lotman_porumateoria

download lotman_porumateoria

of 46

description

Yuri Lotman

Transcript of lotman_porumateoria

  • Iuri M. Lotman

    Por uma teoria semitica da cultura

    Extratos traduzidos por Fernanda Mouro

    Belo Horizonte

    FALE/UFMG

    2007

    Traduo de textos de Iuri M. Lotman a partir da traduo inglesa de Ann Shukman: Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Introd. De Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992, p. 11-35 e 246-280.

    Diretor da Faculdade de Letras

    Prof. Jacyntho Jos Lins Brando

    Vice-Diretor

    Prof. Wander Emediato de Souza

    Comisso Editorial

    Eliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida

    Traduo

    Fernanda Mouro

    Editorao de texto e formatao

    Jnia Kelle

    Reviso de provas

    Jnia Kelle Michel Gannam

    Capa e projeto grfico

    Mang Ilustrao e Design Grfico

    Endereo para correspondncia:

    FALE/UFMG Publicaes Viva Voz Av. Antnio Carlos, 6627 sala 3006 31270-901 Belo Horizonte MG Tel: (31) 3499-5158 e-mail: [email protected]

  • 3

    Sumrio

    Prefcio . 5

    As trs funes do texto . 13

    Autocomunicao: o Eu e o Outrocomo destinatrios . 27

    Uma alternativa: cultura sem letramento ou cultura antes da cultura? . 51

    O papel dos smbolos tipolgicos na histria da cultura (contrato e auto-entrega como arqutipos culturais) . 64

    Referncias . 89

    4

  • 5

    Prefcio

    O projeto para a criao de um crebro pensante prenunciado por Goethe continua relevante nos dias de hoje. Na verdade, a cada novo avano da cincia, esse projeto vem sendo fortalecido, ainda que em termos diferentes. Porm, uma barreira bastante real permanece em nosso caminho, isto , a barreira do crebro pensante que tentamos criar artificialmente. Lembrei-me de uma anedota em memria do escritor russo Andrei Bely. Seu pai, N. V. Bugaev, professor de matemtica e presidente da Sociedade Moscovita de Matemtica, presidiu uma reunio onde foi lido um trabalho sobre a inteligncia dos animais.

    Meu pai, que presidia a reunio, interrompeu o leitor para perguntar se ele sabia o que era inteligncia; o leitor no sabia. Ento meu pai comeou a perguntar aos participantes frente a tamanha agitao: Voc sabe? Voc? Ningum sabia. Ento meu pai afirmou: J que ningum sabe o que inteligncia, no podemos discutir sobre a inteligncia dos animais. Declaro essa reunio concluda.

    Esse incidente ocorreu no incio deste sculo, mas a situao foi radicalmente mudada. Evidentemente, a razo que a atividade intelectual considerada como qualidade nica do homem, embora algo que observado isoladamente e no comparado com qualquer outra coisa no pode ser objeto da cincia. Nossa tarefa , como foi mencionado, encontrar uma srie de objetos pensantes para compar-los e deduzir a caracterstica invariante da inteligncia. O conceito inteligncia possui diversos aspectos e no me sinto realmente competente para formular uma definio completa sobre ele. No entanto, a tarefa torna-se praticvel se nos restringirmos ao seu aspecto semitico.

    Se definirmos a inteligncia por esse ponto de vista, podemos reduzi-la s seguintes funes:

    1. a transmisso de informaes disponveis (isto , dos textos);

    6

    2. a criao de informaes novas, isto , dos textos que no so absolutamente deduzveis de acordo com um conjunto de instrues proveniente das informaes j existentes, mas que (em algum grau), de alguma forma, no so antecipadamente apresentadas;

    3. memria, isto , a capacidade de reter e reproduzir informaes (textos).

    O estudo do sistema de semitica criado pela humanidade atravs de sua histria cultural tem nos conduzido a uma descoberta inesperada de que essas funes so tambm caractersticas de objetos semiticos. Nos textos planejados para comunicar, a primeira funo predomina, enquanto em textos artsticos, a funo principal a capacidade de gerar novas informaes. Estabeleceu-se que a funo mnima da estrutura semitica consiste no somente na linguagem artificialmente isolada ou no texto naquela lngua, mas tambm num par paralelo de linguagens mutuamente intraduzveis que so, no entanto, conectadas por um mecanismo que a traduo. Uma estrutura dupla como essa o ncleo mnimo para a gerao de novas mensagens e tambm a unidade mnima de um objeto semitico como a cultura. Dessa forma, cultura (como um mnimo) uma estrutura semitica binria e que, ao mesmo tempo, funciona como uma unidade indissolvel. Acompanhando essas linhas de pensamento, somos levados ao conceito da semiosfera e convencidos da importncia do estudo da semitica da cultura.

    Alm disso, no podemos definir objetos semiticos desse tipo como estruturas pensantes, j que eles cumprem a funo de inteligncia formulada que mencionamos acima. No nos interessa o fato de que o funcionamento deles requer um interlocutor inteligente e a necessidade de recursos de um texto no o requer. Mesmo se uma inteligncia humana absolutamente normal for completamente isolada da origem

  • 7

    dos textos externos e de qualquer dilogo, ainda continua uma mquina normal, apesar de ainda no ter sido colocada em movimento. Ela no pode ser ligada por si mesma. Para que uma inteligncia funcione, necessrio que haja uma outra inteligncia. Vygotsky foi o primeiro a salientar: Toda funo mais importante dividida entre duas pessoas, um processo psicolgico mtuo. A inteligncia sempre um interlocutor.

    Para nossa surpresa, observaes sobre a assimetria bipolar do mecanismo semitico tm sido comparadas atravs de pesquisas dentro da assimetria do largo hemisfrio cerebral. A descoberta de mecanismos no aparelho do pensamento individual, que so funcionalmente isomrficos ao mecanismo semitico da cultura, tem se tornado um vasto campo acessvel ao estudo cientfico futuro. A questo da sobreposio entre semitica da filologia e neurofisiologia tem surpreendido algumas pessoas, mas foi entusiasticamente sustentada pelo lingista Roman Jakobson, que denominou aqueles que so hostis a essa aproximao de proponentes lingstica sem crebro. Na Unio Sovitica, esses problemas tm sido ativamente perseguidos no laboratrio neurofisiolgico do recentemente falecido L. Ya Valonov (e seus colegas V. L. Deglin, T. V. Chernigovskaya, N. N. Nicolaenko e outros), e a partir do aspecto semitico de V. V. Ivanov.

    No entanto, essa questo nos direciona ainda mais ao problema cientfico geral, que o da relao de simetria e assimetria, uma questo que, na poca, interessou Louis Pasteur.

    A idia de que estruturas semiticas de pensamento necessitam de um impulso inicial de outra estrutura pensante, e os mecanismos texto-gerativos necessitam de um texto exterior para ajust-los, lembra-nos, por um lado, que, nas assim chamadas reaes auto-catalticas, reaes que tm o

    8

    objetivo de obter o produto final (ou acelerar um processo qumico), o resultado final tem que estar j presente em alguma quantidade no incio da reao. Por outro lado, essa questo fornece um paralelo de um problema at agora insolvel do incio da cultura e do incio da vida. O bilogo V. L. Vernadsky recusou-se a responder a tais questes, declarando que mais produtivo estudar as inter-relaes das estruturas que so binrias, assimtricas e ao mesmo tempo unitrias. Essa a direo que deveremos adotar.

    De acordo com as trs funes dos objetos semiticos esboadas acima, este estudo dividido em trs partes.1 A Parte Um considera o mecanismo da gerao significativa como resultado da reao da tenso mtua entre uma coisa reciprocamente intraduzvel e ao mesmo tempo linguagens interprojetadas de forma mtua, como o convencional (discreto, verbal) e o icnico (contnuo, espacial). Isso corresponde ao ato mnimo da elaborao de uma nova mensagem. A Parte Dois dedicada semiosfera, que sincroniza o espao semitico que preenche as margens da cultura, sem a qual os sistemas semiticos separados no podem funcionar ou se formar. O conceito central da Parte Um o texto, e da Parte Dois, a cultura. A Parte Trs dedicada s questes da memria, diacronia profunda e histria como mecanismo da atividade intelectual: centraliza-se na semitica da histria.

    A unio dessas trs partes feita para demonstrar o funcionamento do universo semitico ou do mundo intelectual, no qual a humanidade e a sociedade humana so envolvidas e que est em constante interao com o mundo intelectual distinto dos seres humanos.

    1 Neste trabalho no foram publicados textos das trs partes citadas pelo autor, j que se trata de uma seleo de trechos a partir de sua obra Universe of the mind: a semiotic theory of culture.Traduo inglesa de Ann Shukman e introduo. de Umberto Eco. Londres: I. B. Tauris Publishers, 1992. [N.E.]

  • 9

    Pr-Saussure

    Durante as ltimas dcadas, a semitica e o estruturalismo na Unio Sovitica como no Ocidente tm passado por pocas completas de teste. claro que as experincias foram diferentes. Na Unio Sovitica, essas disciplinas tiveram que suportar um perodo de perseguies e ataques ideolgicos, que foram seguidos por uma conspirao de silncio ou semi-reconhecimento abatido de parte da cincia oficial.

    No oeste, essas disciplinas passaram pelo teste do uso. Elas se tornaram uma paixo, tornando-se, em conseqncia, proibidas perante a cincia. Mas nem perseguio nem uso. Ambos, que parecem ser to cruciais aos olhos da viso pblica, tm efeito determinado no destino das idias cientficas. O fator decisivo certamente a profundidade das idias atuais que apresentam. Para se ter profundidade e significncia nas idias cientficas, determinada, em primeiro lugar, a capacidade de explicar e ordenar fatos que foram previamente dissipados e no explicados. Isso ocorre devido a sua capacidade de se combinarem com outras idias cientficas; e em segundo lugar a capacidade de revelar problemas que necessitam de solues, especialmente nas reas onde opinies prematuras parecem no ser problema. Essa segunda caracterstica uma indicao da capacidade de se combinarem com as idias cientficas futuras. Em conseqncia, as idias que tm vida cientfica longa so mais eficientes, pois preservam suas premissas iniciais apesar de serem transformaes dinmicas e se envolverem simultaneamente com o mundo que as cerca.

    Quando falamos em semitica hoje, no final do sculo XX, devemos ter em mente os seus trs diferentes aspectos. Em primeiro lugar, semitica a disciplina cientfica esboada por Ferdinand de Saussure. Esse o domnio do

    10

    conhecimento cujo objeto a esfera da comunicao semitica: portanto possvel conceitu-la como uma cincia que estuda o papel dos signos como parte da vida social. Ela fornecia parte da psicologia social e, conseqentemente, da psicologia geral. Podemos cham-la de semiologia. A noo da linguagem como um dos sistemas semiticos poderia, segundo Saussure, ser encontrada na base de todas as cincias sociais:

    Dessa forma, fcil seria no pensar somente sobre os problemas lingsticos. Ao considerarmos os rituais, costumes, etc. como signos, ser possvel, supomos, observ-los sob nova perspectiva. A necessidade deles ser sentida quando os considerarmos como fenmeno semiolgico e os explicarmos nos termos das leis da semiologia.

    No segundo aspecto, a semitica um mtodo relevante da filologia para vrias disciplinas, que definido no pela natureza de seu objeto, mas pelos significados de sua anlise. Deste ponto de vista, tudo o mesmo objeto cientfico e deve ser estudado a partir dos pontos de vista semitico e no-semitico. A lingstica mesmo produz numerosos exemplos.

    Finalmente, o terceiro aspecto da semitica pode ser melhor definido como uma caracterstica especial da psicologia cientfica do pesquisador, isto , a forma como sua percepo cognitiva composta. Exatamente como um diretor de filmes olhar o mundo ao seu redor, atravs de seus dedos que so usados para formar uma estrutura, e cortar esse mundo em pedaos separados da totalidade da viso, o pesquisador da semitica tem o hbito tanto de transformar o mundo sua volta quanto apresentar a estrutura semitica. Tudo que o Rei Midas tocava com suas mos de ouro transformava-se em ouro. Da mesma forma, tudo aquilo a que o pesquisador da semitica volta sua ateno, torna-se, em suas mos, produto da semitica. Esse o problema do

  • 11

    efeito causado ao se descrever um objeto da maneira que discutiremos abaixo.

    Juntos, esses trs aspectos compem o domnio da semitica.

    Se examinarmos o curso posterior da semitica desde os ltimos cinqenta anos, quando agradecemos largamente os esforos de Roman Jakobson e tambm a direo geral no pensamento cientfico que fizeram com que a semitica comeasse a atrair a ateno cientfica difundida, podemos resumir suas direes principais pelas palavras continuidade e dominao. Ambas referem-se ao legado do formalismo russo e aos trabalhos de Bakhtin e Propp. Mas, acima de tudo, eles falaram a respeito do legado de Saussure com quem trabalhavam, mesmo aps Jakobson os ter criticado e os contrastado com as idias de C. S. Peirce, o que permanece em vigor como a pedra fundamental da semitica.

    No aspecto que estamos considerando, as seguintes idias de Saussure so importantes:

    1.a oposio lngua [langue] e fala [parole] (ou cdigo e texto);

    2. a oposio sincronia e diacronia. Para Saussure, ambas as oposies eram fundamentais.

    Lngua, para ele :

    um sistema gramatical potencialmente existente em qualquer crebro, ou mais exatamente nos crebros de um grupo de indivduos, pois a lngua nunca completa em somente um indivduo, mas s existe perfeitamente em coletividade. Pela distino entre a lngua por si mesma e a fala, distinguimos ao mesmo tempo: 1. o que social vindo do que individual; 2. o que essencial vindo daquilo que subordinado ou mais ou menos acidental.

    Partindo dessas premissas, Saussure formulou sua principal proposio sobre a linguagem, ambas no ato da fala e na cincia da lingstica:

    12

    1. Em meio massa desigual de fatos envolvida na lngua, ela destaca-se como uma entidade bem definida. a parte social da lngua, externa ao indivduo que enfraquecida ao mesmo tempo que criada e modificada por ele mesmo. Existe somente em virtude de um tipo de contrato acertado entre os membros de uma comunidade. 2. Um sistema de linguagem, como distinto da fala, um objeto que deve ser estudado de forma independente. Lnguas mortas no so mais faladas, mas podemos perfeitamente nos familiarizarmos bem com suas estruturas lingsticas. Uma cincia que estuda estrutura lingstica no capaz somente de dispensar outros elementos da linguagem [neste caso: fla! Yu M. J.], mas isso possvel apenas se os outros elementos forem mantidos separadamente.

    No menos fundamental foi a segunda das oposies acima mencionada. Para a sincronia, o fundamental o que observamos como caracterstica natural e a sincronia a barreira da relao que compe a essncia da linguagem. A sincronia homeosttica, enquanto a diacronia composta de uma srie de infraes internas e externas em reao contra a qual a sincronia restabelece sua integridade: A linguagem um sistema cujas partes podem e devem ser estudadas em sua mutualidade sincrnica.

    As mudanas nunca tomam parte do sistema completo, mas somente em um ou outro de seus elementos. Elas s podem ser estudadas fora do sistema. Na perspectiva diacrnica, uma est lidando com o fenmeno que no tem coneco com o sistema lingstico, ainda que os sistemas sejam afetados por elas. A linguagem oposta a tudo que acidental, instvel e extra-sistemtico. As lnguas so mecanismos que continuam em funcionamento, apesar dos danos causados a elas.

    Essas idias no podem ser rejeitadas pela semitica moderna. Rejeit-las significaria derrubar suas bases. Mas, a partir desse fato, podemos observar quo profundas so as transformaes que at as proposies fundamentais e todo o elenco da memria tm suportado na segunda metade do sculo XX.

  • 13

    As trs funes do texto

    No sistema saussuriano de conceito que, por muito tempo, tem determinado o curso do pensamento semitico, h uma clara preferncia pelo estudo da linguagem que pela fala, e maior pelo cdigo que pelo texto. A fala e sua hipstase articulada e delimitada, o texto, de interesse para o lingista apenas como matria-prima, como uma manifestao da estrutura lingstica. Tudo aquilo que relevante na fala (ou no texto) determinado na linguagem (ou cdigo). Os elementos que ocorrem em um texto sem qualquer correspondncia com o cdigo no podem ser condutores de significados. Isso o que Saussure quer dizer quando fala: O lingista deve adotar o estudo da estrutura lingstica como seu interesse principal, e referir todas as outras manifestaes da linguagem a essa estrutura. Adotar a estrutura lingstica como uma norma significa determin-la como o ponto de referncia cientfico para a definio do que e o que no essencial na atividade da linguagem. Naturalmente, tudo aquilo que no possuir correspondncia na linguagem (cdigo) quando a mensagem decodificada removido. Aps o momento em que o metal da estrutura da linguagem separado do minrio da fala, resta somente o refugo. Isso era o que Saussure tinha em mente quando disse: a cincia da linguagem pode agir sem a anlise da fala.

    Porm, por trs dessa posio cientfica, encontra-se um complexo inteiro de hipteses, idias quase no cientficas sobre a funo da linguagem. Enquanto o lingista terico est interessado na estrutura lingstica extrada do texto, o receptor dirio de informaes est preocupado com o contedo da mensagem. Em ambos os casos, o texto tratado como algo valioso, no em si mesmo, mas meramente

    14

    como um tipo de pacote do qual extrado o objeto de interesse.

    Para o receptor de uma mensagem, a seqncia a seguir parece mais lgica:

    pensamento (contedo da mensagem) pensamento (contedo da mensagem)

    o mecanismo de decodificao o mecanismo de decodificao da linguagem da mensagem

    o texto

    Deveramos, claro, estar atentos aos conselhos de Benveniste. Ele mostrou que, devido ao fato de desconhecermos as operaes lingsticas, ns as executamos, e devido ao fato de podermos dizer tudo aquilo que desejamos, h uma firme convico de que

    os processos de pensamento e fala so duas atividades totalmente diferentes que so combinados somente para os propsitos prticos da comunicao, mas cada um deles tm seu prprio campo e suas prprias possibilidades independentes. E, alm disso, a linguagem oferece os propsitos e as formas para o que usualmente chamamos de expresses de nossos pensamentos.

    Alm disso:

    Naturalmente, a linguagem, quando manifesta-se na fala, est habituada a expressar o que queremos dizer. Porm, o fenmeno que chamamos o que queremos dizer, ou o que tnhamos em mente, ou nossa idia, ou o que quer que seja, esse fenmeno o contedo do pensamento: muito difcil defini-lo como uma essncia independente sem o uso de temos como inteno ou estrutura psicolgica, etc. Esse contedo somente adquire forma quando expresso, e s desse modo. Isso formulado pela linguagem e dentro da linguagem.

    Podemos, no entanto, imaginar um sentido que continua invariante, embora grande parte do texto seja transformado. Podemos imaginar esse sentido como uma mensagem pr-

  • 15

    textual concebida no texto. Essa a premissa na qual o modelo do texto-significado baseado (veja abaixo). Desse ponto de vista, pressupe-se que, no caso ideal, o contedo informacional no muda tanto em qualidade quanto em quantidade: o receptor decodifica o texto e recebe a mensagem inicial. Mais uma vez o texto considerado como um pacote tcnico para a mensagem, que o que interessa ao receptor.

    Por trs desse quadro de funcionamento de um mecanismo semitico, encontra-se a crena de que a funo do mecanismo a de transferir a mensagem adequadamente. O sistema funciona bem se a mensagem recebida pelo destinatrio for totalmente idntica quela despachada pelo remetente, e funciona mal se houver diferenas entre os textos. Essas diferenas so classificadas como erro e existem mecanismos especiais na estrutura (redundncia, por exemplo) para evit-los.

    Existem bons motivos para essa semelhana: ela aponta exclusivamente para a funo essencial das estruturas semiticas. Mas devemos admitir que, se adotarmos essa funo como nica, ou mesmo como funo bsica, ento estaremos nos defrontando com um nmero amplo de paradoxos.

    Se adotarmos a adequao da transferncia da mensagem como o critrio bsico na avaliao da eficincia dos sistemas semiticos, teremos que admitir que todas as estruturas lingsticas que ocorrem naturalmente so inadequadamente construdas. Para uma mensagem razoavelmente complexa ser recebida com identificao absoluta, so necessrias condies que, em situaes de ocorrncia natural, so praticamente inobtenveis: destinatrio e remetente devem possuir cdigos equivalentes, ou seja: serem, de fato e semioticamente falando, uma

    16

    bifurcao de uma e mesma personalidade. Para um cdigo, inclui-se no somente um certo conjunto binrio de regras para codificar e decodificar uma mensagem, mas tambm uma hierarquia multidimensional. Da mesma forma, o fato de que ambos os participantes de uma comunicao usam a mesma lngua nativa (ingls, russo, estoniano, etc.) no garante a identificao do cdigo. Para que isso ocorra, deve haver tambm uma experincia lingstica em comum e uma dimenso de memria idntica. E a isso deve ser adicionado um conhecimento da norma, da referncia lingstica e das formalidades. Se ento um deles considerar as tradies culturais (a memria semitica da cultura) e o fator inevitvel do aspecto individual com o qual essa tradio revelada a um membro particular de um grupo, obviamente a coincidncia de cdigos entre o transmissor e o receptor ser, na realidade, possvel apenas em uma medida bastante relativa. Inevitavelmente, o resultado que a identidade do receptor e do texto autntico relativa. Desse ponto de vista, parece realmente que a linguagem natural cumpre sua funo inadequadamente. E a linguagem potica pior ainda.

    No entanto, evidente que, para uma garantia total da adequao entre o receptor e a mensagem recebida, deve haver uma linguagem artificial (simplificada) e comunicadores simplificados artificialmente: estes tero uma capacidade de memria estritamente limitada e toda bagagem cultural ser removida da personalidade semitica. O mecanismo criado dessa forma ser capaz de servir somente a uma quantidade limitada de funes semiticas. O universalismo inerente linguagem natural , a princpio, estranho a ela.

    Deveramos, ento, supor que esse modelo superficial um modelo do que a linguagem poderia ser, um ideal do qual distinguido somente pelas imperfeies que so o resultado natural das atividades irracionais da natureza? Modelos

  • 17

    artificiais de linguagem, no a linguagem em si mas uma de suas funes a habilidade de transmitir adequadamente uma mensagem; porque as estruturas semiticas, quando alcanam essa funo de atingir a perfeio, perdem a capacidade de servir a outras funes que so inerentes elas no estado natural.

    Ento, quais so essas funes? Antes de mais nada, temos a funo criativa. Todo

    sistema que satisfaz a extenso completa das possibilidades semiticas no apenas transmite somente mensagens feitas, mas tambm serve como um gerador de novas mensagens.

    Mas o que isso que estamos chamando de novas mensagens? Em primeiro lugar, vamos chegar a um acordo sobre o que estamos denominando. No denominamos novas mensagens aquelas recebidas como resultado de simples transformaes, isto : mensagens que so frutos de transformaes simtricas daquilo que enviado (um texto emitido e obtido atravs de uma transformao contrria). Se a traduo do texto T1 da lngua L1 para a lngua L2 induz ao aparecimento do texto T2, de tal forma que a operao de uma traduo contrria resulte no texto de origem T1, ento no consideramos o texto T2 como novo em relao ao texto T1. Assim, desse ponto de vista, a soluo correta dos problemas matemticos no cria novos textos. Podemos lembrar a observao de Wittgenstein de que, dentro da lgica, nada de novo pode ser dito.

    O plo oposto s linguagens artificiais so aqueles sistemas semiticos nos quais a funo criativa mais slida. bvio que se o mais vulgar dos poemas traduzido para outra lngua (ou seja, para uma lngua com outro sistema potico), a operao de uma traduo contrria no produzir o texto de origem. O prprio fato de o poema poder ser traduzido por diferentes tradutores em diversos estilos

    18

    comprova o fato de que no lugar de uma correspondncia precisa do texto T1 h, nesse caso, uma certa distncia. Qualquer um dos textos t1, t2, t3 ... tn que preencha essa distncia, pode ser uma interpretao possvel do texto de origem. No lugar de uma correspondncia precisa, existe uma das possveis interpretaes. No lugar de uma transformao simtrica, existe uma transformao assimtrica. No lugar da igualdade entre os elementos que compem o T1 e o T2, existe uma equivalncia convencional entre eles. Na traduo de uma poesia em francs para a lngua russa, a traduo de cada verso de doze slabas do francs para os versos imbicos slabo-tnicos russos uma conveno, o resultado de uma traduo aceitvel. Contudo, em princpio possvel traduzir verso silbico francs para verso silbico russo. O tradutor forado a fazer uma escolha. H uma indeterminncia maior quando, por exemplo, um romance transformado em um filme.

    Devemos denominar o texto que produzido nesses exemplos como um novo texto, e o ato de traduo que o cria como um ato criativo.

    Podemos representar a transmisso adequada de um texto usando linguagem artificial atravs do seguinte diagrama:

    Nesse caso, o transmissor e o receptor compartilham do mesmo cdigo C.

    O diagrama de representao da traduo artstica demonstra que o transmissor e o receptor usam cdigos diferentes: C1 e C2 que se sobrepem, mas no so idnticos. Uma traduo inversa resultar no no texto de origem, mas

    T1

    C

    T2

  • 19

    T1

    C1

    C2

    Cn

    em um terceiro texto T3. Igualmente, o fecho para o processo atual da circulao das mensagens o caso onde o emissor enfrenta no somente um cdigo, mas um espao mltiplo de cdigos C1, C2, C3 ... Cn, e cada um deles um complexo de construes hierrquicas capazes de gerar um conjunto de textos em grau equivalente que corresponda ao cdigo do emissor. O relacionamento assimtrico e a constante necessidade de escolha fazem da traduo, nesse caso, um ato de produo de novas informaes e exemplificam a funo criativa tanto da linguagem quanto do texto.

    Particularmente indicativa a situao onde a diferena entre os cdigos no simples, mas mutuamente intraduzveis (por exemplo, na traduo de um texto verbal em um texto icnico). A traduo feita com a ajuda de um sistema convencional de equivalncias aceitas naquela cultura em particular. Assim, por exemplo, quando se transmite um texto verbal por meio de um ilustrativo (por exemplo, a narrao de um tema evanglico), o espao do tema ir se sobrepor nos cdigos, enquanto o espao da linguagem e do estilo ser apenas correlacionado convencionalmente dentro dos limites de uma traduo particular. A combinao de tradutibilidade-intradutibilidade (cada uma em diferentes graus) o que determina a funo criativa.

    T2...

    T2n

    T2

    20

    J que, neste caso, o significado no somente um resduo invariante, preservado durante o mtodo de operaes transformacionais, mas tambm o que alterado, podemos afirmar que h um acrscimo de significados no processo de tais transformaes.

    E h um outro ponto. Quando usamos linguagens artificiais (ou linguagens naturais e poticas como linguagens artificiais, por exemplo, se transmitimos o contedo de um romance de Tolstoy atravs de uma pequena anotao do enredo), estamos isolando o significado da linguagem. Durante as operaes complexas da significao gerativa, a linguagem inseparvel do contexto que ela expressa. Nesse ltimo exemplo, preocupamo-nos no apenas com a mensagem em uma lngua, mas tambm com uma mensagem relativa lngua, uma mensagem na qual o interesse alterado para sua lngua. Esse o ajuste para o cdigo que Roman Jakobson considerou como sendo a caracterstica fundamental do texto literrio.

    Nesse caso, muitos fenmenos so paradoxalmente invertidos. Assim, por exemplo, quando salientamos a fidelidade da mensagem, o fato de a linguagem anteceder a mensagem escrita em si, e ser acessvel a ambos os participantes no ato da comunicao parece to natural que no especialmente notado, mesmo nos casos complexos em que o receptor primeiramente percebe algumas indicaes como em que cdigos a mensagem est, para depois proceder a leitura. Quando os heris do romance de Julio Verne, The Children of Captain Grant, tiraram os trs fragmentos de um documento encontrados em uma garrafa, eles primeiro verificaram que um dos fragmentos era escrito em ingls, outro em alemo e o terceiro em francs, e s ento comearam a trabalhar na reconstruo do sentido do documento dilacerado. Em outro caso, a ordem poderia ser

  • 21

    oposta: primeiro o documento adquirido e s depois sua linguagem reconstruda. Essa ordem absolutamente normal quando conseguimos um fragmento de uma cultura que est distante da nossa. Isso no acontece somente com textos verbais em lnguas desconhecidas, mas tambm com relquias de arte e cultura materiais separadas de seus contextos e cujas funes e significados devem ser reconstrudos pelos arquelogos. Na histria da arte, isso particularmente comum uma vez que todo trabalho inovador de arte sui generis um trabalho em linguagem desconhecida pelo pblico e que deve ser reconstruda e controlada pelos seus destinatrios. Um destinatrio capaz desse tipo de auto-instruo porque, em primeiro lugar, em qualquer linguagem individualizada, embora extrema, nem tudo individual: inevitavelmente, existem nveis comuns para ambos os participantes do ato da comunicao e que servem como base para a reconstruo. Em segundo lugar, o que individual e novo inevitavelmente origina de alguma tradio a memria do que atualizado no texto. E, finalmente, em terceiro lugar, a linguagem da arte inevitavelmente heterognea, mesmo que esteja longe de ser removida do plo da metalinguagem e da linguagem artificial, ela deve, paradoxalmente, incluir elementos de auto-reflexividade, ou seja, estruturas metalingsticas. A experincia da vanguarda europia proporciona provas convincentes de que a linguagem artstica a mais individualista, o ponto mais importante sobre a reflexo autoral na linguagem e na estrutura includa nela. O texto, deliberadamente, transforma-se em uma lio de linguagem.

    Assim, o espectro dos textos que preenchem o espao da cultura pode ser representado como se esses textos estivessem dispostos paralelamente a um eixo, com um dos plos formado pelas linguagens artificiais e o outro pela

    22

    linguagem artstica. As outras linguagens so dispostas em pontos paralelos ao eixo, prximas a um ou outro plo. No entanto, devemos ter em mente que os plos desse eixo so uma abstrao irrealizvel nas atuais lnguas, assim como impossvel a existncia de uma linguagem artificial sem alguma sinonmia elementar e outros elementos poticos. Assim, lnguas com uma tendncia perceptvel rumo ao poetismo puro devem possuir tendncias metalinguais.

    Devemos tambm ter em mente que o ponto do texto no eixo acima mencionado um ponto mvel. O leitor deve avaliar a correlao potica e informacional do texto de forma diferente da apresentada pelo autor. Quando Aseev escreveu:

    Ya zapretil by prodazhu ovsa i sena Ved eto pakhnet ubiistvom ottsa i syna [Eu deveria proibir a venda de aveia e feno... Voc percebe que cheira a assassinato de pai e filho]

    e quando em Pilnyak o campons vem para a cidade e l: Kommutatory, akkumulyatory [comutadores, acumuladores] como Komu tatory, a komu lyatory [alguns conseguem tadores, outros ladores], ento bvio que o texto, que em ambos os casos, um anncio, no primeiro exemplo escrito como um texto potico, e, no segundo, como se fosse um provrbio. Nas linhas de Aseev, o aspecto fontico est sendo erroneamente realado e, na de Pilnyak, os aspectos sintagmticos esto sendo decodificados de acordo com as leis da construo de provrbios.

    A possibilidade da escolha de qualquer uma das opinies para ser o ponto de referncia na aproximao de um deles linguagem tem conseqncias importantes. Na primeira opinio, o ponto de vista informacional (uso do "informacional no sentido restrito) representa a linguagem como uma mquina para a transmisso de mensagens invariantes, e a linguagem potica , ento, considerada

  • 23

    como trivial e, geralmente falando, um ngulo anormal desse sistema. De acordo com essa semelhana, a linguagem potica vista meramente como uma linguagem natural com um revestimento de restries e, conseqentemente, uma capacidade informacional significativamente reduzida.

    A outra opinio, no entanto, tambm possvel e tem sido demonstrada freqentemente na lingstica. De acordo com essa viso, a funo criativa uma qualidade universal da linguagem e a linguagem potica considerada como a manifestao mais tpica da linguagem como tal. Desse ponto de vista, isso exatamente o oposto dos modelos semiticos que, por conseguinte, so considerados como um ngulo trivial do espao lingstico.

    A histria da discusso entre aqueles dois talentosos lingistas, Saussure e Jakobson, a esse respeito, de interesse particular. Saussure observou claramente a primeira funo como o princpio essencial da linguagem. Da, a preciso de suas oposies, sua nfase na significncia universal do princpio da arbitrariedade na relao de significado e significante, e assim por diante. Por trs de Saussure, podemos perceber a cultura do sculo XIX com sua crena na cincia positivista, sua convico de que o conhecimento um benefcio e a ignorncia uma desgraa absoluta, seus anseios literariedade universal, aos romances de Zola e dos Gouncourts. Jakobson foi sempre um homem de cultura de vanguarda, e seu primeiro trabalho, The Latest Russian Poetry. First Sketch (1921) foi, por assim dizer, o prlogo brilhante de toda sua carreira escolar. A linguagem de Khlebnikov, a linguagem dos Futuristas Russos, no foi uma anomalia para Jakobson, mas a realizao mais consistente da estrutura da linguagem e um dos mais importantes incentivos para suas pesquisas fonolgicas posteriores. De sua experincia no estudo da linguagem potica, resultou sua

    24

    sensibilidade pelo lado esttico do sistema semitico. Isso explica a intensidade de sua desaprovao quando atacou a posio central de Saussure, o princpio de arbitrariedade da conexo entre significante e significado no signo. (Veja Roman Jakobson, Quest for he Essence of Language). De fato, a linguagem do texto artstico adquire caractersticas secundrias do iconismo, que esclarece o problema da intradutibilidade da linguagem potica. No referido artigo, Jakobson faz uma anlise extraordinria e sutil das caractersticas do iconismo inerentes na linguagem de uso dirio, isto , a presena do potencial artstico na linguagem em si. No incio da dcada de 60, o Acadmico Kolmogorov comprovou que no se pode escrever poesias em linguagem artificial, e Roman Jakobson comprovou convincentemente o iconismo potencial e, conseqentemente, o aspecto artstico das linguagens naturais, confirmando dessa forma a idia de Potebnya de que a esfera completa da linguagem pertence arte.

    A terceira funo da linguagem a funo da memria. O texto no somente o gerador de novos significados, mas tambm um condensador da memria cultural. Um texto tem a capacidade de preservar a memria de seus contextos prvios. Sem essa funo, no poderia existir a cincia da histria, j que a cultura das pocas precedentes (e falando de forma mais ampla, sua reproduo da vida) , inevitavelmente, transmitida a ns em fragmentos. Se um texto permanece na conscincia daquele que o percebe somente como ele mesmo, ento o passado nos seria apresentado como um mosaico de fragmentos desconexos. Mas, para quem o percebe, um texto sempre uma metonmia de um significado integral reconstrudo, um sinal discreto de uma essncia no discreta. A soma dos contextos, na qual um dado texto adquire interpretao e qual est de

  • 25

    certa forma incorporado, pode ser chamada memria do texto. Esse espao-significado criado pelo texto ao redor de si mesmo faz parte da relao com a memria cultural (tradio) formada anteriormente na conscincia da audincia. Como resultado, o texto adquire vida semitica.

    Toda cultura constantemente bombardeada por textos casuais isolados que caem em cima dela como uma chuva de meteoritos. O que temos em mente no so os textos includos em uma tradio duradoura que tem influncia na cultura, mas invases isoladas e desruptoras. Esses textos podem ser resduos de outras civilizaes descobertas por acaso, textos trazidos por acaso de culturas remotas no tempo ou espao. A menos que os textos tivessem sua prpria memria e fossem capazes de criar uma aura semntica particular ao redor de si mesmos, todas essas invases poderiam persistir como um conjunto de peas de museu separadas do processo cultural principal. Mas, de fato, esses so fatores importantes no estmulo da dinmica cultural. Para um texto, ao contrrio de um gro de trigo que contm dentro de si o programa de seu desenvolvimento futuro, nada determinado definitivamente sem permitir mudanas. O interior, assim como a determinncia ainda no finalizada de suas estruturas, fornecem um reservatrio de dinamismo quando influenciados pelos contatos com novos contextos.

    Existe outro aspecto para essa questo. de se esperar que um texto que sobrevive atravs dos sculos se torne obsoleto e perca as informaes contidas nele. Contudo, os textos que preservam sua atividade cultural demonstram uma capacidade de acumular informaes, ou seja, uma capacidade de memria. Nos dias atuais, Hamlet no somente uma pea de Shakespeare, mas tambm a memria de todas as suas interpretaes e, mais, tambm a

    26

    memria de todos aqueles eventos histricos que ocorreram fora do texto, mas com os quais o texto de Shakespeare pode evocar associaes. Podemos ter esquecido o que Shakespeare e seus espectadores conheciam, mas no podemos esquecer o que temos aprendido desde a poca deles. E isso que fornece ao texto novos significados.

  • 27

    Autocomunicao: o Eue oOutrocomo destinatrios

    Uma das premissas da culturologia moderna que existe um elo orgnico entre cultura e comunicao. Uma conseqncia disto que os modelos e termos tirados da teoria da comunicao esto sendo transferidos para a cultura. Aplicando o modelo bsico de Roman Jakobson, consideramos possvel estabelecer uma relao entre os sistemas da teoria da comunicao e um amplo leque de problemas no estudo da linguagem, da arte e, de uma maneira mais geral, da cultura. O conhecido modelo de Jakobson se apresenta da seguinte forma:

    contexto

    mensagem

    emissor.............................destinatrio

    canal

    cdigo

    Esse modelo nico para situaes comunicativas deu uma contribuio significativa para as cincias semiticas e muito trabalho de pesquisa tem sido feito a partir dele. Contudo, a aplicao automtica de noes preconcebidas ao campo da cultura acarreta algumas dificuldades. Entre elas, destaca-se a seguinte: no mecanismo cultural, a comunicao executada por pelo menos dois canais construdos de forma diferente.

    Mais tarde, neste estudo, consideraremos como, em um nico mecanismo cultural, devem estar presentes tanto o canal pictrico quanto o verbal, que podemos tratar como dois canais construdos diferentemente para a transmisso da informao. Contudo, ambos os canais podem ser descritos usando-se o modelo de Jakobson, e nesse aspecto eles so idnticos. Mas, se tomarmos a tarefa de construir um modelo

    28

    de cultura em um nvel mais abstrato, podemos ento identificar dois tipos de canais de comunicao, dos quais um pode ser descrito pelo modelo clssico do qual temos falado. Para isso, devemos primeiro identificar duas direes possveis na transmisso da mensagem. A situao mais tpica a direo eu-ele, onde o eu o sujeito da comunicao, o possuidor da informao, enquanto ele o objeto, o destinatrio. Neste exemplo, supe-se que antes do ato de comunicao existia uma mensagem conhecida por mim e desconhecida por ele.

    A predominncia de comunicaes deste tipo na cultura em que estamos costumava ofuscar a outra direo da transmisso da informao, uma direo que podemos descrever sistematicamente como a direo eu-eu. O caso do sujeito transmitindo uma mensagem para si mesmo, isto , para uma pessoa que j a conhece, parece paradoxal. No entanto, isso ocorre com muita freqncia e tem um papel importante no sistema geral da cultura.

    Quando falamos em comunicar uma mensagem pelo sistema eu-eu ns no estamos pensando principalmente naqueles casos em que o texto cumpre uma funo mnemnica. Quando isso acontece, o eu outro, perceptivo, funcionalmente equivalente a um terceiro indivduo. A diferena vem do fato de que enquanto no sistema eu-ele a informao transferida no espao, no sistema eu-eu ela transferida no tempo.

    O que nos interessa o caso onde a transferncia da informao de eu para eu no est associada com um deslocamento no tempo, mas preenche uma outra funo cultural, no-mnemnica. A comunicao de uma informao j conhecida para si mesmo efetua-se em todos os casos onde a qualidade da mensagem aumentada. Quando, por exemplo, um jovem poeta l seu poema impresso, a

  • 29

    mensagem permanece textualmente a mesma do texto manuscrito. No entanto, sendo traduzido para outro sistema de signos grficos que possuem outro grau de autoridade na cultura em questo, aquele poema adquire um valor suplementar. Casos anlogos so aqueles onde a veracidade ou a falsidade de uma mensagem dependem se a mensagem falada claramente em alta voz ou insinuada, se falada ou escrita, manuscrita ou impressa, etc.

    Mas a comunicao eu-eu acontece em inmeros outros exemplos. Estes incluem casos onde uma pessoa se dirige a si mesma, por exemplo em anotaes de dirios, feitas no para se lembrar de certas coisas mas para elucidar o estado interior do escritor, algo que no seja possvel fazer sem as anotaes. Enderear-se a si mesmo em textos, discursos, reflexes este um fato no apenas de psicologia, mas tambm de histria da cultura.

    No que se segue, tentaremos demonstrar que o lugar da autocomunicao no sistema da cultura muito mais significativo do que se supe comumente.

    Mas como acontece esta estranha situao, em que uma mensagem transmitida atravs do sistema eu-eu no totalmente redundante e adquire mesmo alguma nova informao suplementar?

    No sistema eu-ele os elementos estruturais do modelo so variveis (o emissor poderia ser trocado pelo destinatrio), enquanto o cdigo e a mensagem so invariveis. A mensagem e a informao contida no cdigo so constantes, enquanto o portador pode variar.

    No sistema eu-eu o portador da informao permanece o mesmo, mas a mensagem reformulada e adquire um novo significado durante o processo de comunicao. Esse o resultado de se introduzir um outro cdigo suplementar: a mensagem original recodificada nos

    30

    elementos de sua estrutura e assim adquire traos de uma nova mensagem.

    O diagrama para este tipo de comunicao o que se segue:

    contexto mudana de contexto

    mensagem 1 mensagem 2 Eu !....................................................................... !Eu

    Cdigo 1 Cdigo 2

    O sistema eu-ele nos permite apenas transmitir uma quantidade constante de informao, ao passo que o sistema eu-eu transforma a informao qualitativamente, o que leva a uma reestruturao do prprio eu real. No primeiro sistema, o emissor transmite uma mensagem para uma outra pessoa, o destinatrio, mas permanece o mesmo ao longo do ato. No segundo sistema, enquanto se comunica consigo mesmo, o emissor reconstri internamente sua essncia, desde que a essncia de uma personalidade possa ser pensada como um conjunto individual de cdigos significantes, e este conjunto se transforme durante o ato de comunicao.

    A transmisso de uma mensagem pelo canal eu-eu no um processo que se encerra em si mesmo, j que causado pela intruso de cdigos suplementares vindos de fora, e por estmulos internos que alteram a situao contextual.

    Um tpico exemplo disto o efeito de sons ritmados (o tamborilar de rodas ou de msica ritmada) sobre um monlogo interior. Existem numerosos textos literrios que atribuem uma fantasia selvagem e vvida para o ritmo da marcha de um cavalo (The Forest King de Goethe, muitos poemas no Lyrical Intermezzo de Heine), para o balano de um barco (Dream at Sea de Tyutchev) ou para os ritmos de

  • 31

    uma estrada de ferro (a msica Journey Song de Glinka para os versos de Kukolnik).

    A este respeito, analisemos Dream at Sea [sonho no Mar] de Tyutchev.

    1. Mar e tempestade, ambos balanavam nosso barco; 2. Sonolento, entreguei-me totalmente ao capricho das ondas. 3. Havia dois infinitos em mim, 4. E eles comearam a brincar obstinadamente comigo. 5. minha volta as rochas soavam como cmbalos, 6. Os ventos respondiam e as ondas cantavam. 7. Ensudercido eu jazia no caos de sons, 8. Mas meu sonho se elevou sobre o caos de sons. 9. Dolorosamente brilhante, magicamente mudo, 10. Flutuava luminosamente pela escurido sonora. 11. Nos raios do relmpago difuso revelou seu mundo 12. A terra cresceu verde, e o ar brilhante, 13. Jardinslabirintos, palcios, colunas, 14. E as multides silenciosas formigavam. 15. Reconheci muitas faces que no conhecia. 16. Vi animais maravilhosos, pssaros misteriosos, 17. Como Deus, andei sobre as alturas da criao, 18. E sob meus ps o mundo imvel radiante. 19. Mas atravs dos meus sonhos, como os gritos de um mago, 20. Ouvi o trovo do redemoinho do mar, 21. E no domnio do silncio de vises e sonhos 22.Irrompeu a espuma das ondas ruidosas.2

    No momento, no estamos interessados nas idias importantes para Tyutchev, sobre a justaposio ou contraste entre a vida interior de uma pessoa, de um lado, e o mar, de

    2 Both the sea and the storm rocked our boat;/Drowsy I gave myself over entirely to the whim of the waves./There were two infinities in me;/ And they began wilfully to play with me./Around me the rocks sounded like cymbals./The winds answered and waves sang./Deafened I lay in the chaos of sounds,/But my dream rose up over the chaos of sound./Painfully brigth, magically dumb,/It wafted lightly over the sounding dark./ In the rays of sheet lightning in unfolded its world/The earth grew green, and air grew bright,/Labyrinth-gardens, palaces, columns,/ And the multitudes of the silent crowd swarmed./I recognized many faces I had not known./I saw marvellous beasts, mysterious birdes,/Like God, I trod over the heigthts of creation,/And the world immobile under my feet was radiant./But through all my dreams, like the howl of a wizard,/I heard the thunder of the seas whrilpool,/And into the silent domain of visions and dreams/Burst in the foam of the roaring waves.

    32

    outro (Pensamento atrs de pensamento, onda atrs de onda, Existe msica nas ondas do mar).

    O texto evidentemente baseado em uma experincia real, a lembrana de uma tempestade que durou quatro dias em setembro de 1833, quando Tyutchev viajava pelo mar Adritico. Nosso interesse no poema se refere s suas evidncias sobre a auto-observao psicolgica do autor (certamente no se pode negar a legitimidade dessa abordagem, entre outras, para um texto).

    O texto distingue dois componentes no estado interior da mente do autor: o sonho mudo e o barulho ritmado da tempestade. O ltimo componente marcado pela intruso inesperada de versos anapsticos no texto anfibrquico (versos 4, 5, 7, 18).

    4. I mni svoevlno igrli on, 5. Vkrug menya kak kimvly, zvuchli skal, 7. Ya v khose zvkv lezhl oglushn, 18. I mir podo mnyu nedvzhnyi siyl.

    Os versos que falam do barulho da tempestade, e os dois versos simtricos iniciados com mas, que retratam a intruso do sonho no barulho da tempestade ou do barulho da tempestade no sonho, so anapsticos. O verso que trata do tema filosfico do abismo dual (os dois infinitos), um tema encontrado em outros poemas de Tyutchev, marcado como o nico verso datlico do poema (verso 2).

    O barulho da tempestade contra o pano de fundo do mundo sem som do sonho (magicamente mudo, as multides silenciosas) claramente enfatizado por uma abundncia de traos fonticos. Mas so precisamente esses sons ritmados e ensurdecedores que compem o pano de fundo rtmico que serve para liberar o vo do poeta e seus vvidos pensamentos.

  • 33

    Tomando outro exemplo (do captulo 8 de Eugene Onegin):

    XXXVI 1. O que aconteceu? Embora seus olhos lessem, 2. seus pensamentos estavam em um ponto distante: 3. desejos e sonhos e pesares brotando 4. e fervilhando em sua alma mais ntima 5. Entre os versos do texto, como impresso, 6. os olhos da sua mente focalizavam o insinuado 7. Sentido de outros versos; intensa 8. era sua absoro nos sentidos 9. Lendas e tradies msticas, 10. extradas de um passado vago, afetuoso, 11. sonhos de arremesso inconseqente, 12. rumores e ameaas e premonies, 13. histrias longas e cheias de vida do pas das maravilhas, 14. ou cartas nas mos de uma jovem. 3

    XXXVII 1. Ento, gradualmente sob uma sensao, 2. e um pensamento, um entorpecimento sonolento se move; 3. diante de seus olhos, a imaginao 4. apresenta seu jogo de azar, e d as cartas. 4

    XXXVIII 9. Quem poderia melhor ter olhado o poeta, 10. no recanto em que se assentara sozinho 11. ladeira fulgurante, e entoando 12. Idol mio ou Benedetta, 13. deixando cair nas chamas, distrado 14. um chinelo, ou uma revista? 5

    3 What happened? Though his eyes were reading,/his thoughts were on a distant goal:/desires and dreams and griefs were breeding/and swarming in his inmost soul/Between the lines of text as printed,/his minds eye focused on the hinted/purport of other lines; intense/was his absorption in their sense./Legends, and mystical traditions,/drawn form a dim, warm-hearted past,/dreams of inconsequential cast,/rumours and threats and premonitions,/long, lively tales from wonderland,/or letters in a young girls hand.

    4 Then gradually upon sensation,/and thought, a sleepy numbness steals;/before his eyes, imagination/brings out its faro pack, and deals.

    5 Who could have looked the poet better,/as in the nook hed sit alone/by blazing fireplace, and intone/Idol mio ou Benedetta,/and on the flames let fall unseen/a slipper, or a magazine?

    34

    Nesse exemplo temos trs cdigos externos, formadores de ritmo: o texto impresso, o bruxulcar do fogo e a melodia entoada. Muito tipicamente, o livro que Onegin est lendo no fornece uma mensagem: o heri o l, contudo, sem perceber seu contedo (XXXVI, versos 1-2); o livro serve para estimular o fluxo de seus pensamentos. E ele o faz no pelo seu contedo, mas pelo seu automatismo mecnico da leitura. Onegin l sem ler, assim como ele olha o fogo sem enxerg-lo, e cantarola sem saber o que est fazendo. Nenhuma destas sries rtmicas, percebidas atravs de diferentes rgos do sentido, tem qualquer relao semntica direta com o jogo do azar da sua imaginao. Mas ele precisa destes ritmos de maneira que, com seus olhos da mente, ele possa ler outros versos. A intruso do ritmo externo organiza e estimula o monlogo interior.

    Um terceiro exemplo o monge budista japons contemplando um jardim de pedras. Este jardim uma rea de pedregulhos relativamente pequena, onde as pedras esto colocadas de acordo com um ritmo matemtico elaborado. A contemplao de um modelo elaborado de pedras e pedregulhos tem inteno de evocar um clima propcio introspeco.

    Essas vrias sries rtmicas, variando de repeties musicais a ornamentaes repetidas, so construdas de acordo com princpios sintagmticos claramente expressos, mas no tm sentido semntico prprio: podemos trat-las como cdigos externos cujo efeito reestruturar a comunicao verbal. Contudo, para o sistema funcionar, deve existir um confronto e uma interao entre dois princpios diferentes: uma mensagem em alguma linguagem semntica e a intruso de um cdigo suplementar, puramente sintagmtico. Apenas quando estes princpios so combinados pode existir o

  • 35

    sistema comunicativo que ns denominamos linguagem eu-eu.

    Por isso, estabelecemos a existncia de um canal especial de autocomunicao. Alis, essa questo j foi pesquisada: Vygotsky apontou a existncia de uma linguagem especial, voltada para a funo comunicativa, que ele descreveu como discurso interno. Ele mostrou seus traos estruturais:

    A diferena essencial entre discurso interno e externo a ausncia de verbalizao. O discurso interno mudo, sem voz. Este o seu principal trao diferenciador. Mas a evoluo do discurso egocntrico tende a um aumento gradual dessa caracterstica... O fato de que essa caracterstica se desenvolve gradualmente, de que o discurso egocntrico pode ser distinguido pela sua funo e estrutura antes da verbalizao, demonstra apenas o que tomamos como base de nossa hiptese sobre discurso interior, ou seja, que o discurso interior se desenvolve no pelo enfraquecimento externo de seu aspecto fnico, passando do discurso para o murmrio e do murmrio para o discurso silencioso, mas pela sua demarcao funcional e estrutural a partir do discurso externo; pois ele se move do discurso externo para o discurso egocntrico, e do discurso egocntrico para o discurso interior.

    Tentemos descrever algumas das caractersticas do sistema autocomunicativo.

    O primeiro trao que o distingue do sistema eu-ele a reduo das palavras nesta linguagem: elas tendem a se tornar signos de palavras, ndices de signos. No caderno de priso de Kyukhelbeker h uma passagem notvel sobre esse tpico:

    Observei algo estranho, algo que psiclogos e fisiologistas achariam curioso: tenho sonhado no com objetos, ou eventos, mas com alguns tipos de abreviaes estranhas relacionadas a eles, como hierglifos em relao a uma pintura, ou pginas de um livro em relao ao prprio livro. Pergunto-me se isso no o resultado de existirem to poucos objetos minha volta, ou to poucos eventos acontecendo comigo?

    36

    A tendncia de as palavras se tornarem reduzidas na linguagem eu-eu deve ser vista nas abreviaes de notas que usamos para ns mesmos. Na anlise final, as palavras nessas notas se tornam ndices que podem ser decifrados apenas se soubermos o que foi escrito. Comparam-se as descries do Acadmico Krachkovsy da antiga tradio escrita do Alcoro: Scripto defectiv. A ausncia no apenas de vogais curtas, mas tambm de longas, e de sinais diacrticos. Apenas pode ser lido quando o texto conhecido de cor. Um vvido exemplo deste tipo de comunicao se encontra na famosa cena de Anna Karenina quando Levin declara seu amor por Kitty; a cena ainda mais interessante porque reproduz a proposta de Tolstoy sua noiva Sofya Andreevna Bers:

    Aqui, ele disse, e escreveu as letras iniciais: q, v, m, d, q, n, p, s a, s, n, o, e? estas letras significavam: Quando voc me disse que no podia ser aquilo significava nunca, ou ento?... Eu sei o que , ela disse, corando. O que esta palavra? ele perguntou, apontando o n que significava nunca. Isso quer dizer nunca, ela disse.

    Em todos esses exemplos estamos preocupados como casos onde o leitor entende o texto apenas porque ele o conhece previamente (no livro de Tolstoy, Kitty e Levin j so, emocionalmente, um nico ser; a fuso do remetente e do destinatrio ocorre diante de nossos olhos).

    As palavras-ndice formadas como resultado desta reduo tm uma tendncia a iso-ritmicalidade. uma caracterstica da sintaxe desse tipo de recurso que no forma sentenas completas, mas tende a ser uma cadeia no-finalizada de repeties rtmicas.

    A maioria dos exemplos que apresentamos aqui no so exemplos puros de comunicao eu-eu, mas solues de

  • 37

    compromisso que tm acontecido como resultado da deformao de um texto-lingustico normal sob a influncia das leis desse tipo de comunicao. A, devemos distinguir dois tipos de autocomunicao: as que possuem uma funo mnemnica e as que no possuem.

    Um exemplo do primeiro tipo a conhecida nota de Pushkin, escrita para o texto manuscrito do poema Under the blue sky of your native land:

    Usl o s.m, 25 U o s. R.P. M. K. B: 24

    Isto tem sido representado como: Uslyshal o smerti Riznich 25 iyulya 1826 g. Uslyshal o smerti Ryleeva, Pestelya, Muraveva, Kakhovskogo, Bestuzheva 24 iyulya 1826 g. [Ciente da morte de Bestuzhev, a 24 de julho de 1826].

    Essa nota tem claramente uma funo mnemnica, embora no devamos esquecer outro fator: em vista das coneces incomuns entre significado e significante no sistema eu-eu, ela se presta criptografia, j que construda com a frmula: Deixe aqueles que entendem entenderem. Quando um texto encifrado, ele , como regra, traduzido do sistema eu-ele para o sistema eu-eu (os membros de um grupo que usam uma cifra so neste exemplo vistos como um nico eu, e em relao a eles, as pessoas das quais o texto deve ser dissimulado formam uma terceira pessoa composta). No texto de Pushkin verdade que existe uma ao, obviamente inconsciente, que no para ser explicada nem pela funo mnemnica, nem pela natureza secreta da nota: na primeira linha as palavras esto abreviadas a um grupo de vrias letras, enquanto na segunda linha as palavras esto abreviadas a uma nica letra. Os ndices tendem em direo a uma igualdade na extenso e em direo ao ritmo. Na primeira linha, desde que a preposio

    38

    [o-sobre] tende a elidir com o nome, dois grupos so formados [usl e osm], e estes grupos, dado o paralelismo fonolgico entre u e o por um lado, e entre l e m, por outro, revelam uma organizao no apenas rtmica, mas tambm fonolgica. Na segunda linha, a necessidade conspiratria de abreviar os sobrenomes a apenas uma letra produz um outro ritmo interno, e todas as outras palavras so reduzidas ao mesmo grau. Seria bizarro e monstruoso supor que Pushkin construiu deliberadamente esta nota trgica com a inteno de dar a ela uma organizao rtmica e fonolgica definitivamente este no o ponto: as leis imanentes e inconscientes ativantes da autocomunicao revelam traos estruturais geralmente observados em textos poticos.

    Essas caractersticas se tornam ainda mais claras no prximo exemplo, que no possui funo mnemnica nem conspiratria, e um exemplo de autocomunicao em sua forma mais pura. Ns temos em mente as anotaes inconscientes que Pushkin fez em processo de pensamento, provavelmente sem perceber.

    Em 9 de maio de 1928, Pushkin escreveu o poema Alas! The tongue of garrulous love, dedicado a Anna Alekseevna Olenina, com quem esperava se casar. L encontramos a seguinte anotao:

    etternna eninelo eninelo ettenna

    e, prximo, a nota:

    Olenina Annette

    Acima de Annette, Pushkin escreveu Pouchkine. No difcil restabelecer a linha de pensamento de Pushkin: ele estava pensando em Annette Olenina como sua noiva e esposa (a nota Pouchkine). O texto um anagrama (lido da

  • 39

    direita para a esquerda) do nome e sobrenome de Annette, em quem ele estava pensando em francs.

    O mecanismo desta nota interessante. Primeiro, o nome, lido de trs para frente, se torna um ndice convencional. A repetio ento estabelece um ritmo, enquanto a transposio uma destruio rtmica do ritmo. A natureza de tipo verso desta construo bvia.

    O mecanismo de transmisso da informao pelo canal eu-eu pode ser encarado como se segue: uma mensagem em uma lngua natural introduzida, seguida por um cdigo suplementar, de organizao puramente formal. Este cdigo suplementar tem uma construo sintagmtica e ou totalmente desprovido de valor semntico ou tende a s-lo. Surge a tenso entre a mensagem original e o cdigo secundrio, e o efeito desta tenso a tendncia de interpretar os elementos semnticos do texto como se eles estivessem includos na construo sintagmtica suplementar e tivessem adquirido, por meio desta interao, sentidos novos, relacionais. Apesar de o cdigo secundrio visar a liberao de elementos significantes primrios dos seus valores semnticos normais, isto no acontece. Os valores semnticos normais permanecem, mas sentidos secundrios so impostos a eles, os quais so o resultado do efeito de vrias sries rtmicas sobre os elementos significantes. Mas esta no a nica coisa que transforma o sentido do texto. O crescimento das coneces sintagmticas dentro da mensagem abafa as coneces semnticas principais, e a um certo nvel de percepo, o texto pode se comportar como uma complexa mensagem a-semntica. Mas textos a-semnticos com um alto grau de organizao sintagmtica tendem a se tornar organizadores de nossas associaes. Sentidos associativos so imputados a eles. Se, por exemplo, olharmos o desenho de um papel de parede, ou ouvirmos uma msica abstrata, atribuiremos sentido aos elementos

    40

    desses textos. Quanto mais a organizao sinttica for acentuada, mais livre e associativa sero nossas coneces semnticas. Ento o texto eu-eu tende a aumentar os significados individuais e a assumir a funo de organizar as associaes desordenadas que se acumulam na conscincia individual. Ele reorganiza a personalidade envolvida na autocomunicao.

    Assim, o texto carrega um triplo valor semntico: o valor principal geral lingustico-semntico; o valor semntico secundrio, que surge da reorganizao sintagmtica do texto e da justaposio com os valores principais; e, em terceiro lugar, valores que surgem da introduo de associaes extra-textuais na mensagem, estendendo-se do mais geral ao extremamente pessoal.

    Deve ficar claro que o mecanismo que temos apresentado serve tambm para descrever os processos que se situam no cerne da criao potica.

    Mas o princpio potico uma coisa, e textos poticos reais so outra. Identificar os ltimos com mensagens eu-eu seria simplista. Um texto potico verdadeiro transmitido atravs de dois canais simultaneamente (so excees: textos experimentais, glossolalia, canes infantis sem sentido, zaum, assim como textos em lnguas que a audincia no entende). Um texto potico oscila entre os sentidos transmitidos pelo canal eu-ele e os formados no processo de autocomunicao. E o texto percebido como verso ou prosa de acordo com a sua proximidade com cada fim do eixo ou do tipo de transmisso.

    A orientao de um texto em direo a uma mensagem lingstica principal ou em direo a uma complexa reconstruo de sentidos e aumento de informao no significa por si s que o texto vai funcionar como poesia ou prosa; isso depende tambm de como o texto est

  • 41

    relacionado com os modelos culturais desses conceitos em um dado perodo.

    Nossa concluso que a comunicao humana pode ser construda atravs de dois modelos. No primeiro exemplo, estamos lidando com uma informao previamente dada, transmitida de uma pessoa para outra com um cdigo que permanece constante durante o ato de comunicao. No segundo exemplo, lidamos com um aumento na informao, sua transformao, reformulao, e com a introduo no de novas mensagens, mas de novos cdigos, e nesse caso o emissor e o destinatrio esto contidos na mesma pessoa. No processo dessa autocomunicao, a pessoa real regenerada e esse processo conectado com uma grande variedade de funes culturais, que se estendem do sentido de existncia individual, que em alguns tipos de cultura essencial, auto-descoberta e auto-psicoterapia.

    Diferentes tipos de estruturas formais podem funcionar como tais cdigos. Quanto mais sua organizao a-semntica, melhor elas desempenham seu papel. Estruturas desse tipo incluem objetos espaciais como modelos ou padres arquitetnicos que so feitos para ser observados, ou objetos temporais como a msica.

    A questo dos textos verbais mais complicada. J que na funo autocomunicativa pode ser mascarada e se parecer com outros tipos de comunicao (por exemplo, uma orao pode ser pensada como uma mensagem para uma fora poderosa externa ao invs de uma mensagem para si mesmo; uma segunda leitura de um texto familiar pode ser pensado como uma comunicao com o autor, etc.), o destinatrio que recebe um texto verbal tem que decidir se o texto um cdigo ou uma mensagem. Isto vai depender amplamente da inclinao do emissor, j que um mesmo texto pode fazer

    42

    papel de texto e cdigo, oscilando entre os dois plos ou sendo os dois ao mesmo tempo.

    Devemos diferenciar dois aspectos dessa questo: as caractersticas do texto que permitem a ele ser interpretado como cdigo, e a maneira que o texto funciona para que seja corretamente usado.

    Os sinais de que devemos tratar um texto no como uma mensagem comum, mas como um modelo de cdigos, so as sries rtmicas, repeties, organizaes suplementares do texto, ou seja, tudo o que bastante suprfluo do ponto de vista da comunicao eu-ele. O ritmo no um nvel estrutural em lnguas naturais. Note-se que enquanto a funo potica da fonologia, da gramtica e da sintaxe tem analogias nos correspondentes nveis no-literrios do texto, tal analogia no existe para a mtrica.

    Os sistemas rtmico-mtricos tm sua origem no no sistema eu-ele, mas no sistema eu-eu. O princpio amplamente usado da repetio no nvel fonolgico e tambm outros nveis da lngua natural uma invaso da autocomunicao em uma esfera da linguagem que estranha a ela.

    Funcionalmente falando, um texto usado como cdigo e no como mensagem quando ele no acrescenta nada informao que j temos, mas quando ela transforma o auto-entendimento da pessoa que criou o texto e quando ela transfere mensagens preexistentes para um novo sistema de significados. Se a leitora N recebe a mensagem de que uma certa mulher chamada Anna Karenina se jogou debaixo de um trem por causa de um caso de amor infeliz, e se a leitora, ao invs de juntar esta informao ao que ela j sabe, chega seguinte concluso: Anna Karenina sou eu, e comea a mudar seu entendimento de si mesma, sua relao com as pessoas e talvez mesmo o seu comportamento, ento ela est

  • 43

    obviamente usando o livro no como uma mensagem como qualquer outra, mas como um tipo de cdigo em seu prprio processo de autocomunicao.

    Tatyana de Pushkin l romances exatamente da seguinte forma:

    X 1. Vendo a si mesma como criao- 2. Clarissa, Julie ou Delphina- 3. por escritores de sua admirao, 4. Tatyana, solitria herona, 5. vagava pela floresta solitria, como um guarda-florestal, 6. procurou em seu livro, aquele texto do perigo, 7. e encontrou seus sonhos, seu fogo secreto, 8. o fruto do seu ntimo desejo; 9. ela suspirou, e em transe, co-optou 10. a alegria de outro, o seio de outro, 11. sussurrou de cor uma nota destinada 12. ao heri que ela tinha adotado. 13. Mas o nosso, o que quer que ele seja, 14. o nosso no era nenhum Gradison no ele. 6

    O texto do livro que Tatyana est lendo se converte em um modelo para a reinterpretao da realidade. Tatyana no tem dvida que Onegin um personagem romntico; a nica coisa que ela no sabe que papel dar a ele:

    Kto ty, moi angel li khranitel, Ili kovarnyi iskusitel?

    ... Mas quem voc: o anjo guardio da tradio, ou algum agente vil da perdio enviado para seduzir?

    6 Seeing herself as a creation /Clarissa, Julie, or Delphine /by writers of her admiration,/Tatyana, lonely heroine,/roamed the still forest like a ranger,/sought in her book, that text of danger,/and found her dreams, her secret fire,/the full fruit of hearts desire;/she sighed, and in a trace co-opted/anothers joy, anothers breast,/whispered by heart a note addressed/to the hero that she adopted./But ours, whatever he might be,/ours was no Grandison not he.

    44

    bastante caracterstico que a carta de Tatyana para Onegin admita duas partes: em seu esqueleto (os dois primeiros versos e o ltimo), onde Tatyana escreve como uma jovem doente de amor por um proprietrio de terras vizinho, ela naturalmente se dirige a ele pelo formal vy, mas na parte central, onde ela se imagina com ele em tramas romnticas, ela usa o ntimo ty. Como Pushkin nos adverte, j que o original da carta foi escrito em francs, onde vous usado nos dois casos, a forma de tratamento na parte central da carta exatamente um sinal da natureza de livro, irreal, de tipo cdigo deste texto.

    interessante que o Romantic Lensky tambm explique as pessoas (inclusive ele prprio) para si mesmo identificando-as com textos. Pushkin aqui usa demonstrativamente os mesmos clichs: spasitel/khranitel [salvador/guardio] rasvratitel/iskusitel [sedutor/tentador]:

    on myslit: budu ei spasitel. Ne poterplyu, chtob razvratitel [ele murmura: Olga minha por salvao; Vou acabar com esse demnio da depravao.]

    Em todos esses exemplos os textos funcionam no como mensagem em uma lngua particular (nem para Pushkin, nem para Tatyana ou Lensky), mas como cdigos que concentram informaes sobre o tipo real de linguagem.

    Nossos exemplos so tomados da literatura, mas seria errado concluir que poesia comunicao eu-eu em sua forma mais pura. O mesmo exemplo pode ser visto em uma forma mais consistente, no em arte, mas em textos de fundo moral ou religioso como em parbolas, em mitos e em provrbios. As repeties acharam seu lugar nos provrbios quando ainda no eram percebidas esteticamente, mas

  • 45

    possuam uma funo mnemnica ou moralizante mais importante.

    A repetio de certos elementos arquitetnicos no interior de uma igreja nos faz perceber a estrutura no como algo ligado s exigncias tcnicas de construo, mas, digamos, como um modelo do universo ou da personalidade humana. Exatamente porque o interior de uma igreja um cdigo e no um texto simplesmente, ns o percebemos no apenas esteticamente (somente um texto, no as regras de sua construo, pode ser percebido esteticamente), mas tambm de um modo religioso, filosfico, teolgico ou de outra maneira no-artstica.

    A arte no nasce do sistema eu-ele nem do sistema eu-eu. Ela se utiliza dos dois sistemas e oscila no campo da tenso estrutural entre eles. O efeito esttico surge quando o cdigo tomado por uma mensagem e a mensagem por cdigo, isto , quando um texto passado de um sistema de comunicao para outro enquanto o pblico permanece consciente de ambos.

    A natureza de textos artsticos como um fenmeno que oscila entre dois tipos de comunicao no impede o fato de certos gneros serem apresentados de forma que se os percebam mais ou menos como mensagens ou cdigos. Um poema lrico e um ensaio obviamente no so para ser relacionados com um ou outro sistema de comunicao da mesma forma. Mas alm da orientao do gnero, em certos momentos, por causa de fatores histricos, sociais ou outros, a literatura em geral (e at a arte como um todo) pode ser caracterizada pela sua orientao em relao autocomunicao. Um bom critrio de trabalho para diagnosticar a orientao geral da literatura com respeito mensagem uma atitude negativa em relao a um texto padro. Mas a literatura que orientada em direo

    46

    autocomunicao no vai apenas evitar textos-padro, mas vai manifestar uma tendncia de transformar estes textos em textos-padro para identificar o que elevado, bom e verdadeiro com o que estvel, eterno, isto , com o modelo.

    No entanto, distanciar-se de um plo (e ainda levantar polmicas conscientes sobre ele) no significa deixar sua influncia estrutural. Por mais que um trabalho de literatura imite uma notcia de jornal, ele preserva um trao tpico do texto autocomunicativo sua qualidade de ser legvel muitas vezes. Ns relemos mais naturalmente Guerra e Paz do que as fontes histricas usadas por Tolstoy. Ao mesmo tempo, por mais que um texto artstico verbal se empenhe, por razes de polmica ou experimentao, em deixar de ser uma mensagem, ele no o consegue, como prova a histria da arte.

    Textos poticos so formados evidentemente a partir de uma troca de estruturas: texto criado no sistema eu-ele funcionam como autocomunicao e vice-versa; textos se tornam cdigos e cdigos mensagens. Seguindo as leis da autocomunicao a diviso do texto em segmentos rtmicos, a reduo das palavras a ndices, o enfraquecimento das coneces semnticas e a nfase nas conexes sintagmticas o texto potico est em conflito com as leis da lngua natural. E, contudo, ns o percebemos como o texto em uma lngua natural, de outra forma ele no poderia existir ou preencher sua funo comunicativa. Por outro lado, se a viso de que poesia simplesmente mensagem em uma lngua natural levar a melhor, ns perdemos o senso de sua especificidade. A alta capacidade modeladora da poesia est associada com a sua transformao de mensagem para cdigo. O texto potico um tipo de pndulo que oscila entre

  • 47

    os sistemas eu-ele e eu-eu. O ritmo surge do nvel de sentido, e o sentido formado do ritmo.

    As leis de construo do texto artstico so, em grande medida, as leis de construo da cultura como um todo. Portanto, a prpria cultura pode ser tratada tanto como a soma das mensagens enviadas por vrios emissores (para cada um deles o destinatrio outro ele), quanto como uma mensagem transmitida por um eu coletivo da humanidade para ela mesma. Desse ponto de vista, a cultura humana um vasto exemplo de autocomunicao.

    A transmisso simultnea ao longo de dois canais de comunicao no somente uma propriedade de textos artsticos, tambm uma caracterstica da cultura, se tomarmos cultura como uma mensagem nica. Podemos ento dividir as culturas entre aquelas onde predomina a mensagem transmitida pelo canal lingstico geral eu-eu, e aquelas orientadas em direo autocomunicao.

    J que a mensagem 1 pode se constituir de amplas camadas de informao que de fato compem a especificidade da personalidade, a reestruturao dessas camadas vai resultar na alterao da estrutura da personalidade. Devemos lembrar que se o esquema eu-ele implica transmisso de informao sem alterao no volume, o esquema eu-eu trabalha em relao ao aumento de informao (a mensagem 2 no invalida a mensagem 1).

    A cultura europia moderna orientada conscientemente com relao comunicao eu-ele. O consumidor cultural est na posio de um destinatrio ideal, ele recebe informao de todos os lados. Pedro o Grande formulou claramente esta posio quando disse: Sou um discpulo que exige ser ensinado. The True Mirror of Youth aconselha os jovens a ver a educao como aquisio do

    48

    conhecimento, desejando aprender com cada um, sem arrogncia. Devemos enfatizar que estamos falando de uma orientao, j que, no nvel da realidade textual, toda cultura consiste de ambos os tipos de comunicao. Alm do que, esta caracterstica no especfica para a cultura moderna ela pode ser vista em diferentes formas, em diferentes perodos. Escolhemos a cultura europia dos sculos XVIII e XIX porque esta cultura tem condicionado nossas idias cientficas normais e especialmente nossa identificao do ato de informao com a aquisio e a troca. Contudo, de forma alguma todos os casos conhecidos da histria da cultura podem ser explicados a partir dessas posies.

    Observe-se a situao paradoxal em que nos encontramos quando consideramos o estudo do folclore. Ns sabemos que o folclore tem fornecido a evidncia mais firme para os paralelos estruturais com as lnguas naturais, e que mtodos lingsticos tm sido aplicados ao folclore com grande sucesso. De fato, o pesquisador vai encontrar nesse campo um nmero definido de elementos no sistema e regras relativamente fceis para sua combinao. Mas aqui ns devemos mostrar tambm uma profunda diferena: a lngua fornece um sistema formal de expresso, mas o campo do contedo permanece, do ponto de vista da linguagem como tal, extremamente livre. O folclore, e especialmente formas suas assim como o conto mgico, torna ambas as esferas extremamente automatizadas. Mas isto um paradoxo. Se o texto fosse de fato construdo desta forma, ele seria totalmente redundante. E o mesmo poderia ser dito de outras formas de arte orientadas canonicamente, no cumprimento e no na violao de normas e regras.

    A resposta est evidentemente no fato de que, se textos deste tipo tm um certo valor semntico desde o seu comeo (a semntica do conto mgico evidentemente era uma funo

  • 49

    da sua relao com o ritual), esses valores eram subseqentemente perdidos e os textos comeavam a adquirir caractersticas de organizaes puramente sintagmticas. Enquanto no nvel da lngua natural eles obviamente tm valor semntico, no nvel da cultura eles tendem sintagmtica pura, isto , de textos, eles passam a cdigos 2. Quando Lvi-Strauss falou da natureza musical do mito, ele tinha em mente a tendncia de os mitos se tornarem puramente sintagmticos, textos a-semnticos, no registros de eventos particulares, mas esquemas para a organizao de mensagens.

    Para que a cultura exista como um mecanismo organizador da personalidade coletiva com uma memria comum e uma conscincia coletiva, deve estar presente um par de sistemas semiticos com a conseqente possibilidade de traduo do texto.

    Os sistemas comunicativos eu-ele e eu-eu formam justamente um par como aquele (a propsito, devemos dizer que uma lei aparentemente universal para culturas humanas que um dos membros de qualquer par semitico formador de cultura deve ser lngua natural, ou incluir lngua natural).

    Culturas reais como textos artsticos so construdas no princpio de que o pndulo oscila entre sistemas. Mas existir uma tendncia predominante para a cultura de ser orientada ou em direo autocomunicao, ou em direo aquisio de verdade exterior, na forma de mensagens. Essa tendncia vai se evidenciar particularmente bem na imagem mitologizada que cada cultura cria como seu auto-retrato ideal. Esse modelo prprio tem uma influncia nos textos da cultura mas no pode ser identificado com ela, sendo algumas vezes uma generalizao de princpios estruturais dissimulados por trs de contradies textuais, e s vezes o oposto direto deles (no campo da tipologia cultural h o

    50

    conhecido fato de gramticas que so, a princpio, inaplicveis aos textos da lngua que afirmam descrever).

    As culturas, orientadas para a mensagem, so mais mveis e dinmicas. Elas tm uma tendncia a aumentar o nmero de textos ad infinitum, e incentivam um rpido aumento no conhecimento. A cultura europia do sculo XIX um exemplo clssico disso. O avesso desse tipo de cultura a ntida diviso da sociedade em transmissores e receptores, o aumento de uma tendncia psicolgica de adquirir verdade na forma de informao pr-embrulhada sobre os esforos mentais de outras pessoas, um aumento na passividade social daqueles que se encontram na posio de receptores de informao. Obviamente, um leitor de um romance europeu mais passivo que um ouvinte de um conto de fadas que deve transformar a histria padro em um texto de sua prpria conscincia; um espectador de uma pea de teatro mais passivo que um folio no carnaval. A tendncia ao consumismo mental um aspecto perigoso da cultura que orientada assimetricamente em direo aquisio de informao a partir do exterior.

    As culturas orientadas em direo autocomunicao so capazes de grande atividade, mas so freqentemente muito menos dinmicas do que a sociedade humana requer.

    A experincia histrica tem mostrado que as culturas mais viveis so aqueles sistemas onde a luta entre essas estruturas no tem resultado em uma vitria total para uma delas.

    Mas temos ainda um longo caminho at sermos capazes de fazer qualquer previso bem fundamentada sobre as estruturas favorveis da cultura. At l, devemos entender e descrever seu mecanismo, ao menos em suas manifestaes mais tpicas.

  • 51

    Uma alternativa: cultura sem letramento ou cultura antes da cultura?

    Uma tentao de muitas pessoas interessadas na histria e na tipologia de culturas e civilizaes dizer: Isso nunca aconteceu, portanto, no pode acontecer ou No sei nada sobre isso, ento deve ser impossvel. Na verdade, isso significa que a parte cronolgica, que podemos estudar graas aos documentos escritos que foram preservados, to pequena em comparao com o total da histria escrita e oral da humanidade, tomada como norma para o processo histrico, e que a cultura desse curto perodo o padro para a cultura humana.

    Vejamos um exemplo: toda a cultura conhecida por estudiosos europeus baseada na escrita. Achamos difcil imaginar uma cultura iletrada desenvolvida e mesmo qualquer civilizao iletrada desenvolvida (e, se conseguirmos, ser somente evocando imagens familiares de culturas e civilizaes que j conhecemos). H no muito tempo, dois matemticos bem conhecidos colocaram em evidncia a idia de que, j que o desenvolvimento global da escrita s se tornou possvel com a inveno do papel, todo o perodo pr-papel da histria da cultura uma inveno a posteriori. No nos interessa discutir essa idia paradoxal, mas perceb-la como um exemplo claro da extrapolao de um olhar preconcebido, aplicado a regies inexploradas: aquilo que familiar visto como a nica coisa possvel.

    Civilizaes desenvolvidas, com suas sociedades de classe, divises de trabalho e altos nveis de servios pblicos e de construo e tecnologia irrigacional, so to obviamente ligadas com a habilidade de escrever que as possibilidades alternativas tm sido rejeitadas a priori. Argumentando a partir dos muitos dados a nossa disposio, podemos dizer que o lao entre escrita e civilizao uma lei universal, no

    52

    fosse pelo misterioso fenmeno das civilizaes pr-incas sul-americanas.

    As evidncias que os arquelogos tm acumulado sobre essas civilizaes formam um quadro surpreendente. A est uma srie de civilizaes que, sucedendo-se por milhares de anos, ergueram grandes edificaes, criaram sistemas de irrigao, construram cidades e grandes dolos de pedra, desenvolveram habilidades em olaria, tecelagem, metalurgia e um complexo sistema de smbolos... e contudo, no deixaram qualquer trao de escrita. O paradoxo continua sem explicao. O argumento s vezes apresentado de que seus escritos foram destrudos por invasores, primeiro os incas e depois os espanhis, no convincente. Seus monumentos de pedra, aqueles de seus cemitrios, que no foram saqueados e esto ainda em perfeita condio, sua cermica e outros produtos certamente teriam deixado algum trao de escrita, se esta houvesse existido. Sabemos, por experincia histrica, que uma destruio a ponto de no deixar nenhum trao est fora do alcance de qualquer invasor. Portanto, temos de supor que eles no tinham escrita.

    Sem nos restringirmos a priori a quaisquer noes sobre o que seja ou no possvel, tentemos imaginar (j que este o nico caminho aberto) como teria sido essa civilizao, se de fato ela existiu.

    Escrever uma forma de memorizar. Assim como a mente individual tem seus prprios mecanismos de memorizao, a mente coletiva, que tem de registrar o que existe em comum, cria seus prprios mecanismos. Um desses mecanismos a escrita. Mas ser a escrita a nica forma de memorizao coletiva, ou mesmo a mais importante? Para responder essa pergunta, devemos supor que formas de memorizao so derivadas do que as pessoas acham que

  • 53

    deve ser lembrado, o que depende da estrutura e orientao daquela civilizao.

    Normalmente, supomos que a memria para lembrar eventos excepcionais (aqueles que a memria coletiva guarda); e por eventos excepcionais entendemos eventos nicos ou eventos que ocorrem pela primeira vez, ou ainda aqueles que no deveriam ter acontecido, inesperados. Esses so os tipos de eventos registrados em crnicas e, hoje em dia, em jornais. Para o tipo de memria voltada para a memorizao de ocorrncias anmalas ou incomuns, a escrita essencial. A cultura com esse tipo de memria multiplica constantemente o nmero de textos: suas leis so ampliadas com precedentes, seus atos legais registram eventos particulares vendas, testamentos, acordos e um juiz tem de lidar em cada caso com um incidente separado. A literatura tambm submetida a essa tendncia. Esse tipo de cultura encoraja o desenvolvimento de correspondncia privada, memrias e dirios, os quais tambm servem para registrar eventos e incidentes. A mente literata prestar ateno s relaes de causa e efeito e s aes resultantes: o que registrado no a poca do ano para semear, mas como foi a colheita em um determinado ano. Tudo isso leva a um aumento da preocupao com o tempo e o comeo da idia de histria. Podemos dizer ainda que a histria um dos subprodutos do surgimento da escrita.

    Mas vamos imaginar um outro tipo possvel de memria que vise preservar informao sobre a ordem estabelecida, e no sobre suas violaes, sobre suas leis e no sobre anomalias. Suponhamos, por exemplo, que, quando assistimos a uma competio esportiva, no estamos preocupados com quem venceu ou quais circunstncias imprevistas estiveram presentes nesse evento, mas que nos concentramos em algo mais, ou seja, no registro para a

    54

    posteridade da informao sobre como e em que temporada a competio aconteceu. A o que precisamos no de uma crnica ou de uma notcia de jornal, mas de um calendrio ou de algum que registre a ordem estabelecida, e de um ritual que permita tudo isso ser armazenado na memria coletiva.

    A cultura que orientada no em direo a um aumento na quantidade de textos, mas na reproduo repetida de textos estabelecidos de uma vez por todas, requer uma memria coletiva com composio diferente. A escrita no necessria. Smbolos mnemnicos tomaro seu lugar, assim como smbolos naturais (tais como as rvores e pedras notveis, as estrelas e os corpos celestes) e smbolos criados pelo homem: dolos, tmulos, construes e rituais nos quais estes marcos e lugares sagrados so includos. A ritualizao e sacralizao da memria, que tpica de tais culturas, faz os observadores educados em tradies europias identificarem esses marcos com centros de cultos religiosos no sentido em que usamos o termo. Mas, concentrando a ateno na funo sagrada desses lugares, que de fato existem, o observador ter uma tendncia a no perceber suas outras funes, aquelas de regulamentao e controle; pois nestes lugares que o smbolo mnemnico (sagrado) do rito aparece. No entanto, as atividades associadas com esses centros preservam a memria do coletivo daqueles feitos, idias e emoes que correspondem quele lugar. Portanto, sem conhecer os rituais e sem levar em conta o vasto nmero de signos do calendrio e outros signos (por exemplo, o comprimento e o ngulo de uma sombra feita por uma rvore ou construo, a abundncia ou a falta de folhas ou frutos em uma rvore sagrada em um determinado ano, etc.) ns no podemos identificar quais funes das construes foram preservadas. Devemos, alm disso, ter em mente que a cultura escrita orientada em direo ao passado, ao passo

  • 55

    que a cultura oral orientada em direo ao futuro. Predies, leituras de sorte e profecias tm uma grande parte nisso. Os marcos e lugares sagrados no so apenas locais onde os rituais que preservam a memria de leis e normas so representados, mas tambm locais de adivinhaes e predies. Oferendas de sacrifcio podem ser vistas como um tipo de experimento futurolgico, j que elas sempre envolvem um apelo divindade, no sentido de se obter assistncia ao fazer uma escolha.

    Estaramos errados se supusssemos que uma civilizao desse tipo sofre de uma carncia de informao, baseados no fato de que seus rituais e costumes parecem fazer com que todas as aes sejam pr-ordenadas pelo destino. Uma sociedade como essa simplesmente no pode existir. Membros de um coletivo iletrado constantemente se deparam com a necessidade de fazer uma escolha, mas suas opes so feitas sem referncias histria ou a expectativas de causa e efeito, mas, como fazem muitos povos iletrados, consultando adivinhos e feiticeiros. Talvez nossa necessidade de consulta (a um mdico, um advogado, uma pessoa mais velha) seja um vestgio dessa tradio. Esse tipo de tradio se ope ao ideal de Kant que dita que a pessoa capaz de tomar decises sobre seus prprios atos e opinies. Kant escreveu:

    O Iluminismo a emergncia da humanidade de um estado de imaturidade onde se encontra por sua prpria culpa. Imaturidade a inabilidade de se usar a prpria razo sem a orientao de outra pessoa... to fcil ser imaturo! Se eu tenho um livro que pensa por mim, se eu tenho um guia espiritual que age de acordo com a minha conscincia, e um mdico que me prescreve um regime particular, ento no tenho nada com o que me preocupar.

    A cultura sem escrita, com sua orientao em direo ao pressgio, s adivinhaes e aos orculos, faz da escolha de comportamento algo impessoal. Assim, a pessoa ideal ser

    56

    aquela capaz de entender e interpretar predies corretamente, no hesitando em lhes dar sentido, e aquela que age abertamente, sem esconder suas intenes. Em contraste, uma cultura orientada em direo capacidade de uma pessoa de escolher sua prpria estratgia de comportamento requer racionalidade, cuidado, circunspeco e discrio, j que cada evento visto como acontecendo pela primeira vez. Turner cita um exemplo interessante em seu trabalho de adivinhao no meio de pessoas da frica central e, em particular, dentre os Ndembu. A predio feita sacudindo-se uma cesta contendo estatuetas especiais de ritual, e o resultado lido pelas suas posies. Cada estatueta tem um certo significado simblico e qualquer um deles que aparea por cima tem um significado especial. Turner escreve:

    A segunda estatueta que devemos considerar chamada Chamutanga. Ela representa um homem sentado encolhido com o queixo nas mos e os cotovelos nos jo