LONGA JORNADA NOITE ADENTRO - Texto...

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LONGA JORNADA NOITE ADENTRO EUGENE O’NEILL

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LONGA JORNADA

NOITE ADENTRO

EUGENE O’NEILL

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Quando Eugene O’Neill terminou Longa Jornada Noite Adentro, em 1941, decidiu que a peça não poderia ser lida nem montada senão vinte e cinco anos após a sua morte. Indagado sobre as razões dessa exigência, O’Neill respondeu apenas que uma das personagens ainda vivia. Raros amigos tiveram o privilégio de ler os originais, antes que eles fossem enviados para os cofres da Randon House, a editora que publicava as obras de O’Neill, e para a Biblioteca da Universidade de Yale. Mas a vontade do autor não foi cumprida.

Em 1956, três anos depois de sua morte, a viúva de O’Neill, Carlotta Monterey, liberou a publicação e a montagem da peça. Soube-se então por que o dramaturgo não desejava que a Longa Jornada Noite Adentro viesse a público. Com essa autobiografia dramática, como tantos a chamariam, ele ressuscitava seus mortos o pai, a mãe, o irmão —, traçando um comovente retrato da família O’Neill, no qual o autor se identificava com o personagem Edmund. Em 1941, ao concluir a peça, apenas Edmund-Eugene estava vivo.

Apesar de seu caráter autobiográfico, Longa Jornada Noite Adentro é muito mais do que um retrato do artista quando jovem. Ainda que O’Neill tenha reproduzido na obra parte de sua vida, também é certo que determinados aspectos da realidade foram omitidos e outros simplesmente inventados.

A aventura desse homem singular chamado Eugene O’Neill, tuberculoso na juventude, dominado pelo medo de se tornar um alcoólatra como o irmão, filho de uma mulher que se abandonou ao vício das drogas e de um ator famoso que aviltou seu talento em peças de sucesso comercial, tem paralelos muito estreitos com a realidade de Longa Jornada Noite Adentro. Mas esse destino particular, ao ser recriado por meio do teatro, ganhou dimensão maior — graças, precisamente, ao caráter inconfundível das experiências pessoais do autor —, transfigurando-se e revestindo-se de um sentido comum e universal.

UM LAR PROVISÓRIO

A Barret House era uma pensão familiar situada na Broadway, em Nova York, onde se hospedavam artistas de teatro, como James O’Neill, que, ao regressar de suas excursões pelo país, fazia daquela casa o seu lar. Ali, no quarto 236 do terceiro andar, nasceu Eugene Gladstone O’Neill, na tarde de 16 de outubro de 1888.

James O’Neill, católico de origem irlandesa, foi um grande ator que se perdeu. Poderia ter sido maior que o shakespeariano Edwin Booth (1833-1893), pois, na opinião deste, que o vira como protagonista em Otelo, James interpretava melhor que ele o famoso personagem. Mas James não soube aproveitar seu talento e se tornou apenas um bom ator, dedicando a maior parte de sua vida a representar Edmund Dantes em O

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Conde de Monte Cristo, percorrendo a América de costa a costa e ganhando uma fortuna em cada temporada.

Alguns biógrafos relacionam essa mudança de rumo com o seu casamento com Ella Quinlan, filha de abastado comerciante, uma jovem frágil, delicada e muito religiosa. Para casar-se com o ator, Ella foi obrigada a romper com seu meio social e sua família. James tinha adoração pela mulher e, para compensá-la do que havia perdido, construiu casas requintadas que ela nunca pôde habitar.

Em 1878, nasceu James O’Neill Jr., o primeiro filho do casal. Foi internado muito cedo no Colégio Notre-Dame, uma aristocrática escola católica. Quando Eugene nasceu James tinha dez anos e só viu o irmão três meses depois, durante uma visita em que os pais levaram o bebê ao internato.

Entre James Jr. e Eugene, Ella tivera outro filho, Edmund, que morrera ainda bebê, na casa dos avós, enquanto a mãe acompanhava o marido numa temporada pelo interior. Ella jamais se refez do sentimento de culpa por ter abandonado Edmund. Além do mais, era uma mulher sensível e sofria intensamente com a falta de raízes que ligassem a família O’Neill a uma casa, a uma vizinhança, a uma paróquia.

Desde o parto de Eugene, Ella descobrira que a morfina, que fora receitada pelo médico para lhe aliviar as dores, também diminuía seu nervosismo e sua insatisfação permanente. Procurou esconder do marido esse vício e quando James descobriu já era muito tarde.

Enviado para um internato católico em Nova York. o Mount Saint-Vincent, em 1895, Eugene passou a ver seus pais muito raramente. Era um menino triste e quieto, mergulhado numa solidão que se acentuava com a falta de calor humano das freiras e com o sentimento de rejeição em relação à família.

Em 1900, Eugene saiu do Saint-Vincent e foi para o De La Salle Institute, em Nova York. No segundo ano de sua permanência no La Salle, a mãe resolveu interná-lo novamente. O menino esforçou-se nos estudos, passou de ano com excelente média, mas a mãe sentia que era insuportável viver com o filho, cujos olhos pareciam reprovar constantemente seus atos. Ela acabou convencendo o marido, e Eugene voltou a ser internado, em 1902, na Academia Betts, em Stanford, um colégio laico.

Nessa fase ocorre sua revolta contra a religião católica e Eugene estreita sua ligação com o irmão James, que passa a ser uma espécie de tutor, introduzindo o adolescente no “outro lado” do mundo teatral, do qual os pais tinham procurado preservá-lo durante a infância.

Ao terminar o curso secundário, no ano de 1906, Eugene entrou na aristocrática Universidade de Princeton, no leste. Sentiu imediatamente que estava num ambiente tradicional, esnobe e, sobretudo, pouco estimulante intelectualmente. Nove meses mais tarde, era expulso, por atirar uma garrafa contra a janela da casa onde vivia Woodrow Wilson (1856-1924), presidente da Universidade e, durante a Primeira Guerra Mundial, presidente dos Estados Unidos.

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Em Nova York, Eugene encontrou um clima de tensão muito grande na família, pois James, também expulso de Notre-Dame, no ano anterior, não conseguia se definir profissionalmente, entregando-se a bebedeiras e farras sem fim. Tentara a carreira de repórter e depois resolveu ser ator.

Eugene, por sua vez, foi trabalhar como escriturário numa empresa de promoções. O emprego era tedioso, mas Eugene passava a maior parte do tempo numa livraria da 6.ª Avenida, cujo proprietário, Benjamin Tucker, era um dos mais conhecidos membros do movimento anarco-individualista americano. Eugene absorvia suas idéias, seus livros, suas palavras de ordem; mas a contribuição mais importante de Tucker foi revelar a O’Neill a obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Assim Falava Zaratustra, a grande obra profética de Nietzsche, acabou por se tornar o “catecismo” de O’Neill, a resposta que ele desejava contrapor ao primeiro dos seus catecismos: o católico. Naquela fase de sua vida anárquica, o pensamento de Nietzsche não era apenas uma refutação ao nível religioso, mas a confirmação de um estado de espírito, uma disposição em relacão à vida que era a sua. “Deves trazer o caos dentro de ti para fazer nascer uma estrela bailarina.”

Um dia, em 1909, Eugene comunicou à família que ia se casar. Na verdade, a moça, Kathleen Jenkins, já estava grávida. O filho nasceu pouco tempo depois do breve e tumultuoso casamento, quando O’Neill não se encontrava mais nos Estados Unidos. Havia ido para Honduras, em busca de “novas oportunidades” ou, segundo a opinião unânime de seus biógrafos, para fugir dos problemas. O casamento foi um erro e o casal divorciou-se oficialmente em 1912.

Vítima da febre amarela, Eugene teve que voltar para Nova York. O pai tentou então fazer dele uma espécie de assistente de diretor, em sua companhia de teatro; mas em três meses de excursão, Eugene não demonstrou o menor interesse pelo trabalho. Lia muito, principalmente relatos de viagem de Jack London (1876-1916), Josef Conrad (1857-1924) e Rudyard Kipling (1865-1936). Um dia resolveu partir para Buenos Aires, no navio Charles Racine, que saiu do porto de Nova York na primavera de 1910.

Em Buenos Aires, trabalhou algum tempo num frigorífico e numa fábrica de máquinas de costura. Durante os períodos de desemprego ia aos bares do cais, freqüentados por marinheiros que contavam suas aventuras, falavam de amores distantes, bebiam e jogavam muito. Em 1911 voltou para Nova York, engajado como marinheiro no Ikalis.

Ao chegar, não procurou imediatamente a família nem demonstrou curiosidade em conhecer o filho, Eugene Gladstone O’Neill Jr. Sua primeira providência foi alugar um quarto numa pensão que ficava em cima do Jimmy-the-Priest, conhecido bar de marinheiros. O bar e a pensão eram freqüentados por estivadores, prostitutas, contrabandistas, desempregados e anarquistas. De vez em quando Eugene aceitava um emprego em algum barco-correio ou navio de longo curso. O mar havia se tornado para O’Neill um símbolo de liberdade e conhecimento.

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Mas afinal, cansado e sem dinheiro, foi ao encontro da família, em Nova Orleans. O pai achou que estava na hora de arranjar um emprego para o filho e convidou-o para fazer uma ponta em O Conde de Monte Cristo. Não havia alternativa e Eugene seguiu a companhia até o extremo oeste dos Estados Unidos. Na volta, ficaram algum tempo na casa de New London, em Connecticut.

Foi ali, no mês de agosto, que O’Neill começou a trabalhar como repórter no Telegraph. O proprietário do jornal, Frederick Latimer, interessou-se pelos escritos de Eugene e percebeu que ele não tinha apenas talento literário, mas gênio. Naquela época Eugene escrevia muito, apesar do precário estado de saúde que acabou por levá-lo para um sanatório de tuberculosos. No sanatório, durante o inverno e a primavera de 1912-13, O’Neill sentiu que escrever para teatro era a melhor forma de expressar o que sentia em relação à vida.

A decisão de se tornar um dramaturgo não surgiu subitamente. Na verdade, O’Neill não sabia de teatro apenas o que o velho James lhe ensinara. Lera toda a obra de William Shakespeare (1564-1616), assistira a numerosas montagens dos autores gregos e elisabetanos, conhecia alguma coisa do teatro europeu do século XIX. Desde 1911, seu interesse crescera muitíssimo e ele se convertera num espectador assíduo dos teatros de Nova York. Era um grande admirador de Ibsen (1828-1906) e, sobretudo, de Strindberg (1849-1912).

Em 1914, quando entrou para a Oficina Dramática do professor George Peirce Baker, em Harvard, O’Neill já havia escrito várias peças de teatro, como Uma Esposa para Sempre (A Wife for Life) e A teia de Aranha (The Web). Essas e outras obras, algumas das quais incluídas no volume Sede e Outras Peças em Um Ato (Thirst and Other One-Act-Plays), seriam renegadas mais tarde pelo autor, que as considerava de má qualidade. Dessa fase, apenas Sede, Rumo a Este para Cardiff (Bound East for Cardiff) e Névoa (Fog) chegaram a ser montadas.

O’Neill permaneceu no curso do professor Baker apenas oito meses. Em junho de 1915 abandonou Harvard. Três meses depois estava morando em Greenwich Village, Nova York, onde encontrou um bar irlandês, o Hell Hole, sucedâneo do velho Jimmy-thePriest. O Hell Hole também era freqüentado por marginais, só que de uma espécie diferente a dos intelectuais outsiders: jornalistas, atores, anarquistas, políticos de esquerda.

No Village, O’Neill conheceu Terry Carlin, cuja prosa brilhante conquistara algumas amizades, como a de Jack London e Theodore Dreiser (1871-1945), o jornalista John Reed (1887-1920) e sua mulher Louise Bryant. Durante o verão de 1916, O’Neill, Carlin, John e Louise foram para Provincetown, uma cidade praiana de Cape Cod, Massachusetts, que se tornou decisiva na vida de O’Neill.

Desde o ano anterior, um grupo de teatro do Village, os Players, fazia ali suas montagens de verão. O’Neill e seus companheiros ligaram-se ao grupo, que ficou logo interessado na encenação de Rumo a Leste para Cardiff. Duas semanas mais tarde, a peça era montada com sucesso. A experiência de Provincetown animou o grupo a se

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estabelecer, de maneira regular, num teatro em Nova York, o Playwrights Theatre, cujo nome foi sugerido por O’Neill. O objetivo do grupo era a montagem de peças novas de autores americanos.

Entre 1917 e 1918, O’Neill escreveu várias peças em um ato, das quais as mais significativas foram reunidas depois no volume S. S. Glencairn: A Longa Viagem de Volta (The Long Voyage Home), Na Zona (In the Zone), A Lua das Caraibas (The Moon of the Caribees). E foi no outono de 1917 que Eugene começou a se projetar como dramaturgo. Algumas de suas peças foram publicadas a partir desse ano, na revista Smart Set. Os Washington Square Players interessaram-se por Na Zona e montaram-na em outubro daquele mesmo ano, enquanto A Longa Viagem de Volta era encenada pelos comediantes de Provincetown.

Em 1918, O’Neill casou-se com Agnes Boulton, jovem escritora que ele conhecera no Hell Hole, em fins de 1917. Mas o casamento fracassou. Eugene precisava de uma esposa que também fosse mãe e secretária, e Agnes estava muito empenhada em seu próprio trabalho. Haviam feito um acordo de não ter filhos, mas Agnes acabou dando à luz dois: Shane, que nasceu em 1919, e Oona, em 1925. Separaram-se em 1926.

Apesar de suas grandes desavenças com Agnes, O’Neill criou nesse período a maior parte de suas obras-primas, tendo mesmo dedicado a ela sua primeira peça em três atos Além do Horizonte (Beyond the Horizon). A peça foi apresentada no Morosco Theatre, na Broadway, em 1920, e lhe valeu o Prêmio Pulitzer, em junho desse mesmo ano.

Eugene O’Neill estava definitivamente lançado. Além do Horizonte fazia sucesso na Broadway; Chris Christopherson era aplaudida em Atlantic City; Exorcismo (Exorcism), uma peça experimental, estreava no Village; O’Neill escrevia Ouro (Gold) e se preparava para retomar o tema de Chris Christopherson e criar Anna Christie, a história da regeneração de uma prostituta pelo amor. Anna Christie estreou em 1921 e O’Neill recebeu seu segundo prêmio Pulitzer.

Grande parte dos dramas escritos por O’Neill abordava a condição de alguns homens que ele conhecia bem, especialmente aqueles ligados ao mar. O desenvolvimento dramático de suas peças baseava-se no naturalismo cênico, mas a grande novidade de sua obra não estava na forma e sim nos temas, na rudeza de seus personagens, na devassa que ele fazia de seus pensamentos e sentimentos mais íntimos. Desde o início, O’Neill permeou suas obras de uma ironia trágica. Quase sempre, os homens alimentavam-se de sonhos que não conseguiam realizar, pois os caminhos escolhidos conduziam ao fracasso.

Se, por um lado, os personagens de O’Neill não podem viver sem ilusões, também é certo que sofrem com a impressão de que jamais alcançarão seus objetivos. As ilusões constituem a perdição e a redenção dos personagens, pois O’Neill afirma que sonhar é uma das condições para viver. Devemos alimentar nossos sonhos, mesmo sabendo que será difícil concretizá-los. Para O’Neill, “o único sucesso está no fracasso” e qualquer

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homem que se surpreenda um dia pensando não haver mais o que perseguir está acabado.

O Imperador Jones (The Emperor Jones), escrita em 1920 e levada à cena no mesmo ano pelos Provincetown Players, tinha pouca relação com as outras peças de O’Neill. Na verdade, O Imperador Jones foi um marco, não só na história de O’Neill como na do próprio teatro americano. A peça abandona os moldes naturalistas, para introduzir o expressionismo na obra de O’Neill e no teatro americano. O protagonista é um negro, Brutus Jones, carregador de malas numa estação ferroviária, que comete um assassinato e foge de navio para uma ilha das Índias Ocidentais, onde acaba se tornando imperador de uma tribo. Jones explora o povo, faz fortuna, até que a tribo se revolta e ele se vê obrigado a fugir, refugiando-se na floresta, onde finalmente é morto.

Em 1921, O’Neill parecia interessado unicamente no seu trabalho. O Primeiro Homem (The First Man), A Fonte (The Fountain) e O Macaco Peludo (The Hairy Ape) foram escritas nesse ano. O Macaco Peludo era a mais brilhante e ofuscou as duas primeiras. A Fonte, na qual O’Neill dramatiza o idealismo de Ponce de Léon ao buscar a fonte da juventude, só chegou à cena em 1925. O Primeiro Homem estreou em março de 1921 e foi uma das produções menos felizes do autor. Durante os ensaios, em fevereiro, O’Neill recebeu um telegrama de James, que se encontrava na Califórnia com a mãe, comunicando que ela estava muito doente. Poucos dias depois ela morreria.

No dia anterior à morte de Ella, O Macaco Peludo tinha estreado no Playwrights Theatre, com um sucesso fantástico. Um mês depois, iniciava sua carreira na Broadway. O papel de Milkdred era interpretado então por uma bela atriz, Carlotta Monterey, que substituíra Mary Blair. O primeiro contato de Carlotta com O’Neill nada teve de excepcional e ele mal se deu conta de sua presença. Quando voltaram a se ver, cinco anos mais tarde, o reencontro foi decisivo na vida de ambos.

Em 1923, O’Neill escreveu Acorrentados (Welded), na qual abordou o tema do casamento, analisando um casal em sua relação de amor e ódio. Nesse mesmo ano escreveu outra peça, Todos os Filhos de Deus Têm Asas (All God ‘s Children Got Wings), que tratava de um tema até então inédito nos palcos americanos: o problema conjugal entre uma branca e um negro. Em novembro desse ano, O’Neill perdeu o irmão James, que passara vários meses numa clínica tentando se recuperar do alcoolismo.

Desejo sob os Olmos (Desire Under the Elms) foi o grande êxito de 1924. Nessa obra evidenciava-se nitidamente a influência da tragédia grega, mais precisamente de Hipólito e Medéia, de Eurípides (484-406 a.C.). A madrasta se apaixona pelo enteado, trai o marido e engravida, acabando por matar o filho para provar ao esposo o seu amor.

A peça criou problemas com a censura e chegou a ser proibida em algumas cidades, como Boston e Los Angeles. Em janeiro de 1925, O’Neill, cansado e preocupado com o vício de beber, temeroso de ter o mesmo fim do irmão, resolveu submeter-se à psicanálise. Por sugestão do psicanalista comprou uma casa nas Bermudas e se mudou com a família para lá, onde trabalhou em duas novas peças O Grande Deus

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Brown (The Great God Brown) e Marco Milhões (Marco Millions), esta última iniciada em 1923.

No fim de 1925, o Greenwich Village Theatre, do qual O’Neill fazia parte como sócio, encenou A Fonte, e em janeiro de 1926, O Grande Deus Brown. O’Neill estava empenhado também na cara produção de Marco Milhões, na qual um produtor da Broadway, David Belasco, parecia interessado. Mas depois de um ano de indecisões, Belasco desistiu e Marco Milhões teve que esperar mais dois anos para ser encenada, no Guild Theatre.

Tanto O Grande Deus Brown como Marco Milhões, apesar de sua diferente ambientação (a primeira se passava na época contemporânea, nos Estados Unidos, e a segunda tratava da viagem de Marco Polo à China no século XIII), eram uma crítica ao mito do sucesso e do dinheiro.

Ainda em 1926, O’Neill escreveu Lázaro Riu (Lazarus Laughed), na qual dramatizava a vida de Lázaro, após a sua ressurreição por Cristo. O’Neill procurava situar um novo idealismo religioso, mesclado de elementos cristãos, nietzscheanos e orientais. No verão desse mesmo ano, O’Neill e a família foram para o Maine, nos Estados Unidos. Perto da casa dos O’Neill morava uma amiga do autor, Elizabeth Marbury, que na época estava hospedando Carlotta Monterey. O reencontro de O’Neill e Carlotta foi decisivo. Apaixonaram-se, voltaram a se encontrar em Nova York e, no ano seguinte, Eugene abandonou Agnes. O divórcio seria muito mais difícil de conseguir do que O’Neill imaginava. Agnes não chegava a um acordo sobre a pensão e desejava sempre mais do que O’Neill estava disposto a conceder.

Em janeiro de 1928 estreou Estranho Interlúdio (Strange Interlude), no John Golden Theatre. A peça, de nove atos, não era nem uma tragédia, nem um drama realista, nem um drama simbólico, mas uma mistura de todas essas formas num drama sobre uma mulher, Nina Leeds, em toda uma gama de papéis: mãe, esposa, amante, filha. Estranho Interlúdio foi a peça de O’Neill que alcançou maior êxito comercial: rendeu-lhe duzentos mil dólares. Ficou anos em cartaz e graças a ela O’Neill recebeu mais um prêmio Pulitzer.

Eugene e Carlotta resolveram então fazer uma viagem à Europa e embarcaram, incógnitos, em fevereiro de 1928. Foi uma longa viagem, que se estendeu até o Oriente. O’Neill não conseguia trabalhar: bebia demais para aliviar a tensão provocada pelas exigências de Agnes sobre o divórcio. A última bebedeira, em Xangai, culminou com seu internamento num hospital. Em julho de 1929, Agnes finalmente concedeu-lhe o divórcio. O’Neill e Carlotta casaram-se em Paris.

Quando terminou de escrever Electra e os Fantasmas (Mourning Becomes Electra), O’Neill dedicou-a a Carlotta. Era mais uma obra-prima. O’Neill lançara-se ao projeto ambicioso e feliz de basear sua peça num mito da Antiguidade clássica. Foi uma prova difícil, mas ele arrebatou mais elogios da crítica por essa peça do que em qualquer das anteriores. Electra e os Fantasmas passou à história como a maior tragédia americana.

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O’Neill e Carlotta retornaram aos Estados Unidos em maio de 1931. Em outubro, Electra foi levada à cena e, para não fugir à regra, o autor não compareceu à estréia. Estava em sua casa, recém-adquirida, a Genotta, em Sea Island, na Geórgia, e começava a escrever Dias sem Fim (Days Without End). A peça abordava a aridez espiritual da época e só ficou pronta em 1933. No ano anterior, O’Neill concluiu A Juventude não É Tudo (Ah, Wilderness!), uma comédia. Em 1934, Dias sem Fim foi encenada pelo Guild Theatre — um grande fracasso. O’Neill resolveu afastar-se temporariamente das lides teatrais para se dedicar a um ciclo de peças que trataria da ascensão e queda de uma família americana. Trabalhou no projeto de 1935 a 1939, mas, insatisfeito com os resultados, rasgou a maior parte dos manuscritos. Sobraram apenas duas peças: Um Toque de Poeta (A Touch of Poet) e A mais Sólida Mansão (More Stately Mansion).

Depois de dois anos de silêncio foi surpreendido, em 1936, com a concessão do prêmio Nobel de Literatura. Mudou-se da Geórgia para a Califórnia, onde, em sua Tao House, uma imponente mansão, escrevia e recebia poucos amigos. Viveu na Tao House por mais de seis anos, sua maior permanência numa casa até então, e só a abandonou por motivos de saúde, em 1944.

Foi na Tao House que O’Neill voltou a ver os filhos, Shane, Oona e Eugene Jr. Quando Oona se casou com Charles Chaplin, em 1943, O’Neill a deserdou e nunca mais quis vê-la. Shane tornou-se um segundo James O’Neill, e Eugene Jr. parecia, em seu cargo de professor assistente em Yale, o único de seus filhos a lhe trazer satisfações.

Desde seu retiro voluntário, Eugene O’Neill começou a sofrer os primeiros sintomas da doença que acabaria por impedi-lo de escrever, pois atacava o sistema motor. A partir de 1939, com a guerra, a mudança para a Califórnia e a doença, O’Neill começou a se voltar para o seu passado. Naquele mesmo ano escreveu O Geleiro Chegou (The Iceman Cometh). Havia na peça um bar chamado Harry Hope, uma mistura do Hell Hole e do Jimmy-the-Priest. Foi nessa volta ao passado, revendo seus fantasmas, que escreveu Longa Jornada Noite Adentro (Long Day‘s Journey into Night, 1919-41), a última e a mais dolorosa das suas peças de caráter autobiográfico, e Uma Lua para o Bastardo (A Moon for the Misbegotten), onde dramatizava a vida de James, seu irmão.

Os últimos anos da vida de O’Neill foram extremamente difíceis e solitários. Sua ligação com o mundo exterior era Carlotta. Os médicos não conseguiam deter o curso da doença. Em 1951, O’Neill mudou-se para um hotel, em Boston, o Shelton, próximo ao hospital onde trabalhava a equipe médica que o assistia. Em novembro de 1953 seu estado se agravou. No dia 24 deixou de comer; na madrugada do dia 27, morreu. Nesses dias de agonia, num momento de lucidez, balbuciou: “Nascido num quarto de hotel e, maldito seja, morto num quarto de hotel!”

UMA ÁRDUA JORNADA

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A tragédia de Longa Jornada Noite Adentro é motivada pelo drama da família Tyrone, cujos elementos se baseiam na biografia da família O’Neill. O pai, James Tyrone (como James O’Neill), é filho de pobres imigrantes irlandeses. Da mesma forma que James, Tyrone investiu sua carreira numa obra de sucesso fácil, sabendo que poderia ter sido um grande ator. Há uma característica no personagem, entretanto, que não corresponde ao modelo real: o materialismo exacerbado.

Edmund corresponde a Eugene O’Neill. Ao longo da peça o autor alude à sua vida de vagabundo na América do Sul, à febre amarela contraída nos trópicos, às noites na taverna Jimmy-the-Priest, à infância nefasta de James, o irmão mais velho. Mas o autor omite que em 1912, ano dos acontecimentos de Longa Jornada Noite Adentro, Edmund já havia se casado, tido um filho e se divorciado. Curiosamente, O’Neill apropriou-se do nome do irmão falecido, Edmund, enquanto que, no decorrer da peça, a mãe se refere ao filho morto como Eugene.

James é inteiramente James O’Neill, um bêbado irrecuperável, inútil e perdulário, sem qualquer esperança de redenção. Traz em si a marca de Caim — o filho e irmão maldito. É rejeitado pela mãe e pelo pai, acusado de corromper Edmund, responsável (segundo a mãe) pela morte do pequeno Eugene, pois tinha ciúme dele. Aos sete anos, quando contraiu sarampo, sabia que devia ficar afastado do bebê mas entrou no quarto do irmão, deliberadamente — e o contaminou, levando-o à morte.

Mary Tyrone, a mãe, corresponde a Ella, numa imagem de pureza e inocência, a projetar no destino os motivos de sua falência. Mary diz: “Nenhum de nós pode remediar as coisas que a vida nos faz! Estão feitas antes mesmo que a gente se aperceba... “ Ela aceita a condenação à impotência, como se fosse uma sina, e tenta sobreviver dentro do sonho provocado pela droga. Esta, por instantes, preserva-a da dor de viver uma vida que não teve nenhuma complacência com sua fragilidade.

A Longa Jornada Noite Adentro, como especifica O’Neill, aconteceu num dia de agosto de 1912, quando a família estava reunida em sua casa de veraneio. Edmund apresentava sintomas de tuberculose e trabalhava no jornal daquela pequena comunidade à beira-mar. O pai estava muito preocupado mas bastante esperançoso, pois Edmund começara a escrever.

No cenário em que se ambienta a peça, o tapete é surrado, mas há muitos livros em duas estantes distintas. A de Tyrone, com livros históricos, obras de Shakespeare, Dumas e Victor Hugo; a de Edmund, com obras de Zola, Ibsen, Strindberg e outros autores, que o velho James O’Neill — como James Tyrone — considerava decadentes.

Nesse cenário, inundado de sol no primeiro e segundo atos, obscurecido pelo nevoeiro às 18h30 do mesmo dia, no terceiro ato, e rodeado pela noite no quarto ato, é que os personagens se atormentam e se descobrem.

Longa Jornada Noite Adentro é uma tragédia porque os personagens são em parte responsáveis por sua própria destruição, embora também sejam vítimas de algo que não conseguem controlar e que se pode chamar de destino. Não se trata de uma peça de enredo mas de ação psicológica, pois o que realmente aconteceu aos Tyrones está no

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passado; esse passado é revisitado, trazido à cena nos sucessivos embates entre os personagens, justificando a ação presente.

O tempo do drama vai das 8h30 da manhã até a meia-noite, mas o tempo psicológico é muito maior, porque esse dia corresponde a uma vida inteira.

A ação começa numa manhã ensolarada, com Mary Tyrone entrando em cena, “sorrindo afetuosamente”, e termina quando ela, à meia-noite, envolta pelo sonho provisório da morfina, remete ao ponto onde tudo começou. Nesse momento, Mary sente falta de alguma coisa que se perdeu e durante alguns minutos procura descobrir como e quando isso teria ocorrido. Voltando ao passado, ela se reencontra no convento, experimentando uma vocação religiosa que não foi levada adiante. Logo a seguir, numa primavera, ela conheceria James Tyrone, apaixonar-se-ia por ele e, durante algum tempo, seria muito feliz.

Entre a imagem de Mary sorrindo afetuosamente e a cena final, todos os personagens percorreram um trajeto idêntico dentro de sua própria noite. Para cada um houve momentos de confissão, de revelação, de esclarecimento, através dos vários conflitos entre eles. Um dos conflitos mais importantes se dá entre Edmund e seu irmão James. Pouco antes, James Tyrone e Edmund haviam tido seu confronto definitivo, quando o velho revelara ao filho mais moço as razões que o levaram a prostituir-se profissionalmente. O confronto termina com um momento de compreensão entre o pai e o filho.

O conflito com James, que aparece camuflado desde o início, revela-se afinal mais violento e profundo. James demonstra todo seu rancor por Edmund ter sido sempre o “queridinho”, porque Edmund está no caminho de se encontrar e ele se sente perdido. James tenta destruir as ilusões do irmão, como deliberadamente procurara destruí-lo no passado, quando o introduziu em seu estilo de vida decadente. James não tem ilusões, nem sonhos, nem vontade, nem fé. É o mais indefeso, porque ainda lhe restam alguma lucidez e consciência sobre seu próprio estado. Sabe que é irrecuperável, como o próprio James O’Neill, que morreu aos 45 anos, vitima do álcool e de si mesmo.

A jornada de Edmund é mais positiva. No itinerário do sofrimento, ele chega à luz, erguendo o véu das ilusões. Se por um lado isso lhe causa imensa dor, por outro o projeta numa dimensão na qual ele consegue superar seu desespero, iluminando-se, redimindo-se.

Em Lázaro Riu, O’Neill tem uma frase que poderia resumir a condição dos personagens de Longa Jornada Noite Adentro: “A vida é para cada homem uma cela solitária cujas paredes são espelhos”. Assim o foi para os quatro Tyrones na viagem de um longo dia dentro da noite, quando conseguiram levar até o fim a descoberta insuportável de sua fragilidade.

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PERSONAGENS

JAMES TYRONE

MARY CAVAN TYRONE, sua esposa

JAMIE TYRONE, seu primogênito

EDMUND TYRONE, o filho caçula

CATHLEEN, a empregada

CENÁRIOS

ATO 1 — Sala da casa de veraneio dos Tyrone.Às 8h30 da manhã de um dia de agosto de 1912.

ATO II — Cena I — O mesmo, por volta das 12h45.Cena II — O mesmo, mais ou menos uma meia hora após.

ATO III — O mesmo, à tarde, por volta das 6h30.

ATO IV — O mesmo, à meia-noite.

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ATO I

CENÁRIO

Sala da casa de veraneio de James Tyrone, numa manhã de agosto de 1912.

No fundo do cenário, duas portas duplas com portières. A da direita leva a uma sala de frente, cujo aspecto solene e bem arrumado revela que é raramente usada. A outra dá para uma sala dos fundos, escura e sem janelas, que serve apenas de passagem do living room para a sala de jantar. Junto à parede, entre as portas, há uma pequena biblioteca sobre a qual pende um retrato de Shakespeare e que contém romances de Balzac, Zola, Stendhal e obras filosóficas e sociológicas de Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Engels, Kropotkin e Max Steiner, peças de Ibsen, Shaw e Strindberg, poemas de Swinburne, Rossetti, Wilde, Ernest Dowson, Kipling, etc...

Na parede da direita, no fundo, há uma porta telada que conduz ao pátio, o qual rodeia quase que a metade da casa. Mais adiante, três janelas dão para o parque e sobre o porto e a avenida que bordeja o cais. Contra a parede há uma mesinha de vime e uma escrivaninha de carvalho, dessas de tipo comum, encostadas às janelas.

Na parede da esquerda, uma série análoga de janelas dá sobre os terrenos do fundo. Sob as mesmas, um divã de vime com almofadões, cuja cabeceira se acha voltada para o lado de fora. Mais atrás vê-se uma grande biblioteca com porta de vidro, com coleções de Dumas, Victor Hugo, Charles Lever, três volumes de Shakespeare, a Melhor Literatura do Mundo em cinqüenta grandes tomos, a História da Inglaterra, de Hume, a História do Consulado e do Império, de Thiers, a História da Inglaterra, de Smollett, a História da Decadência do Império Romano, de Gibon, e diversos volumes com antigas comédias, poemas e histórias da Irlanda. O que chama a atenção nessas coleções é que todos os volumes parecem ter sido lidos.

O chão de hardwood parece estar totalmente recoberto por um tapete de desenho vago e tonalidades apagadas. No centro há uma mesa redonda com uma lâmpada de ler, munida de um

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abajur verde, cujo cordão está embutido em uma das quatro lâmpadas do lustre. Ao redor da mesa, ao alcance da luz, há três poltronas de vime e à direita, adiante daquela, uma cadeira de balanço, de carvalho envernizado, com assento de couro.

São, pouco mais ou menos, oito horas e meia. O sol penetra pelas janelas da direita. Ao levantar-se o pano do fundo, a família acaba de tomar o café da manhã. Mary Tyrone e seu marido saem juntos da sala dos fundos. Vêm da sala de jantar.

Mary tem cinqüenta e quatro anos e é uma mulher de estatura mediana. Sua silhueta elegante, ainda juvenil, é um tanto roliça, mas nela não se notam a cintura e as cadeiras próprias da idade madura, apesar de não usar um colete muito ajustado. Seu rosto é tipicamente irlandês. Deve ter sido um rosto lindo, e ainda chama a atenção. Não se harmoniza com a saúde que sua silhueta denota. É enxuto e pálido, nele sobressaindo a estrutura óssea. Tem o nariz longo e reto e a boca larga, de lábios carnudos e sensíveis. Não usa ruge nem qualquer espécie de maquilagem. O cabelo farto e de um branco puro emoldura sua testa. Acentuados por esse cabelo e por sua palidez, seus olhos, de um pardo escuro, parecem negros. São excepcionalmente grandes e belos, de sobrancelhas negras e pestanas frisadas.

O que imediatamente chama a atenção é seu extremo nervosismo. Suas mãos nunca estão quietas. Foram lindas mãos de longos dedos finos, mas o reumatismo tornou nodosas as articulações e deformou os dedos, que agora parecem mutilados. Todos evitam fitá-los, sobretudo porque se nota que Mary não consegue esquecer o triste aspecto que apresentam, e sente-se humilhada por não poder dominar esse nervosismo que mais chama a atenção sobre suas mãos.

Veste-se com simplicidade, mas com uma segura intuição do que lhe vai bem. Tem o cabelo cuidadosamente penteado. Sua voz e suave e atraente. Quando está alegre, sente-se nessa voz um leve sotaque irlandês. Sua qualidade mais sedutora — e que nunca perdeu — é o simples e espontâneo encanto juvenil de uma menina de colégio, uma inata inocência alheia à vida mundana.

James Tyrone tem sessenta e cinco anos, porém parece ter dez anos menos. De estatura média, largo de ombros e de peito, dir-se-ia que sua estatura é mais elevada devido ao

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porte, cujas características são próprias de um soldado: leva a cabeça erguida, o peito estufado, o ventre contraído e os ombros quadrados. Seu rosto já apresenta os primeiros sinais da velhice, mas ainda assim é um belo rosto de homem — a cabeça é grande, bem modelada —, possui um belo perfil e olhos fundos, de uma tonalidade parda e clara. Seu cabelo grisalho rareia, e ostenta uma calvície semelhante à tonsura de um frade.

Na sua personalidade está inconfundivelmente estampado o selo de sua profissão. Não porque tenha por hábito comprazer-se em alguma das deliberadas atitudes temperamentais próprias do ator teatral. Por gosto e natureza, é um homem simples, sem pretensões, cujas inclinações não se afastam muito do humilde início que teve na vida e dos agricultores irlandeses que foram seus antepassados. Mas, inconscientemente, é ator, e se trai em todos os vícios e hábitos de linguagem, em seu modo de ser, nos gestos próprios de uma técnica estudada. Tem uma bela voz sonora e flexível, de que muito se orgulha.

Seu modo de vestir não é certamente próprio de um papel romântico. Usa um blusão americano cinza, de confecção; e uns sapatos negros, sem lustre algum; uma camisa sem colarinho, e um grande lenço branco enrolado frouxamente no pescoço. Esta indumentária é de uma humildade vulgar em que nada revela uma pitoresca negligência.

Tyrone é de opinião que se deve usar a roupa enquanto esta dura. Vestiu-separa trabalhar no jardim e não se incomoda em absoluto com o próprio aspecto.

Nunca esteve realmente enfermo um dia sequer de sua vida. É como se não possuísse nervos. Nele há muito do camponês estúpido e rude em que se mesclam veias de melancolia sentimental, e irrompem raros fulgores de intuitiva sensibilidade.

O braço de Tyrone envolve a cintura de sua mulher quando ambos vêm da sala dos fundos.

(Ao entrar, abraça-a com ar travesso.)

TYRONE

É difícil abraçá-la, Mary, agora que você aumentou dez quilos.

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MARY (sorrindo afetuosamente)Diga clara e simplesmente que engordei demais, querido. Na verdade, deveria perder um pouco deste peso.

TYRONEEm absoluto, minha senhora! Você está ótima! Não falemos de perder peso. Foi por isso que comeu tão pouco no café?

MARY

Tão pouco? Julguei até que tivesse comido muito.

TYRONENão. Pelo menos não tanto quanto eu teria desejado.

MARY (em tom de brincadeira)Oh! Você pretende, por acaso, que todos comam feito você? Ninguém poderia devorar um café da manhã igual ao seu, sem morrer de indigestão. (Dá uns passos e se detém à direita da mesa.)

TYRONE (seguindo-a)Não creio que eu seja assim tão glutão. (Com sincera satisfação) Porém, graças a Deus, conservo o apetite e a digestão de um jovem de vinte anos, apesar dos meus sessenta e cinco.

MARY

Bem o creio, James. Ninguém poderia negá-lo! (Ri e se senta na cadeira de vime que se acha à direita, afastada da mesa. Seu marido se aproxima por trás, escolhe um charuto de uma caixa que está sobre a mesa, e com uma pequena tesoura corta-lhe a ponta. Da sala de jantar chegam as vozes de Edmund e Jamie. Mary volve a cabeça nessa direção.) Por que terão os rapazes ficado na sala de jantar? Cathleen deve estar esperando que venham embora a fim de poder tirar a mesa.

TYRONE (em tom alegre, mas com um laivo de ressentimento na voz)Certamente fazem alguma “conspiração”, e não querem que os ouça. Aposto como estão urdindo algum plano para extorquir dinheiro do “velho”!

(Mary não responde e permanece com a cabeça voltada em direção às vozes dos filhos. Suas mãos se movem inquietas sobre a mesa. Tyrone acende seu charuto, senta-se na cadeira

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de balanço à direita da mesa, e, com ar satisfeito, lança baforadas de fumo.)

TYRONENada como o primeiro charuto que se fuma após o café da manhã, quando é de boa qualidade. E esse novo maço de charutos tem o sabor perfeito, ideal. Além do mais, foi uma pechincha. Comprei-os muito barato. Foi McGuire quem os conseguiu para mim.

MARY (com certo azedume)Suponho que não lhe terá impingido, ao mesmo tempo, uma nova propriedade. Suas pechinchas em matéria de negócios não dão assim tão bom resultado!

TYRONE (na defensiva)Não sou dessa opinião, Mary. Afinal de contas, foi ele quem me aconselhou a comprar aquela casa da rua Chestnut, e a revendi com um belo lucro.

MARY (sorrindo com zombeteiro afeto)Bem o sei! A “famosa” oportunidade que nunca se repete na vida... Certamente McGuire não sonhou sequer... (Acaricia a mão do marido.) Perdoa-me, James. Quem poderia convencê-lo de que não é um especulador astuto em negócios de bens?

TYRONE (com ar aborrecido)Não se trata disso. Mas terra é sempre terra, e é mais seguro que os títulos e as ações dos vigaristas de Wall Street. (Em tom conciliador) É melhor que, tão cedo, não falemos de negócios.

(Há uma pausa. Tornam-se a ouvir as vozes dos filhos, e um deles tem acesso de tosse. Mary escuta com ar inquieto. Seus dedos tamborilam sobre o tampo da mesa, nervosamente.)

MARY

James, deveria passar um pito em Edmund, por não comer o suficiente. Apenas beliscou alguma coisa, além do café. Se não come, forçosamente se enfraquecerá. Repito-o sem cessar, mas ele me responde simplesmente que não tem fome. Com efeito, um forte resfriado de verão torna qualquer um inapetente.

TYRONEÉ, é natural. Contanto que não se aflija...

MARY (rapidamente)

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Oh! Não! Sei que Edmund, se tomar cuidado, estará restabelecido dentro de alguns dias. (Como se quisesse desviar o assunto, porém sem consegui-lo.) Mas é uma pena que tenha ficado doente... logo agora.

TYRONESim, foi pouca sorte! (Olha-a de soslaio, inquieto.) Mas, não se preocupe com isso, Mary. Lembre-se de que deve também cuidar-se.

MARY (bruscamente)Não me preocupo. Não há motivo para tal. Por que haveria de supor...

TYRONEPor nada. Nestes últimos dias tenho notado que você anda um pouco nervosa.

MARY (com um sorriso forçado)Verdade? Que absurdo, meu bem. É pura imaginação. (Com um ar bruscamente tenso) Não fique assim me observando a toda hora, James. Quero dizer — é isso que me irrita e me põe nervosa.

TYRONE (põe a mão sobre uma das de sua esposa, que novamente tamborilam sobre a mesa)

Vamos, vamos, Mary. Agora a culpa é da sua imaginação. Se a observo é apenas para admirar o quanto está roliça e bonita. (Bruscamente a emoção na sua voz trai um profundo sentimento.) Não imagina, querida, o quanto me sinto feliz ao vê-la assim, desde que você retomou a vida ao nosso lado. (Inclina-se e impulsivamente a beija. A seguir, volvendo o rosto, com um ar constrangido, acrescenta) Insista nesse esforço, Mary... por favor.

MARY (que afastou o rosto)Eu o farei, querido. (Levanta-se com ar impaciente e caminha até as janelinhas da direita.) Por sorte, a neblina está se dissipando. (Volta-se) Esta manhã sinto-me mal-humorada. Perturbou-me o sono essa horrível sirene que esteve apitando a noite inteira.

TYRONESim, é como ter uma baleia ferida no pátio dos fundos! A mim, tampouco me deixou dormir.

MARY (achando graça e com ar afetuoso)É mesmo?!! Você tem uma forma estranha de insônia! Roncava tanto, que eu não sabia distinguir os seus roncos dos apitos da sirene! (Aproxima-se rindo e lhe dá uma pancadinha afetuosa no rosto.) Nem mesmo dez sirenes bastariam para acordá-lo. Não tem nervos. Nunca os teve.

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TYRONE (irritado na sua vaidade, com tom impertinente) Que tolice! Sempre exagera ao falar de meus roncos!

MARY

Se pudesse ouvir a si mesmo... (Da sala de jantar chega um estalar de gargalhadas. Mary volta a cabeça, sorridente.) De que estão rindo tanto?

TYRONE (áspero)De mim. Sou capaz de apostar. Sempre se riem às custas do “velho”.

MARY (com ar brincalhão)Sim, todos nós o pirraçamos muito... não é assim? (Ri e acrescenta com ar satisfeito, de alívio.) Bem. Não sei se riem, mas de qualquer forma me alivia ouvir o riso de Edmund. Ele tem estado tão deprimido, ultimamente!

TYRONE (como se não tivesse ouvido essas últimas palavras, prossegue, ressentido.)Apostaria como é alguma brincadeira de Jamie. Está sempre caçoando de alguém.

MARY

Vamos, não comece já a criticar o pobre do Jamie, meu bem. (Sem convicção alguma) Verá como ele acabará por ser um homem de verdade.

TYRONEPois que trate então de começar logo a sê-lo... Falta-lhe pouco para completar trinta e quatro anos.

MARY (ignorando essas palavras)Meu Deus! Será que os rapazes pretendem ficar o dia todo na sala de jantar? (Vai até a porta da sala dos fundos e chama) Jamie? Edmund! Venham para cá, para que a Cathleen possa tirar a mesa. (Edmund responde: “Já vamos, mamãe”. E Mary retorna ao seu lugar primitivo.)

TYRONE (mal-humorado)Sempre lhe achará desculpas, faça o que fizer.

MARY (sentando-se ao seu lado, acaricia-lhe a mão)Silêncio.

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(Entram os filhos de ambos, Jamie e Edmund, que vêm da sala dos fundos. Ambos sorriem, achando ainda graça no que os fez rir. Olham de esguelha para o pai, e seus sorrisos então se acentuam. Jamie, o mais velho, tem trinta e três anos. Herdou o físico do pai: largo de ombros e o tórax forte, mede uma polegada a mais de estatura e pesa menos, porém parece mais baixo e atarracado, porque lhe faltam o porte e o garbo de Tyrone. Não tem, tampouco, a vitalidade do pai. Notam-se nele sintomas de prematuro envelhecimento. Seu rosto ainda é belo, apesar dos evidentes vestígios nele deixados por uma vida de libertinagem, mas nunca teve a galhardia do pai, se bem que se pareça mais com este do que com a mãe. Tem uns lindos olhos pardos, cuja tonalidade oscila entre a cor mais clara dos olhos paternos e mais escura dos olhos de Mary. Seus cabelos começam a rarear e nele já desponta a calvície do pai. Tem um nariz acentuadamente aquilino, diverso dos demais membros da família. Junto á sua habitual expressão de cinismo, tal traço imprime ao seu semblante um caráter mefistofélico. Todavia, nas raras ocasiões em que sorri sem sarcasmo, pressentem-se em sua personalidade os ressaibos de um jovial encanto irlandês, romântico e irresponsável, o do tipo folgazão, simpático, dotado de um veio de poesia sentimental que atrai as mulheres e o torna popular entre os homens. Veste um blusão tipo americano, não tão gasto quanto o do pai, e colarinho e gravata. Sua pele, muito clara, está bronzeada e adquiriu uma tonalidade avermelhada, salpicada de sardas.

Edmund tem dez anos menos que o irmão. Leva-lhe de vantagem umas duas polegadas de estatura. É fraco e nervoso. Enquanto Jamie saiu ao pai e pouco se parece com a mãe, Edmund lembra a ambos, aproximando-se mais do tipo de Mary. Os grandes olhos escuros são o traço dominante de seu rosto alongado e enxuto. A boca denota a mesma hipersensibilidade da de Mary. Sua testa larga é a da mãe, ainda mais acentuada e traz o cabelo escuro, que o sol descolorou nas pontas, tornando-o avermelhado, bem penteado para trás. Mas tem o nariz paterno e seu rosto, de perfil, recorda o de Tyrone. As mãos de Edmund evocam, de maneira evidente, as da sua mãe — de dedos excepcional-mente finos. Revelam até, em menor escala, o mesmo nervosismo. A semelhança de Edmund com a mãe afirma-se

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precisamente na extrema sensibilidade nervosa de ambos. É evidente que seu estado de saúde não é bom. Muito mais fraco do que deveria ser, tem os olhos febris e fundas as maçãs do rosto. Se bem que o sol lhe tenha tostado a pele até torná-la escura, sua tez ostenta uma lividez de pergaminho. Veste camisa, colarinho e gravata, e umas velhas calças de flanela. Não usa paletó. Nos pés calça sapatos com sola de borracha.)

MARY (voltando-se para ele, sorrindo, num tom jovial e um tanto forçado)Caçoava de seu pai, por causa de seus roncos. (Dirigindo-se a Tyrone) Os filhos que o digam, James! Devem tê-lo ouvido. Não — você não, Jamie. Ouvi-o roncar na outra extremidade do corredor, quase tão ruidosamente como seu pai. É igual a ele. Mal encosta a cabeça no travesseiro e já adormece e nem dez sirenes despertá-lo-iam. (Interrompe-se bruscamente ao notar que Jamie a fita com mal-estar e um ar inquisitivo. Seu sorriso se esbate. Disfarçando) Por que me olha assim, Jamie? (Leva nervosamente as mãos ao cabelo.) Será que o meu cabelo está desarrumado? Custa-me tanto agora penteá-lo devidamente. Minha vista está cada vez pior e nunca encontro meus óculos.

JAMIE (desviando o olhar, com ar de culpa)Seu penteado está perfeitamente em ordem, mamãe. Eu pensava apenas no quanto você está bonita.

TYRONE (alegremente)É justamente o que eu dizia, Jamie. Está tão atrevidamente gorda que breve não haverá meio de abraçá-la.

EDMUNDSim, é certo que você está esplêndida, mamãe.

(Mary se tranqüiliza e sorri afetuosamente para o filho. Ele lhe pisca o olho, com um ar brincalhão.)

EDMUNDQuanto aos roncos de papai, dou-lhe toda razão. Senhor, que barulhão!

JAMIETambém o ouvi. (Declama enfaticamente, como um ator dizendo uma citação)“O Mouro... conheço o seu clarim!”

(A mãe e o irmão riem.)

TYRONE (com ironia)

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Se são necessários os meus roncos para que você se lembre de Shakespeare em vez de só pensar em programas de corridas, creio que é preferível que eu continue a roncar...

MARY

Vamos, James! não seja tão suscetível.

(Jamie dá de ombros e se senta à direita de sua mãe.)

EDMUND (com irritação)Ora, papai. Pelo amor de Deus. Acabamos de tomar o café da manhã. Dê-nos uma trégua, sim? (Afunda-se na cadeira à esquerda da mesa junto ao irmão. Seu pai o ignora.)

MARY (em tom de reprovação)Seu pai não o estava censurando. Não é preciso você estar sempre a tomar o partido de Jamie. É como se, dos dois, fosse você o mais velho e ele dez anos mais moço...

JAMIE (com enfado)Para que tanto alvoroço? Esqueçamos isso!

TYRONE (desdenhosamente)Sim, esqueçamos. Esqueçamos tudo! Não enfrentemos coisa alguma. É uma filosofia muito cômoda se não se tem ambição alguma na vida a não ser de...

MARY

James, por favor, cale-se. (Põe-lhe um braço em volta do ombro, persuasiva.) Você se deve ter levantado hoje da cama com o pé esquerdo. (Aos rapazes, mudando de assunto) De que é que vocês estavam rindo tanto quando entraram? Qual era a piada?

TYRONE (fazendo um visível esforço para se mostrar camarada) Sim, contem-nos o que era, rapazes! Disse à sua mãe que estava certo que a piada me dizia respeito. Mas, não importa. Já estou habituado.

JAMIE (em tom seco)Não olhe para mim. Isso é com Edmund.

EDMUND (sorrindo)Pensava contar-lhe ontem à noite, papai, mas esqueci de fazê-lo. Ontem, quando saí para dar uma voltinha, entrei num bar...

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MARY (inquieta)Não deveria beber agora, Edmund.

EDMUND (como se não a tivesse ouvido)Sabem quem encontrei ali numa tremenda bebedeira? Shaughnessy, o arrendatário de sua granja...

MARY (sorrindo)Aquele homenzinho horrível?! Mas é divertido.

TYRONE (de sobrecenho fechado)Não é tão divertido assim quando acontece que se é o proprietário da fazenda. E é muito manhoso e maleável. De que é que ele se queixa agora, Edmund? Porque, sem dúvida, deve estar queixando-se de alguma coisa. Certamente quererá que lhe reduza o arrendamento. Já lhe alugo a granja por uma ninharia, só para ter alguém ali, e só me paga quando o ameaço de despejo.

EDMUNDNão, não se queixou de nada. Estava tão satisfeito da vida que até me pagou uma bebida, o que da parte dele é simplesmente inacreditável! Estava encantado de ter entrado em luta com o seu amigo Harker, o milionário da Standard Oil, vencendo-o gloriosamente!

MARY (com um ar de divertida consternação)Oh! meu Deus, Jamie, vai ter que fazer alguma coisa.

TYRONEÉ pouca sorte para Shaughnessy, de qualquer modo.

JAMIE (maliciosamente)Aposto que da próxima vez que você encontrar Harker no clube e o cumprimentar com a habitual consideração, ele nem o olhará.

EDMUNDÉ isso mesmo. Não o considerará um cavalheiro, porque hospeda um arrendatário que não se humilha em presença de um “monarca yankee”.

TYRONENada de expressões socialistas. Não me interessa ouvir...

MARY (com tato)Continue contando, Edmund.

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EDMUND (sorrindo de modo provocante para seu pai) Bem... Como você sabe, papai, a reserva de água de Harker fica junto à granja, e Shaughnessy cria porcos. Segundo parece, na cerca há uma brecha, e os porcos estão se banhando no tanque do milionário; e seu capataz disse a Harker que estava certo de que Shaughnessy tinha arrebentado de propósito a cerca para dar aos seus suínos um banho gratuito!

MARY (escandalizada, mas achando graça)Meu Deus!

TYRONE (com uma amargura em que há um laivo de admiração)E tenho certeza como de fato o velhaco assim o fez. Seria muito próprio dele.

EDMUNDE por causa disso Harker foi pessoalmente tomar satisfações de Shaughnessy. (Rindo) Uma idéia muito estúpida! Se ainda nos faltasse uma prova de que os plutocratas que nos governam — e sobretudo os que herdaram as suas fortunas — não são mentalmente uns gigantes, esta seria categórica.

TYRONE (admitindo-o sem refletir)Sim, Harker não estaria à altura para vencer um Shaughnessy. (Como que caindo em si) Guarde suas malditas idéias anarquistas para si mesmo. Não as consinto em minha casa. (Porém a curiosidade transborda e ele indaga) Que aconteceu?

EDMUNDAs probabilidades de vitória de Harker eram tantas corno as que eu poderia ter com um Jack Johnson. Shaughnessy tinha bebido a mais não poder, e o esperava no gradil a fim de lhe dar as boas-vindas. Contou-me que nem deu a Harker a oportunidade de abrir a boca. Começou logo por gritar-lhe que não era escravo da Standard Oil, para que esta o pisoteasse. Era um rei da Irlanda, já que tinha os seus direitos, e a gentalha para ele não passava mesmo de gentalha, por mais dinheiro que tivesse roubado aos pobres.

MARY

Oh! meu Deus. (Mas não pode reprimir o riso.)

EDMUNDFoi logo acusando Harker de ter ordenado ao seu capataz que derrubasse a cerca para atrair os porcos até o tanque e liquidá-los. Os pobres animais — gritou Shaughnessy — morreram de frio. Muitos se acabavam de pneumonia e outros estavam doentes de raiva, por ter bebido aquela água contaminada. Declarou a Harker que ia contratar um

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advogado para processá-lo por danos e prejuízos. E concluiu que já bastava ter que suportar em seu sítio a erva venenosa, os carrapatos, as serpentes e raposas, mas que era um homem honrado; que entre as granjas havia traçado uma linha divisória e que nem o diabo o levasse, não permitiria que um ladrão da Standard Oil o desrespeitasse. Em vista do que, pedia a Harker que tivesse a bondade de retirar aqueles pés imundos de suas terras, antes que lhe atiçasse o cachorro em cima. E Harker foi-se embora. (Ele e Jamie riem.)

MARY (escandalizada, porém rindo)Oh! Céus, que língua terrível a desse homem.

TYRONE (num impulso de admiração)Que malandro! Meu Deus, não há meios de dobrá-lo. (Ri — logo se interrompe bruscamente e franze o sobrolho.) Que canalha mais sujo. É capaz de me botar em apuros! Na certa lhe terá dito que eu ficaria indignado se...

EDMUNDDisse-lhe que a você entusiasmaria essa vitória irlandesa — e é assim mesmo. Deixe de comédias, papai.

TYRONEPois eu não estou nada entusiasmado.

MARY (zombeteira)Está sim, James. Sinto-o completamente louco de alegria.

TYRONENão, Mary, uma brincadeira é uma brincadeira, mas...

EDMUNDDisse a Shaughnessy que devia lembrar a Harker que um milionário da Standard Oil devia saber muito bem o gosto de porco na sua água salgada, como um tempero adequado.

TYRONEPara o inferno com a sua lembrança. (Franze a testa.) Não envolva nos meus assuntos suas nefastas idéias socialistas e anarquistas.

EDMUND

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Shaughnessy quase se pôs a chorar, porque não lhe havia ocorrido dizer isso a Harker, mas prometeu incluí-lo numa carta que lhe está escrevendo, junto com outros insultos também esquecidos. (Ele e Jamie riem.)

TYRONEDe que você ri? Isto nada tem de engraçado. Que bom filho é quem ajuda a esse patife a me meter em apuros!

MARY

Vamos, James. Não perca a calma.

TYRONE (virando-separa Jamie)E você é ainda pior do que ele, apoiando-o dessa maneira. Suponho que lamenta não ter estado presente para atiçar Shaughnessy, sugerindo-lhe insultos ainda mais causticantes! Tem talento para isso. Só para isso!

MARY

James! Não há motivo para censurar Jamie. (Jamie se prepara para dar ao pai uma resposta sarcástica, mas dá de ombros e se cala.)

EDMUND (repentinamente exasperado)Oh! Papai, pelo amor de Deus. Se você vai começar de novo, vou-me embora. (Levanta-se de um salto.) De qualquer forma deixei o meu livro lá em cima. (Dirigindo-se para a sala da frente em tom aborrecido) Puxa, papai! Julguei que você se cansasse de dizer... (Desaparece. Tyrone o segue com o olhar irritado.)

MARY

Você não deve aborrecer-se com Edmund, James. Lembre-se de que ele está doente. (Ouve-se Edmund, que tosse enquanto sobe para o primeiro andar. Mary, nervosa, acrescenta) Esses resfriados de verão põem qualquer um irritadiço.

JAMIE (sinceramente preocupado)Não é um simples resfriado. Ed está doente de verdade.

(O pai o fita com uma advertência no olhar, porém Jamie nem o nota.)

MARY (voltando-se para o filho, ressentida)Por que diz isso? Não passa de um resfriado. Isso se pode ver logo. Sempre está imaginando coisas!

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TYRONE (com outro olhar de advertência a Jamie, em tom casual)Jamie quis apenas dizer que Ed talvez tenha alguma coisa a mais que lhe agrave o resfriado.

JAMIEÉ claro, mamãe. Foi isto o que eu quis dizer.

TYRONEO Dr. Hardy acredita que ele possa ter apanhado malária quando esteve nos trópicos. Caso seja assim, o quinino o porá bom em dois tempos.

MARY (por cuja fisionomia passa uma sombra de hostilidade e desdém)O Dr. Hardy! Não creio numa só palavra que ele diga; nem que jure sobre uma pilha de Bíblias! Conheço bem os médicos! São todos iguais! Apelam para todos os meios, contanto que o doente os visite amiúde. (Cala-se bruscamente, nervosíssima, ao notar que os olhos do esposo e do filho estão fitos nela. Ergue as mãos ao cabelo, num gesto espasmódico, e sorri um sorriso forçado.) Que há? Que é que vocês estão olhando? Meu cabelo se...

TYRONE (abraçando-a com uma cordialidade exagerada e apertando-a de encontro a si como que de brincadeira)

Seu cabelo está impecável! Quanto mais saudável e mais gorda, mais vaidosa você fica! Breve passará a metade do dia enfeitando-se ao espelho!

MARY (em parte tranqüilizada)Na verdade eu precisaria de uns óculos novos. Vejo tão mal agora...

TYRONE (com uma galanteria verdadeiramente irlandesa) Seus olhos são formosos, e bem o sabe.

(Beija-a. Um constrangimento tímido e encantador ilumina o rosto de Mary. De repente — surpreendentemente — assoma à sua fisionomia a garota de antigamente; não um espectro, e sim um ser cheio de vida.)

MARY

Não seja tolo, James. E logo em presença de Jamie!

TYRONE

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Oh! Ele também a conhece. Sabe que todas essas preocupações com os seus olhos e cabelo são um mero pretexto para provocar elogios. Não é mesmo, Jamie?

JAMIE (cujo rosto também se aclarou e em cujo sorriso afetuoso ressurge a sedução infantil de antanho)

É sim. Você não nos pode enganar, mamãe.

MARY (ri, e sua voz trai um leve sotaque irlandês)Vão passear, vocês dois! (Com uma solenidade de adolescente) Mas, no meu tempo, eu tive realmente um cabelo lindo, não é verdade, James?

TYRONEO mais lindo deste mundo!

MARYEra de um castanho avermelhado pouco comum, e tão comprido que chegava abaixo dos meus joelhos. Deve também se lembrar disso, não, James? Foi só depois do nascimento de Edmund que me apareceu o primeiro fio branco. E aí todo o meu cabelo começou a ficar branco... (A expressão de adolescente desaparece de seu rosto.)

TYRONE (prontamente)E assim ainda ficou mais lindo do que nunca!

MARY (novamente encabulada e satisfeita)Escute só o seu pai, Jamie... depois de trinta e cinco anos de casamento! Pra alguma coisa lhe serve ser um grande ator, hein? Que se passa com você, James? Elogia-me só porque caçoei dos seus roncos? Então retiro tudo o que disse... Vai ver que o que ouvi foi mesmo a sirene!!! (Ri e eles a acompanham na sua alegria. Numa transição brusca, Mary passa a falar em tom prático.) Não posso, porém, ficar mais tempo aqui, nem mesmo para ouvir elogios. Tenho que ir falar com a cozinheira e combinar com ela o jantar e as compras necessárias. (Levanta-se e suspira com exagero jovial.) Bridget é tão preguiçosa! É tão fingida! Começa logo por falar-me de todos os seus parentes para que eu não possa intercalar uma só palavra e repreendê-la! Bom! Mais vale que eu não dê importância a isso! (Caminha até a porta da sala de jantar, mas volta com um ar inquieto.) Não deve fazer o Edmund trabalhar com você no jardim, Jamie. Não o esqueça. (Na sua fisionomia reaparece um estranho ar de obstinação.) Não porque Ed não seja bastante robusto. Mas na certa transpiraria, e o seu resfriado poderia piorar.

(Sai pela sala dos fundos. Tyrone se vira para o filho com um ar reprovador.)

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TYRONESeu estúpido! Não tem nenhum critério? Acima de tudo, o que é preciso evitar é dizer-lhe algo que possa afligi-la ainda mais a respeito de Edmund!

JAMIE (dando de ombros)Se você o prefere assim... Acho que seria melhor que mamãe não continuasse enganando-se a si própria. Será muito mais duro para ela, quando tiver que enfrentar a verdade. Você vê que deliberadamente ela se atordoa, falando num resfriado de verão. E, no entanto, sabe a verdade.

TYRONEA verdade? Ninguém a sabe ainda.

JAMIEPois eu sei. Acompanhei Edmund na segunda-feira, quando foi ver o Dr. Hardy. Ouvi-o aludir à malária. Insistiu que devia ser isso. Porém ele próprio não acredita no que diz. Você o sabe tão bem quanto eu, pois falou com o Dr. Hardy quando foi ao povoado, ontem... não é verdade?

TYRONEEle não me pôde afirmar coisa alguma com certeza. Deve telefonar-me hoje antes que Edmund vá vê-lo.

JAMIE (lentamente)Hardy crê que seja tuberculose... não é assim, papai?

TYRONE (de má vontade)Disse-me que podia ser isso.

JAMIE (comovido, sentindo aflorar-lhe ao peito o afeto pelo irmão)Pobre rapaz! Que pouca sorte! (Volta-se para o pai com ar acusador.) Isso não teria acontecido se você o tivesse entregue às mãos de um médico de verdade, quando ele apareceu doente.

TYRONEE o que há de errado em Hardy? Foi sempre o nosso médico aqui.

JAMIEO que tem de errado? Tudo! Até neste miserável povoado o consideram um medicastro. É um vulgar charlatão!

TYRONE

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Aí está... Despreza-o! Despreza todo mundo! Para você todos são uns impostores!

JAMIE (com desprezo)Hardy cobra apenas um dólar! Por isso é que você o considera um bom médico!

TYRONE (atingido pela frase do filho)Cale-se! Agora não está bêbedo! Não tem desculpa... (Dominando-se, na defensiva) Se insinua que não me posso permitir o luxo de chamar um desses médicos da alta sociedade que vivem de explorar os veranistas ricaços...

JAMIEQue você não se pode permitir esse luxo?! Mas se você é um dos proprietários mais importantes da região...

TYRONEIsso não significa que eu seja rico... Tenho tudo hipotecado.

JAMIEPorque você continua a comprar novas terras em vez de pagar as hipotecas! Se Edmund fosse apenas um desses miseráveis acres de terra que você tanto cobiça, na certa estaria disposto a pagar qualquer preço.

TYRONEIsso é falso! E seus sarcasmos contra o Dr. Hardy também são falsos! Hardy não se veste com requintes, nem tem consultório em bairro elegante, nem viaja em carro de luxo. Isso é o que custeamos, quando pagamos a um desses médicos figurões cinco dólares por uma consulta, e não a sua capacidade!

JAMIE (encolhendo os ombros num gesto de desdém)Está bem, está bem! Perco meu tempo discutindo com você. Não adianta. “Não se pode tirar as manchas do leopardo.”

TYRONE (com crescente cólera)Não, não se pode tirar... Essa lição eu a aprendi demasiado bem. Quanto a você, já perdi toda a esperança de que mude de pele! Você se atreve a me dizer, a mim, o que posso gastar? Não sabe o que vale um dólar, nem poderia saber. Jamais economizou um só! No fim de cada temporada está sempre sem um centavo! Esbanja o seu salário semanal em uísque e prostitutas!

JAMIE

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Meu salário, Deus meu!

TYRONETem mais do que merece, e é graças a mim que o recebe. Se não fosse meu filho nenhum empresário lhe daria trabalho, tão lamentável é a sua reputação. Ainda tenho que me humilhar e mendigar um papel para você, dizendo que está regenerado, que agora é outro homem, embora saiba que tudo isso é falso!

JAMIEJamais quis ser ator. Você me obrigou a dedicar-me ao teatro.

TYRONEMente! Não queria outra coisa. Esperava que eu lhe conseguisse um emprego e bem sabe que só tenho influência no teatro. Diz que o obriguei. Não queria outra vida a não ser vagar pelos bares! Você se conformaria em passar o resto de sua existência preguiçosamente, e vivendo do meu dinheiro. Depois de tudo que gastei para o educar, só conseguiu foi ser expulso, de uma maneira desonrosa, de todos os colégios secundários que freqüentou!

JAMIEOh! por favor! Não desenterre essa velha história.

TYRONEO fato de que tenha que voltar aqui cada verão para viver do meu dinheiro não é uma velha história.

JAMIEPago o teto e a comida, trabalhando no jardim. Assim lhe poupo um jardineiro.

TYRONEQual o quê! Até para isso quase preciso fustigá-lo. (Sua cólera se amaina e se dilui num queixume cansado.) Não me importaria em absoluto se ao menos sentisse de sua parte um pouco de gratidão. Mas só me agradece repetindo-me que sou um avaro repulsivo, fazendo pouco de minha profissão, caçoando de tudo que existe no mundo... exceto de si mesmo.

JAMIE (com um trejeito)Isso não é verdade, papai. O que acontece é que você não me pode ouvir quando me censuro a mim mesmo.

TYRONE (olha-o com ar perplexo, e cita em tom maquinal) “Oh! ingratidão, a mais infame dentre todas as cizânias que se conhecem...”

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JAMIETinha certeza de que você viria com esse verso! Oh! Céus! quantos milhares de vezes deverei... (Interrompe a frase, cansado de discussão, e dá de ombros.) Está bem, papai. Sou um “boa-vida”. Sou tudo o que você quiser, contanto que ponhamos fim a esta discussão.

TYRONE (exortando-o, indignado)Se ao menos fosse ambicioso, e não estúpido! Ainda é moço. Poderia destacar-se! Tem o talento necessário para ser um ator excelente. Tem-no de fato. É meu filho!

JAMIE (enfadado)Esqueçamos a minha pessoa. O assunto não me interessa. Nem a você tampouco. (Tyrone cede. Jamie continua, em tom negligente) Como foi que começamos a falar de tudo isso? Ah! sim, referíamo-nos ao Dr. Hardy. Quando é que ele lhe telefonará para tratar do assunto de Edmund?

TYRONEAo meio-dia. (Pausa; na defensiva) Eu não poderia ter confiado Ed a um médico melhor. Hardy sempre o atendeu, desde garoto. Conhece como ninguém o seu organismo. Não é que seja tacanho, como pretende. (Com amargura) E o que poderia fazer por Edmund o melhor especialista dos Estados Unidos, agora que, deliberadamente, esbanjou a sua saúde com a vida absurda que tem levado desde que foi expulso da universidade?! Quando ainda estava na escola começou a viver assim, de modo imprudente e relaxado. Era o janota da Broadway, só para imitá-lo, embora não tivesse o seu organismo para poder suportar uma existência dessas! Você é um homenzarrão — sadio feito eu, ou pelo menos assim o fui na sua idade. Mas Edmund nunca passou de um feixe de nervos, tal qual a mãe! Durante anos e anos preveni-o de que seu corpo não poderia suportar uma vida daquelas, mas ele nunca quis me dar ouvidos, e agora é tarde demais.

JAMIE (asperamente)Que quer dizer? Tarde demais por quê? Você fala como se acreditasse que...

TYRONE (num impulso de sua consciência que se sente culpada) Não seja idiota! Quis dizer apenas o que a todos é claro e evidente! A saúde de Edmund está abalada; e talvez durante muito tempo ele não passe de um inválido!

JAMIE (fita-o absorto, e comenta, ignorando a observação do pai)Sei que os camponeses irlandeses crêem que a tuberculose é sempre fatal. E é provável que o seja de fato, quando se vive num casebre sobre um pântano; porém aqui, com um tratamento moderno.. adequado...

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TYRONEAcaso não o sei? Que disparates está dizendo aí? E não fale da Irlanda com essa língua suja, nem faça pouco de seus camponeses e casebres... (Em tom acusador) Quanto menos disser sobre a doença de Edmund, melhor será para a sua consciência! É mais culpado do que qualquer um!

JAMIE (ferido)Isso é mentira! Não o admito, papai!

TYRONEÉ a pura verdade! Exerceu sobre Edmund uma influência nefasta. Ao crescer, ele o admirava como a um herói! Que belo exemplo lhe oferecia! Que eu o saiba nunca lhe deu um só exemplo que não fosse péssimo. Fê-lo envelhecer prematuramente, entulhando-o do que crê ser a “sabedoria humana”; e isto quando Edmund ainda era jovem demais para compreender que era seu próprio fracasso que lhe envenenava a alma; que para você todo homem não passa de um canalha à venda e toda mulher de uma cretina ou uma prostituta.

JAMIE (defendendo-se novamente com uma espécie de indiferença e de cansaço)Está bem. Sim; explicava a Edmund a verdade sobre os fatos da vida, mas somente quando o via excitado a ponto de fazer alguma asneira, e que sabia que ele zombaria de mim se eu tentasse dar-lhe um bom conselho... o tradicional conselho fraternal. Limitei-me a fazer dele um camarada, e fui absolutamente franco; para que dos seus erros ele tirasse a lição, e compreendesse que... (encolhe os ombros cinicamente) se não se pode ser um santo, ao menos deve-se ser cauteloso! (Seu pai respira fortemente, com desdém. Repentinamente, Jamie se sente comovido.) Sua acusação é absurda, meu pai. Você bem sabe tudo o que Ed significa para mim e a intimidade que sempré existiu entre nós dois... Não a que é usual entre irmãos... Eu faria tudo por ele.

TYRONE (impressionado, abranda-se)Talvez tenha realmente acreditado que fosse para o seu bem, Jamie. Eu o sei. Não digo que o tenha feito de propósito, para prejudicá-lo.

JAMIEMesmo porque isso seria falso! Gostaria de ver alguém influir sobre Ed contra a sua vontade... Aquele seu jeito taciturno faz com que todos acreditem que podem manejá-lo à vontade... Mas Edmund é muito esperto e só faz o que quer, e manda às favas todo o resto! Acaso tive alguma coisa que ver com as loucuras que andou praticando nesses últimos anos... correndo mundo como marujo, e tudo mais?!... A vida dele me parecia estúpida, e eu lho disse várias vezes! Acho que você bem pode calcular que não me agradaria muito permanecer encalhado na América do Sul, ou viver em

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tugúrios imundos, bebendo cachaça de má qualidade, não é verdade? Não, muito obrigado! Que me dêem a mim a Broadway e um apartamento com banheiro privado, e bares onde sirvam do melhor uísque, isso sim!

TYRONEVocê e a sua Broadway! Isso é o que faz de você o que é. (Com laivo de orgulho) Faça Edmund o que fizer, tem a coragem de seguir adiante, e não vem choramingar junto de mim, mal se encontra sem um centavo!

JAMIEE por acaso não acaba sempre por regressar à casa sem dinheiro? E o que lucrou em ir para longe? Olhe para ele, como está agora! (Bruscamente envergonhado) Deus meu! Não tive a intenção de dizer o que disse... Foi indigno de minha parte.

TYRONE (ignorando as palavras do filho)Edmund está fazendo progressos como jornalista. Julguei que ele tivesse, por fim, encontrado o emprego sonhado.

JAMIE (sarcástico e novamente enciumado)Num jornaleco de um povoado insignificante! Ignoro que mentiras lhe são contadas, meu pai, mas o que me dizem a mim é que Ed não passa de um cronista muito folgado... Se ele não fosse seu filho... (Mais uma vez arrependido) Não, isto não é verdade! No jornal todos se alegram de tê-lo por companheiro e apreciam o material especializado que ele lhes proporciona. Alguns de seus poemas e paródias são realmente notáveis. (Novamente áspero) Mas é claro que não será escrevendo coisas assim que ele chegará a grandes alturas. (Precipitadamente) Embora não haja dúvida de que começou com o pé direito.

TYRONESim, começou bem. Costumava dizer sempre que queria ser jornalista, mas nunca se dispôs a começar desde o primeiro degrau.

JAMIEOra, papai! Pelo amor de Deus! Deixe-me em paz!

TYRONE (olha-o fixamente e logo desvia o olhar, e diz depois de uma pausa)Que azar que Edmund tenha ficado doente precisamente agora! Isso não poderia ter acontecido em pior ocasião. (Acrescenta, sem conseguir disfarçar um certo mal-estar, quase furtivo) Nem para sua mãe tampouco. É terrível que isso a venha transtornar, logo agora, quando mais necessita de paz e despreocupação. Estava tão bem quando voltou há dois meses. (Sua voz torna-se trêmula e rouca.) Foi então o paraíso para mim. Esta casa tornou a ser um lar... Mas não preciso dizer-lhe isso, Jamie.

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(Pela primeira vez, o filho o fita com simpatia e compreensão. Dir-se-ia que entre ambos acaba de surgir um sentimento comum no qual o velho antagonismo poderia ser olvidado.)

JAMIE (suavemente)Sinto o mesmo, pai.

TYRONESim. Desta vez, você deve ter notado como ela se mostra forte e segura de si. E uma mulher completamente diferente. Domina seus nervos, ou pelo menos os dominava até que Ed apareceu doente. Agora, sente-se nela a tensão e o medo que procura a todo custo reprimir. Oxalá pudéssemos ocultar-lhe a verdade, mas isso será impossível se tivermos que enviar Ed para um sanatório. O que agrava ainda mais a situação é que o pai de Mary morreu tuberculoso. Ela o adorava e nunca o esqueceu. Sim, vai ser duro para ela. Mas poderá reagir. Tem agora a força de vontade necessária. Devemos ajudá-la de todas as formas possíveis, Jamie!

JAMIE (comovido)Naturalmente, papai. (Hesitante) A não ser os nervos, parecia estar muito bem esta manhã.

TYRONE (já com renovada confiança)Nunca esteve melhor! Transborda de alegria e malícia. (Repentinamente franze o sobrecenho, olhando para Jamie.) Por que diz “parecia”? Por que não há de estar muito bem? Que diabo quer insinuar?!

JAMIENão me provoque mais, pai. Num assunto desta natureza, deveria ser possível falarmos, um com o outro, com franqueza e sem discutir.

TYRONEDesculpe, Jamie. (Com voz tensa) Mas, vamos.. diga-me.

JAMIENada tenho a dizer-lhe. Estava enganado, pronto! Referia-me, apenas, a esta última noite. Bem... você sabe como são essas coisas. Não consigo esquecer o passado. Nem dominar as minhas suspeitas. Como você o faz... (Com amargura) E isto é terrível.. é terrível também para mamãe! Ela sente que a observamos...

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TYRONE (sombriamente)Eu sei!! (Novamente tenso) E depois? Não pode falar claro por uma vez?

JAMIE

Mas se lhe afirmo que não há nada... E só essa minha maldita estupidez! Acordei hoje às três horas da madrugada e a ouvi caminhar para o quarto de hóspedes. A seguir foi ao banheiro. Fingi que dormia. Mamãe parou no corredor e ficou à espreita, como se quisesse ter certeza de que eu estava realmente dormindo.

TYRONE (fingindo não dar importância)Ora! Céus! e é só isso? Ela mesma me disse que a sirene a havia despertado — e, desde que Edmund ficou doente, passa as noites subindo e descendo as escadas para ver como ele está.

JAMIE (com veemência)É isso mesmo! Fica de ouvido colado à sua porta, escutando. (De novo vacilante) O que me assustou foi o fato de ela ter ido ao quarto de hóspedes. Lembrei-me de que, sempre que ela começa a querer dormir sozinha ali, é sinal de que...

TYRONEPois, desta vez, não se trata disso! E a explicação é muito simples. Aonde irá ela, à noite, para fugir dos meus roncos?! (Entrega-se a um acesso de cólera e de ressentimento.) Meu Deus! Não entendo como pode viver com uma mentalidade dessas, vendo sempre os motivos piores atrás de tudo o que acontece.

JAMIE (irritado)Não me venha com suas críticas. Já lhe disse que me enganara. Não creia que isso me alegra tanto quanto o pensa.

TYRONE (apaziguador)Tenho certeza de que no fundo é como diz, Jamie. (Pausa. Sua expressão torna-se cada vez mais preocupada. Fala lentamente, com um terror supersticioso.) Seria uma fatalidade se ela não pudesse evitar que a sua preocupação por Edmund... Foi quando esteve muito doente, logo após o nascimento de Ed que ela, pela primeira vez...

JAMIEMamãe não teve culpa nenhuma nisso!

TYRONENão a estou culpando.

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JAMIE (sarcástico)Então, a quem é que você culpa? A Edmund por ter nascido?!

TYRONESeu estúpido! Ninguém teve culpa!

JAMIEO único culpado foi aquele médico velhaco. A julgar pelo que mamãe conta, não passava de um charlatão vulgar, tal qual Hardy! Você não lhe quis pagar um médico de primeira...

TYRONEMente! (Furioso) Então eu é que tenho a culpa, hem! É aí que quer chegar, não é assim, seu vagabundo maldito?!

JAMIE (em tom de advertência, ouvindo sua mãe mover-se na sala de jantar)Shss!

(Tyrone se levanta rápido e fica olhando para fora pela janela da direita. Jamie muda por completo de assunto.)

JAMIEBem. Se temos que recortar a sebe ali na frente, é melhor que comecemos logo. (Entra Mary que vem da sala de espera. Olha para ambos rapidamente, com ar de suspeita. Seus gestos são nervosos e pouco naturais.)

TYRONE (afastando-se da janela, e falando com a máxima naturalidade)É sim. A manhã está linda demais, para que se fique em casa a discutir. Espie pela janela, Mary. Não há mais névoa no porto. Parece-me que o manto que se abatera sobre a cidade se dissipou.

MARY (aproximando-se)Assim o espero, meu querido. (A Jamie, esforçando-se por sorrir) Ouvi quando sugeria ir trabalhar na sebe, Jamie. É de assombrar! Deve estar muito precisado de dinheiro, não, meu filho?

JAMIE (em tom brincalhão)Quando é que não estou? (Pisca-lhe o olho e olha com ar de zombaria para o pai.) Espero receber pelo menos o soldo de cabo raso em fim de semana... e ir gastá-lo todinho na farra!

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MARY (a alegria de Jamie parece nela não encontrar eco — suas mãos vão ajeitando a parte da frente do vestido)

Sobre que assunto vocês dois discutiam?

JAMIE (dando de ombros)Os mesmos assuntos de sempre.

MARYOuvi que falava de um médico, e seu pai o acusava de ser maldoso.

JAMIE (apressadamente)Ah, isso?! Eu estava dizendo que, para mim, o Dr. Hardy não era o melhor médico do mundo!

MARY (sente que Jamie está mentindo e replica num tom indeciso)Oh! Não! Certamente que não é! Sou da mesma opinião. (Mudando de assunto, com um sorriso forçado) Essa tal de Bridget! Julguei que nunca me livraria dela! Contou-me toda a vida de seu primo-irmão que trabalha na polícia de Saint Louis. (Nervosa e irritada) Pois bem. Se estava disposto a trabalhar na cerca, por que não vai de uma vez? (Precipitadamente) Aproveite o sol antes que volte a neblina. (Num tom estranho, como se falasse consigo mesma.) Sei, porém, que voltará... (De repente adivinha que ambos a olham fixamente e diz, nervosamente, agitando as mãos) Ou antes: quem o sabe é o reumatismo das minhas mãos. Prevê melhor o tempo do que você, James. (Contempla absorta suas próprias mãos como que possuída de uma repulsa que, ao mesmo tempo, a fascina.) Oh! como estão feias as minhas mãos! Quem poderia crer que já foram lindas?

(Eles a fitam, absortos, por sua vez, com um temor crescente.)

TYRONE (segura-lhe as mãos e as abaixa com carinho)Vamos, vamos, Mary. Deixe de tolices. São as mãos mais encantadoras deste mundo! (Ela sorri, seu rosto se ilumina, e beija-o agradecida. Ele se volve para o filho.) Vamos andando, Jamie. Sua mãe tem razão de nos censurar. A única maneira de se começar a trabalhar é começar de fato a trabalhar! O sol ardente fará com que transpire e derretera um pouco toda essa banha que tem na barriga!

(Abre a porta telada, sai para o pátio e desce por uma escadinha ao jardim. Jamie se levanta, tira o paletó e vai até a porta. No batente volta-se; porém evita olhar para a sua mãe. Ela tampouco o encara.)

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JAMIE (com uma ternura inquieta e desajeitada)Todos nos orgulhamos de você, mamãe. Você nos torna tão felizes! (Ela se vira para ele, rígida, e o encara num desafio assustador. Ele continua num tom hesitante.) Mas você ainda deve tomar cuidado. E não se inquietar tanto por Edmund. Ele se há de curar...

MARY (com um olhar carregado de ressentimento)É claro que se há de curar. E não sei o que você quer insinuar ao dizer-me que tenha cuidado...

JAMIE (magoado, encolhendo os ombros)Está bem, mamãe. Lamento ter falado.

(Sai para o pátio. Ela espera, rígida, até que ele desapareça. A seguir deixa-se cair na cadeira em que Jamie estava sentado. Sua fisionomia revela um desespero assustado, e suas mãos correm sobre a mesa, mudando os objetos de lugar, sem finalidade alguma. Escuta os passos de Edmund que desce. Ao chegar ao pé da escada, tem um acesso de tosse. Ela se ergue de um salto como se quisesse fugir de tal som e caminha, rápido, até a janela da direita. Olha para fora, aparentemente serena, quando ele entra, vindo da sala da frente, com um livro na mão. Mary volta-se para o filho. Nos seus lábios há um sorriso maternal de boas-vindas.)

MARYAh! era você? Ia justamente subir para vê-lo.

EDMUNDEsperei que eles saíssem. Não quero envolver-me em discussões. Sinto-me mal, muito mal.

MARY (como que com ressentimento)Oh! estou certa de que exagera! É tão garoto ainda! Gosta de nos afligir para que nos preocupemos com você. (Precipitadamente) Estou caçoando, meu filho. Compreendo como você deve sentir-se mal. Mas hoje está melhor, não é verdade? (Inquieta, segura-lhe o braço.) De qualquer modo, está muito fraco. Precisa descansar o mais possível. Sente-se que o ajeitarei confortavelmente. (Edmund senta-se na cadeira de balanço e sua mãe coloca-lhe uma almofada por trás das costas.) Assim; que tal está agora?

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EDMUND

Ótimo! Obrigado, mamãe.

MARY (beijando-o com ternura)Só precisa de uma coisa: é que sua mãe cuide de você. Com todo esse tamanho, continua sendo o garoto da família... não é isso mesmo?

EDMUND (segurando-lhe a mão, profundamente sério)Não pense em mim. Cuide de si própria. Isto é o que importa.

MARY (desviando o olhar)Mas eu o faço, querido. (Com um riso forçado) Meu Deus! não vê como engordei? Vou ter que alargar todos os meus vestidos. (Vira-se e caminha até as janelas da direita. Toma um tom frívolo e alegre.) Já começaram a podar a sebe. Pobre Jamie! Como o aborrece ter que trabalhar na frente da casa, onde pode ser visto por todos os que passam! Lá vão os Chattfield na sua Mercedes nova. Que lindo carro, não acha? Não é como o nosso Packard de segunda mão. Coitado do Jamie! Agachou-se atrás da cerca para que não o vejam! Os Chattfield cumprimentam seu pai, e este lhes responde como se o pano de fundo do teatro se abrisse e ele aparecesse para receber os aplausos! E veste aquela roupa velha e surrada que tentei por todos os meios fazê-lo pôr de lado. (Percebe-se amargura na sua voz.) James deveria ter mais amor-próprio e não dar tais espetáculos!

EDMUNDQual! Papai faz muito bem em não se preocupar com a opinião alheia. E Jamie é um tolo de dar tanta importância aos Chattfield. Por Deus! quem jamais ouviu falar neles fora desse vilarejo?

MARY (com satisfação)Ninguém. Tem toda a razão, Edmund. Não passam de “grandes sapos num pequeno charco”. Jamie é um tolo. (Interrompese enquanto olha pela janela, e logo à seguir continua, com um travo de inveja e insatisfação.) Contudo, os Chattfield, e toda a gente como eles, significam algo. Possuem casas decentes, de que não têm que se envergonhar. E amigos a quem recebem e que por sua vez os convidam. Não vivem isolados de todos. (Afasta-se da janela.) Não é que me interessam. Sempre odiei esse povoado e seus habitantes. Bem o sabe. Eu não queria viver aqui, mas seu pai agradou-se do lugar, insistiu em edificar esta casa, e agora tenho que vir todos os verões.

EDMUND

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Bem... É sempre preferível do que passá-los num hotel de Nova York... não é verdade? E este lugarejo não é assim tão ruim. Agrada-me bastante. Talvez porque seja o único lar que já tivemos.

MARY

Esta casa nunca me pareceu um lar. Desde o inicio foi um fracasso! Tudo foi feito com a maior economia possível. Seu pai não quis gastar o necessário para pô-la em condições. É melhor que não tenhamos feito amizades por aqui. Eu me envergonharia se atravessassem o limiar de nossa porta. A James nunca lhe agradaram os amigos da família. Aborreceu-o sempre visitá-los ou recebê-los. Só lhe agrada acotovelar-se com homens no clube ou em algum bar. Jamie e você são como ele, mas a culpa não lhes cabe. Aqui nunca tiveram oportunidade de conhecer gente decente. Não seriam o que são se tivessem lidado com moças direitas, em vez de farrear com... Nunca se teriam desonrado dessa maneira... a tal ponto que nenhum pai respeitável permite a sua filha que apareça em público com vocês.

EDMUND (com irritação)Ora, mamãe. Esqueça isso. E que importância tem? Se fosse assim, Jamie e eu morreríamos de tédio! E quanto ao velho... de que adianta falar?... não podemos mudá-lo.

MARY (censurando-lhe as palavras mecanicamente)Não chame seu pai de velho. Seja mais respeitador. (Com tristeza na voz) Compreendo que é inútil falar. Mas às vezes sinto-me tão só.

EDMUNDDe todos os modos você deve ser justa. Talvez a culpa a princípio tenha sido mesmo somente dele, de papai, mas você bem sabe que depois, mesmo que ele o tivesse aceito, não poderíamos receber gente aqui.. (Hesita, com ar culpado.) Quero dizer... você seria a primeira a não receber ninguém.

MARY (tem um sobressalto e seus lábios tremem de modo lastimável)Não diga isso. Magoa-me quando o recorda.

EDMUNDNão leve a mal! Por favor, mamãe, estou tratando de ajudá-la. Porque não convém que você se esqueça... É preciso que você se lembre. Sempre... para estar de guarda... Você sabe o que já passou. (Com um ar desolado) Deus meu! Você deve compreender

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o quanto sofro ao fazê-la recordar tudo isso! Faço-o porque tem sido maravilhoso tê-la novamente em casa, e seria tremendo...

MARY (aborrecida)Por favor, querido. Sei que a sua intenção é das melhores, mas... (Na sua voz reaparece o mal-estar com que pretende proteger-se) Não compreendo por que diz de repente coisas assim. Por que lhe ocorrem essas idéias hoje?

EDMUND (evasivamente)Por nada. Talvez porque me sinta desanimado e triste.

MARY

Diga-me a verdade. A propósito de que essa repentina desconfiança?

EDMUNDMas não existe desconfiança alguma.

MARY

Oh! sim, bem que a pressinto. Seu pai e Jamie também desconfiam de mim... sobretudo Jamie.

EDMUNDVamos! Não comece a imaginar coisas, mamãe.

MARY (suas mãos se agitam nervosamente)A vida toma-se muito mais penosa quando se vive numa atmosfera de constantes suspeitas, sabendo que todos são levados a espionar-nos e ninguém confia em nós.

EDMUNDIsto é absurdo, mamãe. Todos confiamos em você.

MARYSe ao menos eu tivesse para onde fugir por um dia ou uma tarde sequer... Uma amiga com quem falar... Oh! sobre nada de sério... apenas para rir e conversar e esquecer por algum tempo... alguém que não fosse essa empregada... essa pobre estúpida Cathleen.

EDMUND (inquieto, levanta-se e passa-lhe o braço em volta dos ombros)Chega, mamãe, você se irrita sem motivo.

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MARY

Seu pai sai. Encontra-se com os amigos no bar ou no clube. Você e Jamie também têm amigos e saem pelo seu lado. Mas, eu fico só — sempre tenho estado só.

EDMUND (em tom tranqüilizador)Ora, mamãe, você bem sabe que isso não é verdade. Um de nós fica sempre com você ou a acompanha quando você dá um passeio de carro.

MARY (com amargura)Porque receiam deixar-me a sós. (Voltando-se com aspereza) Insisto em que me diga por que agiu de uma maneira tão estranha na manhã de hoje... por que se achou na obrigação de me recordar...

EDMUND (hesita e se desabafa com ar de culpa)É tolice, bem sei. Eu não estava dormindo a noite passada quando você entrou no meu quarto... E você não voltou ao seu quarto — aquele em que dorme com papai, e passou o resto da noite no de hóspedes.

MARY

Porque os roncos de seu pai me enlouqueciam! Pelo amor de Deus! Por acaso já não tenho dormido muitas vezes no quarto de hóspedes?... (Com amargura) Ah! mas já sei, já compreendo o que pensou... Foi então que...

EDMUND (com uma veemência exagerada) Não pensei nada!

MARY

Mas fingia dormir, para espionar-me melhor!

EDMUND

Não! Não! Eu o fiz porque se você descobrisse que eu estava com febre e não conseguia conciliar o sono, ainda ia afligir-se e contrariar-se!

MARY

Sem dúvida!... e Jamie também fingia dormir, e seu pai...

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EDMUNDBasta, mamãe.

MARYOh! Não posso suportar que até você... (Ergue nervosamente as mãos ao cabelo para ajeitá-lo no seu gesto habitual, mecônico e ausente. De improviso, uma estranha expressão de vingança se insinua na sua voz.) Vocês bem mereciam que fosse verdade!

EDMUNDMamãe! Não diga isto! Você fala assim quando...

MARY

Chega de suspeitas! Por favor, meu filho! Magoa-me assim. Eu não podia dormir porque pensava em você. Essa é a verdadeira razão. Desde que ficou doente, vivo tão preocupada... (Envolve-o com os braços e o estreita contra si com carinho protetor e ao mesmo tempo temeroso.)

EDMUND (num tom tranqüilizador)Que tolice! Você bem sabe que isso não passa de um resfriado de verão, desses resfriados rebeldes...

MARY

Sim, naturalmente eu o sei.

EDMUNDMas, escute-me, mamãe. Prometa-me que, mesmo que isto se transforme em alguma coisa de pior, você pensará que breve estarei curado, sem viver consumindo-se de aflição, e continuará a se tratar.

MARY (com temor)Não quero ouvi-lo quando diz tolices. Não há motivos para que fale como se esperasse algo de terrível. Claro que lhe prometo! Dou-lhe a minha palavra de honra. (Com triste amargura) Mas, sem dúvida, recordará que essa palavra eu já a dei outras vezes.

EDMUND

Não.

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MARY (sua amargura se abranda até se transformar em resignada impotência)Não o culpo, meu filho. Como poderia evitá-lo? Como conseguiríamos esquecer? (Com um ar estranho) É por isso que tudo se nos torna tão difícil... Não podemos esquecer.

EDMUND (agarrando-a pelo ombro)Mamãe! Chega!

MARY (com um sorriso forçado)Bem, querido! Não queria ser tão lúgubre assim! Não faça caso de mim... Venha, deixe-me tocar-lhe a cabeça. Mas... está tão fresca! Agora não tem febre...

EDMUNDEsqueça isso, mamãe. É você que...

MARY

Mas eu me sinto perfeitamente bem, meu querido. (Lançando-lhe um olhar rápido, estranho, quase tímido e ao mesmo tempo calculador) Só que, naturalmente, na manhã de hoje, depois de ter passado uma noite tão ruim, estou cansada e nervosa. Na verdade, deveria dormir um pouco até a hora do almoço. (Ele a fita com instintiva suspeita. Logo, porém, envergonhado de si mesmo, afasta rapidamente o olhar. Ela prossegue, nervosamente.) Que é que vai fazer? Ler um pouco aqui? Seria tão melhor que fosse tomar um pouco de ar e sol. Mas não se exponha demais. Para maior precaução, ponha um chapéu. (Interrompe o que está dizendo e o fita nos olhos. Ele foge ao seu olhar. Há uma pausa tensa. Logo a seguir, Mary fala em tom irônico.) Ou será que receia deixar-me só?

EDMUND (torturado)Não! Não fale assim. Você deveria dormir um pouco. (Caminha até a porta telada e, num tom afetadamente jovial) Vou descer para ajudar Jamie a passar aquele mau pedaço. Gosto de ficar estendido na sombra e vê-lo trabalhar!

(Ri com esforço e ela o imita. Edmund sai logo para o patamar e desce a escadinha. A primeira reação de Mary é de alívio, e ela parece relaxar-se. Deixa-se cair numa das poltronas de vime que se acham por trás da mesa e joga a cabeça para trás, fechando os olhos. Porém sua tensão logo após reaparece. Abre os olhos e se inclina para a frente, num acesso de pânico nervoso. Começa a travar sua desesperada luta consigo mesma. Seus longos dedos deformados, de nódulos inchados pelo reumatismo, tamborilam sobre os

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braços da poltrona, como que impulsionados por uma vida própria, insistente, e que prescinde de seu consentimento.)

FIM DO ATO I

ATO II

CENA 1

Cenário: O mesmo; aproximadamente à uma hora menos um quarto. O sol agora não entra pelas janelas da direita. O dia ainda está bonito, porém cada vez mais sufocante, com uma leve cerração que paira no ar, amortecendo o brilho do sol.

Edmund, sentado na poltrona que está à esquerda da mesa, lê um livro. Ou, antes, tenta concentrar-se na leitura do mesmo, sem, todavia, consegui-lo. Dir-se-ia que presta atenção a qualquer ruído que venha do primeiro andar. Seus gestos são nervosamente apreensivos, e parece ainda mais enfermo do que no ato precedente. Cathleen, a empregada, sai da sala dos fundos. Traz uma bandeja com uma garrafa de uísque e um jarro de água gelada. É uma robusta camponesa irlandesa, de vinte e poucos anos e rosto rechonchudo, de ar agradável, olhos azuis e cabelos negros. É amável, ignorante, desajeitada e dotada de uma estupidez integral, mas bem intencionada. Põe a bandeja sobre a mesa. Edmund pretende estar tão absorto na sua leitura que não se apercebe de sua presença, mas ela finge não reparar nisso.

CATHLEEN (com uma familiaridade loquaz)Aqui está o uísque. Falta pouco para o almoço. Devo chamar o seu pai e o Sr. Jamie ou o senhor mesmo o fará?

EDMUND (sem erguer os olhos) Você pode chamá-los.

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CATHLEEN

Por que seu pai não olha para o relógio de vez em quando? É o diabo em pessoa para atrasar as refeições e Bridget começa logo a me amaldiçoar, como se eu tivesse culpa! Contudo, o Sr. James é um homem e tanto, apesar da idade! O senhor nunca será bonitão como ele, nem o Sr. Jamie tampouco! (Ri.) Apostaria como o Sr. Jamie não perderia a oportunidade de interromper o trabalho para tomar o seu uísque, se tivesse um relógio para ver as horas.

EDMUND (renuncia à sua simulação, e sorri) E ganharia a aposta!

CATHLEEN

E vou ganhar mais outra ainda: é que o senhor me mandou chamá-los, de modo que possa tomar, às escondidas, o seu traguinho, antes que eles venham!

EDMUNDOra veja! E eu que não tinha pensado nisto...

CATHLEEN

Ah! não?! Vamos, Sr. Edmund! Mal eu virasse as costas...

EDMUNDMas, já que você me deu a idéia...

CATHLEEN (repentinamente pudica e virtuosa)Eu nunca sugeri a um homem ou a uma mulher que tocasse em bebida alguma, Sr. Edmund. Foi isso o que matou um tio meu lá na Irlanda... (Abrandando-se) Mas é certo que um calicezinho de vez em quando não faz mal a ninguém, especialmente quando se está deprimido ou resfriado.

EDMUNDObrigado por me ter fornecido uma boa desculpa. (Com forçada despreocupação) É melhor chamar também mamãe.

CATHLEEN

Para quê? Ela sempre vem na hora, sem que seja preciso chamá-la. Graças a Deus, aquela tem um pouco de consideração pelos empregados.

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EDMUNDMas é que ela está dormindo.

CATHLEEN

Não estava dormindo não, quando terminei a arrumação lá em cima. Estava recostada no quarto de hóspedes, com os olhos bem abertos. Disse-me que tinha uma terrível enxaqueca.

EDMUND (esforçando-se sempre mais por parecer despreocupado)Bom, nesse caso chame somente papai.

CATHLEEN (indo até a porta telada e resmungando, mas com bonomia)Não é à toa que todas as noites estou descadeirada! Não vou sair lá fora com este calor para me expor a uma insolação. Vou chamá-los daqui mesmo da entrada. (Sai pelo pórtico lateral, fechando com violência a porta telada, e vai até o hall da frente. Ao cabo de um momento, ouve-se a sua voz chamando) Senhor Tyrone, Senhor Jamie! Já está na hora!

(Edmund, cujo olhar fixo revela temor, pondo de lado o livro, ergueu-se de um salto)

EDMUND

Oh! Senhor, que mulherzinha intolerável!

(Agarra a garrafa de uísque, serve-se de uma dose, acrescenta-lhe água gelada e bebe. Enquanto o faz, ouve alguém que entra pela porta principal. Precipitadamente, Edmund deposita o copo sobre a bandeja, torna a sentar-se e a abrir o livro. Jamie entra, vindo da sala da frente, trazendo o paletó no braço. Retirou o colarinho e a gravata e os tem na mão. Seca com um lenço o suor que lhe escorre da testa. Edmund ergue os olhos como se lhe tivessem interrompido a leitura. Jamie olha para os copos e a garrafa de uísque e, cínico, sorri.)

JAMIEPelo que vejo, anda bebendo um golezinho às escondidas, hem? Chega de comédias, Ed. Como ator você ainda é pior do que eu.

EDMUND (sorri)48

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Sim, bebi enquanto podia fazê-lo.

JAMIE (pondo-lhe afetuosamente a mão sobre o ombro)Antes assim. Por que haveria de me enganar? Por acaso não fomos sempre camaradas?

EDMUND

Não sabia quem era que vinha entrando.

JAMIERecomendei ao velho que consultasse as horas no seu relógio. Já estava a meio caminho quando Cathleen começou a chamar. Essa nossa selvagem andorinha irlandesa! Deveria antes ser um apregoador de trens!

EDMUNDFoi por isso que bebi. Por que não toma também um gole enquanto tem oportunidade?

JAMIEEstava pensando justamente nisso. (Dirige-se apressado até a janela da direita.) Deixei papai conversando com o velho capitão Turner. E ainda estão lá os dois. (Volve até a mesa e bebe.) Agora é tratar de ocultá-lo de seu olhar de águia! (Como de hábito, grava na memória o nível de uísque na garrafa após cada dose. Calcula então duas medidas de água, derrama-as na garrafa e agita esta.) Pronto! Assunto resolvido! (A seguir põe água nos copos e os deixa sobre a mesa junto ao irmão.) E aí está a água que você está bebendo...

EDMUND

Está bem! Mas você não pensa, porventura, conseguir engana-lo, não é?

JAMIE

Talvez não, porém ele não o poderá provar. (Põe o colarinho e a gravata.) Espero que o velho não esqueça a hora do almoço, tão enlevado está em ouvir falar de si mesmo. Estou com fome. (Sentando-se á mesa defronte de Edmund, num tom de irritação) Por isso é que me aborrece trabalhar na cerca. O velho leva a representar uma comédia para cada imbecil que passa.

EDMUND (desanimado)Tem fome? Que felizardo! No meu estado de espírito tanto se me dava nunca mais comer!

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JAMIE (olhando-o preocupado)Escute, rapaz. Você me conhece, nunca fui de sermões, mas o Dr. Hardy tinha razão quando recomendou que você suprimisse o uísque.

EDMUNDOh! Já basta ter que fazê-lo logo mais à tarde, quando o Dr. Hardy me der a notícia má que me espera! Até lá, uns tragos a mais ou a menos não têm importância alguma.

JAMIE (hesitante, lentamente)Prefiro que tenha o ânimo preparado para as más notícias. Assim o choque não será tão fone. (Observa que Edmund o olha fixamente.) Quero dizer que seu estado inspira cuidados e não seria conveniente que se iludisse.

EDMUND (nervoso)Mas não me iludo. Sinto-me mal e sei que a febre e os calafrios que tenho à noite são sintomas sérios. Creio que a última hipótese sugerida pelo Dr. Hardy é a certa. Deve ser uma recaída daquela maldita malária.

JAMIETalvez seja, mas não fique demasiado seguro.

EDMUNDE por que não? Que supõe?

JAMIEHomem de Deus! Como quer que eu o saiba? Não sou médico. (Bruscamente) Onde está mamãe?

EDMUNDEstá lá em cima.

JAMIE (olhando para o irmão de um modo penetrante) Quando foi que ela subiu?

EDMUNDOh! creio que foi quando desci ao jardim. Disse-me que desejava dormir um pouco.

JAMIEVocê não me falou.

EDMUND (na defensiva)

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Para quê? Acaso tem isso alguma coisa de extraordinário? Estava fatigada. Dormiu mal a noite passada.

JAMIEEu o sei.

(Uma pausa. Ambos evitam encarar-se mutuamente.)

EDMUNDEssa maldita sirene também me impediu de dormir.

(Nova pausa.)

JAMIEEla então esteve sozinha lá em cima a manhã inteira. Você não a viu?

EDMUNDNão. Estive aqui lendo. Quis dar-lhe a oportunidade de descansar um pouco.

JAMIEEla vai descer para o almoço, não?

EDMUNDSim, decerto.

JAMIE (em tom seco)Decerto, nada! Talvez não queira almoçar. Ou recomece a almoçar sozinha lá em cima. Não seria a primeira vez, não é verdade?

EDMUND (com assustada angústia)Basta, Jamie! Nunca lhe ocorre algo que não seja...? (Em tom persuasivo) Não há motivo para suspeitas. Cathleen a viu há pouquinho. Mamãe não a avisou de que não desceria para almoçar.

JAMIE

Então ela não estava dormindo?

EDMUNDNão, mas estava deitada, disse-me Cathleen.

JAMIE

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No quarto de hóspedes.

EDMUNDSim. Pelo amor de Deus, que há de mal nisso?

JAMIE (estourando)Imbecil! Por que a deixou tanto tempo sozinha? Por que não ficou a seu lado?

EDMUNDPorque me acusou... e a você e a papai de espioná-la continuamente e de não confiar nela. Senti-me envergonhado. Sei como deve ser penoso para ela. E ela me deu sua palavra de honra.

JAMIE (com amargo cansaço)Você já deveria saber que isto nada significa!

EDMUNDDesta vez, sim!

JAMIEIsso é o que pensamos em outras ocasiões... (Debruça-se sobre a mesa e aperta afetuosamente o braço do irmão.) Escute aqui, Ed, sei que julgará que não passo de um canalha e de um cínico, mas lembre-se de que já conheço muito mais essa brincadeira do que você. Você nunca se apercebeu do que se passava até ingressar na escola preparatória. Papai e eu lhe escondíamos tudo. Mas eu já o sabia dez anos ou mais antes que nos víssemos forçados a lhe contar a verdade. Conheço o jogo de trás para diante e toda a manhã levei a meditar na maneira estranha por que ela agiu ontem à noite, quando julgou que estávamos dormindo. Não consigo pensar em mais nada! E agora você diz que ela conseguiu o que queria: que a deixassem sozinha lá em cima a manhã inteira.

EDMUNDMas não foi nada disto! Você está louco!

JAMIE (conciliador)Bem, Ed. Não vamos discutir. Quero crer, como diz, que estou louco. Sentia-me muito feliz porque começava a crer que, desta vez, realmente... (Interrompe a frase — olhando através da sala da frente para o vestíbulo — e apressadamente abaixa a voz.) Ela vem descendo. Você tinha razão. Não passo de um tipo desconfiado... (Ambos ficam tensos numa assustada expectativa cheia de esperança.) Com todos os diabos! Desejaria tomar outro uísque!

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EDMUNDTambém eu o desejaria.

(Tosse nervosamente, o que lhe provoca um verdadeiro acesso, que se prolonga. Jamie olha rapidamente na sua direção com preocupação e piedade. Chega Mary da sala da frente. No primeiro instante não se nota na sua pessoa mudança alguma, embora pareça menos nervosa e mais igual àquela que vimos pela primeira vez logo após o café. Mas... aos poucos observa-se que seus olhos têm maior brilho e há um certo alheamento na sua voz e no seu modo de ser, como se ela estivesse, por assim dizer, desgarrada de suas próprias palavras e ações)

MARY(aproxima-se inquieta de Ed e o abraça)Você não deve tossir dessa maneira. Isso faz mal à garganta. Você não há de querer, além do resfriado, ter ainda por cima uma dor de garganta.

(Beija-o. Edmund para de tossir e a observa num rápido golpe de vista apreensivo. Mas, se desconfia de algo, a ternura com que a mãe o trata faz com que renuncie de pronto a qualquer suspeita, e creia apenas no que deseja crer naquele momento. Por outro lado, Jamie, após um único olhar perscrutador, sente que suas desconfianças são justificadas. Abaixa os olhos e os fixa no chão, e na sua fisionomia aparece uma expressão dura de amargurado cinismo. Mary continua a falar, recostada no braço da poltrona de Edmund, o braço em volta do filho, de modo que seu rosto fica por cima e por trás do dele e ele não a pode fitar em cheio nos olhos.)

MARY

Mas pareço estar sempre a dizer-lhe que não deve fazer isto, que não deve fazer aquilo... Perdoe-me, querido. Quero simplesmente cuidar de você.

EDMUNDEu sei, mamãe. E você? Descansou bastante?

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MARY

Descansei sim. Sinto-me tão melhor! Estive deitada desde que você saiu. Era disso que eu precisava após uma noite tão ruim. Agora já não me sinto nervosa.

EDMUNDQue bom, mamãe!

(Acaricia-lhe a mão que Mary apoiou no seu ombro. Jamie lança ao irmão um olhar estranho, quase desdenhoso, como se lhe perguntasse se realmente pensa o que diz. Edmund nem o nota, mas o mesmo não acontece com Mary.)

MARY (num tom forçado de brincadeira)Deus meu! Que ar mais compungido, Jamie! Que sucede agora?

JAMIE (sem encará-la)Nada.

MARY

Ah! Esqueci-me de que você esteve trabalhando no jardim... Isso explica o seu desânimo, não é assim?

JAMIESe você quer crer que seja isso, mamãe.

MARY (mantendo o mesmo tom)Esse é o efeito que parece sempre causar em você, não é verdade? É como que um menino grande! Não acha, Edmund?

EDMUNDÉ claro! É um tolo que se preocupa com a opinião alheia!

MARY (em tom distante)É a única coisa que se pode fazer: não ligar... (Ela percebe o olhar acerbo que Jamie lhe lança e muda de assunto) Onde está o seu pai? Ouvi Cathleen chamá-lo.

EDMUNDJamie disse que ele estava de conversa com o velho capitão Turner. Como sempre, chegará atrasado.

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(Jamie se levanta e se dirige até as janelas à direita, contente por ter um pretexto para se afastar)

MARY

Já disse a Cathleen, não sei quantas vezes, que ela deve ir procurá-lo onde ele estiver, e avisá-lo de que está na hora. Que idéia essa de ficar gritando de longe, como se aqui fosse uma pensão barata!

JAMIE (espiando pela janela)Cathleen está lá embaixo agora. (Com sarcasmo) Interrompendo a célebre “Voz Maviosa”! Deveria ter mais respeito!

MARY (ríspida — deixando irromper a sua hostilidade contra o filho)Você é quem deveria ser mais respeitoso. Pare de zombar de seu pai. Não o tolerarei mais! Deveria orgulhar-se de ser o seu filho! Ele pode ter seus defeitos. Quem não os tem? Mas trabalhou duro a vida inteira. Abriu o seu caminho; desde a ignorância e a pobreza até o apogeu que atingiu na sua profissão! Todos os demais o admiram e você deveria ser o último a fazer pouco dele — você que, graças a ele, nunca teve que fazer força nem trabalhar de verdade! (Ferido em cheio, Jamie se volta e a encara com um antagonismo acusador. O olhar de Mary vacila, com ar culpado, e ela prossegue num tom que já se aplaca) Lembre-se de que seu pai está ficando idoso, Jamie. Você deveria demonstrar-lhe um pouco mais de consideração.

JAMIEAh! Eu é que deveria?...

EDMUND (constrangido)Oh! Acabe com isso, Jamie. (Seu irmão toma a olhar pela janela) E, pelo amor de Deus, mamãe, por que você se vira assim de repente contra Jamie?

MARY (com amargura)Porque está sempre a escarnecer de alguém, sempre a buscar o ponto fraco de cada um. (Bruscamente há uma súbita mudança na sua entonação, que se torna distante e impessoal) Mas suponho que, afinal, foi o que a Vida fez dele e nada poderá mudá-lo. Nenhum de nós pode remediar as coisas que a Vida nos faz! Estão feitas antes mesmo que a gente se aperceba... e uma vez feitas nos levam a praticar outras tantas coisas até que, no fim, tudo se interpõe entre nós e o que quiséramos ter sido, e o nosso verdadeiro eu está para sempre perdido.

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(Edmund começa a se preocupar com a atitude estranha da mãe. Procura fitá-la nos olhos, mas Mary, obstinadamente, os desvia. Jamie volta-se para ela — mas, logo a seguir, torna a olhar pela janela)

JAMIE (em voz surda)Estou com fome. Gostaria que o velho viesse logo. Tem sempre essa insuportável mania de nos fazer esperar e depois se aborrece porque a comida não está em condições.

MARY (com um ressentimento meramente automático e superficial, pois que, no íntimo, isso não a afeta)

Sim, isso é muito desagradável, Jamie. Nem você mesmo imagina o quanto! Não tem que dirigir uma casa com empregadas de passagem que não se importam com coisa alguma porque sabem que é um emprego transitório. As boas criadas estão todas em casas de famílias que têm o seu lar permanente, e não apenas uma casa de verão. E nem ao menos seu pai está disposto a pagar os ordenados que esse pessoal pede. Todos os anos tenho que lutar com novatas ignorantes e preguiçosas. Mas vocês já me ouviram dizer isso mil vezes a seu pai também. E é inútil. Ele acha que gastar em casa é botar dinheiro fora! Viveu demais em hotéis. Nunca nos melhores, naturalmente, mas nos de segunda classe. Ele não avalia o que seja um lar. Não se sente à vontade em casa. E, no entanto, deseja tê-la. Até se envaidece desta casa tão modesta. (Ri — um riso de quem acha graça, mas sem ânimo algum.) Na verdade, chega a ser engraçado! É um homem estranho, seu pai.

EDMUND (tentando novamente fitá-la nos olhos, contrafeito) Por que você divaga assim, mamãe?

MARY (volta prontamente a um tom casual, e lhe dá um tapazinho amistoso na face)Oh! Por nada, querido. É tolice minha.

(Enquanto ela fala, Cathleen entra pelo hall dos fundos.)

CATHLEEN (loquaz)O almoço está pronto, senhora. Fui à procura do Sr. Tyrone, como a senhora mandou. Ele disse que viria logo, mas continuou conversando com aquele homem, falando dos tempos em que...

MARY (com indiferença)Está bem, Cathleen. Diga a Bridget que sinto muito, mas terá que esperar uns minutos mais, até que chegue o Sr. Tyrone.

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(Cathleen murmura: “Sim senhora” e sai pela sala dos fundos resmungando.)

JAMIEQue inferno! Por que não começamos a almoçar sem ele? Disse que não o esperássemos.

MARY (com um sorriso vago e divertido)Não falava a sério. Ainda não o conhece? Ficaria tão sentido!

EDMUND (levanta-se de um salto, como se o alegrasse encontrar um pretexto para retirar-se dali)

Vou apurar isso de uma vez. (Sai pelo vestíbulo lateral. Ao cabo de um momento ouve-se sua voz, gritando exasperado.) Ei! Papai! Venha logo! Não podemos esperá-lo o dia todo!

(Mary levantou-se e suas mãos tamborilam impacientemente sobre a mesa. Não olha para Jamie, mas sente o olhar cinicamente perscrutador com que este observa sua fisionomia e suas mãos.)

MARY(com ar tenso)Por que você me olha assim?

JAMIEVocê sabe muito bem. (Volve-se para a janela.)

MARY

Não, não sei.

JAMIEOra, por Deus! Mamãe! Julga, por acaso, que me pode enganar? Não sou cego.

MARY (olhando-o de frente, o rosto de novo contraído numa expressão perturbada de tenaz negativa)

Não sei o que você quer dizer.

JAMIENão? Então observe o seu olhar no espelho.

EDMUND (vindo do hall)

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Consegui que papai se pusesse a caminho. Estará aqui dentro de alguns segundos. (Olha sucessivamente para ambos. Sua mãe abaixa os olhos. Pergunta-lhe a contragosto) Que se passa, mamãe?

MARY (perturbada pela chegada do filho, desabafa-se numa excessiva excitação nervosa)

Seu irmão deveria envergonhar-se. Leva a insinuar não sei o quê...

EDMUND (virando-separa Jamie)Vá para o raio que o parta!

(Dá um passo ameaçador na sua direção. Jamie lhe vira as costas, dando de ombros, e espia pela janela.)

MARY (ainda mais transtornada, segura com força o braço de Edmund)Chega! Cale-se imediatamente. Como se atreve a usar de uma semelhante linguagem na minha presença? (Abruptamente seu tom e sua maneira de ser voltam ao estranho alheamento de há pouco.) Você faz mal em censurar seu irmão. Não pode deixar de ser o que o passado fez dele. Como seu pai tampouco não o pode, nem você... Nem eu mesma.

EDMUND (assustado, confiando desesperadamente contra toda lógica)Jamie mente! Isso é mentira, não é, mamãe?

MARY (desviando sempre o olhar)Mentira?... Que é mentira? Agora é você quem fala em enigmas como Jamie. (Nisso seus olhos se cruzam com o olhar angustiado e acusador do filho. Ela balbucia) Edmund, não me olhe assim. (Afasta o olhar e torna a se mostrar estranhamente impessoal e serena.) Seu pai já está subindo a escada. Tenho que avisar a Bridget. (Sai pela porta dos fundos.)

(Edmund se adianta lentamente até a sua poltrona. Parece doente e desesperançado.)

JAMIE (da janela, sem se virar)E então?

EDMUND (ainda se recusando a admitir algo diante do irmão, num débil desabafo)Então o quê? Você não passa de um mentiroso! (Jamie torna a dar de ombros. Ouve-se a porta telada do vestíbulo da frente que se fecha. Edmund diz em voz surda) Aí vem papai. Esperemos que não se preocupe muito com o nível do uísque na garrafa!

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(Chega Tyrone da sala da frente, vestindo o paletó.)

TYRONESinto ter-me atrasado. O capitão Turner parou para falar comigo, e ele quando começa a falar não há meios de a gente se livrar dele.

JAMIE (secamente, sem se virar)Você deveria antes dizer: quando começa a “escutar”.

(Tyrone olha para o filho com hostilidade e se aproxima da mesa, medindo, num rápido golpe de vista, o conteúdo da garrafa. Jamie o percebe)

JAMIENão se preocupe. O nível da garrafa não baixou.

TYRONENão olhava para isto. (Causticamente) E como se provasse alguma coisa, estando você por perto! Conheço suas espertezas!

EDMUND (em tom apático)Pareceu-me ouvi-lo dizer: “bebamos”.

TYRONE (vira-se para ele,franzindo a testa)Ainda vá lá que Jamie tome um trago depois do duro trabalho que teve no jardim. Porém não chamei você. O Dr. Hardy...

EDMUNDQue Hardy vá para o inferno! Um trago não me matará. Sinto-me esgotado, papai.

TYRONE (olhando-o com ar inquieto, mas querendo demonstrar jovialidade)Bom... beba! Já vamos comer. Verifiquei sempre que um uísque de boa qualidade tomado com moderação, como aperitivo, é o melhor dos tônicos. (Edmund se levanta, enquanto o pai lhe passa a garrafa, e se serve de uma boa dose de uísque. Tyrone fecha a cara, com ar autoritário) Eu disse: “com moderação”. (Serve-se por sua vez, e passa a garrafa a Jamie, resmungando) Falar a você em moderação seria perder tempo. (Fingindo não ter ouvido a observação, Jamie despeja no copo uma exagerada dose de uísque. O pai novamente franze o sobrecenho e logo, entregando os pontos, retoma o seu ar cordial, erguendo o copo) Bom! Bebo à saúde e à felicidade de todos!

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EDMUND (ri com amargura)Que boa pilhéria!

TYRONEQue foi que você disse?

EDMUNDNada. À sua saúde. (Bebem)

TYRONE (notando o ambiente)Que aconteceu por aqui? Está uma atmosfera tão carregada e tão lúgubre que poderia ser cortada a faca. (Volta-se para Jamie com ressentimento) Você já conseguiu o uísque que queria... não é assim? A troco de que essa cara fechada?

JAMIE (dando de ombros)Breve você também não se sentirá com disposição de cantar!...

EDMUNDCale a boca, Jamie.

TYRONE (constrangido e mudando de assunto)Pensei que o almoço estivesse pronto. Tenho uma fome de caçador. Onde está sua mãe?

MARY (regressando da sala dos fundos, grita)Estou aqui. (Entra. Está excitada e seus modos são pouco naturais. Quando fala, olha para todos os lados, mas não encara o marido nem os filhos) Tive que acalmar a Bridget. Está furiosa porque você voltou tarde novamente, e não a censuro por isso. Disse que a comida está toda ressequida no forno, de tanto esperar, e que é bem feito para você... que pode comer ou deixar de comer, como preferir. (Com crescente irritação) Oh! Cansa-me tanto e me põe doente viver fingindo que isto aqui é um lar de verdade! Você não quer ajudar-me! Não sabe como se portar. Na realidade, você não quer ter um lar! Nunca quis. Desde o próprio dia em que nos casamos. Você deveria ter ficado solteiro, morar em hoteizinhos ordinários e receber seus amigos nos bares! (Acrescenta num tom estranho, como se falasse consigo mesma) Então nada disso teria acontecido.

(Todos a fitam fixamente. Tyrone agora compreende. Bruscamente transforma-se num velho, cansado, triste e cheio de amargura. Edmund lança um rápido olhar ao pai e sente que este já sabe; contudo, ainda tenta prevenir a mãe.)

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EDMUNDMamãe. Pare de falar. Por que não vamos almoçar?

MARY (estremece e imediatamente sua fisionomia readquire um ar de alheamento pouco natural. Chega a sorrir para si própria com divertida ironia)

É mesmo! É falta de consideração, de minha parte, estar assim desenterrando o passado, quando sei que seu pai e Jamie devem estar com fome. (Passa o braço pelo ombro de Edmund, com um carinho solícito, mas ao mesmo tempo longínquo) Espero que você hoje tenha apetite, meu filho. Você precisa comer um pouco mais. (Seu olhar se fixa na garrafa de uísque sobre a mesa ao lado dele. Severamente) Por que está aí esse copo? Você bebeu? Oh! Como é que você pode fazer uma loucura dessas? Não sabe, então, que é a pior coisa para você? (Volta-se para Tyrone) A culpa é sua, James. Como é que você o deixou beber? Quer matá-lo? Não se recorda de meu pai? Nem depois de fulminado queria parar de beber. Dizia que os médicos eram uns idiotas! Como você, achava que o uísque era um ótimo tônico! (No seu olhar aparece uma expressão de terror e ela balbucia) Mas, naturalmente, não há termos de comparação possível! Não sei porque eu... Desculpe-me, James, por censurá-lo. Não é um pequeno gole de bebida que vai prejudicar Edmund. Talvez até lhe faça bem e lhe abra o apetite.

(Afaga de brincadeira o rosto de Edmund, notando-se em todo o seu modo de agir o mesmo estranho desgarramento. Ele, num movimento brusco, desvia a cabeça. Ela finge não perceber, mas instintivamente se afasta.)

JAMIE (rispidamente, para disfarçar a sua tensão de nervos)Pelo amor de Deus, vamos almoçar. Estive a manhã toda trabalhando naquela maldita terra debaixo da cerca. Já ganhei a minha comida. (Passa por trás de seu pai sem olhar para Mary e segura o braço de Edmund) Vamos, rapaz! Vamos comer a nossa ração!

(Edmund se levanta, evitando sempre o olhar de Mary. Ambos passam junto dela em direção à sala dos fundos.)

TYRONE (com voz sombria)Sim; vão indo na frente com sua mãe, rapazes. Irei ter com vocês dentro de um momento.

(Mas eles saem sem esperá-la. Mary os segue com o olhar magoado e, quando chegam à sala dos fundos, prepara-se

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para segui-los. Tyrone contempla-a com olhos tristes e acusadores. Mary o sente e vira-se bruscamente sem ousar encará-lo.)

MARY

Por que você me olha dessa maneira? (Suas mãos se erguem e ajeitam o cabelo) É o meu cabelo que está despenteado? Sentia-me tão esgotada depois da noite passada, que achei melhor recostar-me um pouquinho agora pela manhã. Cochilei um pouco, e esse soninho me fez bem. Mas tenho certeza como tornei a me pentear assim que acordei. (Com riso forçado) Se bem que, como de costume, não pude encontrar meus óculos. (Asperamente) Por favor, não fique olhando para mim dessa maneira. Parece que me está acusando... (súplice) James, você não compreende!...

TYRONE (com cólera fria)Compreendo que fui um imbecil acreditando em você. (Afasta-se dela e serve-se de uma boa dose de uísque.)

MARY (com o rosto contraído numa expressão de obstinado desafio)Não sei o que você quer dizer com essa história de não acreditar em mim. Só tenho sentido, em minha volta, desconfianças, espionagens e suspeitas. (Num tom acusador) Você nunca bebeu mais de um uísque antes do almoço. (Com amargura) Sei o que me espera. Hoje à noite você estará bêbedo. Bem, não será a primeira vez... não é verdade?! Ou será a milésima? (Novamente exclama implorando) Oh! James, por favor! Você não compreende! Edmund me preocupa tanto. Tenho um tal receio que ele...

TYRONENão quero escutar as suas desculpas, Mary.

MARY (ferida)Desculpas? Você quer dizer que...? Oh! Não é possível que você pense isso de mim! Não deve pensá-lo, James! (Toma-se a refugiar no seu mundo distante e impessoal, e continua com ar negligente) Não vamos almoçar, meu bem? Não quero comer coisa alguma, mas sei que você deve estar com fome. (Tyrone se aproxima lentamente de Mary, que se acha parada no batente da porta. Caminha como um velho. Quando chega junto à mulher, esta desabafa lastimosamente) James. Esforcei-me tanto, tanto... Por piedade, creia em mim!

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TYRONE (comovido a contragosto, mas impotente diante da situação)É, Mary, suponho que talvez você tenha mesmo lutado... (Com revolta) Mas, por Deus, como é que não teve a força de vontade necessária para tocar para diante?!

MARY (cuja fisionomia tornou a se fechar na mesma teimosia negativa)Não entendo de que fala. Força necessária para quê?!...

TYRONE (desesperançado)Tanto faz. Agora é inútil...

(Continua a caminhar, e ela ao seu lado, até que ambos desaparecem na sala dos fundos)

CENA II

Cenário: O mesmo, meia hora depois. A garrafa de uísque foi retirada de sobre a mesa. Ao abrir-se o pano, a família, que acabou de almoçar, regressa da sala de jantar. Mary é a primeira a entrar em cena, vindo da sala dos fundos. O marido a segue. Não a acompanha como quando entraram juntos ao iniciar-se o primeiro ato. Evita olhar na sua direção ou tocá-la. No seu semblante sentem-se a reprovação e os prenúncios de uma velha resignação, impotente e cansada. Jamie e Edmund vêm a seguir. A fisionomia de Jamie é dura, fechada num cinismo autoprotetor. Edmund tenta imitar essa atitude de defesa, mas sem lograr fazê-lo. Demonstra claramente estar aflito, além de fisicamente enfermo.

Mary mostra-se de novo nervosíssima, como se lhe tivesse sido excessiva a tensão durante o almoço em companhia dos seus. E, contudo, por outro lado — num estranho contraste —, sua fisionomia revela, com ainda maior evidência, aquele ar estranho e indiferente que parece alhear-se por completo do seu estado de nervos e dos conflitos que os abalam.

Ao entrar, Mary está proferindo uma verdadeira torrente de palavras que escorre de modo casual, na rotina de uma conversa familiar. Segundo parece, pouco lhe importa o fato

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de que os outros estejam dando, ao que diz, tão pouca importância quanto ela própria. Enquanto fala, caminha para o lado esquerdo da mesa e aí se detém, de frente para o público, uma das mãos tateando na blusa do vestido, a outra tamborilando no tampo da mesa. Tyrone acende o charuto e vai até a porta telada, olhando para fora. Jamie enche o cachimbo de fumo, que ele retira de um pequeno pote colocado sobre a estante de livros no fundo. Acende o cachimbo ao dirigir-se para a janela ao lado direito. Edmund senta-se junto á mesa, quase de costas para Mary, afim de não ter que observá-la.

MARY

Não adianta achar defeito em Bridget. Ela nem ouve o que se diz! Não posso ameaçar de despedi-la, porque, por sua vez, ela me ameaçaria de ir-se embora. E, quando o quer, faz todo o possível pra agradar. É pena que isso sempre aconteça justamente quando você chega atrasado, James. Bem... sempre há um consolo: pela maneira de ela cozinhar, nunca se sabe ao certo se está fazendo pelo melhor... ou pelo pior! (Mary ri — um risinho despreocupado de divertimento. Continua, indiferente) Não importa. O verão em breve estará passando, graças a Deus! A estação teatral se reabrirá e voltaremos aos hotéis e trens de segunda classe. Eu os detesto, igualmente, porém pelo menos não espero que sejam como um lar, e não tenho que me preocupar em tomar conta de casa. É absurdo pretender que Bridget ou Cathleen trabalhem como se isto aqui fosse uma casa de verdade. Sabem tão bem quanto nós que não o é. Nunca foi — nunca o será.

TYRONE (com amargura, sem se virar)Não, agora não o poderia mais ser. Mas já o foi, em outros tempos... antes que você...

MARY (seu rosto instantaneamente se fecha, numa atitude de confuso desafio)Antes que eu o quê?... (Há um silêncio mortal.) Não, não. Seja o que for, não é verdade, meu bem. Isto aqui nunca foi uma casa. Você sempre preferiu o clube e as salas de bar. E para mim esta casa foi sempre tão solitária quanto um quarto sujo de hotel vagabundo. Numa casa de verdade, nunca nos sentimos sós. Você se esquece de que eu sei, por experiência própria, o que é um lar. Abri mão de um, para me casar com você — o lar de meu pai. (Imediatamente, levada por uma associação de idéias, vira-se para Edmund com uma ternura cheia de solicitude, porém estranhamente impessoal, tal como dantes.) Estou preocupada com você, meu filho. Você mal tocou na comida. Isso não é maneira de cuidar de sua saúde: que eu não tenha apetite, vá lá!

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Estou ficando gorda demais. Mas você precisa comer. (Com uma insistência maternal) Prometa que o fará, querido. Por mim...

EDMUND (com voz apagada)Sim, mamãe.

MARY (acaricia-lhe a face e ele se esforça por não fugir ao afago)Assim sim, fico contente.

(Há nova pausa de pesado silêncio. Nisso toca o telefone no vestíbulo da frente; há um sobressalto geral e todos permanecem tensos.)

TYRONEDeixem que eu atendo. (Apressadamente) McGuire disse que me telefonaria. (Sai pela sala da frente.)

MARY (indiferente)McGuire! Deve ter com certeza outra propriedade qualquer à venda, que ninguém se lembraria de comprar a não ser seu pai! Agora não importa mais, mas sempre me pareceu estranho que seu pai pudesse se permitir o luxo de viver comprando terrenos, mas nunca me pudesse dar uma casa. (Interrompe-se para escutar a voz de Tyrone vinda do vestíbulo.)

TYRONEAlô. (Com forçada jovialidade) Oh! O senhor como está, doutor?

(Jamie se afasta da janela. Os dedos de Mary tamborilam com maior agitação sobre a mesa. A voz de Tyrone, procurando disfarçar, só torna ainda mais evidente o fato de que más notícias lhe estão sendo dadas.)

TYRONESim... compreendo. (Precipitadamente) Bem. O senhor lhe explicará tudo isso quando ele for vê-lo esta tarde. Sim, irá sem falta. Às quatro horas. Passarei antes disso para conversar com o senhor. Tenho que ir de qualquer maneira ao povoado para tratar de uns negócios. Até logo, doutor.

EDMUND (numa voz opressa)Pelo que parece, as notícias não foram boas.

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(Jamie lança-lhe de esguelha um olhar cheio de piedade. Mas logo desvia o rosto e torna a olhar pela janela. A fisionomia de Mary revela um terror pânico, e suas mãos se agitam a esmo. Entra Tyrone. É evidente a tensão sob a máscara de naturalidade com que se dirige a Edmund.)

TYRONEEra o Dr. Hardy. Pede que você vá vê-lo sem falta hoje às quatro horas.

EDMUND (em tom abafado)Que foi que ele disse? Não que eu ligue a mínima!

MARY (descontrolando-se)Não acreditaria no que ele diz nem que o jurasse sobre uma pilha de Bíblias! Não deve dar importância a nada do que ele disser, meu filho.

TYRONE (áspero)Mary!

MARY (sempre mais excitada)Oh! Todos nós sabemos porque é que você gosta dele, James! Porque é um médico barato! Mas, por favor... não procure me convencer a mim! Conheço muito bem o Dr. Hardy! É natural que o conheça depois de tantos anos. É um ignorante e um imbecil! Deveria existir uma lei que impedisse tipos como ele de exercerem a medicina. Não tem a menor idéia do que isso seja... Quando você está moribundo e quase demente, Hardy senta ao lado da cama, segura-lhe a mão e vem pregar sermões sobre a força de vontade!... (Seu rosto vinca-se numa expressão de profundo sofrimento trazido pelas amargas recordações. Por uns instantes perde toda a cautela. Com ódio e revolta, acrescenta) Ele deliberadamente humilha o doente! Força-o a pedir... a suplicar; trata-o como um criminoso. Não compreende coisa alguma! E, no entanto, foi exatamente o mesmo tipo de charlatão vulgar como ele quem, pela primeira vez, me deu o medicamento; e você só soube do que se tratava quando já era tarde demais!... (Selvagemente) Odeio os médicos! São capazes de tudo... de tudo... contanto que se continue a ir consultá-los! Venderiam sua própria alma! E, o que é pior, venderiam até a nossa; e só o saberíamos ao nos encontrarmos mergulhados no inferno!

EDMUNDMamãe, pelo amor de Deus, cale-se.

TYRONE (abalado)Sim, Mary, não é o momento de...

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MARY (repentinamente arrependida pelo que disse, balbucia confusa)Eu... Perdoe-me querido. Você tem razão. De nada mais serve aborrecer-me agora. (Há nova pausa de profundo silêncio. Quando ela toma a falar, seu rosto está calmo e pacificado, e na sua voz e atitude reaparece a estranha indiferença.) Vou subir por alguns instantes. Vocês me desculpem. Tenho que ajeitar meu cabelo. (Acrescenta sorrindo) Isto é, se conseguir encontrar os óculos. Desço já.

TYRONE (ao vê-la caminhar para a porta, e repreensão)Mary!!!

MARY (volta-se e o encara tranqüilamente)Sim, querido, que é?

TYRONE (sentindo a inutilidade de tudo)Nada.

MARY (com um estranho sorriso zombeteiro) Se desconfia tanto de mim, assim, pode subir para vigiar-me quando quiser.

TYRONEComo se isso adiantasse alguma coisa. Você apenas adiaria... Não sou um carcereiro. E isto aqui não é uma prisão...

MARY

Não. Sei que continua na ilusão de que é um verdadeiro lar. (Prossegue rapidamente, com uma vaga contrição.) Sinto muito, querido. Não quis ser mesquinha... A culpa não é sua.

(Vira-lhe as costas e sai pela sala dos fundos. Tyrone e os filhos permanecem silenciosos. Aparentemente, aguardam que Mary chegue ao primeiro andar antes de recomeçarem a falar.)

JAMIE (com cínica brutalidade)

Mais outra espetadela no braço!

EDMUND (enraivecido)Não fale dessa maneira!

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Sim! Controla essa sua língua suja, e essa intolerável gíria de vagabundo da Broadway! Não tem piedade nem compostura? (Perdendo a calma) Deveria jogá-lo na sarjeta a pontapés! Mas se o fizesse, bem sabe quem choraria e imploraria por você, e se descobriria toda a sorte de desculpas, e se lamentaria até que eu o deixasse voltar!

JAMIE (cuja fisionomia se contrai num rictus de sofrimento)Cristo! E acaso não sei? Você diz que eu não tenho piedade. Sinto por ela toda a piedade deste mundo. Avalio a luta tremenda que deve travar... uma luta muito maior do que a sua! Minha maneira de falar não significa que eu não tenha sentimentos... Simplesmente disse sem rodeios o que todos nós sabemos, e o que deveremos agora tornar a suportar. (Com amargura) Os tratamentos só dão resultado transitório. A verdade é que isso não tem remédio, e que fomos uns idiotas em esperar que... (Cinicamente) Eles nunca voltam!...

EDMUND (com menosprezo)Meu Deus! Se eu tivesse os mesmos sentimentos que você...

JAMIE (momentaneamente ferido, dá de ombros e retruca em tom seco)Julguei que os tinha... Seus versos não são dos mais alegres, nem tampouco as coisas que você lê e diz admirar. (Aponta a pequena estante da direita.) O seu favorito, por exemplo, de nome tão difícil de pronunciar!

EDMUNDNietzsche. Você não sabe do que está falando. Nunca o leu.

JAMIELi o suficiente para saber que diz uma porção de tolices!

TYRONECalem-se os dois! Não há muito que escolher entre a filosofia que você aprendeu com os parasitas da Broadway e a que Edmund encontrou nos livros. Ambas estão podres até a medula. Vocês zombaram da religião em que nasceram e foram criados — a única religião verdadeira que é a Igreja Católica... — e, ao negá-la, destruíram-se a si próprios.

(Os filhos o olham com desdém. Esquecem suas diferenças e, nesta controvérsia, unem-se contra o pai.)

EDMUNDÉ esse o seu erro, papai.

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JAMIE

Ao menos nós não fingimos. (Mordazmente) Não me parece que você tenha gasto tanto assim as suas calças, ajoelhando-se na missa!

TYRONEÉ certo que não sou um bom católico quanto à observância dos ritos, que Deus me perdoe! Mas, ao menos, creio n’Ele. (Exasperado) E você está mentindo. Talvez eu não vá à igreja, mas todas as noites e todas as manhãs de minha vida eu me ajoelho e rezo.

EDMUND (irônico)

E você, alguma vez rezou por mamãe?

TYRONESim. Rezo por ela há muitos anos.

EDMUNDEntão Nietzsche deve ter razão! (Cita uma passagem de Assim Falava Zaratustra.) “Deus está morto. Matou-o a sua piedade pelo homem...”

TYRONE (fingindo não ter ouvido o que o filho disse)Se sua mãe tivesse, ela também, rezado... Não repudiou a religião, porém esqueceu-se dela; e não lhe restam forças na alma para lutar contra a maldição que a domina. (Com resignação triste) Bem... o que adianta falar? Já vivemos com essa desgraça, e agora teremos de tornar a fazê-lo. Não há remédio. (Com amargura) Mas antes ela não me tivesse dado tanta esperança desta vez. Juro como nunca mais confiarei.

EDMUNDNão diga isso, papai. (Num desafio) Pois eu confio! Mamãe apenas recomeçou. Isto não a pode ainda ter dominado. Ela conseguirá deter-se a tempo. Falarei com ela.

JAMIE (num sacudir de ombros)Agora nada mais poderá fazer. Ela o ouvirá, mas não escutará. Estará aparentemente aqui, mas na realidade se achará longe, fora do seu alcance. Sabe como ela fica.

TYRONESim, é assim que esse veneno age sobre ela. A partir de agora, dia após dia se afastará de nós até o fim de cada noite...

EDMUND (angustiado)

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Chega, papai! (Levanta-se bruscamente.) Vou vestir-me. (Ao sair, com amargura) Farei tanto barulho que mamãe não poderá suspeitar que a estou vigiando. (Sai pela sala da frente. Ouvem-se seus passos à medida que, ruidosamente, sobe a escada.)

JAMIE (depois de uma pausa)O que disse o Dr. Hardy sobre Ed?

TYRONE (sombrio)O que você suspeitava: tuberculose.

JAMIE

Maldita sorte!

TYRONEDeclarou-me que não havia dúvidas.

JAMIEEd terá que internar-se num sanatório?

TYRONESim. E quanto mais cedo melhor, afirmou Hardy, tanto para ele como para os demais. Afirma que, dentro de seis meses a um ano, Edmund estará curado se obedecer às suas prescrições. (Suspirando, com tom lúgubre e ressentido) Nunca imaginei que um filho meu... Isso não vem do meu ramo familiar. Todos nós sempre tivemos pulmões fortes como os de um touro!

JAMIE

E que importância tem isso no caso? Para onde pensa o Dr. Hardy mandar Edmund?

TYRONEÉ justamente para combinar essa questão que vou falar com ele.

JAMIEBem. Pelo amor de Deus, papai, escolha um lugar adequado e não algum sanatório barato de segunda classe.

TYRONE (ofendido)Eu o mandarei para onde o médico achar preferível.

JAMIE

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Mas, então, não recomece junto a Hardy com sua velha cantilena sobre impostos e as hipotecas.

TYRONENão sou nenhum milionário, para jogar dinheiro fora. Por que não hei de lhe dizer a verdade?

JAMIEPorque Hardy pensará que você quer que ele escolha um lugar em conta, e porque saberá que essa não é a verdade... sobretudo se depois tiver conhecimento de que você esteve com McGuire e deixou que esse comerciante bajulador e vigarista lhe impingisse mais outra propriedade sem valor algum!

TYRONE (furioso)Não se meta nos meus negócios!

JAMIEAgora, trata-se de Edmund. Receio que você na sua crença de velho irlandês — que acha que a tuberculose é sempre fatal — julgue que seria um desperdício de dinheiro gastar mais, se pode gastar menos.

TYRONEMentiroso!

JAMIEEstá bem. Prove-me que o sou. É o que desejo. Por isso mesmo é que puxei o assunto.

TYRONE (ainda indignado)Tenho muita esperança de que Edmund ainda venha a se restabelecer. E deixe a minha terra em paz com sua língua venenosa. É você mesmo que pode ficar zombando quando tem o mapa da Irlanda na própria cara!

JAMIEDepois que a lavo, não! (Antes que seu pai reaja ao insulto dirigido à verde Erin, ajunta secamente, sacudindo os ombros)Bom, já disse tudo o que tinha a dizer. Agora depende de você. (Bruscamente) Que quer que eu faça hoje à tarde, já que você vai até o povoado? Fiz o que pude na cerca — agora é só podá-la um pouco mais. Mas já sei que você não há de querer que eu a apare.

TYRONENão. Você a estragaria, como estraga tudo o mais.

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JAMIEEntão é melhor que eu acompanhe Edmund ao povoado. A má notícia — após o ocorrido com mamãe — poderia abalá-lo muito.

TYRONEAcompanhe-o. Não o deixe ficar muito desanimado. (Ajunta sarcasticamente) Se é possível, sem que faça disto um pretexto para se embriagar!

JAMIEE onde conseguiria dinheiro? Que eu saiba, ainda se vende o uísque — ninguém o dá de presente. (Dirige-se à sala da frente.) Vou vestir-me.

(Pára no batente da porta, ao ver que sua mãe vem do vestíbulo, e lhe cede a passagem. Acentuou-se o brilho no olhar de Mary e seus gestos são ainda mais impessoais. Tal transformação se intensifica ainda no decurso da cena.)

MARY (distraída)Você não viu meus óculos em algum lugar, Jamie? (Não encara o marido. Ele desvia o olhar, simulando não a ter ouvido, porém ela não parece esperar resposta alguma. Adianta-se e dirige-se a Tyrone, sempre sem o fitar.) Você não os viu... não é verdade, James?

(Sem que a mãe o perceba, Jamie se retira pela sala da frente.)

TYRONE (voltando-separa olhar pela janela telada) Não, Mary.

MARY

Que acontece com Jamie? Você está de novo a implicar com ele? Não deveria tratá-lo com tão pouco caso. Ele não tem culpa. Tenho certeza como seria outro se tivesse sido criado num verdadeiro ambiente de família. (Vai até as janelas da direita e diz, frivolamente) Como meteorologista, meu querido, você é uma calamidade! Olha só a neblina. Mal se vê a margem oposta.

TYRONE (procura falar com naturalidade)É mesmo! Precipitei-me ao afirmar que a neblina se fora. Acho que teremos outra noite de nevoeiro.

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MARY

Oh! Hoje a noite não me importa.

TYRONEAcredito que não, Mary.

MARY (lançando-lhe rápido olhar, depois de uma pausa)Não vejo Jamie trabalhando no jardim. Aonde é que ele foi?

TYRONESubiu para mudar de roupa. Vai acompanhar Edmund ao Dr. Hardy. (Satisfeito de ter um pretexto também para se afastar.) É melhor que eu faça o mesmo, ou chegarei tarde ao meu encontro no clube.

(Dá um passo em direção a sala da frente, porém ela, num movimento rápido e impulsivo, adianta-se e lhe segura o braço.)

MARY (com um acento suplicante)Não vá ainda, meu bem. Não quero ficar só. (Precipitadamente) Quero dizer que ainda lhe sobra tempo. Sempre se gaba de poder vestir-se num décimo do tempo que levam os rapazes para fazê-lo. (Distraída) Queria dizer-lhe uma coisa. Que era mesmo? Esqueci. Alegra-me que Jamie vá ao povoado. Espero que não lhe tenha dado dinheiro algum.

TYRONENão.

MARY

Ele gastaria em bebidas, e já sabe que idéias maldosas e vis lhe ocorrem quando está bêbedo. Não é que importe nada do que ele disse esta tarde, mas sempre acaba por irritá-lo, sobretudo se você estiver também embriagado, o que, aliás, é provável que aconteça.

TYRONE (magoado)Não acontecerá tal. Eu nunca me embriago.

MARY (com indiferentismo zombeteiro)Oh! Já sei que você suporta muito bem a bebida. Como sempre! Um estranho custaria a percebê-lo. . . mas depois de trinta e cinco anos de vida conjugal!...

TYRONE73

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A prova é que nunca faltei a uma única representação teatral. (Com amargura) Se me embriago, não é você a pessoa mais indicada para me censurar. Nenhum outro homem terá tido maior motivo para fazê-lo...

MARY

Motivo? Que motivo? Sempre que você vai ao clube, bebe demais, não é assim? Sobretudo quando lá encontra o tal de McGuire. Ele se encarrega disso. Não pense que o estou censurando, querido. Faça como quiser. Não me importo.

TYRONESei que você não se importa. (Volta-se para a sala da frente, ansioso por escapar.) Tenho que me vestir.

MARY (adianta-se de novo e, suplicante, o agarra pelo braço) Não, espere um pouco mais, meu bem. Eu lhe suplico! Pelo menos até que desça um dos meninos. Vocês todos vão me deixar tão depressa...

TYRONE (com amarga melancolia)É você quem nos está deixando, Mary.

MARY

Eu? Que tolice é essa, James? Como poderia eu deixá-los? Não teria para onde ir... A quem iria visitar? Não tenho amigos...

TYRONEA culpa é sua. (Pára e suspira com ar desamparado; a seguir tenta persuadi-la.) Há uma coisa que você poderia fazer esta tarde e que certamente lhe faria bem, Mary. Dê um passeio de automóvel. Afaste-se desta casa. Apanhe um pouco de sol e de ar fresco. (Ressentido) Afinal, comprei esse carro para você. Não gosto desses malditos veículos. Prefiro caminhar a pé ou tomar o bonde. (Com crescente mágoa) Tratei de ter um carro aqui à sua disposição para quando você voltasse do sanatório. Esperei que com isso você se alegrasse e distraísse o espírito. A princípio você costumava sempre dar uma volta, mas ultimamente é raro o dia em que sai. Custou-me caro; paguei uma quantia muito superior àquela de que eu podia dispor, e há ainda o motorista a quem devo dar casa, comida e um ordenado pesado, quer ele a leve a passeio ou não. (Com amargura sempre crescente) Um desperdício. O eterno desperdício que acabará me levando para um asilo de velhos. De que serviu? É como se eu tivesse atirado o dinheiro pela janela afora.

MARY (com calma indiferença)74

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Sim, foi mesmo um desperdício, James. Você não deveria ter comprado um carro de segunda mão. Foi enganado mais uma vez, como o é sempre, porque teima em fazer pechinchas e adquirir coisas usadas por baixo preço.

TYRONEMas esse carro é de uma das melhores marcas! Todos dizem que é superior a qualquer uma das modernas.

MARY (fingindo nem ter ouvido o que ele disse)Foi outro esbanjamento de dinheiro contratar Smythe, que não passa de um simples ajudante de oficina, e nunca foi um motorista. Oh! É certo que seu ordenado é inferior ao de um verdadeiro chauffeur, mas imagino bem que ele compensa de sobra esse inconveniente com as propinas que lhe dão na garagem pelos serviços de conserto. O carro está sempre com algum defeito. Smythe se encarrega disso.

TYRONENão creio! Smythe pode não ser um motorista alinhado, próprio para servir a um milionário, mas é um homem honesto. Você é tão malévola quanto Jamie. Vive suspeitando de todo mundo!

MARY

Não se ofenda, querido. Não fiquei ofendida quando você me deu o carro. Sabia que você não me queria humilhar. Sabia que era esse o seu jeito de fazer as coisas. Senti-me grata e comovida. Não ignorava que a compra do carro representava um sacrifício para você e que provava o bem que você me quer — à sua maneira, já se vê — mesmo porque você não podia realmente crer que isso me trouxesse algum benefício.

TYRONEMary! (Apertando-a bruscamente contra si, vencido) Mary querida! Pelo amor de Deus, por mim, pelos nossos filhos, pelo seu próprio bem, agora pare!...

MARY (por uns segundos, balbucia em confusão)Eu... James!... Por favor! (Mas logo reaparece seu estranho e obstinado sentido de defesa.) Parar... o quê? De que me fala?!...

(Tyrone deixa cair os braços, angustiado. Num gesto impulsivo, é ela quem lhe põe o braço em volta da cintura.)

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MARY

James, nós nos amávamos! E nos amaremos sempre! Lembremo-nos apenas disso, e não procuremos compreender o incompreensível, ou remediar o que não tem remédio... aquilo que a Vida nos fez e que não podemos desculpar ou explicar.

TYRONE (como se não tivesse ouvido, com amargor) Você nem ao menos se esforçará por fazê-lo?

MARY (deixando cair o braço com desânimo e afastando-se com ar indiferente)O quê? O passeio de automóvel? Está bem. Eu o darei se você assim o quer, embora faça com que me sinta ainda mais só do que ficando em casa. Não tenho ninguém a quem convidar para passear comigo, e nunca sei para onde dizer a Smythe que me leve. Se tivesse uma pessoa amiga a cuja casa eu pudesse ir para conversar e rir um pouquinho... Mas, naturalmente, não tenho... nunca tive. (Sua expressão se torna cada vez mais distante.) No convento eu tinha tantas amigas! Meninas cujas famílias viviam em casas lindas. Eu costumava visitá-las e elas vinham também me ver na casa de meu pai. Mas, forçosamente, quando me casei com um ator — você sabe em que conceito eram tidos os atores naquele tempo! — muitas delas começaram a me evitar. E pouco depois de nos termos casado, veio logo o escândalo daquela mulher que foi sua amante e que o processou perante os tribunais. Desde então todas as minhas amigas ou tiveram pena de mim ou se afastaram. Odiei ainda mais as que se compadeceram.

TYRONE (sentindo-se culpado, mas ressentido)Pelo amor de Deus, não revolva o que há tanto tempo está esquecido. Se o começo da tarde já remonta tão longe no passado... à noite, onde estará?

MARY (fitando-o num desafio)Pensando bem, tenho mesmo que ir ao povoado. Preciso fazer umas compras na farmácia.

TYRONE (com desprezo mordaz)Já dá um jeito de ter sempre escondido um pouco da droga, e obter novas receitas. Espero que acumule uma boa reserva para que não tornemos a ter outra noite feito aquela em que por ela clamava em altos gritos e saiu correndo de camisola para atirar-se do cais.

MARY (ignorando o comentário do marido)

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Tenho que comprar pasta para dentes, sabonetes e um creme para o rosto. (Mas de repente, dobra-se e implora lastimável) James, você não deve recordar isso! Não me deve humilhar assim!

TYRONE (envergonhado)Perdoa-me, Mary. Sinto muito...

MARY (defendendo-se mais uma vez e num tom indiferente)Não tem importância. Isto nunca aconteceu. Você deve ter sonhado. (Ele a fita, sentindo-se incapaz de ajudá-la.) Eu era tão sadia antes do nascimento de Edmund. Você não o pode ter esquecido, James. No meu corpo não havia um só nervo. Até viajando com você, uma temporada após a outra, depois de dormir semanas inteiras em hotéis baratos e em trens sem leito, de viver em albergues sujos, cuja comida era péssima, e de dar à luz meus filhos em quartos de aluguel, apesar de tudo isso eu sempre tive saúde. Mas o nascimento de Edmund foi a gota d’água que faz transbordar o copo. Estive tão doente. E o médico do hotel era um charlatão ignorante... Tudo o que ele sabia é que eu estava com dores. E foi-lhe tão fácil acalmar a dor!

TYRONEEm nome de Deus, Mary, esqueça o passado.

MARY (com estranha serenidade objetiva)Por quê? Como poderia esquecê-lo? O passado é o presente, não é não?! É igualmente o futuro. Todos nós tentamos evadir-nos dele, mas a Vida não o permite. (Continuando) Só censuro a mim mesma. Jurei, depois de ter perdido Eugene, que nunca mais teria outro filho. Foi por minha culpa que ele morreu. Se eu não o tivesse deixado com minha mãe para reunir-me a você por ocasião daquele giro teatral — só porque você me escreveu dizendo que sentia muita falta minha e que estava muito só —, Jamie não teria tido licença de entrar no quarto do bebê quando ainda estava com sarampo. (Sua fisionomia se torna dura.) Sempre me pareceu que Jamie o fez de propósito. Ele tinha ciúmes do pequenino. Detestava-o. (Ao ver que Tyrone tenta protestar) Oh! Bem sei que Jamie tinha apenas sete anos, mas nunca foi um menino tolo. Ele tinha sido avisado do risco que representaria para o bebê — que aquilo pode-ria causar-lhe a morte. Ele o sabia. Nunca pude perdoá-lo.

TYRONE (com uma tristeza amargurada na voz)E agora você retorna a Eugene? Será que não pode deixar que o nosso pobre filhinho morto descanse em paz?...

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MARY (como se não tivesse ouvido)Foi culpa minha. Eu devia ter teimado em ficar com o menino e não ter deixado que você me convencesse a partir ao seu encontro só porque eu o queria. Acima de tudo, não devia ter cedido quando você insistiu para que tivéssemos outro filho a fim de tomar o lugar de Eugene, porque esperava que assim eu me esqueceria de sua morte... Eu já sabia então, por experiência própria, que as crianças para serem bons filhos têm que ter um lar onde nascer; que as mulheres também precisam desse lar, se querem ser boas mães. Vivi sob o temor, o tempo todo em que esperava Edmund, prevendo sempre que alguma coisa terrível lhe ia acontecer. Sabia que, ao abandonar Eugene, provara que não era digna de ter outro filho, e que, se o tivesse, Deus me castigaria. Não devia ter tido Edmund.

TYRONE (com um olhar contrafeito em direção à sala da frente)Mary! Tenha cuidado com o que diz. Se ele ouvisse, poderia pensar que você nunca o quis. Já se sente bastante mal sem que isto seja preciso.

MARY (com violência)É mentira! Eu o queria. Mais do que qualquer outra coisa no mundo. Você não compreende! Digo que não devia tê-lo tido para o seu próprio bem. Nunca foi feliz nem o será. Nem tampouco saudável. Nasceu nervoso e sensível demais, e isso é por minha culpa. E agora, desde que está doente, levo a me lembrar de Eugene e de meu pai, e me sinto tão culpada, e tenho um tal receio... (Dominando-se numa transição instantânea, volta à sua atitude de firme negativa.) Oh! Eu sei que é um absurdo imaginar coisas horríveis quando não há motivo algum para tal! Afinal de contas, todo o mundo se resfria e se restabelece!

(Tyrone olha-a fixamente e suspira, sabendo que em nada lhe pode valer. Vira-se para a sala da frente, e avista Edmund que desce pela escada do vestíbulo.)

TYRONE (em voz baixa e rispidamente)Aí vem Edmund. Por favor, procure dominar-se. Pelo menos até que ele saia. É o menos que pode fazer por ele.

(Espera, esforçando-se por tomar uma atitude agradável e paternal. Ela também espera, assustada, novamente dominada por um terror pânico, suas mãos tateando a esmo pela blusa do vestido, erguendo-se até o pescoço e o cabelo num movimento contínuo e automático. Quando Edmund aparece na porta, não ousa olhá-lo face a face. Dirige-se apressada para as janelas do lado esquerdo e olha para fora, as costas

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voltadas para a sala da frente. Entra Edmund. Mudou de roupa. Veste agora um terno de confecção de sarja azul-marinha, de colarinho alto e duro, gravata e sapatos pretos. Tyrone diz com a cordialidade de um ator profissional.)

TYRONEBravos, você está muito elegante. Também eu vou subir para me preparar. (Dispõe-se a sair da sala.)

EDMUND (secamente)Um momento, papai. Detesto trazer à baila assuntos desagradáveis, mas há o problema de condução. Não tenho um centavo para o bonde.

TYRONE (maquinalmente inicia uma de suas habituais preleções)Você nunca terá um centavo enquanto não aprender o valor do... (Contém-se com ar envergonhado, contemplando o rosto doentio do filho; com inquieta piedade.) Mas você está aprendendo e muito, meu filho! Trabalhou de rijo antes de ficar doente. Progrediu magnificamente. Estou orgulhoso de você! (Retira do bolso um pequeno maço de notas e cuidadosamente separa uma. Edmund a toma, olhando-a rapidamente e sua fisionomia revela assombro. O pai torna a reagir na sua habitual forma sarcástica.) Obrigado. (Cita) “Muito mais afiado do que o dente da serpente é...”

EDMUND...“um filho ingrato”. Já sei. Perdi o fôlego, papai. Perdi até a fala. Isto não é um dólar; são dez dólares!

TYRONE (aquem causa um certo mal-estar a própria generosidade)Guarde-os no bolso. É provável que no povoado encontre alguns de seus amigos, e não poderia ser gentil e sociável sem dinheiro algum.

EDMUNDVocê fala sério? Ora veja! Obrigado, pai. (Por um momento sente-se sinceramente tocado e agradecido. Logo a seguir, porém, observa a fisionomia do pai, com inquieta desconfiança.) Mas... por que... assim de repente?! (Com sarcasmo) O Dr. Hardy por acaso lhe disse que eu estava perdido? (Lê no rosto do pai uma profunda tristeza) Não! Nada disso! Minha piada foi detestável. Só a disse de brincadeira. (Num gesto impulsivo põe o braço em volta do pai e o abraça afetuosamente) Estou muito grato. De verdade, papai?!

TYRONE (sensibilizado, retribui-lhe o abraço) 79

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Não há de que, meu filho.

MARY (bruscamente volta-se para os dois num acesso de pânico confuso e assustada cólera)

Não o tolerarei!! (Martela o chão com os pés) Você está ouvindo, Edmund? Não tolerarei essas tolices mórbidas! Nem que você diga mais que vai morrer! São esses livros que vive lendo, esses livros que só contêm tristeza e morte! Seu pai deveria proibir que você os tivesse. E alguns dos poemas que você escreveu ainda são piores! Parece até que você não quer viver! Um rapaz de sua idade com toda a vida diante de si. Isso é somente uma “pose”, uma atitude copiada dos livros. Na realidade você nada tem de doente!

TYRONECale-se, Mary.

MARY (adotando imediatamente um tom impessoal) Mas, James. É absurdo que Edmund esteja assim tão lúgubre, fazendo um tal alvoroço por nada. (Virando-se para o filho, mas evitando-lhe o olhar, com zombeteiro afeto) Não se preocupe, meu querido. Eu compreendo... (Aproxima-se.) Quer que o mimem, que o tratem com carinho e se aflijam por você. Ainda é tão garoto! (Põe o braço em volta do filho e o abraça. Edmund mantém-se ereto, sem ceder um passo à sua ternura. A voz de Mary começa a desfalecer.) Rogo-lhe, porém, querido, não leve isso tão longe assim, não diga esses horrores! Sei que é tolice de minha parte tomá-los a sério, mas não me posso impedir. Fiquei tão... tão assustada!

(Sua resistência baqueia, e oculta o rosto de encontro ao ombro do filho, soluçando. Edmund, comovido, a contragosto acaricia-lhe o braço, com uma ternura desajeitada.)

EDMUNDNão chore, mamãe. (Seu olhar se cruza com o do pai)

TYRONE (com voz rouca, agarrando-se a uma absurda esperança)Talvez se você pedisse agora à sua mãe o que queria pedir-lhe há pouco... (Tateia à procura do relógio) Oh! Céus! Como já é tarde! Tenho que me apressar.

(Sai a passos largos pela sala da frente. Mary ergue a cabeça. Sua expressão volta a ser solícita e maternal. Parece ignorar as lágrimas que lhe sobem aos olhos)

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MARY

Como se sente, querido? (Passa a mão na testa do filho.) Sua testa está um pouquinho quente, mas isso é por ter estado no sol. Tem muito melhor aspecto do que hoje pela manhã. (Segura-lhe a mão) Venha sentar-se aqui comigo. Não deve ficar assim tanto tempo de pé. Precisa aprender a poupar as suas forças. (Obriga Edmund a se sentar e senta-se ao lado, no braço da poltrona, rodeando-lhe o ombro para que ele a possa olhar face a face.)

EDMUND (tentando iniciar um apelo que sabe será inútil) Escute-me, mamãe...

MARY (interrompendo-o logo)Não, não! Não fale. Recoste a cabeça e procure descansar. (Persuasivamente) Sabe? Acho que seria muito melhor se ficasse em casa esta tarde e eu cuidaria de você. A ida até o povoado nesse bonde velho e imundo será exaustiva num dia sufocante como o de hoje. Tenho certeza de que você se sentiria muito melhor ficando aqui em casa comigo.

EDMUND (em voz surda)Você esquece que tenho hora marcada com o Dr. Hardy. (Tratando de retomar o seu apelo) Escute, mamãe...

MARY (rapidamente)Você pode telefonar-lhe dizendo que não se sente bem. (Num tom excitado) Ir vê-lo é simplesmente perder tempo e jogar dinheiro fora. Ele nada mais fará senão mentir! Pretenderá que o caso é grave porque é disso que ele vive! (Com uma risadinha dura e mordaz) Aquele velho idiota! A única coisa que sabe fazer a respeito de medicina é tomar um ar solene e doutrinar sobre as vantagens da força de vontade!

EDMUND (tentando olhá-la nos olhos)Mamãe, por favor, preste atenção. Quero pedir-lhe uma coisa. Você... você apenas recomeçou. Você tem essa força de vontade. Nós todos a ajudaremos. Estou disposto a tudo. Você o tentará, não, mamãe?

MARY (murmurando suplicante)Por favor, não... não fale de coisa que não entende!

EDMUND (numa voz vencida)Está bem! Entrego os pontos! Já sabia que tudo era inútil.

MARY (como sempre, negando obstinadamente a realidade)

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De qualquer maneira, não sei a que é que você se refere. Porém, uma coisa sei: é que você deveria ser a última pessoa a... Mal voltei do sanatório, você ficou doente. O médico que me tratou disse que eu precisava ter calma e paz na minha casa, sem contrariedades e desde então só tenho feito é me preocupar com você. (Como que distraída) É... mas isso não é desculpa! Só estou tentando explicar. Não é uma desculpa! (Abraça-o e implora) Prometa-me, querido, que não pensará que isso seja uma desculpa!

EDMUND (com melancolia)Que outra coisa posso pensar?

MARY (retirando lentamente o braço, novamente com ar distante e indiferente)Sim, suponho que você não pode mesmo deixar de suspeitar.

EDMUND (envergonhado, porém ainda com amargura) Que esperava, então?

MARY

Nada, não. Não o censuro. Como poderia você crer em mim se eu própria não creio? Minto tanto!! Antigamente nunca o fazia. Agora sou forçada a mentir, especialmente para mim mesma! Preciso enganar-me. Mas... como querer que me compreenda quando eu própria não o faço? Nunca entendi nada disso... Só que um dia, há bastante tempo, descobri que minha própria alma já não me pertencia! (Faz uma pausa. Logo a seguir abaixa a voz e prossegue num estranho murmúrio confidencial.) Mas um dia virá, querido, em que tornarei a encontrá-la — algum dia quando já esteja restabelecido e eu o veja sadio, feliz e triunfante, e em que eu não tenha mais que me sentir culpada... dia em que a Santa Virgem Maria me perdoará, devolvendo-me a fé no Seu Amor e a Piedade que eu tinha nos meus tempos de colégio, e em que eu possa tornar a rezar e a invocá-la — quando Ela vir que ninguém mais neste mundo acredita em mim nem por um momento. Ela então acreditará; e com Sua ajuda será tudo tão fácil. Escutarei os meus próprios gritos de dor e de angústia mas, ao mesmo tempo, sorrirei sem medo porque estarei segura de mim mesma. (E, como Edmund permanece silencioso sem saber o que dizer, acrescenta tristemente) Naturalmente nisso também você não pode crer... (Levanta-se da poltrona e caminha até a janela do lado direito. Olha para fora e em tom casual continua) Pensando bem, é melhor você ir mesmo ao povoado. Esqueci que eu ia dar uma volta de automóvel. Tenho que passar na farmácia. Você não haveria de querer acompanhar-me lá. Na certa você se sentiria tão envergonhado!

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EDMUND (numa voz quebrada)Mamãe, não vá!

MARY

Suponho que você repartirá com Jamie esses dez dólares que seu pai lhe deu. Vocês sempre repartem tudo... não é verdade? Como bons camaradas. Já calculo o que Jamie fará com a sua parte: irá embriagar-se em algum lugar onde possa encontrar-se com o único tipo de mulher que lhe agrada e lhe interessa. (Vira-se para o filho, suplicando atemorizada) Edmund, prometa-me que você não vai beber. É tão perigoso! Você sabe o que o Dr. Hardy disse..

EDMUND (com ironia)Pareceu-me compreender que ele não passava de um velho imbecil!

MARY (num tom que inspira dó)Edmund! (Ouve-se a voz de Jamie no hall da frente, chamando: “Vamos indo, Ed”. A maneira de ser de Mary torna-se de novo distante) Vai, Edmund, Jamie o espera. (Caminha até o batente da sala da frente) Aí vem seu pai também. (Tyrone grita: “Vamos, Edmund”. Mary beija o filho com afeto distante) Se você voltar para jantar, procure não chegar atrasado. E diga o mesmo a seu pai. Você sabe Bridget como é. (Ele lhe vira as costas e se vai. Tyrone diz em voz alta, do vestíbulo: “Até logo, Mary”. A seguir, Jamie: “Até logo, mamãe’. Ela responde: “Até logo”.)

(Ouve-se a porta telada da frente que se fecha após a saída dos três. Mary se aproxima da mesa e permanece de pé, uma das mãos tamborilando sobre a mesa, a outra erguendo-separa ajeitar o cabelo. Relanceia o olhar pela sala com uma expressão de temor e desamparo, e murmura para si mesma)

MARY

Como se está só aqui nesta sala. (Seu rosto se endurece e revela um profundo desprezo de si mesma) Mais uma vez você está mentindo a si própria! No fundo você queria ver-se livre deles. O despeito e a repulsa que sentem por você não lhe fazem boa companhia! Você está aliviada porque foram embora. (Ri —um pequeno riso angustiado) Mas, então... oh! minha Mãe do Céu, por que me sinto tão desesperadamente só?!

FIM DO ATO II

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ATO III

CENÁRIO

O mesmo. São pouco mais ou menos seis e meia da tarde. Na sala começa a escurecer rapidamente, devido ao nevoeiro que vem do Estreito, semelhante a um manto branco que, do lado de fora, recobrisse as janelas. De um farol que se encontra mais adiante na entrada do porto, chega, a intervalos regulares, o ulular de uma sirene que geme como uma fêmea em dores de parto; e do próprio porto, intermitentemente, ouve-se o sinal de aviso dos iates ali ancorados.

Como na cena que precedeu o almoço — no ato anterior — sobre a mesa encontram-se a garrafa de uísque, os copos e um jarro de água gelada.

Em cena, Mary e a empregada Cathleen, a qual está de pé à esquerda da mesa, com um copo vazio na mão, como se o tivesse esquecido. Percebe-se que ela bebeu. No seu rosto de expressão atoleimada, mas jovial, aparece um sorriso satisfeito e lisonjeado.

Mary está mais pálida do que dantes, e seus olhos revelam um brilho pouco natural, acentuando seu estranho desapego do mundo que a cerca. Fechou-se ainda mais sobre si mesma, e encontrou refúgio e alívio em um sonho onde a realidade presente não passa de uma aparência que se deve aceitar e dissimular com a maior indiferença — até com cruel cinismo — ou ignorar por completo. Por momentos, em toda a figura de Mary assoma um quê de juvenil, de misteriosamente alegre e espontâneo, como se o seu espírito tivesse sido liberto para tornar a ser a ingênua colegial sem complexos e alegre do seu tempo de convento. Mudou de vestido para dar o seu passeio de automóvel — um vestido simples, mas que se sente ser custoso e de boa qualidade e que lhe assentaria muito bem, não fosse a maneira negligente — quase desleixada — com que o usa. Seu cabelo não se acha mais rigorosamente penteado — um tanto desgrenhado, caem-lhe algumas mechas para um lado. Conversa com a empregada, com uma certa familiaridade, como se Cathleen fosse uma

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velha e íntima amiga. Ao levantar-se o pano, Mary está parada junto à porta telada, olhando para fora. Ouve-se o gemido da sirene.

MARY (com a vivacidade de uma jovem, achando graça)Oh! Essa sirene!! Você não acha que é horrível, Cathleen?

CATHLEEN (com maior familiaridade do que a habitual, porém sem deliberada impertinência, visto que gosta sinceramente da patroa)

Acho, sim, senhora. Parece um fantasma anunciando a morte de alguém!

MARY (continua falando como se não tivesse ouvido. Durante quase todo o diálogo seguinte, percebe-se que ela retém Cathleen ao seu lado, como um mero pretexto para poder falar)

Hoje não me incomodo. Mas ontem à noite quase me pôs louca! Fiquei acordada, sem poder dormir, numa angústia insuportável.

CATHLEEN

Isso é mau agouro... Voltando ontem do povoado, fiquei apavorada. Cheguei a pensar que Smythe — esse macaco horrendo — nos faria emborcar numa vala ou esmagar contra alguma árvore! Não se via um palmo adiante do nariz. Gostei bem que a senhora me fizesse sentar atrás, ao seu lado. Se eu viesse na frente, junto daquele macaco... Smythe não pode ficar com aquelas horríveis mãos quietas. Basta ter a menor oportunidade e começa a beliscar a gente na perna ou... bem... a senhora sabe onde é, não é? Desculpe, mas é a pura verdade!

MARY (sonhadora)Eu não me referia à neblina, Cathleen. Na realidade adoro esse nevoeiro!

CATHLEEN

Dizem que faz bem à pele.

MARY (prosseguindo)Encobre-nos o mundo e dele nos oculta. Sente-se que tudo está mudado — que nada mais é o que parecia ser. Ninguém nos pode atingir nem tocar.

CATHLEEN

Eu não me importaria tanto assim se Smythe fosse um tipo insinuante como alguns dos motoristas que conheço — quero dizer — contanto que não passasse de certos limites, porque sou uma moça direita... Mas, tratando-se de

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um anão como esse... Eu até já disse pra ele: Você pensa que eu estou em apuros para me meter com um macaco feito você?... E já o avisei de que um dia desses dou-lhe um tapa daqueles de que ele não se esquecerá tão cedo! E dou mesmo!

MARYComo me irrita essa sirene! Não nos deixa em paz! É como se o tempo todo levasse a nos recordar alguma coisa... a nos advertir... e a nos chamar. (Sorrindo de modo estranho) Mas esta noite não conseguirá fazê-lo! Não passará de um som desagradável. Não me recordará coisa alguma! (Com um riso brincalhão e juvenil) Exceto talvez os roncos do Sr. Tyrone! Diverte-me sempre tanto pirraça-lo por causa dos seus roncos. Sempre roncou — sobretudo quando bebe muito, mas é como um menino grande, não gosta de admiti-lo! (Ri e se aproxima da mesa.) Bem... Acho que eu também devo roncar às vezes, e a mim tampouco agradaria reconhecê-lo. Não tenho, portanto, o direito de caçoar dele, não é verdade? (Senta-se na cadeira de balanço à direita da mesa)

CATHLEEN

Oh! É claro! Mas toda a gente sã ronca. Dizem que é sinal de saúde. (Preocupada) Que horas serão? Tenho que voltar à cozinha. A umidade piora o reumatismo de Brídget e ela então fica que nem um demônio. Vai me arrancar a cabeça! (Larga o copo sobre a mesa e dá um passo em direção à sala dos fundos.)

MARY (num impulso, apreensiva)Não, não vá, Cathleen. Não quero ficar só, por enquanto.

CATHLEEN

A senhora não ficará só por muito tempo. Daqui a pouquinho o patrão e os rapazes estarão de volta.

MARY

Não, não creio que voltem para o jantar. Têm hoje um pretexto bom demais para se deixar ficar pelos bares onde se sentem à vontade. (Cathleen a fita intrigada, estupidamente perplexa. Mary prossegue sorrindo) Não se preocupe com Bridget. Direi a ela que precisei de você e a retive junto a mim — e depois, quando você for, lhe levará uma boa dose de uísque. Ela então não ficará mais aborrecida.

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CATHLEEN (sorrindo, tranqüilizada)É certo que não, senhora. É a única coisa que a põe de bom humor. Gosta muito de um traguinho!

MARY

Tome outro uísque, se quiser, Cathleen.

CATHLEEN

Não sei se devo. Já bebi bastante. (Estende a mão para a garrafa.) Bom... Um gole a mais não me fará mal. (Serve-se.) Á sua saúde, senhora. (Bebe, sem se dar o trabalho de acrescentar água ao uísque.)

MARY (perdida nas suas recordações)Na verdade tive muito boa saúde, antigamente, Cathleen. Mas isso foi há tanto tempo!

CATHLEEN (novamente preocupada)O patrão por certo vai notar que a garrafa está mais vazia. Para essas coisas tem um olhar de lince.

MARY (divertida)Oh! Vamos pregar-lhe uma peça. A mesma de que Jamie costuma sempre lançar mão: e só medir algumas doses de água e derramá-las na garrafa.

CATHLEEN (faz o que a patroa manda e diz com uma risadinha tola)A metade desse uísque será água! Que Deus nos acuda. O patrão vai perceber pelo gosto da bebida!

MARY (com indiferença)Não. Quando voltar para casa já estará bêbedo demais para notar a diferença. Julga ter uma boa desculpa para afogar suas mágoas!

CATHLEEN (com filosofia)Todo homem de verdade tem as suas fraquezas. Não daria um níquel por um abstêmio. É gente sem nervos. (Numa perplexidade tola) Uma boa desculpa? A senhora quer dizer a saúde do Sr. Edmund, não é, senhora? Sente-se que o patrão anda muito preocupado com ele.

MARY (põe-se logo na defensiva, numa atitude rígida, de dureza, mas — coisa estranha — sua reação é maquinal, como se não atingisse o fundo de sua emoção)

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Não seja boba, Cathleen! Por que havia ele de estar preocupado com Edmund? Uma gripezinha à toa não tem a menor importância. E o Sr. Tyrone não costuma preocupar-se com coisa alguma, a não ser o dinheiro, os negócios e o receio de acabar seus dias na miséria! Bom... quero dizer: fora disso nada o preocupa seriamente. Porque de fato não o avalia nem o compreende... (Com um risinho afetuoso e indulgente) Meu marido é um homem muito estranho, Cathleen.

CATHLEEN (como que vagamente ressentida pela apreciação da patroa em relação ao marido)

Bem... de qualquer forma é um homem bondoso, fino e bem bonitão, senhora. Não ligue tanto assim às suas fraquezas...

MARY

Oh! Não ligo não. Eu o amo com imensa ternura há trinta e seis anos. Isso prova que sei o quanto no fundo ele é digno de ser querido... só que não pode deixar de ser o que é, não é assim mesmo?

CATHLEEN (tranqüilizada)É sim, senhora. A senhora deve querer muito bem ao patrão porque qualquer um pode ver que ele adora até o chão em que a senhora pisa! (Lutando contra o efeito da última dose de uísque e tentando conversar direito) A propósito... Como se explica que a senhora nunca tenha entrado para o teatro?

MARY (ofendida)Eu?! Como lhe ocorreu uma idéia tão absurda dessas? Fique sabendo que fui criada num lar respeitável e educada no melhor convento do oeste. Antes de conhecer o Sr. Tyrone, mal suspeitava da existência do teatro. Era uma moça muito piedosa. Até pensava em me fazer freira. Nunca senti o menor desejo de ser atriz.

CATHLEEN (sem rodeios)Pois eu não imagino a senhora freira! Tenho certeza como a senhora raramente pisa numa igreja, que Deus a perdoe.

MARY (como se não a tivesse ouvido)Nunca me senti bem no ambiente de teatro. Nem mesmo quando o Sr. Tyrone insistia para que eu o acompanhasse, nos seus giros teatrais. Pouco me dava com o pessoal da companhia ou com qualquer pessoa vinculada à cena. Não que tenha prevenção contra os atores. Sempre foram gentis comigo e eu com eles. Mas ao lado deles nunca me senti à vontade. A sua vida não é a minha vida. Sempre se interpôs entre mim e... (Erguendo-se bruscamente) Mas não

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falemos das coisas do passado, que já não têm mais remédio!... (Vai até a porta de entrada e olha para fora.) Como está forte o nevoeiro. Nem se vê o caminho. Toda a gente do mundo poderia passar por aqui... e eu não o saberia. Quisera eu que sempre fosse assim. Já começa a escurecer. Daqui a pouco já terá anoitecido, graças a Deus. (Virando-se, em tom indeciso) Foi bondade sua, Cathleen, fazer-me companhia na tarde de hoje. Ter-me-ia sentido muito só se tivesse ido ao povoado desacompanhada.

CATHLEEN

É claro! E, por acaso, para mim não é mais agradável dar um passeio num lindo carro do que ficar aqui ouvindo as mentiras de Bridget acerca de seus parentes?! Foi como se eu estivesse de folga. (Interrompe-se e, tolamente, acrescenta) Só de uma coisa não gostei.

MARY (hesitante)De que, Cathleen?

CATHLEEN

Da atitude daquele farmacêutico quando lhe entreguei a sua receita. (Indignada) Que desaforo!

MARY (com fingido espanto)Que quer dizer, Cathleen? Que farmácia? Que receita? (Rapidamente, enquanto a empregada a contempla, por sua vez, espantada) Ah! Naturalmente! Eu havia esquecido! O remédio para o reumatismo das minhas mãos. Mas... o que disse o homem? (Com indiferença) Não que eu me importe com isso, contanto que tenha aviado a receita.

CATHLEEN

Pois eu me importei! Não estou habituada a que me tratem como uma ladra. O farmacêutico me olhou e perguntou com ar desaforado: “Onde é que você conseguiu essa receita?” E eu respondi: “Isso não é da sua conta, mas já que quer saber, é para a senhora em cuja casa trabalho, a Sra. Tyrone, que está sentada ali fora esperando no carro”. Isso fez com que ele cerrasse o bico. Espiou pela porta, viu a senhora e exclamou: “Ah!” E então foi buscar o remédio.

MARY (numa voz hesitante)É, ele me conhece. (Senta-se na poltrona á direita da mesa. Acrescenta numa voz serena, distanciada) Tenho que tomar esse remédio porque é a única coisa que consegue acalmar-me a dor... toda a dor... quero dizer, de minhas mãos.

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(Ergue as mãos e as contempla com pena e melancolia) Agora já não tremem. Pobres mãos! Parece incrível! Antigamente eram o que em mim mais atenção chamava — assim como os meus olhos e cabelos. Além disso, eu era muito bem feita de corpo. (Sua voz torna-se cada vez mais distante, perdida no seu sonho.) Eram mãos de musicista! Gostava tanto de tocar piano! No convento, estudava música com afinco, horas por dia... se é que se pode chamar estudo o que se faz com prazer! A Madre Elisabeth e a minha professora diziam que eu tinha mais talento do que qualquer outra das alunas que tinham passado por suas mãos. Meu pai pagava-me aulas particulares. Ele me mimava. Concedia-me tudo aquilo que eu lhe pedia. Queria mandar-me estudar na Europa assim que eu terminasse o curso no colégio das freiras. Eu teria ido à Europa se não me tivesse apaixonado pelo Sr. Tyrone. Ou teria entrado para o convento. Eu só tinha dois sonhos: ou ser freira — e dos dois este era o mais lindo — ou ser pianista e dar concertos. (Faz uma pausa e fita fixamente as próprias mãos. Cathleen pisca os olhos para afugentar o sono e a embriaguez) Há tantos anos que não toco piano! Nem que o quisesse, não poderia fazê-lo com esses dedos deformados! Quando me casei, durante algum tempo ainda tratei de não abandonar a música. Mas foi impossível... Os hotéis de passagem, as pensões baratas, os trens imundos, tendo filhos, vivendo como ave de arribação, sem ter a minha casa... (Contempla as suas mãos com fascinada repulsa) Veja, Cathleen, como estão feias! Tortas e mutiladas! Parecem ter sofrido algum horrível acidente! (Ri — um risinho estranho e inesperado) E na realidade foi isso mesmo! (Bruscamente esconde as mãos atrás das costas) Não quero mais olhar para elas. Ainda me fazem maior mal do que a sirene, recordando-me de... (A seguir, com desafiadora segurança) Mas nem elas mesmo podem me atingir agora. (Põe as mãos diante de si e as fita, fixa e intencionalmente. Logo a seguir diz em tom sereno) Estão distantes. Eu as vejo, mas a dor se foi.

CATHLEEN (cada vez mais perplexa na sua estupidez)A senhora tomou o remédio! É certo que está agindo sobre a senhora de uma maneira esquisita. Se eu não o soubesse, julgaria até que a senhora tivesse tomado um tragozinho!

MARY (sempre distante e sonhadora)Isso suprime a dor. Faz com que se retroceda no tempo, até que ela não nos alcance mais. Somente o passado é real... o passado em que se foi feliz. (Uma pausa. E como se suas palavras fossem uma evocação que tivesse o dom de reacender a felicidade, todos os seus gestos e sua expressão fisionômica logo se transformam. Parece mais jovem. Nela aflora algo da inocente aluna de colégio religioso, e timidamente sorri) Se você acha o Sr. Tyrone bonito agora, Cathleen, devia tê-lo visto quando eu o conheci! Era considerado um dos homens mais belos do país. As meninas de colégio que o haviam visto trabalhar no teatro ou que o conheciam de fotografia tinham loucura por ele. Era um ídolo das garotas de então! No fim do espetáculo, as mulheres se

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postavam junto à porta do seu camarim só para vê-lo sair. Você pode imaginar minha emoção quando papai me escreveu contando que travara amizade com James Tyrone e que eu lhe seria apresentada quando eu fosse para casa passar as férias de Páscoa. Mostrei a carta a todas as colegas e — oh! como elas me invejaram! Antes de mais nada, papai me levou ao teatro para vê-lo representar. Era um drama sobre a Revolução Francesa e ele fazia o papel de um nobre. Não pude afastar os olhos dele o tempo todo. Chorei quando o jogaram na prisão... e depois tive raiva, com medo que meus olhos e meu nariz ficassem vermelhos! Meu pai me dissera que logo após a peça iríamos até os bastidores, ao seu camarim. E assim fizemos. (Dá uma risadinha excitada e ao mesmo tempo tímida) Sentia-me tão encabulada que nada soube fazer senão gaguejar e corar feito uma tolinha! Mas ele não parecia achar-me tão tola assim. Sei que ele gostou de mim desde o momento em que fomos apresentados um ao outro. (Com coqueteria) Acho que, afinal de contas, meu nariz e meus olhos não estavam vermelhos! Eu era realmente muito bonita naquela época, Cathleen. E ele — com maquilagem e no seu traje de nobre que lhe ia tão bem — era ainda mais lindo que qualquer um dos meus sonhos mais loucos! Era diferente dos outros homens comuns, como alguém vindo de um outro mundo. E ao mesmo tempo era simples, bondoso, modesto. Não era vaidoso nem convencido. Apaixonei-me na mesma hora. E ele também se apaixonou logo por mim... disse-mo depois. Esqueci todos os meus projetos de fazer-me freira ou de ser pianista. Só queria uma coisa: ser sua esposa. (Faz uma pausa, o olhar perdido no vácuo, os olhos impregnados de sonho, estranhamente brilhantes, e na boca um sorriso de êxtase, terno e próprio de uma adolescente) Foi há trinta e seis anos, mas eu o revejo tão claramente como se fosse esta noite. Amamo-nos desde então! E em todos esses trinta e seis anos nunca houve em volta de seu nome o mais ligeiro sopro de escândalo. Quero dizer, a respeito de... qualquer outra mulher. Nunca, desde que me conheceu! Isso me tem feito muito feliz, Cathleen, tem-me ajudado a esquecer tantas outras coisas!...

CATHLEEN (combatendo a sonolência que a bebida lhe provocou)É um gentil cavalheiro, e a senhora uma mulher de sorte. (Preocupada) Posso levar o uísque para Bridget? Daqui a pouco é hora do jantar e tenho que ajudá-la na cozinha. Se não lhe der algo que a acalme...

MARY (ligeiramente exasperada por ter sido arrancada de seu sonho e trazida de volta à realidade)

Sim, sim, vá. Não preciso de você agora.

CATHLEEN (com alívio)Obrigada, senhora. (Pega um copo e com ele caminha até a sala dos fundos) A senhora não ficará só por muito tempo. O senhor e os rapazes...

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MARY (impaciente)Não, não. Não virão. Diga a Bridget que não os esperarei. Pode servir o jantar às seis e meia em ponto. Não tenho fome, mas me sentarei à mesa e acabaremos de uma vez com isso.

CATHLEEN

A senhora deveria comer qualquer coisa. Que remédio estranho é esse que a senhora toma que lhe tira assim o apetite?

MARY (recomeçou novamente a se deixar arrastar pelos seus devaneios; mecanicamente reage)

Que remédio? Não sei a que é que você se refere. (Desejando fazer com que ela se afaste) É melhor que você vá levar o uísque para Bridget.

CATHLEEN

Sim, senhora.

(Sai pela sala dos fundos. Mary espera até que ouve fechar-se, por trás de si, a porta da copa. Logo se recosta na cadeira numa sonolência relaxada, olhando fixamente no vácuo. Seus braços estão caídos sobre os braços da poltrona — suas mãos, de longos dedos deformados, de nódulos sensíveis e intumescidos, largadas numa imobilidade total. Na sala, aos poucos escurece. Reina um silêncio de morte. Nisto, chega de fora o gemido melancólico da sirene, seguido por um verdadeiro coro de sinetas, abafado pela neblina, que ressoa dos barcos ancorados no porto. O rosto de Mary não trai o menor sinal que revele ter ela ouvido o ruído, mas suas mãos começam a mover-se em espasmos e seus dedos, por um momento, agitam-se no ar. Franze a testa e meneia a cabeça maquinalmente, como se pelo cérebro lhe tivesse passado uma mosca, incomodando-a. Perde logo o seu ar remoçado e juvenil, e se transforma numa mulher envelhecida, triste e amarga)

MARY (com irônica amargura)Não passo de uma velha tola e sentimental. Que há de maravilhoso no encontro entre uma colegialzinha romântica e boba e um ídolo das matinês juvenis? Era muito mais feliz antes de saber que ele sequer existia, no convento onde rezava à Virgem Maria!... (Com angustiado anelo) Ah! Se eu pudesse reencontrar a minha Fé perdida e recomeçar a rezar... (Faz uma pausa e começa a recitar a

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ave-maria, num tom monótono e inexpressivo) Ave Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco. Bendita sois entre as mulheres... (Com sarcasmo) Crê, então, que a Virgem Santa se deixará enganar por uma morfinômana embusteira, só porque recita essas palavras?! Não pode iludi-La! (Ergue-se bruscamente. Leva as mãos ao cabelo, ajeitando-o no usual e mecânico cacoete) Tenho que subir. Não tomei o suficiente... Quando a gente recomeça, nunca sabe ao certo a dose necessária! (Vai até a sala da frente e se detém no batente da porta ao ouvir vozes no caminho. Tem um sobressalto, sentindo-se culpada) São eles... (Volta precipitadamente e torna a sentar. Com ar obstinado e hostil e em tom ressentido) Por que voltaram? Não queriam voltar... e eu preferia muito estar só... (De súbito opera-se nela uma transformação total. Mostra-se pateticamente aliviada e ansiosa) Oh! Como estou contente que tenham vindo! Sentia-me tão só. (Ouve-se a porta da frente que se fecha e Tyrone chama com voz inquieta)

TYRONEVocê está aí, Mary?

(Acende-se a luz do vestíbulo que se reflete na sala da frente e se projeta sobre sua esposa. Mary se ergue da cadeira, seu rosto iluminado de afeto, e responde com sofreguidão)

MARY

Estou aqui sim, querido. Na sala de estar. Estava esperando você.

(Entra Tyrone pela sala da frente. Edmund o segue. Nota-se que Tyrone bebeu muito, mas é apenas o seu olhar um tanto vidrado e um certo embotamento no modo de falar que o revelam. Edmund também passou da conta, sem muito efeito aparente. Só que suas faces encovadas e os olhos brilham febris. Param no limiar da porta e observam Mary inquiridoramente. O que vêem só faz é confirmar suas piores suspeitas. Mas, no momento, Mary não se apercebe dos olhares que a condenam. Beija o marido e o filho. Sua atitude é exageradamente efusiva. Eles aceitam a contragosto os seus carinhos. Ela fala, muito excitada.)

MARY

Estou tão contente que vocês tenham vindo! Já tinha perdido a esperança! Receei que vocês não voltassem para casa. A noite está lúgubre e há uma tal

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cerração! Deve estar muito mais alegre nos bares lá do povoado, onde há gente com quem conversar e contar piadas. Não! não o neguem! Sei muito bem como vocês se sentem, e não os censuro em absoluto! Por isso mesmo é que ainda lhes fico mais agradecida por terem voltado para casa. Estava aqui tão só e desanimada. Venham e sentem-se um pouco. (Senta-se atrás da mesa à esquerda. Edmund, à esquerda da mesma, e Tyrone na cadeira de balanço, à direita.) Daqui a pouco o jantar estará pronto. Na verdade, vocês hoje chegaram um pouco cedo demais. São milagres que acontecem!... Aqui está o uísque, meu bem. Quer que o sirva? (Serve-o sem esperar resposta.) E você, Edmund? Não devo incitá-lo a beber, mas um golezinho antes do jantar, como um aperitivo, não pode fazer-lhe mal algum. (Serve o uísque ao filho. Nem Edmund nem o pai fazem o menor movimento para pegar os copos. Ela continua a falar, como que ignorando o silêncio de ambos.) Onde está Jamie? Mas... é certo! Não voltará enquanto ainda tiver no bolso o suficiente para pagar mais um gole! (Estende os braços e aperta a mão do marido, com tristeza na voz.) Temo que Jamie esteja perdido para nós há muito tempo já! (Seu rosto se endurece.) Mas não devemos permitir que arraste Edmund consigo, como gostaria de fazê-lo. Tem ciúmes porque Edmund sempre foi o menino mimado da família... Como antigamente teve ciúmes de Eugene. Não se dará por satisfeito enquanto não fizer de Edmund um fracassado, tão sem remédio quanto ele próprio...

EDMUND (angustiado)Basta, mamãe, basta!

TYRONE (abatido)Sim, Mary. Quanto menos você disser agora... (A Edmund com uma voz ligeiramente empastada) Com tudo isso há alguma coisa de exato na advertência de sua mãe. Tome cuidado com seu irmão ou lhe envenenará a vida com sua maldita língua viperina!

EDMUND (como antes)Oh! Basta você também, papai.

MARY (continua como se não tivesse dito nada)Ao ver Jamie tal qual é agora, custa crer que foi algum dia o nosso garotinho! Você se lembra que criança sã e feliz ele era, James? Apesar de todos os hotéis baratos, trens sujos e das pensões com sua comida infecta, ele nunca ficava zangado, nem doente. Sorria sempre... ria para tudo. Quase nunca chorava. Eugene foi tal qual ele, sadio e feliz, durante os seus dois aninhos de vida... antes que, devido a minha negligência, eu lhe causasse a morte!

TYRONEOh! meu Deus! Como fui estúpido de voltar para casa!

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EDMUNDPapai, cale-se!

MARY (sorri para Edmund com uma ternura distante)Era Edmund quem tinha mau gênio, ele que sempre se irritava e assustava sem motivo algum. (Acariciando-lhe a mão e pirraçando-o) Todos costumavam dizer, querido, que você chorava por qualquer ninharia!

EDMUND (sem poder reprimir a sua amargura)Talvez pressentisse que havia uma boa razão para não rir!

TYRONE (repreendendo-o em tom compassivo)Vamos, vamos, rapaz. Não leve a sério o que...

MARY (como se não o tivesse ouvido, com tristeza)Quem teria acreditado então que, com o tempo, Jamie viria a ser o que é: uma vergonha para nós! Você se lembra, James, quando ele foi para o colégio interno; durante anos recebíamos sempre os boletins mais elogiosos! Todos gostavam dele. Os professores comentavam a sua inteligência e a facilidade que ele tinha para aprender as lições. Mesmo depois, quando começou a beber e que tiveram que expulsá-lo, ainda nos escreveram dizendo-nos o quanto o lamentavam, visto ser ele um estudante tão brilhante e apreciado de todos. Prediziam-lhe um belo futuro, se, algum dia, aprendesse a levar a vida a sério! (Interrompe-se e ajunta, num tom impessoal, estranho e triste.) É uma pena! Pobre Jamie... Custa-se a crer... (Nela já se operou nova transformação. Seu rosto se endurece e encara o marido com acusadora hostilidade.) Não, não é difícil compreender o porquê. Você fez dele um ébrio. Desde que abriu os olhos pela primeira vez na vida, sempre o viu bebendo. Sempre havia uma garrafa sobre a mesa no quarto barato de hotéis ordinários em que ficávamos, e se Jamie, em criança, tinha algum pesadelo ou a menor dor de estômago, o remédio que você lhe dava era uma colher de uísque para acalmar.

TYRONE (ferido)Então sou eu que tenho a culpa de que um homenzarrão vadio se tenha transformado num bêbedo vagabundo!... hem? Foi para ouvir isso que voltei para casa?! Devia tê-lo imaginado! Quando você está com todo esse fel na alma, procura lançar a culpa sobre todo o mundo, menos sobre si mesma.

EDMUNDPapai, você mesmo me disse que não prestasse atenção! (Ressentido) De qualquer forma, é verdade! Você fez o mesmo comigo. Lembro-me dessa tal colherada de uísque de cada vez que eu acordava com um pesadelo!

MARY (num tom distante, nostálgico)

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Sim, quando era pequenino tinha sempre pesadelo. Você nasceu com medo! Porque eu senti tanto medo de trazê-lo ao mundo... (Faz uma pausa — e logo após prossegue no mesmo tom) Peço-lhe que não culpe seu pai, Edmund. Não pode agir de melhor maneira. Aos dez anos deixou de ir à escola. Seus pais eram irlandeses — daqueles irlandeses turrões e ignorantes, esmagados pela pobreza. Estavam, sem dúvida, sinceramente convencidos de que o uísque era o melhor medicamento possível para uma criança doente ou assustada.

(Tyrone, colérico, parece disposto a dizer alguma coisa em defesa de sua família, porém Edmund intervém)

EDMUND (asperamente)Papai! (Mudando de assunto) Vamos ou não tomar esse uísque?

TYRONE (dominando-se e em voz abafada)Tem razão. Sou um idiota de dar atenção ao que ela diz. (Toma o copo com indiferença) Beba com vontade, rapaz!

(Edmund bebe, porém Tyrone fica absorto olhando para o copo que tem na mão. Imediatamente aquele nota a considerável quantidade de água acrescida ao uísque. Franze a cara e afasta o olhar da garrafa, lançando-o de relance à sua mãe. Dispõe-se a dizer algo, todavia contém-se a tempo)

MARY (mudando de tom, continua)Perdoe-me pela amargura das minhas palavras, James. Tudo isso já vai tão longe!... Porém magoou-me um pouco a sua atitude quando você lamentou ter voltado para casa. Eu me senti tão feliz, tão aliviada, quando você voltou... fiquei tão grata! É triste e aborrecido ficar aqui sozinha, cercada por essa neblina quando anoitece.

TYRONE (sensibilizado)Também eu me alegro de ter vindo, quando reencontro em você a verdadeira Mary.

MARY

Sentia-me tão isolada que retive Cathleen a meu lado, só para ter com quem falar. (Sua atitude e expressão voltam a ser de uma tímida menina de convento) Sabe o que eu contei a ela, querido? A noite em que meu pai me levou ao seu camarim e em que me apaixonei por você. Lembra-se?

TYRONE (profundamente comovido, em voz rouca)

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Acha que algum dia poderia esquecê-lo, Mary?

(Edmund desvia os olhos de ambos, com tristeza e mal-estar)

MARY (com ternura)Não. Sei que me ama ainda... apesar de tudo!

TYRONE (seu rosto se ilumina e suas pálpebras batem, retendo as lágrimas; com serena força)

Sim! Que Deus me seja testemunha. Sempre e para sempre, Mary!

MARY

E eu também o amo, querido. Apesar de tudo.(Há uma pausa durante a qual Edmund se move

contrafeito. Mary torna a revestir-se de seu estranho ar desligado, como se falasse com indiferença de gente a quem visse de uma longa distância.)

MARY

Devo, porém, confessar-lhe, James, que, embora nunca pudesse deixar de amá-lo, nunca me teria casado com você se eu soubesse que você bebia tanto. Recordo-me da primeira noite em que seus amigos do bar tiveram que trazê-lo até a porta do nosso quarto do hotel; bateram e trataram de correr, antes que eu a abrisse. Ainda estávamos na nossa lua-de-mel, você se lembra?

TYRONE (com culpada veemência)Não, não me lembro! Não foi na lua-de-mel! E nunca na minha vida tiveram que me botar na cama, nem faltei a um só espetáculo em que tomasse parte.

MARY (como se não tivesse ouvido)Durante horas e horas eu tinha esperado naquele horrível quarto de hotel. Inventava para você uma série de desculpas. Procurava convencer-me de que você devia ter ficado preso por algum motivo ligado ao seu trabalho. Eu sabia tão pouco de teatro! Mas comecei a ficar com medo, apavorada! Imaginei toda espécie de acidentes horríveis! Ajoelhei-me e supliquei a Deus que não tivesse acontecido nada com você!... E foi aí que eles o trouxeram carregado e o deixaram defronte da porta.... (Com um leve suspiro de tristeza) Ainda não previa a freqüência com que isso se repetiria nos anos a seguir, quantas vezes da mesma maneira teria que esperar sozinha naqueles horrorosos quartos de hotel... Acabei por me acostumar...

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EDMUND (explodindo, enquanto fita o seu pai com olhar acusador)Deus meu! Não é de estranhar que... (Controla-se e ajunta rispidamente) Quando é que vamos jantar, mamãe? Já deve estar na hora.

TYRONE (afundado num sentimento de vergonha, que procura ocultar, consulta o seu relógio)

Sim, já deve estar na hora. Vejamos. (Olha fixamente o relógio, sem vê-lo. Em tom de súplica) Mary, não poderia esquecer?

MARY (com indiferente piedade)Não, querido. Mas eu perdôo. Sempre perdoei. De sorte que não deve sentir-se assim culpado. Lamento ter de recordar-lhe. Não desejo estar triste nem entristecê-lo. Quero lembrar-me somente da época feliz do nosso passado. (Torna a transformar-se na jovem ingênua, alegre e tímida) Lembra-se do dia do nosso casamento, meu bem? Tenho certeza de que nem se lembra como era o meu vestido de noiva! Os homens não reparam nessas coisas! Não lhes dão importância! Mas foi algo de muito importante para mim, isso eu asseguro! Como fiquei nervosa e preocupada. Sentia-me tão excitada, tão feliz!... Meu pai me dissera para comprar o que quisesse, sem ligar ao preço. “O melhor nunca é bastante bom” — declarou. Creio que ele me mimava demais. Minha mãe, não. Era muito severa e piedosa. Acho que também tinha ciúmes de mim. Não aprovou o meu casamento, especialmente tratando-se de um ator. Acredito que ela esperava que eu me fizesse freira. Costumava repreender meu pai. Levava resmungando: “Quando eu comprar alguma coisa, você nunca mais venha me dizer que repare no preço! Você está estragando essa menina de tal maneira que tenho pena de seu marido, se ela algum dia se casar! Esperará que ele lhe dê a lua. Não será nunca uma boa esposa!” (Ri afetuosamente) Pobre mãe! (Sorri para o marido, com inesperada coqueteria) Estava, porém, enganada... não é verdade, James? Nunca fui má esposa... não é verdade?

TYRONE (em voz rouca, deixando de sorrir) Não me estou queixando, Mary.

MARY (por cuja fisionomia passa uma sombra de culpa) Pelo menos, sempre o quis do fundo do meu coração e... apesar das circunstâncias, fiz tudo o que era possível! (Desvanece-se a sombra do seu rosto, que retoma sua tímida expressão de adolescente) Pouco faltou para que aquele vestido de noiva custasse a vida à minha modista e a mim mesma! (Ri) Eu era tão exigente! O vestido nunca me parecia estar suficientemente a gosto! Por fim, a costureira se negou a tocar mais nele, com receio de acabar por estragá-lo. Pedi-lhe que saísse do quarto, para que eu pudesse examinar-me a sós diante do espelho. Oh! Como eu me sentia satisfeita e envaidecida! Disse a mim mesma: “Apesar de o nariz, a boca e as orelhas serem um pouquinho grandes demais, esses defeitos são compensados pelos olhos e cabelos, e pelo

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corpo e as mãos. É tão bonita quanto qualquer das atrizes que ele tenha conhecido, e isso sem precisar de maquilagem”. (Faz uma pausa, franzindo a testa como que se esforçando por recordar) Por onde andará agora o meu vestido de noiva? Guardei-o numa mala, embrulhado em papel de seda. Sonhava ter uma filha, e, quando chegasse a hora dela se casar... Não poderia comprar um vestido de noiva mais lindo, e eu sabia, James, que você nunca lhe diria que comprasse o que quisesse, sem ligar ao preço. Haveria de querer que ela descobrisse por aí alguma pechincha!... Era um vestido de cetim macio, reluzente, debruado de uma maravilhosa renda antiga duchesse, com uns pequenos babados em volta da gola e das mangas e cujas pregas eram drapeadas nas costas, fazendo um efeito de “anquinhas”. A blusa tinha barbatanas e era muito ajustada ao corpo. Lembro-me de que, quando me vesti, tive que conter a respiração para que minha cintura ficasse a mais fina possível. Meu pai consentiu até que eu pusesse a renda sobre os sapatos de cetim branco e em redor do véu, com botões de flores de laranjeira. Oh! Como eu gostava daquele vestido! Era tão lindo!! Onde estará agora?! Quando eu me sentia muito só, costumava retirá-lo da mala, mas sempre me fazia chorar, de modo que, afinal, há muito tempo já desisti... (Torna a franzir a testa) Onde o terei guardado?... Provavelmente em alguma daquelas malas velhas lá no sótão. Um dia desses preciso dar uma busca.

(Interrompe-se, o olhar absorto fixo diante de si. Tyrone suspira e sacode a cabeça desanimado. Olha para o filho como que a lhe pedir solidariedade, mas Edmund tem os olhos postos no chão.)

TYRONE (num tom forçado de despreocupação)Não lhe parece que já é hora de jantarmos, querida? (Numa débil tentativa de ironia) Você está sempre ralhando comigo porque chego atrasado. Hoje que, por uma vez, fui pontual, é o jantar que está tardando! (Ela não parece ouvi-lo. Tyrone continua com ar jovial) Bom. Se ainda não posso comer, ao menos posso beber. Tinha-me esquecido disso! (Bebe o seu uísque. Edmund o observa. Tyrone franze a testa, olha para a mulher com um olhar penetrante e ao mesmo tempo receoso; brutalmente a interpela) Quem andou tocando no meu uísque?! A metade é água pura! Jamie tinha saído e de todas as maneiras não exageraria dessa forma o seu truque habitual. Qualquer imbecil o notaria logo! Responda-me, Mary! (Com asco e cólera) Espero em Deus que agora você não tenha dado para beber além de...

EDMUNDCale-se, papai. (Sem olhar para a mãe, pergunta-lhe) Você ofereceu uísque a Cathleen e a Bridget, não foi, mamãe?

MARY (num tom casual e indiferente)

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Foi sim, naturalmente. Elas trabalham muito e ganham pouco. E sou a dona da casa — tenho que impedir que vão embora. Além do mais, quis fazer um agrado a Cathleen, porque lhe pedira que me acompanhasse ao povoado e levasse à farmácia minha receita para ser aviada.

EDMUNDMas, mamãe, pelo amor de Deus! Você não pode confiar nela. Você quer que todo mundo venha a saber?

MARY (sua fisionomia se fecha obstinada)Saber o quê?! Que eu sofro de reumatismo nas mãos e tenho que tomar um remédio para passar a dor? Por que me deva envergonhar disso?! (Vira-se para o filho, com antagonismo cruel e acusador — quase uma vingativa hostilidade) Nunca soube o que era reumatismo antes de você nascer! Pergunte a seu pai.

(Edmund desvia o olhar e se retrai)

TYRONENão faça caso, filho. Isso não quer dizer nada. Quando ela chega ao ponto de recorrer à velha desculpa — tão absurda — do reumatismo nas mãos, é que já está fora do nosso alcance.

MARY (vira-se para ele com um sorriso provocante e estranhamente triunfante)Fico contente que você finalmente tenha percebido isso, James. Agora, talvez, você e Edmund parem com essa mania de viver querendo que eu me recorde... (Abruptamente, num tom prático e objetivo) Por que não acende a luz, James? Está ficando escuro. Sei que lhe desagrada fazê-lo, mas Edmund já lhe provou que uma lâmpada acesa não gasta tanto assim! Não há razão alguma para que o seu receio do asilo de velhos o leve a ficar tão avaro!

TYRONE (reage maquinalmente)Nunca disse que uma lâmpada gastava muito! O que enriquece a companhia de eletricidade é acender uma aqui, outra acolá... (Levanta-se abruptamente e acende o abajur.) Mas sou é um tolo de discutir com você... (Para Edmund) Vou buscar uma nova garrafa de uísque, filho, e aí, sim, vamos beber de verdade! (Sai pela porta dos fundos.)

MARY (achando graça - no seu jeito impessoal e distante)Ele vai se esgueirar furtivamente até a porta externa da adega, de modo que as empregadas não o vejam. No fundo, sente-se envergonhado de guardar o seu uísque fechado a cadeado! Seu pai é um homem estranho, Edmund. Levei muitos anos até conseguir entendê-lo! Você precisa fazer um esforço para também compreender e desculpá-lo e não mostrar esse desdém pela sua avareza. Lembre-se que o pai dele abandonou a mulher e os seis filhos dois

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anos após terem chegado aos Estados Unidos. Disse-lhes que tinha o pressentimento de que breve ia morrer, e que sentia saudades da Irlanda e queria voltar, para lá fechar os olhos. De modo que partiu, e de fato morreu. Seu pai teve que trabalhar numa oficina quando tinha apenas dez anos de idade.

EDMUND (protesta surdamente)Ora, mamãe! Pelo amor de Deus! Já ouvi papai contar mais de mil vezes essa história da oficina!

MARY

Sim, querido — você teve que ouvir essa história uma porção de vezes, mas duvido muito que jamais tenha tentado compreendê-la...

EDMUND (como se não tivesse ouvido, numa voz magoada)Escute-me, mamãe. Você ainda não se distanciou tanto de nós, que se esqueça de tudo. Você nem me perguntou o que o médico me disse hoje à tarde. Não lhe importa?!

MARY

Não diga isso, meu filho. Assim me fere.

EDMUNDMamãe, o que tenho é grave, O Dr. Hardy agora já tem certeza.

MARY (rígida, mas com uma teimosia desdenhosa, defendendo-se contra a verdade)

Oh! Esse velho charlatão embusteiro! Eu o avisei de que ele inventaria.

EDMUND (numa dolorosa obstinação)Ele chamou um especialista para me examinar, a fim de estar perfeitamente seguro.

MARY (ignorando essa informação)Não me fale de Hardy! Se você tivesse ouvido o que o médico do sanatório achou da maneira por que este me tratou! Aquele sim, sabia, realmente, alguma coisa. Declarou-me que Hardy devia era ser preso. Que era um verdadeiro milagre que eu não tivesse ficado louca. Eu lhe disse que isso me acontecera uma vez naquela noite em que saí correndo de camisola para me atirar do cais na água. Você se lembra, não é verdade? E, com tudo isso, você ainda quer que eu preste atenção ao que Hardy diz. Ah! Não!...

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EDMUND (com tristeza)Lembro-me perfeitamente. Foi quando papai e Jamie acharam que não podiam mais ocultar-me a verdade. E então Jamie me contou... Chamei-o de mentiroso! Tentei dar-lhe um soco na cara. Mas, no fundo, sabia que ele não estava mentindo. (Sua voz treme e seus olhos começam a se encher de lágrimas.) Céus! E desde então a vida se tornou um inferno!

MARY (roída de pena)Oh! Meu filhinho, não chore! Assim me faz sofrer tanto!

EDMUNDPerdoa-me. Mas foi você quem primeiro tocou no assunto. (Com amarga e teimosa insistência) Escute-me, mamãe. Preciso dizê-lo, quer você queira, quer não. Terei que ir para um sanatório!

MARY (atordoada como se tal possibilidade nunca lhe tivesse ocorrido)Ir para um sanatório? (Com violência) Não! Não o consentirei! Como se atreve o Dr. Hardy a aconselhar semelhante coisa sem me consultar? Como se atreve o seu pai a permiti-lo? É meu filho. Que ele se ocupe de Jamie! (Com crescente exasperação e angústia) Sei por que James quer mandá-lo para um sanatório. Para afastá-lo de mim. Sempre quis fazê-lo. Sempre teve ciúmes dos meus filhos. Sempre arranjou meios de fazer com que eu os largasse. Foi isso o que causou a morte de Eugene! E é sobretudo de você que tem ciúmes. Sabe que eu o quero mais do que a qualquer um porque...

EDMUND (angustiado)Oh! Será que você não pode parar de dizer absurdos, mamãe? Deixe de jogar sempre a culpa de tudo sobre ele! E por que se opõe tanto assim a que eu me afaste agora? Tenho partido tantas outras vezes e nunca me pareceu que isso lhe dilacerasse o coração!

MARY (amarga)Receio que no final das contas não tenha mesmo muito sentimento. (Tristemente) Querido, você deve compreender que ao descobrir que sabia da verdade... só podia alegrar-me com o fato de estar longe... onde não me pudesse ver...

EDMUND (com voz embargada)Oh! Mamãe, não diga isso. (Estende as mãos às cegas e segura a de Mary; porém a solta quase imediatamente, esmagado de novo por sua horrível amargura.) Você fala tanto no seu amor por mim... e nem sequer presta atenção quando tento explicar-lhe o quanto estou enfermo.

MARY (numa transição brusca para uma atitude maternalmente jactanciosa)

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Vamos, vamos! Não falemos mais nisso! Se me recuso a ouvir é porque sei que se trata apenas das mentiras ignorantes de Hardy!

(Edmund se retrai. A mãe insiste num tom forçado e zombeteiro em que se sente um oculto e crescente ressentimento)

MARY

Você é tão parecido com seu pai, querido. Gosta tanto de fazer uma cena por uma coisa à toa para poder ser trágico e dramático! (Com um riso, fazendo pouco do que lhe foi dito) Se eu o encorajasse, um pouquinho que fosse, a primeira coisa que você me diria é que estava para morrer.

EDMUNDHá pessoas que morrem disso... Seu próprio pai...

MARY (ríspida)Por que você o menciona? Não há comparação possível entre o caso dele e o seu. Ele estava tuberculoso. (Enraivecida) Detesto quando você começa a ficar assim lúgubre e mórbido. Proíbo-lhe que me recorde a morte de meu pai, está me ouvindo?

EDMUND (o semblante duro e sério)Sim, mamãe. Quisera Deus que eu não a tivesse ouvido. (Levanta-se e fica de pé, contemplando-a fixamente com um ar que a condena. Com profunda amargura) É muito duro, por vezes, ter-se por mãe uma morfinômana. (Ela tem um violento sobressalto. De seu rosto toda a vida parece esvair-se, deixando-o com uma aparência de máscara de gesso. Imediatamente Edmund desejaria poder retirar o que disse, e murmura desolado) Perdoe-me, mamãe. Eu estava irritado. Você me magoou muito.

(Há uma pausa em que se ouvem a sirene e as sinetas dos barcos)

MARY (caminha lentamente para as janelas à direita; parece um autômato; quando fala, na sua voz há uma nota como que apagada, morta, distante)

Ouve só essa horrível sirene... E as sinetas. Por que o nevoeiro faz com que tudo pareça tão desolado e perdido?!

EDMUND (a voz quebrada)Eu... não posso ficar mais aqui. Não quero jantar.

(Sai apressadamente pela sala da frente. Ela continua olhando pela janela até que ouve fechar-se

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atrás do filho a porta da rua. Então retorna e se senta na cadeira com o mesmo olhar perdido no seu rosto lívido.)

MARY (numa voz vaga)Preciso subir... O que eu tomei não foi bastante. (Pausa. Com um desesperado anelo) Espero que um dia, sem querer, eu tome uma dose excessiva. Não teria coragem de fazê-lo deliberadamente. A Santíssima Virgem, então, não me perdoaria nunca mais...

(Ouve o marido que regressa e se vira ao vê-lo entrar pela sala dos fundos, tendo na mão uma garrafa de uísque que acaba de desarrolhar. Tyrone está furioso.)

TYRONE (indignado)O cadeado está todo arranhado. Aquele patife do nosso filho tentou forçar a fechadura com um pedaço de arame, como já fez em outra ocasião. (Com satisfação, como se aquilo fosse um duelo perpétuo de engenho e esperteza entre o filho mais velho e ele) Mas, desta vez ele fez papel de bobo! É um cadeado especial, que nem um ladrão profissional conseguiria forçar. (Deixa a garrafa sobre a mesa e, repentinamente, repara na ausência de Edmund) Onde está Edmund?

MARY (com um ar vago e distante)Ele saiu. Talvez tenha ido novamente ao povoado encontrar-se com Jamie. Suponho que lhe reste algum dinheiro, e que esse dinheiro lhe esteja queimando os bolsos. Disse que não queria jantar. Pelo que vejo, esses dias ele não tem tido apetite algum. (Obstinadamente) Mas isso não passa de um simples resfriado de verão. (Tyrone a observa demoradamente e sacode a cabeça sem saber o que fazer. Serve-se de uma boa dose de uísque e a sorve de um trago só. Mas a tensão é excessiva para Mary e, repentinamente, esta rompe em soluços) Oh! James, estou com tanto medo! (Levanta-se, abraça-se a ele e esconde o rosto no seu ombro, soluçando) Sei que ele vai morrer!

TYRONENão diga isso! Não é verdade! O médico me garantiu que em seis meses ele estaria curado!

MARY

Não acredite nisso. Sei quando está fingindo. E será tudo por minha culpa! Nunca devia ter tido Edmund. Teria sido muito melhor para ele. Eu não lhe

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poderia então causar dano algum. Edmund não teria que saber que sua mãe não passa de uma morfinômana... e odiá-la por isso!

TYRONE (a voz trêmula)Cale-se Mary, pelo amor de Deus! Ele lhe quer bem. Ele sabe que isso foi uma maldição que caiu sobre você sem que você dela tivesse consciência, contra. a sua vontade. Ele se orgulha de que você seja sua mãe! (Bruscamente, ao ouvir que abrem a porta da copa) Silêncio. Aí vem Cathleen. Você não há de querer que ela a veja chorando?!

(Mary se volta para as janelas da direita, enxugando rapidamente os olhos. Ao cabo de uns segundos, aparece a empregada no limiar da porta da sala dos fundos. Seu andar é incerto e ela sorri de modo grotesco)

CATHLEEN (tem sobressalto ao ver Tyrone; diz com ar solene)O jantar está servido, senhor. (Alteando a voz desnecessariamente) O jantar está servido, senhora. (Esquece seu ar digno e interpela Tyrone com uma familiaridade bem-humorada) Então o senhor veio, hem?! Está bem! A Bridget é que vai ficar furiosa! Eu disse a ela que a madame tinha avisado que o senhor não viria jantar. (Notando a censura no olhar do patrão) Não olhe para mim dessa maneira! Se bebi uns goles, não roubei uma só gota. Fui convidada!

(Volta-se com dignidade e altivez e sai pela porta dos fundos)

TYRONE (suspira e apela para toda a sua bonomia de ator)Vamos, minha cara. Vamos jantar. Tenho um apetite de caçador!

MARY (aproxima-se dele; seu rosto parece de novo ser de gesso, e seu tom é o mais distante possível)

Você terá que me desculpar, James. Não poderia comer coisa alguma. Estou com muita dor nas mãos. Acho que o melhor que tenho a fazer é ir para cama e descansar. Boa noite, querido. (Beija-o maquinalmente e se volta para a sala da frente)

TYRONE (áspero)Você vai subir para tomar um pouco daquele maldito veneno, não é assim? Antes que a noite termine você parecerá um fantasma enlouquecido!

MARY (começando a andar — no mesmo tom que adota sempre, alheio e desligado)

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Não sei a que você se refere, James. Quando bebe demais você diz umas coisas mesquinhas e amargas... Você é tão perverso quanto Jamie ou Edmund!

(Afasta-se e sai pela porta da sala da frente. Ele fica parado por um momento sem saber que fazer. Não passa de um pobre velho triste, vencido e desorientado. Caminha penosamente pela sala dos fundos em direção à sala de jantar.)

FIM DO ATO III

ATO IV

CENÁRIO

O mesmo. Por volta de meia-noite. A lâmpada do vestíbulo foi apagada, de sorte que não vem luz alguma da sala da frente. Na salinha de estar está aceso apenas o abajur para leitura, que se acha sobre a mesa. Do lado de fora, o manto de cerração parece mais denso do que nunca. Ao levantar-se o pano, ouve-se a sirene e, logo a seguir, as sinetas de sinalização dos navios no porto. Tyrone acha-se sentado junto à mesa. Usa pincenê e joga paciência. Tirou o paletó e veste um velho chambre. A garrafa de uísque na bandeja está três quartos vazia. Sobre a mesa vê-se outra garrafa cheia que Tyrone trouxe da adega para ter à mão uma boa reserva de bebida. Está embriagado, e se trai pela maneira fixa e vagarosa pela qual observa cada uma das cartas a fim de se certificar delas, jogando-as, a seguir, como que indeciso quanto ao seu propósito. Seu olhar mostra-se vago e brumoso. Sua boca relaxada. Mas, apesar de todo o uísque tomado, não conseguiu escapar ao seu tormento, e ali está como apareceu no final do ato precedente: um pobre velho triste e

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vencido, esmagado por uma resignação sem esperanças.

Ao se erguer o pano, acabou de jogar uma paciência e recolhe as cartas. Embaralha -as desajeitadamente, deixando cair umas duas no soalho. Apanha-as com dificuldade e novamente recomeça a embaralhá-las, quando ouve alguém que entra pela porta da frente. Espia por sobre o pincenê na direção do vestíbulo de entrada.

TYRONE (com voz pastosa)Quem está aí? É você, Edmund?

(A voz de Edmund responde laconicamente “Sim”. Logo a seguir evidentemente o jovem esbarra em alguma coisa no hall que está ás escuras. Ouve-se sua voz soltando uma praga. Ao cabo de uns instantes acende-se a luz do vestíbulo. Tyrone franze o sobrolho e diz, alteando a voz.)

TYRONEApague essa luz antes de entrar.

(Edmund, todavia, não o faz. Entra atravessando a sala da frente. Está bêbedo; porém, como o pai, suporta bem a bebida, e sua fisionomia pouco revela do seu estado, exceção feita aos olhos, de uma agressividade desafiadora. Tyrone fala, a princípio, num tom de afetuosa acolhida e com um certo alívio.)

TYRONEAlegro-me com a sua chegada, filho. Sentia-me muito solitário. (Magoado) Você fez muito mal em fugir e em deixar-me aqui à noite, só, sabendo que... (Com irritação, em tom áspero)Já lhe disse que apague esta luz! Não estamos dando uma festa. Não há motivo para termos a casa toda iluminada a esta hora, queimando dinheiro!

EDMUND (irritado)Iluminadíssima! Uma só lâmpada! Puxa!! Todo mundo deixa acesa uma luz na entrada, antes de ir deitar-se. (Esfrega o joelho.) Pouco faltou para que eu fraturasse o joelho no porta-chapéus.

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TYRONE

A luz acesa daqui ilumina o vestíbulo. Você teria podido ver o caminho se não estivesse bêbedo!

EDMUNDSe eu não estivesse bêbedo? Essa é boa!

TYRONENão tenho nada a ver com o que os outros fazem! Se querem desperdiçar o seu dinheiro estupidamente, só por fanfarronada, que o façam!

EDMUNDUma única lâmpada! É o cúmulo. Não seja tão sovina! Já lhe provei em algarismos que, se você deixar acesa uma lâmpada durante a noite inteira, não lhe custará mais do que um gole de uísque!

TYRONEVá pro diabo com os seus algarismos! A prova está nas contas que devo pagar.

EDMUND (sentando-se defronte ao pai, desdenhosamente) Sim. Os fatos nada significam para você, não é verdade?! A única verdade é o que lhe convém crer! (Sarcasticamente) Shakespeare, por exemplo, era um católico irlandês..

TYRONE (obstinado)Certamente que o era. Os seus dramas o provam.

EDMUNDPois não o era; e seus dramas nada provam a não ser na sua opinião. (Com ironia) O Duque de Wellington também era outro bom católico irlandês, não?!

TYRONENunca disse que fosse bom. Foi um renegado, mas de qualquer modo, um católico.

EDMUNDPois tampouco o era. O que acontece simplesmente é que você quer acreditar que só um general católico irlandês poderia vencer Napoleão!

TYRONENão vou discutir com você. Pedi-lhe que apagasse a luz do vestíbulo.

EDMUND

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Já ouvi — mas pelo que me diz respeito, continuará acesa.

TYRONENão tolerarei sua insolência! Você me obedecerá, sim ou não?

EDMUNDNão. Se teima em ser um avarento maníaco, apague-a você mesmo.

TYRONE (com cólera crescente e ameaçadora)Escute. Tenho tolerado muitas coisas de sua parte, porque as loucuras que você cometia me levavam a crer que você não estava no seu juízo perfeito. Desculpei-o, e nunca ergui a mão contra você. Mas há sempre a gota d’água que faz transbordar o copo! Você vai obedecer e apagar aquela luz; ou senão, com todo o seu tamanho, tão certo quanto eu estou aqui, levará uma surra de que não se esquecerá nunca! (Bruscamente lembra-se de que Edmund está doente e se sente logo arrependido e culpado.) Perdoe-me, filho. Esquecia-me de que... Não devia fazer-me perder assim a calma.

EDMUND (agora também envergonhado de si mesmo)Esqueça isso, papai. Eu também lhe peço desculpas. Não tinha o direito de aborrecê-lo por uma bagatela. Creio que passei da conta na bebida. Apagarei essa maldita luz. (Faz menção de se levantar.)

TYRONENão, fique onde está. Deixe-a acesa.

(Ergue-se bruscamente, cambaleando um pouco na sua embriaguez, e começa a acender as três lâmpadas do candelabro — visivelmente compadecido de si próprio — de uma maneira a um tempo dramática e grotescamente infantil)

EDMUND (que observa a cena com um crescente senso de humor, sorri com afetuosa zombaria)

Esta é uma cena, papai. Você é maravilhoso...

TYRONE (senta-se, encabulado, e resmunga)É isso! Caçoa desse velho tolo! Do pobre ator de estradas! Mas a cena final será de qualquer modo o asilo, e isso não me parece propriamente cômico! (Ao ver que Edmund ainda sorri, muda de assunto.) Bom... não vale a pena discutir... Não é um vagabundo como o seu irmão. Renunciei a toda esperança de que aquele rapaz venha a ter um pouco de juízo. E, por falar nisso, por onde andará ele?!

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EDMUNDComo quer que eu saiba?

TYRONEJulguei que tivesse ido ao povoado procurá-lo.

EDMUNDNão. Fui até a praia. Não o tornei a ver desde a tarde.

TYRONEPudera! Se você fez a tolice de repartir com ele o dinheiro que lhe dei!...

EDMUNDNaturalmente. Ele sempre reparte comigo o que tem.

TYRONEEntão é fácil adivinhar onde deve estar metido: em algum bordel.

EDMUNDE caso esteja mesmo... então o quê?! Por que não?

TYRONEPor que não? Hem!... E, com efeito, o lugar ideal para ele. Que eu saiba, nunca sonhou, a não ser com rameiras e uísque!

EDMUNDOra, papai. Pelo amor de Deus! Se você já recomeça com isso, vou-me embora!

TYRONE (em tom conciliador)Bem... bem. Não direi mais nada. Deus sabe que o assunto também não me agrada. Quer beber um gole comigo?

EDMUNDAh! Boas falas!

TYRONE (passando-lhe a garrafa maquinalmente) Faço mal em lhe oferecer mais uísque. Você já bebeu bastante.

EDMUND (servindo-se uma dose grande, numa voz de ébrio) Bastante ainda não é propriamente o que se chama uma farra! (Devolve-lhe a garrafa.)

TYRONENo seu estado de saúde é prejudicial.

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EDMUNDEsqueça a minha saúde. (Ergue o copo) Saúde!

TYRONESaúde! (Bebem) Se você foi até a praia a pé, deve estar molhado e enregelado.

EDMUNDQual nada! Entrei no bar, na ida e na volta.

TYRONEA noite de hoje não é a mais indicada para longas caminhadas.

EDMUNDGosto do nevoeiro. Estava precisando disso mesmo. (Sua voz é típica de ébrio e com efeito parece realmente.)

TYRONEVocê devia ter bastante critério para não arriscar-se a...

EDMUNDPara o inferno com o seu critério!! Todos somos uns doidos. Para que precisamos de critério?! (Cita sardonicamente uns versos de Dowson.)

Nem o riso, nem o pranto duram muito...Nem tampouco o amor, o desejo e o ódio;Creio que não mais deles participamos,Uma vez franqueado o grande mortal...Não são longos os dias de rosas e de vinho!De um sonho brumosoEmerge o nosso caminho por um pouco de tempo

[ - a seguir se fechaNovamente num sonho...

(Com os olhos fixos no vácuo) A névoa estava onde eu queria estar. No caminho, a alguns passos daqui, não se podia ver esta casa. Nem se adivinhava sequer a sua presença. Nem tampouco a das outras casas da avenida. Só se podia distinguir alguma coisa a poucos metros de distância. Não encontrei vivalma... Tudo era irreal. Até o menor ruído. Nada parecia ser o que realmente é. Era isto que eu desejava. Estar a sós comigo mesmo num outro mundo, onde a verdade é mentira, e a vida pode ocultar-se de si mesma. Mais adiante do porto — onde a estrada se cruza com a praia — perdi até a noção de que estava em terra firme. A neblina e o mar pareciam confundir-se. Era como se eu caminhasse para o fundo do mar. Como se há muito, muito tempo, eu me tivesse afogado. Como se eu fosse um fantasma surgido da bruma, e o nevoeiro o fantasma do mar. Era uma tal sensação de paz: não ser mais do que um fantasma dentro de outro fantasma! (Repara que o pai o observa fixamente

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com um misto de inquietude e censura irritada; então sorri zombeteiro) Não olhe para mim como se eu tivesse ficado maluco!... O que digo tem sentido comum. Quem quer encarar a vida tal qual é, se pode evitá-lo?!... São as três Górgonas numa só. Quem as fitar face a face é convertido em pedra. Ou então é Pã. Você o vê e morre — por dentro — naturalmente... e tem que seguir vivendo como um espectro.

TYRONE (impressionado e ao mesmo tempo com uma certa revolta)Há em você um poeta — não há dúvida — porém um tanto mórbido. (Com um sorriso forçado) Para o diabo com esse seu pessimismo! Já me sinto, assim como estou, bastante deprimido. (Suspira) Por que você não recorda Shakespeare e esquece os poetastros de terceira classe?! Nele encontrará o que quer exprimir... e tudo o que merece ser dito. (Cita, fazendo valer sua voz harmoniosa)

Somos da substância de que são feitos os sonhos; E nossa curta vida se conclui no sono.

EDMUND (irônico)Bravos! Isso é lindo! Mas não era isso o que eu estava tentando dizer. “Somos da substância de que é feito o esterco”, isso sim! De modo que devemos embriagar-nos e esquecer. Isto era o que eu pretendia dizer.

TYRONE (com desaprovação)Ora! Guarde esses sentimentos tolos para você. Não lhe devia ter dado esse uísque.

EDMUNDArrancou-me dos sonhos, não há dúvida! E a você também! (Sorri, com afetuosa pirraça.) Embora você nunca tenha faltado a uma única representação!... (Agressivamente) Mas, afinal... Que mal há em se ficar bêbedo? Acaso não é isso o que buscamos?! Nós não precisamos enganar-nos mutuamente, papai. Ao menos por esta noite. Sabemos bem o que tentamos esquecer. (Precipitadamente) Mas, não falemos mais nisso. Agora é inútil.

TYRONE (com voz surda)É... O que nos resta fazer é tratar de nos resignar... mais uma vez.

EDMUNDOu embriagar-nos o suficiente para podermos olvidar... (Recita, e recita bem, num tom apaixonado, amargo e irônico a tradução de Symons do poema em prosa de Baudelaire)“Embriague-se. Somente isto importa: é o único problema! Se não quer sentir o horrível peso do Tempo que pesa sobre os seus ombros e o esmaga, embriague-se sempre.

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“Com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude. Com o que queira. Porém embriague-se.“E se, por vezes, na escadaria de um palácio, ou na borda verdejante de um vale, ou na desolada solidão de seu quarto, despertar e sentir que a embriaguez se dissipou em parte ou totalmente, pergunte que horas são ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que voa, ou suspira ou se move, ou canta, ou baila... e o vento, a onda, a estrela, o pássaro e o relógio lhe responderão: É hora de embriagar-se! Embriaguem-se todos, se não quiserem ser os escravos martirizados do Tempo! Embriaguem-se sem cessar. Com vinho, com poesia, com virtude, ao seu bel-prazer !“

(Sorri para o pai, de modo provocante)

TYRONE (mal-humorado)Se eu fosse você não me preocuparia com a parte referente à virtude! (Com desdém) Puá!! São tolices mórbidas! O pouco de verdade que essa poesia contém, você a pode encontrar dita com outra grandeza por Shakespeare. (Com ar estimativo) Todavia, você a recitou muito bem, filho. Quem é o autor?!

EDMUNDBaudelaire.

TYRONENunca ouvi falar dele.

EDMUND (sorri provocando o pai)Também escreveu um poema sobre Jamie e a Broadway.

TYRONEAquele patife! Tomara que perca o último bonde e tenha que pernoitar no povoado.

EDMUND (continua, fazendo caso omisso do comentário paterno)Embora Baudelaire fosse francês, nunca tivesse conhecido a Broadway e morresse antes do nascimento de Jamie... Contudo ele a conheceu e à velha Nova York. (Recita a tradução do epílogo de Baudelaire, feita por Symons.)

Com o coração em paz galguei a altura escarpadaDa cidadela e, como de uma torre, avistei a cidade,O hospital, o bordel, o cárcere e os infernosEm que o mal surge suave como uma flor.Tu sabes, ó Satanás, protetor de minha mágoa,Que ali, a essas horas, não subi em busca de

[lágrimas inúteis,Senão como um velho triste, fiel e libidinoso,Disposto a sorver o prazer dessa grande rameira

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Cuja beleza infernal me rejuvenesce;Quer estejas dormindo cheia de pesados vapores,Saturada do dia, ou que, engalanada,Apareças embelezada pelos véus de renda dourada

[da noiteEu te amo, cidade infame!As prostitutas e os perseguidos podem proporcionar

[prazeres muito seus,Que o vulgo nunca logrará entender.

TYRONE (irritado e aborrecido)Que sujeira mórbida! De onde tira esse seu péssimo gosto literário?! Sujeira, pessimismo e desespero!! É outro ateu, na certa. Quando se nega Deus, nega-se toda esperança. Isto é o que acontece. Se se tivesse ajoelhado...

EDMUND (como se não o ouvisse, sardonicamente)Você imagina Jamie perseguido por si mesmo e pelo uísque, escondendo-se num quarto de hotel da Broadway com alguma marafona gorda — agradam-lhe as mulheres gordas — e recitando-lhe Cynara de Dowson?!!! (Recita em zombaria, porém com profundo sentimento.)

A noite toda, sobre mim senti bater o seu tíbio coração;Durante toda a noite esteve estendida entre

[os meus braços, perdida no amor e no sonho. Por certo eram doces os beijos de sua mercenária

[boca rubra.Mas eu estava desolado, e enfermo ainda de uma

[velha paixãoQuando despertei, e descobri que amanhecia...Eu lhe fui fiel, Cynara, à minha maneira.

(Sarcasticamente) E a pobre obesa rainha de ficção não entende uma só palavra disso tudo, mas suspeita que a insultam! E Jamie nunca amou Cynara alguma, e nunca foi fiel a ninguém, nem mesmo à sua maneira! Mas ali está ele, estendido, ludibriando-se com a idéia de que é um ser superior e que desfruta prazeres que “o vulgo não é capaz de entender”! (Ri.) É algo de absurdo — de completamente absurdo!

TYRONE (imprecisamente, numa voz espessa)É loucura, isso sim! Se quisesse ajoelhar-se e rezar. Ao renegar Deus, renega a sanidade.

EDMUND (sem responder a isso)

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Mas... quem sou eu para me julgar superior? Cometi a mesma estupidez. E tudo isso não é mais absurdo do que o caso do próprio Dowson, quando, inspirado pelos vapores do absinto, escreveu a uma vivandeira imbecil que julgou ser ele um pobre ébrio demente e lhe deu o fora para se casar com um criado... (Ri, com solidariedade grave e sincera) Pobre Dowson! O álcool e a tuberculose deram cabo dele! (Estremece e por um momento parece aflito e receoso. Com defensiva ironia) Talvez mais valha eu mudar de assunto.

TYRONE (sombrio)Mas de onde vem esse seu gosto literário? Essa sua maldita biblioteca!... (Aponta para a pequena estante de livros no fundo.) Voltaire, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Ibsen! Ateus, loucos, imbecis!... E os seus poetas! Esse Dowson e esse Baudelaire e Swinburne e Oscar Wilde e Poe! Freqüentadores de prostitutas e degenerados! Bah! E pensar que ali tenho... (indica a estante maior) três ótimas coleções de Shakespeare que você poderia ler.

EDMUND (provocante)Dizem que ele também era um ébrio.

TYRONEPois mentem! Não duvido que lhe agradasse um gole ou outro — é uma fraqueza própria de todo verdadeiro homem — porém sabia beber sem envenenar o cérebro com morbidez e imundícies! Não o compare com essa gentalha que há por ai! (Aponta novamente para a estante menor.) Esse seu Zola é um sujo!... E Dante Gabriel Rossetti, que não passa de um morfinômano! (Tem um sobressalto, com uma expressão de culpa.)

EDMUND (secamente)Talvez seja prudente mudarmos de assunto. (Pausa.) Você não me pode acusar de desconhecer Shakespeare. Por acaso não ganhei de você certa vez cinco dólares, quando apostou comigo que eu não seria capaz de aprender um de seus principais papéis numa semana, como você o fazia antigamente, quando estudava o seu repertório? Aprendi o papel de Macbeth, e recitei-o na perfeição, dando-me você a deixa.

TYRONE (em tom aprovador)É verdade. Você o fez. (Sorri zombeteiramente e suspira.) Mas sofri horrores — eu o recordo — ao ouvi-lo assassinar os versos daquela maneira!... Teria preferido pagar a aposta sem o obrigar a provar-me que sabia de cor! (Ri e Edmund sorri. Nisso Tyrone estremece ao ouvir ruído no primeiro andar, e diz com receio) Ouve? É ela que caminha. Julgava que tivesse adormecido.

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EDMUND

Esqueça isso! Vamos tomar outro uísque? (Pega a garrafa, serve-se e a repõe no lugar, com forçada indiferença, enquanto o pai se serve por sua vez.) Quando foi que mamãe se deitou?

TYRONEMal você foi embora. Não quis jantar.

EDMUND

Por nada. (Alçando o copo) À sua saúde.

TYRONE (maquinalmente)À sua saúde, filho. (Bebem. Tyrone torna a escutar o ruído no andar de cima. Aflito) Ela está caminhando muito. Queira Deus que não desça.

EDMUND (numa voz abafada)Sim... A essa altura seria apenas um fantasma que ronda o passado. (Faz uma pausa. Ajunta, sucumbido.) Leva a evocar o tempo em que eu ainda não tinha nascido...

TYRONE

Acaso não faz o mesmo comigo? Recorda a época em que não me conhecia. Como se os seus únicos dias felizes tivessem sido os que passou em casa de seu pai, ou no convento, rezando e tocando piano. (Enciumado e ressentido na sua amargura.) Já lhe disse que aceitasse com reservas as suas recordações. Seu lar maravilhoso era como outro qualquer... Seu pai longe estava de ser o nobre cavalheiro irlandês, magnífico e generoso, que ela descreve. Era muito gentil, uma companhia agradável... uma boa prosa. Simpatizei com ele e ele comigo. Era, além do mais, um homem próspero nos negócios — possuía uma mercearia — era um homem capaz. Mas tinha também o seu ponto fraco. Ela me condena por beber, mas se esquece que o pai fazia o mesmo. É verdade que nunca tocou numa gota de álcool até os quarenta anos; mas depois também tratou de recuperar o tempo perdido! E se converteu num assíduo bebedor de champanha! Fazia disso um grande alarde: só bebia champanha! Foi o que acabou com ele — isso e a tuberculose! (Pára bruscamente, olhando de relance para o filho.)

EDMUND (sarcasticamente)Parece que não conseguimos evitar os assuntos desagradáveis, não é mesmo?!

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TYRONE (suspira tristemente)É sim. (Com um patético esforço para ser jovial) Que tal uma partida ou duas de cassino, hem?

EDMUND

De acordo.

TYRONE (baralhando desajeitadamente as cartas)Não podemos trancar a porta e ir para a cama até que Jamie chegue no último bonde — o que espero não se dará! — e, de qualquer forma, não quero subir antes que ela esteja dormindo.

EDMUND

Nem eu tampouco.

TYRONE (continua a baralhar mal as cartas, esquecendo-se de as dar)Conforme lhe dizia, deve aceitar com reservas as suas recordações. Refiro-me aos seus estudos de piano; ao seu sonho de ser concertista. Essa idéia foi-lhe inculcada pelas freiras que a adulavam. Era a aluna predileta. Queriam-lhe muito bem, por ser muito piedosa. Mas as freiras são umas ingênuas quando se trata da vida cá de fora, no mundo. Ignoram que nem uma só — entre um milhão de jovens pianistas — chega a realizar aquilo que parecia prometer. Era verdade que sua mãe tocava bastante bem para uma colegial, mas isso não é bastante para crer que pudesse ser...

EDMUND (interrompe-o, áspero)Se vamos jogar... por que você não dá as cartas?

TYRONEAh?!... Sim, é verdade. (Dá as cartas, calculando erroneamente a distância entre ambos.) E a idéia de que podia ser freira! Isso foi o pior de tudo! Sua mãe foi uma das moças mais lindas que jamais vi. E ela sabia disso. Era provocante e coquete, debaixo de toda a sua timidez e de seus rubores. Não fora feita para renunciar ao mundo. Espocava de saúde, de alegria de viver... do desejo de amar!...

EDMUNDPapai, por favor... Por que não apanha suas cartas?

TYRONE (apanha-as com ar sombrio)

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Sim, vejamos o que tenho aqui! (Tyrone e Edmund olham as cartas que têm na mão, sem lhes prestar atenção. Nisso ambos estremecem. Tyrone sussurra) Ouça só!

EDMUNDEla está descendo.

TYRONE (precipitadamente)Joguemos. Finja não notar sua presença, e ela logo tornará a subir.

EDMUND (olhando para a sala da frente — com alívio)Não a vejo. Deve ter começado a descer e depois voltado atrás.

TYRONEGraças a Deus!

EDMUNDSim! É horrível vê-la no estado em que deve estar agora. (Com amargurada tristeza) O mais penoso é o verdadeiro muro de confusão que mamãe ergue em volta de si. Ou antes — digamos — o manto de bruma em que ela se esconde... e se perde! Deliberadamente! Isso é o mais dantesco no caso! Sente-se que nela algo há que age propositadamente — para fugir do nosso alcance; para se ver livre de nós; para esquecer que existimos! É como se, apesar de nos amar, ela nos odiasse!

TYRONE (repreende-o com doçura)Vamos, filho, não diga uma coisa dessas. Não é ela. É essa maldita droga.

EDMUND (com amargura)Se ela a toma, é justamente com essa finalidade. Pelo menos sei que hoje ela o fez para isso. (Bruscamente) É minha vez, não é? Aí vai. (Joga a carta.)

TYRONE (joga automaticamente — com afetuosa censura)Ela tem estado terrivelmente preocupada com a sua saúde, por mais que tente disfarçá-lo. Não seja demasiadamente duro para com ela, Ed. Leve em conta que ela não é responsável. Quando esse desgraçado veneno toma conta de alguém...

EDMUND (seu semblante torna-se duro e fita o pai com um amargo olhar de acusação)

Não devia tê-la dominado! Sei muito bem que a culpa não é dela! E sei de quem é! É sua! De sua maldita avareza! Se tivesse gasto o seu dinheiro num médico competente, quando ela adoeceu após o meu nascimento, mamãe nem sequer saberia que existia morfina! Mas você a pôs nas mãos de um charlatão

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de hotel, que não quis reconhecer sua ignorância e escolheu o caminho mais fácil, sem ligar a mínima coisa ao que a ela aconteceria depois. Tudo porque cobrava barato! Mais outra de suas “pechinchas”!

TYRONE (ferido e encolerizado)Basta! Como é que você ousa falar de uma coisa que ignora por completo?! (Tentando controlar-se) Você precisa ver o meu lado da questão, filho. Como podia eu adivinhar que aquele médico era um charlatão? Tinha boa reputação.

EDMUND

Entre os bêbedos do bar do hotel, seguramente!

TYRONEIsso não é verdade! Pedi ao dono do hotel que me indicasse o melhor.

EDMUNDSim, sei disso! E ao mesmo tempo você se lastimava, a dizer que terminaria os dias num asilo de velhos, como que insinuando que queria um médico barato! Conheço o seu sistema! Por Deus, é natural que o conheça depois do que se deu na tarde de hoje!

TYRONE (sentindo-se culpado,já pronto a se defender) Na tarde de hoje? Que aconteceu?

EDMUNDAgora não mais importa. Estamos falando de minha mãe. Digo que, por mais desculpas que você arranje, sabe perfeitamente que a culpa foi toda de sua avareza.

TYRONEE eu digo que você não passa de um mentiroso! Cale a boca agora mesmo, ou eu...

EDMUND (sem ligar ás suas palavras)... quando você descobriu que mamãe se havia habituado à morfina... por que não a mandou para um sanatório onde a curassem logo de início, quando ainda podia ser salva? Não! Isso teria significado gastar um pouco mais! Aposto como você lhe afirmou que lhe bastava ter “força de vontade”! No fundo, é o que você continua achando, apesar do que lhe disseram os médicos — os médicos que realmente entendem do assunto.

TYRONEVocê está de novo falseando a verdade! Hoje sei que não é assim... mas... como podia sabê-lo então? Que conhecia eu de morfina? Levei anos a perceber o que

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se passava. Julgava que sua mãe não se havia curado inteiramente de sua doença, e era só. Você pergunta por que não a mandei para um sanatório? (Com amargura) E por acaso não o fiz? Gastei milhares e milhares de dólares em tratamentos! Foi um dinheiro jogado fora. De que lhe serviu? Sempre tornava a recomeçar...

EDMUNDPorque você nunca lhe deu algo que a ajudasse a largar a droga! Mamãe não tinha outro lugar a não ser este casarão úmido, perdido num lugarejo que ela detesta; e até para reformá-lo você se negou a gastar o seu precioso dinheiro, enquanto continua comprando terrenos e deixando-se ludibriar por qualquer espertalhão que lhe acene com uma mina de ouro ou de prata, ou algum outro embuste para enriquecer depressa! Você arrastou mamãe nas suas tournées, e a deixou dormir em pensões miseráveis onde não tinha nem com quem falar; e esperar em hotéis sórdidos que você voltasse bêbedo, depois que se fechavam os bares! Cristo! Tem alguma coisa de extraordinário o fato de um doente não ter querido curar-se?! Quando penso nisso, chego a odiá-lo.

TYRONE (arrasado)Edmund! (Num acesso de ira) Como se atreve a falar assim com seu pai, seu cachorro insolente?! Depois de tudo o que fiz por você!EDMUND

Agora é a isso que chegamos: ao que você está fazendo por mim!!

TYRONE (sentindo-se novamente culpado, e sem relevar as palavras do filho)Você deixe de repetir as acusações falsas de sua mãe. Ela mesmo só as lança quando dominada pela droga! Nunca a arrastei contra a sua vontade nas minhas viagens. Naturalmente queria tê-la ao meu lado. Amava-a. E ela me acompanhava porque também me amava e desejava estar comigo. É esta a verdade, diga o que disser sua mãe quando está fora de si. E não havia motivo para se sentir solitária. Podia ter relações e conversar com os atores de minha companhia. Eles estavam igualmente com os seus filhos. E eu insistia — apesar da despesa — para que tomássemos uma ama que nos ajudasse nas viagens com vocês.

EDMUND (com amargura)Sim, foi sua única generosidade, e isso porque você tinha ciúmes por mamãe se ocupar demais conosco, e você queria se ver livre de nós. Foi mais outro erro seu! Se ela tivesse tido que tomar conta de mim, ocupando-se e distraindo assim o seu espírito, talvez não pudesse...

TYRONE (espicaçado, num impulso de vingança)

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Quanto a isto, se você insiste em julgar os fatos pelo prisma por que ela se vê quando está fora de si, para começar, se você não tivesse vindo ao mundo, ela não teria...

EDMUND (bruscamente vencido e angustiado) É certo... Avalio o que ela sente, papai...

TYRONE (protestando, contrito)Não! Não sente nada disso! Ela o quer tanto bem quanto qualquer outra mãe. Eu só disse isso porque você me levou a um tal extremo de raiva, esgravatando o passado... como se você me odiasse...

EDMUND (com tristeza)Não tinha intenção, papai. (Inesperadamente sorri e caçoa, com um laivo de embriaguez.) Sou como minha mãe. Não posso deixar de lhe querer bem... apesar de tudo.

TYRONE (sorri também por sua vez, ligeiramente ébrio)Eu poderia dizer o mesmo. Você não vale grande coisa, meu filho. É um desses casos de: “Algo de pouca valia... porém meu”. (Ambos riem alcoolizados, porém com sincero afeto, Tyrone muda de assunto.) E nossa partida, a quem toca jogar?

EDMUND

Parece-me que é você. (Tyrone joga uma carta que Edmund compra, e tornam a esquecer o jogo.)

TYRONENão deve ficar desanimado demais com a má notícia que lhe deram hoje, filho. Ambos os médicos me garantiram que —se obedecer direito às instruções recebidas no sanatório para onde vai — estará curado dentro de seis meses — um ano, no máximo.

EDMUND (novamente hostil)Não caçoe de mim!... Você não acredita nisso.

TYRONE (com excessiva veemência)Claro que acredito! Por que não haveria de acreditar, se tanto Hardy quanto o especialista...

EDMUNDVocê sabe muito bem que eu vou morrer!

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TYRONEQue absurdo! Está louco!

EDMUNDE assim sendo, para que gastar dinheiro?! Por isso, você me manda para uma fazenda do Estado...

TYRONE (confuso, não querendo reconhecer-se culpado)Que fazenda do Estado é essa?! É o sanatório de Hilltown — foi o que me disseram. E os médicos garantiram-me que era o lugar ideal para a sua saúde.

EDMUND (ferino)Porque é barato! Ou antes, porque não cobra nada... ou quase nada. Não minta, papai! Você sabe muito bem que o sanatório de Hilltown é uma instituição do Estado. Jamie bem que suspeitou que você iria para cima de Hardy com suas eternas lamentações e seu “receio do asilo de velhos”... Hardy confirmou essa suspeita quando Jamie lhe arrancou a verdade.

TYRONE (furioso)Aquele patife bêbedo! Eu o enxotarei a pontapés! Envenenou sempre o seu espírito contra mim, desde que você atingiu a idade do uso da razão.

EDMUNDVocê não pode negar que é verdade o que eu disse sobre a granja do Estado, não é?

TYRONENão é verdade da maneira pela qual você a interpreta! E se é o Estado que administra o sanatório, que mal há nisso?! É muito natural. O Estado tem verba necessária para manter um estabelecimento melhor que qualquer sanatório particular. E por que não havia eu de aproveitar tal circunstância? É um direito que me assiste, e a você também. Somos vizinhos desse distrito. Sou proprietário. Ajudo a mantê-lo. Pago impostos...

EDMUND (com amarga ironia)Sim, com propriedades avaliadas num quarto de milhão.

TYRONENão é verdade. Está tudo hipotecado.

EDMUNDHardy e o especialista sabem o quanto você tem. Só imagino o que pensaram de você quando o ouviram lastimar-se de que assim acabaria os dias num asilo, e insinuar que preferia entregar-me à caridade do Estado!!

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TYRONEMentira! Disse-lhes, apenas, que não podia permitir-me o luxo de um sanatório de ricos porque não tinha meios para isso. Esta é que é a verdade.

EDMUNDE logo depois você foi encontrar-se com McGuire para que ele o tapeasse, mais uma vez, num dos seus fraudulentos negócios de venda de terras! (Como o pai se apronta a negar) Não negue, papai. Encontramos McGuire no bar do hotel, após a sua partida. Jamie puxou conversa e, como que de brincadeira, perguntamos-lhe se havia jogado o anzol para fisgar você. Ele piscou o olho e se pôs a rir.

TYRONE (ainda numa débil tentativa de negar a verdade) É um embusteiro, se disse que...

EDMUNDNão minta! (Com crescente veemência) Meu Deus! Desde que parti e vivi por minha conta e soube o que significava trabalhar de sol a sol por uns poucos dólares e não possuir um centavo e sentir fome e acampar nos bancos das praças por não ter onde dormir, esforcei-me por fazer-lhe justiça, papai, porque compreendi as penúrias de sua infância. Tentei encontrar atenuantes para você. Céus! Se não fizesse isso, era de se ficar louco nesta maldita família! Tratei de me desculpar a mim mesmo, levando em conta todos os maus pedaços que passei. Tratei de pensar, como mamãe, que você não pode deixar de ser como é, nessa questão de dinheiro... Mas, por Deus... esse seu último ardil foi o cúmulo! Chega a me dar náusea! Não pela maneira incrível por que você me está tratando. Para o inferno com isso! Também eu, a meu modo, o tenho tratado mal por mais de uma vez... Mas... pensar que, quando um filho seu está tuberculoso, você é capaz de se exibir diante de toda a gente do povoado, como um miserável avarento! Por acaso pensa que Hardy não fará comentários, e que todos aqui não virão a saber?! Por Deus! Será que você não tem amor próprio nem o menor brio?! (Estourando de raiva) E não pense que eu deixarei que você se saia bem desta! Não irei para nenhuma dessas malditas instituições do Estado, para poupar-lhe uns miseráveis dólares que lhe permitam ainda comprar outras propriedades sem valor algum... Velho sovina!! (Engasga-se de ódio, sua voz treme e ele se torce num acesso de tosse.)

TYRONE (encolheu-se na cadeira ante a violência desse ataque, e seu remorso supera-lhe a cólera; balbucia)

Cale-se! Não diga isso! Está bêbedo! Não me importam as suas palavras. Pare de tossir, rapaz. Fica todo exaltado por uma ninharia. Quem disse que o forçaria a ir para Hilltown? Pode ir para onde quiser. Não me importa o quanto custe. Não me chame de avaro só porque não quero que os médicos me

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julguem um milionário a quem possam explorar. (Edmund parou de tossir. Parece cada vez mais fraco e doente. Seu pai o olha fixamente, temeroso) Você está enfraquecido, filho. Tome um gole.

EDMUND (pegando a garrafa e enchendo o copo até a borda, com uma voz que desfalece)

Obrigado. (Bebe de um só trago.)

TYRONE (serve-se de bastante uísque, esvaziando a garrafa, e bebe; inclina a cabeça e contempla com ar ausente as cartas da mesa e, em tom indeciso)

A quem toca a vez de jogar? (Continua sombriamente, sem ressentimento) “Um velho sovina”... E, talvez tenha razão! Talvez eu não possa mesmo deixar de sê-lo, se bem que durante toda a minha vida — desde que tive dinheiro — joguei-o sobre os contadores dos bares para pagar a bebida a todos que neles se achavam; ou o emprestei a pobres diabos vagabundos que nunca mo devolveram... (Com um sorriso sarcástico de desdém por si próprio que lhe distende a boca) Mas, naturalmente, isso só acontecia nos bares, quando eu estava saturado de uísque! Não podia pensar da mesma maneira quando me achava em casa e não tinha bebido. E foi em casa mesmo que descobri o valor de um dólar; que em mim brotou o medo do asilo de velhos!!! Desde então nunca mais pude crer na minha boa estrela. Sempre temi que se apagasse e que me tirassem tudo o que tenho. Porém o fato é que quanto mais propriedade se possui, mais a salvo a gente se sente. Talvez não seja lógico, mas é a realidade. Os bancos abrem falência e o nosso dinheiro desaparece; mas sabemos que podemos conservar a terra que se acha debaixo dos nossos pés. (Seu tom torna-se de repente desdenhosamente superior) Você disse que compreendia os obstáculos que tive que vencer na minha infância. Que pode você compreender? Você teve tudo: amas, escolas, universidades, se bem que não quisesse terminar os estudos. Tinha alimentos, roupa. Oh! Já sei que trabalhou no duro — trabalho pesado! — que vagou sem teto nem dinheiro por esse mundo afora, e eu o respeito por isso. Mas, para você, isso não passou de romantismo e aventura! Foi um jogo, nada mais!

EDMUND (com sombrio sarcasmo)Sim!... Sobretudo quando tentei suicidar-me na taverna de Jimmie, o Padre, e quase o consegui...

TYRONEVocê não estava no seu juízo perfeito... Nenhum filho meu pensaria jamais em... Você estava bêbedo!

EDMUND

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Naquela hora, não tinha bebido uma só gota. Foi por isso que o fiz... Tinha tido tempo demais para pensar...

TYRONE (com uma irritação típica de bêbedo)Não comece outra vez com essa maldita morbidez de ateu! Não quero aborrecer-me dando-lhe ouvidos! Procurava apenas fazê-lo compreender... (Com menosprezo) ...Que sabe você do valor de um dólar? Quando eu tinha dez anos, meu pai abandonou minha mãe e foi morrer na Irlanda. O que fez, aliás, bem depressa; e bem que o merecia! Espero que esteja torrando nas profundezas do inferno! Confundiu um veneno para ratos com farinha ou açúcar, ou qualquer coisa parecida! As más línguas disseram que não foi mero engano, mas isso é mentira. Na minha família ninguém nunca quis...

EDMUNDPois eu apostaria como não foi um engano!

TYRONEAí vem você mais uma vez com a sua morbidez! Seu irmão meteu-lhe isso na cabeça. Para ele a pior das suspeitas é sempre a única verdade aceitável! Mas, não importa! Minha mãe, estrangeira em terra alheia, viu-se abandonada com quatro filhos de tenra idade: eu, uma irmã um pouquinho maior e dois irmãozinhos. Os meus dois irmãos mais velhos tinham partido para outras cidades e não nos podiam ajudar. Já lhes custava bastante ganhar o pão de cada dia! Nossa pobreza nada teve de romântico! Fomos desalojados por duas vezes da miserável pocilga que considerávamos o nosso lar; e jogaram à rua os móveis destrambelhados que minha mãe possuía. Ela e os meus irmãozinhos choraram tanto! Eu também chorei, se bem que me esforçasse por conter-me, pois era o homem da família! Aos dez anos de idade, para mim acabou-se a escola. Trabalhei doze horas por dia numa oficina mecânica, aprendendo a fazer limas. Era um alpendre imundo onde a chuva se infiltrava pelo telhado; onde se torrava de calor no verão; e no inverno não havia aquecimento: as mãos inchavam de frio! A única claridade existente penetrava por umas janelinhas escuras de tanta sujeira, de modo que, nos dias nublados, eu tinha que me inclinar até quase tocar com os olhos as limas, a fim de conseguir vê-las. E quanto pensa que me pagavam por isso? Cinqüenta centavos por semana! E minha pobre mãe lavava e esfregava durante todo o dia e minha irmã mais velha cosia enquanto os meus irmãozinhos ficavam tomando conta da casa. Nunca tínhamos roupa ou comida bastante que chegasse para todos. Lembro-me muito bem de um dia de Ação de Graças — ou talvez tenha sido Natal, não sei mais... — em que um homem, em cuja casa minha mãe fazia limpeza, deu-lhe um dólar de gorjeta e no trajeto de regresso ela o gastou inteirinho em alimentos. Lembro-me como nos abraçou e beijou, e como nos disse, enquanto corriam as lágrimas pelo seu rosto cansado: “Louvado seja Deus! Por uma vez na vida, teremos o suficiente!” (Enxuga as lágrimas) Era

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uma boa mulher, uma mulher forte e serena. Nunca houve outra mais corajosa e melhor.

EDMUND (comovido)Sim, devia sê-lo...

TYRONESó temia uma coisa: envelhecer e morrer no asilo de velhos. (Faz uma pausa — a seguir acrescenta com amarga ironia) Foi nessa época que aprendi a ser mesquinho. Um dólar valia tanto então! E quando se aprendeu uma lição destas, custa-se a desaprendê-la. Sente-se um impulso incontido de procurar sempre fazer pechinchas. Se essa granja-sanatório do Estado pareceu-me a mim uma pechincha, deve perdoar-me. Os médicos me garantiram que era um estabelecimento adequado. Precisa crer em mim, Edmund. E eu lhe juro como nem por um momento pensei mandá-lo para lá, se não quisesse ir. (Com veemência) Você pode escolher o sanatório que quiser! Não me importa o que custar. Posso permitir-me qualquer preço! O que lhe agrade... dentro do razoável... (Diante de tal ressalva, um sorriso torce os lábios de Edmund. Dissipou-se o seu ressentimento. Seu pai continua com um tom propositada-mente despreocupado e casual) Há um outro sanatório que o especialista também recomendou. Disse ser considerado entre os melhores do pais. É subvencionado por um grupo de industriais, milionários todos eles, em beneficio — antes de tudo — de seus próprios operários. Mas pode ser admitido por sermos residentes no distrito. Esse estabelecimento acha-se es-corado por uma tal soma de dinheiro que, para se manter, não necessita cobrar muito caro; o preço é de apenas sete dólares por semana, porém, na realidade, vale dez vezes mais! (Acrescenta precipitadamente) Não o quero induzir a fazer coisa alguma filho — por favor, compreenda-me. Estou somente repetindo o que me disseram.

EDMUND (dissimulando um sorriso,fala com negligência)Oh! Já sei! A oportunidade parece mesmo ser das melhores para mim. Assim fica o problema solucionado de vez. (Bruscamente mostra-se de novo aflito e angustiado) De qualquer maneira... agora tanto se me dá! Esqueçamos isso! (Mudando de assunto) E a nossa partida? Quem é a jogar?!

TYRONE (mecanicamente)Não sei... Acho que sou eu! Não, é você. (Edmund tira uma carta; seu pai a compra. Mas, quando, por sua vez, se dispõe a jogar, torna a esquecer a partida) Sim, creio que a Vida me deu uma lição demasiado severa, e ensinou-me a superestimar o valor de um dólar. E veio a hora em que esse erro arruinou uma magnífica carreira de ator!... (Tristemente) Nunca confessei isso a ninguém, rapaz; porém, na noite de hoje, sinto-me tão deprimido, que é como se tudo tivesse acabado para mim... E de que, então, me serviriam as vaidades,

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as jactâncias ou um falso orgulho?! Aquela maldita comédia que comprei por uma ninharia, e na qual tive tanto sucesso — um grande sucesso comercial! — estragou-me a vida com sua promessa de fácil fortuna. Eu não queria fazer mais nada! E, quando dei pela coisa, já me havia convertido em um verdadeiro escravo dessa peça amaldiçoada!! Experimentei representar outras, mas aí já era tarde demais. O público já me havia identificado com aquele papel e não compreendia ver-me noutro. E tinha razão! Eu havia perdido o meu talento em anos de fácil repetição, sem aprender um só papel novo, sem nunca mais trabalhar de verdade! Fazia trinta a quarenta mil dólares líquidos de lucro por temporada, sem despender o menor esforço! A tentação era demasiado forte! E, no entanto, antes de comprar essa nefasta peça, eu era considerado um dos três ou quatro jovens atores de mais futuro nos Estados Unidos! Trabalhara com o máximo empenho, abrindo mão de um bom emprego de mecânico para ser substituído no elenco de uma companhia, só pelo amor que tinha ao teatro! Vivia louco de ambição! Lia todas as obras dramáticas existentes. Estudava Shakespeare como se estuda a Bíblia. Educava-me a mim mesmo. Com esforço, consegui libertar-me do meu sotaque irlandês que era bastante forte. Que entusiasmo tinha por Shakespeare! Teria, de bom grado, representado qualquer de suas obras, sem receber um centavo, só pela satisfação de viver na atmosfera de sua sublime poesia! E posso dizer que a interpretava a contento! Sentia-me inspirado por ela. Se eu tivesse insistido, poderia ter chegado a ser um grande intérprete shakespeariano. E tinha consciência disto! Em 1874, quando Edwin Booth veio trabalhar no teatro de Chicago, onde eu já era a primeira figura, representei, certa noite, o papel de Cassius, enquanto ele fazia o de Brutus. Em outra ocasião, trocamos os papéis: encarnei Brutus e ele Cassius. Também interpretei Otelo e ele Yago, e assim por várias outras vezes. Ao ver-me em Otelo, Booth comentou com o seu empresário: “Este jovem está fazendo o papel de Otelo melhor do que eu próprio!” (Com orgulho) E isto quem disse foi Booth, o maior ator de sua época, o maior talvez de todas as épocas! E era a expressão da verdade! Eu tinha apenas vinte e sete anos! Quando me lembro, compreendo que aquela noite foi o ponto culminante de minha carreira!! Havia chegado onde queria chegar. E, durante algum tempo ainda, continuei subindo, com uma ambição sempre crescente! Casei-me com sua mãe. Pergunte-lhe como eu era então. Seu amor foi um incentivo a mais para as minhas aspirações. Mas... no fim de uns poucos anos, minha boa sorte — que acabou por ser má! — fez com que eu topasse com o grande “negócio” da minha vida! A princípio não julguei que fosse tal. Era um belo papel romântico que eu sabia poder desempenhar melhor do que ninguém. Essa peça, desde o início, veio a ser um formidável sucesso de bilheteria! E então a vida me levou até onde eu queria chegar: a um lucro líquido de trinta e cinco a quarenta mil dólares por temporada! Era uma verdadeira fortuna naquela época... ainda o é hoje! (Com amargura) Não sei que diabos queria então comprar que valesse a pena eu... Bem, de nada mais adianta rememorar isso

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agora! É tarde para arrependimentos! (Olha distraidamente as cartas) Sou eu a jogar, não?

EDMUND (comovido, olha-o com compreensão e responde em voz lenta)Alegro-me que você me tenha contado tudo isso, papai. Agora eu o conheço muito melhor.

TYRONE (com um sorriso apagado e forçado)Talvez não devesse tê-lo feito. Talvez, no fundo, ainda me despreze pelo que agora sabe. É uma triste forma de convencê-lo do valor de um dólar! (Como se essa frase nele suscitasse automaticamente uma habitual associação de idéias, olha com ar desaprovador o lampadário aceso) O brilho de todas essas luzes extras me irrita os olhos. Vê algum inconveniente em que eu as apague? Não precisamos delas e não há por que enriquecermos a companhia de eletricidade!

EDMUND (reprimindo uma absurda vontade de rir, em tom amável)Não — claro que não. Pode apagá-la.

TYRONE (levanta-se pesadamente e, cambaleando, encaminha-se, de modo mecânico, até as lâmpadas, enquanto torna às suas divagações anteriores)

Não, não sei que diabos queria eu comprar... (Apaga, com um estalido, uma das lâmpadas) Juro pelo que há de mais sagrado, Edmund, que me conformaria em não possuir um único acre de terra nem um só centavo no banco... (apaga com novo estalido outra lâmpada) ... e me resignaria em não ter outro lar a não ser o asilo de velhos, contanto que eu pudesse olhar para trás e sentir que fora de verdade o magnífico ator que poderia ter sido! (Apaga a terceira lâmpada; permanece aceso somente o abajur de leitura. Torna a se sentar pesadamente. De repente Edmund não consegue mais reprimir uma gargalhada terrivelmente irônica. Tyrone mostra-se ferido) Por que diabos está você rindo dessa maneira?!!

EDMUNDNão estou rindo de você, papai. E sim da Vida! É tão loucamente absurda!

TYRONE (resmungando)Lá vem você de novo com suas idéias doentias! A Vida nada tem de ruim... Somos nós que. . . (Cita): “O mal não está em nossas estrelas, Brutus, mas em nós mesmos, que não passamos de uns pobres diabos !“ (Uma pausa. Acrescenta melancólico) Quando Edwin Booth me elogiou no Otelo, pedi ao meu empresário que anotasse todas as suas palavras e, durante anos, guardei-as na minha carteira. Costumava sempre relê-las, até que me causaram um mal-estar que não tive mais coragem de enfrentá-las! Por onde andarão agora essas

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anotações? Na certa estarão jogadas por aí, em algum canto desta casa! Lembro-me, no entanto, que as guardei cuidadosamente...

EDMUND (com irônica tristeza)Talvez estejam em algum velho baú do sótão, junto com o vestido de noiva de mamãe... (Ao notar que seu pai o fita, ajunta rapidamente) Pelo amor de Deus, se vamos jogar cartas, joguemos de uma vez !...

(Compra a carta que o pai tirou. O jogo prossegue por um momento, como se fossem autômatos a jogar uma partida de xadrez. Mas Tyrone interrompe o jogo ao ouvir um ruído que provém do primeiro andar.)

TYRONEEla ainda está caminhando de um lado para outro! Quem sabe quando adormecerá!

EDMUND (toga, com ar tenso)Por favor, papai, esqueça isso! (Serve-se de uísque. Tyrone pensa protestar, mas, desanimado, desiste de fazê-lo. Edmund bebe. Larga o copo. Sua expressão fisionômica muda totalmente. Quando fala, dir-se-ia que deliberadamente se entrega á embriaguez, e que procura esconder o seu íntimo por trás de uma atitude de ébrio.) Sim, mamãe caminha lá por cima como um espectro que ronda o passado. E nós fingimos esquecer, porém. procuramos perceber o mais leve ruído. Escutamos a umidade da neblina gotejar dos olmos como o bater irregular de um extravagante e desconjuntado relógio de parede... ou como as lágrimas aborrecidas de uma marafona, que caem numa poça de cerveja rançosa sobre a mesa de um bar. (Ri, com a auto-aprovação de um ébrio) Esta última frase não esteve má, hem?! E é minha! Não é de Baudelaire! Pode crer! (Com loquacidade) Você acaba de me relatar alguns momentos culminantes de suas recordações. Quer ouvir as minhas? Estão todas elas ligadas ao mar. Aí vai uma: foi quando eu viajava num veleiro rumo a Buenos Aires... a favor dos ventos alísios e com lua cheia. O velho barco fazia quatro nós por hora. Achava-me estendido no tombadilho, olhando em direção à popa — a água salpicava-me com sua espuma, e os mastros resplandeciam lá no alto, na brancura de suas velas despregadas ao luar. Tudo aquilo me embriagava com sua beleza e o ritmo de seu canto; e, por uns momentos, esqueci-me de mim mesmo... na verdade, esqueci-me até da própria Vida! Senti-me livre! Dissolvi-me no mar! Converti-me em velas brancas e espuma voadora! Transformei-me, também eu, em beleza e ritmo! Fundi-me no luar, no barco, no firmamento vagamente estrelado! Integrei-me, sem passado nem porvir, na paz e na unidade do universo e, numa selvagem alegria, em algo maior que a minha vida ou a vida do homem: a própria Vida em si!... Deus — se você assim o prefere! Lembro-me também de outra

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ocasião, no American Line, quando estava de vigia na torre de guarda e cumpria o quarto do amanhecer. Dessa vez o mar estava sereno. Sentia-se apenas o preguiçoso trepidar da coberta e o suave e sonolento balanço do navio. Os passageiros dormiam, e nem um só tripulante havia à vista. Não se ouvia o menor ruído humano. Por trás de mim e à minha frente, brotava a negra fumaça das chaminés. Eu sonhava, esquecido de minha missão de vigia. Sentia-me só, isolado ali no alto, e via arrastar-se a madrugada como um sonho pintado sobre o céu e o oceano que juntos dormiam. E aí foi que chegou o momento de estática liberdade. A paz... o fim de toda busca, o ponto final, a alegria da plena realização, além dos temores pequeninos e das mesquinhas ambições humanas — além dos sonhos e das aspirações!... E de outras vezes em minha vida — quando a nado entrava pelo mar adentro, ou estava a sós, estendido na praia — experimentei a mesma maravilhosa sensação! Converti-me no sol, na areia quente, nas verdes algas ancoradas nas rochas, balouçando-se ao vaivém da maré! Como a visão da beatitude de um santo! Como o véu que encobre o mistério, ao ser descerrado por uma Mão invisível! Por um segundo vislumbramos o segredo e — ao vislumbrá-lo — nele nos integramos... fugazmente alcançamos o seu sentido. Mas, logo a seguir, a Mão invisível deixa recair o véu, e novamente ficamos sós, perdidos na bruma, e continuamos a avançar aos tropeções, sem saber para onde nem para quê! (Com um sorriso que mais parece uma careta) Foi um grande erro ter eu nascido homem! Teria sido muito mais feliz como... um peixe, ou uma gaivota!! Assim, serei sempre um estranho, que nunca se sente em casa, que não quer realmente a ninguém — e a quem, em troca, ninguém quer! — que nunca está onde deveria estar, e que vive continuamente um tanto quanto enamorado da morte!..

TYRONE (olhando impressionado para o filho)Não há dúvida de que em você existe o estofo de um poeta! (Protestando constrangido) Mas é absurdo dizer que ninguém o quer e que deseja a morte...! É de uma morbidez doentia!

EDMUND (sardônico)“Estofo de poeta”! Qual nada! Temo que eu seja apenas como o tipo que mendiga um cigarro. Nem sequer há nele o “estofo” de um fumante. Tem somente o hábito de fumar... Não poderia alcançar o que há pouco tentei explicar-lhe; só fiz foi tartamudear... É o máximo que sei fazer... e que farei, se viver, naturalmente... Bem. Pelo menos terá sido de um fiel realismo. O tartamudeio é a nossa forma de eloqüência — a dos que vivem afundados na neblina! (Pausa. Ambos se erguem de um salto ao perceberem um rumor que vem de fora, como se alguém ao tentar entrar em casa, tivesse tropeçado e caído nos degraus da frente. Edmund sorri e comenta) Bom... isso parece ser o irmão ausente... Com certeza regressa num bom pileque!

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TYRONE (enrugando a testa)O patife! Pegou a tempo o último bonde! Que azar! (Levanta-se) Ponha-o na cama, Edmund. Vou até a entrada. Ele tem uma língua de peste quando está bêbedo. Só faria era me enfurecer.

(Sai em direção ao pórtico lateral no momento em que se ouve a porta da frente bater com força atrás de Jamie. Edmund observa, divertido, o irmão que caminha ziguezagueando através do vestíbulo da frente. Jamie entra na sala de estar. Está completamente bêbedo e mal se sustém sobre as pernas. Tem os olhos vidrados, o rosto intumescido, a fala pastosa, a boca frouxa como a do pai. Nos lábios traz um sorriso zombeteiro.)

JAMIE (cambaleando e piscando os olhos, grita em altas vozes, do vão da porta)Olá! Olá... pessoal!...

EDMUND (em voz áspera)Nada de gritos!...

JAMIE (fitando-o, sempre a pestanejar)Oh! Olá, garoto! (Muito sério) Estou bêbedo feito uma perua!!

EDMUNDAgradeço-lhe por me ter confiado o seu grande segredo!

JAMIE (sorri tolamente)É mesmo! Uma informação desnecessária, hem?! (Dobra-se e bate nas calças, na altura dos joelhos) Tive um acidente sério! Imagine que os degraus da frente tentaram pisotear-me!! Aproveitaram-se da cerração para fazer com que eu me extraviasse. Devia haver um farol aí fora. Aqui dentro também está escuro feito breu! (Franzindo a testa) Que diabo é isso?! Parece um velório! Lancemos um pouco de luz sobre esse local. (Avança titubeando para a mesa, recitando versos de Kipling)

Vau, vau, vau do rio Kabul, Vau do rio Kabul nas trevasNão te afastes dos bordões ferrados que te

[guiarão de maneira seguraPara cruzar o vau do rio Kabul nas trevas!

(Busca, ás apalpadelas, o lampadário, e consegue acender, uma a uma, as três lâmpadas) Agora sim, melhorou muito. Para o inferno com o Gaspard!! Onde está aquele velho avarento?!

EDMUND

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Lá fora, na entrada.

JAMIENão há de pretender que vivamos na Cela Negra de Calcutá! (Seu olhar se detém na garrafa cheia de uísque) Senhor! Será que estou com delirium tremens?! (Estende a mão trêmula e agarra a garrafa) Por Deus é uma garrafa de verdade! Que se passa com o velho na noite de hoje?! Deve estar “ossificado” para se ter esquecido que a deixou do lado de fora! Agarre a sua oportunidade... pelo gasganete!! É esta a chave do meu sucesso! (Despeja a bebida no copo.)

EDMUND

Já cheira mal! Recende a cachaça! Mais uma bebida e cairá por terra!

JAMIEA sabedoria fala pela boca das crianças. Guarde para si as palavras sensatas, sim, garoto?! Mal sai dos cueiros! (Deixa-se cair numa cadeira, segurando o copo cuidadosamente)

EDMUNDEstá bem. Se quer ficar inconsciente, vá lá!!

JAMIENão consigo. É este o problema, Já bebi o bastante para afundar um navio, mas não consigo afogar-me a mim próprio.. Bem — sempre resta a esperança... (Bebe.)

EDMUNDPasse-me a garrafa. Também eu tomarei um gole.

JAMIE (repentinamente com ar solícito de um irmão mais velho, retendo a garrafa)

Não, não vai tomar coisa alguma. Pelo menos, enquanto eu estiver por aqui. Lembre-se das recomendações do médico. É possível que ninguém mais se importe caso venha a morrer — mas eu me importo... Meu irmão caçula! Quero-lhe muito, Ed. Todo o resto já desapareceu. Só tenho a você. (Aproxima de si a garrafa) De modo que nada de bebidas, se eu o puder evitar... (Sob o seu sentimentalismo de ébrio há uma real sinceridade)

EDMUND (irritado)

Ora, deixe disso!

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JAMIE (sente-se magoado e sua expressão torna-se dura)Não acredita que eu me importe, não é assim? “Simples desvarios de um bêbedo”... é o que pensa! (Empurra-lhe a garrafa) Pois bem! Continue bebendo e suicide-se de uma vez!

EDMUND (ao vê-lo magoado por suas palavras, diz afetuosamente)Sei que isso o preocupa, Jamie, e estou deixando de beber. Mas esta noite não conta. Que diabo! Tantas coisas aconteceram no dia de hoje! (Serve-se de uísque) À sua saúde! (Bebe)

JAMIE (por um momento parece ficar sóbrio; com um olhar de pena)Eu sei, Ed. Foi um dia penoso para você. (Com cínico sarcasmo) Aposto como o velho Gaspard nem tentou impedi-lo de beber. Provavelmente queria arranjar um bom pretexto a fim de poder mandá-lo para a granja do Estado... onde vão os enfermos indigentes! Quanto mais depressa você morrer, menos gastos fará! (Com ódio e desprezo) Que canalha é esse nosso pai! Deus meu! Se figurasse num romance, ninguém acreditaria!

EDMUND (defendendo-o)Não é tanto assim, Jamie! É só tratar de compreendê-lo um pouco, e conservar o bom humor!

JAMIE (cínico)Já vejo que o velho esteve representando para você a velha cena de lágrimas, já tão conhecida, hem?... Consegue sempre tapeá-lo! Porém a mim não. Nunca mais tornará a enganar-me.. (Lentamente) Se bem que, de certo modo, tenha pena dele... por uma coisa... Mas até disso teve a culpa! (Precipitadamente) Ora! Que vá tudo para o inferno! (Pega a garrafa, despeja mais uísque no copo e demonstra de novo estar bêbedo) Sinto que este último uísque me está pondo por terra. Creio que será o suficiente para deixar-me inconsciente. É o que eu desejo. Você disse ao velho que, segundo o Dr. Hardy, esse tal sanatório não passa de uma instituição de caridade?!

EDMUND (de má vontade)Sim. Declarei-lhe que não iria para lá. Agora já está tudo combinado. Respondeu-me que eu poderia ir para onde quisesse. (Acrescenta sorrindo, sem ressentimento) “Dentro do razoável”, já se vê...

JAMIE (imitando o pai)“Decerto, rapaz, tudo dentro do razoável...” (Mordaz) Isto significa outro sanatório barato! O velho Gaspard, o avarento de Os Sinos. Aí está um papel que nosso pai poderia representar até sem maquilagem!

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EDMUND (irritado)Ora, cale a boca, sim?! Já o ouvi chamá-lo de “Gaspard” um milhão de vezes!

JAMIE (dá de ombros —falando com dificuldade)Está bem! Se você está de acordo, que ele faça o que bem quiser! É você quem vai morrer! quero dizer... oxalá tal não aconteça!

EDMUND (mudando de assunto)Que é que você fez esta noite no povoado? Foi à casa de Mamie Burns?

JAMIE (completamente embriagado, meneia a cabeça afirmativamente)Claro que fui! Em que outro lugar teria encontrado uma companhia feminina adequada?!... E amor... Não se esqueça do amor! O que é o homem sem o amor de uma boa mulher?! Uma casa vazia, nada mais!

EDMUND (com um risinho oco, abandonando-se, por sua vez e completamente, à embriaguez)

Está doido!

JAMIE (recita com prazer versos de A Casa das Mulheres de Oscar Wilde)Então, voltando-se para o meu amor, disse-lhe:

‘Os Mortos estão bailando com os Mortos,O Pó está rodopiando com o Pó!’Ela, porém, ouviu o som do violino,Abandonou-me e entrou...O Amor penetrou na casa da Luxúria...Repentinamente, então, a melodia tornou-se falsa.Os bailarinos cansaram-se da valsa!

(Interrompe-se com ar sombrio) Isto não é lá muito exato... Se meu amor estava comigo nem o vi! Deve ter sido um fantasma! (Faz uma pausa) Adivinhe qual das sereias de Mamie elegi para gratificar-me com seu amor de mulher?!... Isso até o fará rir, rapaz! Escolhi Violeta, a “Gorda”!

EDMUND (rindo)Não! Não é possível! Deveras?! Que mau gosto! Violeta deve pesar uma tonelada! Por que diabo você a escolheu?! Por brincadeira?!

JAMIE

Qual brincadeira, qual nada! Foi algo de muito sério! Quando cheguei à casa de Mamie, sentia-me profundamente deprimido ao pensar na minha sorte e na de todos os demais vagabundos do mundo! Estava pronto a chorar e me desabafar em qualquer colo feminino. Sabe a disposição em que se fica quando Baco acorda em nosso peito a tecla do sentimentalismo! Mal cheguei à porta,

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Mamie pôs-se a contar-me todos os seus problemas. Queixou-se de que os negócios andavam mal, e me disse que ia despedir Violeta, a “Gorda”. Só a conservava ali porque sabia tocar piano. Mas ultimamente a mulher dera para beber. Vivia “alta” demais para poder tocar, e não fazia a sua féria. Os fregueses não a queriam mais. E, se bem que fosse uma pobre criatura, tola, mas de bom coração, e ela, Mamie, tivesse muita pena, pois não imaginava de que outra forma Violeta poderia ganhar a vida — “negócio, afinal, era negócio, e ela não se podia pagar o luxo de dirigir uma casa para rameiras obesas”! Então tive pena da pobre Violeta e gastei dois dos seus dólares para acompanhá-la ao primeiro andar. Sem quaisquer intenções desonestas, aliás... Agradam-me as mulheres gordas, como sabe, mas não a esse ponto! Queria apenas ter uma pequena conversa de coração aberto acerca da infinita tristeza da Vida!

EDMUND (sempre ébrio, rindo)Coitada da Violeta! Aposto como você lhe recitou versos de Kipling e Swinburne e Dowson, e saiu-se com aquele célebre trecho: “Eu te fui fiel, Cynara, à minha maneira...”

JAMIE (com um sorriso sem graça)Claro... enquanto o velho Baco despertava em mim sua suave música sentimental... Ela o suportou durante algum tempo. Mas, logo depois, aborreceu-se. Julgou que eu a tivesse levado ao primeiro andar por deboche! Lançou-me em rosto mil impropérios! Gritou-me que valia mil vezes mais do que um tipo à toa como eu, um bêbedo que só sabia era recitar versos!! Começou depois a chorar; e tive que lhe assegurar que eu a amava de verdade, justamente porque era assim gorda! Eu próprio quis crer no que afirmava — e, então, fiquei... para prová-lo. Isto a fez muito feliz! Beijou-me quando sai, e declarou-me que estava apaixonadíssima por mim! Choramos um pouco mais no corredor, mas tudo terminou bem. Só que Mamie Burns julgou que eu tinha ficado louco!

EDMUND (citando com mofa)“As prostitutas e os perseguidos podem proporcionar prazeres muito seus que o vulgo jamais compreenderá...”

JAMIE (meneando a cabeça com ar de ébrio)E isso mesmo! Com efeito, foi uma farra! Que pena você não ter vindo comigo, Ed! Mamie Burns perguntou por você. Lamentou saber que você anda doente. Lamentou-o sinceramente. (Faz uma pausa e prossegue, sempre na sua embriaguez, em tom de ator cômico e vulgar) Hoje à noite, rapaz, abriram-se os meus olhos para uma carreira magnífica que o destino me reserva! Vou devolver às focas amestradas a arte de representar! São elas a sua mais perfeita expressão! Aplicarei, na sua devida esfera, os talentos naturais que Deus me

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concedeu, e alcançarei, dessa maneira, a culminância do êxito! Serei o amante da mulher obesa de Circo de Barnum e Bailey!! (Edmund ri. O estado de ânimo de Jamie se transforma, convertendo-se em orgulhoso desdém) Bah! Imagine só seu irmão rendendo-se aos encantos da mulher gorda, num mísero bordel de província! Eu que fiz esperar e suplicar as mulheres mais belas da Broadway! (Cita uns versos da Sextina de Tramp-Royal de Kipling) “De modo geral, experimentei todos os alegres caminhos que nos levam pelo Mundo.” (Com a voz impregnada de melancolia) Esses “caminhos alegres” não passam de meras palavras! São as trilhas penosas que contam! Levam-nos rapidamente ao nada... a parte alguma! Foi aí que cheguei: a parte alguma!... Onde todos nós vamos parar no final, embora a maioria dos incautos não o queira reconhecer!

EDMUND (gracejando)Basta! Daqui a pouco você estará chorando!...

JAMIE (tem um sobressalto e, por um segundo, olha fixamente para o irmão, com hostilidade; sobriamente retruca)

Não fique... atrevido demais, hem?! (Brusco) Mas tem razão! Que os remorsos vão pra o inferno! Afinal, a gorda Violeta é uma boa mulher, e alegro-me por ter estado com ela! Foi um ato de caridade. Curei-lhe a tristeza e passei uns bons momentos. E uma pena que não me tenha acompanhado, rapaz! Teria esquecido todas as suas preocupações. De que lhe serve voltar para casa, se se entristece com o que não tem mais remédio? É o fim — tudo agora acabou — não resta mais a menor esperança! (Pára — balançando a cabeça tontamente e cerrando os olhos. — Abre-os de repente, ergue o olhar e com o rosto duro recita em tom de mofa)

Se me enforcassem na mais alta colina

Minha mãe, oh! minha mãe

Sei qual o amor que me seguiria ainda...

EDMUND (com violência)Cale essa boca!

JAMIE (em tom cruel e mordaz em que aflora um travo de ódio) Onde está aquela cabeça louca? Foi dormir?

(Edmund estremece como se fora agredido. Há um silêncio tenso. O rosto de Edmund apresenta-se lívido e doentio. De repente, num acesso de ódio, levanta-se de um salto.)

EDMUND

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Canalha!

(Dá-lhe um soco que resvala pelas maçãs do rosto. Por um momento Jamie chega a erguer-se em parte da cadeira e reage disposto a lutar. Mas, como que repentinamente, cai em si e reavalia a brutalidade do que disse. Afunda-se na cadeira como uma massa inerte.)

JAMIE (arrasado)Obrigado, rapaz. É certo que o mereci. Não sei porque disse isso. Foi o álcool com certeza. Você já me conhece, Ed.

EDMUND (cuja raiva se dissipa pouco a pouco)Sei que você não o teria dito nunca se não fosse por... Mas, Jamie... Por mais bêbedo que esteja, isso não se desculpa! (Depois de uma pausa, num tom desolado) Lamento tê-lo alcançado... Você e eu nunca brigamos... (Afunda-se também na cadeira.)

JAMIE (num timbre rouco)Não tem importância. Foi bom que me tivesse atingido! É essa minha língua suja! Quisera eu poder cortá-la! (Ocultando o rosto entre as mãos numa voz abatida) É por isso que estou assim arrasado. Desta vez mamãe me enganou. Na realidade acreditei que ela tinha largado o vício. Ela supõe que sempre penso o pior, mas desta vez imaginei o melhor... (Sua voz vacila.) Acho que, por enquanto, ainda não lhe poderei perdoar... Isto significa tanto para mim! Acreditava que, se ela conseguisse dominar o seu vício, eu também dominaria o meu!

(Começa a soluçar, e o que há de pungente no seu pranto é que é o pranto de um homem lúcido, não de um ébrio.)

EDMUND (pestanejando, afugenta as lágrimas)Deus meu! Pensa por acaso que não sei como você se sente?! Chega, Jamie!

JAMIE (tentando controlar os soluços)Soube o que se passava com mamãe muito antes de você. Nunca esqueci o momento em que o descobri: surpreendi-a quando tomava a droga com uma seringa. Cristo! Nunca imaginara que mulheres — a não ser prostitutas — tomassem drogas. (Pausa.) E depois, mais essa história de você ficar tuberculoso! Isso me arrasou. Temos sido mais do que irmãos. Você é o único companheiro que jamais tive. Quero-lhe um bem imenso, Ed. Faria qualquer coisa por você.

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EDMUNDEu sei, Jamie. (Dá-lhe uma palmadinha no braço.)

JAMIE (controlou o pranto; afasta as mãos do rosto e diz com estranha amargura)

Meu Deus! Aposto como depois de ter ouvido mamãe e o velho Gaspard dizerem tantas vezes que sempre espero pelo pior, você agora é capaz de suspeitar que penso comigo mesmo: nosso pai já está velho e não viverá muito, e, se você morrer, mamãe e eu ficaremos com tudo que ele tem — assim provavelmente espero que...

EDMUND (indignado)Cale a boca, imbecil. Que diabo pôs essa idéia louca na sua cabeça! (Fitando-o com ar acusador) Sim, isto é o que eu gostaria de saber. Como lhe veio essa idéia?

JAMIE (confuso, novamente com ar de ébrio)Não seja tolo! Vocês sempre suspeitam o pior! Já cheguei a um estado tal que não posso evitar. (Com ressentimento) Que é que você pretende? Acusar-me? Não se faça de sabido comigo. Aprendi muito mais sobre a vida do que você nunca o saberá. Não pense que pode enganar-me só porque leu um montão de palavreado pedante! Você não passa de um garoto que cresceu demais. O queridinho da mamãe e do papai! A esperança da família! Ultimamente deu para ficar convencido! Sem motivo algum! Tudo por causa de uma meia dúzia de versos publicados num jornaleco de um povoadozinho à toa! Com mil diabos, rapaz, eu publicava coisas muito melhores na revista do colégio! É bom que você desperte e compreenda que não fará maravilhas! Você deixa que os provincianos idiotas daqui o adulem com bonitas palavras sobre o seu futuro... (Bruscamente seu tom de voz revela cansaço e contrito aborrecimento. Edmund desvia o seu olhar do irmão, procurando não dar ouvidos às suas palavras.) Esqueça isso tudo, rapaz! Que inferno! Já sabe que nunca falo a sério. Ninguém se orgulha mais do que eu de que comece a triunfar! (Afirmativo) E por que não me haveria de orgulhar? Seria mero egoísmo. Seus sucessos são uma honra para mim. Mais do que ninguém ocupei-me de sua educação. Fui eu que o instruí sobre a vida e as mulheres, de modo que não fizesse papel de tolo nem caísse em erros que não gostaria de cometer. E quem o animou a ler os poetas? Swinburne, por exemplo? Eu! E — como em outros tempos desejei escrever — sugeri-lhe que escrevesse. Para mim você é mais do que um irmão. Eu o fiz! É o meu Frankenstein.

(Sua voz adquiriu um tom altaneiro de ébrio que se gaba. Edmund agora sorri divertido.)

EDMUND

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Está bem. Sou seu Frankenstein. Então vamos beber. (Ri.) Que louco!

JAMIE (com ar sombrio)Tomarei um gole. Você não. Tenho que cuidar de sua saúde. (Inclina-se com um sorriso inexpressivo, afetuosamente chocho e segura a mão do irmão) Não fique assustado com esse negócio de sanatório. Que diabo! Você se sairá dessa! Seis meses e estará novamente em forma! Vai ver que nem está tuberculoso nem nada!... Esses médicos são uns farsantes! Há anos disseram-me que eu deixasse de beber, ou seria logo um homem morto... e aqui estou! Não passam de uns embusteiros! Fazem não importa o quê, só para tirar o dinheiro da gente! Apostaria como toda essa história da granja do Estado não passa de politicagem e trapaça! Certamente os médicos receberão sua comissãozinha por doente que mandem para lá!

EDMUND (agastado e ao mesmo tempo divertido)Você é um número, Jamie! No dia do juízo final andará, na certa, dizendo a todos que o julgamento depende da soma que puder dar!

JAMIEE terei razão! Ponha alguns dólares na mão do Juiz Supremo, e você se salvará! Mas, se não tiver dinheiro, pode ir logo para o inferno!! (Sorri ante a própria blasfêmia, e Edmund também não pode deixar de rir. Jamie continua) “Portanto, leve sempre dinheiro na sua carteira... “É este o melhor estimulante na vida! (Num tom de motejo) O segredo do meu grande sucesso! Veja até onde me levou... (Solta a mão de Edmund para despejar mais uma dose de uísque no copo, e a sorve de um só trago. Contempla o irmão com afetuosa emoção. Segura-lhe de novo a mão, e começa a falar-lhe com uma voz pastosa, mas com estranha e convincente sinceridade) Escute, Ed. Você vai partir. Talvez não tenhamos outra ocasião para conversar assim — ou eu não torne a estar embriagado a ponto de ousar dizer-lhe a verdade. Devo, portanto, fazê-lo agora. É algo que eu devia ter confessado a você, há muito tempo... para o seu próprio bem. (Hesita, em luta consigo mesmo. Edmund o olha fixamente, surpreendido e com certo mal-estar. Jamie, bruscamente, desabafa-se) Desta vez não serão invencionices de bêbedo, mas a pura verdade... In vino veritas... sabe?! Mais vale, pois, que me tome a sério. Quero pô-lo em guarda contra mim mesmo. Nossos pais têm razão. Tenho exercido uma péssima influência sobre você. E, o que é pior, eu o fiz deliberadamente...

EDMUND (constrangido)Cale-se. Não quero saber.

JAMIEVamos, Edmund. Você tem que me ouvir. Agi de má fé, com intenção de fazer de você um vagabundo. Ou, pelo menos, uma parte de mim mesmo agiu assim.

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Uma grande parte que há tanto tempo já morreu em mim! Aquela que odeia a Vida! Refiro-me aos ensinamentos que lhe dei para que você aprendesse com os meus próprios erros. Fingia crer nisso, mas era uma farsa! Fiz com que meus erros parecessem certos; e minha bebedeira romântica; e as prostitutas umas sereias fascinantes, em vez de serem as pobres decaídas estúpidas e enfermiças que são! Zombei do trabalho como se fosse um jogo de néscios! Não queria ver você triunfar e eu perder no confronto. Queria que você fracassasse. Tinha sempre ciúmes de você: o “filhinho” da mamãe... o predileto do papai! (Olha fixamente para o irmão com crescente animosidade) E foi o seu nascimento que empurrou mamãe para a morfina. Sei que a culpa não foi sua, homem! Com tudo isso, maldito seja!! não posso deixar de o odiar...

EDMUND (quase assustado)Jamie! Pare com isso! Você está louco!...

JAMIENão me leve a mal. Eu lhe quero mais bem do que o odeio. E o fato de confessar-lhe tudo isto agora é a prova. Corro o risco de que passe a me detestar — e, afinal, você é tudo que me resta. Não pensava, porém, ir tão longe, dizer-lhe toda a verdade até o fim. Não sei o que me levou a fazê-lo. Quis que compreendesse o meu desejo de vê-lo triunfar mais do que ninguém. Mais vale, porém, que esteja alerta, porque, ao mesmo tempo, farei todo o possível para o seu fracasso! Não posso evitá-lo. Odeio-me a mim próprio. Tenho que me vingar. Vingar-me dos demais... e, sobretudo, de você... É como na Balada do Cárcere de Reading de Oscar Wilde. O homem estava morto e, por isso, tinha que matar a quem amava. Assim é que deveria ser. O que há de morto em mim espera que não se cure nunca. Talvez até se alegre que mamãe tenha retomado a morfina!... Requer companhia... Não quer ser o único cadáver dentro desta casa! (Ri um riso cruel e torturado.)

EDMUNDCéus! Jamie! Você está realmente ficando louco!

JAMIEPense bem e verá que tenho razão. Torne a pensar, quando estiver já longe de mim, no sanatório. Deve compreender que precisa amarrar-me uma pedra ao pescoço, Ed, expulsar-me de sua vida... considerar-me morto... dizer a toda gente: “Tive um irmão, mas ele já morreu”... E, à sua volta... cuidado comigo! Estarei à sua espera, com minha eterna cantilena de “velho camarada”, pronto a estender-lhe cordialmente a mão e a dar-lhe — na primeira ocasião — uma punhalada certeira pelas costas!...

EDMUNDCale a boca, por piedade! Que eu seja amaldiçoado se continuar a ouvi-lo!

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JAMIE (sem prestar atenção aos protestos do irmão)Mas não se esqueça de mim. Lembre-se de que o avisei... para seu próprio bem. Acredite-me: não há maior amor do que este: o daquele que salva o seu irmão de si mesmo! (Seu timbre de voz demonstra o quanto está ébrio. Balança a cabeça) É tudo. Agora sinto-me melhor. Confessei-me. Sei que me absolverá, não? Procure compreender, Ed. É um rapaz e tanto! E é natural que o seja! Afinal, fui eu que o formei!! Vá, pois, e trate de curar-se. Não se deixe morrer comigo. É tudo o que lhe peço, pois é tudo o que me resta. Que Deus o guarde. Amém.

(Afunda num dormitar de bêbedo, sem adormecer por completo. Desolado, Edmund oculta o rosto entre as mãos. Tyrone entra pela porta telada, vindo do pórtico. Sua roupa está úmida de neblina e traz a gola levantada em torno do pescoço. Sua fisionomia severa revela aborrecimento e, ao mesmo tempo, compaixão. Edmund não se apercebe de sua chegada.)

TYRONE (em voz baixa)Por sorte adormeceu. (Edmund olha sobressaltado para o pai) Julguei que não parasse de falar. (Abaixa a gola da roupa) Mais vale que o deixemos ficar onde está para que cozinhe a bebedeira! (Edmund permanece em silêncio. Tyrone o fita e prossegue) Ouvi suas últimas palavras. Eu o preveni, Edmund... Espero que você leve em conta o aviso, agora que o mesmo veio dos próprios lábios de seu irmão. (Edmund não dá sinal de o ter ouvido. Tyrone acrescenta, com compaixão) Mas não tome demasiado a sério, meu filho. Jamie gosta de exagerar o que nele há de pior, quando está assim embriagado. Mas ele lhe quer bem. É a única coisa que naquele rapaz resta de bom! (Olha para Jamie com amarga melancolia) Que belo espetáculo para mim!! O meu primogênito que tanto esperei levasse avante o meu nome com honra e dignidade — e que parecia ser uma tão brilhante promessa!...

EDMUND (penalizado)Cale-se, papai. Você não pode calar-se?!...

TYRONE (servindo-se de uísque)... Um lixo humano! Uma mina, um pobre trapo, ébrio, acabado e liquidado!... (Bebe)

(Jamie mostra-se inquieto, adivinhando a presença do pai e tentando sair do seu torpor. Abre os olhos e, pestanejando, olha para Tyrone que, de cara fechada, retrocede um passo, na defensiva)

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JAMIE (repentinamente, apontando-lhe o dedo e recitando com ênfase teatral)

Chegou Clarence, o pérfido, frívolo e perjuro Clarence

Que me apunhalou nos campos junto a Tewksbury. Agarrai-o, ó Fúrias!, e atormentai-o...

(Ressentido) Que diabo você tanto olha?! (Recita, com ironia, versos de Rossetti)

Olha-me na cara. Eu me chamo ‘Podia Ter Sido’.Também me chamam ‘Já Não Sou’, ou ‘Demasiadamente

[Tarde’ ou ‘Adeus’...

TYRONESei muito bem disso e garanto-lhe que não me agrada encará-lo!

EDMUNDChega, papai!

JAMIE (em tom de zombaria)Tenho uma ótima sugestão para você, papai. Torne a representar Os Sinos nesta temporada. Há, nessa peça, um papel notável que pode fazer até sem maquilagem! O do velho Gaspard, o Avarento! (Tyrone dá-lhe as costas, esforçando-se por conter a sua cólera)

EDMUNDJamie, cale a boca.

JAMIE (mordazmente)Afirmo como Edwin Booth nunca pôde apresentar uma interpretação tão brilhante quanto a das focas amestradas. As focas são animais sinceros e inteligentes. Nada de trapaças na arte de representar! Reconhecem que são meramente artistas saltimbancos que ganham o seu peixe de cada dia!

TYRONE (ferido, volta-se furioso para o filho) Seu parasita ordinário!

EDMUNDPapai, você quer provocar aqui uma discussão que fará com que mamãe desça lá de cima?! Jamie, vá dormir! Você já falou mais do que devia!

(Tyrone volta as costas a Jamie)

JAMIE (falando com dificuldade)Bem... bem, rapaz. Não estou procurando briga. Estou com muito sono demais!

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(Cerra os olhos, e cabeceia. Tyrone aproxima-se da mesa e senta-se, virando a cadeira, de modo que não possa ver Jamie. Logo após, mostra-se também sonolento.)

TYRONE (num tom desanimado)Queira Deus que ela já tenha ido para a cama, a fim de que eu possa ir deitar-me! (Dormitando) Estou cansadíssimo! Já não agüento mais passar uma noite de vigília como antigamente. Estou velho... velho e cansado! (Com um enorme bocejo que por um pouco lhe desarticula os maxilares) Os meus olhos se fecham. Acho que vou tirar um cochilo. Por que não faz o mesmo, Edmund? Assim passará o tempo até que ela...

(Sua voz se apaga. Os olhos se cerram; o queixo pende; e ele começa a ressonar pesadamente através da boca aberta. Edmund permanece sentado, numa forte tensão. Ouve um ruído e, num sobressalto, pende o corpo para frente, na ponta da cadeira, e olha para a porta da frente do hall. Ergue-se de um salto, aflito e aterrorizado. Por um segundo, dá a impressão de que vai esconder-se na sala de trás. Nisso, senta-se novamente e espera, desviando o olhar, as mãos aferradas aos lados da poltrona. Repentinamente acendem-se as cinco luzes do lampadário na sala da frente; e alguém nela começa a tocar ao piano a introdução de uma das valsas mais conhecidas de Chopin. Toca de maneira hesitante, com os dedos que parecem endurecidos, como uma colegial desajeitada que pela primeira vez tentasse tirar uma música. Tyrone estremece e, imediatamente, volta a si. Jamie joga a cabeça para trás e abre os olhos. Por um momento os três homens escutam petrificados. A música cessa de modo igualmente inesperado, e Mary aparece no limiar da porta. Usa um penhoar azul-celeste sobre a camisola de dormir e nos pés descalços, umas lindas chinelas adornadas de pompons. Está mais pálida do que nunca e seus olhos parecem enormes. Brilham como reluzentes jóias negras. O que há de peculiar é que seu rosto parece agora extraordinariamente jovem. Dir-se-ia que toda a experiência e os desgostos passados dela se esfumaram. É como uma máscara marmórea de juvenil inocência — os lábios entreabertos num tímido sorriso. Seu cabelo branco está repartido em duas longas tranças que lhe caem

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sobre o busto. Traz sobre um dos braços, de modo negligente, um vestido de noiva de cetim branco, de modelo antiquado, debruado de renda duchesse, e que ela deixa arrastar pelo assoalho como se já tivesse esquecido que o tem na mão. Hesita no vão da porta, relanceando o olhar, pela sala, a testa contraída com um ar de perplexidade — como quem veio em busca de alguma coisa mas, em caminho, distraiu-se, esquecendo de que se tratava. Os três homens a fitam em silêncio. Mary mal se apercebe da presença deles. Avista-os mecanicamente, como avista os demais objetos da sala: os móveis, as janelas, os trastes familiares que aceita naturalmente como habituais, mas para os quais não olha porque está demasiado preocupada para reparar na sua presença.)

JAMIE (rompendo o pesado silêncio, tão penoso, com cáustica amargura, e já na defensiva)

A Cena da Loucura! Entra Ofélia!!...

(O pai e o irmão viram-se para ele, revoltados. Edmund é o mais ligeiro, e, com o dorso da mão, dá-lhe uma bofetada na boca.)

TYRONE (a voz trêmula de fúria reprimida)Muito bem, Edmund! Que miserável! Asqueroso! Tratando-se de sua própria mãe!...

JAMIE (murmura, com ar culpado, e sem ressentimento)Está bem, rapaz. Foi merecido! Mas já lhe disse quanta esperança eu tinha de que... (Cobre o rosto com as mãos e começa a chorar.)

TYRONEAmanhã, se Deus quiser, hei de pô-lo na rua, a pontapés!! (Os soluços de Jamie dissipam-lhe, todavia, aos poucos, a cólera. Volta-se; sacode-o pelo ombro, e suplica) Jamie, pelo amor de Deus, pare com isso!

(E então Mary fala... Os três novamente permanecem petrificados, os olhos fitos nela, num silêncio mortal. Mary não prestou a menor atenção ao incidente. Foi apenas uma parte da atmosfera familiar da sala, um fundo de quadro que não a afetou nem perturbou. E ela fala, em voz alta, consigo mesma, não com eles...)

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MARY

Toco mal agora! Irmã Teresa vai passar-me um pito! Dirá que não é justo para com meu pai, que gasta tanto dinheiro para que eu tenha aulas particulares. E ela tem razão! Não é mesmo justo, quando ele é tão bom e generoso e se orgulha tanto de mim! De hoje em diante preciso todos os dias praticar um pouco. Mas... aconteceu uma coisa horrível com as minhas mãos. Os dedos ficaram tão duros! (Ergue as mãos e as examina com angustiada perplexidade) As juntas estão inchadas, tão feias! Tenho que ir à enfermaria e mostrá-las à Irmã Marta. (Com um sorriso doce de afetuosa confiança) Ela já é velha e um tanto maluca! Mas, mesmo assim, gosto muito dela; e, no seu armariozinho de remédios, ela tem com que curar todas as doenças! Ela me dará uma pomada qualquer para passar nas mãos, e me recomendará que reze à Santíssima Virgem... e ficarei logo boa! (Esquece-se das mãos e caminha para dentro da sala, arrastando pelo chão o vestido de casamento que leva no braço. Olha em volta, com um olhar vago, a testa novamente franzida) Vejamos! O que foi mesmo que vim buscar aqui?! Como estou ficando distraída! É terrível isso!! Estou sempre sonhando e me esquecendo das coisas...

TYRONE (com voz abafada)Que é que ela traz no braço, Edmund?

EDMUND (com tristeza)Suponho que seja o seu vestido de noiva...

TYRONEDeus meu! (Levantando-se e vedando-lhe o caminho. Num tom de profunda angústia) Mary! Já não é bastante doloroso que... (Controlando-se, com terna persuasão) Vamos, minha querida! Deixe que eu leve. Você acabará por pisá-lo e rasgá-lo. Sem contar que se manchará arrastando-se assim pelo chão. Depois você ficará triste.

(Ela o deixa segurar o vestido, olhando para ele com um olhar abstrato, vindo de algum recanto distante de sua alma, sem reconhecê-lo mais, sem afeto nem animosidade.)

MARY (com a tímida polidez de uma jovem bem educada para com um senhor de idade que a alivia de um peso)

Obrigada, o senhor é muito gentil. (Olha para o vestido com interesse e perplexidade) É um vestido de noiva. Lindo, não é verdade? (Uma sombra atravessa-lhe o rosto e ela parece sentir um vago mal-estar) Agora sim, recordo-me. Encontrei-o no sótão, escondido dentro de uma mala. Mas, não sei para que o queria. Vou ser freira... quero dizer, se eu conseguir encontrar...

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(Relanceia o olhar pela sala. Torna a franzir a testa) O que estarei procurando? Sei que é alguma coisa que perdi.

(Afasta-se de Tyrone, que lhe parece tão-somente um obstáculo a lhe obstruir o caminho)

TYRONE (exortando-a com desespero)Mary!

(Mas não consegue atravessar a muralha de preocupação atrás da qual ela se move. Não parece ouvi-lo. Ele desiste, desanimado, fechando-se em si mesmo. Até sua embriaguez, que é a sua forma de defesa, dissipa-se, deixando-o sombrio e desamparado. Deixa-se cair na poltrona, sustentando nos braços o vestido de noiva com um cuidado inconsciente, desajeitado e ligeiramente protetor.)

JAMIE (retira a mão do rosto; seus olhos estão fixos na mesa; de repente, não se contém mais; sombriamente)

É inútil, papai. (Recita versos de A Despedida de Swinburne, e os recita bem, com simplicidade, porém com amarga tristeza)

Levantemo-nos e separemo-nos; ela não o saberá.Vamos até o mar, como os grandes ventosCarregados de areia e de espuma...De que serve estarmos aqui?É inútil! Que assim são todas as coisasE o mundo é amargo como uma lágrima!E ela não saberá como essas coisas são.Embora procuremos explicar-lhas.

MARY (olhando em redor)Há alguma coisa de que sinto uma falta tremenda. Não é possível que se tenha perdido para sempre.

JAMIE (volta-se para fitá-la face a face e não consegue reprimir por sua vez uma exortação suplicante)

Mamãe! (Mary nem parece ouvi-lo. Jamie desvia o olhar, com um ar impotente) Para o diabo!... Afinal de que serve chamá-la! É inútil. (Torna a recitar vasos de A Despedida com crescente amargura)

Vamo-nos daqui, canções minhas, ela não as ouvirá.Vamo-nos daqui juntos, sem temor.Guardai silêncio agora, pois foi-se a hora do cantar.E foram-se também todas as velhas coisas que

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[nos eram caras.Ela não te ama a ti nem a mim, como todos nós[a amamos.Sim. Ainda mesmo que feito anjos lhe cantássemos[ao ouvido,Ela não nos ouviria.

MARY (olhando em volta, prossegue)... Alguma coisa de que sinto uma falta terrível! Lembro-me de que quando a tinha nunca me sentia só nem assustada. Não a posso ter perdido para sempre! Se pensasse isso, eu morreria! Porque então não haveria mais esperança! (Move-se como uma sonâmbula pelas costas da poltrona de Jamie. A seguir caminha para diante em direção à esquerda, passando por trás de Edmund.)

EDMUND (vira-se num impulso e lhe agarra o braço; ao chamar por ela, na sua súplica há um quê de menino ferido e perplexo)

Mamãe, o que eu tenho não é um simples resfriado de verão! Estou tuberculoso!

MARY (por um segundo parece que o desespero do filho rompeu a barreira e a atingiu; ela estremece e sua expressão é de terror; aturdida, como que dando uma ordem a si própria, exclama)

Não!! (E instantaneamente mais uma vez ela se afasta. Murmura em voz suave, porém de um modo impessoal) Não procure tocar-me. Nem me deter. Não fica bem, agora que espero ser freira.

(Edmund a solta. Ela continua a andar pela esquerda, até a extremidade do sofá, sob as janelas, e se senta, de frente para o público, as mãos juntas sobre o colo com a atitude recatada de uma jovem colegial.)

JAMIE (lança ao irmão um olhar em que há um estranho misto de compaixão e enciumado regozijo)

Seu tolo! Não vê que é inútil? (Recita ainda um trecho do poema de Swinburne)

Vamos adiante — vamos adiante. Ela não nos verá. Cantemos todos juntos uma vez mais — certamente

[ela — também, Recordando os dias e as palavras que se foram,Voltar-se-á um pouco para nós, a suspirar. Mas nós Vamo-nos daqui; já nos fomos, como se nunca

[aqui tivéssemos estado.Não! Embora todos os homens que vissem se

[apiedassem de mim,

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Ela não nos veria mais...

TYRONE (procurando libertar-se de seu torpor e abatimento)Oh! Somos uns idiotas de lhe prestar atenção. Toda a culpa é dessa maldita droga. Porém nunca a vi afundar-se nela tão completamente como hoje. (Asperamente) Passa-me essa garrafa, Jamie! E deixe de recitar essa poesia mórbida. Não a admito mais em minha casa.

(Jamie lhe empurra a garrafa. Tyrone se serve sem desarranjar o vestido de noiva que continua a suster cuidadosamente sobre o outro braço e os joelhos, e empurra de volta a garrafa para o filho. Jamie se serve e a passa para Edmund que por sua vez despeja uma dose no copo. Tyrone ergue o seu copo e mecanicamente os filhos o imitam — mas antes que possam beber, Mary recomeça a falar — e eles abaixam lentamente os copos e os deixam sobre a mesa, esquecidos dos mesmos.)

MARY (olhando para o vácuo com olhar sonhador; seu rosto parece extraordinariamente juvenil e inocente; nos seus lábios nota-se um sorriso confiante e timidamente ansioso, enquanto fala consigo mesma)

Conversei com Madre Elisabeth. É tão doce e boa !... Uma verdadeira santa. Gosto muito dela. Talvez seja até um pecado, mas a quero mais do que a minha própria mãe. Porque sempre me compreende mesmo antes que eu diga uma só palavra. Seus bondosos olhos azuis penetram logo fundo no meu coração. Dela não posso ocultar coisa alguma. Nem a posso enganar, mesmo que fosse tão mesquinha que desejasse fazê-lo. (Meneia a cabeça num gesto de ligeira rebeldia, com um certo despeito juvenil) Contudo, acho que desta vez não foi compreensiva assim! Eu lhe disse que queria ser freira. Expliquei-lhe como estava segura de minha vocação e que tinha rezado à Santíssima Virgem, pedindo-lhe que me desse essa certeza, e que dela me achasse digna. Contei à madre que eu tinha tido uma visão quando rezava na capelinha de Nossa Senhora de Lourdes, na pequena ilha junto ao lago. Disse-lhe que sabia — tão certo quanto estava ali ajoelhada — que a Virgem havia sorrido para mim e me tinha abençoado, dando-me seu consentimento. Mas a Madre Elisabeth achou que eu devia ter ainda maior certeza e provar que não fora simplesmente imaginação minha! Disse-me que, se estava tão segura assim, não me devia importar se me pusessem à prova, mandando-me para casa depois da minha formatura, para que eu levasse uma vida igual à das outras moças, assistindo a festas e bailes e me divertindo como elas fazem. E que, se ao cabo de dois anos eu me sentisse ainda tão certa da minha vocação, então, sim, poderia voltar para vê-la e tratarmos novamente do assunto. (Sacode a cabeça indignada) Nunca imaginei que a santa madre me pudesse dar tal conselho! Fiquei mesmo

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chocada com isso. Respondi-lhe que, decerto, atenderia à sua sugestão, mas que achava que era simplesmente perda de tempo. Depois que a deixei, senti-me muito desorientada. Fui então à capela e rezei à Virgem Santíssima, e novamente encontrei a paz porque sabia que ela ouvira a minha prece e que me amaria sempre... e que nunca permitiria que o mal me atingisse, conquanto que eu não perdesse a minha fé... (Faz uma pausa e uma expressão de crescente mal-estar se estende sobre o seu rosto. Passa a mão na testa como se tentasse afastar de seu espírito conturbado teias de aranha. Em tom vago e distante) Isso se passou no inverno do meu último ano de estudos. Depois, na primavera... aconteceu alguma coisa comigo... Sim, agora eu me recordo... Apaixonei-me perdidamente por James Tyrone e durante algum tempo fui tão feliz...

(Olha fixamente diante de si, mergulhada no seu sonho triste. Tyrone se agita na cadeira. Jamie e Edmund permanecem imóveis.)

FIM