador munido de peneiras de vai-e-vem, que apenas deixam passar entre as suas malhas os gros. Nenhum destes se perde a; nenhuma impureza fica. A mais insignificante pedrinha, o menor fragmento de madeira que passasse com as sementes bastariam para avariar a mquina seguinte. Uma segunda elevadora sem fim as apanha at a altura de uma calha inclinada pela qual caem no descascador, que um conjunto de peas de extrema preciso: intervalos largos demais deixariam passar o caf sem despoj-lo da pelcula; ao contrrio, se fossem estreitos demais, esmagariam as sementes.

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A FAZENDA DE CAF DO SR. DUMONT NO BRASIL

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Apanhadas por outra elevadora, as sementes descascadas, mas ainda misturadas com as pelculas, so levadas a um novo ventilador, onde essas ltimas so arrastadas pelo vento. Finalmente, estando limpas, as sementes vo, pelo meio de um ltimo elevador, para o separador, que um grande tubo de cobre com cerca de sete metros de comprimento por dois metros de dimetro, ligeiramente inclinado. Este tubo conta primeiramente com pequenos furos pelos quais passam os gros menores; depois, orifcios maiores, que do passagem aos de tamanho mdio; e, mais adiante, orifcios ainda maiores, para a sada das volumosas sementes arredondadas chamadas de tipo moca. A funo do separador consiste, portanto, em separar o caf de acordo com os tamanhos padronizados. Cada tipo cai sobre uma tremonha especfica. Embaixo esto as balanas e os homens com os sacos. medida que cada saco recebe o seu peso normal de caf, substitudo por outro, vazio; depois de costurados e marcados, so expedidos para a Europa. Todas estas mquinas de que acabo de falar, bem como as que forneciam a fora motriz, foram os brinquedos da minha infncia. O hbito de v-las funcionar diariamente ensinou-me, muito depressa, a habilidade de consert-las, em qualquer das suas partes. So, como j disse, mquinas muito delicadas. As peneiras mveis, notadamente, correm o risco de avaria a qualquer momento. Sua leveza era bastante grande, seu balano horizontal, muito rpido, e consumiam uma quantidade enorme de energia motriz. Constantemente fazia-se necessrio trocar as correias, e bem me recordo dos vos esforos em que todos nos empenhvamos para remediar os defeitos mecnicos do sistema. No notvel que, dentre todas as mquinas da usina, s essas desastradas peneiras mveis no fossem rotativas? No eram rotativas e eram defeituosas! Creio que foi este pequeno fato que, desde cedo, me ps de preveno contra todos os processos mecnicos de agitao, e me predisps a favor do movimento rotatrio, de mais fcil governo e mais prtico. Talvez, dentro de meio sculo, o homem conquistar o ar com o emprego de mquinas voadoras mais pesadas que o meio onde se movem. Olho para o futuro com esperana. Por enquanto, fui ao seu encontro mais longe do que qualquer outro. Minhas aeronaves que receberam a este propsito tantas crticas - so um tanto mais pesadas que o ar. Mas h um ponto a respeito do qual a minha convico est perfeitamente definida: saber que, no dia em que acontecer a inveno vitoriosa, esta no ser constituda por asas que batem, nem por qualquer coisa semelhante que se agite. No saberia dizer com que idade constru as minhas primeiras pipas. Lembro-me, entretanto, das chacotas que faziam de mim os meus camaradas, quando brincvamos de passarinho-voa. O divertimento muito conhecido. As crianas colocam-se em torno de uma mesa, e uma delas vai perguntando, em voz alta: Pombo voa?... Galinha voa?...

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AOS SETE ANOS, SANTOS-DUMONTDIRIGIA OS LOCOMVEIS UTILIZADOS NOS TRABALHOS NO CAMPO

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Urubu voa?... Abelha voa?... E assim sucessivamente. A cada chamada todos ns devamos levantar o dedo e responder. Acontecia, porm, que, de vez em quando, algum anunciava: Cachorro voa?... Raposa voa?... ou algum disparate semelhante, a fim de nos surpreender; se algum levantasse o dedo, tinha de pagar uma prenda. Meus companheiros no deixavam de piscar o olho e sorrir maliciosamente cada vez que perguntavam: Homem voa?... Pois cada vez eu erguia o meu dedo bem alto, sinalizando minha certeza absoluta, e me recusava obstinadamente a pagar a prenda. Quanto mais zombavam de mim, mais feliz eu me sentia. Tinha a convico de que um dia eles estariam do meu lado. Entre os milhares de cartas que me chegaram no dia em que ganhei o prmio Deutsch, uma houve que me causou particular emoo. Transcrevo-a, pela curiosidade: Voc se lembra, meu caro Alberto, do tempo em que brincvamos juntos de Passarinho voa?A recordao daquela poca veio-me de repente no dia em que chegou ao Rio a notcia do seu triunfo. O homem voa, meu caro! Voc tinha razo em levantar o dedo, pois acaba de demonstr-lo voando por cima da Torre Eiffel. E tinha razo em no querer pagar a prenda. O Sr. Deutsch paga-a por voc. Bravo! Voc bem merece este prmio de 100.000 francos. O velho jogo est em moda em nossa casa mais do que nunca; mas desde o dia 19 de Outubro de 1901, ns lhe trocamos o nome e modificamos a regra: chamamo-lo agora o jogo do Homem voa? e aquele que no levanta o dedo chamada paga a prenda. Vosso amigo, Pedro. Esta carta me remete aos dias mais felizes da minha vida, quando, espera de melhores oportunidades, eu me exercitava construindo aeronaves com hastes de palha e cujos propulsores eram acionados por tiras de borracha enroladas, ou fazendo efmeros bales de papel de seda. A cada ano, no dia 24 de junho, sobre as fogueiras de So Joo, que, no Brasil, so de tradio imemorial, enchia dzias destes pequenos montgolfires, e contemplava, extasiado, a ascenso deles ao cu. Naquele tempo, confesso, meu autor favorito era o Julio Verne. A sadia imaginao deste grande escritor, atuando com magia sobre as imutveis leis da matria, me fascinou desde a infncia. Nas suas concepes audaciosas eu via, sem nunca me embaraar em qualquer dvida, a mecnica e a cincia dos tempos do porvir, em que o homem, unicamente pelo seu gnio, se igualaria a um semideus.

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AOS 12 ANOS, SANTOS-DUMONTDIRIGIA AS LOCOMOTIVAS

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BALDWIN TRANSPORTANDO CARGAS DE CAF RECM-COLHIDO

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Com o capito Nemo e seus convidados, explorava as profundidades do oceano, nesse precursor dos submarinos, o Nautilus. Com Philas Fogg, fazia em oitenta dias a volta ao mundo. Na Ilha a Hlice e na Casa a Vapor, minha f de criana saudava com acolhimento entusiasta o triunfo definitivo do automobilismo, que, naquela ocasio, no tinha ainda nome. Com Heitor Servadac, navegava pelo espao. Vi pela primeira vez um balo em 1888, com a idade de 15 anos. Havia em So Paulo uma exposio ou qualquer solenidade: um aeronauta profissional realizou uma ascenso para atirar-se num paraquedas. Eu j estava perfeitamente familiarizado com a histria de Montgolfier; sabia da nova mania pela aerostao, que, com uma srie de corajosas e brilhantes experincias, marcou de maneira significativa os ltimos anos do sculo XVIII e os primeiros do sculo XIX; havia devotado um verdadeiro culto de admirao aos quatro gnios Montgolfier, os fsicos Charles e Piltre de Rozier e o mecnico Henry Giffard - que haviam indissoluvelmente ligado os seus nomes aos grandes progressos da navegao area. Eu tambm desejava praticar balonismo. Durante as longas tardes ensolaradas do Brasil, ninado pelo zumbido dos insetos, pontuado pelo grito distante de algum pssaro, deitava sombra da varanda, e me detinha horas e horas a contemplar o belo cu brasileiro, onde as aves voam to alto, subindo com facilidade com as suas asas largamente abertas, onde as nuvens flutuam alegremente na luz pura do dia, e onde basta levantar os olhos para apaixonar-se pelo espao livre. Assim meditando sobre a explorao do grande oceano celeste, por minha vez eu criava aeronaves, inventava mquinas. Tais devaneios, eu os guardava comigo. Naquela poca, e no Brasil, falar em inventar uma mquina voadora, um balo dirigvel, seria querer passar por desequilibrado ou visionrio. Os aeronautas, que subiam em bales esfricos, eram considerados como profissionais audaciosos, no muito diferentes dos acrobatas de circo; e que o filho de um fazendeiro de caf sonhasse em tornar-se um mulo deles, teria sido quase que um pecado social.

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OS AERONAUTAS PROFISSIONAIS

CAPTULO II

OS AERONAUTAS PROFISSIONAIS

Em 1891, foi decidido que a minha famlia faria uma viagem a Paris. A perspectiva causou-me dupla satisfao. Paris, como se diz, o lugar para onde emigra a alma dos bons americanos quando morrem. Para mim, de acordo com a convico adquirida em leituras, a Frana, terra dos ancestrais de meu pai, que fizera seu curso de engenheiro na cole Centrale, representava a prpria grandeza e o progresso. Na Frana que fora lanado o primeiro balo cheio com hidrognio, que voara a primeira aeronave com uma mquina a vapor, hlice e leme. Naturalmente, eu acreditava que a questo havia avanado de maneira considervel desde a data em que, em 1852, Henry Giffard, com uma coragem to grande quanto a sua cincia, havia demonstrado de forma magistral a possibilidade de dirigir um balo. Dizia a mim mesmo: Vou a Paris ver coisas novas - bales dirigveis e automveis!. Portanto, numa das primeiras tardes livre, escapei da minha famlia e fiz um reconhecimento. Com grande surpresa, soube que no existiam bales dirigveis, mas apenas bales esfricos, como o de Charles em 1783! Ningum havia, depois de Giffard, prosseguido as experincias com bales alongados, propelidos por motores trmicos. O experimento de bales similares com motor eltrico, tentado pelos irmos Tissandier em 1883, havia sido retomado por dois construtores no ano seguinte, e finalmente abandonado em 1885. Fazia anos, no se via nos ares um s balo em forma de charuto. Isto me fazia retornar aos bales esfricos. Consultei um anurio da cidade de Paris, e encontrei o endereo de um aeronauta profissional, ao qual fui comunicar os meus planos. - O senhor quer fazer uma ascenso?, perguntou-me o homem em tom grave. Hum! Hum!... Acha que ter coragem? Uma ascenso de balo no brincadeira, e o senhor me parece muito jovem.

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Garanti a firmeza da minha determinao e da minha coragem. Pouco a pouco, meus argumentos o abalaram; tanto que, por fim, concordou em me levar para uma curta ascenso, de, no mximo, duas horas de durao, numa tarde que estivesse bem calma. - Meus honorrios, acrescentou ele, sero de 1.200 francos. Alm disso, o senhor assinar um contrato declarando que se responsabiliza por qualquer dano ocorrido a sua pessoa e a minha, ao bem de terceiros, ao balo e seus acessrios. Ficaram tambm ao encargo do senhor as despesas de trem para nosso retorno bem como para o transporte do balo e sua barquinha, do lugar em que aterrissarmos at Paris. Pedi para pensar. Para um rapaz de 18 anos, 1.200 francos era uma grande quantia. Como, perante a minha famlia, iria justificar tal despesa? E fiz o seguinte raciocnio: - Se arriscar 1.200 francos pelo prazer de uma tarde, posso gostar, ou no gostar. No primeiro caso, arriscarei o meu dinheiro em pura perda; no segundo, ficarei com vontade de repetir o divertimento, e no terei os meios. O dilema mostrou-me o caminho a seguir. Desisti, no sem pesar, da aerostao, e fui buscar consolo no automobilismo. Os automveis eram ainda raros em Paris em 1891: tive de ir fbrica de Valentigney para comprar minha primeira mquina, uma Peugeot routire, de trs e meio cavalos de potncia. Era uma curiosidade. Naquele tempo, no existiam ainda nem licena de automvel nem exame de motorista. Quando algum dirigia a nova inveno pelas ruas da capital, era por sua prpria conta e risco. Tal era o interesse que despertava que eu no podia parar em certas praas, como a da pera, com receio de juntar a multido e interromper o trnsito. Tornei-me imediatamente um adepto fervoroso do automvel. Entretive-me a estudar os seus diversos rgos e as interaes de cada um. Aprendi a tratar e consertar a mquina; e quando, ao fim de sete meses, minha famlia voltou para o Brasil, levei comigo a minha Peugeot. Retornei a Paris em 1892. Sempre com a ideia fixa nos meus sonhos de balo, fui procurar outros aeronautas profissionais. Como o primeiro, todos me pediam quantias extravagantes pela mais insignificante ascenso. Todos mantinham a mesma atitude. Descreviam a aerostao como um perigo e uma dificuldade, exagerando, a seu bel-prazer, os riscos para pessoas e bens. Alm do mais, no obstante os altos preos que pediam, no mostravam interesse em concluir a proposta. Evidentemente, estavam decididos a conservar a aerostao s para eles, como um Segredo de Estado. E a consequncia foi que comprei um novo automvel. Devo reconhecer que as coisas mudaram consideravelmente desde ento, graas fundao do Aero Club de Frana. Naquela poca, estava nascendo a moda dos triciclos automveis. Escolhi um que jamais me proporcionou o menor acidente. Meu entusiasmo foi to grande que institui em Paris, pela primeira vez, corridas de mototriciclos. Aluguei por uma tarde o veldromo do

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VISTA MOSTRANDO, EM UMA ASCENSO, AS25DIFICULDADES DOS TELHADOS, CHAMINS E PONTAS

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Parc des Princes e organizei uma corrida pela qual ofereci os prmios. As pessoas de bom senso prognosticaram um desastre. O evento deveria comprovar, para satisfao deles, que, fatalmente, em uma pista de bicicletas, em virtude da rapidez das curvas, os triciclos tombariam e se quebrariam. Se no sucedesse isto, a inclinao da pista levaria parada do carburador ou atrapalharia o seu funcionamento, o que, numa curva rpida, resultaria na queda dos triciclos. Os diretores do veldromo, ainda que aceitando o meu dinheiro, recusavam conceder-me a pista numa tarde de domingo. Temiam um fiasco. O sucesso retumbante da corrida desapontou-os. Quando novamente voltei ao Brasil, lastimei amargamente no ter perseverado no meu projeto de ascenso. Com essa distncia, longe de todas as possibilidades aeronuticas, at as excessivas pretenses dos aeronautas pareciam-me de importncia secundria. Finalmente, em certo dia de 1897, em uma livraria do Rio onde comprava livros na expectativa de uma terceira viagem a Paris, me deparei com uma obra de Lachambre e Machuron, que acabava de ser publicada: Andre - No Polo Norte em Balo. Dediquei meu tempo de travessia leitura deste livro. Foi para mim uma revelao. Acabei decorando-o como se fora um manual escolar. Os detalhes de construo e preos abriram-me os olhos. Enfim, enxergava! O enorme balo de Andre - do qual a capa trazia uma reproduo fotogrfica, mostrando os flancos e o pice escalados, como uma montanha, pelos operrios encarregados de enverniz-lo -, esse enorme balo, digo, somente havia custado 40.000 francos para construir e equip-lo. Chegando a Paris, decidi-me a deixar de lado os aeronautas para dirigir-me aos construtores. Fazia questo, particularmente, de conhecer o Sr. Lachambre, que havia construdo o balo de Andre, bem como seu scio, o Sr. Machuron, autores do livro. Digo, com toda a sinceridade, que encontrei com eles tanto quanto desejava. Quando perguntei ao Sr. Lachambre o custo de um pequeno passeio de balo, a resposta me deixou to surpreso que lhe pedi para que repetisse: - Uma ascenso de trs ou quatro horas, com todas as despesas pagas, incluindo o transporte de volta do balo pelo trem, custar-lhe- 250 francos. - E as avarias?, arrisquei eu. - Mas, retrucou ele rindo, ns no vamos ocasionar avarias. Fechei imediatamente o negcio, e o Sr. Machuron combinou tudo para o dia seguinte.

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MINHA PRIMEIRA ASCENSO

CAPTULO III

MINHA PRIMEIRA ASCENSO

Guardo uma recordao ntida das deliciosas sensaes que me proporcionara minha primeira tentativa area. Cheguei cedo ao parque de aerostao de Vaugirard, a fim de no perder nada dos preparativos. O balo, de uma capacidade de 750 metros cbicos, jazia estendido sobre a grama. A uma ordem do Sr. Lachambre, os operrios liberaram a passagem do gs. A massa informe no demorou em tornar-se uma ampla esfera arredondada no ar. s 11 horas, os preparativos estavam terminados. A barquinha balanava suavemente sob o balo, que uma brisa fresca acariciava. Impaciente por partir, estava em um dos cantos da estreita barquinha, em p, com um saco de lastro na mo. Larguem tudo!, gritou o Sr. Machuron do outro canto. De repente, o vento deixou de soprar. O ar em volta de ns parecia imvel. Havamos partido, e a corrente de ar que atravessvamos nos imprimia a sua prpria velocidade. Portanto, no havia mais vento para ns. Eis o primeiro grande fato que se observa com os bales esfricos. Esse movimento imperceptvel de marcha e de subida possui algo infinitamente suave. A iluso absoluta: acreditar-se-ia, no que o balo que se move, mas que a Terra que foge dele e se abaixa. No fundo do abismo que se cavava abaixo de ns, a 1.500 metros, a Terra, ao invs de parecer redonda como uma bola, apresentava a forma cncava de uma tigela, por efeito de um fenmeno de refrao que faz o crculo do horizonte elevar-se continuamente aos olhos do aeronauta. Aldeias e bosques, prados e castelos desfilam como quadros movedios, por cima dos quais os apitos das locomotivas soltam suas notas agudas e longnquas. Com os latidos dos ces, so os nicos sons perceptveis a essas alturas. A voz humana no chega at essas

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solides sem limites. Os seres humanos parecem formigas sobre linhas brancas que so as estradas; as fileiras de casas se assemelham a brinquedos de crianas. Meu olhar percebia ainda a fascinao do espetculo quando uma nuvem passou diante do Sol. A sombra assim produzida provocou um esfriamento do gs do balo que, murchando, comeou a descer, a princpio lentamente, depois com velocidade cada vez maior. Reagindo, atiramos um pouco de lastro fora. E eis a segunda grande observao que pode ser feita acerca dos bales esfricos: alguns quilos de areia garantem o domnio da sua altitude! Readquirimos o equilbrio acima de uma camada de nuvens. A, planando a cerca de 3.000 metros, deslumbramos a vista com um espetculo surpreendente. Sobre essa tela de alvura imaculada, o Sol deitava sombra ao balo; e nossos perfis, fantasticamente aumentados, projetavam-se no centro de um triplo arco-ris. Pelo fato de no vermos mais a Terra, qualquer noo de movimento deixava de existir para ns. Podamos voar com a velocidade de um furaco sem nos apercebermos. Nenhum meio de conhecer o rumo tomado, seno descer e determinar nossa posio. O som de um alegre carrilho chegou aos nossos ouvidos. Os sinos de vilarejos tocavam o ngelus do meio-dia. Havamos levado uma refeio substancial: ovos cozidos, carne e frango frios, queijo, sorvetes, frutas, doces, champagne, caf e licor. Nada mais delicioso do que um almoo desses, acima das nuvens, em um balo esfrico. Qual sala de jantar ofereceria mais maravilhosa decorao? O calor do Sol, pondo as nuvens em ebulio, fazia-as lanar ao redor da mesa jatos irisados de vapor gelado, comparveis a grandes feixes de fogos de artifcio. Como por milagre, o gelo espargia-se em todos os sentidos, em encantadoras e midas palhetas brancas. Por instantes, os flocos de neve formavam-se, espontaneamente, sob os nossos olhos e at em nossos copos! Acabara de beber um clice de licor quando uma cortina desceu, de sbito, sobre esse admirvel cenrio de Sol, nuvens e cu azul. O barmetro subiu rapidamente 5 milmetros, indicando uma brusca ruptura do equilbrio e uma descida precipitada. O balo devia ter se sobrecarregado de vrios quilos de neve; caa em uma nuvem. A neblina nos envolveu em uma seminoite. Distinguamos ainda a barquinha, nossos instrumentos, as partes mais prximas do cordame; mas a rede que nos prendia ao balo somente era visvel at certa altura; o balo, ele prprio, desaparecera. Experimentamos assim a estranha e gostosa sensao de estarmos suspensos no vcuo, sem nenhuma sustentao, de ter perdido nosso ltimo grama de gravidade, de estarmos prisioneiros de um nada opaco. Aps alguns minutos de uma queda que amortecemos soltando lastro, vimo-nos abaixo das nuvens, a uma distncia de cerca de 300 metros do solo. Uma aldeia fugia abaixo de ns. Determinamos a nossa posio e comparamos o nosso mapa com o imenso mapa natural estendido sob os nossos olhos. Logo, foi fcil identificar as estradas, as ferrovias, os vilarejos,

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MINHA PRIMEIRA ASCENSO

os bosques. Tudo isso corria, do horizonte em nossa direo, com a rapidez do prprio vento. A nuvem que provocara a nossa descida anunciava uma mudana de tempo. Pequenas rajadas de vento comeavam a impelir o balo da direita para a esquerda e de cima para baixo. De vez em quando, o guide-rope (a corda de compensao) - uma grande corda de uns 100 metros de comprimento, que flutuava fora da barquinha - chegava a tocar o cho. A prpria barquinha no tardou a roar nas copas das rvores. O que se entende por guide-rope apresentou-se a mim em condies particularmente instrutivas. Tnhamos ao alcance da mo um saco de lastro, se um obstculo qualquer se apresentasse no caminho, soltvamos alguns punhados de areia; o balo subia; o obstculo estava superado. Mais de 50 metros do guide-rope arrastavam-se pelo cho atrs de ns; nem precisava tanto para nos manter em equilbrio numa altitude inferior a 100 metros, que havamos decidido no exceder at o fim da viagem. Esta primeira ascenso permitiu-me apreciar plenamente a utilidade deste modesto acessrio do balo esfrico, sem o qual a aterrissagem apresentaria graves dificuldades na maior parte dos casos. Quando, por uma razo ou outra - acmulo de umidade sobre a superfcie do balo, rajada de vento de cima para baixo, perda acidental de gs, ou, mais comumente ainda, passagem de uma nuvem diante do Sol -, o balo baixa com velocidade preocupante, o guide-rope, arrastando em parte sobre o solo, deslastra todo o conjunto de uma parte do seu peso e impede, ou pelo menos modera, a queda. Na hiptese contrria, se o balo manifesta uma tendncia ascensional demasiadamente rpida, esta poder ser contrabalanada pelo levantamento do cabo, o que acrescentar um pouco mais de peso a este sistema flutuante. Entretanto, como todos os inventos humanos, o guide-rope tem suas vantagens, bem como seus inconvenientes. Pelo fato de se arrastar sobre superfcies desiguais, sobre campos e prados, sobre colinas e vales, sobre estradas e casas, sobre sebes e cabos telegrficos, ele imprime ao balo violentas sacudidas. Por vezes, acontece que, aps embaraar-se, ele se desembaraa rapidamente demais, vindo a prender-se a qualquer aspereza do solo, ou se enganchar no tronco ou nos galhos de uma rvore. S faltava um incidente deste gnero para complementar minha aprendizagem! Enquanto passvamos um pequeno macio de rvores, uma sacudida mais forte que as outras me atirou para trs na barquinha. Imobilizado de sbito, o balo balanava nas lufadas de vento, com a ponta do seu guide-rope enrolada na copa de um carvalho. Fomos sacudidos como num secador de salada durante uns quinze minutos, e s nos libertamos atirando fora um pouco de lastro. O balo, deslastreado, deu ento um pulo terrvel e foi-se, como uma bala, furar as nuvens. Estvamos ameaados de atingir alturas que, dada a pequena proviso de lastro de que j dispnhamos para a descida, podiam ser perigosas.

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Era tempo de recorrer a meios mais efetivos: abrir a vlvula de manobra e deixar o gs escapar. Foi necessrio apenas um minuto. O balo retomou a descida e o guide-rope tocou novamente o solo. S nos restava encerrar a a nossa excurso; a areia estava quase toda esgotada. Quem quer que almeje navegar em aeronave deve, preliminarmente, exercitar-se em algumas aterrissagens em balo esfrico, desde que queira aterrissar sem tudo espatifar de uma s vez: balo, quilha, motor, leme, propulsor, cilindros de gua que servem de lastro (water-ballast) e gales de combustvel. Para realizarmos esta ltima manobra, o vento, que era muito forte, nos forou a procurar um local abrigado. Da extremidade da plancie vinha depressa ao nosso encontro um recanto da floresta de Fontainebleau. Em poucos instantes, custa do nosso ltimo punhado de lastro, contornamos a extremidade do bosque. As rvores agora nos protegiam contra o vento. Atiramos a ncora, ao mesmo tempo que abramos completamente a vlvula para dar escape completo ao gs. A dupla manobra colocou-nos em terra sem o menor abalo. Saltamos no cho e assistimos ao balo murchar. Deitado na relva, ele esvaziava-se do restante do gs em estremecimentos convulsivos, como um grande pssaro batendo as asas ao morrer. Tiramos algumas fotografias instantneas do balo agonizando; depois, o dobramos e o arrumamos na barquinha, com a sua rede dobrada ao lado. O cantinho que havamos escolhido para aterrissar pertencia ao parque do castelo de La Ferrire, propriedade do Sr. Alphonse de Rothschild. Alguns trabalhadores de um campo vizinho foram mandados at o vilarejo para procurar transporte. Meia hora mais tarde, chegava uma carrugem. Colocamos nela toda a nossa bagagem e partimos para a estao ferroviria, distante uns quatro quilmetros. Ali, tivemos um grande trabalho para fazer descer nossa cesta com o seu contedo, pois pesava 200 quilos. s seis e meia, estvamos de volta a Paris. Havamos realizado um percurso de 100 quilmetros e passado quase duas horas nos ares.

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MEU BRASIL, O MENOR BALO ESFRICO

CAPTULO IV

MEU BRASIL, O MENOR BALO ESFRICO

Eu estava to apaixonado pela aerostao aps aquela primeira viagem, que manifestei ao Sr. Machuron o desejo de construir um balo para mim. Ele aprovou minha ideia. Supunha que eu queria um balo esfrico de dimenses comuns, de 500 a 2.000 metros cbicos de capacidade. Ningum se atrevia a fazer menor. Faz pouco tempo, desde a poca, e curioso constatar como os construtores ainda se obstinavam na utilizao de materiais pesados. A menor barquinha pesava obrigatoriamente 30 quilos. Nada era leve; nem o invlucro, nem o aparelho, nem os acessrios. Expus minhas ideias ao Sr. Machuron, que protestou veementemente quando falei de um balo de 100 metros cbicos, e em seda japonesa da qualidade mais leve e mais resistente. O Sr. Lachambre e ele tentaram convencer-me, em suas oficinas, de que eu pedia o impossvel. Quantas vezes, desde ento, tentaram fazer-me esta mesma prova! Hoje, estou acostumado. Aguardo-as. Por mais desconcertado que ficasse ento, assim mesmo persisti. Os senhores Machuron e Lachambre tentaram comprovar-me que, para que um balo tivesse estabilidade, necessitava de peso. Um balo de 100 metros cbicos devia ser, alm de tudo, muito mais sensvel aos movimentos do aeronauta na barquinha. Com um grande balo, o centro de gravidade para o aeronauta como na figura 1a. Se o aeronauta se colocar, por exemplo, direita da barquinha (figura 1b), o centro de gravidade do sistema, no seu todo, no sofrer deslocamento aprecivel. Com um balo muito pequeno, o centro de gravidade (figura 2a) somente garantido enquanto o aeronauta permanecer em p no centro da barquinha. Deslocando-se para a direita (figura 2b), o centro de gravidade se desloca e, deixando de corresponder ao eixo do balo, f-lo- oscilar no mesmo sentido.

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FIGURA 1

FIGURA 2

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MEU BRASIL, O MENOR BALO ESFRICO

Por conseguinte, me diziam os senhores Machuron e Lachambre: - Como ser preciso que o senhor se mova na barquinha, isso aplicar ao balo um contnuo movimento oscilatrio. - Aumentaremos, consequentemente, o comprimento das cordas de suspenso, eu repliquei. Foi o que fizemos. E o Brasil demonstrou uma estabilidade notvel. Quando levei ao Sr. Lachambre minha leve seda do Japo, ele olhou e me disse: Ser fraca demais. Testamo-la no dinammetro e o resultado foi surpreendente. No teste, a seda da China suportou uma tenso de 1.000 quilos por metro linear; a delgada seda japonesa suportou uma tenso de 700 quilos; quer dizer que provou ser 30 vezes mais resistente que o necessrio em virtude da teoria das tenses. Coisa surpreendente, considerando que ela pesa somente 30 gramas por metro quadrado. Um exemplo que mostra at que ponto pessoas competentes podem enganar-se quando se apegam a julgamentos sumrios, o fato de que todos os bales das minhas aeronaves so fabricados com a mesma seda; entretanto, a presso interna que eles tm de suportar enorme, ao passo que os bales esfricos so todos munidos, na parte inferior, de um orifcio que lhes permite alvio. A capacidade finalmente adotada para o Brasil foi de 113 metros cbicos, o que corresponde aproximadamente a 113 metros quadrados de superfcie de seda, sendo que o invlucro inteiro pesava apenas trs quilos e meio. As trs camadas de verniz fizeram subir esse peso para 14 quilos. A rede, que pesa frequentemente uns 50 quilos, pesava somente 1.800 gramas. A barquinha, geralmente com um peso mnimo de 30 quilos, pesava apenas seis. Tenho hoje, no meu pequeno dirigvel N 9, uma barquinha que no chega a cinco quilos. Meu guide-rope, fino mas muito longo, pois media 100 metros, pesava oito quilos, se muito; seu comprimento dava ao Brasil uma boa elasticidade. Substitu a ncora por um arpo de ferro de trs quilos. Com ateno leveza em todos os detalhes, achava que o balo, apesar das suas reduzidas dimenses, teria fora suficiente para me levantar com os meus 50 quilos de peso e mais 30 de lastro. E foi nessas condies de peso que fiz a minha primeira ascenso. Em outra ocasio, na presena de um ministro francs curioso de ver o menor dos bales esfricos, levei quase nada de lastro, quatro ou cinco quilos apenas, e, no obstante, uma vez o balo devidamente controlado, parti e fiz uma boa ascenso. O Brasil era muito manejvel no ar e muito dcil. Era, alm do mais, fcil de dobrar e guardar aps a descida: foi com razo que disseram que eu o carreguei numa mala. Antes da minha primeira ascenso no pequenino Brasil, fiz vinte e cinco ou trinta delas em bales esfricos comuns, completamente s, capito e nico passageiro ao mesmo

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ESQUERDA, O BRASIL

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tempo. O Sr. Lachambre, que se encarregara de diversas ascenses pblicas, permitiu-me realizar algumas em seu lugar. Foi assim que subi em diversas cidades da Frana e da Blgica. Proporcionava-me prazer e era a minha formao; ao mesmo tempo, evitava trabalho ao Sr. Lachambre, a quem eu indenizava de todas as despesas e incmodos; a combinao convinha a ns dois. Duvido que, sem esses estudos e experincias prvias em balo esfrico, um homem tivesse qualquer probabilidade de xito com um dirigvel alongado, cujo manejo muito mais delicado. Antes de tentar dirigir uma aeronave, indispensvel ter aprendido as condies do meio atmosfrico a bordo de um balo comum, travado conhecimento com os caprichos do vento, compreendido perfeitamente as dificuldades que apresenta a questo do lastro, sob o triplo aspecto da partida, do equilbrio areo e da aterrissagem. Ter manobrado pessoalmente um balo comum, umas 10 vezes no mnimo, , no meu entender, uma prvia indispensvel para adquirir a noo exata de tudo o que envolve a construo e a direo de um balo alongado, munido de motor e propulsor. Compreender-se- assim que eu manifeste grande surpresa quando vejo inventores, que nunca puseram os ps numa barquinha, desenharem no papel, e at executarem, no todo ou em parte, fantsticas aeronaves com bales cubando milhares de metros, carregados de enormes motores, que eles no conseguem levantar do cho, e providos de mquinas to complicadas que nada funciona. Os inventores desta classe nada receiam, pois no tm ideia nenhuma das dificuldades da questo. Se houvessem comeado por viajar nos ares ao bel-prazer do vento, por lutar contra as influncias hostis dos fenmenos atmosfricos, compreenderiam que um balo dirigvel, para ser prtico, requer, antes de mais nada, uma extrema simplicidade de mecanismo. Alguns infelizes construtores, que pagaram com a vida sua triste imprudncia, nunca haviam efetuado uma ascenso em balo esfrico como capito e sob sua prpria responsabilidade. Muitos dos seus mulos de hoje, to devotados sua obra, encontram-se ainda nas mesmas condies de inexperincia. Assim se explicam para mim os seus insucessos. Esto na mesma situao de um homem qualquer que, sem jamais haver deixado a terra firme ou posto os ps num bote, pretendesse construir e comandar um transatlntico.

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DE

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PRIMEIRA ASCENSO SANTOS-DUMONT COM O BRASIL

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PERIGOS REAIS E PERIGOS IMAGINRIOS DA AEROSTAO

CAPTULO V

PERIGOS REAIS E PERIGOS IMAGINRIOS DA AEROSTAO

Uma das mais singulares aventuras do tempo em que me exercitava em bales esfricos aconteceu-me bem acima de Paris. Eu havia partido de Vaugirard com quatro convidados em um grande balo, que mandara construir no dia em que me fartei de viajar sozinho no meu pequeno Brasil. Na hora da partida, parecia haver muito pouco vento. Subimos com lentido, procurando uma corrente de ar. At 1.000 metros, no encontramos nada. A 1.500, estvamos quase estacionrios. Soltando mais lastro, atingimos 2.000 metros. Nesse momento, uma brisa errante comeou a empurrar-nos para o centro de Paris. Abandonou-nos por cima do Louvre. Descemos e... s encontramos calmaria. Produziu-se ento uma coisa agradvel. Em um cu azul, sem uma nuvem, e todo banhado de Sol, aonde nos chegavam os longnquos latidos dos ces de Paris, a calmaria nos imobilizara! Voltamos a subir, na esperana de uma corrente de ar. Ainda na mesma esperana, tornamos a descer. No fazamos outra coisa seno subir e descer. As horas corriam, e ns permanecamos suspensos sobre a cidade. A princpio, rimos da situao. Depois, veio o cansao. No fim, quase a angstia. A tal ponto que, em certo momento, tive a ideia de aterrissar em Paris mesmo, perto de uma estao ferroviria, a Gare de Lyon, onde eu localizara uma rea vaga. Entretanto, a operao apresentava certo perigo, pois no podia contar com a calma dos meus companheiros numa situao crtica. Com efeito, no estavam acostumados com a aerostao. O pior era que perdamos gs. Enquanto navegvamos vagarosamente para leste, hora aps hora, um por um, os sacos de lastro se esvaziavam. Estvamos chegando ao Bois de Vincennes e j atirvamos fora objetos de toda espcie: sacos para lastro, cestos de almoo, dois banquinhos portteis, duas Kodaks, uma caixa de chapas fotogrficas...

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Continuvamos, no obstante, muito baixo; passvamos no mximo de 300 metros pelas copas das rvores. A descida prosseguindo, sentimo-nos invadidos por um verdadeiro medo. E se o guide-rope se enrolasse em alguma rvore e nos prendesse a ela durante horas? Lutvamos para conservar a nossa altitude quando um estranho golpezinho de vento nos empurrou por cima do Hipdromo de Vincennes. - agora!, gritei para os companheiros. Segurem-se! Ao mesmo tempo, abri a vlvula. A descida foi rpida, mas quase sem abalos. Pessoalmente, tenho sentido no s medo, mas at mesmo sofrimento e real desespero a bordo de um balo esfrico. Mas so acontecimentos raros, porque nenhum esporte mais comumente seguro, suave e agradvel do que este. Se apresenta realmente alguns perigos, , geralmente, na aterrissagem; e o bom aeronauta sabe prevenir-se. Quanto aos perigos areos que se lhe atribuem, so perigos... no ar; pois a segurana no ar , normalmente, perfeita. por isso que o incidente especfico, muito penoso e angustiante de que guardei lembrana, foi tanto mais notvel porque aconteceu a uma grande altitude. Certo dia de 1900, em Nice, havia partido sozinho da praa Massna, a bordo de um grande balo esfrico, com o propsito de evoluir durante algumas horas no ferico cenrio formado pelas montanhas e pelo mar. O tempo estava bom. A queda rpida do barmetro indicava, todavia, a proximidade de um temporal. Durante um momento, o vento lanou-me na direo de Cimiez; em seguida, como ameaava levar-me para o alto-mar, atirei lastro fora, abandonei a corrente de ar e elevei-me at mais ou menos uma milha. Logo depois, deixei o balo descer de novo. Esperava encontrar uma correnteza favorvel. A 300 metros do solo, no muito longe do Var, notei que no descia mais. Decidido, de qualquer modo, a aterrissar o quanto antes, acionei a vlvula e soltei gs. A que a situao tornou-se terrvel. No podia mais descer! Lancei um olhar ao barmetro e constatei que, efetivamente, subia. No entanto, eu deveria estar descendo. E, pelo vento e por vrios outros sinais, percebi que, com efeito, descia. Tive uma grande inquietao to logo descobri a origem do mal. A despeito da descida aparente e contnua, eu estava sendo arrastado por uma enorme coluna ascendente de ar. Eu descia nela e subia com ela. Abri novamente a vlvula. Trabalho intil. O barmetro marcava uma altura crescente; era fcil verificar o fato no modo pelo qual a Terra afundava debaixo de mim. Fechei a vlvula para no sacrificar mais gs. Nada havia a fazer seno esperar e ver o que aconteceria. A coluna de ar ascendente levou-me a 3.000 metros. Devia limitar-me a olhar para o barmetro. Aps um tempo que me pareceu longo, ele marcou um comeo de descida. Novamente avistei a Terra. Joguei lastro fora para atenuar a queda.

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PERIGOS REAIS E PERIGOS IMAGINRIOS DA AEROSTAO

Logo, vi a tempestade vergar as rvores e os bosques; l em cima, no seio da tormenta, no sentira nada. To logo, a descida no terminando mais, pude dar-me conta da velocidade com que era carregado lateralmente. E mal percebia o perigo que nele era precipitado. Empurrado a uma velocidade vertiginosa, esbarrando nas copas das rvores, ameaado a cada instante de uma morte horrvel, atirei a ncora. Agarrava rvores e arbustos, mas no se fixava. Com rvores maiores, estaria perdido. Por sorte, roava em arvoredos. Com o rosto cheio de contuses e arranhaduras, a roupa esfarrapada nas costas, machucado, esgotado, temendo o pior, nada podia fazer para salvar-me. J me considerava perdido quando, naquele justo momento, o guide-rope, enlaando-se a uma rvore, sustentou firme. Fui jogado para fora da barquinha e, na queda, desmaiei. Quando voltei a mim, estava rodeado de camponeses, que me olhavam. Puseram-me em condies de voltar para Nice, onde mandei chamar os mdicos para me costurarem. Durante o perodo das minhas estreias, quando fazia espontaneamente ascenses pblicas para o meu construtor, passara tambm por uma experincia semelhante, daquela vez noite. A ascenso ocorreu em Pronne, ao norte da Frana, ao entardecer de um dia de temporal. Eu partira apesar dos avisos de uns distantes troves, em um semicrepsculo lgubre, e sem levar em conta os alertas da multido, que sabia no ser eu um aeronauta profissional. Temiam minha inexperincia e pretendiam que, ou eu renunciasse prova, ou levasse comigo o construtor do balo, organizador responsvel pela festa. No atendendo a ningum, parti, conforme havia decidido. Em breve, lastimei-me da minha temeridade. Achava-me s, perdido nas nuvens, entre os raios e os estrondos de trovo; e a noite escurecia tudo ao meu redor. Ia pela escurido. Sabia que corria em alta velocidade, mas no sentia movimento algum. Escutava e recebia o temporal, e era s. Tinha conscincia de um grande perigo, mas esse perigo no era tangvel. Sentia como uma alegria selvagem. Como dizer isso? Como descrev-lo? L em cima, na solido escura, em meio aos raios que a rasgavam e ao barulho, eu fazia mesmo parte da tempestade! Quando aterrissei, no dia seguinte - aps ter longamente procurado altitude superior e deixado passar o temporal abaixo de mim -, estava na Blgica. A aurora encontrava-se calma, de modo que minha aterrissagem se realizara sem dificuldade. Comento esta aventura porque ela foi relatada nos jornais, na poca, e para mostrar que a aerostao noturna, mesmo com temporal, pode ser mais aparente do que verdadeiramente perigosa. E, realmente, a aerostao de noite possui um charme peculiar. Voc se encontra s, no vcuo escuro, nos limites da escurido onde parece flutuar sem peso, fora do mundo, a alma aliviada do peso da matria! Voc fica feliz, com isso, quando de vez em quando surgem as luzes terrestres. Vemos um

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ponto iluminar-se l longe, na nossa frente. Lentamente, ele desabrocha. Onde s tinha uma luzinha, logo aparecem inmeras pintas brilhantes. Elas desfilam em linhas com, aqui e acol, cachos de claridades. Sabemos que uma cidade que se atravessa. Ou, ento, plana-se sobre o campo deserto. Apenas alguma vermelhido se avista aqui ou alm. Quando a Lua se levanta, percebe-se, de relance, uma delgada fita acinzentada que se contorce; um rio refletindo a claridade do astro ou das estrelas. Um raio rasga a sombra, percebe-se fracamente um apito rouco: um trem que passa; os faris da locomotiva iluminam a fumaa por cima dela. Ou ento, por medida de prudncia, soltamos mais lastro, e nos elevamos atravs do sombrio deserto das nuvens, no emocionante e esplndido abrasamento de um cu estrelado. Ai, sozinho com as constelaes, aguarda-se a aurora! E quando esta vem, numa aura de vermelho, de ouro e de prpura, quase a contragosto que se procura a Terra. Entretanto, tambm um prazer o imprevisto de uma aterrissagem em alguma parte da Europa. Para muitas pessoas, a aerostao no possui atrativo maior. O aeronauta transforma-se em explorador. Voc um jovem curioso ao percorrer o mundo, conhecer aventuras, investigar o desconhecido, contar com o inesperado, mas retido em casa pela famlia e pelos negcios? Pratique o balo esfrico. Ao meio-dia, almoce tranquilamente com seus familiares. s duas horas, parta em balo. Dez minutos mais tarde, voc no mais um cidado comum, mas sim um explorador, um aventureiro da cincia, tal como os que vo gelar nos icebergs da Groenlndia ou derreter de calor nos rios de coral da ndia. Voc s sabe vagamente onde est; no pode saber aonde vai, mas isso depende muito da sua vontade, da sua habilidade e da sua experincia. Voc tem a escolha da altitude; pode aceitar uma corrente de ar ou ir para cima em busca de outra. Pode ultrapassar as nuvens, atingir regies em que se respira o oxignio dos tubos, perder a viso da Terra, que desaparece como que girando embaixo de voc, e ento todo sentido do rumo lhe escapa. Pode descer de novo, acompanhar a superfcie do solo, utilizar-se do guide-rope e de punhados de areia, para dar, sem esforo, saltos de gigante por cima das casas e das rvores. Chegado o momento de aterrissar, experimenta-se o gosto da indizvel alegria de explorador em ir ter com pessoas desconhecidas, como um deus saindo de uma mquina. Em que pas se est? Em que lngua - alem, russa, norueguesa... - obter-se- uma resposta? Membros do Aero Club foram alvejados com tiros ao transpor certas fronteiras europeias. Outros, detidos no momento da aterrissagem por alguma autoridade municipal ou militar, comearam por sofrer acusaes de espionagem - enquanto o telgrafo avisava a sua priso capital distante -, e acabaram o dia tomando champagne numa entusiasmada roda de oficiais! Outros ainda, em pequenos lugares perdidos, tiveram de se defender contra a ignorncia e a superstio das populaes rurais. Tal a ventura dos ventos.

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ENTREGO-ME IDEIA DO BALO DIRIGVEL

CAPTULO VI

ENTREGO-ME IDEIA DO BALO DIRIGVEL

Durante a ascenso que fiz em sua companhia, enquanto o guide-rope se enroscava na rvore e o vento nos sacudia to barbaramente, o Sr. Machuron aproveitou a circunstncia para afastar de mim toda a iluso a respeito da aerostao dirigvel. - Observe a treta e o humor vingativo desse vento, gritava-me ele no meio das sacudidas. Estamos presos rvore, e veja com que fora ele procura arrancar-nos! (Naquele momento, fui atirado ao fundo da barquinha). Qual propulsor a hlice seria capaz de enfrent-lo? Qual balo alongado no se dobraria em dois e no o levaria ao fracasso? Era desencorajador! Regressando a Paris por trem, renunciei a continuar as experincias de Giffard. E me mantive durante semanas nesta disposio de esprito. Seria capaz de sustentar uma longa polmica contra a dirigibilidade dos bales. Depois, veio novamente um perodo de tentao; pois uma ideia longamente acariciada no morre de imediato. Ao mesmo tempo que considerava as dificuldades prticas do meu projeto, percebia que meu esprito, instintivamente, trabalhava para se convencer de que elas eram imaginrias. Surpreendia-me murmurando: Se fizer um balo cilndrico bastante comprido e bastante fino, ele fender o ar.... E, com respeito ao vento: Serei criticado por recusar-me a sair sob um vendaval, quando nenhuma censura se faz contra o yachtsman em situao semelhante?. Um acidente decidiu-me. Sempre adorei a simplicidade, razo pela qual no aprecio as complicaes, to engenhosas sejam elas. Os motores de triciclo chegavam ento a uma alta perfeio. Sua simplicidade encantava-me; e sem que a lgica interviesse, seus mritos prevaleceram na minha reflexo contra todas as objees opostas ao balo dirigvel. - Utilizar-me-ei deste motor leve e potente, disse eu. Giffard no tinha tal auxiliar. A mquina a vapor de Giffard, mquina primitiva e de pouca potncia relativamente ao seu peso, fora a fornalha que vomitava fascas ardentes, no oferecia ao corajoso inovador

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nenhuma chance sria de xito. No perdi tempo pensando num motor eltrico, que, se oferece poucos perigos, apresenta, sob o ponto de vista da aerostao, o defeito capital de ser a mquina mais pesada que se conhea, devido ao peso da sua bateria. Sobre isso, alis, perco to rapidamente a pacincia que no farei mais comentrios. Ficarei com a opinio que me comunicou Edison, que em abril de 1902 me dizia: O senhor fez bem em escolher o motor a petrleo; o nico em que pode pensar o aeronauta no estado atual da indstria; os motores eltricos, tais como eram notadamente 15 ou 20 anos atrs, no podiam levar a nenhum resultado. Por isso que os irmos Tissandier desistiram. Quo imensos fossem os aperfeioamentos trazidos pela mquina a vapor nos ltimos tempos, no eram suficientes para me animar quanto ao balo dirigvel. Motor por motor, talvez valha mais o a vapor do que a petrleo; mas comparando a caldeira e o carburador, onde este ltimo pesa N gramas por cavalo de potncia, a caldeira pesa N quilos. Em certos motores leves a vapor, de leveza s vezes maior que a dos motores a petrleo, a caldeira destri sempre a proporo. Com uma libra de petrleo, voc pode desenvolver a fora de um cavalo durante uma hora. Para obter esta mesma energia da mquina a vapor mais aperfeioada, precisar de muitos quilos de gua e de combustvel, alis, petrleo. No poder baixar para menos de vrios quilos por cavalo, mesmo com a condensao da gua. Alm do mais, o carvo, com os motores a vapor, desprender fagulhas ardentes. O petrleo, com os mesmos motores, lhe dar chamas em profuso. Faamos justia ao motor a petrleo, que no desprende nem chamas nem centelhas inflamadas. Neste exato momento, tenho um motor a petrleo que s pesa dois quilos por cavalovapor. o 60 cavalos do meu N 7, cujo peso total de 120 quilos. Compare-o com a nova bateria de ao e nquel do Sr. Edison, que promete pesar 18 quilos por cavalo! , portanto, leveza e simplicidade do pequeno motor de triciclo de 1897 que devo todas as minhas experincias. Parti do princpio de que, para alcanar qualquer forma de xito, seria indispensvel reduzir o peso, e assim ater-me s condies no s financeiras como mecnicas do problema. Estou hoje completamente dedicado construo de aeronaves. Dei minha vida a isto. Mas era, ento, apenas um tmido principiante, no querendo gastar quantias vultosas na realizao de um projeto duvidoso. Foi ento que dei preferncia construo de um balo alongado, com tamanho necessrio o bastante para carregar, alm dos meus 50 quilos de peso, o que precisaria a mais com a barquinha, o aparelho, o motor, o combustvel e a quantidade de lastro estritamente indispensvel. Com efeito, construa uma aeronave expressamente para o meu pequeno motor de triciclo!

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O PRIMEIRO MOTORA PETRLEO DE

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SANTOS-DUMONT

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Procurei, prximo da minha residncia, no centro de Paris, alguma pequena oficina mecnica onde eu pudesse executar o meu plano sob as minhas prprias vistas, e eu pudesse pr a mo na obra. Encontrei o que queria na rua do Colise. Comecei o trabalho buscando sobrepor dois cilindros de dois motores de triciclo sobre um s crter, de modo a acionar somente uma biela e tudo sendo alimentado por um nico carburador. Para reduzir o peso ao mnimo, aliviei cada um dos rgos tanto quanto pude, sem prejuzo para a respectiva solidez. Neste particular, realizei algo interessante para a poca, um motor de trs cavalos e meio pesando 30 quilos. Logo, tive uma oportunidade para experimentar o meu motor tandem. As grandes e sucessivas corridas de automveis em estradas, que, parece, atingiram o seu apogeu com a corrida Paris-Madri em 1903, contribuam para fazer aumentar aos saltos, de ano em ano, a potncia dessas maravilhosas mquinas. Em 1895, a Paris-Bordeaux foi vencida por uma mquina de quatro cavalos e a uma velocidade mdia de 25 quilmetros por hora. Em 1896, a ida e volta Paris-Marseille se realizara a 30 quilmetros por hora. Em 1897, foi a ParisAmsterd. Embora no me inscrevera para a corrida, tive a ideia de testar nessa prova o meu motor tandem, adaptado ao meu triciclo. Parti, e tive a satisfao de verificar que ia muito bem. Poderia obter uma honrosa classificao, no final da prova, pois o meu veculo era, dentre todos, o mais potente com relao ao peso, e a velocidade mdia do vencedor no foi alm de 40 por hora. Mas temia que a trepidao do motor, submetido a um esforo to rude, fosse causar algum desarranjo com o tempo, e refleti que eu tinha coisa melhor para exigir dele. Minha experincia de automobilista serviu-me muito para as minhas aeronaves. O motor a petrleo ainda uma coisa delicada e manhosa. E h, no seu roncar que parece um tossido, nuances cujo sentido s compreensvel para um ouvido treinado. Que algum dia, numa das minhas futuras ascenses, o motor da minha aeronave me ameace de perigo, estou certo de que meu ouvido escutar o aviso, e saberei cuidar-me. Esta faculdade, que se tornou quase instintiva, devo-a exclusivamente experincia. Tendo desmanchado o triciclo para dispor do motor, comprei, na mesma poca, uma Panhard, de seis cavalos, ltimo modelo, com a qual fui de Paris a Nice em 54 horas, sem parada, nem de dia, nem noite. bem certo que, se no tivesse me dedicado aerostao, ter-me-ia feito entusiasta das corridas de automveis, passando continuamente de um tipo para outro, buscando constantemente uma velocidade superior, avanando com os progressos da indstria, como fazem tantos outros, para glria dos mecnicos franceses e do novo esprito esportivo parisiense. Minhas aeronaves pararam-me. Eu no podia deixar Paris durante as experincias. As longas corridas no me eram mais permitidas. O automvel a petrleo, com a facilidade maravilhosa que se tem de encontrar combustvel em qualquer lugarejo, perdeu, para mim,

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SANTOS-DUMONTACIONANDO O SEU

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PRIMEIRO MOTOR

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FIGURA 3

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ENTREGO-ME IDEIA DO BALO DIRIGVEL

sua principal utilidade. Em 1898, vi por acaso um modelo que me era desconhecido, de um pequeno buggy eltrico americano. Recomendava-se conjuntamente aos meus olhos, s minhas convenincias e minha razo: comprei-o. Nunca me arrependi. Meu buggy me serve para percorrer Paris. Com efeito, ele rpido, alm de silencioso, e no desprende odor algum. Havia eu j entregue aos construtores a planta do invlucro do meu balo. Era de um balo cilndrico, terminado em cone na frente e atrs, com 25 metros de comprimento e 3,5 de dimetro, e uma capacidade de 180 metros cbicos de gs. Meus clculos somente me permitiam 30 quilos para o peso do balo, inclusive verniz. Renunciei, pois, rede comum e camisa, ou invlucro externo, por considerar que este segundo invlucro, encerrando o balo propriamente dito, era no somente suprfluo, mas ainda incmodo, seno perigoso. No lugar dele, afixei as cordas de suspenso da barquinha diretamente ao invlucro unicamente por meio de pequenas hastes de madeira introduzidas em longas bainhas horizontais costuradas dos dois lados do tecido em uma grande parte do comprimento do balo. Para no exceder, com o verniz, o limite de peso calculado, recorri forosamente seda japonesa que tanta solidez havia demonstrado no meu Brasil. Ao tomar conhecimento das especificaes do meu pedido, o Sr. Lachambre comeou por recus-lo redondamente. No queria ter o mnimo envolvimento em um empreendimento to temerrio. Todavia, quando lhe recordei que ele me fizera as mesmas objees a propsito do Brasil, e quando lhe assegurei, alm disso, que, se preciso, eu mesmo cortaria e costuraria o balo, ele cedeu e encarregou-se do negcio. Cortaria, costuraria e envernizaria o balo conforme as minhas plantas. Com a confeco do invlucro assim caminhando, cuidei do preparo da barquinha, do motor, do propulsor, do leme e da maquinaria. Quando o todo ficou pronto, submeti-o a diversas experincias. Tinha suspendido o sistema inteiro por meio de uma corda s vigas da oficina; acionei o motor e medi a fora do movimento de impulso que determinava o propulsor batendo o ar; opunha uma corda fixa ligada a um dinammetro a este movimento de impulso, e constatei que a fora de trao desenvolvida pelo motor no propulsor, com dois braos medindo um metro de largura cada, atingia 25 libras, ou seja, 11 quilos e meio. Tal nmero prometia uma boa velocidade para um balo cilndrico das dimenses do meu, cujo comprimento era igual a cerca de sete vezes o dimetro. Com 1.200 rotaes por minuto, e caso tudo corresse normalmente, o propulsor, diretamente fixado ao eixo do motor, imprimiria sem esforo aeronave uma velocidade de, pelo menos, oito metros por segundo. Fiz o leme com a seda esticada sobre uma armao de ao triangular. Faltava-me apenas encontrar um sistema de pesos deslocveis, que, desde o princpio, eu considerava indispensveis. Para este fim, coloquei, um frente e outro atrs, dois sacos de lastro, suspensos

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ENCHIMENTO DO SANTOS-DUMONT No 1 NO JARDIN DACCLIMATATION (18 DE SETEMBRO DE 1898)

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por cordas ao invlucro do balo; por meio de outras cordas mais leves, cada um destes dois pesos podia ser puxado para a barquinha (figura 3), modificando assim o centro de gravidade de todo o sistema. Puxando o peso dianteiro, eu faria a proa elevar-se diagonalmente; puxando o peso traseiro, produziria o efeito oposto. Eu tinha, a mais, um guide-rope de 60 metros de comprimento que, em caso de necessidade, me serviria tambm como lastro deslocvel. Toda esta organizao me tomou vrios meses, e foi inteiramente realizada na pequena oficina da rua do Colise, a pouca distncia do local onde o Aero Club de Frana iria ter, um dia, o seu primeiro escritrio.

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MEUS PRIMEIROS CRUZEIROS EM AERONAVE

CAPTULO VII

MEUS PRIMEIROS CRUZEIROS EM AERONAVE (1898)

Em meados de setembro de 1898 eu estava pronto para um teste no ar livre. O rumor havia sido espalhado entre os aeronautas parisienses, futuro ncleo do Aero Club, de que eu ia levar na minha barquinha um motor a petrleo. E todos ficaram sinceramente preocupados com o que consideravam minha temeridade; alguns deles me procuraram para demonstrarme, amigavelmente, o perigo permanente de tal motor por baixo de um balo cheio de um gs eminentemente inflamvel. E aconselhavam-me a substitu-lo, como menos perigoso, por um motor eltrico. Eu havia tomado todas as disposies para encher o balo no Jardin dAcclimatation. Um balo cativo j estava instalado com tudo o que lhe era diariamente necessrio. Esta circunstncia facultou-me obter sem dificuldade, por 1 franco por unidade, os 180 metros cbicos de hidrognio de que necessitava. A 18 de setembro, minha primeira aeronave, o Santos-Dumont N 1 - como a denominamos depois, para distingui-la das que seguiram estava estendida sobre a relva, entre as lindas rvores do jardim. Para compreender o que me aconteceu, parece-me conveniente explicar as condies de lanamento de um balo esfrico em um local como aquele, onde macios de rvores circundam o campo livre. Depois de pesado e equilibrado com seus tripulantes na barquinha, o balo est pronto para deixar o solo com certa fora ascensional. Os ajudantes conduzem-no ento para a extremidade do campo de onde vem o vento, e a que dada a ordem: Soltem tudo!. Assim, levado pelo vento, o balo dispe de toda a extenso do campo livre para se elevar antes de chegar s rvores, ou a qualquer outra espcie de obstculos que lhe surgirem pela frente; tem espao suficiente para elevar-se sobre eles e ultrapass-los. Alm do mais, a fora ascensional do balo regulada de acordo com a velocidade do vento: muito pequena se o vento estiver fraco; maior se o vento for forte.

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PRIMEIRA ASCENSO DO SANTOS-DUMONT No 1 NO JARDIN DACCLIMATATION (18 DE SETEMBRO DE 1898)

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O SANTOS-DUMONT No 1CONSERTADO PARA O LANAMENTO

(20 DE SETEMBRO DE 1898)

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MEUS PRIMEIROS CRUZEIROS EM AERONAVE

Mas eu achava que minha aeronave seria capaz de ir contra o vento que soprava na ocasio; portanto, tinha a inteno de coloc-la, para a partida, no na extremidade de que acabo de falar, mas justamente na extremidade oposta. Dessa forma, o meu balo, acionado pelo propulsor contra o vento de frente, poderia com facilidade sair do campo livre, porque, nessas condies, sua velocidade relativa representaria a diferena entre sua velocidade absoluta e a velocidade do vento, de maneira que, indo contra este, eu teria tempo de elevar-me e passar por cima das rvores. Falta grave seria, evidentemente, colocar uma aeronave no lugar indicado para um balo comum, sem motor nem propulsor. Porm, foi naquele lugar que o colocara, no por meu gosto, mas pela vontade dos aeronautas profissionais que vieram misturar-se multido para assistir minha experincia. Em vo explicara que, me movimentando a favor do vento, eu corria o risco infalvel de, atravessando o campo livre demasiadamente depressa, atirar a aeronave sobre as rvores, antes de ter tido tempo de elevar-me suficientemente, uma vez que a velocidade do meu propulsor seria superior do vento. Tudo foi intil. Eles nunca tinham visto partir um dirigvel. No podiam admitir para este lanamento condies diferentes que as do lanamento de um balo esfrico, sejam quais fossem as diferenas essenciais entre ambos. Sozinho contra todos, tive a fraqueza de ceder. Parti do local que me indicaram, e, no mesmo segundo, tal como eu receava, minha aeronave ia rasgar-se contra as rvores. O acidente serviu, pelo menos, para demonstrar aos incrdulos a eficincia do meu motor e do meu propulsor. No perdi tempo em lamentaes. Dois dias mais tarde, a 20 de setembro, largava do mesmo campo, desta vez, porm, do ponto escolhido por mim. Transpus sem incidentes as copas das rvores, e, logo em seguida, comecei a fazer evolues em volta para a demonstrao da aeronave aos parisienses vindos em multido. Tive ento, como sempre tive da por diante, os aplausos e a simpatia do povo de Paris, pois meus esforos sempre encontraram neste pblico um espectador afvel e entusiasta. Sob a ao combinada do propulsor, que imprimia movimento aeronave, do leme, que lhe permitia a direo, do guide-rope, que eu deslocava, dos dois sacos de lastro, que eu fazia deslizar, conforme meu bel-prazer, ora para a frente, ora para trs, logrei a satisfao de evoluir em todos os sentidos, para a direita e para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima. Tal resultado encorajava-me. A falta de experincia fez-me ento cometer um erro grave: elevei-me a 400 metros, altitude insignificante para um balo esfrico, porm absurda, e inutilmente perigosa para uma aeronave em teste. Dessa altura, eu via desenrolar-se embaixo o panorama dos monumentos de Paris. Prossegui minhas evolues at o Hipdromo de Longchamps, que, desde ento, escolhi como palco das minhas futuras experincias areas.

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DO

SEGUNDO LANAMENTO SANTOS-DUMONT No 1 (20 DE SETEMBRO DE 1898)

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Enquanto estava subindo, o hidrognio, em razo da depresso atmosfrica, aumentou de volume; o balo, bem esticado, conservava sua rigidez; tudo ia em perfeitas condies. No foi igual na descida. A bomba de ar destinada a evitar a contrao do hidrognio mostrou-se de capacidade insuficiente. O longo cilindro, que formava o invlucro, repentinamente comeou a dobrar-se pelo meio, como um canivete; a tenso das cordas tornou-se desigual; iriam rasgar-me o invlucro. Tive a impresso de estar tudo acabado, pois a descida, j iniciada, no podia mais ser interrompida pelos meios habituais, a bordo de um aerstato onde nada mais funcionava. A descida virava queda. Felizmente, estava caindo nas imediaes do gramado de Bagatelle, onde crianas brincavam com pipas. Uma ideia atravessou-me repentinamente pela mente: gritei-lhes que agarrassem o meu guide-rope, que j tocava o solo, e corressem com toda a fora contra o vento. Eram garotos inteligentes; pegaram no instante propcio a ideia e a corda. E o resultado desta ajuda de ltima hora foi imediato, e tal qual eu esperava. A manobra amorteceu a velocidade da queda e evitou-me, pelo menos, um choque perigoso. Salvo, pela primeira vez! Agradeci aos bravos meninos, que ainda me ajudaram a arrumar as coisas dentro da barquinha; chamei uma carruagem e transportei para Paris a aeronave.

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PRIMEIRA VIAGEM DO SANTOS-DUMONT No 1 (20 DE SETEMBRO DE 1898)

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SENSAES DA NAVEGAO AREA

CAPTULO VIII

SENSAES DA NAVEGAO AREA

Apesar do meu infortnio, s sentia, naquela noite, um sentimento de euforia. O sentimento de sucesso enchia-me a alma. Eu havia navegado no ar! Havia realizado todas as evolues que apresenta o problema. O acidente em si no era devido a nenhuma causa prevista pelos aeronautas profissionais. Eu havia subido sem atirar lastro; descera sem despejar gs; meus pesos deslocveis haviam funcionado com pleno efeito; ningum podia negar o triunfo dos meus voos oblquos. Ningum, antes de mim, fizera igual! Evidentemente, no momento da partida, ou pouco depois de deixar o solo, acontece, s vezes, que o aeronauta seja forado a atirar fora uma quantidade de lastro para equilibrar a mquina. Um erro natural, e pode-se ter dado a largada com um excesso de peso. Somente quis falar de manobras areas. Minha primeira impresso de navegador areo foi assim, confesso, de surpresa: surpresa de sentir a aeronave avanar rumo frente, surpresa de sentir o vento soprar-me no rosto. Na aerostao esfrica, anda-se com o vento, no se sente ele. Quando muito, nota-se o roar da atmosfera, nas subidas e descidas, e a oscilao vertical faz flutuar a bandeira. Mas, no movimento horizontal, o balo comum parece ficar estacionrio, enquanto a Terra foge sob ele. Portanto, enquanto a minha aeronave fendia o ar com sua proa, o vento fustigava-me o rosto, e meu palet flutuava como sobre o convs de um transatlntico. Sob outros aspectos, alis, pode-se comparar a navegao area com a navegao fluvial a vapor. No se assemelha com a navegao a vela. Quando se fala em louvoyer (a tcnica de navegar ziguezagueando contra o vento), isso no significa nada. Se o menor vento sopra, sopra sempre numa direo dada; a analogia com a corrente de um rio completa. Se no houver vento algum, pode-se comparar, ento, a navegao area navegao sobre as guas mansas de um lago. o que importa bem compreender.

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DANS LAIR - NO AR

Suponha que meu motor e meu propulsor me forneam, no ar, uma impulso de 20 milhas por hora. Estou na situao do capito de um vapor cujo propulsor determina, quer a favor, quer contra a corrente, uma impulso de 20 milhas por hora. Imagine agora que a correnteza seja de 10 milhas por hora. Se o vapor navegar contra ela, far 10 milhas por hora em relao margem, embora fornea, na gua, uma velocidade de 20 milhas. Se avanar no sentido da correnteza, far 30 milhas por hora em relao margem, apesar de no fornecer, na gua, uma velocidade maior. Esta uma das razes que tornam to difcil a avaliao da velocidade de uma aeronave. E tambm o motivo pelo qual os capites de aeronave preferiro sempre, para seu prprio prazer, navegar em tempo calmo, e porque, encontrando uma corrente contrria, trataro de escapar-lhe por uma subida ou descida oblqua. Assim fazem os pssaros. O yachtsman, com o seu veleiro no mar, clama por uma boa brisa, porque nada pode sem ela; em rios, o capito de um vapor cortar sempre por perto da margem a fim de evitar a correnteza, e tratar de descer o rio de preferncia com a jusante do que com a montante. Ns, marinheiros de aeronaves, somos como capites de vapores, e no de veleiros. O navegador areo s possui uma vantagem sobre esse outro, que grande: pode deixar uma corrente por outra. O ar est cheio de correntes variveis. Subindo, encontrar ou uma brisa favorvel ou uma regio calma. So aqui apenas consideraes prticas, nada tendo a ver com a aptido da aeronave para lutar, em caso de necessidade, contra a brisa. Antes da partida, por ocasio da minha primeira viagem, pensei se eu sentiria enjoo. Previa que, subir e descer obliquamente, pelo deslocamento dos pesos, resultaria em uma sensao desagradvel. Receava muito o balano, como se diz a bordo dos navios. Teria provavelmente menos balano lateral. As duas sensaes seriam novas em aeronutica, pois o balo esfrico no produz nenhuma sensao de movimento. No entanto, com a minha primeira aeronave, como as cordas de suspenso eram muito longas, aproximadas s de um balo esfrico, s tive um balano muito fraco. De um modo geral, apesar de terem dito que, em algumas ocasies, o meu aparelho balanava consideravelmente, nunca, e desde o primeiro dia, senti enjoo. Isto se deve, talvez, porque tambm raramente enjoo no mar. Nas minhas travessias do Brasil para a Frana e da Frana para os Estados Unidos, suportei todas as espcies de tempo. Certa vez, a caminho para o Brasil, a tempestade foi to violenta que o piano de cauda deslocou-se do seu lugar e foi quebrar a perna de uma senhora. Entretanto, eu nem passei mal. Sei bem que o que se experimenta de mais penoso no mar no tanto o movimento, mas a pequena hesitao do navio antes de balanar, o mergulho ou a ascenso maliciosa que se segue, e que nunca a mesma, aquele choque que se produz, quer no cncavo ou na crista da onda. A isto se junta, como agravantes, o cheiro da pintura, do verniz, do alcatro, misturado aos vapores da cozinha, ao calor das caldeiras, ao fedor da fumaa, s emanaes dos pores.

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SENSAES DA NAVEGAO AREA

A bordo duma aeronave, no h cheiro algum. Tudo puro e limpo. O prprio balano produz-se sem estremecimentos, sem nenhuma das hesitaes do navio no mar. O movimento possui a maciez de um deslize, provavelmente porque as ondas do ar opem menor resistncia. Menos frequente que no mar, o balano tambm menos rpido; o mergulho se faz sem parada brusca; pode-se, em pensamento, prever o termo da curva; e no h choque para produzir, no estmago, uma estranha sensao de vcuo. Mas no s. A bordo de um transatlntico, os solavancos so principalmente devidos ao fato de que a proa e a popa da gigantesca construo saiam alternadamente da gua para assim remergulharem. A aeronave nunca deixa o seu elemento, o ar, no qual s balana. Esta considerao me leva mais notvel de todas as sensaes da navegao area. Na minha primeira viagem, fiquei simplesmente empolgado. Quero referir-me sensao totalmente nova de movimentar-se em uma dimenso suplementar. O homem jamais conheceu nada que se possa comparar livre existncia vertical. Preso superfcie do solo, nunca faz um movimento para baixo, seno quando retorna, aps uma breve fugida para o alto; nossas mentes nunca abandonam a superfcie plana, mesmo quando os nossos corpos se elevam; isto to real que o aeronauta transportado por um balo esfrico no percebe a menor sensao de movimento, mas tem a impresso de que a Terra que desce sob ele. Relativamente s combinaes de movimentos verticais e horizontais, o homem est, absolutamente, sem experincias. Ento, como todas as noss