LOHOFF Ernst TRENKLE Norbert Entrevista
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7/28/2019 LOHOFF Ernst TRENKLE Norbert Entrevista
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Crise mundial e limites do capital
Entrevista com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle
>>Richard Jellen: Como Marx nos ajuda a entender a crise atual melhor do que
outros tericos?
Ernst Lohoff: Para responder isso, primeiro temos que atentar para o debate sobre a
crise atual, que se caracteriza por uma enorme discrepncia. De um lado, est bem
estabelecido que esta crise de propores histricas, e a cada duas semanas tem-se
uma nova reunio que termina com os mais importantes chefes de Estado anunciando
que acabaram de salvar a economia global da destruio. Por outro lado, as explicaesque so oferecidas para esse desenvolvimento dramtico so extremamente
insuficientes. O discurso oficial em torno da crise est sendo conduzido no nvel do
encanador amador, que conserta um cano aqui e outro acol enquanto o poro
inundado. Todo tipo de manobra tcnico-financeira est sendo discutida, mas ningum
sabe o que resultar delas, porque no existe uma boa anlise terica do processo de
crise em curso.
Enquanto isso, os representantes mais reflexivos da teoria econmica esto admitindoabertamente a falncia de sua disciplina. O professor de Harvard e ex-economista-chefe
do FMI, por exemplo, disse recentemente ao jornal de negcios Handelsblatt que os
modelos econmicos altamente elegantes que dominaram a academia por dcadas
foram, na prtica, muito, muito mal-sucedidos. Quando o grande choque chegou, eles
se revelaram inteis.
>>RJ: O que causou esse total fracasso?
EL: Pensamos que isso remete s prprias questes que eles fazem de incio. A questofundamental da nossa era de crise na verdade bastante bvia: por que uma sociedade
com produtividade material absolutamente explosiva, que pode produzir riqueza
material infinitamente, tem de concluir que est aparentemente vivendo alm de suas
possibilidades? Podemos encontrar a resposta a esta questo em Marx desde que
faamos uma leitura crtica e no alinhada aos modelos interpretativos do marxismo
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tradicional ou do assim chamado renascimento de Marx que estamos vivenciando agora.
O Capitalde Marx no comea contrastando capital e trabalho, mas antes com a forma
elementar da sociedade capitalista: a mercadoria. Marx mostra que a contradio
bsica que explica a tendncia do capitalismo crise em geral e crise atual em
particular est imbricada na prpria mercadoria. Trata-se da contradio entre duas
formas de riqueza: riqueza material, tal como gerada na produo de bens de uso, e
riqueza abstrata, que categorialmente representada como valor e reificada na forma do
dinheiro.
Sob as condies da produo moderna de mercadorias, ou seja, em uma sociedade
capitalista, a riqueza material somente produzida na medida em que ela tambm possa
ser representada como valor, ou seja, na medida em que contribui para a valorizao do
capital. Portanto, a produo de bens sempre um meio para um fim externo: o fim em
si mesmo de transformar dinheiro em mais dinheiro. Sempre que esse fim no pode ser
atingido porque a valorizao do capital foi interrompida, a riqueza material tambm
pra de ser produzida. Bens so at mesmo destrudos porque no podem ser vendidos,
apesar do fato de que necessidades deixam de ser atendidas, em grande escala. Pessoas
tm de viver em barracas enquanto suas casas esto vazias, por exemplo, simplesmente
porque no podem mais pagar o seu financiamento.
>>RJ: O que caracteriza as crises econmicas na sociedade burguesa em comparao
com outros tempos?
Norbert Trenkle: Basicamente, podemos dizer que as crises no capitalismo no
surgem da escassez, mas da abundncia, e em meio abundncia. Essa uma
insanidade bsica que a economia no pode explicar, porque ela naturaliza a produo
de riqueza abstrata: ela apresenta a produo de mercadorias como um tipo de forma
inata da economia humana. Por esta razo, ela no presta nenhuma ateno s
contradies internas entre a produo de riqueza material e abstrata, e ela cega scausas mais profundas da crise em curso.
>>RJ: Que tipo de crise econmica esta que vivemos hoje?
EL: Marx faz uma distino entre crises gerais e crises especficas, dizendo que em
crises do mercado mundial, todas as contradies da produo burguesa emergem
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coletivamente; em crises especficas (especficas em seu contedo e extenso) as
emergncias so mais espordicas, isoladas e unilaterais1. Nenhuma crise na histria
do capitalismo mereceu tanto ser chamada de crise geral quanto a que se tornou visvel
desde 2008. Ela consiste em todo um sistema de crises parciais, que disparam umas s
outras, se sobrepe e se acumulam mutuamente.
Acima de tudo, duas camadas principais devem ser analisadas separadamente.
Primeiro, h uma crise estrutural de produo de valor real. Ela vem ocorrendo sob a
superfcie desde os anos 70, nunca foi superada, e na verdade no pode ser superada,
porque ela se deve ao fato de que a produtividade desde ento alta demais para manter
o processo de valorizao do capital funcionando. O capital tem que se reproduzir,
porque do contrrio deixa de ser capital, e para isso uma fora de trabalho sempre
crescente tem de ser utilizada para produzir mercadorias. Mas, ao mesmo tempo, acompetio acarreta uma incessante corrida pela produtividade, que em seu ncleo leva
substituio permanente do trabalho por capital imobilizado. Essa a contradio
interna fundamental no modo de produo capitalista, que ao final tem de se voltar
contra o prprio modo de produo. Especificamente, se a produtividade to alta que
grandes massas de fora de trabalho se tornam suprfluas, isto coloca em perigo a
prpria base da valorizao do capital. precisamente isto o que est no ncleo da crise
estrutural de fundamentos na qual o sistema capitalista global se encontra desde o fim
do boom do ps-guerra.
>>RJ: Qual o outro componente essencial da crise?
NT: A crise que acabamos de descrever foi abafada por dcadas pelo inchao dos
mercados financeiros. No nvel da sociedade como um todo, a acumulao de capital
voltou ao seu curso depois das crises dos anos 70, e a economia global voltou a crescer.
Porm, esse crescimento no se baseava mais na produo real de valor atravs da
explorao da fora de trabalho, mas atravs do crescimento explosivo de capital naindstria financeira. Como a indstria financeira colocou cada vez mais ttulos de
propriedade em circulao (dvidas, aes, derivativos), ela conseguiu colocar em
prtica o truque de transformar valor futuro, isto , valor que ainda no foi produzido e
1 MARX, Karl. Theories of surplus value, Part II. Prometheus Books, 2000, p. 725.
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talvez nunca seja produzido, em riqueza abstrata.
Mas essa reproduo do capital atravs da antecipao de valor, que h muito atingiu
propores astronmicas, entrou ela prpria em crise. Ainda que o crescimento
contnuo dos ttulos de propriedade, sem os quais o capitalismo no pode mais
sobreviver, esteja operando da mesma forma de sempre e esteja mesmo em acelerao,
isto ocorre apenas porque agora a tarefa est sendo executada por governos, e acima de
tudo por bancos centrais. Os estados aumentam as suas dvidas e os bancos centrais
garantem o excesso de crdito dos bancos privados a juro zero, enquanto
simultaneamente compram ttulos do governo que ningum mais comprar. De fato,
estamos lentamente atingindo os limites desse processo, e a crise do euro um exemplo
disso.
>>RJ: Como o papel dos bancos centrais mudou no curso da crise financeira?
EL: Acima de tudo, o termo capital fictcio denota o capital fictcio formado por atores
do setor privado; crditos de bancos comerciais junto aos seus tomadores de
emprstimo; e aes e ttulos em posse de companhias de seguro, fundos de
investimento ou investidores privados. Mas medida que as moedas perderam o lastro
do padro-ouro, h outro ator que se tornou importante na criao de capital financeiro
na indstria financeira: o banco central. A poltica monetria no nada sem a
influncia dos zeladores da moeda sobre a extenso pela qual o capital-dinheiro fictcio
criado. Isto pode acontecer indiretamente, por exemplo, ao definir o depsito
compulsrio que os bancos comerciais so obrigados a reter.
Mas h algo que muito mais importante. Os prprios bancos centrais esto entrando
nos mercados financeiros e de capitais como participantes do mercado, e acumulando
capital fictcio. A assim chamada criao de dinheiro consiste em bancos centrais
garantindo o crdito a bancos comerciais, o que significa comprar promessas de
pagamento. Quando os bancos centrais reduzem a taxa de juros sobre esse crdito, eleabastece a criao de capital fictcio. Aumentar a taxa prime tem o efeito inverso. Essa
poltica de juros foi essencial para superar as crises anteriores na era do capital fictcio.
Com ela foi possvel at mesmo detonar a acumulao privada de capital fictcio durante
a sria crise da nova economia na virada do milnio, com a drstica reduo da taxa
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prime.
A bolha imobiliria, que tambm reascendeu a enfraquecida economia real, foi
alimentada por crdito barato. Mas a crise atual parece diferente. Para evitar o colapso
do sistema financeiro, os bancos centrais tm que adquirir cada vez mais ativos txicos e
garantir crdito em grande escala onde ningum mais iria faz-lo, alm de manter uma
poltica de juro zero que fornecer a matria-prima para novas bolhas. Durante a fase de
crise aguda no outono de 2008 [primavera no Brasil], isso se limitou a substituir o
mercado interbancrio paralisado. Normalmente os bancos internacionais emprestam
uns aos outros o dinheiro que no esto usando em um piscar de olhos, mas eles tinham
to pouca confiana uns nos outros aps a quebra do Lehman Brothers que aquela
forma de liquidez secou, e os bancos privados receberam crdito apenas dos bancos
centrais.
O que ainda mais srio do que esse resgate de curto prazo o fato de que, enquanto
isso, os bancos centrais tm de comprar ttulos do governo em grande escala para evitar
que o mercado desses valores mobilirios entre em colapso, comeando uma reao em
cadeia de insolvncias governamentais. Mas a crise bancria ainda est latente, e os
bancos centrais esto assumindo esse risco, assim como esto fornecendo crdito de
longo prazo a bancos comerciais em apuros, que obviamente seria perdido em caso de
quebra.
Seja no Fed nos Estados Unidos ou nos bancos centrais europeus, isto est
transformando todos os bancos centrais em bancos podres. Eles esto injetando capital-
dinheiro loucamente no sistema bancrio, enquanto a qualidade de suas reservas de
moeda est se deteriorando rapidamente, porque elas so cada vez mais compostas por
ativos txicos inegociveis. De fato, os resgates de emergncia dos ltimos quatro anos
podem ter evitado o colapso do sistema financeiro, mas eles apenas adiaram a
necessidade de desvalorizao e, ao mesmo tempo, a socializaram.>>RJ: Qual a probabilidade de haver inflao?
NT: A estabilidade monetria ameaada de dois lados: de uma parte, os bancos
centrais esto injetando mais e mais capital-dinheiro no sistema bancrio. Enquanto os
bancos e seus clientes reutilizarem esse capital-dinheiro como capital, ou seja, enquanto
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comprarem ttulos de propriedade ou o investirem produtivamente, no h
consequncias srias para a estabilidade monetria. Isto muda, porm, quando ele flui
para mercados de bens, sendo tratado apenas como dinheiro extra contra as
mercadorias que esto sendo comercializadas. Quando isto ocorre em grande escala,
porque h escassez de investimentos de capital, o inchao na superestrutura financeira
ser traduzido em desvalorizao da moeda, o que significa inflao. Ao mesmo tempo,
como j indicamos, mais cedo ou mais tarde isso levar a uma desvalorizao aberta das
reservas monetrias. Assim, uma oferta superestendida de dinheiro se encontrar com
uma demanda reduzida.
Nesse contexto, a questo no se haver inflao, mas quando ela comear e que
caminho tomar. At aqui, a inflao, ao menos aqui na Alemanha, se limitou a metais
preciosos e terrenos, que funcionam como investimentos seguros no mundo dos bensmateriais. No dia a dia isso j visvel na forma de aluguis crescentes. Mas dificilmente
isto parar a.
De certa forma, isto implica um retorno ao estado da economia global de antes da real
decolagem do capital fictcio. Nos anos 70, os pases capitalistas centrais foram
caracterizados por um fenmeno que os economistas chamaram de estagflao: o
crescimento fraco foi acompanhado por uma inflao anual de cerca de 10%. Mas as
coisas ficaram muito maiores em comparao com aquele perodo. O crescimento fracopode levar a uma recesso aberta, e a inflao hiperinflao. Adiar a crise tem um
preo.
>>RJ: O que causou a crise atual?
NT: Quando olhamos para as causas, temos que distinguir entre as duas camadas da
crise. A crise de base da valorizao do valor , como j dito, o resultado da acelerao
do desenvolvimento da produtividade, que torna o trabalho cada vez mais suprfluo. A
terceira revoluo industrial tem um papel crtico nisso. Enquanto tambm houve fortesimpulsos para a racionalizao em fases anteriores do desenvolvimento capitalista, por
exemplo, nos anos 20 e 30, quando os mtodos de produo fordista foram
introduzidos, novos setores da produo industrial de massa estavam sendo explorados
concomitantemente, e eles exigiam trabalho adicional em massa. A expanso da
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produo de mercadorias a novos campos compensava os efeitos da racionalizao, de
forma que em ltima instncia mais trabalho era utilizado do que anteriormente.
Mas na terceira revoluo industrial, esse mecanismo compensatrio no est mais
funcionando, porque a reestruturao do processo de produo baseada na tecnologia
da informao implica transferir a fora produtiva de uma sociedade para o nvel do
conhecimento, ou, mais precisamente, para a aplicao do conhecimento na produo.
Os fundamentos da valorizao do capital, em consequncia, so colocados em xeque,
porque isso leva ao deslocamento absoluto da fora de trabalho em todos os setores da
produo de valor, o que no pode mais ser compensado pelo desenvolvimento de novos
setores.
>>RJ: Ento o que capital fictcio, e qual o seu papel na crise atual?
EL: O capital fictcio essencial para o entendimento da segunda camada da crise.
Trata-se de um conceito que Marx introduziu para distingui-lo de capital produtivo. Ele
mostrou que o capital, em seu curso de desenvolvimento, no apenas transforma a
produo de batatas, ao, txteis, etc. em produo de mercadorias, mas que o prprio
capital-dinheiro tambm se torna uma mercadoria comercializvel.
O que acontece nesse processo espantoso. O capital inicial subitamente ganha uma
existncia dupla, como resultado de sua venda. Por um lado, o capital inicial agora
possudo por um tomador de emprstimo ou companhia emissora de aes, mas ao
mesmo tempo o emprestador ou acionista possui um espelho do capital inicial, ou um
ttulo de propriedade (ttulo de dvida, ao, etc.), que representa um crdito pecunirio.
Essa duplicao no uma mera fico, como o termo capital fictcio parece sugerir.
Ela no existe apenas na cabea das pessoas. Ela adquire uma existncia social objetiva
na forma de valores mobilirios, enquanto o ttulo de crdito parecer resgatvel. Este
um crdito para um valor futuro e representa a riqueza capitalista, exatamente da
mesma forma que o valor, que extrado da fora de trabalho pelo capital produtivo.
No tempo de Marx, esse tipo de aumento de capital atravs da capitalizao antecipada
de valor futuro era marginal, a ponto de ser irrelevante para o desenvolvimento de longo
prazo da acumulao de capital, mas ao longo dos ltimos trinta anos, ela se tornou uma
fonte real de riqueza capitalista. Para manter a produo capitalista apesar do fato de
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que o trabalho se torna cada vez mais suprfluo, devido aos ganhos de produtividade,
pores cada vez maiores de valor futuro, fictcio, foram injetadas no presente. Como
resultado, a crise estrutural da valorizao foi adiada, por enquanto.
>>RJ: E qual o cerne da questo?
EL: Infelizmente, um sistema baseado na antecipao de produo de valor futuro s
pode funcionar como um esquema de pirmide, e como tal ele pressionado de dois
lados: de uma parte, quanto mais tempo essa forma insana de capitalismo continua
reprocessando a si mesma, mais rpido os ativos txicos de um futuro capitalista que j
foi consumido sero empilhados at o cu. As dvidas do passado no podem
desaparecer sem consequncias. Ou elas so refinanciadas, ou o capital social ser
destrudo pela nulificao do capital fictcio.
Por outro lado, a mar crescente dos ttulos de propriedade s pode encontrar mercado
se de alguma forma parecer plausvel que a promessa de pagamento e a perspectiva de
lucros de parte dos tomadores de emprstimo e de outros vendedores de ttulos de
propriedade possam ser cumpridas. Quando isso no pode mais ser garantido, a bolha
estoura e parece haver uma crise financeira, quando na realidade a nica coisa que
fracassou o mecanismo que tornou possvel que a crise estrutural da valorizao fosse
adiada por dcadas. Se voc entende issso, voc sabe que a crise atual muito mais
dramtica do que geralmente se percebe. Trata-se de uma crise sistmica no sentido
mais estrito do termo: uma crise que genuinamente coloca em questo o sistema
capitalista de produo de riqueza.
>>RJ: Quais sero as consequncias das polticas de austeridade que esto sendo
executadas pelas classes poltica e financeira como soluo para a crise?
NT: Duas coisas tm de ser mantidas separadas quando falamos sobre medidas de
austeridade. Austeridade no sentido de estabelecer metas oficiais, especificamente como
um caminho para o equilbrio oramentrio, uma Fada Morgana. Assim, novas dvidas
tm de ser geradas, porque os estados ficaram sem escolha, a no ser injetar
continuamente muitos bilhes no sistema bancrio e financeiro para adiar o seu colapso
o mais que puderem. Eles fazem isso porque haver consequncias catastrficas caso
no o faam. Mas esses bilhes no podem vir da criao de valor real. Eles s podem
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sair da repetida antecipao de valor futuro.
Ento os estados tm de fazer tudo o que est ao seu alcance para assegurar a sua
credibilidade, e para faz-lo como se o seu interesse fosse o de equilibrar os seus
oramentos no longo prazo. E exatamente isto o que eles esto demonstrando, atravs
de polticas brutais de austeridade em relao a toda esfera social que seja considerada
puro estorvo da perspectiva do capital fictcio: sistemas de bem-estar social, servios
pblicos, educao, etc. A verso oficial desse relato se revela bastante bem nas
distines que eles fazem entre setores que so sistemicamente relevantes e
sistemicamente irrelevantes. No necessrio explicar que as consequncias para a
maior parte da populao e para a produo de riqueza material so devastadoras. Basta
olhar para a Grcia e a Espanha, onde o que est sendo executado exatamente o que
mais cedo ou mais tarde ameaar os pases que ainda no foram to seriamenteafetados pelas consequncias da crise.
>>RJ: Por que eles esto optando por essa poltica de empobrecimento?
NT: Eles no esto fazendo isso, por exemplo, para criar uma sociedade sustentvel,
ou para evitar deixar dvidas excessivas para nossos filhos, como coloca o jargo
poltico hipcrita, pateticamente falso. Eles o fazem apenas para continuar a
acumulao de capital fictcio. O preo disso continua aumentando, entretanto, porque
no se trata mais de uma questo de manter funcionando a mquina de produo de
riqueza abstrata sugando valor futuro, mesmo quando a mquina paralisada pela alta
produtividade. Acima de tudo, ao contrrio, o que deve ser evitado o colapso das
montanhas de promessas de pagamento irresgatveis. Por isso, a maior parte do capital
fictcio recm criado flui diretamente de volta para o setor financeiro, e cada vez menos
entra em circulao na economia real.
Como consequncia, fica claro que a poltica de austeridade est atingindo um ponto
onde ela est se tornando contraprodutiva mesmo para o objetivo estreito de acumularcapital fictcio. Onde ela levada ao extremo, como agora na Grcia e na Espanha, ela
est conduzindo diretamente depresso econmica e isto tambm afeta o sistema
bancrio e financeiro. Lentamente, isto est ficando claro at mesmo entre os linha-dura
da austeridade alem e europeia. Por isto, e, claro, por causa dos protestos de massa,
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e em ltima instncia apenas fortalecem o capital. Isto tambm surge em Marx onde
ele tem algo completamente diferente a dizer sobre as crises peridicas. As crises so
sempre apenas solues momentneas e forosas para as contradies existentes. Elas
so erupes violentas, que por um tempo restauram o equilbrio perturbado3. Para ele,
o essencial a constante intensificao e acumulao de novas contradies.
O nosso argumento no livro toma diretamente a ideia marxiana de um limite histrico, e
o localiza na terceira revoluo industrial. O fato de que a destruio de capital em
tempos de crise restaura a lucratividade do capital remanescente, e portanto pode
tornar-se o ponto de partida para um impulso renovado de acumulao, no uma
resposta ao problema do limite histrico, mas estritamente para as crises peridicas. Ele
assume que um novo impulso sustentado de valorizao de capital pode comear depois
que a supercapacidade for corrigida. Mas isso exatamente o que fundamentalmentedescartado sob as condies da terceira revoluo industrial.
>>RJ: Vocs afirmam que as respectivas vitrias do keynesianismo e do
neoliberalismo correspondem a diferentes fases da dinmica da valorizao
econmica no capitalismo. Vocs podem explicar isso?
NT: O relativo sucesso do keynesianismo durante o boom do ps-guerra estava ligado a
condies estruturais especficas que estavam fora do seu controle, o que significa que
ele no as criou, e no poderia cri-las. As polticas de regulao e de redistribuio
eram inteiramente funcionais, medida que o emprego industrial massivo se expandiu e
atuou como o motor de um boom autossustentado de valorizao de capital. A expanso
de sistemas de bem-estar social e o aumento real dos salrios no apenas contriburam
para a pacificao social, mas tambm estabilizaram a escalada econmica, porque
fortaleceram o consumo de massa. A expanso da infraestrutura pblica teve
importncia no mnimo equivalente. Sem isso, a industrializao total e a
mercantilizao de tudo na sociedade no poderiam funcionar. No se poderia dirigirautomveis sem uma densa rede de estradas, a eletrificao das casas exigia o
fornecimento de energia, e um sistema educacional amplo e de boa qualidade se fazia
necessrio para educar uma fora de trabalho qualificada.
3 MARX, Karl. Capital. New York: International Publishers, 1967, vol. III, p. 249.
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Ento, o Estado exerceu um papel central, e isto alimentou a ideia de que ele tambm
estava na posio de manter o desenvolvimento econmico, gui-lo, e estabiliz-lo no
longo prazo. Mas quando o boom fordista do ps-guerra chegou ao fim, isto se mostrou
uma iluso, porque, medida que a valorizao do capital foi paralisada, quando cada
vez mais trabalhadores foram demitidos devido ao rpido aumento da produtividade,
no foram apenas as fontes financeiras que secaram. Ainda mais srio foi o fato de que
ele no conseguiria iniciar um novo surto sustentado de valorizao de capital, apesar
do massivo estmulo dos financiamentos e pacotes de crescimento.
Da nossa perspectiva, no h nada de notvel nisso, porque, se o Estado pode intervir
nos mecanismos de mercado at certo ponto, ele no tem acesso ao processo
fundamental que determinado pela contradio interna do capitalismo. Para colocar
de outra forma, o keynesianismo tornou-se intil frente racionalizao geral que seseguiu terceira revoluo industrial, que em ltima instncia erodiu os fundamentos
da valorizao do capital. Toda tentativa de tirar a economia real da estagflao
fracassou miseravelmente.
Esta foi a razo mais profunda da vitria do neoliberalismo. Se tampouco tinha um
plano para ressuscitar a valorizao do capital, ele estabeleceu as bases para que a
dinmica econmica se transferisse para a indstria financeira, e consequentemente
para adiar a crise pelas trs dcadas seguintes. Os fatores crticos aqui foram, de umlado, a liberalizao consistente dos mercados financeiros e, de outro, o aumento da
dvida pblica do governo Reagan, que de certa forma serviu como financiamento inicial
para a acumulao de capital fictcio em enorme escala. A destruio de estruturas
fordistas atravs da desestruturao de sindicatos, etc. fez o resto, porque ao mesmo
tempo a privatizao do setor pblico abriu novos campos para o investimento
financeiro, por exemplo a privatizao de sistemas de previdncia.
>>RJ: Qual o papel da revoluo da tecnologia da informao nisso tudo?
NT: Da mesma maneira que o keynesianismo apoiou a expanso da produo industrial
em massa, o neoliberalismo se tornou o padrinho da indstria financeira. uma
ironia da histria que, como resultado, isto simultaneamente tenha ajudado no
desabrochar da terceira revoluo industrial. Por si mesma, ela teria se sufocado em sua
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prpria produtividade. Mas a acumulao de capital fictcio criou o cenrio necessrio
para a ampla instalao da tecnologia da informao. Tornou-se possvel suplantar
temporariamente os poderosos efeitos da racionalizao, que levaram a um massivo
deslocamento do trabalho vivo de setores do ncleo da valorizao, tomando valor
futuro. O resultado, porm, a progressiva eroso da produo de valor que s agora
comea a ser perceptvel em toda a sua extenso, na crise do capital fictcio.
>>RJ: Em seu livro, vocs comparam a economia a uma escola de arte que prescreve
a borracha como a nica ferramenta para a confeco de retratos. O que isso
significa?
EL: Isto nos leva de volta questo do incio da entrevista. A economia, no importa a
escola, no pode entender a crise, porque ela oblitera a distino bsica entre as duas
formas de riqueza: riqueza material e riqueza abstrata. Os captulos iniciais dos livros de
teoria econmica sempre dizem que o objetivo da economia a satisfao das
necessidades e a tima proviso de bens para as pessoas, e que somente a economia de
mercado sob condies avanadas de diviso do trabalho pode atingir esse objetivo.
Ento, o funcionamento da economia de mercado descrito de acordo com o princpio
da troca simples de mercadorias, da mesma maneira que o mercado na praa central de
uma vila idealizada, onde sapatos so trocados por porcos e ovos por novelos de l. Isto
sistematicamente exclui o que totalmente bvio, ou seja, que sob as condies
capitalistas, produz-se apenas o que transformar dinheiro em mais dinheiro, e que o
objetivo da produo a reproduo de riqueza abstrata, e a mercadoria simplesmente
um meio para manter esse sistema autorreferente em operao. Para colocar em outros
termos: a economia usa a borracha logo no nvel de suas premissas bsicas, e apaga o
que especfico sobre o modo capitalista de produo. No surpreende, portanto, que
seja incapaz de reconhecer as causas da crise.
>>RJ: Vocs consideram a crtica personificada dos especuladores e banqueiros como
mecanismos antissemitas e racistas. Por qu? A crtica dirigida a banqueiros desde
2008 no foi construda sobre chaves antissemitas, ao contrrio dos anos 20, quando
caricaturas eram ilustradas com imagens antissemitas. Ou algo me escapa?
Para comear, nos distanciamos fundamentalmente de toda crtica personificada, que
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atualmente est fora de controle de todas as formas possveis. A crise do capital fictcio
tambm uma crise do euro. E como ela vem sendo considerada? Ela causada pelos
gregos preguiosos, que teriam desperdiado o nosso dinheiro suado. Essa
personificao no apenas ignora de maneira insana o fato de que uma sociedade foi
empobrecida em meio abundncia, simplesmente porque toda riqueza tem de passar
pelo buraco de agulha da produo de mercadorias. O que pior que a raiva em
relao a essa situao miservel projetada sobre sujeitos coletivos especficos,
construdos, de forma que agora se abriu uma temporada de caa.
Colocar a culpa em banqueiros e especuladores em si mesmo apenas mais uma
forma dessa personificao. Mas nisso h algo mais que ressoa, que muitas vezes
permanece inconsciente. Essa personificao particular em grande medida congruente
com um modelo bsico de antissemitismo, que constri uma oposio entre capitalprodutivo e capital acumulador de dinheiro e o ltimo identificado com os
judeus. Podemos ver novamente esse modelo hoje na ideia generalizada de que a
economia real foi destruda por alguns especuladores gananciosos, e de que o
importante que lhes sejam impostos limites.
Isso no significa que todos os que atacam banqueiros e especuladores sejam
antissemitas. O que isto significa que esse modelo projetivo de processar a crise
totalmente compatvel com a mania antissemita. No coincidncia, portanto, que alinguagem metafrica deslize repetidamente nessa direo, por exemplo no notrio
termo gafanhoto, que o poltico social-democrata alemo Franz Mntefering
popularizou, colocando-se como um crtico do capitalismo. A frase eles nos atacam
como gafanhotos vem do filme de propaganda nazista Jud S, e no necessrio
explicar que os gafanhotos eram animais gananciosos. Outras imagens tambm so
recorrentes, como a popular representao do capital financeiro como um polvo com o
mundo em seus tentculos. Ela tambm aparece de forma quase idntica na propaganda
antissemita dos nazistas. Temos que ser muito cuidadosos com isso. Ainda h um tabu
na Alemanha contra adentrar a agitao antissemita aberta, mas a tendncia que isto
se torne perceptvel, e isto muito perigoso.
>>RJ: Que tipo de prxis poltica e social emerge, concretamente, de seu modelo
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7/28/2019 LOHOFF Ernst TRENKLE Norbert Entrevista
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[-] www.sinaldemenos.orgAno 5, n9, 2013
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terico?
NT: Bem, antes de qualquer coisa uma rejeio enftica e fundamental da poltica de
austeridade. completamente insano afirmar que vivemos alm de nossas
possibilidades e que temos que apertar os cintos, frente aos nveis de produtividade
altssimos. O contrrio verdadeiro. Se fizssemos uso integral das possibilidades das
foras produtivas modernas, toda pessoa do mundo poderia ter uma boa vida, e teria de
gastar apenas uma frao de seu tempo de vida produzindo bens materiais.
A nica razo pela qual isso no ocorre porque a empresa capitalista, obviamente,
obedece a sua compulso para criar riqueza abstrata, porque ela adere lgica de que a
riqueza material s reconhecida quando representa valor. E isso no simplesmente
algum tipo de oportunidade perdida ou uma possibilidade que passou despercebida. A
aderncia lgica da produo de valor no estado atual da produtividade
simplesmente catastrfica, porque leva excluso de um enorme nmero de pessoas
suprfluas, que so sacrificadas no altar do imperativo sistmico de manter o fluxo de
capital fictcio do futuro para o presente.
Mas se nos livrarmos da ideia aparentemente bvia de que os bens materiais s podem
ser produzidos como mercadorias, ento se abrem perspectivas totalmente novas.
Especificamente, poderamos perguntar como e em que forma o potencial existente
poderia ser usado de maneira racional em favor da riqueza geral, sem ter de pensar
sobre viabilidade financeira, viabilidade de mercado ou lucratividade. Ao contrrio,
teramos que reivindicar a perspectiva da riqueza material e das necessidades concretas.
Isso j acontece nas prticas dos movimentos sociais, por exemplo quando aes de
despejo so evitadas porque as pessoas no vem por qu algum teria de viver na rua
ou em uma barraca simplesmente porque no pode mais pagar a sua prestao ou
aluguel, ou quando as pessoas simplesmente dizem no privatizao de instituies
pblicas na esfera social e cultural. So passos iniciais que apontam na direo correta.Quando eles esto ligados a uma crtica radical da forma abstrata da riqueza, abrem-se
perspectivas totalmente novas de emancipao social.
[Publicado originalmente em Telepolis, em trs partes, em 1o, 2 e 6 de agosto de 2012. Traduzido porDaniel Cunha a partir da verso inglesa traduzida por Joe Keady (www.krisis.org). O original alemo foiconsultado como referncia. Ttulos originais: Alle Zentralbanken sind dabei, sich in Bad Banks zu
verwandeln (parte 1); Die Wirtschaftskrise und das fiktive Kapital (parte 2) e Der Neoliberalismuswurde zum Paten der Finanzindustrie (parte 3).]
http://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustriehttp://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustriehttp://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustriehttp://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustriehttp://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustriehttp://www.krisis.org/2012/der-neoliberalismus-wurde-zum-paten-der-finanzindustrie