LOHN, Reinaldo Lindolfo. O Tempo Da Notícia

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O tempo da notícia: cidade, ditadura e redemocratização nas páginas de O Estado (Florianópolis, SC, 1964-1985) Reinaldo Lindolfo Lohn * Resumo: Este artigo aborda as relações entre as narrativas elaboradas no jornal O Estado, de Florianópolis (SC), as mudanças socioculturais ocorridas na cidade e os processos políticos ligados à ditadura militar e aos primeiros anos da re- cente redemocratização do Brasil. O discurso jornalístico mostra-se como um organizador do social, o que inclui a denição sobre o que deve ser lembrado ou esquecido. Narrativas elaboradas nas páginas do jornal constituíram-se em suportes para memórias e para a construção da consciência histórica acerca do tempo presente vivenciado durante a transição entre a ditadura e a democracia. Palavras-chave: Jornal. Narrativa. Tempo presente. Ditadura. Democratização. O jornal e o tempo No início de 1968, uma matéria publicada no jornal O Esta- do tratou das mudanças que ocorriam em Florianópolis, capital de Santa Catarina, e evidenciou a chegada de um novo ritmo social. Com o título “O tempo passou na janela”, o texto armou que “as velhas construções que, resistindo ao tempo, se espalham por vários pontos da cidade, trazem a marca de uma época já passada.” Fotos mostravam idosos em sacadas e janelas de casas antigas e o texto * Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em História (2002) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected] Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, p. 121-147, dez. 2012

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Artigo publicado na revista Anos 90.

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  • O tempo da notcia: cidade, ditadura e redemocratizao nas pginas de O

    Estado (Florianpolis, SC, 1964-1985)Reinaldo Lindolfo Lohn*

    Resumo: Este artigo aborda as relaes entre as narrativas elaboradas no jornal O Estado, de Florianpolis (SC), as mudanas socioculturais ocorridas na cidade e os processos polticos ligados ditadura militar e aos primeiros anos da re-cente redemocratizao do Brasil. O discurso jornalstico mostra-se como um organizador do social, o que inclui a defi nio sobre o que deve ser lembrado ou esquecido. Narrativas elaboradas nas pginas do jornal constituram-se em suportes para memrias e para a construo da conscincia histrica acerca do tempo presente vivenciado durante a transio entre a ditadura e a democracia.Palavras-chave: Jornal. Narrativa. Tempo presente. Ditadura. Democratizao.

    O jornal e o tempo

    No incio de 1968, uma matria publicada no jornal O Esta-do tratou das mudanas que ocorriam em Florianpolis, capital de Santa Catarina, e evidenciou a chegada de um novo ritmo social. Com o ttulo O tempo passou na janela, o texto afi rmou que as velhas construes que, resistindo ao tempo, se espalham por vrios pontos da cidade, trazem a marca de uma poca j passada. Fotos mostravam idosos em sacadas e janelas de casas antigas e o texto

    * Professor do Departamento e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutor em Histria (2002) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

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  • discorria sobre vivncias passadas, das quais restara apenas as ca-sas, as igrejas, as janelas. Embora a nenhuma delas o tempo per-doou, estavam a manter a dignidade de outras pocas e de um passado distante e cada dia mais fugidio e recebiam as ltimas aragens do vento sul, enquanto l fora, alm da janela, o tempo passa (07/01/1968, Suplemento, p. 1). A idia de experimentar uma nova temporalidade foi registrada na imprensa e passou a fazer parte das percepes e lembranas dos contemporneos. O jornal O Estado registrou, sua maneira, o que entendeu ser a chegada de um novo tempo e acentuou as transformaes visveis na paisagem e nas sociabi lidades. No perodo que compreendeu a ditadura civil-militar imposta em 1964 e a recente redemocratizao, as experincias e contingncias polticas e socioculturais estiveram em grande medida articuladas s alteraes observadas nas cidades, as quais compreen-deram processos sociais simultneos e justapostos, compartilhados atravs de mecanismos prprios da cultura de massas.

    Esta uma caracterstica a ser acentuada ao dedicar-se a escre-ver uma Histria do tempo presente: compreender que os aconte-cimentos e processos que recebem o estatuto de histricos so constantemente mobilizados atravs de operaes que se passam nos meios de comunicao de massa, os quais funcionam como veculos de memrias. A partir da dcada de 1980, Florianpolis tornou-se nacionalmente conhecida como plo turstico. Locali-zada na Ilha de Santa Catarina e na pennsula continental adja cente, o poder pblico e o setor empresarial aproveitaram os atrativos na-turais, principalmente dezenas de praias e balnerios, para a pro-moo de empreendimentos imobilirios e de lazer. Seu desenvol-vimento urbano, no perodo compreende a instaurao do regime autoritrio em 1964 e o comeo da dcada de 1980, demonstra que o repertrio de prticas de gesto das cidades implementado ao longo da ditadura militar e os desdobramentos posteriores no se restringiram aos grandes centros metropolitanos. Processaram-se ainda tramas entre Estado e investimentos privados, baseadas nos desejos despertados pelos processos de modernizao da segunda metade do sculo XX no Brasil.

    Imagens e fatos elaborados nas pginas dos jornais cons-tituem suportes para memrias compartilhadas por uma grande

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  • coletividade. Segundo Jacques Le Goff, a inteligibilidade das tessi-turas que dizem respeito construo de eventos e fatos alados ao estatuto de acontecimentos histricos envolve a interveno dos veculos de comunicao de massa (1994, p. 142-143). A me-mria social passa a ser composta pelo discurso da informao, que apresenta a sucesso de acontecimentos narrados na imprensa como parte de uma histria vivida, imediatamente memorizada e escrita, a formar conjuntos de crenas e smbolos, regras e prticas, os quais so combinados para signifi car o real e estabelecer nor-mas sociais, de modo a homogeneizar os imaginrios sociais. Jrgen Habermas (1984, p. 42-46) considera a imprensa uma instituio fundamental para a compreenso do imaginrio poltico moderno, na conformao de uma opinio pblica pretensamente em posio de autonomia diante do Estado, em defesa dos diversos interesses particulares que formam a sociedade civil, liberal e burguesa. O dis-curso jornalstico apresenta-se nas sociedades contemporneas, no apenas como emissor de informaes como uma das mais desta-cadas instncias organizadoras do social, o que incluiu a defi nio sobre o que deve ser lembrado ou esquecido.

    Naquela dcada, O Estado fi rmou-se defi nitivamente como o mais importante jornal da cidade e uma das peas de um jogo de inte resses poltico-empresariais em Santa Catarina. Fundado em 1915, a empresa jornalstica passara por diferentes proprietrios at ser adquirida por Aderbal Ramos da Silva (1911-1985), em 1946, liderana estadual do Partido Social Democrtico e dirigente de um dos maiores grupos empresariais de Santa Catarina (PEREIRA, 1992, p. 118). Com o golpe civil-militar de 1964 e a posterior fu-so dos partidos conservadores na Aliana Renovadora Nacional (ARENA), seus concorrentes tenderam a desaparecer ou a reduzir seus crculos de infl uncia. At ento, no havia rgo de imprensa na cidade que no fosse diretamente vinculado a partidos. Durante a vigncia da ditadura civil-militar, o panorama do mercado jorna-lstico brasileiro experimentou signifi cativas mudanas. Os meios de comunicao de massa atravessaram um momento de renovao em suas estruturas administrativas, com mecanismos de gesto empre-sariais que tenderam a promover uma concentrao no mercado em favor dos mais competitivos. Estas alteraes mostraram-se tambm

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  • em outros aspectos, como a diagramao e a apresentao grfi ca. As inovaes tecnolgicas e as exigncias profi ssionais demandaram investimentos de grande porte e assim, ocorreu [...]um processo mais geral de reconfi gurao do mercado de imprensa, com conse-quncias profundas no campo jornalstico, em termos tanto econ-micos como tcnico-profi ssionais (RIBEIRO, 2006, p. 426-435).

    O Anurio Estatstico do Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica, registrou a existncia, em 1962, de dois jor-nais dirios matutinos em Florianpolis, O Estado e seu tradicional concorrente A Gazeta, com uma tiragem mdia somada de 11.000 exemplares, o que era signifi cativo dado que a tiragem mdia esta-dual de jornais no passava de 27.000 exemplares (IBGE, 2003). No havia um nico jornal que cobrisse todo o Estado, o que in-clusive abriu possibilidades para que o Correio do Povo, de Porto Alegre, viesse a explorar o mercado do interior do Estado, com sucursais nas principais cidades. Na dcada seguinte, o processo de modernizao do mercado de bens culturais no Brasil criaria condies para o crescimento das empresas jornalsticas de Santa Catarina, numa poca em que os controles exercidos pelo regime autoritrio sobre a imprensa estavam focados no noticirio nacio-nal, o que garantia alguma margem de atuao para a imprensa regional (PEREIRA, 1992, p. 68-75).

    Em 1974, a tiragem total dos jornais brasileiros, s nas capi-tais estaduais, atingiu um nmero prximo a 1 bilho de exem-plares. Neste mesmo ano, circulavam 3 jornais dirios matutinos em Florianpolis com uma tiragem total de de 6.238.000 exemplares, o que indica que a tiragem mdia havia aumentado para cerca de 20.000 exemplares, certamente com participao majoritria de O Estado, pois a esta altura seus concorrentes locais estavam pratica-mente inviabilizados pela intensifi cao da concorrncia. Em todo o Estado de Santa Catarina, naquele ano, a tiragem total dos jor-nais fora de mais de 14 milhes e atingiria mais de 21 milhes de exemplares em 1981 (IBGE, 2003). Neste momento de expanso do mercado jornalstico regional surgiu, em 1971, o Jornal de Santa Catarina, sediado em Blumenau, mas com forte presena na capital, que trouxe uma srie de inovaes editoriais, favorecidas por fazer parte de um grupo empresarial com atuao consolidada na mdia

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  • eletrnica, atravs da TV Coligadas (BALDESSAR; CHRISTOFO-LETTI, 2005, p. 59-60). Como resposta, uma srie de mudanas tecnolgicas, de perfi l profi ssional e atuao no mercado logo seriam incorporadas por seus principais concorrentes estaduais, primeiro em O Estado e, um pouco mais tarde, em A Notcia, de Joinville.

    O jornal O Estado foi um espectador, um participante e um benefi cirio da dinamizao da economia e da urbanizao ocorridas durante o perodo autoritrio. Seus dirigentes promoveram inves-timentos que modernizaram sua estrutura e seu desenvolvimento editorial, com a chegada de jornalistas de outros centros do pas e de jovens profi ssionais que atuavam na cidade. A partir de 1972, a impresso off-set e o aumento do nmero de pginas aproximaram o jornal do modelo predominante nas grandes capitais do pas, ao mesmo tempo em que a cidade passava por importante transfor-mao urbana. quela altura, O Estado apresentou caractersticas de um jornalismo moderno e com diversidade informativa, o que des-toava de seu passado intrinsecamente vinculado poltica partidria (BALDESSAR; CHRISTOFOLETTI, 2005, p. 73-77).

    Mas, de certa forma, na dcada de 1980, O Estado foi vtima do prprio crescimento do mercado de mdia de Santa Catarina. Sofreu, a partir de ento, a concorrncia do grupo RBS (Rede Brasil Sul), que dominava a mdia eletrnica no Estado desde 1979 e lanaria o jornal Dirio Catarinense em 1986. Este mesmo grupo empresarial adquiriu, alguns anos depois, tanto o Jornal de Santa Catarina quanto A Notcia e, assim, controlou quase completamente o mercado de informao catarinense. Com enormes difi culdades fi nanceiras e incapaz de sus-tentar uma posio de mercado ante concorrncia, o jornal ento conhecido como o mais antigo teve sua circulao comprometida, at desaparecer por completo, quase anonimamente, quando no passava de um tablide semanal com poucas pginas, em 2008.

    O tempo por escrito

    Em 1964, ainda com vigor empresarial, jornalstico e, princi-palmente, poltico, O Estado esforara-se em apresentar uma cidade em que, apesar da defl agrao do golpe civil-militar, tudo corria em

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  • perfeita paz, com todos os estabelecimentos escolares funcio-nando normalmente, comrcio e indstria trabalhando sem im-pedimentos e o povo aguardando com calma, o desenrolar dos acontecimentos (02/04/1964, p. 1). At fi nal da dcada, imagens concorrentes e paralelas foram constantemente evocadas pelo jor-nal. Foi comum a primeira pgina ser ocupada por fotografi as que registravam o que seriam os remanescentes de outro tempo. Edi-fcios pblicos, casarios e prticas sociais, como o uso de carro-as, atos cerimoniais ou a venda de louas de barro foram temas comuns. Sob o ttulo Os dias contados, a foto de um casaro abandonado com janelas cerradas foi acompanhada da seguinte legenda de costas para a baa, as velhas casas de Florianpolis ten-dem a desaparecer com o surto progressista e imobilirio que toma conta da cidade. Hoje, a antiga Desterro um amlgama de revo-luo e tradio (09/05/1967, p. 1). O antigo trapiche municipal, conhecido como Miramar, despedia-se porque no despertava mais o antigo gosto que tinham os vovs e as vovs de frequentar suas instalaes (10/03/1968, p. 8). Outra fotografi a registrou a leitura de jornal por um senhor, sob a fi gueira da Praa XV de Novembro, com o ttulo Costume antigo e o texto: o velho hbito da leitura dos jornais nos bancos da fi gueira ainda permanece e por certo no desaparecer to cedo (19/07/1968, p. 1).

    Por outro lado, as mensagens publicitrias das empresas incor-poradoras e construtoras, em anlogo diapaso discursivo, celebra-vam a nova temporalidade. Os anncios buscavam compartilhar o espanto e o entusiasmo com a rapidez das mudanas. A frase h 8 meses atrs, aqui no existia nada encabeou um texto publicitrio de mais um edifcio erguido na cidade. As referncias Histria e passagem do tempo so ntidas: Era uma antiga residncia da velha Desterro... De repente, no ltimo vero, chegaram as m-quinas e as escavadeiras; bate estacas e homens com ferramentas (13/10/1968, p. 2). H a uma pequena narrativa histrica que junta alterao de ritmos, velocidade e referncias socioculturais que se pretendem compartilhadas pelo emissor da mensagem publicitria e seu pblico. uma espcie de operao de escrita histrica, sem ser historiogrfi ca, evidentemente. Sabe-se que a alavancagem da construo civil foi um dos pilares da poltica econmica levada a

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  • cabo pelos governos militares (PRADO; EARP, 2003, p. 225). Essa dinmica transformou no apenas grandes cidades, mas contribuiu para constituir um importante segmento de cidades mdias, como o caso de Florianpolis.

    A narrativa jornalstica aponta para indcios de experincias e expectativas de grupos sociais de Florianpolis, relativos aos usos sociais de espaos e lugares numa cidade em mudana. Um tempo histrico em mutao, entendido, conforme Reinhart Koselleck, como o entrelaamento de passado e futuro (2006, p. 305-327), mani festou-se na trama de uma narrativa compar tilhada social-mente atravs de diversos meios, dos quais pode-se encontrar indcios nos jornais, e fez-se presente nas vivncias cotidianas da populao, a orientar tanto as imagens de futuro quanto as avaliaes retroa tivas acerca das trajetrias individuais e coletivas. As expectativas assen-tadas nas promessas de crescimento urbano e nas polticas econ-micas dos governos da ditadura foram articuladas s experincias sociais reconhecidas, numa aglomerao de temporalidades orques-trada atravs de um conjunto de narrativas que dotava de sentido o conjunto disperso de elementos encontrados no dia-a-dia: os novos edifcios, o ritmo de vida acelerado, a abertura de avenidas, a chegada de imigrantes e a mobilidade social ascendente das camadas mdias.

    Na acepo fi losfi ca de Jrn Rsen, o conhecimento hist rico apresenta-se como um modo particular de um processo gen rico e elementar do pensamento humano. Ao desenvolver uma cons-cincia sobre o tempo e ao agir intencionalmente, o homem inter-preta o mundo. Esta operao ocorre sempre de modo todo espe-cial quando os homens tm de dar conta das mudanas temporais de si e do mundo mediante seu agir e sofrer e, assim, formado um quadro interpretativo das experincias em mudana no tempo (2001, p. 56-58). Pode-se intuir que no tempo presente houve uma mescla mais ntida do tempo como experincia e do tempo como inteno. Alguns contemporneos daqueles processos sociocul turais em Florianpolis, observadores em posio privilegiada, deixaram registrado na imprensa a posse de uma conscincia histrica pragm-tica e uma determinada orientao temporal, informada por refe-rncias sobre a alterao de ritmos sociais, sobre o que se passava. Numa crnica a respeito do que mudava na cidade, um intrprete daqueles tempos narrou que o fonfonar do dia a dia, a massa que se

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  • despeja das reparties pblicas e das casas de comrcio em busca dos coletivos, em todas as direes, representam o pacto do presente com um futuro cada vez mais barulhento (O Estado, 07/01/1968, p. 2).

    Referncias s mudanas na temporalidade vivida, atravs da narrativa seqencial, foram empregadas em outro anncio que trazia uma pequena tira de quadrinhos na qual um personagem, em 1960, teria pensado: investir em Florianpolis? Iihh! Nem me fale nisso!. Passados alguns anos e, com alteraes de pontos de vista, em 1964, o mesmo personagem afi rmava: imveis na Capi-tal? Sim, creio que j possvel!. Para confi rmar a concluso, um texto informava que, em 1967, muitas pessoas de outras cidades haviam adquirido imveis na cidade, por diversas razes: h gente que busca as praias; outros a universidade. E h os que querem simplesmente aplicar em imveis, aproveitando o rpido desenvol-vimento da Capital (O Estado, 16/06/1967, p. 5).

    Os jornais registraram os processos de modernizao urbana e permitem o acesso construo de uma memria histrica, no momento de sua produo. Esta constatao d-se no conjunto de discusses referentes s relaes entre Histria e Memria, que permitiram aos historiadores repensar as relaes entre passado e presente e defi nir para a histria do tempo presente o estudo dos usos do passado, como aponta Marieta de Moraes Ferreira (2001, p. 321). Neste campo de disputas polticas, os meios de comunicao de massa passaram a ter importncia decisiva, ao narrar e ordenar de certa maneira o conjunto de representaes que a sociedade fez de si mesma, do seu passado e projetou para seu futuro coletivo. Para Serge Bernstein (1998, p. 352-353), a cultura poltica, como a prpria cultura, se inscreve no quadro das normas e dos valores que determinam a representao que uma sociedade faz de si mes-ma, do seu passado, do seu futuro.

    Os jornais apresentam-se como fontes indispensveis para compreender um passado presente, no como algo estvel e conge-lado, mas tambm como suportes de uma memria intencional-mente produzida, ao instaurar sentidos e legitimar determinados processos polticos (DECCA, 1992, p. 133). Neste caso, os jornais so mediadores de lembranas, posto que tambm pelo discur-so de terceiros que os sujeitos so informados sobre o resto dos fatos contemporneos a eles, atravs de construes baseadas

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  • em fontes crescentemente miditicas (SARLO, 2007, p. 90-92) e que infl uenciaram as percepes e lembranas de um perodo de tempo recente, com impactos tanto nas trajetrias individuais quanto em experincias coletivas. O discurso jornalstico ocupou o papel institucional de produzir sentidos passveis de inscrio na memria social, da a necessidade de examinar de que modo vem a instituir-se e a produzir os efeitos de verdade e consenso que muitas vezes acabam por orientar nossas aes e nosso pen-sar (RIBEIRO; FERREIRA, 2007, p. 58).

    No incio da dcada de 1970, a populao de Florianpolis gi-rava em torno de 120 mil habitantes. Um anncio publicitrio em O Estado mostrava uma charge na qual um personagem parecia sonhar acordado e, em tom de desejo, pensava: morar no centro... Ah! Morar no centro (17/07/1968, p. 1). A construo de edifcios de apartamentos em escala crescente, modifi cou em profundidade a fi sio nomia e a estrutura urbana. reas tradicionalmente ocupadas por residncias requintadas das camadas mais altas das cidades fo-ram propiciadas moradia das novas camadas mdias urbanas, atra-vs do processo de verticalizao. Os anncios publicitrios citavam, por exemplo, a possibilidade de morar em uma rua aristocrtica... um local arborizado, onde voc mora perfeito! (08/12/1967, p. 5).

    O desejo por adquirir apartamentos possibilitou polticas de crdito imobilirio: funcionrios pblicos em cargos de che-fi a e profi ssionais liberais afi rmaram-se como consumidores de apartamentos de trs dormitrios (PEREIRA, s/d, p. 88). Entre as prticas culturais identifi cadoras das classes mdias urbanas, o jornal registrou, em 1970, que o fl orianopolitano j comeou a manifestar uma acentuada preferncia pela fi xao de residncia em condomnios e os compradores de imveis, notadamente de apartamentos situam-se na faixa dos mais bem atendidos, em ter-mos de opes e de qualidade. Com satisfao constatava-se que morar em apartamentos j no privilgio de uma minoria de alta renda que exigia projetos nobres, requintados, luxuosos e de extremo bom gosto, pois toda a classe mdia passa a fazer as mesmas exigncias (O Estado, 08/07/1970, p. 5).

    Os governos da ditadura intensifi caram o processo de monta-gem de uma mquina estatal complexa, com mecanismos de gesto que exigiram a constituio de segmentos burocrticos, compostos

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  • por tcnicos e especialistas. O planejamento governamental e as no-vas oportunidades de investimento na cidade criaram um cenrio novo em Florianpolis: o admirvel impulso que a Capital tem rece-bido nos ltimos anos e o seu benfazejo despertar para as potencia-lidades de que dispe, a fi m de ingressar defi nitivamente nas sendas do progresso que se traou, do hoje uma perspectiva bastante ani-madora em relao ao futuro de toda a rea a que se acha integrada (O Estado, 13/08/1968, p. 4). Novos mecanismos de interveno estatal na economia, atravs de empresas pblicas recm criadas, ao oferecer oportunidades de emprego para uma burocracia de nvel mdio e superior, criaram condies para que novas camadas mdias fossem incorporadas cidade (LOHN, 2011).

    O Plano Nacional de Habitao, cuja execuo seria fi nan-ciada pelo Banco Nacional de Habitao (BNH), proporcionou linhas de crdito para construtores e compradores de moradias e facilitou a implantao de projetos de infraestrutura urbana. Em O Estado, campanhas publicitrias mostravam uma nova vida urba-na ao alcance das classes mdias. Seria possvel pensar seriamen-te na mudana para um novo conjunto de edifcios confortveis, com reas talentosamente planejadas e apartamentos fi nanciados via Crdito Imobilirio, atravs do plano de Equivalncia Salarial (01/07/1972, p. 12). Estas referncias compuseram discursos que estiveram na base da propaganda ofi cial dos governos militares. Car-los Fico (1997, p. 137) denomina reinveno do otimismo a esta elaborao que buscava associar a confi ana no destino de grande-za do pas s certezas em relao ao porvir de cada brasileiro.

    Enquanto o crescimento da construo civil na cidade man-tinha nveis acelerados, a difi culdade para conseguir moradia na cidade veio tona nas pginas dos jornais de uma maneira inusi-tada. Acompa nhando a mobilizao nacional promovida pela Unio Nacional dos Estudantes (UNE), em Florianpolis o movi-mento estudantil ocupou as ruas protestos contra a poltica educa-cional e a ausncia de moradia estudantil. Um mar de protestos foi uma manchete de meados de 1968: um mar de faixas e cartazes criticando a poltica educacional do governo e a reitoria da UFSC [Universidade Federal de Santa Catarina] levou s ruas o protes-to dos estudantes universitrios (O Estado, 16/05/1968, p. 1). As

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  • fotografi as publicadas em O Estado mostraram faixas como dizeres como menos armas para calar, mais verbas para educar ou um jovem que deixa de estudar hoje um tcnico que faltar ao Brasil amanh. O assassinato do estudante Edson Lus de Lima Souto, no Rio de Janeiro, provocou protesto em Florianpolis e o Diretrio Central de Estudantes manifestou-se contra o arrocho do poder militarista que se instalou na direo do pas (31/03/1968, p. 1). Em seguida, foi defl agrada uma greve estudantil contra a reteno de verbas por parte do Ministrio da Educao e a ausncia de pol ticas de moradia estudantil. Foi anunciada uma ao popular para ques-tionar o contrato Daux-Reitoria. Os manifestantes denun ciavam os termos do contrato de locao das Casas de Estudantes que, mantidas com recursos da Reitoria, geravam benefcios para uma empresa do setor imobilirio da cidade (04/06/1968, p. 4).

    Com o recrudescimento da ditadura, aps a instaurao do Ato Institucional Nmero 5 (AI-5), as referncias a formas de ocu-pao diversifi cada dos espaos pblicos na cidade praticamente desapareceram do noticirio. At ento haviam sido comuns infor-maes sobre manifestaes diversas. Enquanto as ruas eram toma-das pelos estudantes em protestos ou em trotes aos calouros, o jornal O Estado mostrava personagens conhecidos pela populao. Em certa ocasio, o tema foi uma mulher conhecida como Marta Rocha que freqentava o centro e fora incorporada quase ao nos-so folclore (04/05/1967, p. 1). Os clubes de remo, numa poca em que a linha de mar fazia fronteira com as ruas centrais mais impor-tantes, antes dos grandes aterramentos da dcada seguinte, tambm celebravam vitrias em manifestaes pblicas. No dia 14 de No-vembro de 1967, o jornal registrou que na euforia da vitria, rema-dores e scios do Riachuelo percorreram as ruas centrais da cidade comemorando ruidosamente a conquista do tricampeonato (p. 1).

    Outro tema do jornal foi o Mercado Pblico, considerado o principal armazm da cidade, no qual as donas de casa j se acostumaram ao ritual de todas as manhs, quando vo s compras, encontram-se com as amigas e discutem as cotaes da bolsa dos gneros de todas as necessidades. Contudo, ao cair da noite, che-gavam tambm as sombras de seu submundo, composto por personagens que pareciam extrados de alguma crnica da Idade

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  • Mdia: carregadores e miserveis indigentes, pobres fi guras que vivem s os maus bocados da existncia. A matria mostrava o en-contro de tipos muito diferentes: o bulioso cotidiano das madames que vo feira, os problemas e as chagas sociais dos que o habitam e nele vivem (29/05/1968, p. 5).

    Em 1967, eram grandes as expectativas quanto possibi-lidade de Florianpolis vir a integrar as regies metropolitanas do pas, criadas por lei Federal. Contudo, a cidade no foi includa entre as reas prioritrias. A chamada de capa mais importante de O Estado no dia 19 de Dezembro daquele ano foi: Florianpolis no ser rea metropolitana (p. 1). Isso no diminuiu a retrica favorvel s medidas administrativas que, segundo seus partidrios, transformariam a cidade. Para o jornal, a Capital de Santa Catarina era a cidade que se recusou a parar e promoveu uma poltica administrativa de superao, com a qual conjugou, no presente e no futuro, o verbo do planejamento aliado ao (12/05/1968, p. 4). As obras de infraestrutura da dcada seguinte foram ento proje-tadas, principalmente a construo de uma nova ponte entre a parte insular e a continental da cidade, pois a velha Herclio Luz, construda no incio do sculo XX, no mais dava vazo ao fl uxo de trnsito: a pobre ponte, j balzaquiana, vai suportando a duras penas enormes fi las de veculos parados sobre si (11/08/1968, Suplemento, p. 1)

    A implementao de normas de gesto urbana estabelecidas pelo governo federal, que redundaram na elaborao do Plano de Desenvolvimento Integrado da rea Metropolitana, entre 1969 e 1971 (LOHN, 2011). Este documento seria uma das bases para o Pla-no Diretor fi nalmente aprovado em Junho de 1976, durante a gesto do prefeito Esperidio Amin. O objetivo era a transformao de Florianpolis em um grande centro urbano para equilibrar a atra-o de So Paulo, de Curitiba e de Porto Alegre (ESCRITRIO CATARINENSE DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO, 1971, p. 5-8). Como potenciais econmicos, a Capital apresentava a maior indstria de construo civil, a maior valorizao imobi liria e condies para ser zona prioritria de investimentos tursticos. Obras pblicas de grande impacto marcaram a fi sionomia urbana de Florianpolis. Como grande benefi cirio poltico do processo de mudanas, Amin incorporou legislao municipal as diretrizes do planejamento urbano daquela dcada e palmilharia, a partir da, uma

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  • carreira poltica destacada. O proprietrio de O Estado e ainda fi gura poltica mais infl uente na cidade, Aderbal Ramos da Silva, pontuou o surgimento da nova liderana: como um ilhu bem-humorado, enamorado pela cidade e preocupado com seu futuro fi cava tran-quilo de saber que agora ela est em boas mos, pois o prefeito Amin tinha bons planos como este boulevard [calado] que esto projetando para a Felipe Schmidt e vai mudar a fi sionomia da cidade, para melhor (14/05/1976, Suplemento Especial Brazil, Capital Desterro, p. 16). Era o prprio prefeito que se manifestava no mesmo ano, ao valer-se de narrativa apontada para a prospeco do futuro: se no salvarmos agora o que possvel em termos de tentativa de racionalizar o crescimento de Florianpolis, nunca mais salvaremos a nossa cidade (10/06/1976, p. 15).

    Inicialmente, os governos do regime militar mantiveram meca-nismos de interveno no desenvolvimento das cidades centrados numa poltica habitacional retoricamente voltada para a soluo das moradias precrias da populao mais pobre. Contudo, aos poucos, o sistema fi nanceiro montado voltou-se para as camadas mdias, em busca de maior rentabilidade. Aps 1973, a poltica urbana inte-grou-se a um conjunto de estratgias declaradamente voltadas para superar desequilbrios regionais, atravs de aes conjuntas que preconizavam uma gesto do territrio nacional a partir de plos urbanos (SCHMIDT; FARRET, 1986, p. 33). O desenvolvimento urbano recebeu um captulo especfi co no II Plano Nacional de Desenvol vimento (PND). A resoluo da dualidade entre grandes metrpoles e a excessiva pulverizao de pequenas cidades, sem um nmero adequado de cidades mdias que possibilitassem equilbrio ao conjunto, tais como Florianpolis, destinada ao turismo e ao lazer (BRASIL, 1975, p. 71-75).

    A poltica urbana inseriu-se nos debates sobre a concentrao de renda, num momento em que a oposio ao regime chamou a ateno para os efeitos do modelo econmico imposto. O espao urbano apareceu ento, na discusso ofi cial, como um palco de pro-blemas e as aes da poltica urbana deveriam corrigir os efeitos no-civos do modelo de crescimento econmico (STEINBERGER; BRUNA, 2001, p. 46). Em 1976 foi anunciado o Programa para Cidades de Porte Mdio, com o objetivo de reforar pontos do

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  • espao nacional potencialmente capazes de direcionar o processo de urbanizao de maneira mais racional e estruturante, gerando opes aos fl uxos migratrios e de capital. Entre as reas previstas foram eleitas aquelas com cidades de porte mdio com potencial econ-mico ligado ao turismo e ao lazer (POLTICA, 1976, p. 20-25).

    O turismo, desde a dcada de 1960, ganhou as pginas de O Estado com grande destaque. O proprietrio do jornal era um dos maiores investidores em imveis nas praias da cidade, principal-mente no Norte da Ilha. Da que a instalao de energia eltrica em vrios balnerios e a melhoria de estradas foram saudadas como a garantia de viabilidade econmica para a cidade e para os interesses privados. Apesar dos inmeros problemas apontados, registrava-se o aumento do movimento nas praias nos fi nais de semana e os hotis mostravam-se insufi cientes para abrigar os turistas interes-sados em visitar a cidade. O ramo turstico vivia, na interpretao do jornal, os seus grandes dias em nosso pas, transformado em atividade econmica fundamental (13/12/1967, p. 3). Uma Dire-toria de Turismo e Comunicaes da Municipalidade foi criada em 1967, pois a chamada indstria sem chamins exigiria um pre-paro de mercado e de uma organizao que procure criar condi-es urbansticas as mais aprimoradas (12/03/1968, p. 3).

    Os investimentos imobilirios e a retrica em favor do turismo trouxeram tona a questo das grandes modifi caes no cenrio urbano, particularmente a derrubada de edifcios e construes an-tigas para ceder lugar s novas obras. Isso ocorreu num momento em que, ainda durante os governos da ditadura militar, as cidades passaram a defi nir polticas de patrimnio tendo como principal orientao o desenvolvimento do turismo (LEITE, 2007, p. 34-60). Em 1974, uma construtora de Florianpolis lanou um anncio cujo mote foi: uma pena, mas uma Capital no tem o direito de ser somente patrimnio histrico. A empresa afi rmava gostar muito da arquitetura do sculo XVII, mas apesar disso, ajudava a cons-truir a Capital do sculo XX. (O Estado, 15/06/1974, Suplemento Especial, p. 11). Dias antes, O Estado noticiou a criao do Servio do Patrimnio Artstico e Natural do Municpio, com a fi nalidade de proteger os prdios, monumentos, mveis, stios e paisagens de Florianpolis e coibir a demolio de prdios antigos no centro

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  • da cidade (01/05/1974, p. 12). A legislao municipal valia-se das polticas federais que atriburam s cidades alguns mecanismos para a defi nio de bens culturais preservados. Contudo, ao incentivar o vnculo entre patrimnio e interesses tursticos, a lgica governa-mental resultou em favorecer o desenvolvimento de setores privados associados explorao de negcios voltados ao lazer. Isso permitiu, a partir de uma defi nio de prioridades, que em nome do turismo e da explorao imobiliria, diversas modifi caes na estrutura urbana tenham simplesmente ignorado qualquer discusso patrimonial.

    Novos tempos

    Empreendimentos em regies mais ou menos distantes do centro de Florianpolis abriram novas fronteiras de expanso da cidade. A mobilidade da maioria da populao foi garantida preca-riamente pelo incremento de linhas de nibus. Em 02 de Setembro de 1970, O Estado registrou a seguinte chamada: Povo espera muito nas fi las dos coletivos. As fi las quilomtricas estendiam-se nos terminais e as empresas concessionrias no ampliavam a frota (p. 1). O que aumentou foi o nmero de automveis em circulao e, com isso, alguns prosaicos problemas de trnsito foram noticiados. Esta esquina j est precisando sinaleira foi uma manchete que se referiu ao cruzamento entre duas importantes avenidas no centro, palco permanente de acidentes de automveis (06/09/1970, p. 1).

    Cidades-dormitrio cresceram nas proximidades da capital, ao abrigar uma crescente populao, constituda por trabalhadores da construo civil, que encontraram ocupao nas vrias obras em andamento na capital. A Companhia de Habitao do Estado (COHAB) anunciou estar neutralizando os efeitos de um problema social, com a melhoria do oramento dos trabalhadores, desone-rados das despesas do aluguel, numa ao associada aos objetivos do Banco Nacional de Habitao, que teve impulso extraordinrio sob as diretrizes de regime, que a revoluo de 1964 implantou no pas (03/03/1970, p. 3). Posteriormente, novos hbitos seriam regis trados: em meados da dcada havia os que manifestavam o de-sejo de abandonar o centro da cidade para residir defi nitivamente

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  • em bairros mais afastados, ou mesmo nos balnerios e praias da Ilha. As ofertas pareciam atraentes: quem conseguiu adquirir um lote antes da especulao, pode agora respirar tranqilo, longe do barulho e da poluio visual e sonora existente no centro. O uso do automvel viabilizava os novos hbitos: um morador de uma praia dizia-se contente porque correndo um pouco, a uns 80 km por hora conseguia fazer em apenas 20 minutos o percurso at o lo-cal de trabalho (21/03/1976, p. 15). Predominou uma forma de pen-sar o urbano que estava presa lgica da individualizao das classes mdias, num processo prximo daquele descrito por Georg Simmel (2005, p. 577-591), quando acentuou a mais alta impessoa lidade nas grandes cidades e a reserva diante do contato com outros.

    Nas pginas de O Estado h registros dessa demarcao de novas sociabilidades urbanas: em 1968, o jornal apontou que ainda continuavam a existir feiras livres na cidade, com preos idnticos aos de armazns e casas do gnero, mas sem satisfazer os mni-mos requisitos de higiene, armadas em barracas e caixotes, numa paisagem verdadeiramente medieval (23/01/1968, p. 1). Anos de-pois, uma matria antevia a queda do balco, ou seja, o fi m de um tipo de relao comercial cara a cara entre clientes e proprie trios, o que provocaria a falncia dos armazns. As obras de desenvol-vimento urbano e a massifi cao da cidade possibilitaram novos ne-gcios, em especial a introduo dos supermercados que ameaaram a prosperidade das dinastias de proprietrios das pequenas casas de comrcio (06/08/1972, p. 4).

    Modos de vida, modas, jeitos e valores aproximaram-se da-queles oferecidos no mercado nacional de bens materiais e simb-licos. Segundo Renato Ortiz (1994, p. 113-138), ao aprofundar e remodelar o processo de industrializao e gesto econmica no Brasil, os responsveis pelo regime autoritrio implantado em 1964 promoveram a insero do mercado nacional em mecanismos de internacionalizao do capital. Para o autor, em termos culturais essa reorientao econmica traz conseqncias imediatas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens materiais, fortalece-se o parque industrial de produ-o de cultura e o mercado de bens culturais. At o fi nal da dcada, a cidade incorporou novos espaos atravs de grandes aterros e

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  • de uma nova ponte, que proporcionaria vazo a quase 15 mil ve-culos diariamente (O Estado, 10/03/1976, p. 1). Foram construdas vias de trnsito rpido, eixos prioritrios de circulao. Ao chamar a ateno para a especulao imobiliria nas praias do municpio, O Estado reproduziu a declarao de uma arquiteta que se referiu rea aterrada na Baa Sul como um grande parque de estacio-namento para absorver o crescente nmero de veculos particulares que cada dia mais invadem o miolo da cidade (08/04/1976, p. 16).

    O documento Diretrizes para o uso do solo do aglomerado urbano de Florianpolis, apresentado em 1977, constatava que em poucos anos a cidade havia sido conduzida condio de impor-tante plo de comrcio e de servios e que alguns investimentos em comunicaes e transportes provocaram o surgimento de um fl uxo turstico de crescimento muito acima do previsvel. Contudo, essas condies teriam tambm levado progressiva deteriorao de alguns aspectos da qualidade da vida urbana de Florianpolis. Entre os fatores elencados estavam a expulso para a periferia das camadas de baixa renda, as longas distncias para o transporte cole-tivo e a diminuio da segurana o que trazia saudade da vida segura e tranqila do fl orianopolitano que cultiva a cultura e o folclore, con-vive com a natureza e especialmente com o mar. Os excep cionais nveis de crescimento da construo civil e o subem prego no setor de servios tambm alteravam a vida da populao, que deixava tradicionais formas de ocupao, especialmente a pesca ( FLORIANPOLIS, 1977, p. 7-8).

    No ano em que a cidade completava 250 anos de fundao, as pginas do jornal apresentaram o novo cotidiano urbano: s buracos, lixo e mau cheiro; os congestionamentos na hora do rush; nibus 10,57% mais caro; custo de vida na Capital aumen-tou 6,92%; os coletivos que ainda no atendem coletividade; xodo rural atinge todo o Estado; os problemas crescem em propores geomtricas; os favelados do aterro perguntam: para onde ir?. Estas so algumas manchetes recolhidas no primeiro semestre de 1976. O ritmo da narrativa procurou dar contornos e compartilhar uma determinada maneira de posicionar-se histori-camente quanto ao processo que vivenciava. Num balano hist-rico sobre as mudanas ocorridas no transporte pblico, o quadro

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  • traado por O Estado no inspirava confi ana no servio: apesar do nmero de 137 ve culos, os nibus mantinham-se superlotados na maior parte do dia e constatava-se ausncia de novas linhas em reas urbanizadas nos ltimos anos (25/03/1976, p. 16). A morosi-dade para a aprovao do Plano Diretor fazia com que a cidade continuasse a crescer desorde nadamente e a imagem dos 250 anos vista pelos habitantes de uma ou duas dcadas atrs com amargo ressaibo: o caos se consolida, porque nascem prdios da noite para o dia, que ocupam desordenadamente os poucos espaos vazios da cidade (26/03/1976, p. 16). Haveria, ento, o desafi o de costurar o passado ao presente, dado que em pouco mais de 10 anos Florianpolis mudou tanto sua fi sionomia que as incises dessa abrupta cirurgia plstica comeam a exigir remdios urgen-tes (30/03/1976, p. 1). Diferente do que se constatara at ento, tornaram-se frequentes as referncias necessidade de preservao patrimonial, a visita a museus e a preocupao e a situao de igrejas e antigas construes que desapareciam rapidamente.

    O perodo a partir do qual foi intensifi cado o processo que levaria instaurao do regime democrtico no pas foi vivido em Florianpolis, portanto, sob os ritmos urbanos de uma cidade que fora transformada nos anos da ditadura militar. A redemocratizao envolveria vitrias eleitorais do partido da oposio consentida du-rante a ditadura, o MDB (Movimento Democrtico Brasileiro), esgota mento do modelo econmica que havia ensejado os anos do milagre e a participao poltica das multides urbanas, sob as mais diferentes formas. Em 1974, a crise parecia estar anunciada em O Estado: eis o produto que mais sobe na cidade: o aluguel. O sonho da moradia nos apartamentos do centro da cidade parecia distante no eldorado dos imveis, a cidade brasileira com os aluguis mais caros (27/06/1974, p. 12). Em 1978, o jornal trazia a histria de uma dona de casa moradora em um loteamento irregular na rea continental que desafi ara a polcia e resistira ao despejo: sarrafo em punho, dona Vilma defende seu barraco e o direito que considera seu de permanecer morando onde est. Uma rea estadual deveria ser desalojada e as famlias transferidas para um conjunto habita-cional, mas a moradora reclamava dos barra cos oferecidos pelo go-verno, com uma pea s e defi cincia de saneamento (01/02/1978,

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  • p. 15). Na poca, entre os poucos que pareciam considerar o custo de vida barato na cidade estavam os turistas argentinos. Em 1980 o jornal referiu-se a uma invaso argentina: os turistas do pas vizinho chegavam cheios de dlares e compravam tudo. Fotos mostravam o centro tomado por argentinos atravessando as ruas, carregados de pacotes (15/01/1980, p. 16).

    A compreenso da construo democrtica no Brasil passa por levar em conta a constituio novas relaes sociais, principal-mente no cenrio urbano. Para uma grande parcela da populao as promessas de mobilidade social e consumo moderno foram parcialmente satisfeitas enquanto o desafi o passou a ser o de cons-truir lugares de vivncia com o compartilhamento do trabalho entre familiares e suas redes de conhecidos num ambiente voraz e competitivo ( SADER, 1988, p. 99-114). No momento em que o regime parecia estar no auge de sua capacidade de gerar legiti-midade social, particularmente junto s camadas mdias urbanas, este passou a sofrer reveses importantes. As eleies, que deve-riam ser apenas momentos de reafi rmao da fora dos governos dos generais-presidentes, especialmente a partir de 1974, ganha-ram uma confi gurao inusitada. A poltica ressurgiu e ganhou as pginas de jornais e revistas. Aliado s difi culdades econ micas enfrentadas pelo governo a partir da, com a desestabi lizao e o fi m do perodo de crescimento acelerado, este processo somou-se s importantes mudanas socioculturais que marcaram a sociedade naqueles anos. A demanda por eleies e a valorizao do voto introduziram elementos novos na cultura poltica brasileira, at ento marcada pela desquali fi cao de mecanismos institucionais de participao popular e de imagens ressen tidas forjadas na cren-a elitista sobre um suposto despreparo da populao para o voto (BENEVIDES, 1994). Do mesmo modo, vieram a questionar os mecanismos autoritrios de gesto do Estado impostos pela dita-dura militar e que corresponderam ao poder de uma tecnocracia que se pretendeu modernizadora e legitimada por uma suposta efi ccia administrativa.

    As experincias das camadas populares, decorrentes de um cotidiano compartilhado por milhes de habitantes de cidades transformadas em ritmo veloz nos anos precedentes, passaram a

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  • incorporar temas como cidadania e direitos civis, polticos e sociais. Movimentos de base, organizados a partir de diversas formas, seja nos sindicatos, nas igrejas, nas escolas ou mesmo em entidades parti drias, passaram a congregar esforos locais no sentido de pra-ticar uma democratizao no cotidiano. A emergncia do chamado novo sindicalismo trouxe, cena poltica, setores sociais at ento sufocados. A grande imprensa, que durante grande parte do pero-do apoiou e sustentou o regime militar, apareceu ento como uma das vozes privilegiadas da democratizao e construtora de uma memria histrica que consagrou a vitria de determinados agentes e setores polticos sociais. O noticirio jornalstico no aparece ape-nas como espectador, mas como interlocutor importante nas ques-tes polticas que envolveram a chamada distenso e a posterior abertura lenta, gradual e segura. As movimentaes contra a cen-sura prvia e as tentativas de alertar os leitores quanto ao perse-cutria do Estado nas redaes notabilizaram algumas publicaes (AQUINO, 1999, p. 222-234). O fi m da vigncia do AI-5, em 1978, o posterior restabelecimento do pluripartidarismo e as eleies de 1982 so fundamentais para compreender as articulaes que envol-veram partidos, governantes, movimentos sociais e imprensa.

    Na esteira dessa nova confi gurao poltica, a narrativa elabo-rada por O Estado acerca das mudanas em curso aos poucos agrega elementos advindos das novas adeses sociais e do engajamento ao processo de transio para a democracia. O noticirio incorporou as negociaes que levaram abertura poltica. Importante desta-car que, a esta altura, os textos produzidos no jornal so claramente infl uenciados para presena na redao de uma nova gerao de jorna listas profi ssionais, o que seria acentuado com a criao do curso superior de jornalismo na UFSC. Em 1978, um artigo expressava as expectativas do jornal quanto ao cumprimento da meta bsica do que chamava de movimento revolucionrio de 1964: a conduo do pas to almejada normalidade democrtica. Aps um perodo de nuvem negra, haviam voltado as condies que pudessem levar o Brasil ao encontro com a democracia (01/02/1978, p. 4). Para Marcos Napolitano, a linguagem dos direitos parece ter nor-teado o discurso jornalstico do perodo, em que pese os diversos matizes ideolgicos. O engajamento na questo democrtica, que

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  • circulava com nfase no espao pblico e nos textos jornalsticos desde a dcada anterior, contribuiu para que a imprensa obtivesse legitimidade social, pois o que realmente estava em jogo era conso-lidao da hegemonia liberal no processo imediato de transio, o que foi plenamente atingido (2002, p. 154-161).

    Em 1979, em funo do decreto que concedeu anistia aos que lutaram contra o regime, retornava a Santa Catarina, a primei-ra entre outros militantes que haviam buscado refgio no exterior: exilada catarinense retorna de Cuba disposta a fazer poltica. Derlei de Luca foi recebida por representantes da Comisso de Justia e Paz e do Movimento Feminino pela Anistia: comearei respirando o Brasil e participarei ativamente da poltica. Na opo-sio, claro (O Estado, 13/11/1979, p. 3). Dias depois, outro momento decisivo ocorreu na cidade: a chamada novembrada. A visita do General Joo Figueiredo, empossado na presidncia da Repblica havia poucos meses, redundou num protesto contra a ditadura no centro de Florianpolis no dia 30 de Novembro. No dia da visita ofi cial, O Estado anunciava que fora preparada uma grande recepo: faixas, bales, bandinhas e 3 mil kg de carne para a festa. O governador do Estado, Jorge Bornhausen, procurava contribuir com os esforos polticos e publicitrios que visavam melhorar a imagem do novo presidente e do regime. Mas, durante o cerimonial, uma grande manifestao popular saiu do controle das foras de segurana: o prprio general-presidente no escapou da fria popular e recebeu um empurro (MIGUEL, 1995, p. 41). A priso de manifestantes levou a grandes mobili-zaes pela libertao dos que estavam sendo processados com base na Lei de Segurana Nacional tomaram as ruas. Nas fotos publicadas, possvel ler vrias faixas com dizeres como abai-xo a ditadura, chega de sofrer, justia ou abaixo a fome. Numa dessas manifestaes, mais de 7 mil pessoas enfrentaram mais de 700 soldados da Polcia Militar em um ato pblico que vinha sendo realizado pacifi camente em favor da libertao dos cinco estudantes presos durante os tumultos da ltima sexta-feira. Com a praa cercada pela polcia, um grupo de 1.000 a 1.500 pessoas saram em passeatas por todos os cantos do centro da ci-dade (05/12/1979, p. 3.). O movimento estudantil voltou s ruas da cidade que, sua maneira, compunha um dos cenrios para as

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  • representaes que evocavam as multides atravs das quais eram elaborados os rituais pblicos de cidadania e democracia.

    A dcada de 1980 aprofundaria esta tomada das ruas e a cam-panha pelas eleies diretas para a presidncia foi tanto um smbolo, como o auge de um processo mais amplo. As mobilizaes atingiram um momento intenso com a campanha pelas eleies presi denciais diretas. Nas principais cidades brasileiras, sucessivos com cios com grande participao popular foram organi zados para apoiar a frustra-da tentativa de aprovao da constitucional apresentada pelo Depu-tado Federal Dante de Oliveira, do Partido do Movimento Demo-crtico Brasileiro (PMDB). Em Florianpolis, O Estado afi rmava acreditar nos sentimentos liberais das camadas politicamente ativas de nossa populao e juntava-se aos que cele bravam a demo cracia: a elite poltica brasileira precisava convencer-se de que uma demo-cracia se faz com idias, com plataforma, com projetos defi nidos. O balano histrico do regime mostrava que experimen tamos no-tvel progresso material, ainda que no tenhamos logrado alcanar o desempenho poltico nos nveis dese jveis. Em 1984, foi visvel a tentativa do jornal em adequar-se nova conjuntura. Povo na Praa XV pede as diretas foi a manchete do dia 30 de maro, refe rente ao comcio do dia anterior, com a parti cipao de Lus Incio Lula da Silva, Ulysses Guimares e Doutel de Andrade, entre outros. En-tre as palavras de ordem: o povo, na raa, j conquis tou a praa. Um dos que se pronunciaram lembrou que naquele lugar ocorrera a novembrada e que ali come amos a derrubar a ditadura.

    A campanha pelas eleies diretas para a presidncia da rep-blica tornou-se parte indissocivel da memria histrica produzida desde ento acerca do processo mais amplo de democratizao do processo poltico brasileiro. As multides extraordinrias de um pas urbano, apresentadas nas pginas de jornais e revistas e a cele-brao da mobilizao popular para exigir eleies, formam um quadro com elementos diversos que se constituram naqueles anos. A campanha concretizou uma aliana de homens pblicos hist-ricos com a nova gerao de polticos que formava o PT [ Partido dos Trabalhadores] e com diferentes integrantes de movimentos sociais (DELGADO, 2007, p. 422). Mesmo rgos de informao notoriamente ligados ao regime, como a TV Globo, quebraram o bloqueio da censura e, com isso, atravs das imagens televisivas, na

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  • reta fi nal da campanha, milhes de brasileiros puderam participar emocionalmente na luta por eleies diretas (BERTONCELO, 2009, p. 185). Nos meses seguintes, O Estado noticiou os avanos das negociaes para a eleio de um presidente civil por um Col-gio Eleitoral e contribuiu para garantir legitimidade para a transio. Uma pesquisa apontou o apoio popular chapa da oposio: caso o eleitor de Florianpolis pudesse votar, daria 46,7% dos votos a Tancredo (02/09/1984, p. 1). O jornal defendia uma nova consti-tuio (11/09/1984, p. 4) e noticiava os avanos da campanha de Tancredo Neves em todo o pas: multido consagra a candidatura Tancredo, ao referir-se s 250 mil pessoas num comcio em Goinia (15/09/1984, p. 2).

    A chamada Nova Repblica teria seu incio no ano seguinte, com importante base de apoio social. Em fi ns de 1984, O Estado anunciou outras importantes mudanas para o ano seguinte e que diziam respeito a Florianpolis. Mais um Plano Diretor passaria a ser discutido e a cidade comearia a preparar-se para o ano 2000. O jornal tambm fazia um balano da trajetria das duas ltimas d-cadas e, para isso, procurou ouvir arquitetos e ex-prefeitos. Mais um clima de mudanas tomava conta da gesto urbana e apostava-se que a conscientizao e politizao crescentes da populao exer-cero presso no processo de crescimento da Capital. Durante 20 anos a populao foi obrigada a aceitar todas as decises passiva-mente. A partir de ento, a sociedade passaria a opinar quanto ao planejamento para a cidade em que mora. Para ex-prefeitos, cujos mandatos haviam sido exercidos nos anos da ditadura civil-militar, o desenvolvimento de Florianpolis no acompanhou a ntegra das diretrizes traadas no Plano Diretor, com descaracterizao do centro colonial da cidade. Mas os interlo cutores desta memria histrica no deixavam de saudar que Florianpolis, apesar de ser uma das trs menores capitais do pas, alcanou naquelas dcadas a condio de estar entre as cinco de maior renda e padro alto de vida. O futuro apontava para uma cidade na qual a elitizao seria inevitvel e que estaria predestinada a ser estritamente turs tica (30/12/1984, p. 8).

    As eleies para a prefeitura de Florianpolis, aps 25 anos, determinaram a vitria da oposio sobre a candidatura apoiada pelo ento governador Esperidio Amin, artfi ce poltico do processo de

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  • modernizao urbana da dcada anterior. No mesmo ano, algumas centenas de pessoas aglomeraram-se em frente Catedral para as-sistir pela televiso, de maneira aptica, segundo O Estado, a eleio pelo Colgio Eleitoral de um Presidente Civil. Enquanto alguns tu-ristas argentinos demonstravam curiosidade por saber o que ocorria, os momentos de emoo fi caram para o fi nal do evento, quando fo-ram executadas msicas como O menestrel das Alagoas e Cami-nhando (16/01/1985, p. 3). O PMDB ocupava o largo da Catedral, que se tornara um tradicional ponto de manifestao poltica desde a novembrada, mas o PT convocara seus militantes para manifestar repdio ao Colgio Eleitoral, em outro ponto do centro, no cala-do da Rua Felipe Schmidt, com maior fl uxo de pessoas. O espao urbano convertia-se, ainda que ocasionalmente, em espao pblico.

    A narrativa encontrada em jornais como O Estado parte consti tutiva dos fenmenos sociais que marcam as memrias so-ciais e as narrativas histricas contemporneas, ao assumir o papel de destaque na formao de referenciais compartilhados e que infor-maram em grande medida a compreenso histrica a qual aderiram amplas camadas da populao brasileira. Tais represen taes so-ciais, que conformaram imagens e discursos, so imprescin dveis para a compreenso do papel dos meios de comunicao na cons-truo de um tempo presente brasileiro. Os muitos cenrios poss-veis e as interpretaes abertas compem quadros narrativos que permitem, no dizer de Paul Ricoeur (1997, p. 360-372), [...] lutar contra a tendncia a se considerar o passado do ponto de vista do acabado, do imutvel, do irretocvel. Em Florianpolis, gran-de parte da populao experimentou, sob condies diversas, os impactos socioculturais decorrentes da alterao de ritmos sociais e temporalidades. As narrativas que exprimiram tais experincias temporais lidaram com mudanas que desarticularam o que pa-recia estvel, bem como marcaram de maneira indelvel a atual experincia democrtica brasileira. O intenso processo de urbani-zao, a formao de grandes contingentes de camadas mdias ur-banas e a estruturao de modernas estruturas de comunicao de massa tiveram efeitos polticos duradouros.

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  • THE TIME OF THE NEWS: CITY, DICTATORSHIP AND REDEMOCRATIZATION IN THE PAGES OF O ESTADO (FLORIANOPOLIS, SC, 1964-1985)Abstract: This article discusses the relationship between the narratives produced in the newspaper O Estado, published in Florianpolis (SC), the socio-cultural changes and the political processes related to the military dictatorship and the recent democratization of Brazil. The journalistic discourse shows itself as a social organizer, which includes the defi nition of what should be remembered or forgotten. Narratives elaborated in the newspaper have constituted supports for memories and for the construction of historical consciousness about the present time experienced during the transition between dictatorship and democracy.Keywords: Newspaper. Narrative. Present time. Dictatorship. Democracy.

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