LL Perotto, E Hostensky, V Leiria, K Bento, Rothsteins, P. - Associação de Estudantes Estrangeiros...

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Artigo: Associação de Estudantes Estrangeiros para quê? – uma reflexão crítica sobre a representação estudantil em tempos de crise ISSN 1773-0341 Citação: PEROTTO, L. L., LEIRIA, V., HOSTENSKY, E.; BENTO, K.; ROTHSTEIN, P. (2015). Associação de Estudantes Estrangeiros para quê? – uma reflexão crítica sobre a representação estudantil em tempos de crise. In: Revue Passages de Paris, 10 (2015), p.12-33. Paris/FR: Apeb-FR. Disponível em: <http://www.apebfr.org/passagesdeparis/>

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Ciencias sociais, imigração, estudantes em transito, pedagogia internacional.

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  • Artigo: Associao de Estudantes Estrangeiros para qu? uma reflexo crtica sobre a representao estudantil em tempos de crise ISSN 1773-0341 Citao: PEROTTO, L. L., LEIRIA, V., HOSTENSKY, E.; BENTO, K.; ROTHSTEIN, P. (2015). Associao de Estudantes Estrangeiros para qu? uma reflexo crtica sobre a representao estudantil em tempos de crise. In: Revue Passages de Paris, 10 (2015), p.12-33. Paris/FR: Apeb-FR. Disponvel em:

  • Texto recebido em 21 de julho de 2014. Aceito para publicao em 1 de outubro de 2014.

    www.apebfr.org/passagesdeparis

    Passages de Paris 10 (2015) 12-33

    ASSOCIAO DE ESTUDANTES ESTRANGEIROS PARA QU? UMA

    REFLEXO CRTICA SOBRE A REPRESENTAO ESTUDANTIL EM

    TEMPOS DE CRISE

    Leonardo PEROTTO

    I

    Victoria LEIRIAII

    Elka HOSTENSKYIII

    Katucha BENTOIV

    Pedro ROTHSTEIN

    V

    Resumo: Este artigo construdo e entrecortado por narrativas enviesadas, estabelecendo um discurso

    fragmentado a partir das falas dos membros da APEC Associao dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha. O objetivo indagar sobre os atuais desafios dos estudantes e pesquisadores

    brasileiros na Europa, mais concretamente na regio espanhola j citada, repassando brevemente o

    histrico dos intercmbios dessa ndole no passado e vislumbrando as novas tendncias atuais. A partir de

    nossas falas, nos perguntamos quais so os mecanismos associativos que permitem comunidade

    brasileira adaptar-se ao novo entorno, ajudando-se mutuamente a construir uma plataforma cidad e

    plural que defenda seus interesses perante as instituies brasileiras, espanholas e catals. Em um contexto de crise econmica e de cmbios globais, importante indagar como o estudante brasileiro

    observa e participa dessas manifestaes, e como ele influencia nas polticas pblicas governamentais de

    internacionalizao e transnacionalizao do ensino.

    Palavras-chave: globalizao; associativismo; imigrao; internacionalizao do ensino;

    transnacionalizao; autoetnografia.

    Abstract: This article is made of crossed and intersected narratives, establishing a fragmented discourse

    from different speeches of the APECs members Association of Brazilian Researchers and Students in Catalonia. The objective is to wonder about the new challenges that Brazilian students and researchers

    face in Europe, and more concretely in the Spanish region mentioned above, briefly passing through the history of that kind of exchanges in the past and regarding the up-coming tendencies nowadays. Based on

    our stories, we ask ourselves about the associative mechanisms that allow the Brazilian community to

    adapt into the new environment, helping each other mutually to build a plural and citizen platform who

    defends its interests towards the Spanish, Catalonian and Brazilian institutions. In a context of severe

    economic crisis and increasing global changes, it is vital to question how the Brazilian student observes

    I Msico e arte-educador, doutorando em Artes e Educao pela Universidade de Barcelona (UB),

    presidente da Associao de Pesquisadores Brasileiros na Catalunha APEC (2013-2014). Email: [email protected] II Graduanda em Cincias Polticas pela Universidade de Barcelona (UB), vice-presidente da junta

    diretiva da APEC (2013-2014). Email: [email protected] III Psicloga e doutoranda pela Universidade Autnoma de Barcelona (UAB), secretria da junta diretiva

    APEC (2013-2014). Email: [email protected] IV Sociloga e doutoranda pela University of Leeds (UK), secretria da junta diretiva da APEC (2013-

    2014). Email: [email protected] V Politlogo e mestrando em Gesto Cultural pela Universidade de Barcelona, tesoureiro da junta diretiva

    da APEC (2013-2014). Email: [email protected]

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    and participates in those manifestations, and how he influents in the governmental public policies

    regarding the process of educative internationalization and transnationalization.

    Keywords: globalization; civic associations; immigration; educative internationalization;

    transnationalization; autoethnography.

    I. INTRODUO DE UMA IDEIA PARA UM ARTIGO

    O presente artigo um relato de experincias construdo a partir de pontos de vista

    distintos, que tem como base a vivncia de cinco estudantes brasileiros1 que moram em

    Barcelona/Espanha e que, no ano de 2013/2014, atuaram na diretoria da APEC -

    Associao dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha. Neste perodo

    assumimos a responsabilidade de compor a junta diretiva para dar continuidade s

    atividades da associao, promovendo encontros e debates alm de salvaguardar a

    administrao jurdica da mesma. Deste encontro, nos conhecemos, apreendemos uns

    com os outros, trouxemos nossas prprias histrias para dentro da associao, alm de

    compartilharmos momentos e preocupaes em relao aos assuntos que envolvem o

    fato de ser estrangeiro e imigrante. Tivemos a oportunidade de sentir e perceber o

    reflexo de outras culturas, outras vozes e leituras de mundo, em nossos prprios modos

    de perceber e de agir junto ao entorno em que vivemos.

    Neste sentido, fomos percebendo que quando estvamos em contato com pessoas de

    outros nichos culturais, vindas de diferentes espaos e lugares, sucediam-se tipos de

    aprendizado em diversos nveis, que ocorriam a partir do entrecruzamento das

    experincias deles com as nossas vivncias e vice-versa. Dessa forma, foi-se criando um

    processo de escuta do outro e a promoo de diversas e distintas perspectivas crticas,

    algo que se refletia em circunspees mais amplas sobre a realidade a nossa volta que,

    naquele momento, estvamos apreendendo. Tais instantes acabaram nos

    proporcionando uma releitura peculiar sobre nossa prpria incluso nos meios sociais

    brasileiros, nas formas de participao cultural e na percepo que tnhamos sobre o

    legado poltico de nosso pas. Para alm do fato de estarmos vivendo fora do Brasil, a

    possibilidade em conhecer realidades distintas e realizar esse intercmbio, de alguma

    forma, estava vinculada e passava pelo fato de estarmos representando uma associao

    estudantil.

    Quando da ocasio de participarmos do colquio de 30 anos da Associao dos

    Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Frana (APEB-Fr) e do III congresso europeu

    de ps-graduandos e pesquisadores brasileiros, tivemos a oportunidade de colocar em

    prtica a ideia de escrever um artigo em conjunto, galgando a base do texto em nossos

    prprios relatos enquanto membros da junta diretiva da associao. Acreditamos que

    seria importante assinalarmos o valor e o significado dessas vivncias, momentos de

    1 Gesto APEC 2013/2014 - Leonardo Luigi Perotto, presidente; Victoria Leiria Dantas, vice-presidente;

    Elka Lima Hostensky, 1 secretria; Katucha Bento, 2 secretria; Pedro Andrs Rothstein Prez,

    tesoureiro.

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    observao de nossa prpria realidade que vo em direo a assuntos mais amplos, tanto

    das mudanas sociais e culturais em nvel mundial, quanto de conceitos sobre territrio,

    identidade, multiculturalismo, ps-colonialismo e globalizao. Tratamos de compartir

    nossas leituras a partir de narrativas singulares para construir um texto nico, baseando-

    nos em conceitos da pesquisa autobiogrfica (Hernandez & Rif; Touraine &

    Khosrokhavar; Goodson; Robira), da investigao narrativa (Connely & Clandinin) e da

    pesquisa autoetnogrfica (Garca; Sparks; Ellis). Apesar de ser nossa primeira incurso

    neste tipo de escrita, consideramos este texto um exerccio importante enquanto registro

    de nossas aes coletivas, uma forma de marcar o somatrio das formas de pensar e de

    agir de um e de outro, transformadas em propostas de cooperao e de cmbio de

    paradigmas. Uma maneira de darmos conta das realidades microssociais sem perder de

    vista o aspecto histrico e poltico dos macrocontextos, relacionados com as nossas

    prprias histrias de vida. A escrita e o registro passam a ser um meio para pensarmos

    em alternativas e propostas transversais/colaborativas que, quando transformadas em

    aes, proporcionam novos tipos de dinmicas de trabalho e de aprendizado.

    II. DE UMA HISTRIA EM COMUM PARA UMA REDAO

    COMPARTILHADA ESCRITA AUTOBIOGRFICA E RELATOS DE EXPERINCIA

    Durante as conversas para a realizao da escrita do artigo, sempre pairava a dvida de

    qual formato adotaramos para dar conta das falas a partir de nossas experincias

    enquanto membros da APEC. Notvamos que em nossos relatos surgiam perspectivas

    especficas que davam luz a determinados achados de nossa prpria conscientizao

    poltica e social, de nosso posicionamento frente s situaes que passavam e que nos

    afetavam. Essas narrativas no apenas diziam algo sobre ns, mas falavam de um

    momento caracterstico e individual em meio a um determinado contexto social, uma

    abertura para uma possvel discusso desde a nossa mirada pessoal sobre essas

    determinadas conjunturas. Assim, nos situamos a partir da investigao autobiogrfica e

    dos relatos pessoais como um caminho possvel para uma escrita compartilhada,

    pensando nela como reivindicao e legitimao da experincia vivida como fonte de

    conhecimento, lugar para a pesquisa e de posicionamento poltico (Hernandez & Rif

    21).

    Em seu histrico, a investigao autobiogrfica tem sua origem nas cincias sociais ao

    final dos anos 70, quando esta passa por uma reestruturao paradigmtica em seus

    modelos de investigao cientfica. Tendo em vista as mudanas mundiais econmicas

    que afetavam as estruturas sociais e os modos de interao interpessoal, algumas reas

    do conhecimento como a antropologia e a sociologia comearam a questionar seus

    prprios mtodos e postulados tericos, evidenciando a necessidade de buscar novas

    prticas e formas de pesquisa para dar conta da anlise dos eventos sociais modernos.

    Assim, as prticas narrativas (as histrias de caso, a biografia, as histrias de vida, os

    fragmentos de vida, apenas para citar alguns exemplos) comeam a ter um papel

    importante dentro da renovao conceitual dos novos modelos de investigao. H um

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    giro conceitual nas formas de ver e perceber a realidade, relacionando o singular e o

    universal a partir da retomada da leitura individual, uma leitura que vai do sujeito em

    direo ao coletivo, uma forma de compreender determinados contextos dando voz a

    quem pertence a eles. Para Ferrarotti (26-27), se ns somos, se todo indivduo , a reapropriao singular do universal social e histrico que o rodeia, podemos conhecer o

    social a partir da especificidade irredutvel de uma prxis individual. Dentro dessa prxis individual, poderamos ver, com maior acuidade, os fatores preponderantes que

    se desenlaam em um dado nicho social, aprendendo com essa ao para produzir novos

    saberes sobre um dado contexto.

    Entretanto, necessrio pontuar que a autobiografia, enquanto prtica de pesquisa,

    emerge como uma pea chave dentro das categorias da investigao narrativa.

    Primeiramente, devemos levar em conta que a investigao narrativa se caracteriza por

    ser uma prtica da pesquisa qualitativa baseada na descrio das aes humanas

    (Hernndez & Sancho 10). Tal prtica observa na experincia de cada pessoa,

    principalmente em sua dimenso temporal, ncleos constitutivos de tematizao e de

    anlise das narrativas, de maneira a adotar formatos diferentes conforme as finalidades

    que se quer dar ou segundo os pontos que queremos destacar na pesquisa: seja de nfase

    investigativa (grafia), na nfase cultural (etno), ou na nfase que parte do sujeito (auto).

    Para Connely & Clandinin (12), este tipo de prtica tanto um fenmeno que se

    investiga quanto um mtodo de pesquisa. Ou seja, para os autores, narrativa o nome da qualidade que estrutura a experincia que vai ser estudada, sendo tambm o nome

    dos padres de pesquisa que viro a ser utilizados durante o seu estudo. Assim, os

    indivduos levam vidas relatadas e contam a histria dessas vidas, enquanto que os pesquisadores buscam descrever essas vidas, recolher e contar histrias sobre elas,

    escrevendo relatos dessa experincia. A diferena na prtica autobiogrfica que o

    investigador investiga seu prprio relato, tece relaes com seu meio sociocultural e

    reivindica sua posio emancipatria frente a uma dada circunstncia. Como sugere

    Bruner (128), un relato efectuado por un narrador en el aqu y ahora sobre un protagonista que lleva su nombre y que exista en el all y entonces, y la historia termina

    en el presente, cuando el protagonista se funde con el narrador. Para o autor, a autobiografia uma historia que se narra e se escuta ao mesmo tempo, onde o praticante

    no apenas narra, mas justifica os seus atos, se coloca na situao e se redefine.

    Nessa perspectiva, as histrias contidas em nossos relatos de experincia servem como

    um elo entre as narrativas de vida ainda no Brasil anlogas com a nossa realidade atual;

    desde as dicotomias e as novas situaes que lidamos enquanto membros de uma

    associao, at as novas perspectivas que surgem a partir da nossa experincia enquanto

    estudantes em trnsito. Elas evocam contedos biogrficos que se intercalam com as

    novas vivncias em solo estrangeiro, relativizando-as com histrias anteriores e revendo

    nossos novos posicionamentos no presente. Alm disso, se conectam com os nossos

    movimentos dirios, fazem parte de uma teia de leituras que nos completam enquanto

    sujeito e refinam nosso olhar, ajudando a pensar sobre nossa relao entre o novo

    contexto e o nosso contexto social anterior. Neste caso, os relatos de experincia, em

    conjunto, atuam como pequenas autobiografias que tm como tema nosso relato de vida

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    enquanto estudante, nas experincias de sujeitos em trnsito e a relao poltica e social

    dentro da associao. Neste vis, reinterpretamos as experincias que vivemos a partir

    da reconstruo dos caminhos e prticas que realizamos, contraponto com as aes e

    prticas de nossos pares para dar significncia ao nosso prprio itinerrio (Robira 226).

    La formaci basada en relats (auto)biogrfics ens aporta una colla de

    caracterstiques sobre el sentit i la finalitat de les histries de vida: el valor de

    narrar(-se) en companyia, garantir el retorn des de lescolta atenta, el paper de lintercanvi basat en la cura de laltra persona, la formaci des de lexperincia, etc. La perspectiva de la formaci (auto)biogrfica permet servir-se dels relats dexperincia com a base per al desenvolupament professional, la qual cosa implica un canvi de papers en els tipus de relaci

    dels formadors i en la funci de la formaci: acompanyar en la constituci

    del sentit de ser a partir de la relaci amb un mateix, amb les altres persones i

    amb els sabers (Hernndez & Sancho 12).

    Contudo, a autobiografia enquanto uma possibilidade metodolgica que atua na

    emancipao do indivduo, tambm nos leva a pensar sobre a autoetnografia e os perfis

    metodolgicos desta prtica investigativa como um flerte em nossa proposta. Um pouco porque alguns conceitos utilizados na definio da autobiografia se relacionam

    diretamente com a autoetnografia, o que no deixa claro a linha que diferencia uma e

    outra prtica. necessrio assinalar onde esto os eixos conectores de uma e outra

    metodologia, de como se d essa conexo e onde elas se distanciam, para

    compreendermos como nossos relatos tambm se situam enquanto autoetnografias. Para

    Ellis (128-29), a autoetnografia surge a partir da crise da representao provocada pelo

    ps-modernismo, desafiando as noes de verdade absoluta e do conhecimento

    cientfico dentro da academia. Para a autora, uma das consequncia desse fenmeno o

    descrdito nas teorias da linguagem e nos seus legados tradicionais quanto pesquisa

    cientfica; no questionamento do significado das cincias sociais desprovidas de

    intuio e emoo; do levantamento de dvidas sobre os valores fundamentais das

    cincias sociais e, por ltimo, na inutilidade das rgidas fronteiras disciplinares que

    separam as reas humanas, as cincias sociais, as cincias naturais e as artes. E, como

    foi dito anteriormente, essa ruptura faz com que as cincias sociais aproximem-se de

    outros mtodos e prticas investigativas, como as prprias metodologias narrativas.

    Os mtodos de investigao narrativa tornaram-se recorrentes, nas cincias sociais,

    porque possibilitam que o investigador tenha uma interao mais abrangente com seu

    objeto de estudo, se colocando mais prximo e fazendo parte da prpria pesquisa

    enquanto sujeito que pesquisa e pesquisado. Para Hernndez & Rif (27-29), no caso

    especfico da autoetnografia, sua maior propriedade est no fato de conectar, de forma

    explcita e como componente do processo investigativo, o lado pessoal do investigador

    com as dimenses e as foras culturais que esto presentes no seu relato. Em diferena,

    a autobiografia enquanto um relato do eu tem seu lugar assegurado a partir da sua caracterstica individual e genuna, ficando margem dos contextos sociais e culturais,

    e a se situa a diferena entre uma e outra. A autobiografia considera a narrativa como

    uma tomada de conscincia do prprio sujeito para a sua emancipao, enquanto a

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    autoetnografia vai mais alm, questionando o entorno social e cultural em que vive o

    autoetngrafo, fazendo com que este se emancipe e que as concluses de sua pesquisa

    ajudem na transformao do seu prprio entorno. Segundo Ellingson & Ellis (qtd. in

    Garca 282), a pesquisa autoetnogrfica possui caractersticas especficas, e seguindo o

    paradigma construcionista, podemos caracteriz-las em cinco pontos:

    a) ser uma reflexo crtica sobre o que se d por sentado na sociedade, nos grupos e no

    ser;

    b) ser a pesquisa, a escritura, a histria e o mtodo que conecta a autobiografia com a

    cultura, a sociedade e a poltica;

    c) ser o estudo da cultura da qual o autor forma parte atravs das experincias

    reacionais;

    d) ser um espao no qual a vida emocional de um sujeito constri pontes com a

    experincia coletiva e individual como forma de ativismo atravs da representao, da

    compreenso e da inspirao;

    e) conectar o estilo imaginativo da literatura com o rigor das cincias sociais e da

    etnografia.

    Partindo desses pontos, podemos contextualizar o estudo autoetnogrfico como uma

    investigao no neutra e que est conectada diretamente ao objeto de estudo,

    colocando o autoetngrafo dentro da investigao como um elemento potencialmente

    transformador. Conforme Garca (286), a autoetnografia questiona as prprias normas

    de investigao, se difunde como um mtodo alternativo que questiona e nos aproxima

    de nossas compreenses e afeta os fenmenos que so estudados. Caracteriza-se,

    principalmente, por transformar em evidencias as experincias do pesquisador, dando

    sentido tanto emocional quanto possveis solues s experincias socialmente

    construdas.

    III. RELATOS DE EXPERINCIA POR UMA LEITURA ENVIESADA

    A partir da proposta desta escrita compartilhada, nos detivemos em construir nossos

    relatos pessoais para a confeco do artigo, delimitando as narrativas conforme trs

    perguntas fundamentais: a) Quais so meus itinerrios pessoais, de onde venho, quem

    eu sou e para onde quero ir?; b) porque escolhi me juntar a uma associao estudantil e

    qual meu papel poltico enquanto cidado e estudante?; c) O que representou estar em

    uma associao e o que isso me transformou? Acordamos que essas perguntas poderiam

    ser interpretadas livremente, respeitando um limite mximo de trs a oito pginas por

    narrativa.

    Tais escolhas foram feitas a partir de conversas prvias entre os membros do grupo,

    pontuando apenas os tpicos anteriores para que cada um tivesse a oportunidade de

    narrar suas experincias da maneira que melhor lhe agradasse (mesmo havendo

    discordncia quanto amplitude dos tpicos, j que de certa maneira delimitavam at

    certo ponto o discurso narrativo). Outro questionamento que tivemos foi qual nome dar

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    para este processo de escrita em conjunto, pois tnhamos dvidas quanto terminologia

    que poderia descrever esta escrita. No deixam de ser autobiografias colaborativas,

    conforme Coulter et al., mas preferimos chamar o processo de escrita compartilhada,

    porque escrevemos em um mesmo espao, em um mesmo local em que nossas ideias

    iriam permanecer em dilogo. No interviemos diretamente na escrita um do outro - at

    porque cada escrita se tornou um processo solitrio - mas interviemos indiretamente no

    processo de escrita, devido a nossas diferentes caractersticas, durante nossos encontros

    em vida real, fosse na associao ou fora dela. Para uma melhor leitura, intitulamos

    cada um dos relatos como conversas, e distribumos a ordem das narrativas da seguinte maneira: Leonardo Luigi Perotto, Katucha Rodrigues Bento, Victoria Leiria

    Dantas, Pedro Andrs Rothstein e Elka Lima Hostensky

    Primeira conversa - associao de estudantes para qu?

    Para qu tu queres assumir a presidncia de uma associao de estudantes? Tu s vai arranjar problemas,

    um monte de problemas!.

    Meu nome Leonardo Luigi Perotto, tenho 35 anos e sou msico, arte educador e

    doutorando da Universidade de Barcelona. Inicio este texto com essa pequena frase que

    escutei quando fui recebido, em 2013, na casa de duas amigas em Barcelona, quando

    ambas souberam que eu havia me candidatado presidncia de uma associao de

    universitrios brasileiros na Catalunha/Espanha. E com essa mesma frase poderia

    resumir vrios outros encontros e momentos em que fui abordado por pessoas quase que exclusivamente por amigos e colegas brasileiros que me perguntavam qual era a minha principal razo de querer ser presidente de uma associao de estudantes.

    Naquele momento inicial, eu no sabia muito bem como responder, apenas acreditava

    que seria um importante exerccio de cidadania, de colaborao coletiva e de

    aprendizado. De igual maneira, com tantas pessoas questionando a minha inteno, se

    tornava impossvel no pensar se realmente eu estava fazendo a coisa certa, j que a receptividade negativa acabava produzindo, de alguma forma, um mal estar velado em

    mim.

    Apesar dessa m impresso, passei a me perguntar por que estar ligado a uma

    associao estudantil causava tanto desconforto entre alguns amigos e colegas, uma

    repulsa e negao que, para mim, no faziam muito sentido. Pensava na ideia da

    associao de estudantes na Catalunha como um lugar de encontro, de troca sobre as

    experincias de ser estrangeiro, na qual poderiam me revelar novas e distintas histrias.

    Seriam leituras diferentes daquelas que faria se estivesse em meu contexto habitual,

    provavelmente no iria conseguir visualizar com a agudez crtica necessria por estar

    afeito s situaes cotidianas to presentes aos nossos olhos. Acreditava que por estar

    vivendo em um territrio estrangeiro, em contato com diferentes culturas, teria a

    oportunidade de experienciar o fato de ser imigrante e aprender a lidar com as

    diferenas tnicas e culturais, visualizando os problemas e conflitos similares aos

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    nossos a partir da perspectiva de outros grupos sociais e, sobretudo, iria ter a

    oportunidade de debater sobre estes conflitos, senti-los e relacion-los com as minhas

    experincias sociais previamente vivenciadas no Brasil. Uma oportunidade nica para

    me deslocar, me colocar fora do eixo e me desestabilizar, forando-me tambm a refletir

    sobre a minha identidade e o meu papel enquanto estudante e investigador, e a partir

    disso, rever meus prprios valores e no que eu poderia agregar a essas problemticas.

    Entretanto, muitas pessoas do meu convvio pessoal no percebiam assim. Tinham

    ressalvas e opinies negativas ou contrrias sobre o conceito de associativismo,

    geralmente se apresentando de forma arredia prpria ideia de fazer parte de uma

    associao. Havia diferentes opinies sobre a ideia de associao, do potencial de sua representatividade, dos contedos que so trabalhados, do seu significado e do retorno

    social. Eram opinies que nem sempre coincidiam, pelo contrrio, na grande maioria

    das vezes, eram conflituosas e formavam parte de debates mais acirrados. Tais

    episdios expunham diferentes pontos de vista: havia sujeitos que no acreditavam nas

    propostas e no valor do associativismo; outros gostariam de fazer parte de uma

    associao, mas no queriam participar efetivamente das atividades, apenas gostariam

    de manter um vnculo para ficarem informados sobre os acontecimentos sociais e

    polticos; outros, que participavam de movimentos sociais no Brasil, possuam uma

    total convico sobre o papel positivo das associaes em nichos menos favorecidos e

    marginalizados; e ainda havia um ltimo grupo que afirmava que outros tipos de

    organizaes sociais maiores, que possuam o respaldo governamental e que estavam

    institucionalizadas a mais tempo, respondiam de forma mais completa aos seus anseios

    do que os pequenos agrupamentos civis.

    Nessa minha primeira leitura, mesmo sendo emprica e a partir de um grupo no muito

    grande de sujeitos, consegui observar como os diferentes tipos de discursos estavam

    intimamente relacionados ideia de pertencimento social de cada um dos indivduos,

    onde as suas rotinas, seus modos de ao e a maneira de ver e perceber as coisas a sua

    volta se encontravam condicionados s formas organizativas e ideolgicas dos grupos

    sociais em que conviviam. A maneira como se posicionavam criticamente frente a

    determinados assuntos, impreterivelmente, passava pelo crivo antolgico de saberes

    sociais guarnecido pelos grupos em que transitavam, mesmo que houvesse

    discordncias em determinados pontos.

    El hecho de que pasemos la mayor parte de nuestra vida diaria en presencia

    inmediata de los dems es algo inherente a la condicin humana; en otras

    palabras, lo ms probable es que nuestros actos cualesquiera que sean, estn

    socialmente situados en un sentido estricto. (Goffman 174)

    De alguma forma, eles j passavam por um processo associativo, no momento em que

    entravam em um acordo parcial quanto ao conceito do que poderia ser uma associao,

    relativizando suas ideias com a ideia dos outros indivduos e chegando a um senso em

    comum. Logicamente isso no constitui uma organizao, longe disso, mas o princpio

    do encontro e da resoluo de um conflito em comum j mostra um indicativo

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    associativo, e est presente tanto nos discursos quanto nas prticas do dia a dia. O

    comeo de uma associao civil nasce do momento em que as pessoas se respaldam

    mutuamente em prol de um determinado objetivo

    a associao uma traduo em actos do princpio da solidariedade que se

    expressa pela referncia a um bem comum, valorizando pertenas herdadas

    [...] ou pertenas construdas, [...] impulsionada pelo sentimento de que a

    defesa de um bem em comum supe a aco colectiva. (Ferreira 127-28)

    Os debates de alguma forma implicam esta ao coletiva, uma colaborao entre

    indivduos em vista de algo em comum, neste caso, o tema em debate. Esse encontro

    comea nos momentos de intercmbio e de dilogo, a partir da solidariedade e da defesa

    de algo com que todos compactuam, um primeiro passo para criar uma nova histria.

    Por conseguinte, validam-se os processos de cidadania, onde as aes coletivas se

    articulam atravs de procedimentos de tomada de conscincia frente a determinadas

    situaes sociais, polticas e culturais.

    Entretanto, no caminho entre o encontro dos indivduos em seus respectivos grupos

    sociais at a organizao e formalizao jurdica de uma associao, surgem outros e

    novos precedentes que fazem emergir questionamentos relacionados real efetividade

    de uma associao. Para que exatamente queremos uma associao? At que ponto essa

    organizao pode influir e auxiliar na melhoria do nosso entorno? Como ser a

    participao do grupo social a quem essa dirigida? Quais so os potenciais polticos da

    associao frente ao grupo que essa representa? Essas perguntas fazem parte de

    questionamentos importantes frente quantidade de mudanas que ocorrem em nosso

    mundo ps-moderno. Atualmente passamos por uma srie de eventos globais que

    exercem uma influncia direta em nossa realidade cotidiana, desde os efeitos macro

    polticos e macro econmicos da globalizao aos nossos episdios dirios, como os

    deslocamentos atemporais promovidos pelas novas tecnologias e as redes de

    comunicao. Nesse sentido, torna-se inevitvel no refletir sobre como a representao

    do chamado terceiro setor poderia vir a equilibrar essa nova conjuntura que desponta,

    principalmente quanto aos desequilbrios sociais e culturais, se levarmos em conta os

    efeitos que essas mudanas exercem nas estruturas das prprias sociedades, tanto nas

    suas relaes de produo e de poder quanto nas relaes interpessoais (Castells).

    Esses questionamentos tambm indicam uma preocupao quanto representatividade,

    s formas e estratgias que os estudantes adotam frente a esses eventos. Uma associao

    de estudantes, de alguma forma, atua e dinamiza a relao deste grupo com as novas

    situaes e circunstncias sociais e polticas, promovendo a discusso sobre o lugar da

    classe estudantil dentro da nova conjuntura. A prpria entidade, por sua natureza

    orgnica e flexvel, est sempre se reconstruindo a partir das contraposies de ideias e

    dilogos, tendo que se ajustar constantemente em relao aos temas que os indivduos

    que a frequentam trazem - estar relacionado con un grupo u otro es un proceso continuo hecho de vnculos inciertos, frgiles, controversiales y, sin embargo,

    permanentes (Latour 48). Por outro lado, tambm questiona que classe de novos

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    estudantes est surgindo a partir dessas novas discusses, pois, assim como o mundo se

    transforma a partir dos eventos da globalizao, os programas educacionais e o perfil

    dos estudantes tambm se transformam, adequando-se e modificando diretrizes e regras

    para a formao de profissionais conforme a necessidade econmica e social. Mas at

    que ponto os estudantes esto cientes disso? Por quais temas eles se interessam? Como

    os estudantes percebem esta influncia em suas vidas profissional e cotidiana?

    Ns sabemos que formar e dar continuidade a uma associao um processo lento e

    gradativo, que demanda tempo e doao por parte das pessoas que esto envolvidas, um

    envolvimento necessrio para que, de alguma forma, sejam promovidas mudanas ou

    melhorias. um trabalho rduo, fonte de aprendizado e de exerccio pessoal quanto s

    formas de perceber e escutar o outro (Back).

    Para encaminhar para o fechamento deste relato, finalizo com uma citao que li em

    algum lugar e infelizmente no me recordo onde, nem que situao era, mas a anotei em

    minha agenda, pois achei que tinha algo a ver comigo, no momento em que aceitei ser

    presidente da associao: a cidadania , pois, a expresso de uma relao dinmica entre indivduos e a comunidade qual esto ligados por condies de natureza poltica

    e social, mas tambm simblica, sendo uma construo mutvel e contingente. Acredito que os processos associativos tenham a premissa dessa citao, colocando as

    pessoas em um contato diferente, quem sabe mais comprometido entre as realidades

    sociais, entre seu prprio contexto e as regras que regem as ordens polticas e

    governamentais.

    Segunda conversa - Interseccionalidades do Ativismo Estudantil

    A roda da saia, a mulata

    No quer mais rodar, no senhor

    No posso fazer serenata A roda de samba acabou

    A gente toma a iniciativa

    Viola na rua, a cantar

    Mas eis que chega a roda-viva

    E carrega a viola pra l Chico Buarque de Holanda Roda Viva

    Meu nome Katucha Rodrigues Bento e venho me apresentar nesse artigo como ex-

    presidente e atual secretria da APEC. Mas antes, acredito ser importante explicar o

    meu ponto de partida, e para isso pretendo fazer uma breve contextualizao a partir de

    uma perspectiva interseccional, ou seja, apresentando prismas de classe, raa, gnero e

    nacionalidade que me formam como pesquisadora, profissional e pessoa.

    Estatisticamente, a conveno na conjugalidade brasileira homogmica e

    homocromtica. Isso significa que h uma tendncia entre os brasileiros para

    estabelecer vnculos entre pessoas de caractersticas semelhantes de idade, origem

    geogrfica, social, de classe e raa. Apesar desse dado, o matrimnio interracial

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    bastante significativo e, como tantos brasileiros, sou filha da miscigenao fruto de um

    casamento que representa a clssica mestiagem no Brasil: me branca e pai negro. Mas

    foi minha me quem nos ensinou a mim e minha irm a lidar com a negritude. Desta forma, Martin Luther King, Rosa Parks, Nelson Mandela, Mahatma Ghandi e

    muitos outros entraram em nossas casas por meio de vdeos e livros desde muito cedo.

    Nunca faltaram livros em nossa casa e esse privilgio no trocaria por nada, muito

    menos pelo conforto ou ascenso financeira que sempre foram escassos.

    Embora seja conhecida a baixa qualidade das escolas pblicas brasileiras, isso no

    aplacou to negativamente a minha educao formal, talvez por ter crescido em cidades

    do interior de So Paulo. Sempre estudei em escolas pblicas e, at a adolescncia, vesti

    roupas que muitas vezes eram costuradas pela minha me. Fiz cursinho no Ncleo de

    Conscincia Negra na USP (NCN-USP), onde as aulas sobre Poltica e Direitos

    Humanos faziam parte do currculo pedaggico. Foi l que minha formao poltica

    nasceu e minha conscincia sobre a minha condio como mulher negra passa a tomar

    forma. Ali deixo de ser mulata, palavra que simbolicamente passou a me reduzir a um

    ser infrtil, o smbolo de inferioridade quando empaca, quando copula com outro animal, jamais gerando novos frutos. Sobretudo em minha condio de mulher, entendi

    que a perversa compreenso construda sobre a figura da mulher mulata e a neguei no

    sentido literal (afirmao negativa) e figurado (afirmao da minha negritude).

    Sobretudo, entendi que haja o que houver, essa condio de mulher negra me coloca em

    uma posio historicamente complexa e muitas vezes vulnervel. No no sentido de

    vtima, mas h que saber que tipo de batalha estamos lutando. Neste momento, refiro-

    me ao racismo, mascarado de democracia racial no Brasil.

    Graas a um programa chamado Polticas da Cor da Fundao Ford, recebi uma bolsa

    de estudos de meio salrio mnimo (ano de 2003) para estudar o primeiro ano de

    faculdade na Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo. Trabalhava e

    estudava para pagar as mensalidades e, com orgulho, me formei na primeira escola de

    sociologia e poltica da Amrica Latina, com professores brilhantes e colegas de classe

    geniais. Durante todos os anos de graduao, organizei e/ou participei de atividades

    polticas, de militncia, voluntrias que me levaram a conhecer mais as mltiplas

    realidades de So Paulo, como a cracolndia, a histria poltica do samba, o movimento

    negro, atividades acadmicas engajadas em movimentos sociais; e do nosso pas, com

    perspectiva mais global sobre a seca, a falta de direitos sade, educao e moradia que

    assolam o nordeste brasileiro de forma mais intensa em relao ao sudeste do pas.

    Galguei os passos at o mestrado com muita dificuldade financeira e tambm, o que

    acredito ser mais relevante, de me encaixar no processo acadmico brasileiro. Fui

    Espanha como Au Pair (bab) e logo descobri as faculdades onde poderia realizar o

    mestrado. Ironicamente, fui aprovada em todas nas quais me inscrevi e escolhi a

    Universidade de Barcelona para realizar meu sonho em seguir pesquisando e estudando,

    considerando apenas a qualificao da instituio como a melhor do pas em Sociologia

    e Pesquisa. Sem bolsa de estudos, cheguei a Barcelona apenas com algumas reservas

    que tinha do trabalho como Au Pair.

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    Enquanto buscava trabalho na cidade, fui aliciada algumas vezes na rua para trabalhar

    como profissional do sexo. Colegas de universidade chegaram a insinuar que esse era o

    meu ofcio. O que me incomodou no foi ser vista como prostituta, mas o valor

    distorcido e barato que esses indivduos atribuam (e atribuem) s putas.

    Consequentemente, um valor tambm distorcido das mulheres imigrantes brasileiras

    esteve presente na minha busca por trabalho. J passei por momentos de perigo e

    cheguei a temer pela minha integridade fsica. Como Pedro menciona em sua

    autoetnografia, meu processo de emigrao foi sempre solitrio, o que sempre dificultou

    toda a minha adaptao.

    O motivo pelo qual chego a contar tais episdios para contextualizar a questo da

    interseccionalidade na vida de todo e qualquer pesquisador. Mesmo que no percebidos,

    esto presentes durante o nosso fazer da pesquisa. Principalmente quando a pesquisa realizada em mbito internacional, onde estamos necessariamente em contato com um

    outro que muitas vezes estranho s nossas culturas, hbitos, religies, cores de pele, formas de fazer e pensar. E por mais que encontremos semelhanas, o contraste

    est presente em algum momento. O importante no empacar. Ao contrrio, faz-se necessrio estarmos cientes de nossas condies como estudantes, pesquisadores,

    professores e representantes de uma determinada rea, mtodo ou at mesmo debates

    que somos capazes de produzir.

    Por esse motivo cheguei APEC, que representou um ponto de encontro em dimenses

    diferentes: debates interdisciplinares e acadmicos, novos espaos e formatos para criar

    tal dilogo, contato com pessoas do mesmo pas e de regies diferentes que dificilmente

    chegariam a se conhecer, tendo em vista que o Brasil tem propores continentais e que

    a mobilidade no algo to simples quanto no contexto europeu, por exemplo.

    Inclusive, na condio de ser um pesquisador brasileiro em um espao internacional, como a Catalunha, certo que o contato com pesquisa, pessoas e leituras internacionais estar presente.

    Esta narrativa tem a ver com a perspectiva que denuncia a educao como um privilgio

    e no como um direito, como mostra a minha histria de vida e de tantas outras pessoas

    ao redor do globo. Principalmente quando falamos de uma possibilidade de estudar fora

    do Brasil.

    Sem dvida, minhas palavras e histrias so apenas uma forma de perceber um contexto

    mais global. Por isso, estendo o convite a todos os leitores, pesquisadores e estudantes

    para analisarem suas prprias interseccionalidades e perceberem suas condies dentro

    do contexto social em que se encontram. Seja qual ele for, a condio de estudante ser

    ainda um privilgio que aumenta na medida em que as ajudas e incentivos da

    universidade, governo ou condio financeira familiar contribuem para a concretizar tal

    formao (no entrarei aqui em uma anlise sobre estratos sociais, mas aponto que h

    diferenas sociais e polticas entre incentivos de bolsas estudantis e boa situao

    econmica privada/familiar). Ver a condio dos pesquisadores brasileiros na Catalunha

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    me inspirou no s a participar da APEC, mas a ser presidente da associao (em

    2012/2013) buscando colocar em evidncia as realidades e perspectivas destes sujeitos.

    Toda a minha trajetria me levou a causas sobre justia social, igualdade de direitos em

    termos de gnero, raa e sexualidade. Entretanto, na APEC, essas questes

    extrapolavam as diversas ideologias que seus membros apresentavam, a

    interdisciplinaridade e interculturalidade presentes na formao intelectual e

    profissional dos apecanos. Desta forma, a busca foi trazer algo novo ao mesmo tempo

    em que dvamos continuidade aos projetos de diretorias anteriores, j iniciados ao longo

    dos vinte anos de associao. Como parte da diretoria, contava com Melissa Caminha,

    ento secretria da diretoria e pilar fundamental para a gesto de 2012/2013. Ela

    tampouco contava com bolsa de estudos e conhecia bem as adversidades que isso

    poderia causar na vida do estudante. Buscamos trazer jovens graduandos pesquisadores

    e ps doutorandos ao dilogo, pessoas de nacionalidades diferentes para apresentar suas

    maneiras de pensar, contar histrias, poesias e msicas dentro de espaos ldicos,

    questionar protocolos e formalidades acadmicas, entendendo tambm como produo

    de conhecimento de qualidade novas provocaes e formas de engajamento.

    Buscamos revelar a importncia da representatividade da produo de pesquisadores

    brasileiros no mbito internacional e enfrentamos dificuldades ao perceber a falta de

    adeso a muitas atividades realizadas. Enquanto o impacto financeiro e psicolgico da

    crise econmica na Espanha chegava a ns (Melissa e eu) com certa gravidade,

    inclusive impactando em nossos estudos, assistamos estudantes bolsistas

    desinteressados na participao associativista, mobilizaes, botequins filosficos e

    saraus que organizvamos com muita dedicao atravs do nosso trabalho voluntrio.

    As adversidades perpassavam tambm a falta de apoio institucional dos rgos

    pblicos, sobretudo os brasileiros, tornando o trabalho na APEC uma forma ideolgica

    e teimosa de apresentar os brasileiros para alm do discurso do samba, do futebol e da capoeira. Somos tudo isso, mas sabemos que no so esses fatores que resumem a

    condio de brasilidade, nem o tipo de produo dos pesquisadores brasileiros

    atualmente.

    Os desafios no foram motivos para empacar, pelo contrrio, impulsionaram a realizar atividades com o desejo de seguir o lema do Brasil, mostra a tua cara e apresentar debates provocadores no XVIII Seminrio da APEC e no que ocorreu no ano

    seguinte. Se antes estive no movimento negro, e por um perodo no movimento

    LGBTQI por pesquisar sobre o desejo de lsbicas espanholas em Barcelona, passei a

    entender como eu poderia levar todas essas experincias e debates a uma associao de

    estudantes. H quem diga que um pouco de ns est no que pesquisamos, e os debates

    da vida tornam-se debates intelectuais na busca de entender a sociedade e a trama que

    nos conecta como indivduos.

    Essa pequena histria, e o pequeno microcosmo em que a APEC se situa, s fazem

    sentido quando interconectados com as outras histrias, associaes e pesquisas

    produzidas. A roda viva de nossas produes e vivncias est entrelaada atravs das

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    nossas interseccionalidades e se faz necessrio mant-la ativa nos dois sentidos da

    palavra: da vivacidade e conexes nos debates acadmicos e intelectuais, e no sentido

    ativista, de maneira que o conhecimento produzido chegue a diferentes pblicos,

    conscientizando e levando a informao aos diversos grupos que encontramos pelo

    caminho. J foi dito que o saber uma forma de adquirir poder, assim, seria importante

    entrelaar as pesquisas e manter a roda viva, teia que nos conecta com o mundo e

    fortalece toda a rede que representamos. No que tange aos fomentos e

    representatividade brasileira internacionalmente, finalizo com um convite parafraseando

    Karl Marx em seu manifesto e digo aos estudantes do Brasil: uni-vos!

    Terceira conversa: Autoetnografia de uma estudante brasocatalana

    Venho apresentar, atravs deste breve relato, a importncia de uma infncia

    multicultural e a impresso de uma jovem pr-universitria de dezoito anos ao se

    deparar pela primeira vez com o cargo de vice-presidenta de uma associao. Meu

    nome Victoria Leiria Dantas, sou filha de pais brasileiros, porm nascida na

    Catalunha. Iniciarei o curso de Cincias Polticas e da Administrao na Universidade

    de Barcelona em poucos meses.

    Filha de me aracajuana e pai porto alegrense, ambos imigrantes em Barcelona na

    dcada de 90, recebi uma criao baseada na diversidade cultural, no respeito mtuo

    entre povos e na aceitao e interiorizao das minhas razes brasileiras misturadas ao

    mundo catalo. A relevncia de ter aprendido concomitantemente quatro idiomas catalo, portugus, castelhano e ingls , alm de facilitar a minha futura vida estudantil e trabalhista, ajudou tambm no processo de entender maneiras diferentes de atuar e de

    se comunicar.

    A passagem pela APEC (Associao de Pesquisadores e Estudantes brasileiros na

    Catalunha) influenciou na minha deciso sobre a rea do meu curso de graduao. O

    trabalho em equipe, o contato com a comunidade brasileira e o trato institucional que se

    deve aos mais de vinte anos de existncia da APEC, mudaram, de certa forma, a

    percepo pessoal a respeito da funo e da importncia de uma associao.

    Ao longo da gesto 2013/2014, realizamos diversos encontros com os membros

    apecanos, tais como reunies mensais e botequins acadmicos, onde os convidados

    podiam apresentar seus trabalhos ou pesquisas e ocorria um posterior debate sobre o

    tema. Entretanto, na maioria desses encontros, evidenciava-se a falta de participao,

    engajamento ou interesse por parte dos associados, em sua maioria, brasileiros

    residentes na Catalunha. Portanto, fao uma chamada a todos os bolsistas, estudantes do

    programa Cincias sem Fronteiras, mestrandos, doutorandos e s pessoas residentes na

    Catalunha em geral a participar ativamente das atividades realizadas pela associao, de

    modo a aumentar a representatividade e a qualidade da APEC entre todos. Afinal, o

    objetivo da APEC promover o intercmbio de discursos para dar uma forma mais

    heterognea e atualizada Associao.

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    A APEC realiza um seminrio anual no final de cada gesto. O seminrio deste ano

    contou com o respaldo econmico do Ministrio de Relaes Exteriores (MRE) do

    Brasil por intermdio da Embaixada brasileira em Madrid, teve uma durao de dois

    dias e todas as adversidades encontradas foram resolvidas conjuntamente. Pelo fato de

    ter sido a minha primeira experincia na organizao de um evento de tal magnitude e

    com um pblico to especializado, adquiri certo entendimento da situao e,

    certamente, terei maior facilidade caso precise desse conhecimento futuramente.

    Finalmente, uma associao apenas pode seguir adiante com o engajamento e o

    interesse das pessoas, essa a nica maneira de manter viva essa rede de relaes,

    conhecimentos e eventos.

    Quarta conversa - Autoetnografia de um jovem politlogo brasileiro

    Brasil, mostra a tua cara!

    Quero ver quem paga,

    Pra gente ficar assim.

    Brasil, qual o teu negcio?

    O nome do teu scio? Confie em mim!

    Cazuza - Ideologia

    Neste breve espao, gostaria de compartilhar as minhas experincias como jovem

    brasileiro, emigrado e imigrante, e posteriormente estudante e ativo participante em

    movimentos reivindicativos, alm de militante em diversas associaes do terceiro

    setor. Isto , seguindo a lgica pouco convencional deste artigo cientfico, pretendo

    relatar um pouco sobre a minha trajetria e as minhas percepes sobre o tema,

    ressaltando o fato de ser, neste caso, sujeito e objeto de investigao.

    A maior parte dos processos migratrios se explica por questes pessoais e/ou

    profissionais. As pessoas transitam pelo mundo, se mudam de um territrio a outro em

    busca de uma melhor qualidade de vida, seja por imperativos de sobrevivncia, asilos

    polticos ou reagrupamentos familiares. Com a globalizao, o fenmeno se acentua e

    se torna mais complexo e dinmico. O acesso cada vez maior da classe mdia ao

    transporte areo vinculado tambm expanso do turismo permite que o fluxo de passageiros e intercmbios internacionais siga crescendo. E o Brasil no uma exceo,

    longe disso. As transformaes socioeconmicas ocorridas nas ltimas dcadas, como o

    aumento da capacidade produtiva agregada e a consequente distribuio da riqueza

    atravs de programas governamentais de transferncia de renda geraram uma reduo

    significativa da pobreza e ampliaram o poder de consumo de milhes de brasileiros que

    antes no o detinham. Ademais, os investimentos educativos por parte do Governo

    Federal cresceram e se diversificaram. No mbito do ensino superior, a implantao de

    programas como o Cincia sem Fronteiras sups a possibilidade - outrora inexistente - de que os universitrios brasileiros disfrutassem de uma bolsa para estudar no exterior,

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    melhorando a sua formao e capital humano, e ao mesmo tempo ampliando a sua

    bagagem cultural. Uma vez retornam ao pas, contribuem para elevar o nvel educativo

    da nao e tm (ou deveriam ter) as condies necessrias para desenvolver seus

    projetos de pesquisa e trabalhos em solo brasileiro. Embora o objetivo deste artigo no

    seja analisar com profuso o programa de intercmbios acadmicos do Ministrio de

    Educao (MEC), cabe ao menos ressaltar a importncia e a transcendncia que implica

    esta aposta clara pela transnacionalizao do ensino superior pblico.

    O carter recente do programa e a falta de dados dificultam uma avaliao

    pormenorizada. Sem dvida, existem falhos em seu desenho e em sua aplicao, que

    devem ser identificados e corrigidos, especialmente no que diz respeito ao papel do

    estudante e investigador brasileiro fora de seu pas. Quais so os direitos, deveres,

    compromissos e responsabilidades como cidado, aluno, educador ou pesquisador? Ao

    serem financiados com verbas pblicas, entende-se que tambm os frutos de sua estadia

    em pases estrangeiros devam ser revertidos no Brasil e aproveitados pela sociedade

    brasileira. Considerando a tendncia expansiva de programas como este, necessrio

    discutir seriamente se o os objetivos fixados realmente esto sendo cumpridos e quais

    so os verdadeiros impactos sociais dentro e fora do Brasil desta poltica pblica. Em

    relao recepo e adaptao dos brasileiros num pas estranho ao seu de origem, nos

    referiremos mais adiante sobre a vital importncia do movimento associativo

    comunitrio.

    Voltando ao tema das imigraes, podemos dizer que o fenmeno segue latente, apesar

    da crise econmica que assola a Europa (especialmente os pases do sul do continente).

    O estabelecimento de um programa de bolsas e subvenes pblicas para estudar,

    investigar e/ou trabalhar durante um perodo fora do Brasil impulsiona os movimentos

    de circulao de pessoas e gera um contingente crescente de populao brasileira

    espalhada pelo mundo, como nunca antes se havia produzido. Contudo, a maioria dos

    brasileiros que saem do pas atualmente no bolsista. A diversidade de relatos e de

    experincias um fato a ser considerado. Como narrarei adiante, h uma srie de

    pessoas que emigram sem qualquer tipo de apoio institucional ou financeiro e que

    enfrentam os obstculos mais variados para poder, como dizia a princpio, conquistar

    uma condio de vida mais aprazvel.

    E aqui comea a minha histria. Depois de ter passado uma bela e saudosa infncia e

    adolescncia na paradisaca cidade litornea de Ubatuba, no litoral norte do Estado de

    So Paulo, meus anseios pessoais me levaram grande e catica capital, tambm

    conhecida como Pauliceia Desvairada. Ali, cursei um ano de Relaes Internacionais,

    uma carreira que me fascinava e ainda me fascina pelo seu carter abrangente e

    multidisciplinar. Digamos que sempre tive um enorme interesse pelos grandes problemas do mundo e de como encontrar meios para resolv-los. vido por saber e curioso por conhecer, abandonei minha cidade natal para reencontrar-me com minha

    famlia nuclear que naquele ento j vivia fora do Brasil. Assim, acabei mudando-me

    para a Catalunha com o intuito de estudar, trabalhar, aprender, viajar, descobrir, amar. A

    escolha do pas no foi casual nem aleatria. At o ano de 2009, a Espanha constitua

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    um destino economicamente atrativo para os brasileiros pela proximidade cultural,

    lingustica e at climtica. No que se refere minha histria, tambm havia um forte

    imperativo familiar e facilidades jurdicas para obteno da nacionalidade europeia.

    Explico-me: pela minha herana genealgica, tinha direito a ser espanhol e no momento

    de minha chegada j contava com familiares estabelecidos no pas um fator comum na maior parte de imigraes dessa ndole.

    Portanto, devo frisar os seguintes pontos: a) em primeiro lugar, emigrei porque quis e

    tive a possibilidade; b) segundo, no emigrei sozinho, o que facilita bastante o processo

    de aterrissagem e adaptao; c) terceiro, me criei num entorno bilngue, j que meu pai

    (e toda a sua estirpe) provm da Argentina e sempre estive habituado a ouvir e falar a

    lngua castelhana; d) quarto, no tinha nada a perder, nem nada que me fizesse ficar no

    Brasil (ou me impedisse sair). No digo tudo isso para vangloriar-me, seno para

    exemplificar a diversidade de possibilidades de vida que h num mundo globalizado.

    Em pocas passadas no to remotas, muitos brasileiros e brasileiras foram forados a

    abandonar o pas como exilados polticos ou econmicos, de acordo com o lema

    perverso da ditadura militar: Brasil, ame-o ou deixe-o. Felizmente, avanamos nesse quesito e agora o fato de ir para o estrangeiro no mais sinnimo de perseguio

    ideolgica seno at faz parte da poltica institucional do Governo. Trata-se de um giro

    espetacular que merecia ser mencionado. Evidentemente cada momento histrico vem

    acompanhado dos seus prprios dilemas e desafios. E, apesar de certas facilidades

    iniciais, isso no significa que o caminho esteja isento de problemas, obstculos e

    desafios. Chegar num lugar novo significa recomear, o que nos d esperana e a

    chance de poder (re) construir uma vida. Mas, ao mesmo tempo, tambm traz o medo

    do desconhecido, do fracasso, das frustraes. E as saudades do que ficou para trs, a

    nostalgia intrnseca de qualquer partida sem retorno, o luto inicial. Por maior que seja a

    motivao e as expectativas de cada um, o processo de aterrissagem, chegada, adaptao e integrao demanda tempo e pacincia. Posso dizer por experincia prpria

    que os primeiros meses nunca so fceis, j que a solido e o anonimato so realidades

    constantes. Nesse sentido, a frmula que eu encontrei pessoalmente foi a de acelerar os

    processos de socializao a partir de um excesso de atividades diferentes.

    Primeiro consegui um trabalho no aeroporto, depois prestei o vestibular e passei,

    matriculando-me em Cincias Polticas e da Administrao. Na Universidade de

    Barcelona, mantive uma atividade militante altamente ativa, estando implicado no

    movimento estudantil, participando de assembleias e manifestaes, assim como greves

    e jornadas de luta e reflexo. Fui representante dos meus companheiros em todas as

    esferas possveis: no Conselho de Estudos da minha graduao, na Junta da Faculdade

    de Direito e no Claustro que (ou deveria ser) o mximo rgo democrtico de deciso da universidade em seu conjunto. Uma pessoa sensvel e inquieta no pode

    permanecer passiva ante os desmandos e injustias que abundam o cotidiano.

    Por outro lado, mantive constantemente viva a minha veia mais criativa e teatral,

    participando de grupos artsticos variados, ao mesmo tempo em que me introduzia numa

    nova cultura e em um novo idioma: o catalo. Fiz amigos, incrementei meu capital

  • APEC / Passages de Paris 10 (2015) 12-33

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    social rapidamente e teci uma rede de contatos e conhecidos que no tinha, criando as

    referncias simblicas e emotivas que me pareciam fundamentais para que me sentisse

    partcipe dessa nova identidade coletiva e um cidado integrado nessa nova comunidade

    poltica. Essa foi a maneira que encontrei de adentrar num territrio desconhecido e em

    pouco tempo torn-lo familiar, prprio, pessoal. Como qualquer deciso crucial, est

    repleta de prs e contras. Desde outra perspectiva, um intenso ativismo poltico permeia

    a integrao e a aceitao social de um estrangeiro e outorga credibilidade e fortaleza na

    hora de enfrentar desafios. Entretanto, na medida em que me acerquei de uma nova

    cultura, tambm me desliguei da minha original a brasileira , dado o esforo que sups semelhante processo. Obviamente que as identidades culturais, tnicas e

    nacionais coabitam e inclusive se misturam, porm complicado lidar s vezes com

    realidades distantes entre si, ainda que paralelas e interconectadas. No se pode estar

    fisicamente em dois lugares ao mesmo tempo, e emocionalmente tampouco tarefa

    fcil.

    Eis o que me leva a associar-me Associao de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros

    na Catalunha (APEC) na qualidade de tesoureiro da mesma. Por um lado, a vontade de

    resgatar minhas razes originrias e de conhecer com mais detalhe a situao de meus

    compatriotas, reatando relaes com a comunidade brasileira local. Por outro lado,

    buscava manter minha tradio associativa, participando de uma entidade de vocao

    pblica que busca dar resposta a certas problemticas comuns que afligem os brasileiros

    e brasileiras que residem na Catalunha, na Espanha e na Europa. Nesse aspecto, opino

    que a APEC uma plataforma sem nimo de lucro que visa a canalizar demandas

    cidads, servindo de mecanismo de presso organizado ante as instituies pblicas,

    sejam brasileiras, catals, espanholas ou europeias. Outrossim, a APEC um ponto de

    encontro, de debates e reflexes que funciona base do altrusmo, da solidariedade e,

    principalmente, da participao dos brasileiros. O carcter transitrio dos associados,

    colaboradores e simpatizantes da associao um elemento positivo como promotor de

    renovao das diretorias que dota as diferentes gestes de marcas singulares. Sem

    embargo, a volatilidade extrema tambm pode enfraquecer a associao, que corre o

    risco de extinguir-se por esvaziamento. Sem a participao ativa, comprometida e

    crtica, impossvel fazer com que a APEC (ou a entidade que seja) funcione

    corretamente e abranja todo o potencial que tem. certo que as equipes pequenas e bem

    concatenadas trabalham de forma fluida, mas a implicao de mais estudantes e

    pesquisadores brasileiros no seio das mltiplas atividades realizadas condio sine qua

    non para poder realmente converter a APEC em um ator poltico relevante cuja voz seja

    escutada e cujas propostas e projetos sejam acatados e postos em prtica.

    Quinta conversa - Engajamento estudantil: uma via para ressignificar o papel do

    estudante brasileiro no exterior

    Falar dos desafios de ser pesquisador brasileiro na Europa implica, entre muitas outras

    coisas, retomar o espao individual da construo da prpria identidade, a trajetria de

    vida pessoal, acadmica e profissional, uma avaliao (ainda que ligeira) sobre

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    vantagens e desvantagens de estudar fora do prprio pas. Nesse processo, as

    indagaes so constantes: onde me situo no Brasil, na Europa, no mundo, enquanto ser

    humano, enquanto pesquisadora, enquanto profissional? Qual a importncia do

    engajamento estudantil nesse cenrio alm mar?

    a partir desses questionamentos que situo minha narrativa. Iniciei minha trajetria

    como pesquisadora j no segundo semestre do curso de Psicologia, na Universidade de

    Braslia (UnB), l pelos idos dos anos 1990. Tenho orgulho de ter estudado em uma

    universidade pblica, gratuita e de qualidade. Desde ento, estive engajada em

    pesquisas, fui rata de laboratrio (como se dizia poca), fiz jus a todos os apoios financeiros recebidos do governo federal brasileiro. Fui bolsista PIBIC de iniciao

    cientfica, fui bolsista (voluntria e remunerada) do CNPq, fui bolsista no mestrado e

    sou bolsista CAPES em um doutorado pleno na Universidade Autnoma de Barcelona

    (UAB), no Departamento de Psicologia Social. E por que no dizer, tambm fui bolsista

    no ensino mdio e secundrio. Ao longo desse percurso, fui aprendendo a caminhar,

    aprendendo a fazer pesquisa, aprendendo a ser psicloga social e do trabalho,

    aprendendo a aprender com outros colegas, com excelentes professores e pesquisadores

    comprometidos, assumindo a condio do no saber para construir um saber de si. Sem apoio financeiro, sem bolsas de estudos, certamente teria feito outras escolhas.

    Meu caminho profissional, ainda que com seus altos e baixos, foi marcado por uma atuao no campo da sade do trabalhador (e seus temas correlatos) na administrao

    pblica brasileira, atividade que realizo com paixo, dedicao, compromisso, interesse,

    curiosidade e tema que traslado para minha tese doutoral.

    Chegar a um doutorado em Psicologia, na Europa, com bolsa de estudos, significa

    muito. Significa uma vitria construda a base de muitas horas/cadeira. No foi um sorteio na loteria. Ainda que os trs primeiros meses de adaptao, solido e saudade do

    Brasil te faam pensar em desistir, cada dia vale a pena em Barcelona.

    O encontro com a APEC se deu em virtude de uma necessidade pessoal. Buscava uma

    informao pontual e, como no a encontrava, decidi comparecer a uma reunio. No

    poderia imaginar que o dia 01 de fevereiro de 2013 fosse marcar a minha vida em

    Barcelona de maneira to significativa. Desde ento, comecei a pensar: Por que no fazer parte de uma associao? Por que no contribuir (ainda que eu no me veja ativista stricto sensu) com essa associao, j que tem colegas que no so bolsistas e

    esto lutando por direitos coletivos?. Me vi em uma condio privilegiada - por poder ter as condies ideais para estar apenas estudando e desenvolvendo minha investigao

    - e me senti impelida pela responsabilidade social com esse coletivo.

    Na APEC, encontrei outros psiclogos e tambm pesquisadores, negros, brancos,

    nordestinos (at gente do Cod, Maranho), paulistas, catals, artistas, palhaos,

    sambistas, ativistas, educadores, cientistas sociais, politlogos, alunos do Cincia Sem

    Fronteiras (CSF), um micro-universo do muito da diversidade que significa ser

    brasileiro, que em outras circunstncias eu no teria tido a possibilidade de ter contato.

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    Deparei-me com os relatos pessoais e as percepes individuais ou compartilhadas, as

    quais traduzem o que significa ser pesquisador brasileiro na Europa, na Catalunha, na

    Espanha, suas dificuldades e conquistas, ideologias e paixes. Na APEC, encontrei

    interlocues, fiz amigos, doei meu tempo, minha disponibilidade e dou a minha parcela

    de contribuio como secretria. nesse coletivo que ressignifico meu lugar no mundo,

    crio novos espelhos, questiono meu papel de estudante, fao (em certa medida) minha

    devoluo social pelo investimento financeiro que o governo brasileiro me aporta, viabilizando a realizao do doutorado. a que organizo e desorganizo meus esquemas

    cognitivos, acomodo e desacomodo formas de pensar, por vezes, engessadas, e me

    permito novos modelos. Na APEC, encontrei gente que faz, gente que supera (e se

    supera) tirando adelante, pessoas inteligentes que so fonte de inspirao, exemplos de

    vida, pontos de acordos e desacordos, risos e choros, alegrias e apoio psicolgico.

    Nesse perodo, pude colaborar na realizao dos seminrios acadmicos de 2013 e de

    2014. Esse evento tem como ponto positivo o fato de atrair estudantes brasileiros das

    mais diversas reas e, desde o ano passado, tambm atraiu os jovens cientistas do CSF.

    A riqueza dessa pluralidade, as trocas e interlocues, a qualidade das pesquisas so os

    elementos que me fazem acreditar que o Brasil ainda tem jeito e, quando comparados a outros estudantes internacionais, fao uma avaliao bastante positiva do que tenho

    visto nos nossos seminrios.

    Percebo que h uma diferena entre fazer parte da histria e construir a histria. Para

    mim, participar de uma associao que j goza da maioridade significa colocar mais um

    tijolo nessa construo que de todos, que coletiva. E, ainda que se note um

    enfraquecimento do engajamento estudantil nesse contexto alm mar, quero crer que outros estudantes brasileiros bolsistas ou no acabaro por reconhecer a importncia do associativismo como uma via para exercer sua responsabilidade social frente aos

    interesses que nos tocam a todos, estudantes.

    IV. UMA PEQUENA ANLISE A MODO DE CONCLUSO

    a) Quais so meus itinerrios pessoais, de onde venho, quem eu sou e para onde quero

    ir?; b) por que escolhi me juntar a uma associao estudantil e qual meu papel poltico

    enquanto cidado e estudante?; c) O que representou estar em uma associao e o que

    isso me transformou?

    Em todos os relatos, a inteno no era tanto responder a essas perguntas em seu sentido

    mais estrito, mas sim aproximar nossas vivncias e expectativas em decorrncia dessas

    perguntas, mostrando um panorama geral das nossas preocupaes, anseios e

    principalmente de nossas experincias. O fato de estarmos em um outro contexto social

    nos fora a ter diferentes tipos de atitude, relativizando-as com a bagagem que trazemos

    conosco.

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    Os relatos abordam diversos debates em diferentes nveis sobre as mudanas

    promovidas pelos fenmenos da globalizao, nas condies e nos programas

    educacionais, nas questes de ser imigrante temporrio (ou estudantes em trnsito), das

    responsabilidades sociais e das formas de contribuir no equilbrio das conjecturas atuais.

    Tais mudanas, de alguma forma, alteram nossas formas de ver e perceber o mundo,

    redefinindo nossas maneiras de atuar e de exercer diferentes funes enquanto sujeitos

    sociais. At porque no h mais eventos situados e localizados, todo grande

    acontecimento ou evento global, de alguma maneira, pe em marcha uma srie de

    circunstncias e aes que tem como consequncia a formao de uma nova teia de

    conjunturas e relacionamentos.

    Esses eventos, em muito impulsionados pelos meios de comunicao de massa e pelas

    novas tecnologias, acabam por modificar a relao e as leituras que possumos sobre

    temas e conceitos j cristalizados, tais como territrio, sociedade, cultura e poltica.

    Neste sentido, importante que ns, enquanto estudantes e pesquisadores, nos

    indaguemos sobre como nos posicionamos criticamente frente a isso, como nosso

    trabalho se inclui nesta nova configurao, quais so os efeitos sociais e econmicos

    que tais cmbios proporcionam e, principalmente, como ns podemos intervir nessa

    cadeia de eventos.

    Acreditamos que podemos contribuir para esta discusso, apontando caminhos que nem

    sempre enxergamos quando estamos situados em um determinado lugar ou convivendo

    em espaos especficos. A frico com outros contextos sociais e culturais nos coloca

    em movimento e revela mais de ns mesmos do que realmente imaginamos. Alm

    disso, tais discusses se estendem para mbitos fora da academia e fazem interseco

    com diferentes esferas culturais e polticas e, muitas vezes, no possuem um tom

    apaziguador, pois esto a para informar, problematizar, averiguar, dirimir conceitos,

    criticar e fazer parte de uma nova cartilha de informaes concisas, que proporcionam

    um olhar mais profundo sobre diversos temas. um caminho que se estrutura como

    uma busca constante e no como uma utopia, se torna uma forma intermitente de

    reflexo e renovao, uma maneira saudvel de adentrarmos os micro e macro

    movimentos cotidianos que so influenciados pelos movimentos da ps-modernidade,

    que nos movem todos os dias e sempre adiante.

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