Llansol - Uma vida de escrita

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© Teresa Huertas, Lava Walks UMA VIDA DE ESCRITA

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Folheto informativo sobre a vida e a escrita de Llansol

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©  Teresa  Huertas,  Lava  Walks  

 

UMA VIDA DE ESCRITA

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 «______ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema». Estamos em Lisboa (Campo de Ourique), em 24 de Novembro. A herança paterna, presente «na verticalidade e na maneira frontal de olhar», e o legado catalão que lhe vem dos bisavós maternos, darão corpo de escrita ao nome Llansol. Entre a infância e a adolescência, entre Lisboa e Alpedrinha, vê crescer a consciência de que «na casa, não se administrava bem a justiça da língua», o que fará surgir, mais tarde, a figura de Témia, a rapariga que temia a impostura da língua.

E esta casa é tanto a casa onde vivia como o país que a albergava. Concluído o Curso de Direito em 1955 e o Curso de Ciências Pedagógicas em 1957, MGL inicia um trabalho de experiência pedagógica, em 1960, que terá continuidade na Bélgica, na chamada Escola da Rua de Namur e na comunidade alternativa da Ferme Jacob, em Lovaina (1971-79). Ainda em Lisboa, a «vertente imaginária da linguagem» já se fazia sentir na escrita dos primeiros contos e diálogos. É a busca de uma língua nova, a «língua sem impostura», tão presente em Um Beijo Dado Mais Tarde (1990), a que fará surgir um texto novo. E a Escola da Rua de Namur propiciou a continuação dessa busca, pelo modo como punha em prática uma experiência inovadora com a linguagem: «era muito importante, ao mesmo título que a aquisição de conhecimentos, o desbloqueio afectivo das crianças; ser capaz de tomar a palavra; exprimir, sem temor nem embaraço, os seus sentimentos.» No meio dessa experiência escreverá O Livro das Comunidades (1977), o primeiro da Trilogia «Geografia de Rebeldes». A ida para a Bélgica traça um percurso de escrita que, apenas esboçado em Portugal (Os Pregos na Erva, 1962), reconheceria, a partir de então, um caminho singular na escrita portuguesa. MGL parte em 1965 e só em 1985 regressa a Portugal. Dirá da sua ida para a Bélgica: «Não tinha mais do que trinta anos; acabara de me casar e vinha, sozinha, ter com o Augusto [Joaquim] que, umas semanas antes, se recusara a participar na guerra colonial, e desertara; deixava um livro publicado e outro, embora já concluído, ainda inédito. (…) Vim com muito temor e, também, com uma enorme sede de liberdade, de novo, de atingir o âmago do ser. Ninguém conseguirá ter uma pálida imagem da densidade do ar que, lá em baixo, se respirava, no exíguo cubículo fechado das nossas vidas. Eu procurava evadir-me a escrever.»

Maria Gabriela Llansol (1931-2008)

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Os anos da Bélgica têm nome de lugares – Lovaina (1965-75), Jodoigne (1975-80) e Herbais (1980-85). Longe da sua língua, é nela que evolui, desconhecendo (como diz nos anos de Lovaina) «o texto surpreendente que me espera». E em Jodoigne, na casa onde plantou Prunus Triloba (o arbusto que será também figura dos seus livros), já quotidiano e texto cruzam enxertias: tal como as páginas dos Diários são fragmentos de livros futuros, também as figuras do texto con-vivem com MGL na casa e no texto concomitantemente. Para Herbais vai-se em busca da «esmola do silêncio». Mas esse silêncio e o isolamento que caracteriza essa aldeia da Bélgica não significam um afastamento da realidade; pelo contrário, esta passa a ser vivida de modo mais intenso. Como se a realidade desse lugar geográfico correspondesse a uma idêntica realidade no texto – uma espécie de «cena fulgor», já que esta se define como um «lugar vibrante», um «lugar de abrigo», um «refúgio de uma inexpugnável beleza», o lugar que permite «a vibração pelo vivo e pelo novo». A língua do texto llansoliano caminha cada vez mais com uma energia tensiva que procura dar a ver a coisa, não através da representação, mas pela sua presentificação. Na língua sem impostura, o sentido da posse tem de estar ausente. A «justiça da língua» pressupõe a não-anulação, o não-Poder. MGL recorda: «Lembro-me de ter dito: quando chegar a Herbais, a minha língua perderá definitivamente o possessivo. Porque inútil. A língua que se tornaria lá transparente e verde, não estaria mais presa a um território; a mudança deu-se a 31 de Maio de 1980». São os anos da segunda Trilogia, «O Litoral do Mundo», e do começo de Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso, texto que reúne Jodoigne, Herbais e Colares, como reúne Lisboa e Leipzig, Bach e Pessoa. Neste livro, MGL fala do significado que, no texto, assumem essas mudanças de lugar a que chama «passagens-metamorfose»: «Como se eu investigasse, no dia a dia de outrora, um fio condutor, correspondências temáticas e de preocupação, sob a forma geral da partida e da mudança: saída de Jodoigne para Herbais, e desta para Colares, e entrada em Portugal, após vinte anos. Ao reler-me, porém, essas passagens-metamorfose revelaram-me que Jodoigne foi a casa das beguinas, que Herbais foi o lugar de encontro de Infausta, de Aossê e de Bach, e que em Colares acabaram por encontrar-se os membros dispersos da comunidade, nos seus extractos de época, distintos, idênticos e evolutivos./ E o mais curioso, é que me encontro face a um texto que não pressentira – porque não me dera conta de quando queriam encontrar-se, enfim, os membros – visíveis e invisíveis – dessa comunidade». Ao falar do seu texto nascente, MGL lembra (Bruxelas, Europália, 1991) o modo como, na Bélgica, a «sobreimpressão» da paisagem com a língua que levara de Portugal, fez surgir o «Locus/Logos» do texto: «Entre vós, na minha língua confrontada às vossas paisagens». De visita ao béguinage de Bruges, apercebeu-se de que «vários

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níveis de realidade ali aprofundavam a sua raiz, coexistindo sem nenhuma intervenção do tempo». Dessa experiência surgirá a sobreimpressão, num mesmo tempo e lugar, de figuras arrancadas ao seu tempo histórico, que se transfiguram para que os «encontros inesperados» e «de confrontação» possam ter lugar : «Fez-se ali o nó de que depois desfiei o texto. Comecei nas beguinas; destas, passei a Hadewijch, a Ruysbroeck. Destes, a João da Cruz e a Ana de Peñalosa. Fui conduzida por todos eles a Müntzer, à batalha de Frankenhausen e à cidade utópica de Münster, na Vestefália. Nos restos fracassados destes homens, encontrei Eckhart, Suso, Espinosa, Camões e Isabel de Portugal. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno, Hölderlin, que todos eles anunciavam Bach, Nietzsche, Pessoa, e outros que a nossa memória ora esquece, ora lembra tão intensamente que me parece outra forma de os esquecer». No texto de Llansol encontramos Fernando Pessoa mudado em Aossê (AOSSEP), Jorge de Sena em Jorge Anés, mas também Teresa de Lisieux, Emily Dickinson, Rimbaud e Maria Gabriela Llansol, entre outros. E Bach e Pessoa num lugar – Lisboaleipzig. São figuras de escritores, de místicos, de rebeldes, para quem a resignação não faz sentido, que não aceitaram «ver a sua vida amputada de vibração, de intensidade e amplitude», e que a espécie pudesse ser fundada «na posse de uns sobre os outros». Nessa recusa, tentaram abrir caminho à liberdade de consciência, ao direito à autonomia da sua vida, e ao dom poético, para que fosse possível uma nova paisagem humana. Sabiam da existência, no mundo, do Mundo e da Restante Vida, e que só esta permite dar à vida um sentido e uma fonte de alegria. É uma história que, ainda hoje, continua a fazer-se e, nesse sentido, esses seres do passado vêm do futuro, continuando «com a sua consciência livre, a criação do mundo». Nos livros de MGL, essas figuras existem desde a primeira Trilogia, e em livros mais recentes (Parasceve, 2001), essa linhagem dá origem a uma «geração sem-nome», híbrida e «temível» porque «não só capaz de metabolismo, mas igualmente de metamorfose». O caminho do texto continuará a ser o mesmo, e nos dois últimos livros, publicados em 2005 e 2007 (Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004 e Os Cantores de Leitura), essa «geração sem-nome» ascende a um lugar/tempo onde as coisas e o nome pelo qual são conhecidas existem em perfeita sintonia. O signo deixa de ser arbitrário: a mulher de Amigo e Amiga é denominada «mulher»; e n' Os Cantores de Leitura, a mulher «a quem nunca se paga, a não ser por graça», a que lê e é, como a leitura, «Grátis. Sem remuneração. De graça», aparece com o nome de Gratuita. Nesse tempo/lugar de todos os lugares e tempos, o significado de cada palavra diz-se entoando-a, e ao sentido chega-se pela música e pelo canto. São muitas as linhas que mostram o percurso feito e a experiência que resultou em texto novo. Ao longo dos Diários – Um Falcão no Punho (1985) Finita (1987) e Inquérito às Quatro Confidências (1996) – que transmigram

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para os outros livros, desconstruindo assim questões de género, e em livros como Lisboaleipzig 1 e 2 (1994) ou Onde Vais, Drama-Poesia? (2000), MGL mostra como a experiência do real se transfigura em realidade no texto – «eu não espero para escrever, nem deixo de escrever para passar pela experiência que produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever é o duplo de viver». Mas, no seu Texto, a verosimilhança, tão cara ao romance dito realista e à narratividade, é um obstáculo a essa mesma realidade textual. MGL prefere fazer «deslizar» a narratividade para a textualidade, sendo que esta «tem por órgão a imaginação criadora, sustentada por uma função de pujança _______ o vaivém da intensidade», e que «pela mutação de estilo, pela mutação frásica e pela mutação vocabular, pelo tratamento do que mais universal foi dado ao homem – um lugar e uma língua – , ela abre caminho à emigração das imagens,/ dos afectos,/ e das zonas vibrantes da linguagem». É através de indicações precisas como estas que nos podemos encontrar com a singularidade do texto llansoliano – a simplicidade e o efeito de estranheza – que pede ao leitor novos modos de ler (na predisposição para o conhecimento de uma gramática do sensível e de uma leitura de intensidades) e a disponibilidade de abertura ao novo. A essa experiência de escrita, MGL não chama literatura, porque «não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros». Também por isso, à verosimilhança contrapõe o fulgor, focos de luz que se vão acendendo no texto, «lugares vibrantes» que orientam quem lê: «O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor»; «A escrita que cultivo (…) separa o inerte do fulgorizável. Tudo o que é fulgorizável integra o vivo». Na textualidade llansoliana não há personagens, com vida e morte previsível, mas figuras, hóspedes e peregrinos do texto (as mesmas figuras percorrem vários livros), que não têm de ser necessariamente humanos. Uma pedra, uma frase, um animal ou planta, são «vivos» como qualquer ser humano. E o «legente» (que MGL contrapõe ao «leitor»), que prolonga a escrita do texto porque pode suscitar a escrita de outros textos, é também uma das suas figuras. Alargando a noção de ponto de vista do humano – «A mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo» – MGL mostra o caminho da liberdade de consciência e do dom poético, sendo que »o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo, / que este caminha para o vivo, / e que o meu vivo é apenas uma forma dos vivos que, de facto, existem». Procurará sempre dar a ver que «neste mundo, há um mundo de mundos», que podemos alargar o humano a todos os vivos, já que «a vida não é essencialmente nem principalmente humana» e que «ser-se humano é evolutivamente um progresso de leitura mas não é um

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privilégio, nem uma superioridade, nem um dado adquirido». O combate a travar é pela não-hierarquização e pela mútua não-anulação entre os vivos. Obra aberta a várias linguagens, da qual faz parte um conjunto de poetas de língua francesa trazidos por MGL para a língua portuguesa (Verlaine, Rilke, Baudelaire, Rimbaud, Apollinaire, Éluard, Mallarmé, Pierre Louÿs e Teresa de Lisieux), o texto llansoliano permitiu já a realização de três colóquios, no Brasil e em Portugal (em 2002, 2003 e 2005), quatro Jornadas Llansolianas em Sintra (2009 a 2012) e uma grande exposição no CCB (2011), que integraram várias formas de arte. A sua Obra tem suscitado intervenções várias, da pintura e escultura à fotografia, da dança à música e do cinema à ópera, traduzidas na colaboração com artistas como Ilda David, Julião Sarmento, Pedro Proença (pintura), Rui Chafes (escultura), Duarte Belo (fotografia), Amílcar Vasques Dias, João Madureira, Ana Deus, Gilda Oswaldo Cruz e Ana Telles (música), Vera Mantero, Miguel Gonçalves Mendes e Daniel Ribeiro (cinema), e ainda Lou de Resende e Wagner Schwarz (dança). Maria Gabriela Llansol recebeu vários prémios literários portugueses, entre eles, e por duas vezes, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (em 1990, com o livro Um Beijo Dado Mais Tarde, e em 2006, com Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004). Está traduzida em francês, castelhano, italiano e alemão. Deixou um imenso espólio manuscrito e dactiloscrito de dezenas de milhar de páginas, de onde começaram já a nascer novos livros (os diários da série «Livro de Horas»), com edição de Assírio & Alvim, e da responsabilidade do Espaço Llansol-Associação de Estudos Llansolianos. As edições de livros e outros textos sobre a sua Obra (que o Espaço Llansol começou a fazer com a série «Jade-Cadernos Llansolianos») são desde 2008 asseguradas pela editora Mariposa Azual na colecção «Rio da Escrita», onde já sairam seis volumes.

Maria Etelvina Santos

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JOÃO BARRENTO CINCO BOAS RAZÕES PARA LER LLANSOL Ler Llansol 1. para perceber que a dimensão «gregária» (social), ou a psicológica, que dominam hoje as nossas vidas, nem sempre são as mais importantes, e que a «literatura» (que identificamos quase sempre com o romance realista e social) não existe, ou não tem lugar hoje, se for máquina de produzir narrativas sempre iguais e derrames psicológicos esgotados. 2. para compreender como nós, humanos, não somos o centro de uma cadeia hierárquica, mas um elo na «grande cadeia do Ser» (já Shakespeare ou Dante têm de ser lidos a esta luz). E que temos a enorme responsabilidade de assumir um contrato com o Vivo (que vem de Espinosa e deveria ir dar hoje ao protocolo de Kyoto e às políticas do ambiente!). Isto é actualíssimo, num momento em que o planeta está claramente ameaçado! E actualíssima é também a pergunta, daí derivada: o que é o humano? (depois do fim de todos os humanismos), pergunta central em Llansol. Quem chega a encontrar a resposta, lendo-a e insistindo na leitura, muda de vida. 3. para entender que o mundo não é o que ingenuamente julgamos que ele é, mas existe sempre «em dobra»; que ele é o «desconhecido que nos acompanha» e produz o novo que transforma; que há o visível e o invisível, e que este não é metafísica, mas resulta de olhar o concreto e sentir a potência de um corpo: estamos perante um hiper-realismo da matéria, do carbono, da energia vital de onde tudo nasce! É este o combustível da linguagem de Llansol, são estes os temas dos seus livros, e não as estafadas histórias das vidinhas pessoais ou colectivas. 4. para termos o prazer de reaprender a ler, e perceber o que é ser «legente» e não simples leitor. Porque esta aprendizagem pode ser um prazer, tal como escrever o era para Llansol, uma escritora cuja Obra nasceu da superação do medo, do poder de decisão próprio, de uma escolha da via do isolamento e da «despossessão» (que criou uma comunidade na diáspora, a única possível para ela, que não se confunde com nenhuma espécie de seita nem partido, e que hoje é grande, apesar de não parecer). E isto inclui a despossessão da própria noção de «autor», que Llansol rejeitava, porque nela não há nem posse, nem autoridade. Por isso, toda a Obra coloca uma exigência única e dupla: reaprender uma estética (do fulgor da palavra e da língua sem impostura) e aceitar uma ética (não de grupos, não social, mas a da liberdade de consciência, a dos esquecidos da História na «geografia de rebeldes» da Europa que os seus livros

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percorrem desde a Idade Média, a dos inteiros e intensos): é esta a etistética ou a sensualética de Llansol. 5. Finalmente, e de um ponto de vista mais exterior: porque é uma escritora que escreveu, só escreveu, escreveu sempre intensamente, como muito poucos: «escrever é o duplo de viver» (e vice-versa: a escrita é uma pulsão vital). Isso está hoje patente no imenso espólio que deixou, manancial para muitos mais livros por vir… e que já começaram a nascer.                                                            

Rua  Dr.  Alfredo  Costa,  3-­‐1º  F  –  2710-­‐524  Sintra  [email protected]  

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