Longe do mundo 15

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Longe do Mundo” é a história de uma garota sensitiva que, aos dezesseis anos, “vê” aquele que viria a ser o seu companheiro nessa existência. Ela se apaixona diante da visão, e, embora saiba que precisa esperar o encontro acontecer por si mesmo, acaba tentando atropelar o tempo, querendo forçar o destino a se adequar à sua sofreguidão pecadora. Assim, passa por longos anos de cegueira espiritual, amargando o justo castigo que a sua teimosia fez por merecer.

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Longe do mundo

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São Paulo - 2015

E l c i A n t ô n i o d o A m a r a l

Longe do mundo

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Copyright © 2015 by Editora Baraúna SE Ltda.

Capa Jacilene Moraes

Diagramação Felippe Scagion

Revisão Cristiane Martini

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________A513L

Amaral, Elci Antônio do Longe do mundo / Elci Antônio do Amaral. - 1. ed. - São Paulo : Baraúna, 2015.

ISBN 978-85-437-0305-3

1. Romance brasileiro. I. Título.

15-20907 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3________________________________________________________________12/03/2015 17/03/2015

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTAEDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

Rua da Quitanda, 139 – 3º andarCEP 01012-010 – Centro – São Paulo – SPTel.: 11 3167.4261www.EditoraBarauna.com.br

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Introdução

A garota deste relato teve importância o suficiente para merecer algum registro sobre os seus feitos. Não se pode asse-gurar que ela tenha sido pior ou melhor que os outros; talvez o mais razoável seja classificá-la apenas como diferente. En-tretanto, é preciso deixar claro que ela foi exatamente única; a terra não conseguiu produzir outra fêmea como ela.

Quando?! Em algum ponto da imensidão temporal que vai do nunca ao sempre, abalroando solstícios e equinócios sem conta, abarcando os extremos mais distantes do entendi-mento humano sobre datas. Afinal, o tempo é um todo que acontece em regime de ciclo único e eterno, iniciado sabe Deus quando e sem hora marcada para terminar.

Onde?! Bem, as explosões de sentimentos que criam es-pécimes espirituais desse quilate atravessam fronteiras, dei-xando os limites confusos. Inclusive, talvez caiba pensar que a criação aconteça de forma semelhante em todos os casos:

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antes de nos tornarmos escritores, fomos escribas (Egito), mandarins (China), magos (Babilônia) ou brâmanes (Ín-dia), por exemplo, evoluindo lentamente e nos reinventando sempre, aqui ou ali, ao sabor de incansáveis tentativas soli-tárias e de gratas descobertas coletivas... Eu posso jurar que ela não gostaria de ver a sua história sendo contaminada por tal detalhe sem importância!

Não há a menor dúvida sobre o “Quem”, embora o contexto insista em englobar outros vários protagonistas neste pronome sem número fixo e, no caso específico do início deste livro, aparentemente plural... Quisera o tempo parar naque-les dias e evitar o dissabor de vê-la caminhando em direção à eternidade cruel, rigorosamente adversa a quaisquer tênues vestígios da efemeridade carnal. O universo, entretanto, não se permitira o deleite de tão absurdo desequilíbrio...

Assim, o mito a ser aqui resgatado emana quase total-mente inodoro, filtrado no ato de perfurar inúmeras e espes-sas camadas de anos, lançadas ao acaso umas sobre as outras.

E não nos martirizemos tentando esclarecer tudo de um enigma superior ao frágil poder das palavras: procu-remos traduzir apenas porções modestas de tão incomum teor espiritual, apresentando-a praticamente em silêncio... Porque os limites do nosso entendimento são risíveis, e a totalidade complexa de um ser misterioso suplanta a nossa capacidade de narrar.

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Ocorreu no Norte, embora não se saiba exatamen-te onde. Contadores de “causos” vindos de lá fizeram grassar o alarme tardio pelo Sudeste, sem, no entanto, poderem informar sobre o local exato. Até houve quem apontasse este ou aquele estado, mas em um emaranha-do acervo de informações contraditórias, que mais serve para confundir do que para esclarecer. Imunizado por boa dose de reserva, arrisca-se a crer que tenha sido no Pará, baseando-se em um único detalhe: os peões de obra que falam sobre isso são paraenses e maranhenses das ci-dades próximas à divisa entre os dois estados.

Carece explicitar que uma narrativa assim, alicerça-da por tão rudimentar apanhado e fiel aos fatos veridica-mente colhidos, principia-se exibindo a sua carcaça oca, emurchecida, sem os recheios que arredondariam a vaga forma em construção. O abstrato desabrochar da perti-

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nácia literária é que há de ir crescendo e logrando êxito, aos poucos, a se calejar no aparo das arestas disformes...

Logicamente, não há registros confiáveis sobre o início dessa odisseia, nenhum documento desses que os historiadores procuram para embasar o árduo tra-balho. E, na memória popular, tem-se apenas que o barão Aprígio Dantas chegara para colonizar, como desbravador impávido, aquele imenso pedaço do Bra-sil — colônia, onde criara um verdadeiro reino, com-batendo índios e derrubando matas.

Sabe-se também que Ana Braga, a esposa, só chegara mais tarde. A princípio, ficara em sua terra de origem, sempre enviando profusões de víveres e mais levas de es-cravos para o marido. Dois anos depois, quando tivera o privilégio de conhecer as novas posses da família, já estava formada e próspera a fazenda Brejal do Inhame, com ani-mais e plantações por todos os lados.

Ali teriam nascido três dos onze filhos do casal. Os outros oito, o mais velho a acompanhar o pai desde os doze anos e os sete mais novos chegados com a mãe, se-riam forasteiros naquela terra.

Como seria de se esperar, viriam a chegar muitos ou-tros indivíduos nos anos seguintes, pois o “reino” fora, desde o início, bravio e grande demais para um número reduzido de aventureiros... Compadres convidados para curtirem as benesses da terra nova; colonos, para cuidarem de partes não devidamente cultivadas e ajudarem a vigiá-las; homens de índole duvidosa, necessitados de um retiro distante para se esconderem e, por conseguinte, dispostos a trabalharem a troco de comida; capangas idôneos para auxiliarem durante

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as possíveis investidas dos índios... Todos esses o barão trou-xera, um pouco a cada vez que voltava de uma viagem de negócios por lugares povoados.

Com o passar dos anos, Brejal do Inhame teria se estendido por milhares de alqueires, dada a quantidade de braços para o trabalho e a gratuidade daquela terra de ninguém. A julgar pela fartura que sobejava em todas as mesas, dir-se-ia que o barão redescobrira o Éden, prova-velmente subornando, através de orações e por meio de força bruta, os querubins incumbidos de vigiá-lo. Urgia evitar apenas dois inimigos mortais: a febre transmitida pelos mosquitos e uns poucos índios sorrateiros, sempre empenhados em testar a força dos brancos, nunca decidi-dos a fugirem sem flechar algum descuidado.

Imensurável fora o número de aventureiros vitimados pela febre. Conta-se que, no auge dos surtos mais fortes, raro era o dia em que não se abria uma sepultura. E, nesses dias de angústia, arriscava-se em supostas propriedades me-dicinais de plantas desconhecidas; permitia-se o experimen-to de benzedeiras ainda jovens, aprendizes no trato com as palavras secretas; aceitava-se o “trabalho” de negros velhos, com as suas rezas proferidas em nagô; apelava-se com todo o fervor para a Providência Divina... Depois, passado o pior e contabilizado maior número de nascimentos do que de óbitos, regozijava-se em nova temporada de saúde e paz, mas com uma euforia contida, todos cientes de que a febre ape-nas recobrava as forças para voltar.

O outro inimigo, entretanto, tivera um poder des-trutivo absurdamente superior, acabando por ser o marco inicial de uma história escrita a sangue e misticismo: após

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testarem os métodos de defesa dos brancos por longo tempo, acontecera um ataque brutal dos índios no ano dez da fazenda Brejal do Inhame. Até mesmo o barão caíra, e logo no início do confronto, fato este responsável por deixar o reino temporariamente acéfalo e a batalha em desordem total. Talvez tenha sido esse o momento em que a realidade mais esbanjara talento e pincel no mo-desto alinhavar de um quadro rápido e excêntrico, obra prima, todavia, dos seus desígnios imutáveis... Capangas espingardeando agressores aos montes, mas caindo, final-mente, crivados de flechas; colonos colocando seus trabu-cos nas frestas dos casebres e se defendendo com valentia, tombando índios sem conta por terra, mas assistindo à chegada de outras dezenas de inimigos, que incendiavam a cobertura de palha da moradia rústica; criminosos ante-riormente acolhidos pelo barão refestelando-se na soltura legítima das suas essências sanguinárias, como que dando a paga pela ajuda recebida, mas acabando por sucumbir perante a superioridade numérica dos selvagens; e, so-bretudo, Ana Braga conseguindo burlar a ferocidade do conflito em uma escapada sorrateira pela porta dos fun-dos, levando duas espingardas de dois canos longos cada, uma sacola de cartuchos e o filho caçula agarrado à barra da saia, mudo de espanto.

Contrariando as negativas firmes e quase totalmente críveis da ciência, não faltariam criaturas isoladas ousan-do afirmar (mesmo agora, em tempos tão modernos) que algumas das assombrações futuras daquele fim de mun-do seriam horripilantes manifestações de almas penadas, saídas de corpos em agonia durante o conflito feroz. E,

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figurando ou não como passíveis de crédito para o cabe-dal de possibilidades hoje inseridas no mais cético e frágil dos consensos, tais assombrações existiram, como há de ser visto ao longo do contexto...

Segundo dizem, os índios teriam dizimado os bran-cos se não tropeçassem em duas outras frentes de batalha aparentemente risíveis, mas que atacaram de surpresa. Uma fora o capataz, chegado de um retiro distante com escravos armados apenas de ferramentas, e que, em um ato suicida, caíram sobre os selvagens, abatendo-os a gol-pes de foice e facão. A outra estivera o tempo todo oculta em uma vala, do outro lado do riacho, justamente para onde os selvagens restantes quiseram fugir, ao sentirem que somente uma trégua os salvaria da derrota: era Ana Braga. Preferira ficar apenas escondida, na esperança de poder salvar a si própria e ao garoto. Naquele momento, porém, com menos de vinte índios correndo às cegas no terreno logo abaixo, decidira que era hora de agir.

E não errara um tiro! O primeiro inimigo a se arris-car na subida para a vala voltara rolando, com um bura-co enorme no peito. O segundo caíra antes de entender o que acontecera ao seu irmão de sangue. De posse da outra espingarda e com os índios de costas, tentando vol-tar, ela ainda teria abatido mais dois, o que os empurrara mais rapidamente para o ataque derradeiro dos escravos.

Em seguida, viera o que a realidade esperava acon-tecer para reproduzir nos traços finais do seu quadro: o pequeno José Dantas tentando destravar a primeira arma utilizada, para trocar os cartuchos (o que jamais conse-guiria com aquelas mãozinhas de cinco anos), Ana Braga,

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erguendo o corpo inteiro por trás do esconderijo, vendo o grupo de escravos a abater os dois últimos índios e to-cando carinhosamente o cabelo do filho, a dizer-lhe:

— Meu bem, não é preciso mais! A guerra acabou!Ali teria surgido o título “Baroa do Brejal” para Ana

Braga. Casada já grávida aos catorze anos e feita viúva aos trinta e sete, herdara, completamente despreparada, a in-grata obrigatoriedade de comandar uma fazenda imensa, cheia de responsabilidades e decisões a serem tomadas. E tudo isso sem qualquer tempo para ao menos pensar no que fazer: aguardava-a, como prova de fogo, o funeral do marido e de cinco dos filhos, enquanto cuidava para que os poucos agregados vivos sepultassem mais de uma centena de outros corpos, entre brancos, índios e negros.

Mas não decepcionara. Aprendera logo a compensar a falta de conhecimentos específicos com uma firmeza excessiva no comando e, a despeito do agouro inicial, obtivera êxito. A fazenda viera a aumentar de tamanho e a prosperar em seus dias. Experimentara um ato de inovação ao libertar os escravos já no instante inicial da sua administração, uma vez que, sem eles, a história de Brejal do Inhame teria chegado ao fim naquele dia mes-mo. Assim, por merecimento dos negros, talvez ela tenha inaugurado o processo de abolição da escravatura em um rincão brasileiro, precedendo todas as leis da famosa Isa-bel! E nenhum deles abandonara-a, apesar da liberdade; a Baroa do Brejal fora respeitada e amada até os instantes finais de vida.

Em paralelo às decisões cotidianas que precisava to-mar, também mandara construir estradas, escolas e uma

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capela com um cemitério ao lado, onde os seus próprios restos mortais viriam a repousar, muito tempo depois.

Quase não se captava qualquer emanação sentimen-tal advinda da Baroa; toda ela quisera ser, em tempo inte-gral, apenas decisões acertadas e justiça, tal era a cartilha de regras por ela incorporada no posto de patroa e senho-ra, isso desde quando o esposo ainda vivia. Após a viuvez, todavia, desnudara-se uma “virtude” dela que, pela falta do marido, aflorara em toda a sua plenitude assombrosa de saúde e vigor, de necessidade orgânica lícita, de exa-gero normal, aliás... Para não cometermos a insanidade verbal de transcrever, na íntegra, a riqueza de detalhes picantes vindos das fontes, digamos apenas que ela fora, no tocante à efervescência sexual, “um caso de enfermi-dade, estando continuamente a gotejar de desejo, sempre pronta para jorrar prazer, vindo a ser malignamente pos-suída e divinamente libertada todas as noites, em sessões de exorcismo que duravam quase até o amanhecer”. Mas nunca houvera qualquer assomo de escândalo; ninguém comentava nada a esse respeito, nem mesmo os amantes agraciados com a permissão para invadirem a desejada alcova. Em resumo, era como se nenhum fato altamente ousado costumasse ocorrer na calada da noite.

Vivera 93 anos a Baroa do Brejal, tempo o suficiente para realizar muito e fazer com que a fazenda prosperasse de forma inimaginável. Entretanto, talvez o nome dela venha a constar no livro da história somente por um de-talhe que suplantara, em várias décadas, a sua humilde existência: ela viria a ter uma tataraneta chamada Núria Dantas, e essa mereceria o registro!

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Inclusive, acordemos: parecem não ser precisamente inteligência e bom gosto o que leva a curiosidade a perder tanto tempo esmiuçando meras consanguinidades avoen-gas da diva principal! Avancemos na linha do tempo e se-jamos companheiros de viagem dela de agora em diante, bisbilhotando e curtindo a sua breve caminhada terrena.

Todavia, procuremos tirar algum proveito disso: es-tejamos seguindo-a, mas atentos aos liames pontuais que remetem ao passado, onde há conteúdo para se exumar e se analisar com calma. Aliás, os fatos quase não existem, para análises, no momento em que acontecem. Grosso modo, o presente morre a todo instante...

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II

Pode-se dizer que Brejal do Inhame vivia tempos de “conforto” quando Núria Dantas nasceu. Já não havia ne-nhum vestígio das longas trilhas abertas na mata pelo ba-rão Aprígio Dantas, todas voltadas para o Leste, por onde tropeiros pernoitavam semanas inteiras, levando e trazendo tudo o que precisasse ser transportado durante mais de um século, abatendo onças e alguns sendo devorados por elas. A fazenda se estendera até um rio de dimensões consideráveis, permitindo que canoas conduzidas por caboclos experientes deslizassem com rapidez até algumas povoações tidas como urbanas. As donzelas da família agora perdiam poucos dias, na travessia desse trecho mais agreste, partindo para os inter-natos distantes ou voltando deles, anos depois, preparadas para alfabetizarem os filhos dos colonos: exatamente quatro dias na ida e sete na volta, quando o penoso forcejar contra a correnteza demandava maior tempo. Fósforo e querosene