Louisa Reid- coraçoes feridos

739

Transcript of Louisa Reid- coraçoes feridos

SUMÁRIO

Capa

Sumário

Folha de Rosto

Folha de Créditos

Dedicatória

Epígrafe

Parte Um – Rebecca e Hephzi

Rebecca – DepoisHephzi – Antes

Rebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – AntesRebecca – Depois

Hephzi – AntesRebecca – DepoisHephzi – Antes

Parte Dois – Rebecca

1

2

3

4

5

6

7

Agradecimentos

Notas

Duas irmãs gêmeas. Umalinda, a outra desfigurada.Divididas por um terrível

segredo...

Louisa Reid

TraduçãoThiago Mlaker

Publicado originalmente na Grã-Bretanha em inglêspela Penguin Books Ltd.

Copyright © Louisa Reid, 2012Copyright © 2013 Editora Novo Conceito

Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,lugares e acontecimentos descritos são produto daimaginação do autor. Qualquer semelhança com

nomes, datas eacontecimentos reais é mera coincidência.

Versão digital – 2013

Produção Editorial:Equipe Novo Conceito

Este livro segue as regras da Nova Ortografia daLíngua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação naPublicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Reid, Louisa

Corações Feridos / Louisa Reid ; traduçãoThiago Mlaker. -- Ribeirão Preto, SP : Novo

Conceito Editora, 2013.

Título original: Black heart blueISBN 978-85-8163-266-7

1. Ficção inglesa I. Título.

13-04503 | CDD-823

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura inglesa 823

Rua Dr. Hugo Fortes, 1.885 — Parque IndustrialLagoinha

14095-260 – Ribeirão Preto – SPwww.editoranovoconceito.com.br

Para todos aqueles que já se sentiramdiferentes.

E para Alistair, Eve e Scarlett — éclaro.

You do not do, you do not do

Any more, black shoe

In which I have lived like a foot

For thirty years, poor and white

Barely daring to breathe or Achoo.[1]

“Daddy”, Sylvia Plath

PARTE UM

Rebecca e Hephzi

Rebecca

Depois

Hoje eles tentaram me fazer ir ao funeralde minha irmã. E eu, por fim, tive deceder. O vestido preto que Hephzibahusara ano passado, quando Vovófaleceu, pendia pesado em meus ossos, eeu o vestia como uma armadura. Elasempre foi maior. Nasceu primeiro,mais forte, mais bonita, a gêmeapopular. Eu vivi à sombra dela por 16anos e gostei do frio e da escuridão; eraum lugar seguro para esconder-me.Agora eu estremecia no ar pesado de

janeiro. Era o primeiro dia do ano-novo,e minha irmã estava morta havia umasemana.

Vovó era gentil e nós queríamos ficarcom ela do mesmo modo que outrascrianças querem que chegue o Natal. Eraa oportunidade de comer chocolate eassistir TV. Uma chance de ler livros atédepois da hora de dormir. Na casa deVovó podíamos rir alto, fantasiar-nos, eela até nos deixava usar sua maquiagem.Hephzi adorava maquiar-me; quantomais brilhante, melhor. Vovó fez questãode que minha irmã tivesse um sutiã aocompletar 12 anos. Às vezes, ela noslevava ao cinema e assistíamos a filmesinadequados: princesas da Disney,

animações, Harry Potter. Ela era a mãeda Mãe. Vovó costumava beijar-me edizer que eu era adorável. Seuamorzinho. Ninguém mais dizia isso,nunca. Conforme fomos ficando maisvelhas, nós a visitávamos cada vezmenos. Não havia necessidade, diziamos Pais; seríamos mais úteis nos eventosda igreja que na casa de Vovó. Longosanos de marasmo por causa de suaausência. Sei que Vovó sentia nossafalta. Quando ela telefonava e uma denós atendia, sua voz soava fina edistante, como um avião de papelespiralando ao longe. Então ela morreu.

Gravei o dia de hoje em minhamemória como mais um dia negro, e está

lá, uma dura história inscrita em meucoração. As histórias que tenhoescondidas dentro de mim; se vocêpudesse abrir-me, leria a verdade. Olhepara dentro, retire a pele, a carne e osossos e encontrará uma biblioteca desofrimentos. Talvez você me peça paraexplicar. Eu sou, antes de tudo, acuradora desse passado. Mas algumascoisas são terríveis demais para seremcontadas, e essas palavras estãoenterradas profundamente. Essas sãopalavras que eu nunca sussurrei nemmesmo à minha irmã, essas são palavrasque não ouso pronunciar em voz alta. Eugostaria de que elas não chorassem nasparedes do meu quarto ou me caçassemnos meus sonhos.

Há uma cicatriz no meu coraçãocausada pela morte da Vovó e outra pelodia em que pela primeira vez Hephzinão quis acompanhar-me na volta daescola para casa. Eu tive de mentir paraexplicar a ausência dela quando chegueisozinha à casa paroquial, dizendo queHephzi tivera aulas extras deMatemática. Isso foi em setembro,quando começamos o Ensino Médio,quatro meses antes. Na escola, todosnotaram o quanto minha irmã gêmea erabonita, meiga e divertida, e ela logoestava sendo convidada para festas efalando com os garotos. Por ser irmãdela, ninguém me incomodava, mas achoque os outros adolescentes riam de mim

pelas costas. Talvez Hephzibah rissetambém. Ninguém me olhava nos olhos.Até os professores achavam isso difícil.

E agora ela está morta. E seu funeralfoi hoje. O caixão era branco. A Mãechorou. O Pai presidiu a cerimônia.Quando os bondosos carolas do lugarperguntaram-lhe como estavaconseguindo suportar aquilo, ele disseque era preciso, que era seu dever paracom a filha. Eu fiquei na frente, novestido preto de Hephzi, e meperguntava se ela, de dentro do caixãode madeira, conseguia ouvir o queestava acontecendo e se também sesentia sozinha e com frio. Ela enfimsaberia, pela primeira vez, o que

significa ser deixada de lado. Seusamigos de escola estavam no fundo daigreja e choravam. Ele não pôde proibi-los de ir, mas seu olhar gélido deixavabem claro que eles não eram bem-vindos. Eu olhava para o chão,detestando todos eles. Hipócritas. Elesnão nos ajudaram quando ela estavaviva, então por que estavam ali agora,quando já era tarde demais? Terminadaa cerimônia, ninguém falou comigo e eufiquei sozinha, esperando que os Paisacabassem de receber as condolências.

Estar sozinha parecia errado. Todospodiam ver agora que Hephzi foraembora. Havia sempre um par de olhosem algum lugar me fitando com fascínio

e horror. Eu podia sentir esses olharescomo se fossem formigas rastejando sobminha pele. Eventualmente, Tia Melissa,a irmã da Mãe, vinha e me perguntavacomo eu estava. Ela viera da Escócia eeu mal a reconheci à primeira vista, masmesmo assim ela se arriscou a colocar obraço ao redor dos meus ombros etentou abraçar-me. Quando eu nãocorrespondi a seus murmúrios aflitos eme distanciei de seu toque, ela recuou.Não falei com minha tia porque sabiaque ele mantinha os olhos em mim, e euestava ocupada demais contando aHephzi o que todos ali estavam fazendoe esperando atentamente que ela merespondesse.

Uma semana sem ela havia sido muitotempo.

Entretanto, agora está escuro e o diaestá quase acabando. Ainda tenho dedormir nesse quarto com a outra camavazia a apenas alguns passos dedistância. A cama de Hephzi. Às vezesacordo no meio da noite, atormentadapor meus próprios gritos e pelo barulhoque vem da parede e, por um momento,posso ver o contorno suave de seu corpoali, de costas para mim — como sempre—, respirando levemente.

Hephzi

Antes

OK. Minha família é maluca.Completamente estranha. Um dia eu voucair fora daqui, não há dúvida quanto aisso, mesmo que isso signifique deixarminha irmã para trás.

O dia em que ingressamos no segundograu foi o início para mim. Eu aspiravaisso no ar de setembro na escola,escutava isso no barulho das portas dosarmários sendo batidas e nos gritos erisadas de vozes desconhecidas,

saboreava isso em meus lábios quandosorria para estranhos e eles sorriam devolta para mim. Sei que agora posso serlivre. Disse à minha mãe que, se ela nãome deixasse ir, eu faria da sua vida uminferno; ela deve ter acreditado em mim,e, de alguma forma, persuadiu meu pai.Sou maior e mais forte que ela agora esei bem como trazê-la para o meu lado,assim, se tiver sorte, posso fazer ascoisas do meu jeito de vez em quando.De qualquer forma, conseguimos isso, efoi como se alguém tivesse me dado aschaves de um reino. Os corredoresrepletos de jovens da nossa idade, detodos os tipos, de diferentes formas etamanhos. Eu mal podia esperar parafalar com eles e já sentia o olhar de

admiração dos garotos. Isto é o que maisme interessa: garotos. Eu nunca tiveraum namorado, mas arrumaria um bemrapidamente; sabia que não era tarefatão difícil. Óbvio que eu teria, primeiro,de livrar-me de Rebecca. Eu nãopoderia tê-la pendurada em meupescoço, afligindo-me com seus olhosestúpidos.

Você não tem ideia do que é ter umaaberração como irmã. Quero dizer, estouacostumada com isso. Para mim, o rostodela é tão familiar quanto o meu. Mas,quando as pessoas a veem pela primeiravez, bem, não se pode culpá-las porquererem vomitar. E isso não parecefazê-la querer tornar as coisas mais

simples para si mesma; ela nem mesmotenta conversar sobre coisas normais.Sei que as coisas não são normais lá emnossa casa, mas digo a ela para aomenos tentar. Se você a ouvisse,entenderia isso bem depressa. Mais quetudo, eu falo para ela não ser tãofechada, para arrumar coisasinteressantes para fazer. No entanto, elacontinua aprisionada nessa coisa toda.Ela só precisa ser um pouco maisparecida comigo e parar de ficartremendo à minha sombra.

Na hora do almoço, eu já estava fartade vê-la arruinar tudo, e era um alívioseguir o restante do pessoal até a cantinasem ela por perto. Na fila, comecei a

falar com Daisy e Samara, as quaisreconheci de uma das aulas. Eu estavatão empolgada que só quando cheguei aocaixa é que me dei conta de que oalmoço não era grátis e de que eu estavaempatando a fila, então fingi procurardinheiro no bolso. Samara, que estavalogo atrás de mim, ofereceu-me 1 libra e50 centavos emprestado. Espero que elase esqueça de pedir que eu devolva.Quando nos sentamos à mesa plásticaredonda para comer, elas meperguntaram o que havia de errado comRebecca. Eu sabia que tinhamcochichado sobre isso. Penseirapidamente no que dizer. Eu nãoentendo por que Rebecca tem de ser tãoconstrangedora para mim. Por que

sempre tenho de explicar tudo? Nãofalei nada do que pensei. Disse apenasque ela tinha um rosto engraçado. Fimda história.

— Ela sofreu algum acidente? —perguntou Samara.

— Não. Nada disso. É uma síndromeque a faz parecer um pouco estranha, sóisso.

— Ah! — Samara e Daisy seentreolharam e não precisei explicarmais. Não lhes falei do que Vovócontara a mim e a Reb quando éramospequenas a respeito de como as coisaspodem dar errado na maneira como osossos da face se formam quando se está

dentro da barriga da mãe.

— Mas está tudo bem. — Eu nãoachava que elas estivessem convencidasde que Rebecca era mesmo normal(bem, droga), e pude ver Daisy chutandoSamara por debaixo da mesa. Masfalavam de outras coisas e meconvidaram para ir a um pub na sexta-feira, e achei que tudo bem. Elas vãotoda semana. Aparentemente, é bastantefácil entrar num pub sendo menor deidade se você tiver uma identidadefalsa. Eu disse que não tinha e elasprometeram arranjar uma para mim.Craig, o garoto alto, de cabelos escuros,bonitinho, mas não muito falante,conhecia alguém que faria isso por 5

libras. Cinco libras era muito dinheiro,mas eu podia pegar da bolsa da Mãe.Geralmente, eu não ousaria, mas teria decorrer alguns riscos se quisesse ter umavida. E se ela notasse, eu não assumiriaa culpa.

Esquecera-me de guardar um poucodo almoço para Rebecca, mas ela nãodisse nada, e eu também não; depois daescola, eu iria com Samara à casa deDaisy e Reb teria de voltar sozinha paracasa. Mas primeiro eu precisava fazê-laprometer que me daria cobertura.

É incrível ir a uma casa normal. Nóssabíamos que elas existiam, Vovó nosmostrara, mas eu me esquecera de comoé não ter de arrastar-se na ponta dos pés,

não ter de ser o menor e mais silenciosopossível. Os pais de Daisy estavamambos trabalhando, então nós subimosdireto para o quarto. Ela tinha suaprópria TV, seu próprio banheiro e tudoera amarelo e branco — as cortinas, asroupas de cama, tudo combinava. Porum momento, fixei meu olhar. Eu queriatocar cada coisa: acariciar os bichos depelúcia que ela mantinha alinhados numaprateleira, experimentar seus sapatos epular em sua imensa cama com dossel.Daisy colocou uma música, e nósentramos no Facebook. Eu não podiaacreditar que ela tinha seu própriocomputador também. Elas criaram umaconta para mim, foi um poucoconstrangedor admitir que eu não tinha

uma, mas não disseram nada, e eu asolhava com muita atenção enquantousavam o computador, tentando aprendero mais rápido possível. Daisy tirou umafoto minha com seu celular e a colocouno meu perfil. Eu adicionei as duas, eagora era só esperar as solicitações deamizade. Elas fizeram minhas unhas etiraram minha sobrancelha, rindo,enquanto eu gritava de dor, diziam queeu estava bonita. Eu nunca me divertiratanto em toda a minha vida.

Só quando Daisy me perguntou comoera ser filha de um presbítero é quefiquei um pouco desconfortável.

— Ah, eu não sei… Normal, eu acho.

— Sério? Você tem que, tipo, rezar otempo todo? Ir à igreja todos os dias?

— É mais ou menos assim… mas, àsvezes, nós não vamos. — Não contei aelas que nós nos escondíamos na cama ebrincávamos de ser invisíveis. Graças aDeus, Samara mudou de assunto.

— Craig gosta de você.

Eu estava explodindo por dentro. Eleera definitivamente o cara mais legaldesse ano e era bonito. Mesmo!

— Como você sabe? — perguntei,tentando não parecer incomodada, massentia que estava corando. Eu tinha delidar com aquilo.

— Ele disse que você é uma gracinha.

Bem, eu não tinha certeza de queaquilo era mesmo tão bom assim. O querealmente queria dizer? Gracinha comoum cachorrinho, um gatinho?

Daisy pareceu desconfortável.

— Ele nunca namora ninguém, então,você sabe, não crie expectativas.

— Ah, sim, claro.

Ela mudou de assunto.

— Como era estudar em casa? Nãoera estranho?

— Às vezes era um pouco chato.Éramos apenas Rebecca, mamãe e eu.

— Eu pensei que você se encontrassecom todos os outros que estudavam emcasa. Era o que minha prima fazia. Elatinha um monte de amigos.

— Ah, sim. Nós fazíamos issotambém. Claro. — Seria um monte dementiras para contar. Então me dei contade que tinha de ser cautelosa com o quedizia.

— O que você está achando daescola?

— É bacana. Eu acho que eu vougostar, sim. Todo mundo é muito legal.

— Bem, os professores são legais.Sua irmã pareceu um pouco chateadaquando nós a deixamos sozinha. Ela

poderia ter vindo junto.

— Não, acho que não, ela não iaquerer mesmo. — De jeito nenhum eudeixaria Rebecca queimar meu filme.Ser gêmea já é chato, mas Rebecca eramuito maçante.

— Você vai ao pub na sexta-feira,então?

— Talvez, vou ver.

— Você tem de ir. O Craig estará lá— disse Samara.

Eu definitivamente tinha de ir. Era sóquestão de conseguir escapar.

Quando finalmente cheguei em casa,percebi que Rebecca de fato me dera

cobertura, então eu ignorei o olhardesconfiado de meus pais e agi como senada tivesse acontecido. Eu arrancara oesmalte das unhas enquanto caminhavade volta para casa, deixando uma trilhade lascas de esmalte atrás de mim, comona horrível história que Vovó nos leraalgumas vezes. É legal o trecho em que amenina empurra a bruxa para dentro doforno. Rebecca e eu gostávamos umbocado disso.

Era noite de oração e não havia comome esquivar. Acredite, eu estavacansada. Nós nos sentávamos no salãocongelante da igreja, tremendo.Roderick, meu pai, sempre dizia que nãohavia fundos o bastante para aquecer

adequadamente o local. Eu olhava paraos outros. Era um bando patético —umas poucas velhas corocas e algunsoutros do fã-clube dele. Todos com seuhálito fétido, cabelo ensebado, olhosvidrados e distantes, como se alguémlhes tivesse golpeado a cabeça com umafrigideira. Enquanto eu, sentada,desesperada, tentando não ouvir o quemeu pai dizia, pensava em como fariapara escapar na sexta-feira. Euprecisava de algo novo para vestir ecogitava a caixa de donativos. Eraimpossível que na nova pilha de coisasque chegara não houvesse algo que meservisse. Teria de procurar mais tarde,quando todo mundo tivesse ido dormir.Aposto que a mãe de Daisy a leva para

fazer compras quando ela quer algonovo. Minha mãe nunca compra nada.Ela não faz nada novo, e ponto final. Elaestava sentada, com os olhos bemfechados e a cabeça baixa, vestindoroupas que pareciam feitas para umaidosa. Era desconcertante vê-la tãomaltrapilha. Rebecca e eu fazíamos aomenos algum esforço, mesmo que paraRebecca tudo que importava era queestivesse limpa. Às vezes, quandoqueriam nos punir, trancavam obanheiro, mas eu sempre dava um jeito.De jeito nenhum eu sairia por aí como setivesse mergulhado a cabeça numafrigideira cheia de óleo.

Depois das orações, os cânticos e as

curas, São Roderick ia ao encontro dosfiéis e os cumprimentava. Ao contráriode minha mãe, ele gostava de pavonear-se, e eu tinha de ficar ao lado dele, todacheia de sorrisos, enquanto as pessoaselogiavam seu velho e chato sermão.Bocejos.

Ele me agarrava pelo braço na voltapara a casa paroquial. Um poucoapertado demais.

— Bem, Hephzibah. Como foi a aulahoje?

— Bem, obrigada. — Eu tentavadesvencilhar-me, mas ele não medeixava ir. Eu ficava com o braçodolorido.

— Espero que você não torne umhábito voltar para casa tarde. Eu nãogosto nem de imaginar você sozinhaandando pelas ruas no fim da tarde. —Sua voz era tensa, esticada como um fiode arame.

— É perfeitamente seguro. —Discutir com ele não era coisa sensata afazer, mas, às vezes, eu não resistia. Euposso aguentar coisas, muito mais doque Rebecca jamais poderá.

— Da próxima vez que você estiverplanejando ficar até tarde, avise-me, eestarei lá para buscá-la.

Sim, nos seus sonhos, pensei. Mas,em vez de dizer, eu sorri e agradeci.

Com um pouco de sorte, ele estaria forana sexta-feira e eu poderia sairescondida.

Na cama, eu decidira que era hora demelhorar meu relacionamento comRebecca. Ela mal falara comigo aquelanoite, e eu sabia que era por eu ter saídosem ela. Sua aparência de cachorroperdido era tão irritante, mas eu tinha defingir que não percebera que havia algode errado.

— Você deveria ter ido com a gentehoje. Daisy e Samara são muito legais.Você teria se divertido.

Ela continuava em silêncio, o rostovirado para a parede, contorcida em sua

cama. Era tão magra que mal se notavaque ela estava ali.

— O que foi? Você não gostou daescola?

Nenhuma resposta. Dei um suspiromartirizado e rolei na cama, virando decostas, eufórica demais para dormir. Eumal podia esperar para ver meus novosamigos e Craig no dia seguinte.Lembrei-me da nota de 5 libras queprecisava encontrar antes de dormir etentei sugestionar-me a acordar bemmais cedo para esgueirar-me e dar umaolhada na bolsa da Mãe.

Rebecca

Depois

Quando acordei naquela manhã, aindaera janeiro. Ainda era o dia seguinte aofuneral. Hephzi continuava morta. Já sepassara mais de uma semana. Minhacabeça pesava como chumbo notravesseiro e minha garganta doía comose tivesse engolido arame farpado masainda assim eu tinha de levantar-me e irà escola. O semestre estava seiniciando, e, se eu fosse faltar, eramelhor desistir de uma vez por todas.Nós fingíamos que éramos normais e os

Pais estavam sempre me observando,assegurando-se de que eu estivesseandando na linha que me fora demarcadacomo uma rachadura no vidro; se euescorregasse ou tropeçasse, algo sequebraria. Eles nos obrigavam a manteras aparências, Hephzi e eu. Hephzisempre foi melhor do que eu nissotambém. Ela conseguia sorrir, piscar edizer exatamente o que eles queriamouvir, e assim fazer as pessoas seguiremseu caminho felizes por terem faladocom ela. Ela herdara essas maneiras doPai. Mas eu tive algo importante a fazerhoje. Bem quando eu estava prestes a irpara casa, logo depois do funeral,Daisy, uma das novas amigas deHephzibah, passou por mim e colocou

um pedaço de papel sobre o meu peito.Eu leria o bilhete e depois o rasgaria empedaços pequenos, que o vento seencarregaria de levar para longe.

Até setembro, a Mãe fora nossaprofessora e nos ensinara em casa. Elaera especialista em infelicidade e liçõesde doloroso silêncio, com lampejosmascarados de Matemática básica eInglês. Quando o inspetor de ensinodomiciliar vinha verificar nossodesempenho, mostrávamos que sabíamostudo. Entretanto, quando completamos16 anos, Hephzi exigiu que fôssemosmandadas a uma escola normal, para oEnsino Médio comum, que nospossibilitasse entrar numa universidade.

Fazia anos que ela pedia isso, e sua vozfoi crescendo, deixando de ser mansa,suave, e então, quando ela soube porintermédio da Sra. Sparks quepoderíamos ingressar no segundo grau,não pôde mais calar-se. O Pai tentou atodo custo persuadir-nos, assim como aspessoas da escola, mas pelo menosdessa vez as cartas estavam a nossofavor. Os professores tomaramprovidências e nos ajudaram a entrar.Era uma situação incomum, mas eles nosdariam subsídios para que pudéssemoscontinuar estudando. Eu estava feliz.Pensava que finalmente respiraríamos arfresco, longe da trilha séptica da Mãe.Estávamos morrendo por dentroconforme seguíamos os passos dela,

imóveis. Eu ansiava por ser livre, sóque, bem, eu não estava muita certa arespeito da escola. Sair de casa poderiaser bom, mas me deixava preocupada.Não era comigo mesma que eu estavapreocupada, mas com minha irmã.

A Mãe odiava a ideia de queestivessem nos fazendo um favormandando-nos para uma escola nobairro, onde nos matricularíamos noEnsino Médio. Porém, era tarde demaispara voltar atrás em tudo o que tinhamdito. A maioria dos jovens da regiãoestava lá, e aquela seria a oportunidadede experimentar algo novo, conheceralgumas pessoas, divertir-nos um pouco,que era o que a Sra. Sparks me dissera

quando esbarramos com ela no primeirodia em que deixamos a casa paroquialpara andar um quilômetro e meio pelaestrada que levava à escola. Hephzipensava naqueles que ela iria conhecer,aqueles que não frequentavam a igreja,pessoas que nunca tivemos a chance deencontrar — que eram a maioria deles.Mas nós os víamos comprandobatatinhas na hora do almoço, fumandosentados nos balanços, caminhando debraços dados pela cidade. Hephzicomeçou a olhá-los com inveja, e eu avia esperar por eles, e eu desejeiroubar-lhes sua perspectiva. Então, essepensamento escapou de minha mente,como uma onda de esperança, e penseique poderia encontrar um amigo ali

também, alguém, além de Hephzi, comquem eu poderia conversar. Mas issonão funcionou como esperado.

Craig estava esperando na área derecreação, como dissera no bilhete. Eleestava sentado num balanço, inclinadopara trás, olhando para a extensão docéu. O ar estava branco, branco com frioe branco com gelo, e eu apertei o casacoem torno de mim conforme pisavafirmemente no chão morto e congelado,como o coração do Pai. Não fosse porCraig, o lugar estaria vazio. Ninguémnos veria. Enquanto eu caminhava atéele, lutando contra um vento que levavalascas de frio até meus ossos, meu corpodoía, e eu vacilava. Eu poderia ter me

virado e voltado atrás. Eu nem deveriaestar ali, mas Craig me vira e agoravinha em minha direção. Eu o segui até apequena casa de boneca do playground eme esmaguei, pequena e apertada numcanto. Ele acendeu um cigarro, e eu meafastei mais ainda. Alguém picharapalavras ofensivas na mesinha que haviaali, e eu olhava para elas enquantoesperava que ele falasse primeiro; eunão tinha nada a dizer. Quando chegou àmetade do cigarro, ele começou a falar,sua voz era áspera.

— Você vai nos contar o queaconteceu, então?

Não respondi. Por que eu deveriacontar-lhe alguma coisa? Ele não era

meu amigo.

— Olha, tudo que quero saber é comoela morreu.

Novamente não respondi. Era issoque ele queria, interrogar-me sobre aminha irmã morta. O que mais eupoderia esperar? Ela não era da contadele. Eu me movi, ainda em pé, prontapara ir embora. Deveria estar na escola,na aula de Física. Seria um inferno paramim se alguém contasse aos pais que eunão estivera lá.

— Aonde você vai?

— Física.

— Você pode esperar um pouco?

Do lado de fora da casa de boneca,olhei para ele, sentado ali, com seugorro, tragando o cigarro até o filtro, aspernas longas encolhidas à maneira deuma sanfona num espaço pequeno, euimaginava por que Hephzi gostara dele.Eu sabia que estava doente. Minhacabeça doía e a garganta estavaestranha. Dentro do velho casaco, euestava suando e tremendo. Enquanto mevirava para marchar de volta àcivilização, eu o ouvi chamar meu nome,mas não respondi. Ele não era nada paramim.

Quando alcancei a escola, sabia quealgo realmente não estava bem. Desabeino corredor oposto às mesas da

recepção não me importando com quemestivesse me vendo ou encarando. Osinal para a segunda aula soou, e péslentos calçando tênis e botas sujaspassavam por mim. Eu os via seguir eimaginava se alguém iria parar. Noentanto, foi um par de saltos altos quehesitou e parou.

— Está tudo bem aí?

Eu olhei através de minha franja lisa eoleosa, sem me importar de não havertomado banho aquela manhã. SemHephzi para atormentar-me, eu podia serfedorenta como bem gostava.

— Você é Rebecca, não é?

Eu consegui apenas acenar com a

cabeça.

— Espere, deixe-me chamar alguém.

Os saltos soaram indo embora evoltaram com mais um par de pés, dessavez um pouco mais delicados.

— Vamos, querida, mexa-se. — Mãosfortes me seguraram e me colocaram navertical, e eu pendi nos braços zelosos.Ele me levou até uma cadeira deplástico para além da portinhola darecepção e me sentei, tremendo eesperando o que iria acontecer. Eununca protagonizara um drama assimantes. Na verdade, geralmente faziaquestão de permanecer bem longe dosholofotes. Alguém estava sendo

chamado. Era a enfermeira da escola,que, abrindo passagem, deu uma olhadaem mim e disse:

— Chamem os pais.

A Mãe veio ao meu encontro. Ela nãotinha carteira de habilitação, então veiocaminhando, o que levou umaeternidade. Eu continuava sentada narecepção, não me importando com quemficasse me encarando, e a enfermeiravinha de vez em quando dar uma olhadaem mim. Ela me dera um copo plásticocom água e dois comprimidos deparacetamol, que não ajudaram em nada.Depois de mais ou menos uns 20minutos, Craig se esgueirou e entrou,evitando olhar em minha direção, como

sempre fazia.

Quando a Mãe chegou, a enfermeirareapareceu.

— Rebecca está com febre alta eprecisa de repouso absoluto, senhoraKinsman. Eu marcaria uma consulta comum médico se fosse a senhora.

A Mãe acenou com a cabeça. Elaparecia irritada.

— Vamos, Rebecca. Vamos paracasa.

— Ela está muito fraca, acho queprecisará de ajuda para chegar até ocarro.

— Carro? Eu não vim de carro. Ela

pode caminhar. O ar fresco lhe farámuito bem. — Ouvi minha mãe rir, numafrágil explosão, e eu sabia que aquilosignificava que ela não estava disposta aseguir as recomendações de umabenfeitora qualquer. Esse era o nomeque eles davam a pessoas como aenfermeira da escola ou os médicoslocais ou o professor. Quando eu eracriança, uma ou duas vezes algumaspessoas foram à casa paroquial, comoassistentes sociais ou médicos oupessoas interessadas em saber como euestava, não sei muito bem. Eles falavamsobre mim, e ele explicava como eu eratímida e lenta e dizia que faziam omelhor que podiam por mim. Eu estariasentada nos joelhos dele, enquanto todos

me encarariam com um olhar distante,ouviriam-no falar, sorririam e partiriam.O Pai explicou que não deveríamosnunca conversar com pessoas comoaquelas e que ficaríamos em apuros sefizéssemos isso. Ele dizia que ninguémgostava de crianças mentirosas e queestas eram severamente punidas. Nuncaacredite num benfeitor, dizia ele. Nãoacredite no rosto deles, porque essesrostos são tão atraentes quanto umatorta.

— Você mora na igreja, no final dobairro, não é mesmo? Você pode ligarpara alguém e pedir uma carona?

— Acho que não. Agora vamos,Rebecca.

Meus pés começaram a hesitar e asparedes pareceram rodar. A enfermeiradeu um passo à frente, segurou-me paraque eu não caísse e me conduziu devolta à cadeira.

— Senhora Kinsman, eu entendo quesejam tempos difíceis, mas Rebeccarealmente não está bem. Ela não está emcondições de caminhar por toda aavenida Principal. Eu pedirei a Lindaque chame um táxi para vocês.

A recepcionista fez a ligação. Euestava tão mal que nem me amedronteidiante das consequências que meesperavam em casa quando o Pai nosvisse chegando num táxi. A Mãe nãodisse palavra durante o caminho; nem

precisava mesmo, seu silênciocongelava o ar entre nós. Ela me ajudoua sair do carro e pagou o taxista antes dearrastar-me para dentro de casa, olhandopor sobre os ombros.

— Onde ele está? — murmurei.

— Fazendo visitas.

Assenti com a cabeça e subi asescadas, caindo na cama totalmentevestida.

Ela não me trouxe nada para bebernem nenhum analgésico. Eu duvidavaque houvesse algum em casa e sabia queela não ligaria para o médico. Eles nãogostavam que pessoas viessem à nossacasa a não ser que fosse por algo

relacionado à igreja, quando então asrecebiam no primeiro andar e podiamusar o bule elegante da Vovó.Ocasionalmente, eu me arrastava até obanheiro e bebia água da torneira.Durante três dias fiquei oscilando entretremores e suadouros. No ápice dafebre, no meio de uma dessas noites, viHephzi sentada ao pé de minha cama.Ela sorria e me falava para ser forte; edepois, acenando alegremente, afundavano chão, engolida pelo carpete. Estendia mão para ela, para puxá-la de volta,mas estava muito fraca e lenta. Euimplorava outra vez para que Hephzivoltasse para mim, gritando-lhesilenciosamente, no entanto, ela partira,e eu caí novamente sobre os lençóis

encharcados de suor, e a paredecomeçou a chorar.

Enquanto estive lá esperando quealguma coisa acontecesse, ele veio.Meus olhos se abriram rapidamente,saindo assustados de um sonho, e viramo Pai na frente de nosso guarda-roupa,segurando os poucos pertences deHephzi. Imóvel como uma estátua,deixei minhas pálpebras se fecharem equis tornar-me invisível. Ele enterrou acabeça nas roupas dela, gemeu,choramingou, murmurou e, em seguida,levou o pacote do quarto, sem ao menosolhar para mim. Eu estava feliz por játer escondido as coisas dela de que eumais gostava, a blusa azul, o colar de

prata. Um pequeno frasco de amostra deperfume que uma mulher lhe dera apósela ter se encantado com o cheiro. Se elecomeçasse a aparecer assim, eu teria deser ainda mais cuidadosa. Nenhum lugarera seguro.

É difícil esconder-se aqui. Essa era arazão pela qual brincávamos de jogo doinvisível. Os Pais tinham também seusdivertimentos e jogos, e, por um tempo,eu era um bom espécime para elepraticar, mas, quando meu rostopermaneceu inalterado,independentemente de seus esforços, elepercebeu que eu não era um exemploadequado de seu poder e que ele nãopodia realizar milagres comigo apesar

de toda sua publicidade. Então começoua deixar-me com Vovó novamente, maseu podia lembrar-me de como osserviços especiais dele meaterrorizavam. Eu não gostava de veroutras crianças chorarem enquanto elelhes exorcizava os demônios. Eu queriaesconder-me. Como um charlatãomedieval, ele viajava pelo país,vendendo uma fé falsa e o elixir da vidaeterna. No carro, a caminho de casa, aMãe contava seus ganhos, e ele batia novolante com o punho e gritava: “Aleluia!Glória a Deus!”.

Seu demônio ainda aparece nos meussonhos, e eu grito por libertaçãoenquanto ele me enlaça, me toma de

assalto e me quebra ao meio.

Por fim, alguém deu um basta à suaatividade escusa, mas ele ainda ofereciaseus serviços na calada da noite. Nessashoras é que brincávamos do jogo doinvisível e fingíamos não ouvir os gritosque vinham do andar de baixo.

Finalmente, eu me sentia melhor eprecisava comer. A manhã já estavaquase no fim. Vesti meu cardigã e descias escadas tateando. A luz do sol queatravessava a janela do cômodo faziadançar as estampas do tapete e do papelde parede. Eu comeria alguma coisa edepois iria para a escola. Já antes damorte de Hephzi, eu decidira estudar

muito e pensava em dar tudo de mim nosexames para obter meu passaporte parafora da casa paroquial. Eu não poderiaviver com eles pelo resto da vida, eaquela era a forma de escapar. Agora,os olhares acusatórios tornavam aindamais óbvio que eu tinha de ir embora.

Sem ninguém por perto, fiz torradas etomei suco das laranjas que eu,tremendo, tirara da valiosa sacola decompras que carregara desde a vendaaté em casa. A margarina deixara umgosto rançoso no pão, que fora quasecarbonizado na torradeira, mas comimesmo assim — não importava. Emnossa casa, comida era uma necessidadee nunca um luxo. Eu observava a velha

fórmica e o revestimento descascado dochão. O velho fogão sujo e as paredesencardidas encontraram meu olhar.Mesmo que eu tivesse um amigo, trazê-lo ali estaria fora de cogitação. Hephzitentara fazer de nosso quarto um lugarbacana; ela contrabandeara uma lata detinta da mãe de Craig quando ela estavareformando a sala de estar e pintou meiaparede de verde-pálido. Foi no outono.Ela não conseguiu terminar antes demorrer. Eu não me encarregaria dessatarefa, não chegaria nem perto dasparedes a menos que fosse obrigada.Enquanto eu mastigava a torrada,imaginava onde estariam os Pais. Aporta batera havia mais ou menos umahora. Ninguém subira para me ver

aquela manhã, e eu sabia disso muitobem, pois teria notado. Se meapressasse, chegaria na quarta aula.Matemática. Eu não podia me dar aoluxo de ficar para trás na minha matériapreferida e sabia que devia havertoneladas de conteúdos de que precisavame inteirar.

Após o almoço, eu estava cansada eme refugiei na biblioteca. Aquele setornou o lugar onde eu ficava na maioriados dias, e, assim que entrei, obibliotecário levantou o olhar e sorriu.

— Rebecca! Fiquei pensando poronde você andava. Você está bem? —Seu calor me envolvia como um

cobertor, e eu assenti e sorri de volta,sentindo meu rosto engraçado. Euesperava parecer vagamente normal.Uma vez pratiquei no espelho dobanheiro da escola, procurando um jeitode mexer a boca que fizesse parecermenos medonha, mas,independentemente de quanto eu meesforçasse, o meu amontoado de dentessempre tomava conta de minhaexpressão, e eu não conseguia disfarçaro antigo cemitério que se escondiavergonhosamente atrás de meus lábios.Eu sempre sorria com a boca fechada efalava o mínimo possível.

Fui para o fundo da biblioteca, pararetomar de onde parara, a meio caminho

da letra C. Eu estava determinada a lertodos os livros de todas as prateleiras,mas aquilo estava me tomando muitotempo. Eu não podia levar os romancespara casa, e o único momento em quepodia ler era durante a hora do almoço,na biblioteca, ou num tempo livreatípico. No entanto, eu estavadeterminada a não desistir. Quando euera transportada para o Morro dosVentos Uivantes ou para o centro de LosAngeles, ficava feliz, meu mundorecuava e, por 40 minutos, a realidadeficava suspensa em algum lugar acimada escola, como uma bexiga pretaesperando o sinal para estourar. Agoraeu estava terminando a leitura de umRaymond Chandler que, no tempo em

que estive doente, me perguntava sobreo final, inventando versões alternativasda história para manter a mente entretidaem seus momentos mais lúcidos. Hephzinão gostava de ler tanto quanto eu, mas,às vezes, à noite, quando não conseguiadormir, ela me acordava e me pediapara contar-lhe uma história, e eucontava sobre Emma ou Villette, e emseguida voltávamos a cochilar,contentes. Hephzi não teria gostadodesse que eu estava lendo. Ela gostavade romances e finais felizes.Assassinatos e mistérios não eram seuestilo.

Quando eu estava saindo dabiblioteca, a Sra. Larkin interrompeu

meus passos.

— Olhe, Rebecca! — Ela seguravaum panfleto. — Eu vi isso e na horapensei em você! É uma escola de verão.— Vendo minha expressão, elaempurrou mais firmemente o panfleto emminha direção. — Aqui, pegue. É algo ase pensar, pelo menos.

Peguei o folheto lustroso e olhei paraa fotografia, meninas e meninos sentadosjuntos num gramado verde sob uma faia.Os rostos eram brilhantes como seufuturo, e no colo deles havia livrosabertos. Eu não os reconheci.“Cambridge Summer Schools”, opanfleto dizia, “para estudantestalentosos e superdotados.” Devolvi-lhe

o folheto balançando a cabeça.

— Pegue, pense a respeito —encorajou-me. E eu, ao ver odesapontamento enrugar-lhe o rosto porminha recusa, coloquei a coisa no meubolso. Eu o jogaria fora depois. Nãohavia por que sonhar; o folheto não eramais que um sapatinho de cristalentregue à irmã feia. Eu nunca meencaixaria naquele lugar mesmo se medeixassem ir, o que era em si um contode fadas. A Sra. Larkin o fez por bem,então dei meu sorriso discreto e fui paraa aula. Enquanto o professor fazia achamada e dava recados, tirei o folhetodo bolso. Não resisti ao papel brilhante,aos sorrisos e aos rostos inteligentes. Os

cursos eram todos para alunos do EnsinoMédio, mas o que fora sublinhado pelaSra. Larkin saltou-me aos olhosimediatamente. Entretanto, eu nãoestudava Inglês. Eu fazia as matérias queele escolhera, coisas que nuncaentenderia. A ideia de estudar literaturapor duas semanas inteiras descarregouum misto de medo e animação no meucoração, como um pequeno choqueelétrico. Coloquei o panfleto no meuarmário ao final da aula; eu o verianovamente no dia seguinte.

A vida em casa sem Hephzi eradifícil. Ela era o cimento que seguraraos tijolos de nossa família. Se é que erapossível nos chamar assim. Eu não gosto

da palavra, não para nós, dizê-la é comotentar engolir uma pedra. O Pai, dealguma forma, amava Hephzi. Elaconseguia fazê-lo rir de suas piadas, eele atendia aos caprichos dela eorgulhava-se de sua vivacidade ebeleza.

Lembro-me de que cantávamos hinosquando tínhamos 11 anos. Alguém docoro da igreja sugeriu quearrecadássemos dinheiro para acaridade cantando bairro afora. Cançõesnão eram normalmente permitidas, nãopara nós, mas o maestro do coroinsistira.

— Hephzibah tem uma voz linda,pastor, ela poderia fazer um pequeno

solo. — Ele a ouvira cantar, enquantopolíamos o altar num sábado. Ela taparaa boca muito tarde, percebendo seu erroapenas quando ele parara de martelarseus acordes no órgão para ouvi-la.Esperávamos que ele não fosse contar,mas ele contou.

Hephzi virou-se para o Pai, radiantede vontade e animação.

— Por favor, Papai, farei o meumelhor, eu prometo, não odecepcionarei.

Ele teve de dizer sim, não pôderesistir, especialmente com o coro todoo observando e a Sra. Sparks assentindocom tanto entusiasmo perto dele, e assim

tivemos nossa chance. Ele andavaconosco — eu seguia atrás, segurando alata para o dinheiro, e Hephzi cantavacomo um anjo em todas as casas em queparávamos.

— Que maravilhoso! Que encantador!Que voz linda! Ela não é adorável? —diziam e colocavam os seus trocados emminha lata. A despeito de si mesmo, oPai se enalteceu e se regozijou em suaglória. No entanto, isso nunca se repetiu,mesmo ela tendo implorado por outrachance. A música a levaria ao pecado,esse era o ponto de vista dele, e toda acantoria cessou exceto pelos salmos quecantávamos na igreja.

Agora, com a partida de Hephzi, ele

se tornara mais rabugento que nunca. Eamargurado. Essa raiva ácida e afiadaera dirigida a mim, aquela quesobrevivera. Aquela que deveria termorrido.

Culpavam-me por trazer o holofotepara nossa casa, tornando mais difícilpara eles fazerem o que bementendessem. O Pai me odiava porque acoisa de que ele gostava de cuidar,como um abutre ganancioso, partira, eeles agora precisavam tomar cuidado,ser mais vigilantes, caso outrasperguntas fossem feitas. Mas eu meculpo também. Eu deveria tê-la salvado.Era o meu dever.

— Então você finalmente se levantouhoje — vociferou ele quando chegueiem casa de volta da escola. Eu tinha devoltar andando, é claro, e me debatia, nofinal da tarde, escorregando em placasde gelo enquanto meus sapatos seencharcavam. Eu não almoçara e tomaraapenas alguns goles de água dobebedouro ao lado da enfermariadurante o intervalo da tarde. Meusjoelhos tremiam. Tudo o que eu queriaera arrastar-me até minha cama.

Em resposta, assenti, melhor do queolhá-lo e encontrar seus olhos. Muitasvezes apenas a minha presença erasuficiente para enraivecê-lo.

— É melhor ir para a cozinha e ajudar

a sua mãe. — Ele me dispensarafacilmente e me afastei logo. A Mãeestava esvaziando uma lata de cenouraem conserva numa panela. Um pedaçode carne borrachudo e seco aguardavanuma travessa. Ela sempre deixava acomida passar do ponto.

— Posso ajudar?

— Ponha a mesa. — Ela desviou oolhar de suas tarefas e pude perceber oquão envelhecida ela parecia, como umdesses trapos miseráveis penduradosnas torneiras. Seus olhos eram domesmo azul pálido que os meus, da corda aurora num céu de inverno, e eu meperguntava se ela nunca se aperceberadisso. Hephzi tinha grandes e

encantadores olhos castanhos e cíliostão longos que tremulavam como asasem seu rosto. Você nunca teriaadivinhado que éramos gêmeas, eHephzi teria ficado contente com isso.Quando lhe convinha ela podia dizer quenem nos conhecíamos.

Ela me belisca quando penso coisasassim. Afasto seus dedos e lhe digo paranão negar; ela sabe que é verdade. Eutentaria fazê-la falar comigo mais tarde.Se ela estivesse realmente ali, então eu aqueria ali de verdade, não apenasouvindo e desaparecendo de novo,deixando-me sozinha.

Comemos em silêncio. Mastigueiminha comida cuidadosamente, tentando

deixá-la mais fácil de engolir, mas eupodia sentir pedaços de carne dura ecartilagem alojando-se nos cantos tortose estreitos de minha boca. Seriaimpossível removê-los. Para mim, eradifícil comer com a boca fechada; eradifícil ser invisível. Frequentemente, oPai me olhava com desgosto, prontopara o bote. Ele me fitava com os olhosfixos, de um azul tão escuro que eraquase preto, e eu tentava ser maissilenciosa, não bater os talheres oubeber ruidosamente e mastigar sem fazerbarulho. Afinal, decidi engolir a comidasem mastigá-la para evitar rosnar, e eupodia ver a Mãe fazer o mesmo,cortando pedaços de carne tão pequenosque podiam escorregar pela garganta

sem serem percebidos. Aquela seriauma das noites dele, dava para sentir noar.

Quando ele bebia, Hephzi e eugeralmente ficávamos aliviadas. Àsvezes, significava que podíamosdesaparecer, ir lá para cima, cochichar edar umas risadinhas em vez de sermosforçadas a permanecer sob seu olharvigilante, enquanto líamos trechos dasescrituras que ele preparara durante odia e éramos interrogadas sobre osprincípios obscuros de sua fé. Eu nãoacredito no Deus dele. Ele nunca veioajudar a mim ou a minha irmã, e essa é aprova de que preciso. Assim como oamor. Bem, se Deus era amor, ele

morrera com minha avó. Como sesoubesse, de alguma maneira, dos meuspensamentos perigosos, o Pai lançava asperguntas mais difíceis em minhadireção, torcendo para que eu falassealgo de que fosse me arrepender. Então,Hephzi começava a chorar, ela odiavavê-lo fazer isso comigo, e isso às vezesadiava nossa pena. Por isso, quando elese ocupava de sua garrafa, nós quasesempre nos sentíamos seguras. Quasesempre.

Ir para a cama cedo era uma boaideia. Se eu tivesse a chave do meuquarto, teria me trancado. O Paiguardava a chave. Mas pelo menos elenunca entrara. Ele sempre cuidava de

seus negócios sujos lá embaixo, como seisso fosse normal. Empurrei a cama deHephzi contra a porta esperando que elanão fosse ficar brava.

— Posso fazer isso, Hephz? Eu nãoquero que ele entre — cochichei.

Não houve resposta. De novo.

Então fingi que ela estava brincandode invisível e entrei na brincadeira.Continuamos assim até eu ir dormir.

Hephzi

Antes

Isto é o que penso do colégio até agora.Primeiro, as atividades são chatas,principalmente os deveres de casa.Ainda bem que Rebecca está fazendo omeu por mim, embora eu possa ver queela também odeia. Em segundo lugar, osprofessores são chatos e não têm ideiado que é ser jovem e querer se divertir.Eles falam por horas e horas e horas, oque é basicamente meu conceito detortura. Por último, meus novos amigossão fantásticos, e nunca me diverti tanto

em minha vida. Aleluia!

Bem, na maior parte do tempo, sim.

A coisa é que você precisa tomarcuidado com o que fala por aqui.Quando estou com Reb, posso dizer oque quiser, e ela sabe quase tudo o quepenso sem que eu precise abrir a boca.Mas aqui! Há coisas que você precisapensar, coisas que você precisa dizer.Coisas que definitivamente não podedizer, pois se disser todos irão odiá-lo.

Você precisa pensar que Daisy é amenina mais bonita do Ensino Médio e amais popular. Você tem de pensar queela certamente terá o papel naapresentação de Natal da escola. Eu

gostaria de fazer um teste, é um musical,mas sei que não tem sentido.

Você também tem que rir dosprofessores e zoá-los. É bem engraçado,mas eu não esperava isso.

Você realmente não pode começaruma discussão na sala de estudo.Descobri isso outro dia, no final daprimeira semana, quando eles estavamfalando de um menino, Sam, que euachava um tanto simpático. Ele mepergunta todo dia como estou e diz quegosta de minha roupa, mesmo eusabendo que ele sabe que é a mesma deontem. Bem, eu pensei que talvez eleestivesse interessado em mim, atéSamara me contar mais sobre ele.

— Sam conheceu um carinha daescola, no centro, e eu os vi juntos. Ele éadorável.

— Qual Sam? — Pensei que elaestivesse falando de outra pessoa, outroamigo, que eu ainda não conhecia.

— Você conhece Sam Roberts? Donosso grupo de estudos? Eu conheci onamorado dele no sábado passado.

— O quê? Ele é homossexual?Mesmo? Isso é nojento!

Minha voz saiu alta e todos ficaramquietos. Eu não sabia o que dissera deerrado. Alguém riu do outro lado dasala.

— O quê? Você é homofóbica? —perguntou Daisy, perplexa. Eu não sabiao que era isso e olhei para Samaraesperando por uma explicação.

— Você odeia gays? — disse ela,fixando os olhos nos outros.

— Eles são sujos, não são? Tipo,sabe, o que eles fazem é completamenteerrado. É pecado. — Eu ouvira meu paidizer aquilo. Eu não atentava muito aoque ele dizia, mas captara aquilo. Eudeveria ter tomado cuidado antes derepetir as coisas que ouvira na igreja oude meu pai à mesa, mas as palavrassaíram antes que eu pudesse me lembrarde manter a boca fechada. Vasculhei asala procurando por Rebecca, para

saber se ela me ouvira, esperando queme tirasse da enrascada, mas, comoestávamos na escola, isso significavaque estávamos separadas.

— Meu Deus! De que planeta vocêveio? — Daisy zombava de mim. Elasacudia a cabeça e me fitava com omesmo olhar que lançava aos que eramestranhos ou estúpidos ou feios. Eu ri ebusquei os olhos dela.

— Ó meu Deus! Era só umabrincadeira! — gritei. — É claro quenão odeio gays! Eu só estava brincando!

Ninguém parecia convencido.

— É claro que eu sei que Sam é gay,ele mesmo me contou. O namorado dele

é mesmo bonito, então?

Samara acenou com a cabeça e meajudou a sair da situação, descrevendo orapaz, e eu soltei uns ah e oh e respireialiviada enquanto minhas bochechasvoltavam à cor natural. Eu segurei alíngua dentro da boca pelo restante dodia e fiquei observando se estavamcochichando sobre mim. Fuiespecialmente simpática com Sam,querendo me assegurar de que todos mevissem falando com ele. Eu ainda nãoestava certa de que Daisy esquecera oque eu dissera, mas empurrei tudo issopara o fundo da minha cabeça junto comum monte de outras coisas com que nãoestava lidando no momento.

Eu gostava mesmo de Sam. Nãoestava fingindo. Ele era o oposto domal. Mais uma coisa sobre a qual opastor Roderick Kinsman estava errado.

De agora em diante eu pensaria antesde falar. Copiaria o que os outros faziame diziam e me misturaria.

Craig cabulara algumas aulas. Eu nãome atrevia, mas, sendo sua namorada, euprecisava experimentar. Eu nãoconseguira escapar da casa paroquialapenas para permanecer sentada numasala de aula o dia inteiro e ficarsuperentediada. Até mesmo Rebeccaodiava aquilo, mas o que ela querianunca vinha em primeiro lugar. Eu nãosabia o que ela queria, tampouco

imaginava como ela faria para escapardeles. Rebecca deveria estar meagradecendo em vez de ficar meignorando. Eu fizera meu melhor, masela era muito mal-humorada. Bem, eutinha novos amigos, então por que ligarpara ela?

Naquela noite iríamos ao pub. Euconseguira pegar uma nota de 5 libras nabolsa da Mãe. Ela não disse nada, masdeve ter percebido porque era o únicodinheiro que havia em sua bolsa. Craigme deu minha identidade falsa. Isso eratão legal. Vou me encontrar com Daisy,para nos arrumarmos, e ela disse que meemprestaria sua calça jeans nova daTopshop. Nós usávamos o mesmo

tamanho, e eu tinha uma blusa preta quepoderia usar com o jeans. Eu aencontrara no fundo de uma das sacolasde roupas entregues para caridade e alavei durante a noite na pia do banheiro,quando tinha certeza de que todosestavam dormindo. Tudo tinha de estarcerto. Apenas a logística para sair decasa era um pouco preocupante, mas eusupunha que, se fingisse uma dor decabeça e saísse de fininho, ninguémnotaria. Rebecca não falava nada, e nãofalaria nada naquele momento também.Ele sempre gostou mais de bater nela.

Então chegou a noite. Eu tinha mesmode achar um jeito de fazer Craig menotar. Apesar de Samara afirmar que ele

realmente gostava de mim, eu achavadifícil acreditar naquilo. Ele era tãolegal. Meu estômago estava revirado, eeu não sabia se dava umas risadinhas ouvomitava. Para me assegurar de queRebecca iria me ajudar, eu contei a elasobre meu plano secreto. Eu sabia queela não diria nada, mas pude ver seu arde reprovação.

— Você me dá cobertura? Promete?

Ela confirmou com a cabeça e eu deium rápido abraço nela. Eu sempreficava um pouco chocada quandopercebia o quão magra ela era. Pontasde ossos saltavam para fora de seusombros e de sua coluna, e, se euapertasse com força o suficiente, tenho

certeza de que poderia agarrar um deles.Por um momento, sentei-me na camadela e fiz um esforço.

— Olhe, vamos ser amigas de novo,Reb. Eu detesto ver você zangadacomigo.

— Tudo bem, Hephzi — sussurrouela. — Apenas tome cuidado, OK?

Eu assenti com a cabeça, saltei sobreela e a arrastei para o jantar. Estava tãoempolgada que não conseguia nemcomer — não que a comida estivesseboa —, e pareceu mais convincentequando pedi licença e disse que estavacom dor de estômago e de cabeça. O Paime encarava e pude sentir seus olhos em

minhas costas enquanto me dirigia parao quarto. Mas Rebecca me dariacobertura, eu podia confiar-lhe minhavida.

Eu corri todo o caminho até a casa daDaisy, então, quando cheguei lá, estavaofegante e suada. Não era lá muitocharmoso, mas eu tinha um tempinhopara resolver isso. Daisy riu quando viumeu estado, e eu não pude explicar,apenas ri também. Na verdade, enquantonos arrumávamos, passamos a maiorparte do tempo rindo. Eu comentei sobrequanto ela estava bonita, e então elasorriu, e deduzi que me perdoaradefinitivamente pelo fora com Sam, poisela arrumou meu cabelo, emprestou-me

seu jeans e uma blusa, e, no fim dascontas, a blusa da sacola para caridadenem foi usada. A que ela me emprestouera brilhante e tinha alças e realmentefazia parecer que eu tinha 18 anos. Deium grande sorriso ao me ver no espelho,e Daisy sorriu de volta. Nós bebíamosenquanto nos aprontávamos, e eu mesenti tonta, como se estivesse nocarrossel que vem à cidade uma vez porano. Nossa Tia Melissa me levou aliuma vez, mas, por alguma razão, nãoconsigo me lembrar se Rebecca foiconosco. Eu devia ter mais ou menos unsquatro anos de idade e ainda me lembroda emoção, dos gritos de alegria quandoos cavalos subiam e subiam como sefossem decolar e voar até o fundo

daquela noite de verão. No entanto,houve uma discussão terrível depoisdisso e eu nunca mais fui a um parque.Tia Melissa também não vem mais nosvisitar.

Quando saíamos da casa de Daisy eseguíamos para o ponto de ônibus, elateve de segurar meu braço por causa dossapatos de salto alto que me emprestara.Eu estava me segurando para não passarmal. Se isso acontecesse, arruinariatudo. Eu achava que não era nada legalvomitar em lugar nenhum, mas, comonunca bebera álcool antes, nãoimaginava que uma coisa dessas pudesseacontecer. Eu conhecia o estado do meupai quando ele bebia, o rosto e os olhos

vermelhos, o andar cambaleante, mas,quando Daisy me deu uma bebidaespumante, o gosto era bom, doce eviscoso, e nem imaginei que ficariabêbada tão rapidamente.

Daisy me dissera para ficar sóbria noônibus e tentei fazer o meu melhor, mas,quando desembarcamos no bairroseguinte, eu tive de vomitar em frente auma cerca. Espero que ninguém docolégio tenha visto. Foi bastantevergonhoso. Meu estômago se revirava,e expeli outro jato, mas tudo que puspara fora foi um líquido quente e bileverde. Tremendo, recostei-me no pontode ônibus, com um fio de suorescorrendo de minha testa e de meu

lábio superior. Daisy olhava para orelógio.

— Vamos! Todos já devem estar lá aesta hora.

Havia um DJ no pub naquela noite eaparentemente ele era bom. Eu não sabiamuito, mas Daisy não queria perder nemmais um segundo, então eu tive de segui-la, cambaleando, sentindo-me estúpidae, de certa forma, querendo ir para casa.Eu não lhe disse isso, ela já estavasuficientemente irritada comigo.Caminhamos até o pub, fazendo opossível para aparentarmos ter mais de18 anos. Uma multidão de fumantesestava reunida do lado de fora e eudesviava o olhar rápido para não

estabelecer contato visual com eles, noentanto, estava curiosa. Craig estavanuma das mesas, esparramado como umgato descansando ao sol do fim da tarde.Meu coração ribombava e pulava, asensação que tive no carrossel voltou eeu estava quase levantando voo de tantaeuforia. Daisy chamava Craig com umavoz sedutora — eu a conhecia e sabiaque estava fazendo charme —, e elelevantou a mão lânguida em nossadireção, com um cigarro pendendo desua boca e a sobrancelha levantada,numa expressão blasé.

Quando entramos, fui direto para obanheiro tentar retocar minhamaquiagem com o que tinha na bolsa. Eu

roubara um gloss numa drogaria eencontrara uma sombra numa dasgavetas de minha Mãe. Não consigo nemmesmo imaginá-la usando maquiagem,deve ser muito antiga. “Mulheres queusam maquiagem são prostitutas”, eraisso que ela dizia, então talvez a sombranem lhe pertencesse. Ou talvez usassevez ou outra, quando eram apenas ela eRoderick. Eu sei que ele gostava dessascoisas apesar de nunca admitir. Eu viraas fotos secretas dele. Samara veio meencontrar no banheiro. Ela me emprestouum pouco de perfume e me deu umabraço. Daisy lhe contara tudo o queacontecera.

— Pobrezinha! Eu também sempre

passo mal — disse, rindo. — Faz parteda diversão. Pelo menos você melhorourápido.

Samara me contou que seus pais nãosabiam que ela bebia e por isso tinha deser cautelosa ou seria punida parasempre. Concordei com a cabeça,dando-me conta de que tinha muito maisem comum com Samara do que com osoutros. A mãe e o pai dela pareciamrigorosos demais, não como os meus,mas também bastante difíceis.

Nós compramos Coca-Cola eencontramos um lugar para sentar. Daisyestava conversando com Craig, mas eunão fui encontrá-los. Em vez disso,Samara e eu ficamos em um canto

fofocando e cochichando sobre Daisy, eela me contou que Daisy sempre gostoude Craig. Meu coração se entristeceu.Daisy era a garota mais bonita no pub,com seus longos e lindos cabelos loiroscaindo-lhe pelos ombros, os quais elachacoalhava enquanto ria e flertava. Nósa observamos em silêncio por ummomento e eu suspirei e olhei paraminha Coca-Cola. Eu tinha de fazer aCoca-Cola durar até o fim da noite.Depois da passagem de ônibus e dabebida, só me restavam 60 centavos nabolsa. Juntara aquele dinheiro durantetoda a semana anterior, economizandoum pouco aqui, um pouco ali, e, naquinta-feira, eu encontrei uma moeda deuma libra no chão da escola. Espero que

ninguém tenha me visto pegá-la. O pubestava muito escuro e as pessoasdançavam, então Samara me cutucoupara que eu olhasse para cima. Daisy eCraig estavam na pista de dança. Elafazia de tudo para chamar a atençãodele, e Craig parecia estar gostandodaquilo.

— Daisy é vulgar demais! — soltouSamara. Eu assenti com a cabeça.Estava pensando no que o meu professorde Matemática me falara sobre umacurva ascendente de aprendizado.

Alguns jovens da escola vieramsentar-se conosco e nós rimos econversamos por um tempo, contudo,meu coração não estava ali. Às 22 horas

eu disse que tinha de ir e caminhei parao ponto de ônibus. Daisy sumira, assimcomo Craig. Samara apenas acenou umtchau para mim e, em seguida, voltou-separa seus outros amigos, muito ocupadae entretida para ficar incomodada com ofato de eu ir ou não ir embora.

Estava muito frio e escuro na rua, e euestava com medo. Chorei um pouco eesperei pelo ônibus. Quando ele chegou,não consegui encontrar meu bilhete, e omotorista pareceu querer me jogar parafora, até que sua expressão se suavizou eele me deixou entrar sem pagar. Sentadana parte da frente do ônibus, inclineiminha cabeça contra a fria janela e sentio ar quente soprando em meus

tornozelos. Agora eu só tinha deconseguir entrar em casa.

Rebecca

Depois

Decidi preencher o formulário deinscrição para o curso de verão. Aprincípio, era só para ver como era. Eunão conseguia parar de me perguntarcomo seria, afinal, quando deitava emminha cama, sem Hephzi para conversarou um livro para ler, eu tinha deencontrar algo para fazer. Mas, na minhaimaginação, não era eu quem estavasentada naquele gramado na foto, eraHephzi. Eu nunca poderia estar numafoto como aquela. Vovó dizia que não

importava, mas eu sei que importa;ninguém quer olhar para uma garotacomo eu a não ser que seja para encarare rir. Meus olhos tortos. Quando comoou durmo é difícil respirar. Nasci semorelhas e com um rosto muito longo.Vovó me dissera havia um tempão queera por causa de uma síndrome chamadade Treacher Collins. Eu acho que osPais nem sequer se preocuparam emdescobrir o que isso significava; paraeles era apenas um motivo para meodiarem. Sei que isso significa que eununca serei bonita como Hephz.

Ela fora feita para estar no folheto,teria combinado tão bem com ele, seuslongos e brilhantes cabelos castanho-

claros, seu sorriso perfeito e seus olhosbem abertos. Com certeza, elesdesejariam que ela estivesse nafotografia. Imagino-a se levantando apósa foto ter sido tirada, balançando suamochila presa aos ombros e saindo soba luz do sol para então navegar numpequeno barco no rio e depois fazer umpiquenique na grama, ou talvez ir aoteatro, a um café, a uma sorveteria, ondeconversaria sobre a intensidadedramática da peça ou a excelentecaracterização ou algo do tipo. Excetoque nada seria assim, pois Hephzi nãoera assim. Na verdade, o mais provávelé que ela ficasse procurando pela festamais próxima, sorrindo para um meninode que tenha gostado dela e se

esquecendo de fazer a lição de casa.Perdi as contas de quantas vezes elacopiou as minhas respostas, mas nuncame importei. Eu teria feito qualquercoisa por Hephzi. Era difícil aceitar queela fora embora. Num minuto, viva, nooutro, morta. Às vezes, antes de irdormir, eu vestia o pijama dela e medeitava no colchão com manchas cor deferrugem para ver se a pele dela seencaixava em minhas formas. Mas issonunca pareceu certo.

— Hephzi, o que você acha? —murmurei baixinho. A Sra. Larkindeixara uma janela aberta e uma rajadade vento virou as páginas exatamentequando falei isso. Perguntei-me se

poderia ser um sinal…

Ela não respondeu, mas ainda assimpreenchi o formulário com meus dados:nome, endereço, escola. Foi bastantefácil. A Sra. Larkin pegou o formulário ebalançou a cabeça em aprovação. Nãome arrisquei a falar que estava apenaspreenchendo por diversão, como sefosse parte de um jogo que eu estavajogando em minha cabeça. Ela teriapensado que eu era louca. Coloquei oformulário de volta no meu armário,pronta para outro dia. Um fragmento dofuturo.

Fevereiro chegou. Minha irmãmorrera havia mais de um mês. Ninguémparecia lembrar-se mais dela. Mesmo

quando me atrevia a fazer o desvio pertoda casa de Craig, escondendo-me nassombras da rua, procurando por sinaisdela, vendo se conseguia evocá-la, eunão encontrava nenhuma evidência deque alguém ainda se preocupava comela. E era óbvio que Craig não estavatriste. Ele nunca a amara. Ele a usara ejogara fora. Isso é o que os homensfazem com as mulheres, mesmo os paiscom as filhas. Hephzi deveria ter vistotudo o que viria a seguir… Se elativesse aberto os olhos, teria sabidocomo seria.

Na escola haveria o que chamavam desimulado. Na verdade, era umapegadinha. Quando eles colocaram os

papéis virados para baixo nas carteirase eu vi os outros alunos curvando acabeça e começando a rabiscar,finalmente compreendi o que eraesperado e tentei ler as perguntas. Masera inútil, eu estava destinada a falharem todos os testes, estava destinada aprovar que o Pai estava certo. Asperguntas eram incompreensíveis; toda alição de casa que eu fizera, todas asanotações que tomara, tudo fora meraperda de tempo. Não que eu nãoestivesse me esforçando, mas é que aspalavras começaram a dançar na frentedos meus olhos, os números piscavam ese retorciam em arpejos ao longo dapágina. Eu não conseguia fazer nada.Alguém percebeu, aproximou-se e

perguntou se estava tudo bem. Balanceia cabeça afirmativamente, escondendo-me atrás do cabelo que pendia emambos os lados do meu rosto e enxugueias bochechas com a manga da blusa.Logo em seguida, o professor meperguntou se estava tudo OK e disse quea escola entendia como estava sendodifícil para mim e que levaria isso emconsideração. Assenti novamente e elese afastou. Como havia exames,significava que não haveria aula depois.Eu poderia me sentar na biblioteca pelodia todo se quisesse, e ninguém jamaissaberia.

Em vez de me preocupar com o que oPai diria quando descobrisse que eu não

respondera a uma pergunta sequer,mergulhei em Grandes Esperanças[2].Eu estava avançando na Letra D, eDickens era maravilhoso. Eu meperguntava se poderia contrabandeá-lopara casa; talvez eu pudesse escondê-lonum lugar bem seguro, como a cama deHephzi, certamente eles não olhariamali. Então eu poderia ficar a noite todaacordada lendo esse livro incrível. Euestava na passagem em que Pip diz aEstella quanto ele a ama e que ela serásempre parte dele: parte do bem e partedo mal. Parte da própria existência, nãoimportando qual. As palavras mefizeram chorar e minhas lágrimas sederramavam sobre as páginas. A garota

à minha frente lia Crepúsculo e nãotirava os olhos de mim. Hephzi teriaadorado, e eu lia e relia, decorando apágina para recitar-lhe quando elavoltasse. A imagem do curso de verãoreluzia em minha cabeça e pensei que,se eu fosse para lá, teria talvez umquarto num daqueles prédios retratadosno folheto, um quarto apenas para mim,sem ninguém nas paredes, e poderia lero que bem entendesse e descobrir tudoque sempre quisera saber. Fui até a Sra.Larkin.

— O curso de verão… Como eupagaria?

Ela tirou os olhos do computador,surpresa.

— Bem, você terá de conversar comseus pais, querida. Ver se eles podemencontrar um jeito. Certamente elessabem quanto você ama ler, não é?

Ela murchou, ao ver meu rosto.

Então eu balbuciei:

— Eu não consegui fazer as provas.

— Não? — Sua voz era gentil, e seusolhos, preocupados por trás dos óculos.

— Então acho que não poderei ir.Não é?

— Fale com seus professores,Rebecca. Tenho certeza de que podehaver uma solução.

Ela parecia um pouco desesperada.

Acho que ela geralmente não tem delidar com esse tipo de coisa, apenas temde se preocupar com livros atrasados oualunos se agarrando entre as estantes, naseção de obras de referência.

— Desculpe.

— Tudo bem. Sinta-se à vontade paraconversar comigo a qualquer momento,Rebecca.

Percebi que alguém como a Sra.Larkin não ia resolver nada e que umadas cartas que eu estava usando paraconstruir meu frágil castelinho caíramelancolicamente no chão. Eu teria deesquecer isso por enquanto. ColoqueiGrandes Esperanças na mesa dela e

senti seus olhos me acompanharem, ofantasma de sua preocupação seguindo-me, inútil como o véu de casamento daSrta. Havisham.[3]

Aquele fim de semana era denegócios, como de costume. Passei osábado ajudando a Mãe a limpar aigreja. Era um prédio grande e velho.Com uma arquitetura incomum, diziamos visitantes mais admirativos. Paramim, era uma dor no pescoço. E nosbraços, ombros e pernas. Eu esfregaraas pedras frias e polira os bancos tantasvezes e com tal força que conhecia todasas fissuras, todas as rachaduras e todosos nós da madeira. Trabalhávamos

silenciosamente e eu transpirava,parando para descansar quando ela nãoestava olhando. Por isso eu estava maislenta que de costume. A Mãe teve de meajudar a terminar para que acabássemosa tempo. Ela o fez sem sorrir, assim eupodia saber que ela não estava fazendopor mim, mas apenas para nos livrar deuma briga. As coisas tinham de estarprontas para as vésperas ou haveriaproblemas depois.

Enquanto eu assistia ao serviço,olhava o Pai, digno em sua batina,sobrepeliz e estola. A maioria daspessoas o achava bonito, embora nãoousasse dizer que se podia ver a quemHephzi puxara na aparência. A Mãe e eu

interpretávamos isso como um sinal paranos encolhermos mais um pouco edeixá-lo brilhar. Eram assim. Hephzi eele. O corajoso e a linda. Mas toda rosaprecisa dos seus espinhos. Quandoéramos mais jovens e ele estava de bomhumor, fazia piadas, e nós tínhamos derir.

— Rebecca, deveríamos colocar umaplaca em volta do seu pescoço. Umalibra por olhada. Ao final do dia, euseria milionário.

Ou então ele zombava.

— O que você quer de Natal,Rebecca? Um rosto novo?

Pelo menos isso serviu para que eu

me tornasse praticamente imune aosinsultos dos outros. A minha presença oofendia e ele sempre me fez saber disso.E a Mãe, a mulher que me dera à luz,nunca dissera nada. Ela e Hephzi eramobrigadas a achar graça e sorrirenquanto eu recuava mais alguns passos,deixando meu cabelo recobrir o rosto,derretendo nas paredes, um fantasma defilha.

A caminho da igreja, um cartazchamou minha atenção. Não fora eu quecolocara o pôster, então certamente umzelador o levara até ali, talvez a Sra.Sparks. O cartaz anunciava umacampamento de verão da igreja paraadolescentes. Os mesmos rostos

sorridentes do folheto que ainda estavaescondido em meu armário na escola,mas dessa vez pulando com os braçoslevantados para o ar, suas camisetasestampadas com sábias palavrasevangelizadoras. As datas coincidiam.Eu pensei a respeito, vi a semente de umplano, e a ideia começou a crescer.Poderia ser o álibi perfeito e talvezfuncionasse, só me faltava a coragempara fazer acontecer. Se eu pudesse lhesdizer que iria a um lugar e depois acabarem outro, teria exatamente o que queria.Para minha irmã também. Fugir era tudoque Hephzi sempre quis; se eu pudessenos tirar da casa paroquial e ir ao cursode verão, ela estaria livre. Então eu adeixaria ir, cortaria os últimos laços em

meu coração, e a brisa a levaria para asnuvens onde, finalmente, ela voaria.

Eu estava certa. Hephzi não partira,ainda não, não completamente. Eu aindaa chamava, eu não desistira e, no final,ela começou a responder. Hephzi estácochichando ao meu ouvido nestemomento e me dizendo para não contar aninguém sobre isso. Ela me diz quetodos vão pensar que estou louca. E que,se eu precisar dela, ela virá, mesmo queeu não possa evitar que ela seja má àsvezes.

Esperei até o domingo à noite,novamente a carne dura e seca e algunsvegetais flácidos se aglutinavam comopedras em meu estômago. Ele vinha

bebendo frequentemente: com osdeveres do fim de semana cumpridos,ele agora ia aproveitar. A Mãe estavalavando a louça, e eu, ajudando.Enquanto eu limpava a mesa, o trapoimpregnava minha mão com um odorrançoso, e fiz minha primeira jogada.

— Mãe, você viu o anúncio na igreja?O acampamento de verão? Para jovens?

— Não.

Respirei profundamente.

— É no fim de julho. Eu não estareina escola. Você acha que daria para euir?

Ela não respondeu, apenas esfregou a

panela um pouco mais freneticamente.Eu nunca pedira nada, não por anos, eagora ela não sabia como reagir. Hephzitinha certo talento para pedir coisas àMãe; ela acertava onde eu errava, comona vez em que persuadiu a Mãe a deixá-la ir ao parque de diversões com TiaMelissa, ou a vez em que suplicou paraque saíssemos em nosso aniversário de12 anos.

Finalmente ela respondeu:

— Terei de conversar com seu pai.

— Ah! — Deixei minha decepçãoflutuando no ar, amarga e pesada. Ela seafastou da pia, pegou um saco de lixo esaiu na noite fria. Eu a segui até a

lixeira. Estava tão escuro que ela nãopodia me ver, então, estiquei-me paraalcançá-la e tocar-lhe a manga. Elacongelou.

— Por favor, Mãe. Eu realmentequero ir. Sem a Hephzi, sinto-me só…

Não sabendo como ela reagiria a isso,fiquei satisfeita por não ver seu rosto.Não me era permitido ter sentimentos,especialmente em relação a Hephzi, e aescuridão entre nós escondia nossomedo mútuo. Se ela admitisse que eu erahumana, teria de me ajudar. A Mãe sabiaque devia me ajudar. Fora ela quem meencontrara no banheiro quando eu tinha13 anos, ela ficou me observandoenquanto eu limpava o sangue e a

bagunça e me fez jurar não contar aninguém. Ela disse que, se eu contasse,as pessoas saberiam quão má eurealmente era. Então enterrei a verdadeno meu quarto, escondi-a atrás daparede, mas ela chora à noite, ela chorae sofre e pede amor. Todos pedem.

— Deixe-me pensar a respeito. Vouver.

Isso já era o suficiente para mim. Subias escadas rapidamente, vesti meupijama, arrastei a cama de Hephzi parasua posição, barricando-me. Deitei-mepor um bom tempo, sem estar cansada,pensando em como fazer meu planofuncionar. O dinheiro era o pontocentral. Eram 250 libras. Eu não tinha

esse dinheiro, nem ninguém que euconhecia tinha. A menos que encontrasseuma fada madrinha, Cinderela não iriaao baile.

Meus professores estavam tranquilosem relação aos exames. Deixaram-merefazê-los eu me saí um pouco melhor eredigiram um relatório quase decentesobre mim. No entanto, o Pai aindagirava num turbilhão de raiva,borbulhando na mais luminosaindignação. Sua ira explodiu como umabomba, pois eu provara que ele estavacerto o tempo todo, ele disse. Até ondeele sabia, educar uma menina como euera um desperdício de esforço, e ele sócontinuara a fazê-lo pelas aparências.

Agora que fora provado que eu era umaretardada, ele podia me tirar da escola earranjar alguma coisa útil para eu fazer.Havia muito trabalho a ser feito na casaparoquial.

— Por favor. Dê-me mais umachance.

Ele me olhava, surpreso por eu terfalado em minha defesa e por ter ousadodemonstrar uma vontade. Seus lábios seretorceram e seu sorriso sarcásticoderrubou meu olhar novamente.

— Para quê? Para provar o que todosjá sabemos? Você nunca será nada alémde um monstro, uma aberração. Mas eulhe darei mais cinco meses e a

oportunidade de mostrar ao mundo quãopatética você realmente é. Quando vocêfalhar nas provas de verão, verá entãoque eu estou certo. E ninguém vai poderdizer que não lhe dei todas as chances.

Segurei a respiração até poderescapar para o andar de cima e então asoltei com grande alívio. Se ele tivesseme tirado da escola, teria sido o fim; euprecisava escapar, eu precisava dosexames. Concluí que a Mãe ainda nãomencionara o acampamento de verão. Seo tivesse feito, ele teria trazido isso àtona e seria mais um motivo para meridicularizar e me diminuir. A ausênciade Hephzi me acertou novamente comoum soco no estômago. Se ela ainda

estivesse viva, eu teria me saído melhornos exames, eu a teria para conversar eme dar esperança.

— Não seja patética! — diz ela. Maslhe respondo que é verdade.

Ela estava se afastando cada vez maisde mim, eu sabia disso, mas poderiatrazê-la de volta e fazê-la se lembrar dequanto precisava de mim, de quantoprecisávamos uma da outra. E elaprecisava de mim. Ela precisava que eua ajudasse com sua lição de casa, que eua encobrisse, que eu mentisse por ela,que eu a apoiasse. E eu precisava delapor todos os motivos do mundo. Foi ahistória com Craig que abalou nossorelacionamento, e eu estava contente por

nunca ter tido de conversar com elenovamente, apesar de passar perto desua casa e observá-la às vezes. De certomodo, tudo era culpa dele.

Eles se conheceram no primeiro dia.Eu estava na sala de aula durante a horado almoço, não querendo enfrentar acantina e todos os novos olhares, osrisos reprimidos, os olhares de horror.Hephzi fora sem mim, ela disse quetraria algo e eu esperei durante todo ohorário de almoço por seu retorno,folheando o livro de Matemática eolhando pela janela. Eu ainda nãodescobrira a biblioteca e estavapensando que dois anos daquilo seriamquase tão ruins quanto mais dois anos na

casa paroquial tentando ser invisível. Euestava cansada, assolada por pesadelos,e descansei minha cabeça na mesa.Quando Hephzi entrou na sala com ummonte de gente, eu estava quasedormindo, então olhei para cima, nossosolhares se encontraram, e ela meignorou, voltando-se para o grupo, noqual estava Craig.

Ela não ficou mais comigo depoisdisso. Sempre tinha alguém com quem sesentar em todas as nossas aulas, e elapassava os intervalos e horários dealmoço com Craig, desaparecendo comele e reaparecendo só quase no final.Comecei a odiá-lo. Ele nem sabia queeu estava viva.

Depois do desastre nos exames e dorelatório escolar, enfiei minha cabeçanos livros e estudei ainda mais. Eu nãopodia me dar ao luxo de falharnovamente, e o Pai dissera que iria àsreuniões de pais e mestres para saber oque eu estava tramando. Não seria antesde abril, então eu teria tempo paraganhar alguns créditos. Tambémprecisava começar a ganhar dinheiro.No caminho da escola para casaverifiquei o quadro de avisos da loja daesquina. O cheiro era estranho, pãovelho e camundongos, e o proprietárioestava sentado e lia um tabloidequalquer com a barriga encostada nobalcão. Era aqui que Hephzi e eu

fazíamos as compras de casa, e uma ouduas vezes ele nos dera pirulito, e nósrapidamente enfiamos na boca emastigamos aqueles pedaços açucaradose pegajosos antes que nos sujássemos.Eu perguntara à Sra. Larkin sobre apossibilidade de trabalhar na biblioteca,mas ela, infelizmente, apenas sinalizoucom a cabeça que não havia como e medisse para dar uma olhada no quadro deavisos da loja, e foi isso que fiz. Nãohavia muita coisa para ver. Alguémqueria uma faxineira, mas para trabalharno horário em que eu deveria estar nocolégio, e outra pessoa estavaprocurando um pedreiro, o que medeixava de fora também. O cara atrás dobalcão me viu olhando.

— Está tudo bem, querida?

Eu balancei a cabeça. Não queriaexplicar tudo para ele.

— Você está procurando algumacoisa em particular?

— Não. Está tudo bem, obrigada.

— Se você precisa de trabalho eutenho algo para você aqui. — Ele meolhou de cima a baixo. — Você é a filhado pastor, não é? Você é a única dasgêmeas agora, não é? O que aconteceu?

Dei de ombros e olhei para o chão.

— Fofoqueiro! — sussurrou-meHephzi. — Diga a ele que tome conta deseu negócio. — Mas eu sabia que ele

estava apenas comentando o que todosestavam pensando. Todos sabiam sobrea morte de Hephzi. O modo comoocorrera era um segredo sujo da minhafamília.

— Ela sofreu um acidente.

— Terrível isso. — Ele parou defalar e eu me dirigi para a porta,querendo que a conversa terminasse.

— Bem, se você quiser um trabalhodistribuindo panfletos da loja depois daescola, me procure, pois tenho uma vaga— falou ele enquanto eu saía apressada.

— Obrigada. — Nem me atrevi aperguntar o salário, mas tinha certeza deque não devia ser muito. No entanto, ao

sair da loja me senti um pouco maisalegre. Eu estava voltando à casaparoquial com mais do que eu tinhanaquela manhã: uma oferta de emprego eo livro Middlemarch[4] na bolsa.Decidi assumir o risco e levar o livropara casa. Se Hephzi podia sair seesgueirando, noite após noite, paraencontros clandestinos com seunamorado, eu poderia ao menosarriscar-me a ler debaixo das cobertas.E mesmo que o Pai achasse o livro,duvido que ele pudesse encontrarqualquer coisa nele do que reclamar.Não sei por que ele pensava que livrospodiam nos corromper. Em alguns deseus sermões, ele pregou sobre os males

da leitura, especialmente da boa leitura.Eu vi a mudança na fisionomia dacongregação. Alguns não concordavamcom o que ele estava dizendo, mas osloucos balançavam a cabeça e agiam deacordo com suas palavras. Eram o tipode pessoa que bania Mickey Mouse, quejogava no lixo convites para festas, quevia algo satânico em esculpir umaabóbora no Halloween. Eram pais comoHephzi e eu tínhamos. Loucos que sevestiam com roupas normais, quesorriam e angariavam dinheiro para acaridade, malucos que ficavam dejoelhos para rezar, mas que, tão logoestivessem seguros atrás de portasfechadas, tiravam as máscaras edeixavam o veneno irromper.

Vovó adquirira os primeiros livros deHarry Potter num bazar beneficenteperto de onde ela morava e eu osdevorei, lendo durante toda a noitedebaixo das cobertas, sabendo que nãopoderia levá-los para minha casa eincapaz de lidar com a ideia de irembora sem tê-los lido até o fim. Mas eununca trairia a Vovó, nunca falaria sobreo que ela nos permitia fazer — se o Paisoubesse de apenas metade do que elanos deixava fazer, ele a desenterraria e amataria novamente. Sei que ele fariaisso mesmo que ninguém mais pensasseassim — ele odiava Vovó, e ela tinha depagar.

Contudo, aprendi muito com ela, e, se

algum dia tiver filhos, sei como voucriá-los: seguros, felizes e livres. Vouconvidar os amigos de meus filhos paracomer pizza, batata frita e biscoitoscaseiros. Faremos guerras de bolas deneve no inverno e mergulharemos numapiscina no quintal durante o verão,quando estiver quente. Vou comprarpresentes para eles e dizer-lhes comosão maravilhosos. Vamos ter umcachorrinho e ir à Disneylândia passarférias. Vou dizer-lhes que os amo e quesão perfeitos, bonitos e únicos. É issoque farei se algum dia eu tiver a chance.Meus filhos nunca vão chorar durante anoite ou ficar tremendo na cama commedo do que possa haver na escuridão.

Aceitei o trabalho, mas não contei aosPais. Disse apenas que estaria na escoladurante a tarde para aulas extras deMatemática. Matemática era o meuponto fraco, ou talvez fosse Física. Nãoimporta. Eles não gostaram, mas,contanto que eu fizesse minhas tarefasquando voltasse e me mantivesse fora deseu caminho, eles me deixariam viver amentira. Eu usava um chapéu puxadopara baixo, sobre a testa, e vagava pelasruas com uma pesada sacola cheia defolhetos duas vezes por semana. Asacola pesava uma tonelada e eu muitasvezes me sentia fraca, cansada e faminta,mas perseverava. Eles pagavam 10libras por semana. Eu sabia que teria

apenas o suficiente para pagar o cursode verão, mas enviara o formulário decandidatura independentemente dequalquer coisa, pois confiava que dealguma maneira, de algum modo, algoiria dar certo, e a Mãe acabaria porconvencer o Pai a deixar-me ir para oacampamento da igreja. Eu acho queestava sendo estúpida por acreditar queeles nunca me pegariam, estúpida porpensar que ninguém me veria e contariaa eles. Afinal, no quesito aparência, soudo tipo inesquecível.

Economizei 40 libras antes de elesdescobrirem. Quinta-feira à noite era diade entrega e terminei minha ronda lápelas 18h30. Estava demorando mais

para escurecer, e, ao mesmo tempo queo vento de março espalhava o lixo nasruas e agitava os papéis em minhasmãos, a tarefa geralmente interminávelde enfiar papéis nas caixas de correioque prendiam meus dedos como umaratoeira parecia tão ruim quanto ohabitual. Eu estava ansiosa para colocarmais uma nota de 10 libras no meuesconderijo e para ir para a cama commeu livro, mantendo meus segredos asalvo. Eu conversava com Hephzienquanto caminhava pelo bairro,contando-lhe do curso e pedindo-lheideias sobre como obter dinheirosuficiente a tempo. Ela me aconselhou aroubar os Pais, entrando sorrateiramenteno quarto deles e esvaziando a carteira

do Pai enquanto ele estava dormindo ousuperbêbado. Eu gritei com ela.

É muito arriscado, Hephzi, e se eleme pegar? O que eu faço?

De que outra forma você vai fazerisso, sua idiota? Você tem de irembora.

Discutimos assim por todo o caminhoe ela quase me convenceu quando euestava voltando. Por causa dela,caminhei pela estrada até a casa deCraig na volta para casa e fiz uma pausapara ver se podíamos avistá-lo. Eu nãogostava mais de fazer isso, tinha medode que alguém me entregasse por eu iraté lá frequentemente, mas sentia pena

de Hephzi. Agora ela precisava de mimpara ter sua vida social, e, sinceramente,eu não era muito boa nisso. Eu passaraum tempo agradável com ela, mas eladesapareceu assim que viu o Pai fora dacasa paroquial, de braços cruzados. Eusabia que ele estava esperando por mim.

Ele beliscou a parte de trás de meupescoço e me empurrou para dentro decasa. A uma distância que ninguém quepassasse notaria sua mão em mim,ninguém jamais veria a marca embaixode meu cabelo.

— Onde você estava?

— Na escola. — As palavras saíramcomo um sussurro, e eu sabia que minha

mentira não convenceria ninguém. Eleme levantou pelos cabelos e me jogoucontra a parede. Minha cabeça se cortouno antigo espelho que ficava penduradoe caí, batendo dolorosamente o ombro.

— Não minta para mim — ameaçouele, com o punho cerrado. Senti cheirode uísque em seu hálito, vi seus olhos ebochechas vermelhos. Agachada, com osbraços dele sobre a minha cabeça, euesperava o próximo golpe.

— Onde você estava? — perguntounovamente. — Diga a verdade!

— Na casa de um amigo.

— Mentirosa! — gritou, e eu mepreparei para os golpes.

Eu não deveria ter me preocupadocom a resposta. Ele sabia que eu nãotinha amigos e sabia tudo sobre meutrabalho, um dos fofoqueiros locais deveter me visto e plantado a semente, eminhas patéticas tentativas de me manterlonge de problemas encontraram a forçade sua ira, afogadas, rodopiando, pegaspor uma onda essencial em seu poder.Eu só podia esperar a onda me atingir eacreditar que conseguiria subir pararespirar. Quando ele terminou, rastejeiaté as escadas. Ele me batera em todosos lugares nos quais hematomas podemser facilmente escondidos: o torso, aparte de cima dos braços, peito, nádegase coxas. E ele sabia que eu não gritaria.

A casa toda ficou em silêncio, quasecomo num balé, a dança era tão familiarque eu sabia a melhor forma de agachare mover apenas um ombro para desviarum golpe dirigido aos seios, mas, acimade tudo, sabia como segurar as lágrimas.Pelo menos dessa vez ele não usara acinta. Hephzi sempre disse que iriaescondê-la e talvez esse tenha sido seuúltimo presente para mim.

Antes disso, ele revirara meu quarto eencontrara o dinheiro que eu guardara,escondido sob o colchão de Hephzi.Também pegara a nota de 10 libras dehoje e tirara o livro de poesia de Eliotde minha bolsa, moendo-o no chão como pé, só para ter certeza de que eu

aprendera a lição. Rastejei até debaixode minha cama, tremendo, e comecei acantarolar uma melodia calma, bem nofundo da garganta. Se eu enchesse acabeça com aquele ruído, não melembraria de mais nada e poderiaexpulsar a dor e me tornar invisível. Elehavia acertado uma pancada em minhaprótese auditiva, bem perto do parafusopreso na lateral do crânio, e eu estavafeliz que tudo estivesse soando aindamais abafado agora, como se euestivesse nadando, submersa na água.Fiquei debaixo da cama com bolas depoeira e meias estranhas, e meimaginava me afogando. O tapete sedissolvia, e eu me deixava afundar, maise mais profundamente, assim como

Hephzi no dia em que morreu.

Hephzi

Antes

Finalmente cheguei em casa de volta dopub. Eu corri todo o caminho desde oponto de ônibus até em casa e estavasem ar, mas Reb estava atenta e abriu aporta da frente para me deixar entrar,sem risco para nós duas, como ela medisse com sua voz mandona. Digo-lhepara calar a boca, e corremos até a camarapidinho. Quando vi sua carranca,decidi não incomodá-la contando sobreminha horrível noite.

— O que você está vestindo? —perguntou ela, deixando a boca aberta,horrorizada, eu acho.

— São da Daisy. Por quê?

— Você está parecendo umavagabunda.

— Cale a boca! Você está parecendoa Mãe.

— Não, não pareço. E você realmenteestá parecendo uma vadia. Admita!

Eu quase ri ao ouvir Reb dizer aquelapalavra. Ela estava, enfim, aprendendoalguma coisa sobre ser normal.

— Não se atreva a rir! Você nãopercebe como tudo isso é arriscado?

Nossa discussão era sussurrada;Rebecca estava sentada em sua cama eeu tentava tirar a roupa rapidamente,antes que alguém entrasse e me pegasseno flagra. Escondi as roupas debaixo docolchão, meu coração ainda pulava porcausa da corrida do ponto de ônibus atéem casa e depois para subir as escadasàs escondidas. Se ele tivesse me visto,eu provavelmente estaria quase mortaagora.

— Eu não vou fazer isso de novo. —Rebecca não calava boca.

— Fazer o quê?

— Mentir para encobri-la. Sair meesgueirando para abrir a porta no meio

da noite. Você vai ser pega e nósficaremos muito encrencadas.

— Não seja tão idiota. Não aconteceunada, certo? — Eu pulei na cama e puxeias cobertas até o nariz, a batida de meucoração ainda ressoando em meusouvidos. Era tão bom estar de volta aomeu quarto. Nunca pensei que diria isso.

— De qualquer forma, como foi lá?— perguntou-me finalmente, em meio àescuridão silenciosa. Eu estava de olhosfechados, mas estava longe de estar comsono. Os acontecimentos da noitevoltavam à minha mente como flashes deum filme louco e desconexo: euvomitando, Daisy dançando com Craig,a volta de ônibus até em casa.

— Foi tudo bem.

— Apenas “tudo bem”? Tudo issopara um “tudo bem”?

— Ah, cale a boca! Cuide da suavida! Venha comigo da próxima vez sevocê está tão interessada.

— Não, obrigada.

— E o que você vai fazer? Viver aquio resto de sua vida com eles?

Ela demorou um longo tempo pararesponder, e então suas palavras mesurpreenderam.

— De jeito nenhum. Eu vou sairdaqui. Primeiro, preciso ir bem nasprovas, e é isso. Eu vou embora.

Eu não conseguia acreditar que elafinalmente percebera que nãopoderíamos ficar daquele jeito parasempre. Já era hora mesmo. Eu nuncaouvira Rebecca falar daquele jeitoantes; ela é a calma, uma pessoa semopiniões ou ideias sobre o futuro. Eusempre a conduzia, ela sempre meseguia, e eu lhe perguntava aonde elapensava que iria e se seria capaz de ir.

— Eu vou aonde ninguém meconhece, onde eu possa encontrar umemprego.

— Sim, certo. E onde você vaimorar?

— Vou encontrar um apartamento. Ou

alugar um quarto.

— Só se for nos seus sonhos. — Nãosei por que eu jogava um balde de águafria em suas esperanças, mas eu faziaisso. — Você nunca vai conseguir umemprego, Rebecca. Você é muito chata.Chata e feia. Quem vai querer olhar paravocê o dia todo?

Ela não respondeu e em seguidabalbuciei um “sinto muito” e fiqueideitada acordada por um longo tempo,muito longo mesmo, observando-a lutarcom algum demônio particular, o que afazia chorar quase todas as noites.

Eu estava com medo de ir à escola namanhã de segunda-feira e, pela primeira

vez desde o início das aulas, sentei-meao lado de minha irmã. Eu rabiscavameu bloco de notas, evitando olhar paracima ou para os lados, caso todosestivessem rindo de mim. Rebecca eraquieta demais, e, por um momento, achoque compreendo como ela se sente aquiquase todos os dias. Mas então ela mecutucou e eu olhei para cima. Craigestava em pé na frente da carteira e sentium rubor tomar minhas bochechas antesque eu pudesse fazer qualquer coisa arespeito disso.

— Tudo bem?

Concordei com a cabeça. Engoli emseco. Uma espécie de sorriso.

— O que aconteceu com você na noitede sexta-feira?

— Ah… É… Eu estava lá.

— Sim, mas você desapareceu.

Eu não respondi, só encolhi osombros. Era a conversa mais longa quejá tínhamos tido. Continuei esperandoque ele fosse embora, mas ele não foi.

— Eu estava procurando por você.Nós todos fomos para uma boate emChequers.

— Sério?

Eu realmente não sabia o que deveriadizer.

— Achei que você estaria lá.

— Ah. Sinto muito.

Ele encolheu os ombros, recolocou osfones de ouvido e saiu. Eu me volteipara Rebecca, que parecia nauseada. Eua cutuquei de lado e ela prendeu arespiração e enterrou a cabeça no livrode Matemática.

Então, eu não estava acabada, bem,ainda não. Mesmo que Daisy tivessecontado sobre eu vomitar, talvez ele nãose incomodasse. Ainda poderia haveruma chance. Passei o dia todo buscando-o com os olhos, mas ele deve tercabulado aula de novo, pois eu não pudeencontrá-lo em lugar nenhum.

Era meu sexto dia na escola. E eu já

aprendera muito.

Aprendi a não parecer incomodada seum menino fala com você ou lhe sorri.

Aprendi um jeito de falar jovem,algumas gírias.

Sei usar um computador, oupraticamente isso, e como verificarmeus e-mails e acessar minha conta noFacebook na sala de informática daescola.

Aprendi que jogar meu cabelo é muitosexy, mas acho que isso eu já sabia fazersozinha.

Também aprendi os nomes dospersonagens de EastEnders[5] e sabia

mais ou menos o que estava acontecendona história, só de ouvir com bastanteatenção. Estava muito orgulhosa disso.

Agora sabia quem era Cheryl Cole etambém quem eram todos ospersonagens de Glee.

Eu sabia que as pessoas daquiprovavelmente não seriam meusBFFLs.[6]

E sabia que nunca deveria repetir umaúnica palavra das que ouço na casaparoquial.

Sei que tenho de mentir todos os diase que nunca poderia convidar nenhum demeus novos amigos para ir à minha casa.

Era muito cansativo passar cadamomento de cada dia mentindo para umapessoa ou outra. Eu fingia tanto naescola quanto na casa paroquial. Oúnico momento em que eu ficavarelaxada era na cama à noite e, mesmoassim, Rebecca poderia facilmente mefazer uma pergunta que me pegariadesprevenida. A única coisa que ela nãosabia a meu respeito era que minha vidaera uma droga, assim como a dela. Queeu achava tudo tão difícil quanto ela.Talvez ela supusesse, mas eu achava quenão, pois Rebecca acreditava que tudovinha muito fácil para mim, que eu era aPequena Miss Normalidade. Meu Deus,como alguém poderia crescer naquele

lugar com pais como os nossos e sernormal? Era isso que eu estiveraesperando que a escola pudesse meensinar em vez de Matemática e coisasestúpidas, e queria que Rebeccatrabalhasse um pouco mais suanormalidade também. Eu a vi passandopor mim no corredor da escola com suamochila pesada em ambos os ombros,inclinando-se e murmurando para simesma, em sua calça muito curta e comas terríveis meias verdes brilhantesaparecendo. Eu queria correr e puxá-lapara trás de mim, cobri-la e escondê-lados olhares. Eu via as pessoas rindodela o tempo todo; eu tive de ver isso aminha vida toda e por muito tempo acheique isso fazia mais mal a mim do que a

ela. Eu queria gritar para que elessumissem, para que a deixassem em paz,talvez empurrá-los ou machucá-los dealguma forma para que soubessem comoé ser perseguido. Entretanto, era comose Rebecca não percebesse ou nemmesmo se importasse, e foi por isso quedesisti dela, deixei que ela seguisse emfrente sozinha. Ela podia aceitar suaEstranholândia do jeito que queria, maseu não me afundaria com ela.

Esperava que Craig viesse no diaseguinte e conversasse comigonovamente. Se ele fizesse isso, euprecisaria aproveitar ao máximo omomento e mostrar-lhe que gosto dele.Talvez Craig me convidasse para um

encontro e me levasse a algum lugarlegal; apenas nós dois.

A semana se arrastava com ele malaparecendo na escola. Tomei coragem e,na quinta-feira, enviei um pedido deamizade no Facebook durante o horáriode aula. Não deveríamos usar a sala deinformática durante o horário de estudo,mas ninguém levava a sério essa regra,então eu não via por que eu deverialevar. Esperei que ele me adicionasse;fiquei me mexendo na minha cadeira,clicando seguidamente o mouse a cadasegundo durante 40 minutos. Quarentaminutos que deveriam ter sido usadospara eu tentar fazer a lição de Física.Nossos pais nos faziam cursar essas

matérias idiotas e eu não conseguiaentender uma palavra que fosse. Nada.Nada. Aquilo passava pela minhacabeça como areia por uma peneira, e eusabia que o professor podia perceberisso também. Eu ainda não responderauma única pergunta corretamente. Euobservava Rebecca lutando paraentender, a concentração fazia seu rostoficar ainda mais esquisito, e eu queriagritar com eles e dizer que odiava tudoaquilo, que não queria fazer nada do queestavam me pedindo. Mas, em vez disso,eu copiava as respostas de outra pessoae mantinha meus dedos cruzados,esperando que o professor me deixasseir embora se eu sorrisse alegremente eentregasse minha lição no prazo.

Todas as aulas eram assim. O queRebecca e eu queríamos comMatemática, Física e Química? Eleescolhera nossas matérias, ele pensavaque eram as matérias que forneciammenos riscos, e imaginava que nãoentenderíamos nada. Poderíamos muitobem ter estudado marciano. Ele serejubilava provando que éramos inúteis.Ele e sua inútil graduação em Teologiaem Cambridge, a qual posso dizer foi oponto alto de sua vida até agora…Desde então ele vem perseguindograndeza, tentando provar que merecesucesso, mas o bispo não lhe dá valor,eu acho, apesar das horas que ele passalambendo-lhe as botas, e o resto de sua

vida tem sido um passeio numamontanha-russa de anticlímax. Ele tinhade enfrentar os fatos: não seríamosneurocirurgiãs ou cientistas ouvencedoras do Prêmio Nobel. Rebeccadeveria estudar Inglês, pois sempre quepode fica na biblioteca como um ratinhotímido com a cara enfiada num livro, eeu poderia fazer algo divertido, comofotografia ou artes cênicas. Daisycursava os dois e ria quando me via mearrastando para as aulas de Químicacom um bando de nerds, como ela oschamava. Tenho uma boa ideia paratrocar as aulas, ele nunca saberia disso,não se eu fosse esperta, e eu conseguiriame divertir um pouco mais. Craigtambém frequentava a aula de Física,

isso quando ele aparecia, o mesmoocorria com a de Matemática. Daisy mefalara que Craig queria ir para auniversidade e que ele tinha várias notasA em seu boletim. “Nunca julgue umlivro pela capa”, Vovó costumava dizer.Parecia que ela estava ali. Entretanto,ela me censuraria por estar saindo por aíe me lastimando por causa de Craig. Elasempre teve a opinião de quedeveríamos fazer algo de útil por nósmesmas, não apenas nos casar e terfilhos, mas fazer algo satisfatório, algoque a deixasse orgulhosa. “Nunca confienum homem”, ela dizia. Coisa antiquada,boba. Nós nos divertíamos com a Vovóaté nossos pais descobrirem isso.

Rebecca

Depois

Depois que ele descobriu tudo sobremeu trabalho de entrega de folhetos,depois que roubou meu dinheiro e mebateu, deixando-me com manchas pretase azuis, eu não sabia o que mais poderiafazer. Ele quis me colocar de volta nomeu lugar e provar, mais uma vez, queele era o rei, e eu, nada. Hephzi nãoconcordava. Ela me disse para fugir delá e fazer a coisa certa.

Só existe um jeito, Reb, dizia ela.

Como eu sempre tenho falado: temosque cair fora daqui. Depressa, porfavor, não espere, você tem de correrporque não há tempo a perder. Euprometo que vamos juntas dessa vez,vamos juntas e seremos livres.

Finalmente ela começou a falarcomigo de forma adequada, não apenascom pequenas palavras aqui e ali. Elaestava de volta para me fazer rir e agircomo boba, e eu estava feliz por tê-lapor perto. Passara-se tanto tempo desdeseu funeral, tanto tempo desde que eles acolocaram naquele caixão e jogaramterra sobre sua cabeça. Três mesesinteiros sem ela. E agora que ela estavarealmente aqui comigo, quer eu

quisesse, quer não, isso fazia que osminutos que eu passava na casaparoquial parecessem mais suaves,quase suportáveis. Mas ela estava comraiva também; ela pensava que aspessoas deveriam saber o queacontecera e que eu deveria contar. Eunão queria morrer, Reb!, disse-me,chorando, com a cabeça aninhada aolado da minha no travesseiro, comoquando éramos pequenas. Por que elesnão se importam?, perguntou-me, maseu não tinha uma resposta boa osuficiente, meus próprios erros soandoalto em meus ouvidos, como os sinos daigreja no domingo. Minha vida acabarade ficar interessante, ela dizia. Ela eCraig tinham feito planos. Ela queria

saber por que ninguém se incomodou osuficiente para descobrir a verdade, porque Craig também não viera até nossajanela e me chamara.

Eu desistira de fazer essas perguntashavia muito tempo. Quando éramospequenas, eu pensara em colar um avisonas costas de Hephzi para que aspessoas vissem enquanto caminhávamospela estrada. Ajude-nos!, o aviso diria.Rápido! No entanto, eu sabia queninguém se preocuparia, pois a tintaseria um truque que desapareceria nasecagem; não importa quão rápido eureescrevesse as letras, elas só iriamderreter, dissolver como neve em água.

Houve uma chance, apenas uma. Não

sei o que aconteceu, é um momento queeu apaguei, mas Hephzi dizia que eutivera um ataque quando ele me bateumuito forte, no topo das escadas, e aSra. Sparks entrou, e lá estava eu,contorcendo-me no chão do corredor,sacudindo e torcendo, girando como umpião. Antes que ele pudesse dizer aspalavras “diabo” ou “possessão” ouencontrasse uma oração, ela foi pegar otelefone para chamar uma ambulância —calma e serenamente, como disse Hephzimais tarde. Eu só me lembro de acordarno hospital e olhar para a luz. Se era océu ou não, eu não tinha certeza, mas euestava quase esperando que fosse e queHephzi também estivesse lá.

Uma enfermeira veio.

— Acordou finalmente! Mas queraios você estava fazendo? Em queencrenca você se meteu! — Eu lia emseus lábios. Isso foi antes do aparelhode audição, quando o som do mundo eraapenas um ligeiro suspiro.

Claro que não respondi. Mas sentique havia alguma chance. Ela tinha algode bom em seus olhos.

Ela mediu minha temperatura eenvolveu uma faixa apertada em volta demeu braço, bombeando-o, em seguida,soltou-a.

— Quer beber alguma coisa? —perguntou, e eu assenti e bebi com um

canudo. — O doutor vai vir em breve.Mas não se preocupe, você está bem.

Ela ajeitou o cabelo em minha testa, eseu toque foi tão calmo que eu chorei.

— Ei, ei! — acalmou-me. — Estátudo bem. Você vai ficar bem. Aqui nósajudamos as pessoas a se recuperarem!Não queremos lágrimas. — E então,quando eu estava quase abrindo minhaboca para falar, ela largou um dosobjetos. — Seu pai está lá fora. Ele estátão preocupado. Bem, nós todosestamos, não é mesmo? Mas eu acho quevocê vai sair daqui novinha em folha.Você é uma pessoa forte, não é? Umaverdadeira lutadora. Vou dizer a ele quepode entrar, ver sua garotinha. — E lá

se foi ela com um sorriso, e veio o Pai.

— Não diga nenhuma palavra —soltou ele bem no meu rosto. — Porquesenão eles vão levar você embora.

Se eles me levassem embora, eununca mais iria ver a Vovó ou minhairmã de novo, então eu costurei minhaboca.

Ele não me deixou depois disso.Sentou-se e segurou minha mão do braçoque estava engessado até o cotovelo ecravou sua unha na palma de minha mão.

Houve uma resposta para cadapergunta, uma desculpa para cadapalavra. Eu estava distraída e caíra daescada. (Você sabe, quando cavalos

burros brincam, temos de falar paraserem cuidadosos muitas vezes.) Elenão mencionou que me batera no andarde cima nem descreveu como eu caíradegrau após degrau como a mola deplástico com a qual brincávamos na casada Vovó.

No dia em que me deram alta, o som ea efervescência à minha volta eram ossons que meus parafusos me permitiamouvir. Ele comprara flores, chocolates eum cartão para a enfermeira. Elesegurava as duas mãos dela, e ela ficouenrubescida como as pétalas de umarosa nova no verão.

Isso foi quando eu tinha nove anos.

Mais que tudo, Hephzi queriavingança. Ainda não me atrevi a revelarseu segredo, mas, talvez um dia, seminha alma encontrar um lugar pararespirar, eu o faça.

Como eu poderia viver bem? Eu nãotinha emprego nem dinheiro e ainda nãofazia ideia de se eles haviam caído ounão no plano do curso de verão. Eu teriade tentar novamente com a Mãe, masquando falei ela fingiu não ouvir.

Hephzi conseguia convencer a Mãe afazer praticamente qualquer coisa. Nãoquero dizer que ela pudesse convencê-laa libertar-nos, a menos que fôssemosmal na escola, ou fizesse o Pai desistir

de bater em nós. Mas a Mãe faria outrascoisas se Hephzi pedisse. O principal éque ela podia fazer a Mãe mentir para oPai para acobertá-la. Era assim queHephzi fazia para ver Craig. Se nãofosse a Mãe fingindo não perceber nada,talvez minha irmã ainda estivesse viva.Tenho certeza de que a Mãe sabia queHephzi saía sorrateiramente, eu estavacerta de que ela descobrira e desviaraseus olhos vazios com medo do queHephzi pudesse fazer ou falar, como setivesse medo dele. As pessoas têm. Osdois tinham esse modo de olhar quefazia você desejar ser invisível. Hephzifazia isso comigo o tempo todo. Se eudiscordasse dela em alguma coisa ou aadvertisse ou aconselhasse sobre algo,

ela me fitava com aquele olhar, com aboca meio cerrada como quem diz Quemé você para me dizer o que fazer? Sóporque eu a advertira sobre algumacoisa. Foram muitas vezes. Quando eudescobri o que ela estava fazendo comCraig, disse-lhe que era louca, queestava procurando confusão, mas Hephzizombou e rosnou até eu voltar para meucanto. Eu já falara uma vez, depois deuma de suas escapadas com Craig, e elaagira exatamente como o Pai.

— O que você quer dizer com isso?— Ela me encarou, com os olhos bemabertos. Pequena Miss Inocência.

— Quando você me intimida, quandovocê não me ouve. Quando você me

trata como se eu não fosse ninguém.Você é exatamente como ELE! —murmurei a palavra final no tom maisalto que conseguia durante a noite nonosso quarto, mas gritandosilenciosamente para ser ouvida.

— Eu não sou assim! Não diga isso,Reb! — Ela chorou e disse que estavaarrependida, mas eu sabia que ela nãoseria capaz de ajudar a si mesma.Hephzi acreditava que aprendera asobreviver.

Mesmo tendo enviado minhainscrição, eu sabia que a ideia do cursode verão não funcionaria. Fora estúpidopensar que era uma possibilidade.

O que você vai fazer, então?,perguntou Hephzi, cutucando-menovamente. Tentei ignorá-la quando elacontinuou, mas Hephzi estava falandomais alto a cada minuto.

— Eu não sei – disse-lhe, tentandoser firme. — Apenas fique quieta e medeixe pensar.

Nesse ritmo, você vai embora numcaixão ferrado igualzinho aconteceucomigo.

Respirei fundo e pensei sobre issonovamente. Não poderia ser tão difícil,supus. Tudo o que eu precisava era fazeras malas, pegar a carteira dos Pais e irpara a cidade. De lá, eu poderia tomar

um trem ou um ônibus e me perder emalguma cidade distante. Se eles viessemme procurar, eu teria de corrernovamente, e, de qualquer forma, issoseria provavelmente um problema maiorpara eles e não valeria a pena continuarme procurando. Ele poderiasimplesmente disfarçar sua dor etristeza, como fizera antes, receber ascondolências dos habitantes locais econtinuar sua vida como de costume. AMãe poderia ser seu bode expiatóriopara mudar um pouco, serviriadireitinho para ela. E então, quandotalvez estivesse livre e segura, eupoderia falar a verdade. Isso revelariaquem são eles.

Mas como eu viveria? Não seriaseguro. E quem me empregaria? Eu nãotinha habilidades ou talento. E quem iriaquerer olhar para mim, dia após dia? Eunão tinha nada a oferecer.

Noite após noite, esses pensamentosme mantinham acordada, enrolada emmeus lençóis. Eu me escondia debaixodo cobertor, brincando de ser invisível,enquanto planejava, arquitetava etraçava meus planos. Finalmente eudormia, e então os pesadeloscomeçavam. O som do choro na paredefoi ficando mais alto também, assimcomo Hephzi. O choro vinha meenlouquecendo havia muito tempo,desde que eu tinha 13 anos, e agora

todos os três estão aqui. Queria queficassem quietos uma única noite.

Quando acordava de manhã, tudoestava certo novamente. Eu podia verque nenhum dos meus planos erapossível. A luz sombria da casaparoquial transformava o futuro emescuridão. Eu nunca conseguiria enganá-los. Para onde quer que eu corresse, elesme encontrariam. E por isso eles sabiamque eu permaneceria ali.

Era uma sexta-feira de abril perto daPáscoa.

Eu temia o feriado, pois, apesar detudo o que odiava na escola, a casaparoquial era ainda mais detestável.

Como de costume, estava mantendominha cabeça baixa, tomando cuidadopara não me sentar ao lado de ninguém etentando passar despercebida. A quintaaula era de Matemática, e havia umprofessor novo, substituindo o simpáticoSr. Connor, que faltara porque estavadoente. A professora substituta, a Srta.Peters, era o que você chamaria deintrometida; ela devia pensar que nósdevíamos nos considerar sortudos deestar em sua presença, tendo em vista aforma como zombava das pessoas quedavam respostas erradas, como se tudofosse tão simples, e nós, idiotas. Ela mechamara de novo para responder àsquestões, e parecia ter adquirido aimpressão de que eu precisava falar

para a sala, como se um ritual dehumilhação pudesse fortalecer o caráterde alguém. Normalmente, eu tinha umaideia da resposta, e até poderia arriscar,mas não daquela vez. Na verdade, nãoescutara nada naquele dia, eu cochilarae sonhara acordada em minha cadeira,pensando em qualquer coisa, menos nafórmula que me encarava, raivosa, nalousa. E quando ela me chamou, nãopude arriscar nenhum palpite. Sentitodos à espera, o ar na sala estavarepleto de expectativa. Minhasbochechas coraram, e me encolhi emminha jaqueta quando as risadinhassurgiram. Comecei a cantarolarbaixinho, curvando-me sobre meu livro;

eu não precisava ouvir as risadas e osinsultos ou sentir as bolinhas de papeldisparadas contra as minhas costas parasaber que todos estavam gostando demeu desconforto. Finalmente, a Srta.Peters limpou a garganta e recomeçou aaula, mas, pela tensão em sua voz,percebi que ela não relaxara e soube queela não faria nada a respeito. No final daaula, ela me disse que minha falta decooperação a deixara extremamentefrustrada. Ela não via nenhuma razãopara que eu não tentasse ao menos fazerum esforço, como o restante da classe.Ela não iria me bajular nem me dariatratamento especial; eu teria de melhorarou ela entraria em contato com meuspais e os chamaria para uma conversa

sobre meu aproveitamento escolar. Elarecuou, assustada, quando a interrompicom minha voz desesperada.

— Não. Por favor, não faça isso. Voumelhorar. Por favor!

Pela primeira vez olhei em seusolhos. Ela me olhou profundamente.

— O que há de errado com você,Rebecca?

Sua voz era suave e entendiimediatamente o que ela estavaquerendo. Ela desejava saber todos osdetalhes. Ela queria que eu a deixasseentrar nos segredos de minha família ede meu rosto. Por alguma razão, elaachava que o fato de ser minha

professora lhe dava o direito de olharpara mim como se eu fosse uma atraçãonum show de horrores. Peguei minhabolsa, engoli tudo o que eu queria dizere que havia anos esperava para falar.Virei-me para ir embora. Fiz uma pausa.

— Não há nada de errado comigo,professora. Nada.

Era sexta-feira e eu não queria voltaràquele lugar nunca mais. Hephzicontinuava me dizendo para agirnormalmente, para passar um pouco degloss e tentar ser legal. Ela achava queeu precisava esquecer as coisas,superar, pois todos os meus problemasestavam em minha cabeça. Bem, elamudara o discurso, porque não era assim

que costumava pensar. Se estivesseviva, iria me cutucar e sussurrar: “Elesestão encarando você” ou “Vá para lá,finja que a gente não se conhece”. Elasabia o que significava ser eu, massimplesmente não se sentia como eu mesinto e sempre me sentirei.

Eu achava que as coisas nãopoderiam ficar pior do que estavam.Tinha certeza de que chegara ao pontomais baixo possível e, quando volteipara a casa paroquial, tudo o que queriaera rastejar para cima e afundar-me noesquecimento. Mas eles estavamesperando por mim novamente. O rostodo Pai era medonho e a Mãe olhava porcima do ombro dele, vermelha de

ansiedade. Por um segundo, eu nãoentendi, não conseguia imaginar o quepoderia ser, e então vi o que ele tinhanas mãos: um folheto brilhante, folhas depapel datilografadas. Vi meu nome noenvelope grande branco. Ele tinha aprova, não haveria necessidade de umjulgamento.

Hephzi

Antes

Na sexta-feira, Craig ainda não meadicionara no Facebook e eu me sentiaum lixo. Estava naqueles dias e umaespinha enorme apareceu no meu queixo.De jeito nenhum eu ia correr o risco deir ao pub aquela noite. Daisy falou queeu poderia dormir na casa dela, mas eudisse que não, que tinha de ir embora eficar em casa.

— Como você pode ter de ir embora?O seu pai não tem de fazer todas aquelas

coisas da casa paroquial nos fins desemana?

— Ah, sim. Ele fica ocupado, masminha mãe, Rebecca e eu vamos paracasa da minha avó. — Viu, eu disse quesabia mentir.

— Tá bom, então. Quem vai perder évocê. Nos vemos na segunda-feira.

Ela se virou rapidamente para irembora. Eu corri para encontrarRebecca e nós caminhamos juntas paracasa pela primeira vez em muito tempo.Pensava na mentira que contara a Daisy.

— Reb, você se lembra de quandocostumávamos ir à casa da Vovó?

Ela acenou com a cabeça. Ela odiavafalar sobre aquilo.

— Por que eles não deixaram mais agente ir?

Rebecca olhava para mim como se eutivesse acabado de lhe perguntar qual acor da grama ou se o mundo realmenteera redondo.

— Ele a odiava.

— Sim, mas por quê? O que ela fez?

— Hephzi, não seja estúpida. Ela noslevava para tomar sorvete. Compravasutiã para a gente. Ela nos dizia para nãoacreditar nas mentiras dele. Ele nãopodia suportar. Ele também achava que

um dia ela contaria a alguém o que elefazia com a gente, ele sabia que era sóquestão de tempo.

— Sinto falta dela.

— Eu também.

Estava chovendo e nossos casacosnão eram apropriados para o clima. Nocaminho de volta, ficamos ambasencharcadas. Fui direto para o andar decima e deitei em minha cama, meuestômago doía, e meu cabelo molhadofazia com que os fios úmidos grudassemem volta de meu pescoço. Rebecca veioe me ofereceu uma xícara de chá. Sacudia cabeça.

— Você tem de tirar o casaco

molhado e a calça.

Ela está certa. A calça jeans pesava eestava colada em volta de minhas coxas.

Mas balancei a cabeça novamente.

— Qual é o problema?

Enterrei minha cabeça no colchão eela finalmente se afastou e se sentou emsua própria cama, cantarolando eresmungando. Eu gritei para oscobertores perguntando-me se algum diaeu seria capaz de acabar com tudoaquilo.

Antes de começarmos a ir à escola, eucostumava ficar deitada na cama quandoestava naqueles dias. Minha mãe não

comprava absorventes, então eu enchiaminha calcinha de papel higiênicobarato, que dava coceira, e ficavadeitada até me sentir melhor. Tudovoltaria ao normal em poucos dias.Durante todo o dia, eu me sentei nasaulas com minha calça recheada com umrolo de papel higiênico, rezando paraque o papel desse conta e eu não sujassenenhum lugar. Minhas coxas estavamirritadas por ter andado até em casadaquele jeito. Eu chorava em meucolchão um pouco mais. Rebeccasentou-se do lado de minha cama ecutucou meu ombro. Dei de ombros.

— Aqui — disse ela.

— Vá embora!

— Trouxe uma coisa para você. —Virei para olhar. Ela estava segurandoum absorvente e dois analgésicos.

— Onde você conseguiu isso?

— Na gaveta dela. Bem lá na parte detrás. Era o único, sinto muito.

Eu rolei para fora da cama, peguei ascoisas e fui para o banheiro me arrumar.Salpiquei meu rosto com água fria eolhei para o pequeno espelho. Estavatão rachado e manchado que era difícilver meu reflexo, mas posso dizer quemeu rosto estava vermelho e manchado.Eca! Sentada ao lado da banheira eu meperguntava o que iria fazer.

Quando a segunda-feira chegasse, eu

faria o possível para estar com uma caramelhor. O fim de semana estava sendohorrível, mas Rebecca fizera minhalição de casa na noite anterior para queeu pudesse lavar meu cabelo e minhasroupas. Eu tinha pouca roupa. Já usaratudo que havia duas vezes, e logo Daisyiria notar. Devolvera as roupas dela nodia seguinte à nossa ida ao pub, mas elapegou o top e a calça jeans, enrolou-os eos colocou dentro da bolsa como se nãofossem nada. Às vezes, a Sra. Sparksnos trazia coisas e eu esperava que elaaparecesse logo. Ou eu poderia ir vê-la,só para dar uma refrescada em suamemória. Ficava me perguntando se elasabia o que acontecia… Eu precisava demais absorventes, então, no caminho

para a escola, teria de persuadirRebecca a distrair o farmacêutico comalguma de suas muitas doenças para queeu pudesse roubar um pacote. Não souuma boa ladra, fico nervosa,especialmente quando penso no queaconteceria caso eu fosse pega. Mas eunão podia continuar a colocar aquelestrapos velhos em minha calça, lavando-os e pendurando-os para secar noquarto. Eles nunca ficavam limpos, asmanchas permaneciam no mesmo lugar,lembretes escuros do sofrimento. Pelaprimeira vez, Rebecca fez um bomtrabalho na farmácia, e eu saí portaafora para rapidamente subir em direçãoa High Street sem ela. Nós nos

atrasaríamos para a chamada, mas quemse importava? Não esperei por minhairmã, eu não podia deixar as pessoas nosverem juntas muitas vezes, então meapressei e entrei na escola indo diretopara a sala de estudos. Eu tinha aprimeira aula vaga e queria verificarminhas mensagens. Havia um monte depostagens no Facebook, e eu fui rolandoa página para ler o que o restante docolégio estava fazendo enquanto euestava presa na casa paroquial comRebecca e meus pais. No fim de semana,Rebecca e eu tínhamos feito as tarefashabituais e, então, fomos para apenitência, de joelhos no chão frio depedra da igreja, durante seis horasinteiras. Para o deleite dele, esse fora o

nosso castigo por não responder suasperguntas sobre o sermão. Eu mepergunto se deveria postar isso noFacebook.

Contudo, meu coração disparouquando vi que Craig finalmente aceitarameu pedido de amizade e até me enviarauma mensagem privada. Corando esorrindo, cliquei nela.

Onde você esteve no fim de semana? Vocêperdeu uma noite incrível. Festa na minha casano sábado. Venha.

Achei que talvez estivesse delirando.Aquela era a coisa mais emocionante detodos os tempos. Eu iria à festa nem quefosse a última coisa que fizesse; se o Pai

descobrisse, provavelmente seria aúltima mesmo. Aquilo tinha de ser aprova de que Craig gostava de mim tantoquanto eu gostava dele. Tinha de ser.

Daisy apareceu no meu ombro eposso garantir que ela estava seesforçando para olhar a tela de meucomputador. Eu rapidamente minimizei ajanela.

— Oi! — Ela parecia feliz em mever, e sorri de volta.

— Foi legal lá na casa da sua avó?

Lembrei-me da mentira com rapidezsuficiente para responder sem pausa:

— Ah, sim, foi tudo bem.

— Tivemos uma noite tão boa nasexta-feira. Você realmente perdeu!

Eu dei de ombros, o que meimportava?

— Depois que tudo acabou, nósfomos para a casa do Scott; os pais delenão estavam lá e foi quase uma festa. Oirmão mais velho dele também estava lácom todos os seus amigos… Meu Deus!Tinha um cara, Billy, ele era… perfeito!

Eu ia concordando com a cabeçaconforme ela me contava a história, masna verdade eu não estava ouvindo nada;estava pensando no que eu precisariafazer para escapar no sábado. Presumique Daisy saíra com um dos caras mais

velhos e que o veria no fim de semana.Ela estava orgulhosa disso e eu estavacontente, pois significava que ela nãoestava mais atrás de Craig e talvez eutivesse uma chance.

— Então você vai levar esse carapara a festa do Craig?

— O quê? — Por um segundo, Daisypareceu não ter certeza e em seguidasorriu largamente, jogou o cabelo e deude ombros: — Talvez, se a gente nãotiver nada melhor para fazer.

Finalmente fui para a aula e sentei-me, sonhando acordada, enquanto faziauma experiência de Física. Por sorte, euestava fazendo dupla com Jack, que era

um nerd, e ficava mais que feliz em fazertodo o trabalho para mim. Era fácilmantê-lo mansinho. Eu só tinha desorrir, e ele ficava vermelho até a raizdos cabelos. Ele provavelmente gostavade mim; a maior parte dos nerds temsorte se uma garota lhe dá atenção emalgum momento do dia, imagine então seela lhe disser quão legal ele é. Então eucontinuei bajulando Jack, e elecontinuou fazendo o trabalho duro. Achoque essa relação estava dando certopara nós dois, no entanto, é claro queRebecca desaprovaria. Ela diz que estoutirando vantagem dos outros e que tudobem fazer isso com ela, mas que eudeveria respeitar mais as outraspessoas. Ela consegue ser uma chata às

vezes. Não me surpreende que não tenhaamigos.

De qualquer forma, encontrei Samarae Daisy na hora do almoço no pátio eelas estavam reclamando sobre a festade Craig.

— Como é que você foi convidada enós não? — indagou Samara, cruzandoos braços e olhando para mim com acabeça inclinada para o lado.

Dei de ombros. Eu realmente nãotinha ideia.

— Você acha que poderia nosconvidar?

Mais uma vez dei de ombros.

— Acho que posso pedir a ele. — Eunão conseguia disfarçar a relutância querastejava em minha voz e sabia quesoava muito óbvio que eu não queriafazer aquilo.

— O que foi? Você não quer que agente vá? — Agora Daisy parecia umalouca, o que era a última coisa de que euprecisava.

— Claro que quero. Só que não tenhocerteza de que o conheça bem osuficiente para, bem, você sabe, pedirfavores.

— Mas Craig me conhece! — Daisyainda parecia irritada. — Não sou umapessoa qualquer, não é como pedir para

levar sua irmã mongoloide, não émesmo?

Por um momento, minha cabeça giroue divagou. Eu pensava se Daisy eraminha amiga. Achava que ela gostava demim. Eu não sabia por que isso doíatanto. Sabia o que ela pensava, é claroque sabia. Mas ela não deveria ter dito.Eu não podia simplesmente rir e deixarpra lá.

— Pergunte você mesma para oCraig, já que o conhece tão bem, Daisy.— Levantei-me e fui embora. Desculpe,Rebecca. Foi o melhor que pude fazer.

Chorar no banheiro não ajudou muito.Fiz isso durante a tarde sem falar com

ninguém. Eu não conseguia olhar para orosto de Rebecca enquantocaminhávamos para casa. Ela achou queeu ainda estava chateada por causa dofim de semana.

— Um dia as coisas vão sermelhores, Hephz — disse ela.

Eu forcei um sorriso.

— Ah, é? Quando?

Estávamos chegando à casaparoquial, então ela parou e olhou acasa. Pareceu pior do que nunca.

— Quando eles morrerem. Ou quandoa gente morrer, acho.

Ela resmungava as palavras de modo

silencioso, mas sua raiva era notóriacomo uma tempestade.

Eu estendi o braço e o coloquei emtorno dela.

— Não seja boba. Nós vamos ficarbem. — De repente, sou a únicatrazendo conforto e gostaria de poderlhe dar um abraço, mas se nossos paisnos vissem haveria problemas. Entramosem casa e começamos nossas tarefas:lavar os pratos, lavar a roupa — osintermináveis deveres de casa — e,então, quando pensamos que poderíamosrelaxar, ele nos ordenou quedescêssemos. Era uma das noites em queele queria que ficássemos com ele.Tentei olhar ao redor, esquecendo-me

de que estava ali, mas ele não ia medeixar em paz aquela noite.

Ajoelhada no chão na frente dele, elepenteava meu cabelo. Acho isso meioestranho; quando eu era pequena, tudobem, mas agora eu não gostava.

Ele interrogava Rebecca sobre aescola, mas as respostas dela erammonossilábicas, e eu pediasilenciosamente a ela para falar umpouco mais, porque eu podia sentir ocorpo tenso dele atrás de mim. Quantomenos ela falava, mais firmemente eleafundava a escova em minha cabeça acada palavra que ela não pronunciava.Tentei sinalizar para ela, mas ela nãoestava olhando para mim. Ah, Rebecca,

salve-me, salve-me, eu gritava dentro deminha cabeça e, de repente, ela se viroupara nos olhar e o viu segurandofirmemente meu pescoço com uma mão ecom a outra pronta para escovar meucabelo com força. Vi meu horrorrefletido nos olhos dela e quis vomitar.

— Meu professor de Física me disseque eu não estava estudando o suficiente— disse Rebecca, com clareza. —Preciso melhorar senão vou para adetenção.

Ele me deixou e foi na direção dela.As palavras usuais. Fracasso. Vergonha.Verme. Lixo. Tapei meus ouvidos e fuipara o quarto, no andar de cima, para meesconder. Eu queria não fugir. Um dia,

vou esconder aquela escova de cabelo ea cinta. Vou acabar com os planos dele.Mas, por enquanto, deixei minha irmãlevar a surra que seria minha.

O que mais ela levou que deveria serpara mim ao longo dos anos? O que elefazia com ela enquanto eu fugia e meescondia? Como numa mó, meus pais amoíam, fazendo-a andar em círculos,empurrando-a, punindo-aimplacavelmente por pecados que nósnem sequer sabíamos que existiam.Quando eu parava e olhava, percebiaque a cada ano ela estava menor, comose tivesse se desintegrado um poucomais. Um dia poderá não restar maisnada, apenas um grão de poeira

dançando num facho de luz. Então, quemirá me acobertar? Quem irá me salvarquando eu cair?

Finalmente tudo acabou e ela rastejouaté as escadas e por todo o carpete docorredor como uma mariposa à beira damorte. Eu a ajudei a levantar-se e deitar-se em sua cama.

— Sinto muito — sussurrei. Elabalançou a cabeça e fechou os olhos.Podia ouvir seu coração batendo forte,vê-lo vibrando contra as costelas, masela colocou suas roupas em torno de si ese enterrou entre os cobertores. Elaescondeu o corpo, até mesmo de mim.Odiei vê-la sofrendo e olhei para forada janela. Ele bateu nela mais do que

bateria em mim e essa era outra razãopela qual eu nunca deveria ter pedidoajuda a Reb; mas me sentei ao lado delae acariciei seu cabelo. Havia sanguecoagulado em seu couro cabeludo epeguei um pano para tentar limpá-lo.

Ele nunca pede desculpas. Apenas fazde conta que nunca aconteceu nada. Nósnunca ousamos revidar seus golpes,ainda não. Sei o que aconteceria sefizéssemos isso.

Eu me lembrei de quando tinha 12anos e Vovó estava lá. Eles estavambrigando e gritando, e ele seguravaVovó pelo pescoço e gritava em seurosto, ela pedia para ele se acalmar,suplicava para que a Mãe chamasse a

polícia, e então ele a empurrou contra aparede e depois para fora da casaparoquial com tanta força que ela caiu,rolando escada abaixo, e ele bateu aporta. Não quis me lembrar do resto.

Nenhuma de nós foi para a escola naterça-feira. Rebecca sentiu-se muito male eu não quis deixá-la sozinha.Normalmente, ele era esperto com seuspunhos e nunca deixava marcas quepudessem ser vistas, entretanto, daquelavez, ele pareceu não se importar. Achoque estava gostando demais para levarisso em conta. Ele sabia que podia negartudo. Já fizera isso antes. Perguntei seela queria que eu lhe trouxesse algumacoisa, mas ela disse que não. Na hora do

almoço, eu estava entediadaperambulando pelo nosso quarto semnada para fazer e, como Rebecca estavadeitada e muda em sua cama, desci paraprocurar algo para beliscar na cozinha.Enquanto eu procurava algo para comer,a Sra. Sparks entrou.

— Ah, olá, querida!

— Oi! — Sorri mesmo não querendo.A Sra. Sparks é chata.

— Acabei de ajudar seu pai aorganizar umas coisas da igreja paraeste mês. Ele saiu agora. O que vocêestá fazendo em casa? Ainda é cedopara já terem saído da escola. Vocêsacabaram de começar!

— Ah, eu não estava me sentindomuito bem esta manhã. Nem Rebecca.Ela está na cama.

— Pobrezinhas! Precisam de algumacoisa? Sua mãe está fora, em visitas, nãoestá?

Vislumbrei uma chance.

— Ah, precisamos sim, se não formuito incômodo. — Sorri maishonestamente dessa vez. — Estamos semanalgésicos e Rebecca está com uma dorde cabeça terrível. — Bem, isso não eramentira. — E parece que não temos nadapara o almoço também.

Ela não precisou de mais orientaçõese, rápida como uma lebre, voltou com

suprimentos. Era incrivelmente rápida eestava ofegante ao subir os degraus devolta com um saco cheio de guloseimasque trouxera de sua própria cozinha eoutro com roupas e outras coisas. Elaempurrou as sacolas para mim.

— Aqui está, querida. E diga aRebecca que espero que ela se sintamelhor rapidinho. Apareçam sempre queprecisarem, OK?

Mal parando para agradecê-la, fuicorrendo para o quarto com as coisas,jogando os analgésicos para Rebecca eesvaziando a sacola de roupas. Eracomo se elas tivessem caído do céu. Eufalava exultante enquanto Rebeccaobservava. Eu a escutei abrir uma

caixinha de suco e tomar um belo gole,então parei de me preocupar com ela ecomecei a escolher meu modelito parasábado à noite.

Fiz um banquete com as coisas dageladeira da Sra. Sparks e passamos orestante da tarde deitadas em nossascamas, conversando. Rebecca e eupoderíamos conversar muito mais, maseu cochilei enquanto ela me contava umade suas histórias, com o sol tardio deoutono brilhando em nossa direção.Sonhei com a festa, o vestido que iriausar, comigo tropeçando e todo mundorindo e Craig beijando Daisy. Quandofinalmente despertei, fiquei feliz quenada disso tivesse acontecido de

verdade, mas me senti incrivelmentenervosa e confidenciei isso a Rebecca.

— Não tem como você ir. — Elacruzou os braços e sentou-se ereta.

— Por que não? — Ela não podiaestragar isso, mas sei que ia se esforçarpara tanto.

— Porque provavelmente você vaiser pega. Quantas vezes eu vou ter delhe explicar isso?

— Mas eu não fui pega antes.

Ela fez um ruído que era algo entreum bufo e um grito.

— Porque eu ajudei você! Só que nãovou ajudar dessa vez. Você está sozinha

nisso.

— Você tem de me ajudar!

— Não, eu não tenho.

— Sim, você tem.

Aquilo poderia durar horas. Nos duaséramos teimosas, mas, como continuavame sentindo mal, parei de discutir,deixando-a ganhar uma vez e mudandode assunto.

— Então, você vai para a escolaamanhã?

Ela continuava brava e não respondia.Eu a deixei lá, nervosinha, e desci.Atrasar-se para a refeição era pecadocapital, e escutei Rebecca se rastejando

atrás de mim. Ele não falaria nada sobreo que ocorrera no dia anterior, agiriacomo se nada tivesse acontecido, etodas nós faríamos isso também. Talvezdevêssemos contar a alguém sobre ele,não poderíamos continuar assim parasempre, eu tentaria lembrar-me deperguntar a Rebecca depois o que elapensava. Poderíamos contar algumacoisa a um professor ou à Sra. Sparks, e,se pudéssemos fazê-los acreditar emnós, tudo isso acabaria e ficaríamosseguras. Olho para nossa mãe e imaginoo que aconteceria a ela se contássemos.Ela poderia ter problemas também, oupoderia negar tudo e dizer que não tinhanada a ver com aquilo. Ela é uma boamentirosa. O tique-taque do relógio

soava alto enquanto comíamos emsilêncio. Sinto o medo de Rebecca comoum mal em volta do meu estômago e seique o tempo está se esgotando.

Rebecca

Depois

Eu não voltaria para a escola. Agachei-me no patamar da escada, segurando ocorrimão e esforçando-me para ouvirenquanto ele fazia uma ligação e diziaque eu decidira parar de estudar. Até aPáscoa ninguém mais lembraria que euexisti, foi o que ele me disse mais tarde.

Se eu não ia voltar para a escola,então isso significava que não haveriaexame de admissão, o que significavanenhuma qualificação, o que significava

nenhum trabalho. O que significavanenhuma chance de escapar.

Não!

Sim.

OK, simplesmente desista. Bastaficar aqui e morrer, se é isso que vocêquer. Primeiro foi a Vovó, depois eu. Evocê é a próxima, Rebecca, disseHephzi desdenhosamente. Mas eu vira oque acontecia quando se tentava sair.

Ele abriu meu envelope, segurou acarta que me oferecia uma vaga no cursode verão e rasgou tudo em pedaços.Perguntei-me se era possível que aspunições acabassem. Um dia, eucertamente ficaria muito velha ou

corajosa para continuar sendo um objetoda tirania dele. Eu estava com quase 17anos.

Era abril, quase Páscoa, e estávamosmuito ocupados. Aparentemente, euestava ocupada com o chá e a limpezados banheiros, mas, nos bastidores,havia outras atividades para eu exercer.Eu era a Imperfeição de sua Justiça, e,conforme me dirigia seu jogo particularde moralidade, senti a chama queimar denovo e de novo. Eu encolhia minhamente enquanto pensava em todos oslivros que nunca chegaria a ler, ashistórias que ele estava escondendo demim. Não era justo. Por que eu tinha deficar em sua prisão, por que tudo que

sempre amei tinha de ser tirado de mim?Se ao menos eu pudesse fugir. Mascomo? Era impossível. Se minha irmã,minha linda irmã, não conseguira, entãoeu não tinha nenhuma chance. Não havianinguém que pudesse me ajudar.

Por muito tempo fantasiei sobre apossibilidade de viver com Vovó oucom Tia Melissa e Tio Simon. Minha tiae meu tio estiveram no funeral deHephzi, logo no início do ano, haviaquase quatro meses, e acho que elesforam embora com um suspiro aliviadoem seus lábios. Talvez eu devesse tercontado a Tia Melissa quando ela tentoufalar comigo. Seus nomes nunca sãomencionados, e eles não tentaram me ver

desde então. Acho que não posso culpá-los por ficarem longe, é perigosointerferir no que se passa nesta casa.Haja vista o que aconteceu com Vovó.

O Pai me impedira de viver por quase17 anos, mas ele não conseguira impedira primavera que chegava dia após dia, àqual eu assistia. Estava tentando mesalvar. Puxei para o lado as cortinaspesadas da sala um pouquinho, para veras árvores floridas, grandes velasamarelas e creme enfeitavam o jardim,pronto para o verão. A grama estavacrescendo, verde e selvagem, e euesperava que ele me deixasse sair paracortá-la logo, para que eu pudesse sentirseu perfume fresco e o sol na minha

pele. No espelho do banheiro, vi-memais pálida do que nunca, e meperguntava se poderia levantar camadasde minha pele e descascar-me como umpapel antigo. Imaginei que meu corpoviraria pó antes que a tinta do meu futurotivesse a chance de secar.

O relógio tiquetaqueava muitolentamente, mas também ainda haviamuita coisa a fazer. Tive de me manterna ponta dos pés. Talvez ele me testasse;ele gostava de me fazer perguntas parater certeza de que eu estava ouvindoseus sermões, e logo mais haveria ummonte deles.

Eu estava cansada da lista depecados. Eu estava cansada de repetir

seus mantras.

Em outros dias, eu trabalhava para aMãe; eles me empurravam um para ooutro como se eu fosse um rato entre osdois gatos.

Não havia maneira de protestar, entãome envolvia no manto de desilusão daMãe e me armava com o escovão e aágua sanitária. Tivemos de deixar tudoimpecável, a Páscoa é um grande eventoe sempre há visitantes. Ela a temlimpado por toda sua vida, mas essacasa nunca muda. A sujeira estáimpregnada em seus poros. Mesmoassim, esfregamos todos os dias, comfirmeza e por muito tempo. Eu meperguntava o que aconteceria se um dia

ela acordasse e encontrasse cadasuperfície brilhando como nova. Talvezo feitiço se quebrasse e ela sorriria e selibertaria, voando pela porta da frente, efugiria através do jardim verdejantepara ser tragada pelo sol. Ou talvezdesaparecesse numa nuvem de fumaçaou se dissolvesse numa poça noassoalho polido. Não sei. Nós sólimpávamos o primeiro andar e a igreja.Eu não estava autorizada a entrar noquarto deles, e ela não entrava no meu.Não depois do que acontecera. Eugostava de que ela se mantivesseafastada, era melhor assim. E se elavisse a parede agora, se soubesse o queestava escondido lá, crescendo dia apósdia, ela talvez nos machucasse

novamente. Ela não podia cuidar de umacriança; você com certeza não confiariaa ela um bebê.

Normalmente, não nos falávamosdurante o serviço. Na verdade, nemlembro da última vez que conversamos.Então, de repente, na Sexta-feira Santa,ela começou a falar.

— Por que você fez isso? Por quevocê mentiu?

Levei muito tempo para pensar naresposta certa, e mesmo assim ela estavaerrada.

— Eu sabia que vocês não medeixariam ir. — Mantive minha vozbaixa, pois não queria que ele nos

ouvisse.

— Claro que não, você nos traiu.Você é uma covarde em quem não sepode confiar, exatamente como seu paisempre disse.

— Eu só queria outra coisa… Eu nãoposso ficar aqui para sempre. Era umachance de tentar algo novo.

— Você mentiu. A história sobre oacampamento da igreja… Era tudo umamentira.

Balancei a cabeça.

— Eu ia pedir em seu nome. Acheique você poderia ir.

Agora era ela quem estava mentindo,

e eu parei de seguir seus lábios e tenteiouvi-la.

— Você é uma criatura perversa,Rebecca. — Ela se levantou para sair.— Tinha de ser você mesmo.

Meus pais tinham sua definiçãoparticular do que era o bem e o mal. NaIgreja, nosso Pai é um homem de Deus;na cidade, ele é um modelo de virtude;e, na casa paroquial, eu era o mal,porque fora marcada. Foi o que medisseram assim que eu tive idadesuficiente para entender.

Mais tarde, naquele dia, sentei-me naigreja, ao lado da Mãe. As atividades daSexta-feira Santa tinham começado e

seriam longas. Eu não queria ouvir nemuma palavra do que ele dizia. Seu temaera o orgulho e eu transcrevi asbobagens dele e ouvi as palavras umacentena de vezes.

— O orgulho são os trompetistas dodiabo! — declarou ele. — Quando oSenhor Jesus morreu na cruz, por todosvocês, pecadores, o Pecado do Orgulhofoi derrotado. Mas o orgulho de um filhoingrato é um espinho no flanco doSenhor nosso Deus…

Baixei os olhos e tentei fugir dopresente.

No entanto, a lembrança que me veiofoi uma das mais tristes que tenho.

Quando Vovó morreu, eles nos levarampara ver seu corpo naquele caixãobarato, vestida com uma antiga camisolarosa. Eu queria beijá-la e dar-lhe adeus.A sala estava muito fria e as flores, queestavam ali e acenavam tristes nos vasossobre o aparador, logo morreriamtambém. O machucado na testa de Vovóera verde e amarelo, seu rosto estavatriste. Ela tinha um sorriso tão lindo egostava de fazer caretas para nos fazerrir.

Antes de chegarmos lá, eu estava comos dedos cruzados, esperando queaquilo não fosse verdade e que, no fimdas contas, minha avó ainda estivesseviva. Alguém poderia facilmente ter se

enganado, eu pensava. Fiquei olhando,esforçando-me para ouvi-la respirar.

Era inútil. Ela parecia muito maisvelha do que quando eu a vira pelaúltima vez. Velha, derrotada e triste. Elapartira. E eu sabia que ela morreraporque ele não deixava que ela nosamasse, eu sabia que ela morrera porqueele a empurrara. O que eles disseramsobre ela cair da escada, eu sabia queera mentira deles.

Deixei minha memória de ladoquando Hephzi gritou em meu ouvido,mandando levantar-me para a leitura;todo mundo já estava em pé, e ele meolhava, esperando.

Após as orações finais, segui a Mãedesde a igreja até a casa paroquial, etomei meu último gole do mundoexterior antes que ela fechasse a portaatrás de nós.

Chorei pela Vovó e por Hephzi tardeda noite, quando ninguém podia meouvir. Não chorei em seus funerais,mesmo sabendo que isso me fez parecerestranha, porque eu nunca deixaria queos Pais vissem minha dor. Mantenhomeu sofrimento escondido, lembra?

Acordei cedo no domingo de Páscoa,antes mesmo do necessário. Eu queriafalar com Hephzi e dar-lhe meupresente. Sempre lhe dava alguma coisa

em nosso aniversário. Este ano foi umaflor. Era uma campânula branca que eucolhera meses antes, tão frágil que eu aembalava em minhas mãos como sefosse feita de sonhos. Escondi-a noassoalho e guardei por todo aqueletempo. Coloquei-a na cama dela eesperei.

Logo estávamos de volta à igreja paranos certificarmos de que tudo estava emordem. Os sinos tocavam e lá foraestava claro e ensolarado, mas o dia foiescurecendo conforme fechávamos aporta atrás de nós. Quando as atividadescomeçaram, eu me sentia como seestivesse dormindo; escondia meusbocejos com as mãos e fingia que estava

orando. Ele estava esperando uma boaplateia e levou semanas escrevendo seusermão. Eu sabia que não deveria estarme alfinetando e cutucando as cicatrizesem meu coração, no entanto, nãoconseguia parar de pensar no passado,embora lá nem sempre fosse seguro.

A última vez que eu vira nossa avófoi em nosso aniversário de 12 anos.

Nós estamos com 17 anos hoje!,gritou Hephzi. Concordei e disse paraela ficar em silêncio.

Voltando ao 12o aniversário, Vovóchegara cedo para pegar a gente, e aMãe permitira que saíssemos com ela,torcendo nervosamente sua blusa e

lembrando Vovó de estar de voltar antesdas 16 horas. Nós só fomos autorizadasa ir porque Hephzi chorou, implorou efez a maior birra que eu já vira atéentão.

Vovó garantiu à Mãe que nos traria devolta sãs e salvas.

— Claro que vou, sua boba. Agora,vá descansar um pouco, pare com essacorreria. Vou cuidar das meninas, vocêsabe que eu sempre cuido.

Corríamos conduzidas por ela, quenos segurava pela mão, e ela sorria paraHephzi e depois para mim, rindo denada.

Ela perguntara o que queríamos fazer

e Hephzi escolheu primeiro, é claro, ir alojas. Lembro-me de tocar as roupas,segurar os vestidos contra meu corpo,sentindo o cheiro de coisa nova einalando animação. Vovó me comprouuma camiseta cinza e vermelha comMinnie Mouse estampada. Até Hephzidisse que era legal. Em seguida, fomospara o departamento de roupas íntimas eHephzi escolheu seu primeiro sutiã epijamas novos.

— Logo será sua vez, querida —Vovó me disse, mas eu não estava comciúme. Ao contrário de Hephzi, eu nãoqueria crescer; não queria que os olhosdo Pai se fixassem em mim comohaviam se fixado nela.

Depois nos empanturramos comhambúrgueres, batata frita, bolo esorvete. Eu enchia minha boca comcomida tão rapidamente que Vovópareceu preocupada e me disse para irdevagar, que eu poderia comer o tantoque quisesse. Apesar de estar mesentindo meio mal, continuei, como se afarinha, o açúcar e a doçura fossempreencher o buraco dentro de mim queestava crescendo tão rápido que eu tinhamedo de que me devorasse.

Nosso aniversário de 12 anos. Foiapenas da Vovó que recebemospresentes; dela eram o único beijo, oúnico sorriso, a única risada. Escolhi depresente ir a uma livraria e ficamos

sentadas ali por séculos. Tirei um montede livros e me cerquei de histórias.Poderia ter ficado ali durante toda anoite. Vovó riu e comprou dois livrosnovos para mim, de capas duras ebrilhantes, que eu carregavacuidadosamente como um tesouro ouuma carga de dinamite. Eles ficariam nacasa dela, esperando por mim quando eufosse visitá-la da próxima vez.

Depois fomos assistir a um filme, foinosso pedido em conjunto, mas o filmeera mais longo do que Vovó previra e,quando saímos do cinema, com os dedospegajosos por causa da pipoca doce, jáeram 15 para as quatro.

— Não se preocupem, meninas, a

Vovó vai levar vocês de volta sãs esalvas — disse ela no estacionamento,apressando-nos para entrar em seucarro. Lembro-me de como ela dirigira,soltando o freio, o pé fundo noacelerador e a cabeça esticada para afrente, com os dentes mordendo o lábio.Hephzi e eu ficamos quietas no banco detrás, nós nem mesmo disputamos paraver quem sentaria na frente, e comecei aolhar o relógio no painel desejando queo tempo passasse bem lentamente.

Ele já estava lá quando chegamos,esperando. Eu queria ter dito a Vovóque apenas nos deixasse na parte de trásda casa e fosse embora, mas elaestacionara e, determinada, seguiu-nos

para dentro da casa.

— O que é isso? — Ele estavapronto.

— Roderick, como você está? — Avoz dela soava normal, exceto por certotremor quando pronunciou o nome dele.

— Onde você esteve? Você temalguma ideia de que horas são?

— Sim. — Ela ainda estava calma. —São quatro e meia. Nós tivemos nossoalmoço e um dia bom. Agora as meninasestão de volta sãs e salvas. Elas logoestarão prontas para o chá.

— Quem lhe deu permissão para tirarminhas filhas de casa? — Ele deu um

passo na direção dela.

Hephzi já estava na escada,escapulira pelas costas dele, pronta parafugir. A sacola contendo o sutiã queVovó lhe comprara e o par de pijamascor-de-rosa com babados que Hephziganhara de mim como um presente extra(Vovó me dera o dinheiro em segredo episcara, minha cúmplice no plano para afelicidade de Hephzi) estava bem segurajunto a seu peito. O corredor cheirava aperigo, como vinho derramado e carnequeimada. A Mãe estava de pé, na portada cozinha, com um pano de pratoenrolado no braço.

— Obrigada pelo dia legal, Vovó! —Virei-me para minha avó, copiando sua

pretensa civilidade. Eu poderia agir comnormalidade se me fosse dada a chancede fazê-lo.

— De nada, meu amor, minhaprincesa aniversariante. — Ela securvou para me beijar, mas senti a mãodele segurar meu cabelo e puxar-mepara fora do alcance dela.

— Pare com isso! Não ouse!

Eu tentava encontrar os olhos deVovó para suplicar-lhe que me salvassee também adverti-la para que ficassecalada, mas seu olhar encontrou o doPai, e ela deu um passo na direção dele.O topo da cabeça dela mal alcançava opeito dele, ela era pouco mais alta que

Hephzi, mas endireitou os ombros e deuoutro passo na direção dele. Elecomeçou a rir.

— Saia daqui, sua vaca velha eestúpida. E não volte mais.

— Eu não vou sair. Não até que vocême prometa que vai começar a trataressas garotas direito. Não gosto do queacontece nesta casa, é hora disso acabar.

— Caia fora, já falei! — gritou elebem junto do rosto dela, agoraameaçando-a, empurrando-a para trás.

— Ou você muda seu comportamentoou eu vou tomar providências. Prometoisso a você, Roderick.

Ele a agarrou pelo pescoço e aempurrou com força contra a porta.

— Cale a boca! — Seu dedoempurrou o rosto dela, furioso efrenético. — Cale a sua maldita boca efique longe desta família. Elas não têmnada a ver com você.

— Eu sou avó delas. Eu tenho odireito.

Eu queria que ela parasse de discutir.Ela devia ter parado de brigar e salvadoa si mesma, mas foi muito corajosa.Virei-me para a Mãe, rogando com osolhos, mas ela virou as costas eescapuliu para a cozinha, deixando-os.

— Por favor, não machuque a Vovó!

— tentei dizer. — Ela não fez nada, deverdade.

Isso pôs fim a ela. Eu deveria termantido a boca fechada, mas souestúpida desse jeito, sempre piorando ascoisas. Ele a jogou para fora da casa,bateu e trancou a porta, fez umabarricada com o corpo e virou o rostona minha direção.

Respingos de sua saliva atingiamminha bochecha enquanto ele rosnavaseu ódio e salpicava-me com seudesgosto.

Depois desse dia, ela desapareceu denossa vida; ele a fez desaparecer comoum gênio forçado a voltar para a sua

garrafa. Tudo o que restou foramalgumas conversas sussurradas aotelefone, e um cartão de Natal queconsegui salvar antes que ele tivesse achance de destruí-lo. Sua caligrafia erafraca e hesitante, como se sem mim eHephzi ela estivesse gradualmente sedesintegrando.

Ela nunca mais voltou.

A Mãe me cutucou para me acordardo sonho e eu voltei para as oraçõesfinais. Havia mais pessoas em torno doPai que o habitual, e ele estava de pésobre o altar entregando ovos dechocolate de uma cesta para as criançasque se reuniam em volta dele com as

mãos estendidas. Nunca uma cesta teriasido confiada a mim, meu rosto iriaassustá-las. Mas Hephzi teria gostado defazer esse trabalho, e ele a teria deixadofazer.

Ela roubou a cesta uma vez; foi pertode nosso décimo aniversário. Eu a videsembrulhar um ovo com seus dedoságeis e, em seguida, enfiá-lo inteiro naboca, com o rosto dissolvido em êxtase.Ao mesmo tempo, ambas percebemosque a Mãe a vira também. Pensei por umsegundo que Hephzi iria chorar, mas elanão chorou. Ela pegou outro ovo, tirou-lhe o papel brilhante e o colocou naboca aberta de nossa Mãe, tornando-acúmplice do pecado. A Mãe não cuspiu.

E também não admitiu quando, maistarde, ele contou os ovos. Adivinhaquem levou a culpa?

E agora eu estava presa com ele nacasa paroquial.

Parabéns, Hephzi, sussurrei ao fimdo dia.

Ela não respondeu. Mas a paredeatrás de sua cama se deslocou e gemeu.

Tudo ficou em silêncio depois daPáscoa. Ninguém em particular visitou acasa paroquial e eu não pude sair. Eucontava as horas, e, conforme medisseram para fazer, criei vergonha nacara e aprendi a andar na linha

direitinho. Tracei um caminho de dor, eele deixou novas cicatrizes em meucoração. Sempre que podia brincava dojogo do invisível e fingia que eu nãoexistia.

De vez em quando a Sra. Sparksaparecia, e era sempre um alívio vê-la.Eles odiavam a vinda dela, no entanto,ela nunca percebeu e simplesmentecontinuou a aparecer, surpreendendo-nos. Quando ela estava presente, eletinha de ser agradável.

Ela é o que eles chamam de sacristã eé eficiente nisso, lista na mão, caneta emriste, pronta para fazer o serviço onde equando ela puder. Eu a conheço desdepequena. A Sra. Sparks gosta do Pai.

Ele a impressiona com suas palavrasdifíceis ao ensinar dogmaticamentesobre Deus e Seus desejos para orebanho. Ela flerta com ele, alisa-lhe oscabelos e se oferece para trazer asflores para a igreja, mesmo quando nãoé sua vez. Ela não tem ideia. Dequalquer forma, ela não entendia o fatode eu ter deixado a escola tãorapidamente quando todos os outrosestudantes da cidade tinham voltadopara iniciar o período de verão no fimde abril, e seus olhos afiados e rápidosme fitaram enquanto eu trazia emsilêncio um chá doce. Ela levantou umasobrancelha.

— Por que você não está na escola,

Rebecca? Os exames serão em breve,certo?

Não me atrevi a responder.

— Querida, tenho certeza de que vocêé muito útil na paróquia, mas é um fardopara seus pais ter de sustentá-la nessaidade. Se você não se preocupa com osestudos, então tem de encontrar umemprego.

O Pai acenou com a cabeça e fingiuconcordar com a avaliação dela,protestando que eu era muito tímida paratentar, mas o que eu sabia era queacabara de conseguir um dia livre.Muito obrigada, Sra. Sparks.

Em vez de viver o restante de minha

existência na casa paroquial, eu estavaprestes a ir para a porta ao lado.

A porta do abrigo ao lado era o lugarpara todas as pessoas que ninguém maisqueria por perto. Se você querdescansar o rosto contorcido, se sua vozsai vacilante, se você tem dificuldadepara ouvir, se você estiver velho e seesquecendo das coisas, então é ali quevocê vai acabar. Era para lá que euestava indo.

— Você vai se dar bem lá — disseele, rindo, antes de bater a porta, tardeda noite, quando eu estava deitada nacama.

No começo foi difícil. O cheiro das

horas vividas na renúncia constanteficou em minha roupa, e eu o levavacomigo para meu quarto no fim de cadadia. Não gostei de olhar para aquelascaras; eu não queria sentir o mesmo queas pessoas sentem quando me veem.

Hephzi não iria, ela me disse, nãohavia maneira de fazê-la pisar naquelelugar.

Aquilo fede a urina, diz ela, e osesquisitos me assustam. Suspirei e fuisozinha. Qualquer lugar era melhor quea casa paroquial.

No meu primeiro dia, a mulher nocomando, a Sra. Sweet, entregou-me osprodutos de limpeza e comecei a

trabalhar nos banheiros. Foi um trabalhoduro e tentei sonhar enquanto esfregavaas manchas amarelo-escuras na bordados vasos sanitários. Lembrando-me daparte que estava lendo de Middlemarchantes do Pai tê-lo rasgado, mantiveminha mente fora do passado e termineia história em minha cabeça. O maucheiro e as manchas nos vasos sanitáriosse recusavam a ser ocultados, mas pelomenos eu não precisava temer passos nocorredor, esboçando dor. Na hora doalmoço, eu estava suada e fedida; tinhade tentar ir à farmácia e roubar umdesodorante, como Hephzi fazia. Eupoderia apenas imaginá-la fazendocaretas para mim e apertando o narizquando eu voltasse mais tarde. Os

cuidadores comiam junto com osmoradores na sala iluminada pelo sol, eeu senti um nó no estômago enquantoobservava as coisas acontecerem deforma desordenada. Observei-os, e, pelaprimeira vez, eu era a única a observartodos, e foi estranho ver aquelaspessoas, seus rostos enrugados pelavida, usando babadores de plástico esorvendo por canudos segurados pormãos mais jovens e pacientes.Pesarosamente, olhei para meu prato emexi na salada. Eu não conseguia comera sopa, não enquanto via tantos rostosdefinhando e sendo amassados portantos punhos.

Eu não me importava com o trabalho.

Era mais fácil lá do que na casaparoquial. Os Pais foram me deixandosozinha e, embora eles nãoacreditassem, o silêncio deles era umalívio. O padrão se repetia dia após dia.Eu limpava, esfregava, ajudava a vestir,a trocar e a alimentar. Hephzi ainda semantinha longe quando eu estava lá, e eurealmente não podia culpá-la. Ninguémfalava comigo, embora sorrissem. Osoutros cuidadores e faxineiros eramprincipalmente trabalhadoresestrangeiros, da Europa Oriental ou dasFilipinas, mas não importava o fato deeles não entenderem o que diziam osmoradores, já que nenhum deles falavacoisa com coisa mesmo.

Era outra sexta-feira, mas eu não iasair. Estava em meu quarto, que estavarelativamente limpo. Eu sabia que asmanchas estavam aumentando e evitavaolhar para elas, mas estavam ficando detal maneira que, se eu nem ao menostentasse limpá-las, elas poderiamestourar. O aspirador arrotava e gemia,e, quando terminei de limpar o chão,esfreguei as paredes nas quais ficavaencostada a cama de Hephzi. Mesmoenquanto eu trabalhava, parecia que elascontinuavam crescendo, inchando comobarriga de grávida sobre a tinta que elaesperançosamente passou na parede.

Você está estranha, Reb!, diziaHephzi, sorrindo, e eu concordava e

tentava pensar em outras coisas. Mas asmarcas entravam no meu campo de visãosempre que eu movia os olhos. Euesperava não estar aqui quando elasexplodissem. Hephzi riu quando lheexpliquei isso. Ela me disse que eudeveria crescer e deixar de ser um gatoassustado.

É bobagem, é apenas umidade,afirmou.

Entretanto, eu não queria ver seubebê. Eu não queria vê-lo deitado nochão, como geleia, sem olhos ou boca.Eu sabia que tinha de sair — a casaestava cheia de fantasmas.

Nas noites de sexta-feira, Hephzi

costumava fugir. Era sua grande noitecom Craig, toda semana. Ela nãovoltaria até as primeiras horas damadrugada; eu sabia porque ficavaacordada, esperando, preocupada.Quando Hephzi estava viva, eu nãoqueria um namorado, o pensamento fezmeu interior coagular, mas agora…Agora. Talvez eu possa encontraralguém. Alguém que possa me olhar ever mais que meu rosto.

Hephzi costumava sair pela janela, éum clichê, mas funcionava para ela. Háuma árvore velha pendendo perto denosso quarto, e Hephzi, de algumaforma, encontrou uma maneira de descersem quebrar o pescoço. Craig a

esperava na rua, em frente à casaparoquial, e ela pulava na traseira damotocicleta dele, e eu tinha de meesticar para ouvi-los saindo pelaAvenida Principal. Fui até a janela e aabri. Inclinei-me e olhei para fora. Anoite estava calma e silenciosa, eurespirava o doce ar fresco e a meia-luzbatia em meu rosto.

Como Hephzi conseguia ser tãovalente? Como ela conseguia arriscar-senoite após noite? Pedi-lhe que mecontasse, que me desse um pouco de suacoragem e um pouco de seu coração,mas ela não disse palavra.

Cautelosamente, subi no parapeito,esperando que a lâmina da janela não

descesse sobre mim como umaguilhotina, dividindo-me em duas. Eucostumava mantê-la aberta para Hephzi.Por muito tempo fiquei sentada ali,metade do corpo para dentro, metadepara fora. Quando ficou muito escuro ecomeçou a esfriar, voltei para dentro esentei-me em minha cama, olhando paraa saliência na parede oposta.

Hephzi

Antes

No dia seguinte, fui para a escola,apesar de Rebecca ainda estar muitomal. Ela teria de ficar na casa paroquialaté que estivesse em condições de servista. Mas uma de nós teria de ir àescola ou, conforme a Mãe disse,poderia haver falatório. Enquanto saíade casa e subia a rua em tempo recorde,senti-me culpada pela sensação deliberdade. Craig estava lá no portão,fumando, bonito, com seu boné caindo-lhe na testa. Fui devagar, fazendo-me de

interessante.

— Tudo bem? — perguntou-mequando fui me aproximando. Com ummovimento de cabelo, abri um sorrisorápido em sua direção e continueiandando como se fosse passar direto,sem parar para conversar. Craig entrouna minha frente, bloqueando minhapassagem, e percebi como ele é alto,agora que estávamos tão perto um dooutro, e olhei em seus olhos, tão escurose sensuais como eu imaginara.

— Oi! — De onde saiu essa voz? Euestava parecendo uma menininha.

— Para onde está indo com tantapressa?

— Para a chamada — disse eu,alterando minha voz, sorrindo com osolhos, mas fazendo cara de falsareprovação.

— Isso é perda de tempo. Vamos cairfora daqui.

Era isso. A hora da verdade. Maiscedo ou mais tarde isso aconteceria, eledescobriria que sou uma grandefracassada. Se tivesse sido em qualqueroutro dia, eu estaria fora da escola numestalo, mas, se eu desaparecesse e meuspais descobrissem, Rebecca seriacastigada novamente. E eu também. Poroutro lado, sei que, se não fosse comCraig dessa vez, ele provavelmente nãoiria mais se preocupar em me chamar no

futuro. Aquela poderia ser minha únicachance. Ele deu um pequeno sorriso etocou em minha cintura. Eu estavaprestes a me render.

— Desculpe, eu tenho prova. Nãoposso faltar. — Reb ainda me pedirapara anotar a lição de casa para ela.

Ele deu um passo atrás, deu deombros, olhou para o outro lado epartiu, correndo, indo para qualquerlugar que não o bloco de ciências.Esforcei-me para que minhas pernas melevassem na direção certa e eu me dessemal na prova.

Contudo, quando chequei o Facebookna hora do almoço, havia uma

mensagem. Do Craig.

Espero que você não fure no sábado.

Achei que isso significava que eleainda estava interessado em mim. Conteia Samara, e ela concordou, disse que eufizera a coisa certa:

— Trate-os mal, mantenha-osinteressados, garota. É assim quefunciona!

Concordando, guardei a informaçãopara referência futura. Eu pensava teraprendido todas as regras, mas, pelojeito, ainda faltava muita coisa. Após oalmoço, nós duas tínhamos aulas vagas,então fui para a casa de Samara, ela

sintonizou na MTV, e fiquei fazendoanotações mentais. Daisy certamenteassistira a alguns desses clipes muitasvezes; eu me lembrava dela dançando nopub. Ela sabia todos os passos certos etinha todas as roupas certas. E toda aarrogância. Suspirei. Craig nuncaolharia para mim enquanto ela estivessepor perto. Samara disse que isso não eraverdade e que eu era tão bonita quantoDaisy. Não consegui evitar um sorriso.Eu sempre quis ter uma amiga, e asensação era melhor do que euimaginava, era uma sensação gostosa equentinha, na barriga e na garganta,assim como a que nos proporcionava ochocolate quente que a Vovó nosoferecia quando voltávamos do parque.

A mãe de Samara entrou no quarto combebidas e guloseimas. Ela abriu umlargo sorriso para mim e me convidoupara voltar. Aparentemente, por ser afilha do pastor, devo ser uma boamenina, ao contrário de Daisy, que éuma má influência. Foi isso que Samaracochichou para mim enquanto eu iaembora sob uma enxurrada de outrosconvites. Nós rimos, eu joguei a mochilasobre meu ombro, prometendo quepediria a Craig que a deixasse ir à festadele, e parti, sentindo-me bem comohavia muito tempo não me sentia.

Ao voltar para casa, não percebininguém andando atrás de mim até que jáera tarde demais. Ele agarrou meu

braço, segurando apertado, do jeito queeu conhecia tão bem, e virei paraencará-lo.

— Não vai ficar na escola esta noite,Hephzibah?

Balancei minha cabeça. O que meupai estava fazendo, seguindo-me,espionando-me na rua?

— Estive fora, fazendo minhasvisitas. Muitas pessoas no bairroprecisam de mim, sabia, Hephzibah?

— Eu sei.

— De fato. Bem, é estranho. Talvezvocê possa me ajudar a esclarecer certomistério. — Sua voz era um poço

escuro, frio e perigoso, no qual eupoderia cair sem deixar nenhum rastro.

— Sim?

— Alguém me disse que viu você noúltimo fim de semana, bem, na sexta-feira à noite, para ser mais preciso.Andando pelas ruas.

— O quê?

— E então? — Ele apertou mais fortee eu tentei escapar. Seu rosto estavainflexível. — Espero poder confiar emvocê, Hephzibah.

— De-devem ter se confundido —gaguejei.

— Se eu quiser, posso acabar com

suas ambições no colégio. É bom vocêse lembrar disso, não acha?

Acenei com a cabeça. Ele soltou meubraço, mas ficou muito perto, andandode modo que nossos ombros quase setocavam. Pensei que ele haviaterminado, no entanto, começou de novo.

— O que quero dizer, sendo maispreciso, é que não quero mais ouvirnenhuma história sobre uma filha minhase comportando como uma vagabunda.— Ele se inclinou ao pronunciar asúltimas palavras, sussurrando em meuouvido. Acenei freneticamente com acabeça, desesperada.

Rebecca o odiava, porém, como ele

era menos severo comigo, eu conseguiafingir que não o odiava. Eu fazia o quetinha de fazer para sobreviver. Mesmoque tivesse de fingir que os seus pioresatos não aconteciam de fato. Eu não eraforte como Reb, mas ela era burra. Davapara ver a aversão dela por ele pulsandocomo ondas radioativas, e ele a pegavadesse jeito, várias e várias vezes.

— Espero que você esteja seesforçando nos estudos. — Eu engoli eacenei com a cabeça. — Sua mãe não iabem na escola. Ela não precisou, pois secasou comigo. As ambições de umamulher servem melhor a uma casa,Hephzibah. Este é um mundo moderno, eas pessoas esperam atitudes modernas,

mas, pessoalmente, acho o jeito antigomelhor. Você não concorda?

O tom da conversa era tão perigosoquanto as ameaças e eu apertei o passo.Ele me acompanhou com facilidade.

— Eu disse: você não concorda?

— Acho que sim.

— Então não vai mais haver nadadessa besteira.

— Ah, mas eu quero muito terminareste ano escolar. Por favor. — Faleinum tom suave e lisonjeiro e tenteisorrir de um jeito que sempre meajudava a conseguir as coisas.

— Veremos.

Minha única chance de escapar eradesaparecer. Em pânico, esforcei-mepara pensar em algo que justificasse oque eu disse.

— As pessoas vão achar estranho senós largarmos a escola assim quecomeçamos. É apenas minha terceirasemana! E estou aprendendo muitascoisas. Eu juro, coisas que serão muitoúteis. Imagine como ficará orgulhoso demim quando eu tirar boas notas!

Ele respirou puxando o ar entre osdentes, e, ainda bem, estávamos de voltaà casa paroquial antes que eu memetesse em alguma encrenca. Corri esubi as escadas para ver Rebecca, queficou feliz quando entrei no quarto. Seu

rosto ainda estava inchado, mas umpouco melhor que antes, e seu sorrisoera mais sincero.

— Como foi o dia?

— Ótimo.

— Como foi na prova?

Fiz um sinal de desdém.

— Me dei mal, com certeza. Mas nemligo. O Craig estava me esperando hojede manhã.

— O quê?

— É, ele queria que eu matasse aulacom ele.

— O quê? — Com a voz uma oitava

mais aguda. — Você não matou, né?

— Não. Mas só por sua causa.

Olhei para ela de modo firme, e elaacenou com a cabeça, afundando-se devolta na cama.

— Da próxima vez, vou sumir daqui,rápida como uma flecha, isso eu garanto.Não tenho tempo a perder, Reb, é sério.Você Sabe Quem me seguiu até em casa.Era como se ele estivesse merastreando, e aí ele começou a falarsobre o colégio e que as garotas devemficar em casa. Toda essa merda. Enfim,ele vai tentar fazer a gente parar de ir,então, preciso arrumar uma saída erápido. Essa é minha única chance.

Houve uma longa pausa que eu malpercebi, até que ela falou novamente,numa voz tão baixa que eu mal escutei.

— E quanto a mim?

Dei um grande suspiro exagerado.Com as mãos na cintura, parei ao ladodela.

— Deus ajuda àqueles que se ajudam,Rebecca. Você já sabe disso.

Ela conseguiu dar uma risadinha.Sentei ao seu lado.

— Falando sério, irmã, você precisapensar no que vai fazer. Você não podeficar aqui para sempre. Não é seguro.Ele vai matá-la qualquer dia desses. —

Ela agarrou meu pulso com força.

— Eu sei. Eu sei. Mas como eu possofugir? Para onde eu poderia ir?

— Comece a dar um jeito nisso.

— Bom, que tal se eu fosse comvocê? — Ela soava chorosa. Apertei suamão gentilmente.

— Por mim, estaria tudo bem, Reb,você sabe disso, mas ainda nem seicomo vou fazer para sair, não é? Entãonão posso prometer nada. Seria melhorse tivéssemos cada uma seu próprioplano.

— Por que nós não vamos emborajuntas? Simplesmente fugimos?

— Com que dinheiro? Não temos umlugar para ir e não quero viver comouma mendiga, fugindo, vivendo nas ruas.Não! Nós precisamos de ajuda. Vocêprecisa começar a pensar nisso.

— Você não precisa depender de umgaroto, você sabe.

— Pelo menos é um plano. É melhorque nada.— Fiz uma pausa e resolvi medefender. — E não estou dependendototalmente dele, eu só gosto dele, tá?

Ela deu de ombros. Eu sabia que meachava patética, mas ela era tanto quantoeu. Ela não estava fazendo nada paraajudar a si mesma. Mas eu não podia tê-la pendurada em mim, dependendo de

mim. Eu não poderia cuidar de tudo paranós duas. Não conseguia fazer isso nemcomigo mesma, e era por isso que euprecisava da ajuda de Craig. Tinhamedo de fazer tudo por minha conta.

Após um tempo, ela falou:

— Você precisa de mim tanto quantoeu preciso de você, sabia?

Nem me preocupei em responder. Elaveria o quanto estava errada.

A festa de Craig estava me deixandomuito preocupada. Eu não só tinha minhaprópria irmã gêmea se recusando a meajudar, como também meu pai de olhoem mim, observando-me não importavaaonde eu fosse. Ou, se não ele, seus

espiões. Só Deus sabe quem estavacontando coisas para ele. Meusprofessores? Meus amigos? Nãoimaginava do que ele era capaz. Noentanto, se eu não aparecesse, sabia queas coisas com Craig iriam por águaabaixo de uma vez por todas.

Minha cabeça girava em pequenoscírculos tentando pensar num jeito de irà festa. Eu me ajoelhei para Rebecca,mas ela não cedeu. Não adiantava pedira Deus, eu não achava que ele estivesseouvindo a gente. Como eu disse a Reb,você precisa ajudar a si mesmo.

Talvez eu conseguisse que Samara meconvidasse para ir à casa dela, aí suamãe ligaria para falar com a minha mãe

e diria que estou convidada para passara noite lá. Entretanto, eu não sabia comosugerir essa ideia a Samara e estavapreocupada com o que eu deveria terque dizer para que ela me ajudasse.Muitas coisas poderiam dar erradonesse plano, ela poderia querer vir aqui,ou algo do tipo, e de modo algum issopoderia acontecer.

Falei com a Mãe na quinta-feira ànoite, após ter passado o dia pensandono que fazer. São Roderick saíra parauma reunião do conselho paroquial enão havia chance de nos interromper.Encurralei-a na cozinha. Ela estavalimpando e arrumando as coisas,distraída e ocupada como sempre.

Estava frio na cozinha, mesmo com umtempo anormalmente quente para o fimde setembro, e tive um arrepio. Ela nãoquis parar e me ouvir, mas eu a empurreipara uma cadeira.

— Olha, é o seguinte. — Debruceisobre ela, e, apesar de seus olhosparecerem desafiadores, eu sabia quepoderia fazê-la ceder. Se eu nãosoubesse que conseguiria fazê-la meajudar, não teria nem por que tentar.

— Como é que é? — Ela cruzou osbraços e piscou rapidamente.

— Eu preciso sair sábado à noite.Preciso que você dê um jeito.

— Você não pode sair.

— Posso sim. Se você não der umjeito, então, eu vou contar.

— E o que você quer dizer com isso?— Ela arregalou os olhos penetrantes eme fitou de um jeito mortal. Eu sabiaque ela sentia ciúme de mim, mas euainda era sua favorita. Ela não daria aRebecca nem a merda em que ela pisara.Na verdade, favorita é a palavra errada,eu era apenas a que ela odiava menos.As coisas seriam melhores entre mim eela se ele não ficasse me assediando, eusabia que era isso que a incomodava,mas eu não o encorajava a isso, emboraela pensasse o contrário. Agora não eratão ruim como quando eu era mais nova,mas havia algo no jeito de ele olhar para

mim que às vezes me fazia tremer.Apesar de ele nunca ter feito nada alémde segurar minha mão, escovar meucabelo ou me fazer sentar em seu colo.Eca. Eu tinha 16 anos, não era mais umabonequinha. Eu não me esquivava, poisisso só pioraria as coisas, mas tentavanão ficar sozinha com ele, Reb faziaquestão de garantir isso.

Parti para o ataque.

— Eu vou fazer meus professores etodos mais que quiserem ouvir saberemexatamente o que se passa nesta casa.

Ela projetou o queixo, determinada.

— Você não ousaria. Seu pai vai darum jeito em você.

— Não, ele não vai. Se você não fizerisso por mim, juro que farei da sua vidaum inferno.

Ela nem imaginava que eu estavaprestes a molhar as calças de tantomedo. Chantagem, se é assim que sepodia chamar, era coisa nova para mim,mas eu estava desesperada e disposta atentar qualquer coisa. No passado, eu jáa manipulara apenas imitando nosso Pai,gritando, batendo o pé, dando a ela otratamento do silêncio ou, caso aquilotudo não funcionasse, empurrando-a eameaçando-a. Eu era maior e mais forteque ela. Ela era quase tão magra quantoRebecca. E eu estava torcendo para nãoter de apelar para isso. Ia me fazer sentir

como ele.

— O que você quer que eu faça?

Ela cedeu muito rápido e eu a olheicautelosamente.

— Certifique-se de que ele estejaocupado no sábado à noite. Garanta queeu possa sair e voltar sem que ele saiba.

Fiquei esperando ela rir da minhacara.

— Como? — disse ela, com seu tomde voz patético.

— Sei lá. Beber? Fazer sexo? Rezar?Qualquer merda que vocês dois façamjuntos. Estou pouco me lixando. — Eununca falara coisas assim a ela antes. O

palavrão não foi planejado, masconfesso que ajudou bastante no efeitofinal. Ela ficou verde. — Temos umacordo, então?

Muito, muito lentamente acenou com acabeça e me afastei, mas ela nãodemonstrou muita pressa para selevantar. Se ela desistisse do nossoacordo, seria meu fim. Ela certamenteenxergava isso. O fato de confiar nelapara me ajudar significava que ela teriade decidir. Ou eu. Ou ele. Essas eram asopções.

Depois disso, as horas se passarammuito devagar. Graças à sacola dedoações da Sra. Sparks, eu finalmentetinha uma roupa mais ou menos decente

para vestir, então poderia quase relaxarem relação à minha aparência. Pegueium blush novo na farmácia hoje, nocaminho da escola para casa, e oadicionei ao meu estoque. Agora eu játinha um gloss, a sombra da Mãe, oblush e um rímel velho que vi Daisyjogar no lixo do banheiro das meninas,na escola. Eu voltei lá e o recolhi, eainda havia bastante, como euimaginava. Daisy tinha tudo e eu tentavanão sentir inveja disso, ou pelo menosnão deixar que ela percebesse quanto eucobiçava suas coisas. Mas ela ainda nãovoltara a conversar comigo desde abagunça sobre os convites da festa, e eunão a perdoara pelo que ela disserasobre Rebecca, então achava que ela

não era mais minha amiga. Eu supunhaque ela apareceria de qualquer jeito, eSamara também pensava assim. Daisyodiava perder qualquer coisa. Nósandamos reclamando dela um pouco, noentanto, eu tomava cuidado para nãofalar demais, por precaução. Ela eSamara eram amigas desde sempre, e eunão sabia se podia mesmo confiar emSamara. Às vezes, as pessoas nãoacreditam no que dizem.

Com Craig, porém, seria diferente.Você pode contar o que quiser para seunamorado, é assim que funciona, e eleslhes contam seus segredos também. Nósfaríamos tudo juntos. Ele seria meu novomelhor amigo e me amaria mais do que

qualquer um já amou. Seria como numdos livros que Rebecca lê. Jane Eyre[7]talvez, mas ele não seria cego, e eu nãoseria chata. Ainda assim, ele me amariadaquele modo — apaixonadamente,como se pudesse morrer por mim sepreciso fosse. Talvez fôssemos maiscomo Elizabeth Bennet e o Sr. Darcy.[8]Ele tinha de me ajudar a fugir, e foi issoque Darcy fez, ele resgatou Elizabeth desua terrível família, e Craig poderiafazer o mesmo, porque eu tinha certezaabsoluta de que não conseguiria fazertudo sozinha, e Rebecca estava enganadase achava que poderíamos conseguir nosvirar juntas lá fora. Eu não conseguianem cuidar de mim mesma, imagine

cuidar dela também. Você tem deconhecer suas limitações. Sem dinheiroou qualificação, eu não conseguiria iralém da cidade mais próxima, e ele meperseguiria, me pegaria e me traria devolta tão rápido quanto quisesse.

Craig não era um nome muitoromântico. Se ele tivesse um nome comoFitzwilliam ou Heathcliff seria melhor.Mas eu não era tão superficial a pontode ligar para esse tipo de coisa. Ele eralegal e inteligente e gostava de mim.Essas eram as coisas mais importantes.

Rebecca disse para eu ir dormir,então eu tentaria cochilar um pouco,mesmo que os pensamentos nãoquisessem me deixar em paz. Pedi a ela

que me contasse uma história e ela mecontou a de Darcy novamente. Umaalegria.

Rebecca

Depois

Quanto mais horas eu trabalhava naCasa de Repouso, mais eu recebia. Elenão poderia pedir para receber em meulugar, então eu tentava esconder algumdinheiro. Você poderia achar que euaprendera a lição, mas eu não era boaaluna. Não mais. Como você pode ver,eu encontrara outra coisa na qual eraboa. As pessoas da Casa de Repousoestavam satisfeitas comigo, a Sra. Sweetdisse que eu era uma profissional, e euestava começando a me dar conta de que

tinha alguma chance. Como eu sempredizia a Hephzi, nós conseguiríamos issopor nós mesmas. Vovó dissera issotambém e ela estava certa. Quando eufazia um dos residentes sorrirlargamente ou quando apenas estava nolugar certo quando precisavam, eu sabiaque não era uma inútil. Grande coisa,dizia Hephzi, mas isso era importantepara mim.

Eu tinha certeza de que o Pai sabiaque eu estava economizando, mas euestava me dando bem até então commeus pequenos atos de rebeldia. Eleestava bebendo mais e mais, e aatmosfera na casa paroquial ficara tãopegajosa quanto a cola que usam na

Casa de Repouso quando os residentesfazem trabalhos manuais. Penas,lantejoulas, feltro; eu os ajudava a fixaras coisas e limpava o chão depois queterminavam. A visão deles sentadoscomo um bando de reis e rainhas loucos,usando coroas brilhantes e sorrindo, fez-me sorrir.

Pela manhã, eu saía de casa para ir aotrabalho, puxava a porta, fechando-aatrás de mim, e tomava grandes goles dear fresco. O começo do verão estavaquente e doce, e eu bebia e percorriagrandes distâncias sem direção antes deretomar a estrada que levava à Casa deRepouso. Eu me sentia bem por medesprender de minha pele pegajosa da

casa paroquial. Era bom ser como umapessoa normal. Se eu visse a Sra.Sparks, eu acenaria. O carteiro disse oipara mim, e eu sorri. Eu quase conseguiaesquecer os pesadelos que deixara paratrás no meu quarto. Tentava não mepreocupar com eles todos, presos ali,chorando e murmurando; afinal decontas, eu convidara Hephzi para vircomigo até o trabalho, e ela escolheuficar em casa.

Eu estava me acostumando com aspessoas da Casa de Repouso também;eles não eram uma ameaça e, às vezes,se eu esperasse o suficiente, um delespoderia abrir os olhos, e eu conseguiria,por um momento, ver quem eles tinham

sido. Uma senhora idosa, de quase cemanos, com olhos azuis incrivelmentebrilhantes. Eles brilhavam em seu rosto,nítidos, estrelas piscantes, e eu sabiaque ela estava pensando em coisas quenão podia dizer. Eu me sentava esegurava sua mão sempre que tinha umtempo, e ela gostava, eu sabia. Hojeencontrei uma pilha de livros na sala deconvivência, alguém deve tê-los doado eeles foram empilhados numa mesa decafé, parados. Não eram clássicos nemnada especial, no entanto, eram livros,histórias, páginas com palavras. Decidique leria todos eles. Talvez eu os lesseem voz alta para minha nova amiga,pensei que ela pudesse gostar.

Enquanto trabalho, faço planos.Danny, o cozinheiro, sempre ri de mim eme pergunta com que estou sonhando. Aprimeira vez que ele me falou isso eucorei.

— Está tudo bem, querida, eu nãomordo!

Baixei os olhos e fui para longe, mas,de vez em quando, eu reunia coragempara parar e conversar um pouco comele. Danny ouviu quando falei sobreCyrilla, a senhora de olhos azuis, e disseque faria o prato favorito dela com maisfrequência. Ela não podia mastigar,então tínhamos de amassar tudo, mas eusabia que ela gostava muito de seurosbife com batata assada e molho. Ela

nunca cuspiu isso.

— Então, o que uma garota legalcomo você está fazendo num lugar comoeste? — perguntou-me Danny enquantoeu o ajudava com os vegetais para oalmoço. De alguma forma, ele dera umjeito de eu ser transferida dos banheirospara a cozinha. Levava séculosdescascando, fatiando e picando, masera definitivamente mais divertido queesfregar os banheiros. Dei de ombros.

— Quantos anos você tem?

— Dezessete.

— Bem, você não deveria estar nafaculdade ou algo assim? Meu filho,Archie, que acabou de completar

dezesseis, está fazendo os exames dequalificação do Ensino Médio. Ele estápensando em continuar, obter maisqualificações. Você não quer passar orestante de sua vida cortando vegetais,quer?

— Não. Não quero. — Olhei aoredor, arrependida, esperando queninguém tivesse me ouvido. Não queriaque pensassem que eu estava sendoingrata.

— Então? Vá, termine a escola,encontre algo que você goste de fazer ebusque seu sonho.

— Eu tentei. Eu não era boa osuficiente.

— No quê?

— Matemática.

Ele riu.

— Existe vida além da matemática.

— Não era apenas isso. Os outrosalunos, os professores, eles nãogostavam de mim. Eu não me encaixavalá.

— Olhe. — Danny parou o que estavafazendo e veio até mim, ficando ao meulado. Olhei seu peito largo. Então eleagarrou meus ombros e eu tive delevantar os olhos e encontrar seu olhar.Ele foi incrivelmente gentil. — Suaaparência não importa, querida. Talvez

esses alunos ajam de forma estranha,mas você tem de lhes dar uma chance.Meu caçula, Ben, tem síndrome deDown. Ele frequenta a escola e tem ummonte de amigos. Não desista de suavida. Certo?

Senti as lágrimas começarem aescorrer, então deslizei minha cabeçapara a frente, para que ele não visse. SeDanny fosse meu pai, as coisas teriamsido diferentes. Eu teria sido diferente.

— Olhe — disse ele. — Há ummundo grande lá fora, e este é um lugarpequeno. Cidade pequena, mentespequenas. Você pode ser maior que isso.OK? — Ele me deu um tapinha noombro, gentilmente, com sua mão

enorme. Lancei-lhe um sorriso em meioàs lágrimas, esfregando o rosto com amanga da blusa. — Agora, de volta àscenouras! — Eu sorri novamente evoltei a descascá-las.

No dia seguinte, ele me convidou parair à sua casa para almoçar, paraconhecer seus filhos e sua esposa nopróximo domingo.

— É meu dia de folga. Cheryl faz umassado delicioso. Venha, ela vai adorarconhecer você.

Não respondi. Era meu primeiroconvite, o que eu deveria dizer? Euqueria agradecer-lhe. Entretanto, aosdomingos, eu trabalhava em casa, tinha

de limpar a igreja, comparecer aosserviços, lavar a roupa e participar dasorações. A Mãe nunca me deixaria sair,e eu nem pediria ao Pai. Não nosfalávamos havia mais de uma semana, eera melhor assim. Então, só balancei acabeça, e ele encolheu os ombros,tentando não parecer aborrecido. Achoque provavelmente deixei Dannychateado, aposto que ele diria à suamulher que eu era um bicho assustado,mas eu não podia explicar, não tinhapalavras.

— Quem sabe outro dia. Avise-mequando puder.

Concordei e saí de fininho para serútil em algum lugar, as areias movediças

da decepção seguravam meustornozelos. Naquela noite, eu estavadeitada na cama me perguntando comoeu poderia ir à casa de Danny. Hephziriu silenciosamente. Se eu não tivessecoragem sequer para fazer uma visita aum amigo, então como conseguiria sairdaquele lugar? Eu lhe disse para ficarquieta e ela falou que Danny era umbastardo estúpido e velho. Decidi queteria de me arriscar e mentir.

Hephzi

Antes

Era sexta-feira e eu estava malucaprocurando por Craig em cada canto, emcada sala de aula. Ele não estava emlugar nenhum e a frustração me alcançouquando Rebecca começou a meimportunar no caminho de volta à casaparoquial.

— Então você vai mesmo a essa festa,né?

— Sim.

Eu estava debruçada na janelaobservando o céu. Ele estava repleto deestrelas e se estendia ao longe. Euimaginava onde Craig estaria, sob qualpedacinho do céu. Suspirei.

— E se você for pega?

Eu não lhe contara o que dissera àMãe. Não sei por quê, mas precisava dealguns segredos por ali, e, de qualquerjeito, eu não podia ficar com Rebeccaem minha cabeça cem por cento dotempo. Nós normalmente contávamostudo uma para a outra, no entanto, agoraas coisas eram diferentes e ela teria deaprender a se virar sem mim.

— Só segure as pontas para mim,

OK?

Virei para olhá-la, e ela estava comos joelhos dobrados sob o queixo. Seupijama era muito curto nas mangas e naspernas, ela era toda cotovelos etornozelos e aquele rosto triste. Suspireinovamente. Ela entendeu a mensagem edeslizou para debaixo das cobertas.

— Vai dar tudo certo — prometi-lhe.— Você não vai se meter em nenhumaencrenca e eu vou ter uma ótima noite.Fique feliz por mim, Reb, OK?

Ela encolheu os ombros em algumlugar debaixo do cobertor e murmuroualgo que não entendi. Quem seimportava?

Eu, porém, não conseguia dormir depreocupação.

Por volta de meia-noite,repentinamente me dei conta de queCraig, afinal, poderia não estar a fim demim. Eu não tinha muita experiênciacom essas coisas, talvez não tivesseentendido os sinais, coisa que poderiater acontecido facilmente. Eu pareceriauma perfeita idiota. Ou poderia ser umapiada e, quando eu chegasse lá, todosapontariam para mim e ririam. Sentei-me na cama, horrorizada, e quaseacordei Rebecca sacudindo-a paraperguntar o que ela achava. Mas elaestava tão quieta e calma, para variar,que não insisti em perturbá-la. Os

pesadelos dela normalmente amantinham acordada por metade danoite; ainda bem que conseguia dormir,mesmo com eles. Em vez disso, disse amim mesma que ficasse tranquila, nãoparecesse muito desesperada e deixasseque ele viesse atrás. Samara e Daisyriam de meninas que ficavam atrás doscaras — elas são tristes, fracassadas,patéticas. Eu não queria que as pessoasfalassem isso de mim. Como Samaradizia: “trate-os mal, mantenha-osinteressados”. Eu só queria que elegostasse de mim.

Mesmo estando cansada de manhã,não importava. Nós limpamos eesfregamos os degraus da igreja e,

enquanto fazíamos isso, eu cantarolava.O olhar cortante de Rebecca cruzou emminha direção, ela podia sentir minhaansiedade e isso a estava deixandolouca. Eu estava tão animada que quasea chamei para ir também, mas então melembrei do que Daisy dissera e fechei aboca. Não queria que as pessoas rissemdela. Ou de mim. Ela não saberia o quevestir, ou dizer, ou fazer, e ficariapendurada em mim o tempo todo.Rebecca poderia melhorar sua aparênciase ela se esforçasse um pouco mais. Elanunca seria bonita nem nada assim, mas,quando você se acostumava, seu rostonão parecia tão feio. A Vovó costumavadizer para nossos pais que elesdeveriam levá-la ao médico, ao dentista,

em consultas no hospital por causa desua audição, mas eles nunca a levaram.Seu aparelho auditivo era um modeloantigo, que ela conseguira quando teveaquele ataque depois que ele bateumuito forte nela e a Sra. Sparks viu etiveram de levá-la ao hospital. Asenfermeiras perceberam que ela nãopodia ouvir e deram um jeito. É claroque ele se livrou de toda a história semmuitos problemas. As pessoas são tãocrédulas e, sempre que ele lhes contaque é pastor, é como se dissesse que éJesus ou algo assim. Ao fim das contas,arrumaram para ela aquele parafuso nacabeça, com uma caixinha que fica juntodele, e por um tempo ela dizia que era

como se as pessoas gritassem com ela odia todo. Não demorou muito para queele quebrasse o aparelho e ela voltoupraticamente a ter de ler lábios. Se aMãe me delatasse, eu contaria sobreisso também, sobre como eles nãodeixavam minha irmã curar os ouvidos,ou arrumar os dentes, ou realizar umacirurgia. Eu procurei na Internet edescobri que existem coisas que podemser feitas para as pessoas com essasíndrome, coisas sobre as quais eu nãosabia e que Rebecca decerto nemsonhava. Quando eu estivesse livre, eu aajudaria, não a deixaria para trás parasempre. Talvez ela até pudesse vivercomigo e com Craig, assim que ele seacostumasse com ela, e poderíamos ser

uma família normal.

Não levei muito tempo para ficarpronta. Tomei um banho, mesmo queisso não fosse permitido num sábado,nem em nenhum outro dia, na verdade.Mas ele saíra, então eu podia. Ele diziaque uma vasilha com água fria erasuficiente, o idiota. Lavei meu cabelocom o pouquinho de xampu que vinhaguardando para essa ocasião. O cheiroera delicioso. Eu adorava meu cabelo eele estava lindo e cheiroso comodeveria. Era longo, castanho-claro eondulado, mais bonito ainda que o deDaisy. Eu fingia ser uma sereia edeixava o cabelo flutuar sobre meu rostoenquanto me esticava sob a água morna.

Rebecca assistia a tudo silenciosamenteenquanto eu me vestia e secava ocabelo, então ela veio e o cheirou.

— O que é isso?

— O que você acha, idiota?

— Onde você conseguiu?

— Da Samara.

— Você roubou?

— Só um pouquinho — disse eu,tentando não me irritar com ela. — Elanão vai nem perceber, eles têm ummonte. — Da última vez que eu estivelá, coloquei o máximo que pude numpequeno frasco de plástico que roubarado laboratório de ciências

especialmente para aquele fim, e nãoestava me sentindo culpada por aquilo.Por que as outras pessoas podiam tertodas as coisas boas? Eu achava quemerecia um pouco também.

Rebecca ficou quieta. Ela meobservava.

— Sobrou um pouco?

Olhei para ela, que ficou vermelhacomo um tomate. Acenei com a cabeçalentamente.

— Sim, um pouquinho, por quê?

Ela deu de ombros e eu procurei emminha bolsinha e entreguei o frasco aela.

— Aqui. Pode ficar, tá?

— Obrigada. — Ela acenou com acabeça e enfiou o frasco debaixo docolchão. Um tesouro. O cabelo deRebecca era bom também, não era tãovolumoso quanto o meu, mas aindaassim era bonito quando estava limpo epenteado. Correndo para terminar de mearrumar, passei o rímel, o blush e ogloss e virei-me para que ela pudessedizer o que achava. Ela observou ebalançou a cabeça de novo.

— Ficou bom.

— Ah, claro, muitíssimo obrigada.

— O que você quer que eu diga?

— Nada. Esquece. Estou indo.

— Você vai simplesmente sair pelaporta da frente? Como se isso fosse umacoisa normal e tal?

— Sim. É exatamente isso que voufazer, Rebecca. Até logo!

Saí e desci as escadas, a casa estavasilenciosa e eu tinha certeza de que meuspais não estavam lá, estariamprovavelmente na igreja, ao lado, ouvisitando um paroquiano. O que tornavaa oportunidade perfeita. Escutei minhairmã me falando para tomar cuidado eapertar o passo.

A casa de Craig não era longe, mas eu

ia chamar Samara primeiro, então fiz umpequeno desvio. Eu estava andando tãorápido que quase corria, e evitei olharpara trás. Fiquei esperando sentir umamão saindo da escuridão da noite,agarrar meu ombro e levar-me de volta àcasa paroquial, onde iria decretar suavingança. Não era à toa que eu estavasuando quando cheguei à casa deSamara. Ela estava pronta e tentamossair imediatamente, mas sua mãe noscolocou para dentro e fez uminterrogatório, além de mandar Samaracolocar um casaco. Finalmenteconseguimos escapar e corremos rindopela estrada.

Ainda eram oito e meia quando

chegamos à casa de Craig. Lembrei amim mesma sobre não ficar bêbada evomitar dessa vez, para ser indiferente edescolada. Eu segui em direção a casa,mas Samara parecia relutante.

— Está muito cedo.

— Ah, é?

— Sim. Ninguém chega a uma festaem casa tão cedo assim.

— O que a gente faz, então? — Senti-me meio boba de repente.

— Daisy está indo ao pub. Vamos verse a gente consegue encontrá-la.

Eu realmente não queria fazer isso eestava pensando em como dizer a ela

quando um grupo de rapazes parou ocarro na frente da casa de Craig. Elesdesceram e seguiram pela calçada,desaparecendo na pequena casa, quepareceu engoli-los.

— Viu? — falei, gesticulando, e emseguida fomos para mais perto, ouvindoa batida pulsante da música enquantonos aproximávamos da casa.

A porta da frente estava aberta,convidando-nos, e seguimos pelo saguãovazio até a sala e dali até a cozinha.Algumas meninas que eu não conheciaestavam servindo vinho e rindo, elas nosolharam e depois voltaram a conversar.

— Onde está Craig? — cochichei

para Samara.

— Como posso saber? — Elacochichou de volta e tropeçamos nodegrau dos fundos, indo para o quintal.Formas escuras lentamente semodelavam em corpos enquanto nossosolhos ajustavam-se novamente à luz, quediminuía rapidamente. A música estavamais alta lá, e senti uma onda de sanguefluir no meu coração, minha boca ficouseca quando alguém saiu das sombras eandou em nossa direção.

— Tudo bem?

Acenei com a cabeça. Samaratambém. Craig parou e me olhou de cimaa baixo. Ele não disse nada. E então:

— Você quer beber alguma coisa?

— Sim, por favor. — Já meesquecera de que deveria tomarcuidado, e fiquei ansiosa para que elebotasse uma garrafa gelada na minhamão. O líquido era doce e ácido, e entãodei um gole, e depois outro. Ele me deuum cigarro também e, ao aproximar-separa acender o dele junto com o meu, achama do isqueiro iluminou brevementeseu rosto, e ele deu um rápido sorrisopara mim. Súbito, tudo ficara muitobom.

Mais pessoas chegaram e fiqueiconversando com algumas garotas queeu conhecia da escola e outras que nãoconhecera ainda. Craig me apresentou

para seu irmão mais velho, Jamie, e medeu outra garrafa de uma bebidaalcoólica, doce e pegajosa, que me fezrir de alguma coisa boba. A músicaestava mais alta e alguém me arrastoupara dançar na sala de estar, onde luzespiscavam e brilhavam nas paredes, etodos os móveis haviam sidoempurrados para os cantos. Tenteientender como a sala realmente era emum dia normal e fiquei imaginando porque os pais de Craig o teriam deixadodar aquela festa. Os pensamentos nãoficaram em minha cabeça por temposuficiente antes de virarem pequenasfagulhas voando pelo espaço, então fuidançar com os outros. Como estavaescuro, eu não me importava, achava

que estava tão bonita quanto qualqueroutra e me esforçava para copiar o jeitocomo eles dançavam, cantando palavrasque eu não conhecia, sorrindo ebalançando o cabelo, bebendo dosuprimento infinito de garrafas queapareciam em minha mão. Com asensação de já ter passado horas ali,percebi que estava sentindo muito calore procurei a saída para tomar um poucode ar.

No gramado da frente, avistei Daisy.Eu nunca vira o cara com o qual elaestava, que parecia muito mais velho.Ele estava com o braço em volta dosombros dela, e ela com o braço em tornoda cintura dele. Encostei-me à parede da

casa, sentindo o tijolo ásperopressionado contra meus ombros, eobservei-os por um momento, esperandoo enjoo passar. Eu não queria estarbêbada, mas estava, e fiquei pensandose não devia tentar ir embora escondida.Daria para chegar em casa antes de meexpor como uma idiota na frente deCraig. Mas, se fizesse isso, perderiaminha chance e poderia não ter outra.Antes que Daisy me visse, voltei paradentro e subi as escadas para achar umbanheiro. Se eu me escondesse até estarme sentindo melhor, talvez acabassedando tudo certo, mas o banheiro estavatrancado e eu precisei encontrar outrolugar para me esconder. Entrei no queparecia ser um quarto, acendi a luz e me

arrastei para dentro, como uma ladrafaria. Deveria ser o quarto de Craig,estava bagunçado e havia uma guitarra eum amplificador no canto, roupasespalhadas pelo chão, uma pilha enormede livros sobre a cama desfeita.Sentindo-me culpada, fui até a cama eme sentei entre uma confusão de capasde livro. O cheiro daquele quarto eradiferente do cheiro do que temos emcasa. A sensação era diferente também.Menos como uma jaula, mais como umatoca. Meu corpo me dizia para deitar, eassim o fiz, e acabei dormindo com umsorriso no rosto.

Se Craig não tivesse me encontrado eacordado, só Deus sabe o que teria

acontecido. Minha cabeça estavarodando e pulsando quando emergi demeu sono profundo, e soubeimediatamente que precisava vomitar.Empurrei-o, corri para o banheiro evomitei. Logo em seguida vieram aslágrimas e me sentei na borda dabanheira, tremendo e me sentindo muitomal. Alguém bateu à porta e eu soubeque era Craig quando ele falou:

— Você está bem?

Não consegui responder, eu não tinhanada a dizer.

Ele tentou de novo.

— Posso entrar?

Balancei a cabeça e esfreguei as mãosno rosto ranhoso e cheio de lágrimas.Qualquer maquiagem que pudesse tersobrado em meu rosto estava escorridaem minhas bochechas. A náusea me fezlembrar de nunca mais tocar numa gotade álcool novamente. Craig entrou eescondi o rosto.

— Aqui.

Ouvi a torneira ligada, e ele seguravauma toalha úmida. Peguei-a, segurando-a inutilmente com as mãos. Ele a pegoude volta e levantou meu rosto, limpandoa bagunça nele. Meus olhos estavamfechados, então não tive de vê-lo compena de mim.

— Pronto. Você está bem agora.Como se sente?

— Um pouco melhor, obrigada.

— Ainda está enjoada?

— Não. Acho que não.

— Que bom. Você vem comigo?

Ele foi até a porta. Eu queria pará-lo,mantê-lo lá cuidando de mim mais umpouco.

— A festa já acabou? — pergunteifinalmente.

— Não, é uma da manhã, ainda écedo. Tem um monte de gente ainda.Vamos descer. Vou pegar uma bebidapara você. — Ele olhou para o meu

rosto e riu. — Quero dizer, água.

Dei um jeito de rir também e elesegurou minha mão enquanto voltávamospara baixo, espremendo-nos entre aspessoas no saguão e indo para a cozinha,que parecia ter se encolhido à metade dotamanho original. Ele tirava as pessoasdo caminho empurrando com os ombros,puxando-me junto com ele, atéchegarmos a um canto onde estava a pia.Encaixei-me no espaço do canto e Craigficou entre mim e o restante do mundo.Ele me deu um copo com água e bebitudo.

— Melhorou?

Acenei com a cabeça, dessa vez

olhando em seus olhos.

— Ótimo. — Ele sorriu para mim, umsorriso sincero, e, antes que eu pudesseperceber, veio com o rosto perto do meue nossos lábios quase se tocaram. Elenão me beijaria na cozinha, pensei, elenão poderia, e não beijou. Em vez disso,ele cochichou em meu ouvido:

— Você fica mais bonita semmaquiagem, sabia?

— Muito obrigada.

Ele se afastou e encolheu os ombros,seu sorriso desaparecera. Toquei amanga de sua camiseta.

— Podemos ir lá fora? Preciso de um

pouco de ar.

Ele me puxou em meio à multidãonovamente, as pessoas tentavam pará-lono caminho, mas ele continuou andandoaté chegarmos ao quintal, onde tudocomeçara, horas antes. Sentamo-nos emduas cadeiras de plástico no pequenopátio pavimentado. Fiquei olhando paraa escuridão e percebi que ele estavaolhando também.

Eu não queria que ele me deixasse,mas eu não conseguia pensar em nadapara conversar que o mantivesse alicomigo. Então, disse a primeira coisaque veio à minha cabeça:

— Como seus pais deixaram você dar

essa festa?

— Eles não sabem.

— Meu Deus, o que eles vão fazerquando descobrirem?

— Sei lá.

— Você não está preocupado se vãodestruir tudo?

Ele balançou a cabeça.

— Eles nos conhecem, não fariamisso.

— Como assim? — perguntei,intrigada.

Ele não respondeu, apenas deu deombros como de costume.

— Você acha mesmo que eu ficohorrível de maquiagem? — Deixeiescapulir. Que droga!

— Eu não disse isso. — Ele suspirou.— É que eu gosto de garotas que sãobonitas, tipo, naturalmente. Foi aprimeira coisa que notei em você. Vocêparecia… natural, diferente ou algoassim.

Como eu posso ter parecido natural?Trancada naquela casa dia sim, dia não,nós mal saíamos de lá a menos que fossepara algum serviço miserável.

— Ah! — falei.

— É, enfim, você faz o que quiser. Aspessoas deveriam sempre fazer o que

querem.

— Eu concordo. Por isso vim hoje.Meus pais não sabem que eu saí, mas euqueria vir, então vim. — Eu estavasendo patética. Não deveria tercomeçado nunca aquela conversa, mas,às vezes, eu só queria poder contar tudoa alguém.

— Por que eles não deixariam vocêvir?

Ele estava me olhando maisintensamente, como se quisesse mesmosaber, e eu sabia que, ao fim e ao cabo,não podia dar a ele a respostaverdadeira.

— Porque eu tenho só dezesseis anos.

Porque eles não conhecem você. Nãosei. É que eles são superprotetores coma gente. Sabe como é, acham que tudoque é tipo de coisa pode acontecer.

— Então você vai se ferrar quandovoltar?

— Não, Rebecca, minha irmã, vai medar cobertura.

Droga, eu não queria ter mencionadoRebecca, mas escapou, como se elaestivesse a noite inteira ansiosa parafazer uma aparição.

— Sua irmã?

— Sim.

Ele pegou o cigarro do bolso de trás e

me ofereceu um. Balancei a cabeça.

— Por que você não está bebendo?— perguntei, observando-o fumar.

— Porque não.

— Você nunca fica bêbado?

— Não. Eu fumo maconha de vez emquando, mas só quando tenho vontade.Com a bebida é a mesma coisa.

Que bom, podemos ficar sóbriosjuntos, pensei.

— Você vai mesmo para auniversidade? Daisy me contou.

— Talvez.

— O que você quer fazer?

— Medicina, acho. Se eu passar.

— Por que não passaria?

— Não acho que os professores medarão boas referências, não é?

— Você vai ter de começar a ir àaula, então.

Ele me olhou por um momento comose eu fosse maluca e assentiu lentamente.

— Talvez. Minha mãe adoraria.

— Onde ela está?

— Está fora com o namorado, emalguma droga de viagem de fim desemana que eles planejaram.

— Então você não gosta do namorado

dela?

— Esperta você, não?

Calei a boca, não gostando de seu tomde voz. De repente, ele estava tenso denovo, e eu, desconfortável na cadeira,esfregando as mãos nos braçosarrepiados com o frio da noite.

— Toma. — Craig tirou seu casaco eme deu. Eu o vesti, aconchegando-me noque sobrara do calor de seu corpo, e mevirei para agradecê-lo, mas seu rostoestava bem na frente, e dessa vez ele mebeijou. Era quente e frio ao mesmotempo, sua boca tinha gosto de cigarro ede algo doce, talvez açúcar. Eucorrespondi, do mesmo jeito que ele

estava me beijando, e não queria que eleparasse nunca. Ficamos lá sentados, sónos beijando, sem nem conversar, pormuito tempo. Ele colocou os braços emvolta de mim e me puxou para perto, eeu sorria enquanto sua boca cobria aminha de novo e de novo. Mas isso nãopoderia durar para sempre. Preciso ir,disse a mim mesma, e finalmente meafastei.

— É melhor eu ir.

Ele concordou e levantou-se,ajudando-me a ficar de pé também.Imaginei como encontraria o caminho devolta naquela escuridão e fiqueipreocupada com o que encontraria.Olhei em seu relógio, pegando seu braço

e puxando a manga. Três da manhã. Porfavor, não me deixe ser pega agora,por favor, esta noite não pode serarruinada. Em frente à casa eu parei,pronta para me despedir, mas elecontinuou andando comigo, e nosbeijamos, e andamos, e nos beijamos, eandamos, o caminho inteiro até em casa.Ele não queria conversar muito quandonão estávamos nos beijando, mas eu nãoliguei, já estava muito feliz por ele estarali comigo. A casa paroquial surgiu ànossa frente cedo demais. Eu o fiz parare me despedi dele.

— Não posso entrar, então? — Eleforjou uma cara de desapontamento, e eufranzi as sobrancelhas.

— Vejo você na segunda-feira —disse-lhe. — Por favor, vá à escola.

— Tudo bem. Por você — assentiu.

Então eu corri, subi e fui pelosfundos, entrei, subi as escadas e mejoguei na cama. A casa inteira estava emsilêncio, minha respiração parecia umainvasão por um exército, e eu tinhacerteza de que acordara alguém emalgum lugar. O quarto balançava com asbatidas de meu coração, eu podia ouvi-lo expandindo-se e comprimindo-se sobas cobertas e tentava silenciá-lo. Masestava sorrindo como uma garota louca.Eu nunca iria parar de sorrir.

Rebecca

Depois

Levei uma semana para realmenteacreditar que poderia fazer aquilo. Eunão sabia se estaria segura indo poraquele caminho. Tinha certeza de que seme perdesse ninguém iria me ajudar eentão eu nunca encontraria o caminho devolta. O mundo era um mar de perigo eeu poderia facilmente me afogar.

Lixo. Você fala um monte de lixo,Rebecca. Você estará mais segura láfora do que aqui!

Talvez Hephzi estivesse certa.

Domingo chegou. Arrastei-me até obanheiro e tomei banho cuidadosamentee, em seguida, coloquei a blusa azul deHephzi. Foi um achado; Hephzibah apegara de um dos sacos de caridadeantes que fosse mandada embora. Elaera nova quando Hephzi a encontrou erealçava meus olhos.

— Mãe. Eu tenho de trabalhar hoje.

Ela virou a cabeça redonda e olhoupara mim. Eu estava de pé próximo àporta da cozinha, ela estava fazendo chá.Seria fraco; os saquinhos de chá sempreeram utilizados pelo menos duas vezesantes de serem jogados fora. Por um

momento, o sol bateu em seu rosto e euquase podia ver-lhe os ossos e o sangueatravés da pele, correndo tão raloquanto a bebida que ela mexia.

— Não. Você tem seus afazeres aqui.

— Bem, receio que eles precisem demim na Casa de Repouso. Eu já disseque iria. Um dos outros cuidadores estádoente. Você vai ter de dar um jeito defazer as coisas sem mim.

— Não vou conseguir deixar a igrejapronta sem você. — Ela consultou orelógio. Nuvens de pânico espiralaramsob seu roupão e ela começou a correr,o chá quente jorrava do bule, enquantoela murmurava palavras

incompreensíveis em meio à respiração.O Pai estaria esperando por seu café damanhã no andar de cima, como elegostava. Para mantê-la calma, recuei umpouco.

— Vou dar uma mão para começar,mas estarei fora antes das primeirasatividades.

Ela balançou a cabeça e correu atéele. Fiquei imaginando o que ela lhediria e esperava os gritos, a retribuição.Decidi que, se eu o ouvisse chegando,correria em linha reta para fora pelaporta dos fundos, como um pardal quefoge de um falcão. A bolsa da Mãeestava ao meu lado, e eu poderia pegá-lae fugir. Mas não havia ruídos estranhos.

De alguma maneira aquilo dera certo.

A igreja estava gelada e eu comeceicom o polimento. Tudo parecia limpoainda por causa da faxina da véspera,mas ele notaria a menor partícula depoeira, a menor mancha ou marca. Pordentro, eu estava eufórica. Estava indovisitar a casa de Danny porque ele meconvidara! Eu estava indo visitar oDanny porque ele era meu amigo. Euestava indo visitar Danny porque euaceitara, eu aceitara o convite. A euforiafez tudo parecer muito mais fácil, muitomais rápido. Se eu podia fazer aquilo,então talvez eu pudesse fazer qualquercoisa. A igreja estava quase pronta àsnove horas quando minha mãe veio,

então acenei para ela e sorri. Pelaprimeira vez não escondi minha boca, edeixei que o sorriso esparramadodividisse meu rosto em dois. Seu choqueme estimulou a ir embora mais rápido.Eu economizara o suficiente para apassagem de ônibus de ida e volta;Danny morava mais perto da cidade doque nós, e era longe demais para irandando.

Acho que eles não me esperavam tãocedo. Eram apenas dez e meia quandodesci do ônibus, mas levei um tempodando voltas até encontrar a casa. Todosos lugares pareciam estranhos. Nóssempre ficávamos no bairro, excetoquando havia algum evento obrigatório

da igreja e as incursões do Pai a cidadesdistantes de nomes desconhecidos, entãomeu senso de direção era péssimo.Todas as ruas e casas pareciam iguais,fileiras de caixas idênticas alinhadas meobservando com olhos impassíveis.Tentei lembrar cuidadosamente ocaminho que Danny me ensinara. Eu oouvi com toda a atenção descrevendo otrajeto para o caso de eu mudar de ideia.Hephzi estava brava e não fora comigo.Ela achava que já que eu ia sair,deveria, ao menos, fazer algo divertidoem vez de perambular com um velho quecheirava a cozinha e perder o dia com afamília chata e estúpida dele. Aquelenão era o momento para discutir, então aignorei, ela tinha de deixar-me na minha.

Se eu quisesse, podia desligá-la, emborasoubesse que ela iria gritar comigo maistarde por eu ter sido malvada. Ela nãoestava muito contente de me emprestarsua blusa azul e isso era complicado.Todas as minhas roupas eram horríveise eu queria estar com uma boaaparência. Mais agradável que o normal.

Então, eram apenas 11 horas quandoapertei a campainha. Eu refiz o caminhode cima a baixo umas três vezes antester certeza de bater à porta. Minharespiração vibrou e de repente mearrependi de ter ido. E se ele nãoquisesse ter dito o que disse? E se euestivesse na casa errada? Isso seriacomo se tivesse entendido tudo errado.

Talvez fosse assim que as pessoasnormais agissem; elas convidavam cadaum à sua volta o tempo todo, mas issonão queria dizer que realmentedesejassem que fossem. Talvez fosseuma daquelas coisas “normais” sobre asquais Hephzi e eu nunca tínhamos muitacerteza. Uma forma escura surgiu portrás do vidro da porta e mexeu na tranca,era tarde demais para me arrepender.Uma mulher abriu a porta. Vestida comjeans e uma camiseta rosa, ela olhoupara mim com ar de curiosidade. Entãoseu rosto desabou. Notei a mudançaantes que ela pudesse levantarrapidamente os cantos da boca numsorriso rigidamente falso.

— Olá. Posso ajudar?

Ela pensou que eu estava ali paraincomodá-la. Talvez vendendo algumacoisa. Panos de prato, ou, meu Deus.Danny não contara a ela que eu iria atélá. Olhei para baixo e me perguntei nummurmúrio por que eu estava lá.

— Como?

— Danny me convidou. Desculpe, eunão devia ter vindo… — Houve umapausa. Era impossível adivinhar o queela estava pensando.

— Espere um minuto, querida. Vocênão é a garota da Casa de Repouso, é?

Eu concordei, e ela puxou a porta,

abrindo-a mais, e gesticulou para euentrar, porém, hesitei, já não tinha maiscerteza. Se pelo menos Danny estivesselá, teria sido melhor.

— Danny está?

— Não, ele levou as crianças para ofutebol. Quer dizer, Archie e Mac. Benestá na sala da frente e Milly está lá emcima. Você está no lugar certo, querida,pode entrar. Eu sou Cheryl, esposa deDanny.

Fiquei parada no degrau. Eles nãoestavam me esperando. Eu ia ficar nomeio do caminho, um incômodo, e umminuto antes ela me olhara como sequisesse vomitar.

Quase fui embora, mas alguém meagarrou e começou a me puxar, uma mãopequena e insistente fechada em volta daminha. Então olhei para o garoto queestava me arrastando para a frente,cantarolando olá, e, antes que pudessecorrer, eu estava lá dentro, de pé nolimpo piso laminado, imaginando o quedeveria fazer em seguida.

— Acredite, Danny não deixaria deme avisar que teríamos uma visita! —Sua voz tinha o brilho falso de uma florde plástico, e senti o incômodo que elatentava esconder. — Venha, sente-se eespere na sala de estar com Ben. Dannynão vai demorar muito.

Que tal almoçar?, pensei. Danny

dissera que haveria almoço. Eu nãosentia cheiro de coisa algumacozinhando e já eram 11h30. Talvez elaestivesse começando e me perguntava sedeveria oferecer-me para ajudá-la. Noentanto, em seguida Ben me arrastoupara a sala e eu deslizei para o sofá decouro. Ben olhou para mim.

— Oi — murmurei. — Eu me chamoRebecca.

Ele sorriu para mim e por um segundoeu relaxei, mas então ele estendeu a mãoe tocou o meu rosto. Empurrei a mãopequenina para longe, como se estivesseescandalizada, e ele choramingou,parecendo triste.

— Desculpe, Ben — sussurrei. Elebalançou a cabeça, o lábio inferiorempurrado para a frente. Eu esperavaque ele não chorasse. Se o fizesse, euteria de me afastar dele, ou sua mãepoderia pensar que eu iria feri-lo oualgo assim. Ah, Deus, tudo estava dandoerrado.

Eu disse que era um desperdício detempo. Você poderia muito bem terficado na casa paroquial com eles.Totalmente patética.

Cale a boca. Pensei que você nãoviria, sibilei para Hephzi e respireifundo quando Cheryl apareceu na porta.

— Você aceita uma xícara de chá?

Café? — Ela estava sorrindo, as mãosnos quadris, e à espera de uma respostanormal a uma pergunta normal. Bencorreu para pendurar-se nas pernas dela.E ela distraidamente acariciou a cabeçadele.

— Não, obrigada. Posso ajudar emalgo?

— Como o quê?

— Ah. Qualquer coisa; sou boa comos vegetais.

— Vegetais? — Ela apertou os lábiose olhou para mim, então entendeu o queeu quis dizer. — Diabos! Ele convidouvocê para o jantar, não convidou?

Antes que eu pudesse negar, a portada frente se abriu e a sala se encheu devozes. Agora eu estava em apuros.Podia ouvir Hephzi rindo em algumlugar distante. Queria que ela calasse aboca. Cheryl entrou na sala. Esforcei-mepara ouvir o que ela ia dizer sobre mim.

— Você tem visita.

— Ah, é?

Danny entrou, corado, vestindo calçascompridas e camiseta. Ele me olhou,depois olhou novamente e sorriu paramim.

— Você veio! Que bom!

Eu procurei sinais de sarcasmo, raiva

e ressentimento em sua voz. Não havianenhum. Atrás dele, Cheryl estavasorrindo também. Talvez eu a tivessejulgado equivocadamente. Eu não eraboa em compreender pessoas.

— Você poderia ter me avisado, Dan.Eu ia requentar sobras. Nós vamosjantar na casa da sua mãe, lembra?

— Ah, é mesmo. Não importa, não é,Rebecca? Você não se importa, não é?

Ele se aproximou de mim, colocou umbraço em volta dos meus ombros eapertou-me firmemente. Senti-mereconfortada e aquecida enquanto eraabraçada por ele e, por um segundo,relaxei o corpo.

Cheryl revirou os olhos.

— Típico! — disse ela, rindo. Eu nãopude deixar de achar graça, mas minhaboca e minhas bochechas largas seabriram num sorriso sem minhapermissão. Rapidamente, cobri a bocacom a mão. Então Danny riu.

— Ótimo! Vou chamar os garotos eapresentá-la.

Seus filhos tinham desaparecido nojardim jogando futebol, e Ben correuatrás deles e ficou no caminho. Eles nãose incomodavam e passavam a bola paraele, aplaudindo-o quando ele chutava nadireção certa. Eu os via através da portaenvidraçada, era mais seguro por trás do

vidro.

Foi provavelmente um dos melhoresdias de minha vida. Comemos pizza noalmoço e depois enormes fatias de bolode chocolate, tudo congelado, conformeCheryl dissera, mas, para mim, era omanjar dos deuses. À tarde jogamosWii. Archie me ensinou a jogar, pondo amão sobre a minha e me mostrandocomo mover os controles, e eu me saímuito bem no esqui alpino. Ninguémolhou para mim como se eu fosse umaaberração, ninguém jogou coisas emmim como costumavam fazer nas aulasde Matemática, e Ben veio, sentou-se emmeu joelho e me deu um abraço. Euqueria falar mais, para explicar quem eu

era, mas não acho que minhas palavrasteriam saído direito, e, assim, eucontinuei quieta. Eles pareciam não seincomodar comigo, ninguém ficava meolhando. Milly até fez minhas unhas epassou um esmalte rosa perolado queela ganhara numa revista. Ela só tinha 12anos, mas parecia mais velha que eu.Eram 16h30, hora de saírem para avisita deles, o que significava que eutinha de ir embora também. Gostaria depoder ir com eles, mas não me atrevi apedir. No corredor, preparando-me parasair, encontrei os olhos de Archie. Eu oachara bonitinho, pequeno para 16 anos,mas com um lindo sorriso.

— Então, o que é que há de errado

com você? — Imediatamente eu corei eolhei para baixo. Claro que tinhamnotado, eu me penitenciava. Eu estavabrincando comigo mesma, achando queera igual a eles, que poderia ser umdeles. Como eu não respondi, ele faloude novo, e eu podia dizer que ele estavase sentindo mal.

— Desculpe… Eu não estavaquerendo ser, você sabe… — Aspalavras pairaram no ar, pequenos tirosque ele não quis disparar. Respireifundo, então soltei o ar de uma vez.

— É uma síndrome.

— Como a Síndrome de Down?

— Não. Bem, talvez um pouco. Se

chama Treacher Collins. Mas, afora omeu rosto, não há nada de erradocomigo. Eu sou normal, afora isso. —Normal. Eu, normal. Não imaginava quediria isso, mas, agora que dissera,percebi que podia ser verdade. Aspalavras saíram depressa, totalmenteimprovisadas, sem censura, e senti queeu acabara de fazer parecer que eupensava que seu irmão Ben era umaaberração. No entanto, ele balançou acabeça como se entendesse o que eupretendera dizer.

— Você está na escola, então?

— Não, eu tive de largar.

— Por quê?

Dei de ombros, ainda mantendo osolhos no chão. Eu nunca falara com ummenino como aquele antes, com exceçãoda vez que encontrei Craig noplayground, e eu estava tentandoesquecer que isso acontecera.

— Você não gostava?

Ele estava tentando falar comigonovamente e eu balançava a cabeça,esperando que a conversa terminasselogo.

Patético, murmurou Hephzi ao meuouvido.

Cheryl nos interrompeu antes que eupudesse tentar outra vez.

— Então é aí que vocês dois estão. Émelhor a gente ir. Ah, você, querida, foibom conhecê-la. Danny não parava defalar de você, sabia? — Ela me deu umbreve abraço e gaguejei umagradecimento em meio à minhafelicidade. Eu os observei entrar nocarro tipo furgão. Archie acenou daparte de trás, sorriu e murmurou algumacoisa que eu não entendi, e eu meperguntava o que poderia ter sidoenquanto caminhava de volta para oponto de ônibus. O sol do início deverão estava baixo no céu, e eu me movipara tomar seus últimos raios enquantoesperava o ônibus. Eles me ofereceramuma carona, mas, como estavam todos

no carro, não havia nenhum espaçosobrando.

Na volta para casa, eu sentia o brilhodo dia desaparecer como se alguémestivesse me limpando e me levando devolta aos meus dias tediosos. Agora nãoimportava que Cheryl tivesse meabraçado, que Ben tivesse se sentado nomeu joelho, ou que Archie tivesse meperguntado o que eu pensava sobre aescola. Percebi que estava com fomenovamente. Talvez houvesse algo paracomer quando eu voltasse, mesmo quefosse um dos assados da Mãe. Gorda,disse Hephzi, e eu ri. Uma coisa que eunão sou é gorda. Hephzi era maiscurvilínea que eu, tinha seios, quadris e

até bumbum, mas era supermagra. Oshomens olhavam para ela quando elapassava. Eu não, sou reta de cima abaixo. Eu sabia que não fazia sentidopensar em Archie, ele não olharia duasvezes para mim. Ou uma vez, falouHephzi. Eu a mandei calar a boca. Elanão precisava me lembrar do que eu era.

O trajeto do ônibus demorou,passando por várias casas, e senti quecomeçava a escurecer conforme ospassageiros desembarcavam. À medidaque nos aproximávamos do meu bairro,tudo parecia menor e mais escuro. Já eratarde quando cheguei à casa paroquial.Caminhei lentamente em direção à porta.O lugar todo parecia já estar fechado

para a noite, e meus pés se demorarampelo jardim. Pensei que ele estaria àminha espera, pronto para me punir deforma dolorosa, na justa medida do meucrime, ou um pouco mais, só paracertificar-se de que aprenderia a lição.Eu me perguntava o que deveria fazer.Não queria entrar ainda, não se eleestivesse esperando bem atrás da porta,por isso fui pela lateral da casa até aárvore de Hephzi. Na última vez quetentara subir eu tinha sete ou oito anos, ecaí, bati a cabeça e torci o tornozelo.Hephzi beijou os ferimentos para quemelhorassem. Eca!, disse ela. Eu nãofaria isso hoje em dia. No entanto, eladisse que ao menos me mostraria osmelhores pontos de apoio e como

posicionar minhas mãos, embora aindacontinuasse murmurando sobre o quãoridículo era eu voltar para a casaparoquial. Eu fizera todo aquele esforço,então por que estava voltando atrás?

Olhei para cima através da espessacopa de folhas e galhos e para além dospequenos feixes de luz das estrelas,pensando. Vovó lera um livro[9] paranós quando éramos bem pequenas e melembrei então de uma história sobrealgumas crianças que subiram numaárvore e descobriram um novo mundoesperando por elas cada vez quealcançavam o topo; talvez a Terra dasGuloseimas, ou, se você fosse realmentesortudo, a Terra do Faça o que Quiser.

Hephzi e eu ouvíamos, extasiadas, o quea Vovó lia em voz alta, e eu sonhavacom a fuga de nosso quarto para ummundo tão livre quanto aquele sonho.

Hephzi estava ficando de saco cheio.Ela não gostava de frio e estavacomeçando a esfriar. Ela achava a ideiatoda péssima.

Enfrentei os fatos. Eu não queriaentrar. Eu ficara livre por um dia e foramaravilhoso. Eu gostara de Danny eCheryl e Archie e as outras crianças.Eles eram muito gentis e agradáveis unscom os outros, mesmo que, às vezes,disputassem o controle remoto oudiscutissem sobre o próximo jogo quejogariam. As crianças falavam com sua

mãe e seu pai num tom de voz normal,não pareciam estar se sufocando nem seencolhendo por causa de uma mãoestendida. Percebi que era isso queHephzi queria para si e era isso que elaesperava encontrar em Craig. Ela nãoestava procurando apenas um namorado,ela queria a coisa toda. A casa normal eos pais normais. Um quarto agradável,toalhas macias, uma pilha de revistas eesmalte para unhas. Ela queria assistir aTV e ficar depressiva como umaadolescente normal. Quando lhe dissepara não confiar em Craig, eu realmentenão entendera isso. Agora tudo ficouclaro.

Eu poderia ir embora, retomar o

caminho. Se não voltasse para a casaparoquial, não teria de ver aquelaparede. Não teria de ouvir o choro dosbebês.

A cama extra na Casa de Repousoestava livre. Suki e Michaela estavamde plantão à noite e, quando me viram àporta, correram para me deixar entrar eme deram chocolate quente e biscoitos,sorrindo por trás de sua perplexidadeenquanto eu explicava que perdera achave de casa e não queria acordar meuspais tão tarde. Por fim, acho queentenderam a mensagem porque nãodisseram nada quando andei pelocorredor em direção à cama daenfermaria, tirei os sapatos e mergulhei

na cama. Enquanto cochilava, eu sabiaque teria a melhor noite de sono detodas. Eu fugira da casa paroquial pelaprimeira vez em anos e ninguém poderiame perturbar ali. Viu só?, falei paraHephzi. Eu posso ser normal também.Ela não respondeu.

A manhã chegou muito rapidamente.Não houve nenhum demônio rondandomeu ombro e pedindo comida, exigindouma canção de ninar, ou pesadelossussurrando, e eu estava cheia deenergia, aproveitei meu café da manhã ecomecei a trabalhar logo em seguida, eaté encontrei tempo para me sentar comCyrilla e ler mais ou menos umas 50páginas de um romance histórico que

ainda não tínhamos lido. No final, elacochilou e eu, encolhida na cadeira,terminei o livro. Eu sabia que, em algummomento, teria de voltar para a casaparoquial, mas estava gostando defantasiar que poderia viver na Casa deRepouso para sempre. Eu tinha amigosali.

Danny chegou na hora do almoço,para começar o turno da tarde. Eu nãotinha certeza de que ele percebera queeu estava vestindo as mesmas roupas davéspera, não é tão incomum e, sob meujaleco, não se poderia realmente saber.Mas ele perguntou se voltara bem paracasa e me virei para mentir.

— Você tem de vir para um churrasco

da próxima vez. O verão está chegando.

Eu confirmei com a cabeça, sim, seriaincrível. Se eu não estivesse todaarrebentada, então poderia ir mesmo.Finalmente entendi a intoxicação deHephzi com a liberdade e eu desejavaoutro gole, queria sentir aquela onda defelicidade em minhas veias até queexplodisse como pequenos fogos deartifício em meu cérebro. Danny nãomencionou Archie, e eu tentei não meimportar; eu realmente não esperava queele dissesse algo. Então, enquanto euestava indo, ele me chamou de volta.

— Eu esqueci de dizer. Archie estátendo alguns problemas com a lição decasa. Ele precisa de uma boa nota em

Inglês para entrar na faculdade nopróximo ano — Danny parecia irritadocom aquilo —, mas ele não é muitoculpado. Nenhum de nós é. Não soucapaz de soletrar a palavra toffee.Enfim, eu vi você com seus livros. Oque você acha?

— Como assim?

— Talvez você pudesse ajudá-lo umpouco.

— Ah. Não sei. Como?

— Dê algumas dicas a ele. Ele dizque seu professor é inútil, e ele tem defazer um trabalho sobre isso. Algumaabobrinha relacionada a Shakespeare.

— Eu nunca li nada de Shakespeare.

Por um momento, ele ficoucabisbaixo, mas rapidamente se animou.

— Bem, logo você pega o jeito. Nãodeve ser difícil para uma garota gentil ebrilhante como você. Posso dizer a eleque você aceita?

— Tudo bem.

Minhas mãos tremiam quando saí, e aanimação tomou conta de mim. Eu erauma garota gentil e brilhante. Ele pensouque eu poderia ajudar Archie. Bem, eutentaria. Estava tão preocupada com opensamento que não percebi minhaspernas me carregando até a entrada dacasa paroquial, perto da porta dos

fundos. A Mãe estava na cozinha, eupodia vê-la no fogão, seus ombrosarqueados e estreitos sob o suéter de lãgrosso. Ela devia estar fritando dentrodele, pois era o dia mais quente do ano.Abri a porta e entrei. O cômodocheirava a ranço. O Pai não ficariasatisfeito se ela houvesse se esquecidode limpar. A Mãe estava ficando cadavez mais relapsa desde a morte deHephzi, e ele tinha de lhe dizer o tempotodo que se cuidasse, arrumasse ocabelo e sorrisse mais docemente. Masnão se pode esconder veneno parasempre, ele tem de escoar para fora emalgum momento, e eu podia sentir ocheiro no ar. Mal podia esperar parasair da sala e voar para o andar de cima

e me sentar para planejar como eupoderia ajudar Archie. Ela se virou,com a colher de madeira empunhadacomo se fosse uma arma, seu rosto ficoumais sombrio quando viu que era eu.

— Oi. — Eu me perguntava o que elafaria se eu sorrisse novamente.

— Onde você esteve? Você ficou foraa noite toda. — Sua voz era ásperacomo uma lixa, arranhando-me,arrastando-me para uma discussão.

— No trabalho. Fiquei na Casa deRepouso. Vá perguntar lá se nãoacredita em mim.

Ela balançou a cabeça, a boca erauma linha estreita.

— Ele nunca deveria ter concordado.Ele sempre foi muito bom, permitindoque você e Hephzibah nos enrolassemassim.

— Do que você está falando?

— Esse trabalho. É hora de vocêparar. Eu não posso deixar você seexibindo assim todos os dias, hátrabalho a ser feito aqui. Você tem deficar em casa.

— Eu não quero.

Isso, sussurrou Hephzi. Diga a ela,diga a ela de novo!

Ela avançou para cima de mim,brandindo a colher. Pude ver de perto as

bolsas sob seus olhos, as veias rotas emsuas bochechas dançando em seu rostocom uma teia de sangue. Ela pareciamais velha e eu dei um passo para trás.Seus olhos pálidos, vazios, procuravamos meus.

— Você está ficando igual a ela, iguala outra. Ela ia e vinha quando queria, eagora você acha que pode fazer omesmo. E você vai seguir o mesmocaminho, escute minhas palavras, vocêvai seguir o mesmo caminho.

Recuando ainda mais e contornando amesa da cozinha até chegar à porta, eucorri dela, mas sua intimidação meseguiu até as escadas.

— Você não sabe quanta sorte tem!— Ela me chamava e eu recuava e,então, tropecei, assustada mais uma vezcom a mulher que se autointitulavaminha mãe. Eu sabia que ela não iriaatrás de mim, sem ele para apoiá-la, elaera só palavras, as quais não memachucariam agora. Em vez disso,lembrei-me de que conseguira acabarcom tudo, por enquanto, e que haviacoisas melhores por vir.

Eu precisava ser inteligente e dar umpasso de cada vez.

Não!, gritou Hephzi. Não! Mas eu aignorei novamente.

Eu me sentei na janela, evitando a

parede, e pensei sobre os Pais. A últimacoisa que eu queria era que as pessoaspercebessem quão doentes e distorcidoseles eram. Então tive de explorar melhoraquilo. Pensei na Sra. Sparks, que ia aliquase todo dia, o braço direito dopastor, ou como ela gostava de pensarque era. Simplesmente nunca gosteidela, desde o princípio, mas agora,refletindo, eu podia ver que ela nuncanos fizera nada de mau, fora gentil comHephzi e comigo. Às vezes, ela traziasacos repletos de roupas, coisas de suaspróprias filhas, que haviam crescido,canetinhas, quando éramos pequenas, ouuma caixa de livros. Nós nunca víamos amaior parte daquilo, embora Hephzigeralmente conseguisse roubar algumas

coisas legais dos sacos de roupa antesde a Mãe levar as peças inadequadaspara longe. E eu tinha de agradecer àSra. Sparks pelo meu trabalho. Elasugerira, e ele foi incapaz de recusarsem fazer de si mesmo assunto paraconversas. Conversas significavamfofocas, e fofoca é a rádio do diabo.Acho que ele pensou que, como a Casade Repouso era perto da casa paroquial,seria fácil manter-me sob vigilância.Bem, isso é o que ele pensava. Hephziestava me observando, sarcástica.

Presunçosa, hein?, dizia ela. Vocêacha que fugiu ontem?

Dei de ombros, era óbvio que elaestava irritada, e eu não queria provocá-

la.

Apenas espere, eles vão trazer vocêde volta. Ela fez uma pausa, incitando-me. A menos que você fuja antes. O quea fez voltar, sua idiota? Você estavalivre!

Eu não queria ouvir, então rastejeipara debaixo da cama e fechei os olhos,pensando em Archie e em Shakespeare.

Hephzi

Antes

Estava esperando ver Craig na escolasegunda-feira, como ele prometera, noentanto, ele não apareceu. A mesmacoisa aconteceu na terça e na quarta.Lentamente, o barato de sábado à noitecomeçou a passar, e eu me sentia vazia,como se tivesse me dado mal numaprova que nem sabia que teria de fazer.Talvez eu tivesse inventado tudo, talvezeu tivesse fantasiado a noite toda.Quando vi que ele nem sequer mandarauma mensagem no Facebook para dizer

oi ou para explicar-se, comecei aimaginar o que eu poderia ter feito paraele me odiar. Percebi que Daisy estavame observando no pátio, e sabia que elaestava desesperada para me perguntar oque acontecera, mas eu não contaria aninguém. Não ainda.

Na quinta-feira, quando eu já perderaas esperanças e me arrastava para a aulacom Rebecca, alguém me agarrou portrás, circundando minha cintura e melevantando para o alto. Dei um grito desurpresa e Rebecca berrou algoincompreensível. Foi quando ouvi umarisada e percebi que era Craigfinalmente me abraçando apertado ali nocorredor como se fosse um

comportamento totalmente normal paraele. Eu ri também e deixei-o beijar-mebem na boca na frente de todo mundo.

— Onde você esteve? — conseguienfim dizer. Ele deu de ombros, comoera de esperar, mas dava para ver afelicidade dançando em seus olhos e umsorriso contorcendo seus lábios.Rebecca tentava tirar-me dali e levar-me para a aula. Ele a olhou comcuriosidade, como se nunca houvessereparado nela antes, e nós três acabamoschegando à aula de Matemática bem nahora. A presença de Craig foi umpresente para o professor, que sedivertiu dando boas-vindas num tomsarcástico. O professor pegou no pé dele

a aula inteira, Craig, no entanto,respondeu corretamente a quase todas asperguntas e ainda me ajudou com minhalição. Ele parecia uma calculadorahumana, balançando em sua cadeira,cuspindo respostas como se fosse acoisa mais fácil do mundo. Eu nuncapercebera que um cara com cérebropoderia ser sexy.

O sinal tocou e Craig agarrou minhamão, levando-me com ele para fora dasala e do prédio. Atrás do ginásio, eleme beijou como se tivesse passado 40dias no deserto e eu fosse um copod’água. Empurrei-o para poderfinalmente respirar. Eu nunca o vira tãofeliz, era como se ele fosse outra

pessoa.

— Você está diferente.

Ele levantou uma sobrancelha. Umnovo truque, talvez um aprimoramentono dar de ombros.

— Você está linda. — Seu tom eraacusatório e eu não consegui manter acalma. Fiquei rosa brilhante. Ele mebeijou de novo e cochichou por sobremeu cabelo:

— Especialmente quando ficaenvergonhada.

— E agora?

Ele me olhou, tirando o cabelo dafrente de meu rosto, e bebeu do meu

beijo. Agitei-me e me contorci.

— Eu acho que deveríamos sairdaqui. O que você acha?

Concordei e corremos de lá antes quealguém pudesse nos deter. Minha bolsabatia contra minhas pernas enquanto eucorria segurando a mão dele, algunspassos atrás, mas isso não importava,nada importava agora.

Passamos o dia na casa dele, em seuquarto, ouvindo música. Ele me contouda encrenca em que se metera por causada festa, da briga com o namorado desua mãe e que ele estava no apartamentode seu irmão, na cidade, nos últimosdias, até que as coisas se acalmassem.

— Desculpe não ter cumprido o quefalei. Eu queria ver você, mas, bem, euprecisava ficar um tempo longe.

Eu podia entender isso, então assenti.Em seguida, ele tocou para mim umamúsica que compusera e perguntei sobreo que era.

— Você não consegue adivinhar? —Ele olhou para mim, provocando,sorrindo, flertando novamente, e fiqueicorada mais uma vez. Eu sabia que nãodeveria estar ali, no quarto dele, nomeio do dia. Qualquer coisa poderiaacontecer e acabaria sobrando paraRebecca.

— É sobre você, claro.

Ele guardou a guitarra e me abraçou.Quando parou de me beijar já era escurolá fora.

— É melhor eu ir para casa.

— Fique.

— Não posso!

— Tá bom, eu levo você —resmungou.

No caminho, ele me contou que, nasemana seguinte, faria o exame paradirigir motocicletas, e que economizarapara comprar uma mobilete de segundamão que um amigo de seu irmão estavavendendo. Ele iria me levar consigoentão, ele disse, iríamos para o litoral

comer peixe com batata frita e tomarsorvete, ele me levaria a Londres e memostraria todos os lugares interessantes.Ele não acreditou quando eu disse quenunca estivera lá e quis saber por quenão. Mas já tínhamos chegado em casa ecorri para dentro antes que ele pudesseme dar um beijo de despedida ou fazermais perguntas difíceis.

Eles estavam todos lá, sentados namesa de jantar. Eu podia ouvir a casaestalando e rangendo no silêncioprofundo. Ninguém estava comendo e acomida parecia estar congeladanaqueles pratos havia dias. Olhei norelógio e percebi que estava mais deuma hora atrasada para o jantar.

Silenciosamente, deslizei até meu lugare senti o calçado de Rebecca tocar meutornozelo, numa pressão gentilmenteinsistente, avisando-me para tomarcuidado. O Pai pegou o garfo e deu umagrande garfada em sua comida. Então,numa explosão de vidro e louças seestilhaçando, os pratos foramarremessados ao chão, a comidaespalhada na parede, enquanto elegritava e berrava comigo, com Rebeccae com a Mãe. Empurrei Rebecca paratrás de mim e, de repente, pela primeiravez, não tive medo.

— Que diabos há de errado comvocê? — gritei para ele, em sua cara,mesmo ele não me ouvindo por causa do

barulho de sua própria raiva. Ele tentouagarrar meu pescoço, vacilante em seufuror etílico, mas me esquivei eescapamos rapidamente.

Protegidas em nosso quarto, debaixoda cama de Rebecca, que encostamoscontra a porta, tudo que eu podia ouvirera o barulho áspero da nossarespiração. Lá embaixo, as pancadas,batidas e palavrões continuavam, e euesperava que a Sra. Sparks aparecessepara testemunhar o ataque de SãoRoderick.

— Por que você fez isso? —cochichou Rebecca. — Você não podiater chegado em casa na hora certa? Elevai nos matar agora.

— Não, ele não vai. Não se preocupe.

Rebecca meio que gemeu, meio quesoluçou. Ela estava com muita raiva emedo, e eu sabia que parte disso eraporque eu estivera com Craig.

— Escute, Reb. Não fique bravacomigo, você não devia. Eu estou feliz!

— Que bom pra você! — Elaexplodiu e me atacou com os punhos eas pernas, batendo-me, seus cotovelosme machucando no espaço apertado.Agarrei-a facilmente, e ela parou,caindo no choro no tapete.

— Você vai me largar aqui com ele,não vai? Você vai embora com aquelegaroto horrível e vai me deixar aqui, e

eu nunca vou escapar. Eu odeio você,Hephzi, eu odeio você.

— Pare com isso, Reb — cochicheipara ela. — Pare com isso. Eu te amo.Eu te amo.

Ficamos lá, deitadas, agarradas noespaço escuro sob a cama, pois pareciaser mais seguro do que se tentássemossair. Às vezes, minha irmã chorava egritava enquanto dormia, mas eu nãoousava lhe perguntar sobre o que eramseus pesadelos, e acho que ela não mecontaria mesmo. Enquanto Rebeccamurmurava e gemia ao meu lado, eupensava no que dizer para Craig sobretudo que acontecia ali. Algumas coisaseram muito difíceis de manter em

segredo, e eu não queria ter de começara mentir para ele. Mas eu teria de fazê-lo, não havia outro jeito. Se elesoubesse, me veria de um jeito diferentee saberia que eu não estava certa.

Outubro foi o nosso mês. Eu matavaaula quase todo dia. Craig passou naprova, como ele disse que faria, e nósíamos de motocicleta o mais longe quepodíamos, às vezes apenas até opântano, talvez até o campo, ou acidade, e vagávamos pelas lojas. Ele memostrava coisas que me comprariaquando fosse rico, e eu sorria,imaginando aquilo muito facilmente.Nosso futuro brilhava como o sol emminha imaginação. Quando eu estava

sentada atrás dele, segurando-me paramanter-me viva enquanto ele pilotavaquase à velocidade da luz, eu pensavaque iríamos decolar. Voaríamos paralonge e seríamos livres. Eu sonhava comisso, enjoada, amedrontada e preparadapara qualquer coisa enquantoconseguisse manter meus braços emvolta de Craig. Ninguém mais meimportava. Eu via Daisy nos corredorese sorria, acenava, sem ligar para o queela poderia estar falando de mim.Engraçado, era ela quem estava sempreatrás de mim, já que Craig e euestávamos juntos, convidando-me parasair, emprestando-me coisas, dando-mepresentes, mandando-me bilhetes. Comoeu estava muito feliz, esqueci o que ela

dissera sobre minha irmã e a deixei serminha amiga. Nos dias em que eu estavana escola, Craig estava também, e osoutros grudavam nele como se fosseímã. Ele apenas ficava lá, e eles vinham,e eu sorria e observava, orgulhosa.

Daisy realmente não gostava daquilo.Samara dizia que ela tinha inveja,mesmo tendo namorado também. Eu nãoligava que ela estivesse brava, nãoquando Craig estava comigo, masquando estávamos na escola ou ela eraminha melhor amiga ou tentava fazer daminha vida um inferno.

Craig e eu estávamos almoçandonuma área comum, duas semanas depoisde termos começado a sair, quando ela

deu início. Craig me trouxe umsanduíche e uma lata de Coca-Cola. Eunão fazia ideia do que Rebecca iriacomer, mas ela se perdera num livro ese esquecera totalmente da comida. Dequalquer maneira, eu vi Daisy olhandopara mim, considerando, tal como umacobra observa um rato, e fiqueiesperando para ver o que ela diriadaquela vez.

— Sabe de uma coisa, Hephzi? Euacho que conheço seu pai. — Sua vozera muito astuta.

Dei uma mordida no sanduíche, semolhar para ela. Talvez, se eu a ignorasse,ela desistiria.

— Ele costumava fazer aquelesencontros aos sábados, não é? Todos osfins de semana, mesmo nos feriados.Minha mãe me fazia ir, creche de graça,ela falava. Nós estávamos noslembrando disso ontem à noite, quandofalamos de você. Ela se sente muito malpor isso agora.

Eu sabia que ela queria que euperguntasse o que haviam falado demim. Ela, Daisy, gostava disso, deatormentar, de fazer os outros aturaremcada palavra sua. No entanto, eu sabiamuito bem do que ela estava falando.Uma das campanhas de recrutamento deRoderick. Ele me deixava ir também, eu,a Sra. Sparks, a Mãe, e alguns outros,

estávamos todos no seu “time”, comoele dizia. Era divertido, uma dasmelhores coisas que fiz quando criança.Nós não podíamos fazer nenhuma dascoisas normais, nem mesmo ir à escola,e eu sempre quis ter feito o primário,andar pelas salas de aula e estar comoutras crianças. Nós espiávamos atravésdas grades da escola quandopassávamos por lá com nossa mãe,nossa cabeça virando para tentar ver umpouco mais enquanto andávamos. Nósvíamos as paredes em tons pastel, osdesenhos das crianças, as fotos e osrostos sorridentes; a algazarra e todasaquelas cores e formas pulando até nósatravés das grandes janelas, que medeixavam tentada a alcançá-las e tocá-

las. Eu imaginava que teria meu própriopoema ou uma colagem numa parede ecomo eu ficaria orgulhosa disso. Eudesenharia a imagem de um jardim eduas garotinhas. Reb e eu. Às vezes,víamos as crianças no parquinho,correndo e gargalhando, ou sebalançando de cabeça para baixo nosbrinquedos de escalar, brincando deamarelinha com os amigos. Eu tentavapular como eles faziam, mas nosquadrados da calçada. Não era a mesmacoisa.

A voz de Daisy interrompeu meupensamento:

— É, você ainda faz isso, então?Ajuda seu pai com seu exército de

Jesus?

Finalmente a olhei nos olhos. Suacabeça estava inclinada para o lado, ehavia um sorriso maroto em seus lábios.Daisy nem sonhava com a verdade. Deide ombros e respondi lentamente.

— Eu nunca ia aos encontros desábado, isso era coisa da igreja dele. Eufazia minhas próprias coisas.

— Besteira! Eu me lembro de você.Era você quem fazia os crachás.

Ela estava certa. Eu me lembrava deficar lá, com as mãos de Roderickfirmes em meus ombros enquanto eudescolava as etiquetas e ele dizia olápara cada uma das pessoas, quando eu

solenemente entregava o crachá paracada um dos recém-chegados,imaginando se talvez esse ou aqueleseria meu amigo.

— Bem, talvez eu tenha ido algumaspoucas vezes. Grande coisa.

Craig olhou para mim, para ela, edepois de volta para mim. Em seguida,voltou a concentrar-se no almoço,desinteressado.

— Eles nos ensinaram todas aquelasmúsicas idiotas, aquelas atividades.Meu Deus, que vergonha! Eu nãoacredito que deixei minha mãe me fazerir lá.

Tudo voltou, reverberando nas caixas

de som do passado, o Pai, no palcoimprovisado no salão da igreja, gritandopassagens da Bíblia num microfone queestalava, seus braços para cima,derramando sua empolgação nosouvidos das pessoas enquanto balançavapara a frente e para trás, encorajando-asa participar. Alguns dos adultos, quetambém eram ajudantes da igreja,compartilhavam de seu frenesi. Pareciaque alguém colocara fogo neles pordentro enquanto erguiam as mãos emlouvor, uma orgia de oblação. Parei decomer, perdera a fome.

— Ele é maluco, o seu pai, não é? É oque meu pai diz, um desses fanáticosreligiosos.

— É, tanto faz — respondi, e pegueiminha mochila. Ela sorriu, feliz por terconseguido me cutucar e me fazer sentirdeslocada.

Os encontros de sábado não tinhamme atormentado na época. Eu me sentiaespecial por ser escolhida paraparticipar, pois eles não deixavamRebecca ir. Eu não gostava de pensarmuito naquilo, em como ele sepreparava toda semana, como seestivesse indo conquistar o mundo,vestido com sua calça jeans da moda ecamiseta da Mr. Men. Abaixo da figuraredonda e amarela na parte da frenteestava escrito “Sr. Feliz”. Eu observavao jeito que ele segurava a mão das

crianças pequenas, o jeito como asabraçava, apertado, cochichando emseus ouvidos que Jesus as amava e queelas deveriam ir até Jesus. Eu tinha 10ou 11 anos quando me foi permitidoparticipar do grupo, e fiquei muitoansiosa por finalmente conhecer outrascrianças. Ele acabou desistindo daempreitada. O esforço era maior que oganho. Nós raramente víamos essascrianças nas cerimônias aos domingos,mas eu continuava procurando por elasmesmo assim. Vovó perdera tempoquando tentou convencer a Mãe a nosdeixar ir para a escola.

— Por que você não as deixa ir, meubem? Assim você descansa um pouco

dessa coisa de educação domiciliar.Elas iriam adorar conhecer outrascrianças, ar fresco e diversão.

— As crianças estão bem aqui. Issoestá fora de cogitação.

— Mas por quê? Eu não entendo.

E Vovó não entendeu. Ela nunca osentendeu, e eles se cansaram dela tentarinterferir.

— Vou falar com Roderick, posso?Vou dizer a ele o que acho.

— Não! — respondeu a Mãe. —Esqueça isso, está bem?

Vovó continuou tentando, até o fim.Tenho certeza de que sim.

Por alguma razão, Rebecca aindaodiava Craig. Eu expliquei a ela ummilhão de vezes por que eu gostavadele, e ela própria viu na aula como eleé inteligente. Contei-lhe sobre como eletocava guitarra e fazia músicas paramim, até lhe mostrei algumas letras demúsica, certa de que isso iria convencê-la, mas ela só zombava e me dava ascostas. Eu sabia que ela estava cominveja, só não sabia o que fazer arespeito. Eu não sabia por que eu davaimportância a isso.

Mas nem tudo era tão fácil. Após aprimeira noite, a da festa de Craig,quando tudo começou, a Mãe me pegouno silêncio da igreja enquanto eu

lustrava o átrio, fazendo-me esquecerminha felicidade. Ela agarrou meu pulsocom seus dedos magros e me disse quenão iria mais encobrir as coisas paramim, não importava o que eu dissesse oufizesse, ela não se arriscaria de novo.Eu implorei, ameacei, chorei, mas nãoadiantou. Então, tudo que pedi foi queela ficasse de boca fechada. E foiquando encontrei a árvore.

De jeito nenhum eu abriria mão deminha liberdade e ficaria trancada nacasa paroquial quando poderia estarcom Craig. Por isso, bolei minhaprópria rota de fuga e fiquei muitoorgulhosa dela. Eu conseguia escapar ever Craig quanto quisesse, desde que

Roderick estivesse apagado pelabebedeira ou fora de casa, em algumavisita, ou apenas dormindo. Eu adoravaa árvore que me ajudava a fugir e,mesmo eu tendo arranhões nos braços epernas, não ligava nem um pouco. Craigachava que eu era doida. Tentei explicarpara ele que meus pais eram rigorosos einsistia para que ele sempre me levassepara casa na hora certa, no entanto, eleachava que, se eu lhes desse umachance, eles se acostumariam e não seriamais necessário sair escondida por aí.Eu o deixava continuar com essafantasia e mantinha a verdade só paramim.

Ele, no entanto, me apresentou à sua

mãe. No começo, eu não sabia o quedizer ou para onde olhar. Eu nãoconhecia muitas mães normais, então sófiquei sorrindo e concordando com tudoo que ela dizia. Ela era muito legal.Estava sempre me convidando para ochá, mas eu nunca podia aceitar. Se elaestava em casa durante o dia e eutambém estava lá, sentava-me com ela àmesa da cozinha e conversávamos sobrequalquer coisa. Craig disse que elaestava ameaçando ir a uma cerimônia doPai e levá-lo junto. Ela achava que eraimportante que ao menos ela seapresentasse. Eu disse a ele que de jeitonenhum ela poderia fazer isso, e Craigconcordou, então fiquei esperando queele conseguisse mantê-la longe. Se ela

aparecesse e conversasse com o Pai,tudo estaria acabado.

Eu estava surpresa por conseguirdormir naqueles dias, com tantas coisascom que me preocupar, com tantos jeitosdiferentes pelos quais eu poderia serpega. Rebecca não parava de melembrar de tudo. Como uma adivinha,ela sussurrava sem parar sobre os riscoe perigos. Eu não conseguia aguentar e,às vezes, queria costurar-lhe a boca oucobrir-lhe a cabeça com meu travesseiroaté que ela calasse a boca de uma vez.

Pam, a mãe de Craig, estava pintandosua casa, e me deu o que sobrara da tintausada na sala de estar. Levei as coisas

escondidas para casa e, com um pincel,comecei a pintar a parede em que minhacama fica encostava. Nosso quarto nãoera pintado nem tinha o papel trocadodesde que consigo me lembrar. O papelde parede estava apagado, mas davaquase para ver os desenhos de floresdesabrochando aqui e ali. Deve ter sidobonito um dia. Talvez a família quemorou lá antes da gente se importasseem deixar o quarto bonito. Pintei atémeu braço doer e então fiz uma pausa.Não sabia por que me importava, afinal,não demoraria muito para eu cair foradali, eu esperava, se as coisas saíssemconforme o planejado. Suspirando,analisei meu trabalho e percebi queprecisaria de mais uma demão de tinta.

Eu nunca teria dinheiro para comprarmais, no entanto, Pam talvez tivesse umpouco mais de tinta sobrando. Quandotivesse minha própria casa e minhafamília, eu pintaria todos os cômodoscom todas as cores do arco-íris, comoPam estava fazendo. Ela queria pintar oquarto de Craig de laranja, mas ele nãoqueria deixar. Ele queria que ficassecomo estava. Quando eles discutiam,não era como quando eu brigava comminha mãe e meu pai — ninguémexplodia, ninguém se desintegrava, elesapenas discutiam, batiam uma porta eesqueciam.

Nosso Pai tinha um livro. Nele, elelistava tudo que nós fazíamos e que era,

segundo ele, errado, e às vezes ele opegava e lia para nós, adicionando ealterando coisas enquanto o fazia. Nóstínhamos de ajoelhar e escutar; era umde seus rituais, e eu estava cansadadaquilo. Eu não mais o deixaria encostarem mim, nem escovar meu cabelo, nemsegurar minha mão, nem me bater. Eleestava ficando cada vez mais nervoso emais estranho, e logo perderia ocontrole. Até eu tinha um limite paraprovocá-lo, e esse limite estavapróximo. Eu precisava sair dali.

— O que você está fazendo?

— O que parece?

— Por que você está pintando a

parede?

Eu não respondi. Às vezes, asperguntas de Rebecca eram tão idiotasque eu nem me importava mais.

— Você vai sair hoje à noite denovo?

Balancei a cabeça, confirmando.

— Quando você volta?

— Quem sabe? Ele está numareunião, você sabe, aquela coisa doconselho escolar. É seguro, não sepreocupe.

Ela sempre se preocupava, nãoimportava o que eu dissesse, e isso medeixava nervosa também. Mas eu tinha

de ir aquela noite, era especial, eraaniversário de Craig. Dezoito anos. Eledeveria estar um ano à nossa frente daescola, mas perdeu tanta aula quando eramais novo que não o aprovaram paraentrar no décimo ano. Disseram que eleestava atrasado demais. Aquilo erabobagem, porque ele era a pessoa maisinteligente que eu conhecia. Mas osprofessores gostavam de fazer esse tipode coisa, gostavam de ter razão só pelarazão. Foi durante o nono ano que o paide Craig os deixou, mas ninguém seimportou com isso. Quando Craig estevesumido, ele estava procurando pelo pai,contou-me, mas acabou não oencontrando. Ele simplesmentedesaparecera. Eu me segurei para não

dizer que ele era sortudo, mas era issoem que eu estava pensando. Contei issoa Rebecca e ela ficou em silêncio porum bom tempo.

— Será que isso poderia acontecercom a gente? Você acha que um dia elevai simplesmente sumir?

Balancei a cabeça.

— Ah, Hephzi, se isso acontecesse eufinalmente saberia que Deus nos ama.

Pobre Rebecca. Eu nunca olhava paratrás quando descia pela árvore e corriapelo caminho até Craig. Eu sabia que elaficava observando, mas nem queriasaber quão solitária eu a fazia se sentir.

A festa de 18 anos de Craig, na Noiteda Fogueira[10], seria melhor ainda quea festa na casa dele em setembro. Dessavez, a festa teria um DJ e um bufê, eseria no clube de rúgbi do bairrovizinho, com direito a fogos de artifício.Eu nunca vira uma exibição de fogos deartifício, mas não contava isso aninguém para não acharem estranho.

Pam estaria na festa, o namoradodela, a quem Craig odiava, e seu irmãomais velho, Jamie. Eles me tratavamcomo se eu fosse da família, e todos nosapertamos no carro do namorado de Pame fomos para lá juntos. Tive de meespremer no meio no banco de trás, eCraig estava sempre com o braço em

volta de minha cintura. Eu ainda nãodera seu presente, falei que era algoespecial e que ele teria de esperar atémais tarde, mas imaginava que ele jásabia o que era.

Eu sabia o que teria de fazer comCraig para que ele soubesse que eu oamava de verdade. Quando eu era maisnova, encontrei um livro enquanto eumetia o nariz onde não devia, e aquelasfotos ficaram gravadas para sempre emminha mente. Senti a culpa arrastando-sepor baixo de minhas roupas, quente eácida, enquanto eu folheava as páginas,e, mesmo tendo ousado vê-lasnovamente, mantive-me longe doescritório de meu pai depois daquilo. Só

de pensar em meus pais fazendo aquilofiquei enojada, então nunca contei aninguém, principalmente a Rebecca. Eusempre pensava em quantos outrossegredos haviam entre as paredesapertadas da casa paroquial, fossem dosque nos fazem corar, fossem dos que nosfazem tremer de horror.

Parecia que toda a escola estava nafesta de aniversário de Craig, e euestava feliz por estar bonita. Garotascom quem eu nunca falara antes mediziam oi e elogiavam meu cabelo e meuvestido. Pam me emprestara sua pranchade alisar cabelo e Craig me dera odinheiro para o vestido e me levara até acidade para comprá-lo, quando eu

deveria estar na aula de Química. Era amelhor coisa que eu já possuíra.Decotado, curto e justo, eu poderia estarnuma revista. Não ousei mostrá-lo aRebecca, ela iria apenas dizer que euestava parecendo uma vadia. Ela nãofazia ideia do que as pessoas vestiam e,de qualquer forma, ela parecia um montede trapos. Craig sugeriu que eu aconvidasse, mas eu nem a chamei, e,caso ela falasse sim, sejamos honestos,isso teria estragado tudo. Craig e eudançamos, depois dancei com Jamie ecom algumas garotas da escola. Aspessoas não paravam de falar que Craige eu éramos um belo casal, e eu nãoparava de sorrir.

Todos saíram para ver os fogos deartifício e Craig me abraçou apertadoenquanto eles estouravam em centenasde pequenas bombas no céu. Era lindo.Quando todos os outros voltaram paracontinuar a dançar, Craig e eu demos asmãos e corremos em direção à noite.

— Eu te amo — disse-lhe no escuro,e ele me beijou até eu ficar tonta, nocampo atrás do clube. O chão estava umpouco úmido, mas nós não ligamos ecaímos sobre a grama.

Foi quando aconteceu. Pensei que iriadoer, mas não doeu. Ele foi delicado,sabia que eu era virgem. Há muito tempoeu contara a ele e perguntara se ele eratambém, mas ele balançou a cabeça

dizendo que não.

— Mas isso foi antes de eu conhecervocê — disse-me. — Se eu soubesse devocê antes, teria esperado.

Não perguntei mais nada e ensopeimeu travesseiro com lágrimas naquelanoite.

Logo depois, voltamos para dentro efiquei imaginando se alguém saberia.Escondi-me no banheiro por muitotempo, descansando meu rosto quente naparede fria do cubículo. Disse a mimmesma para não ser boba, passei umpouco de gloss, que estava quaseacabando, e coloquei meu sorriso devolta no lugar, mesmo não sendo mais

verdadeiro como antes. Eu não sabia porquê.

Quando saí, vi Craig dançando comDaisy. Eles estavam muito perto um dooutro, do jeito que estavam naquelaprimeira noite no bar. Fiqueiobservando, e eles não se afastaram. Elaprendeu os braços em torno do pescoçodele e aproximou o rosto para cochicharalgo ao ouvido dele. Não gostei do jeitoque ele ria sem graça e olhava ao redor,como se tivesse medo de que os outrosestivessem rindo dele também.

Assim que a festa acabou, voltamospara a casa de Craig. Pam me convidoupara ficar, mas eu disse que não podia, eela me deu um beijo na bochecha e foi

para a cama com o namorado. Craig e eunos sentamos sob a luz da lâmpada nasala de estar. Ele ficou me olhando porum bom tempo, então acendeu umcigarro e encostou-se no sofá, tirandoseu braço de meu ombro.

— Você está quieta. O que foi?

As coisas não pareciam mais asmesmas entre a gente. Ele pareciazangado comigo.

— Você não se arrependeu, né?

Balancei a cabeça dizendo que não,apesar da leve vontade de chorar. Eupensava que me sentiria diferente, queseria adulta. Em vez disso, eu só mesentia com mais medo. Roía as unhas

imaginando o que eu deveria dizer.

— Eu não machuquei você, né?

Balancei a cabeça de novo, e ele mepuxou e me beijou como se fosse a únicacoisa que o fazia feliz. Ele cheirava acigarro e ao perfume de Daisy. Eu meafastei.

— Me leva pra casa agora?

Ele suspirou e se levantou semesperar por mim, saiu e ligou amotocicleta. Sentei na garupa e tive deme segurar com força. Esperava que ovento secasse as lágrimas de meus olhosantes que ele visse. Desci na esquinaescura atrás da casa paroquial e desejeique não fosse necessário escalar a

árvore, mas eu não tinha escolha.Naquela noite, esperei até que ele fosseembora, pois não queria que ele visse, epercebi, de repente, que eu parecia umaidiota. Imaginei quanto tempo demorariapara ele terminar comigo.

Rebecca

Depois

Como eu era estúpida.

Então se constatou que Hephzibahestava certa. Eu estava me tornandoarrogante. Claro que eu seriadescoberta. Claro que haveriaretaliações. Como eu pensava quepoderia ficar fora sem permissão um diainteiro e ainda escapar? Mais tarde,naquela mesma noite, mal-humorado porcausa da bebida, ele se vingou. O Pailigou para a Sra. Sweet na Casa de

Repouso e anunciou uma gripe. Ouvi-ostransportando para longe as camas denosso quarto, ouvi o riso doentio eodioso dele, antes de me jogarem ládentro. Agora, não havia nenhum lugarpara me esconder, nenhum lugar parabrincar de invisível. O quarto ecoava egemia e, em algum lugar nas sombrassilenciosas, eu ouvia o bebê de alguémcomeçando a chorar.

— Psiu — implorei, mas ochoramingo não parava, então encosteimeus olhos com força contra o papel deparede e tentei bloquear o ruído em meucoração.

A Mãe confiscou minhas roupas,todas as que conseguira encontrar, que

não eram muitas. Tentei ficar com ablusa azul, que se rasgou enquanto elalutava para tirá-la de meus braços,desfazendo a trama. Eles esvaziaram asgavetas com seus conteúdosinsignificantes e recolheram osfragmentos da maquiagemcontrabandeada de Hephzi, os braceletesque sua amiga Daisy lhe emprestara eque eu nunca devolvi. Eles nãoencontraram a corrente de prata e operfume, pois eu os colocara sob astábuas soltas no canto embaixo dajanela, e até agora estavam seguros.Então eles me deixaram ali praticamentesem comida e sem água. Não havia luznem meios de ir ao banheiro. Eles medeixaram ali pelo tempo que puderam,

mantendo-me quase viva. Meu aparelhoauditivo foi totalmente destruído, ele oamassou com o sapato, e eu fiquei ali, naminha pilha de cobertores imundos,marcada pelo ódio dos Pais, incapaz deouvir qualquer possibilidade deesperança. Hephzi não me confortava.Irritada e amedrontada, ela estava seescondendo, e, por companhia, eu sótinha aquela mancha escorrendo naparede.

Os bebês continuavam chorando epensei que eu deveria cantar para eles.Procurando uma música, só encontreidesespero.

Um dia ele iria longe demais e eumorreria também. Eu podia sentir isso

chegando, um rolo compressor passandorapidamente por cima de mim, e eusabia que não podia deixar que issoacontecesse, não antes que de ter vividolivre pelo menos uma fração de minhavida. Rastejei até a janela e me arrasteiaté o parapeito para olhar para fora. Elenão colocara barras nem qualquerbloqueio, de modo que eu ainda podiaabrir a janela e pular para fora serealmente quisesse. Ah, eu queria. Noentanto, eu estava muito fraca e a quedaacabaria comigo. Eu sabia que elequeria me destruir para que eu ficasseali, uma escrava, uma bajuladora, para oresto da vida.

Eu não. Eu não.

A semana foi se desbotando, cinza,preta e marrom. O céu fora da janela erade concreto, tão duro quanto o desgosto.Gostaria de saber para onde fora overão; talvez o sol tivesse morridotambém. Meu quarto começou a federdepois de apenas alguns dias. Dores decabeça chegavam, entravam e saíam domeu sono. Às vezes de dia, às vezes denoite, e, quanto mais tempo eu ficavacom pouca comida e água, mais ficavaclaro que não conseguiria escapar pelajanela. Se ao menos eu pudesse ouviralguma coisa, ouvir os barulhos lá debaixo e saber que não fora abandonada.Eu me perguntava por onde andava aSra. Sparks ou o carteiro; havia uma

chance de ele sentir minha falta, nãohavia? Eu me perguntava se todos oshabitantes do lugar haviam morrido e euera a única sobrevivente de um terrívelholocausto. Rastejando até a porta,tentei abri-la. Continuava trancada. Eupoderia apodrecer ali, ser reduzida apedacinhos por ratos, e ninguém jamaisviria para descobrir o que aconteceracom a menina do rosto medonho.

Muito tempo antes, no passado, longeda loucura dele, eu compreendera pelaprimeira vez o que eu era realmente.Nós estávamos na casa de Vovó e aajudamos a fazer um bolo, depois fomosbrincar lá fora, revezando-nos para girara corda uma para a outra. Hephzi

começou primeiro, suas tranças voando,as bochechas cor-de-rosa, o ardivertido. Eu levei mais tempo,tropeçava na corda, desajeitada eestúpida, mas Vovó era paciente, e, porfim, eu consegui pular cinco vezesseguidas.

Foi escurecendo e esfriando, entãoVovó nos levou para dentro de casa enos pôs no sofá com direito a chocolatequente e fatias do bolo que tínhamosajudado a fazer.

— Vou demorar apenas um minutopreparando um chá, meninas. Agora,sentem-se e façam esse pequenotrabalho para mim.

Ela nos entregara um livro enorme,pesado e grosso, suas páginas estalarame sussurraram quando o abrimos.

— Aqui — disse ela —, encontremuma página vazia e vejam se vocêspodem colar essas para mim, meninas.

— O que é isso? — perguntei aHephzi, que pegou imediatamente opacote. Ela cantarolou toda feliz.

— Fotos! Fotos da gente, olhe! — Elaempurrou a primeira embaixo de meunariz. — Olhe como eu sou bonita! Eolhe esta aqui!

Ela espalhou as fotos por toda parte,fotografias que Vovó devia ter tirado emnossas viagens com ela, algumas na

fazenda, algumas no parque. Eu sorriaem todas elas, sorrisos grandes e feios,então finalmente reconheci o que todosviam tão claramente. Meu ímpeto aosseis anos de idade foi pegar as fotos ecomeçar a rasgá-las. Rasguei-as,amassei-as e piquei-as, jogando-as fora.Hephzi começou a gritar e berrar,enquanto eu estraçalhava as evidênciasdo que eu era.

— Vovó! Vovó! Venha rápido,Rebecca está rasgando tudo! Vovó!

Vovó veio correndo e me pegou nocolo como se eu não pesasse nada, euparei de agitar as mãos e me deixeisegurar.

— Por que você fez isso, querida? —perguntou-me depois, baixinho para queHephzi não acordasse.

Eu não conseguia responder-lhe ebalancei a cabeça.

— Você sabe que não deve destruiras coisas. Aquelas eram fotos de que eugostava, das minhas meninas queridas.

— Não — murmurei.

— O quê?

— Não. Você pode ver as fotos, vocênão devia olhar para elas. Eu sou umagarota má.

— Não, você não é. Não seja boba.

Eu não respondi e ela compreendeu.

— Você é perfeita, meu amor,diferente, mas perfeita. Você não podemudar sua aparência, não é culpa sua.Você me entende, Rebecca? Vocêentende o que estou dizendo?

Ela me disse que eu tinha algo… umasíndrome. Eu perguntei se era possívelcontraí-la, como a um resfriado, edepois ela ir embora quando eucrescesse.

— Não — respondeu ela, comtristeza. — Infelizmente, não, minhaquerida, me desculpe.

Ela me disse que a síndrome sechamava Treacher Collins. Que os ossosde meu rosto não tinham se formado

direito quando eu ainda estava no ventrede minha mãe e por isso eu era umpouco diferente.

— Mas Hephzi é minha irmã gêmea.Ela não se parece comigo. Por que nãome pareço com Hephzi? Nósdeveríamos ser bem parecidas.

Em seu colo, esperei com paciênciapor uma explicação. Ela não conseguianem mesmo começar a desvendar omistério para mim, pois eu era muitopequena para acompanhar o que eladizia. Tudo o que sabia era que eu nuncamudaria.

— Mesmo assim, você é perfeita,você ainda é uma menina maravilhosa.

Você entende?

Mesmo que eu compreendesse, nãoimportava. Apesar de ela ter explicadoo que havia de errado comigo e dado aisso um nome, apesar de ela ter dito queeu não era a única, os Pais decidiramquem eu era, e eu usava o ódio delescomo um estandarte.

Depois daquele fim de semana,quando nós tínhamos seis anos e Vovóme contou tudo sobre mim, ouvi-atentando ameaçá-lo. Ela disse que iachamar o Conselho Tutelar e que elesme levariam para longe. Disse que elamesma me levaria embora. Isso foiquatro anos antes de ele nos proibir devê-la novamente.

Agora, em meu quarto, trancada elentamente me dissolvendo, eu tocavameu rosto com os dedos e o sentiaencharcando-se com minhas lágrimas.

Acordei no outro dia com a luz do solcintilando pela janela e me arrastei paraolhar para fora. Vi que a árvore aindaestava verde e que, apesar de tudo, elaainda estava crescendo. Lembrei-me davida e quis a minha. Eu observava amovimentação, esforçando-me paraenxergar o contorno da casa até o longocaminho de cascalho que levava à portada frente.

Eu sabia que estava desaparecendo.Sabia que não podia permanecer ali

para sempre, esperando ser salva. Masnão queria que o desejo do Pai seconcretizasse tão rapidamente, então memantive firme. Era cedo demais paramorrer. Mais cinco dias deviam ter sepassado, talvez junho já tivesse acabadoe julho estivesse começando, até que,finalmente, vi um movimento. A figurafoi subindo a rua. Eu não conseguia vermuita coisa, mas sabia que não eram osPais. O passo era diferente e comecei ater esperança. Minha boca formou apalavra Danny, e talvez, se eu arespirasse no silêncio, ela poderiacrescer e correr para encontrá-lo.Coloquei a palma de minhas mãos novidro e fantasiei.

Logo depois que a figura recuou,poucos minutos depois, percebi o quedevia ter feito. Devia ter aberto a janelae gritado, gritado por socorro. Como euera estúpida. Eu não precisava queHephzi me lembrasse de quão estúpidaeu era!

Eu esperei que Danny voltasse,olhando pela janela, determinada a nãoperder a nova chance. Ninguém veio.Depois, no domingo, eles abriram aporta, como se fossem me deixar sair,mas me empurraram para o banheiro ejogaram a água fria do chuveiro sobreminha pele, que devia ser limpa edesinfetada. As garrafas estavamprontas. A Mãe desviou os olhos

enquanto limpava, e ele olhava,entoando suas orações pecaminosas. Eugritei e ela hesitou. Ele agarrou minhacabeça e a mergulhou na água. De novoe de novo e de novo.

Vovó me disse para nunca odiar. Sevocê odeia, você perde quem você é.Você não deve odiar as crianças queolham ou os adultos que apontam.Apenas ignore-os, eles não valem suaslágrimas, dizia-me. E eu acreditavanela. Agora já não sabia se conseguiriame controlar. Eu queria tanto odiá-losque isso machucava mais que qualqueroutra coisa.

Eles me deram um pijama velho,pequeno e em frangalhos, de segunda

mão e tão detonado que não servia nempara a caridade. Eles tinham levadotodo o restante. Meus dentes batiam defrio, e eu passava os braços em volta demim mesma, enquanto meus própriosgritos e os gritos que vinham dasparedes até mim cresciam numacacofonia de medo. Recuei para umcanto e olhei com horror o borbulhar e ogemido do papel de parede atrás deonde a cama de Hephzi ficava, e o vicrescer e esticar-se e senti algoaproximar-se.

E então vi Hephzi. Ela estava lá, derepente, apenas por um instante, umasombra dançando na janela.

É agora, disse-me. A hora de agir é

agora. A porta está aberta, corra parasalvar sua vida, minha irmã. Corra!

Hephzi

Antes

Quando você diz a uma pessoa que aama, ela não deveria falar que lhe amatambém? Acho que não. Acho que nãoera isso que sempre acontecia naqueleslivros que Rebecca lia, mas eu achavaque, com um pouco de sorte, comigoseria diferente. Eu pensava que Craigsentia por mim o mesmo que eu sentiapor ele.

Ele não apareceu na escola até quinta-feira e a semana foi uma agonia. Não

comi nem dormi, pensando no que fizerae imaginando o que ele pensava de mim.Talvez pensasse que eu era uma vadia,era o que todos diziam sobre garotas quetransam com os caras por aí, mas eu sóestivera com Craig. Eu rezava para queele não tivesse contado a ninguém, masachava que as pessoas estavam meolhando e falando de mim pelas costas.Rebecca me dizia para não ser idiotaquando eu lhe perguntava se as pessoasestavam cochichando sobre mim. Claroque eu não contara a ela o queacontecera, apesar de ela provavelmenteter imaginado. Eu sabia que eladescobrira. A cara dela no domingo demanhã dizia tudo. Era como se estivesseescrito em minha testa.

Quando Craig finalmente entrou nopátio, na hora do intervalo na quinta-feira, ignorei-o, mesmo com meucoração batendo como se fosse explodir.Era difícil parecer tranquila quando seestá sentada sozinha, então fingi queestava lendo meu livro de Química eprendi a respiração, esperando que eleviesse e as coisas melhorassem. MasDaisy o segurou enquanto ele passavaperto dos armários e pude ver pelocanto dos olhos que ela estava com obraço preso ao dele, jogando o cabelopara o lado e sorrindo com todos osdentes. Enfiei o livro na mochila,levantei-me e fui embora. Era para seruma saída digna, mas acho que não deu

muito certo, tinha quase certeza de queouvi algumas risadinhas.

Como fui idiota. Pensei queconseguiria escapar, pensei que teriaalguma chance e que tudo daria certo.Escondi-me no banheiro durante a tarde,olhando e olhando para a parede atéparecer que meus olhos explodiriam.

Rebecca me esperou após a aula efomos andando para casa. Ela viu meusolhos vermelhos, mas permaneceu mudadurante todo o caminho, como umaesfinge.

Mais tarde, após passarmos pela farsaque era o jantar com nossos pais,deveríamos ir para nosso quarto estudar.

Sentei-me na janela, imaginando sedeveria escapar para tirar satisfaçãocom ele. Era uma noite de novembro,fria e chuvosa, e o vento balançava aárvore, seus galhos se sacodindo comose ela estivesse sofrendo, e as folhascaíam rapidamente. Abri a janela e meinclinei para fora, deixando a chuvasalpicar meu rosto. Inclinei tanto quemeu corpo ficou metade para fora doparapeito. Se eu me deixasse cair, tudoestaria acabado.

— O que você está fazendo?

Ignorei minha irmã. Eu queria que elasumisse, ela ficava me enchendo o sacoo tempo todo, tentando entrar em minhacabeça, querendo saber.

— Feche a janela. Eu estoucongelando.

— Não.

Rebecca levantou e tentou me colocarpara dentro à força, até que eu, enfim,desisti. A janela foi fechada quase emminha cabeça e empurrei Rebecca, e elame olhou como se eu fosse louca.

— Qual é o seu problema? Você sedesentendeu com aquele garoto ou algodo tipo?

Ela odiava falar o nome dele. Quevaca.

— Não, por quê?

— Nossa, então por que você está tão

triste?

— Eu fico triste quando eu quiser.Cuide da sua vida.

Sentei-me em minha cama e desejeiter meu próprio quarto e meu próprioespaço. Queria estar em qualquer lugar,menos ali.

— Você deveria esquecer isso. Efazer as pazes com ele. Não aguentomais isso.

Pensei no que Rebecca disse e fiqueiimaginando por que havíamos nosdesentendido. Eu não fizera nada, só fiza ele o que pensei que ele queria. Oproblema deveria ser comigo, percebi.Era porque ele não dissera que me

amava, e eu achava que o acordo eraesse. Eu pensava que, se fizesse sexocom ele, a resposta seria que ele meamava, mas acabou não sendo assim, eeu o culpava por isso desde então. Elenão percebia quanto era importante queele me amasse, quanto eu precisava queele dissesse isso para que seguíssemosem frente e pudéssemos morar juntos.Levantei e abri a janela novamente. Seeu não fosse naquela hora, poderiaperdê-lo para sempre.

Quando cheguei à casa de Craig, euparecia um rato afogado. Pam abriu aporta e me olhou como se eu fosse umadoida antes de me levar para dentro epegar toalhas e roupas secas.

— O Craig está em casa? — gaguejei,com os dentes batendo.

— Não, querida, mas vou ligar nocelular dele e ver quando ele volta.Vocês andaram brigando?

Balancei a cabeça negativamente,depois concordei, sem ter muita certeza,e comecei a chorar como um bebê. Pamme abraçou como minha mãe nuncafizera, e pensei se realmente precisavade Craig. Pam poderia me adotar, seriao suficiente. Assim, Craig teria todo otempo de que precisasse para seapaixonar por mim.

Escutei-a falando baixo ao telefone nacozinha e torci para que ela não

estivesse falando nada ruim. Talvezestivesse contando a ele como sou umafracassada e dizendo que terminasselogo comigo. Eu não sabia.

Ela voltou para a sala de estar comuma xícara de chocolate quente. Bebirápido, estava delicioso, a melhor coisaque eu já bebera. Quando terminei tudoe lambi o resto da xícara, percebi queela estava olhando para mim, um poucoconfusa. Eu ri e passei os dedos peloscabelos molhados e bagunçados.

— Desculpe, eu estava com sede. —Não contei a ela que aquela era aprimeira vez desde meus 12 anos que eutomava chocolate quente e que semprefoi minha bebida favorita. Vovó fazia

com marshmallows e chantili.

— Você quer mais?

Assenti com a cabeça. Dessa veztomei mais devagar, tentando nãoparecer que acabara de chegar de Marte.

— Craig está voltando, querida. Elenão deve demorar.

— Onde ele está?

Ela pareceu desconfortável por ummomento, então ligou a TV. Ficamossentadas assistindo a EastEnders juntas.Eu estava tão concentrada que quase nãopercebi quando Craig entrou.

— Tudo bem?

Ele ficou no vão da porta me olhando.

No mesmo instante, Pam se levantou enos deixou sozinhos. Sorri para ele, masera um sorriso amarelo. Eu ainda sentiao gosto da chuva e das lágrimas emmeus lábios, e Craig meio que sorriu devolta.

— E aí?

Ele estava indiferente e ainda paradono mesmo lugar. Não era assim quecostumava ser. Na semana anterior, eleteria me abraçado e me beijado e faladoque eu estava bonita mesmo que euestivesse horrorosa. Respirei fundo edisse:

— Pensei em vir vê-lo.

Ele levantou uma sobrancelha,

esperando, então tentei novamente.

— Senti sua falta — completei.

— Sério? Pois parece que desdeaquela noite você tem me evitado.

— Não! — Ele franziu a testa, nãoacreditando em mim. — Por que vocêacha isso? Por favor, Craig, eu nãoestive evitando você. Eu juro!

— Tudo bem, então você não estavame evitando. O que mais?

— Como assim?

— Bem, por que você veio aqui? Oque mais você tem para me dizer?

Eu não fazia ideia do que ele queriaque eu dissesse, então me sentei,

olhando para minhas mãos. O tema deEastEnders tocava ao fundo. Estavatotalmente acabado. Eu não sabia porque ele queria que eu dissesse, por queteria que ser eu. Rebecca estava certasobre ele o tempo todo, ele era umporco idiota. Conseguira o que queria eagora está agindo como se a gente nemse conhecesse. De repente, fiquei maisirritada do que triste, levantei-me eolhei para ele, bem nos olhos. Era omesmo olhar que eu lançava à minhamãe quando queria que ela soubessequanto eu a odiava.

— Vá se ferrar, Craig! Vá se ferrar!

Empurrei-o e segui de volta para achuva. O jeans da mãe dele estava

frouxo em torno de minha cintura e deminhas coxas, por isso segurei-o ecomecei a voltar pelo caminho por ondeandara havia apenas meia hora. Eu nãosabia se estava chorando ou não, achuva batia em meu rosto, encharcavaminha roupa, deixando-me mais pesada,tentando puxar-me para baixo. Enquantoeu corria, murmurava e xingava, listandotodas as coisas que eu faria com Craigse pudesse, todos os nomes pelos quaiseu o chamaria, todas as maneiras comoeu gostaria de machucá-lo. Carrospassavam pela estrada, formandochafarizes em cima de mim enquanto eucorria. Então, uma moto freou do meulado, os faróis reluzindo em meu rosto,protegi os olhos do brilho forte e parei,

ofegando, ainda com raiva.

— Qual é o seu problema? —resmungou ele.

Eu não via que direito ele tinha deestar bravo comigo.

— Deixe-me em paz!

Continuei andando, mas ele desceu damoto e me agarrou, segurando-me comforça.

— O que está acontecendo, Hephz?Qual é o seu problema?

— Não tenho problema nenhum! —gritei em seu rosto. — Você é a drogado problema, seu falso, você é mau, seucanalha, seu merda… — Tremendo e

com espasmos, não consegui concluir edesabei contra ele. Toda a tristeza dasemana anterior veio em torrentes, eminhas lágrimas eram cascatas detristeza. Ele me abraçou por um tempãoapesar de nós dois ficarmos ensopados.A copa da castanheira não nos mantinhasecos e as gotas de chuva caíam sobrenós.

Ainda choramingando, afastei-me.

— Desculpe.

— Sem problema. Você vai conversarcomigo agora ou não?

— Preciso ir para casa. Eles vão mematar se descobrirem que eu saí.

Craig suspirou e secou a chuva emseu rosto. Corri a curta distância devolta para casa e me arrastei para cimada árvore e para dentro. Rebecca meobservava.

— O que você está vestindo? Ondevocê se meteu? Você saiu faz horas!

— Eles perceberam?

Ela balançou a cabeça e eu relaxei,tirando as roupas ensopadas ependurando-as sobre o aquecedor naesperança de que secassem. Na verdade,elas precisavam ser torcidas na piaantes, mas eu não podia me arriscar.

— Você o encontrou?

Fiz que sim com a cabeça, mas nãofoi o suficiente para ela.

— O que aconteceu?

— Nada.

— Ah, jura? Então por que vocêestava chorando?

— Não me enche, Rebecca. Pare deviver sua vida através de mim, tá? Sevocê quer arrumar algo interessante paraocupar a cabeça, arrume seu próprionamorado. E me deixe em paz.

Ela ficou calada. Nós dormimos. Euesperava que o dia seguinte fossemelhor.

No outro dia, no horário que Craig e

eu deveríamos estar no colégio,estávamos indo para o litoral. Ele mepegou quando eu estava andando acaminho da escola e deixei Rebecca lá,parada, enquanto demos meia-volta esumimos do bairro. Estava muito geladoe nos aconchegamos no casaco de Craigsob o píer. Ele me contou tudo.Aconteceu que, enquanto dançavam emsua festa, Daisy contara a Craig que euficara com outros caras. No começo, elenão acreditou, mas ela insistiu e atéarrumou alguém para confirmar ahistória. Samara. Eu sabia que nãodeveria ter confiado nela. Se eu nãotivesse ido à casa de Craig no diaanterior e agido como uma louca, eleainda estaria acreditando nela. De

qualquer jeito, ele percebeu que algumacoisa estava estranha. Finalmente.

Então estávamos juntos novamente eDaisy estava se mordendo de raiva. Eununca mais falaria com ela, eu a odiava.Craig concordou, mas, ainda assim, nãodissera que me amava, mesmo eu tendofeito sexo com ele novamente. Naverdade, nós fizemos mais algumasvezes. Era melhor do que eu pensavaque seria depois da primeira vez, quefora, basicamente, desconfortável, eescapávamos de volta para sua casaquando deveríamos estar na escola epassávamos o dia na cama. Era legal.Ele me trazia xícaras de chá, e nósfumávamos cigarros, e ele tocava

guitarra. Craig ainda não mencionaranada sobre eu ir morar com ele, noentanto, eu estava tentando ser pacientee ficar tranquila.

Eu não podia acreditar que continuavafazendo tudo aquilo sem ser pega. Acada dia que acordava eu imaginava seseria aquele o dia em que medescobririam. Mas, então, por estar tãofeliz e quase livre, esqueci de mepreocupar e segui em frente sendo umagarota normal, fazendo coisas normais eme apaixonando.

Rebecca

Depois

Quase cega de pânico, fugi da casaparoquial. Eu não sabia que podiacorrer feito um lince, não sabia que euconseguia ser tão rápida. Corri para forado quarto e desci as escadas, primeiroum voo e depois outro, rápidos e leves,invisíveis na escuridão crescente.

Sombras tremulavam nas paredes e oteto brilhava com um resto de luz do sol.Não conseguia ver direito aonde estavaindo e tentava fixar meus olhos à frente,

para fugir.

Entretanto, eu corri muito rápido. Napressa, meus pés tropeçaram um nooutro, e rolei os últimos cinco degrausda escada, caindo no chão frio de pedrado corredor.

Levanta, levanta, vamos lá!, dizia amim mesma, e minhas pernas melevantaram de novo, e eu corri para apesada porta da frente. Estava difícilvirar a chave na fechadura, e eu luteicom o metal duro, frio, tremendo porcausa do barulho que fazia, masimaginava que o rangido fosse um adeus.Atrapalhada pela pressa, eu estavademorando muito, e reuni todas asminhas forças para puxar as travas,

estremecendo com o som dos parafusose o gemido das dobradiças, quepareciam estar amaldiçoando minhapartida. Aquela casa fora minha prisãopor muito tempo.

Fechei a porta atrás de mim e meatirei na noite. Não conseguia acreditarque realmente ainda era verão e o arquente da noite parecia um beijo. Eu melancei no caminho que levaria paralonge da casa, por entre as árvores e sobas estrelas, para o mundo além dali.

O cascalho machucava meus pésdescalços e eu fugia e corria como fogona palha seca em direção à calçada,selvagem e livre, mas quase tão fracaque poderia ter me deitado ali mesmo e

dormido o tempo que fosse necessáriopara me recuperar. Então, ao alcançar oportão, parei por um momento e mevirei. A casa paroquial apareceu atrásde mim, maciça, a porta ainda aberta,uma boca escancarada que levava àsprofundezas de meu passado e que meengoliria em sua última chance. Derepente, tive mais medo do que podiacontrolar, minhas pernas balançaram epensei que iriam fraquejar. Você é maisforte do que isso! Ouvi o sussurro dovento, enquanto luzes e sombrasbruxuleantes se moviam na janela. Elesestavam vindo. E se me pegarem! Aadrenalina foi direto para meu coraçãocom essa ideia, então corri para a portada Casa de Repouso, o único lugar

aonde eu sabia que poderia ir. Era noitee os moradores deviam estar na cama, erezei para que Danny estivesse lá.

Suki abriu a porta detrás, e caí paradentro, incapaz de falar ou respirar.Todos me olhavam, e desmoronei nochão, na frente deles. Minhas pernastinham se diluído em água e eu era umapiscina de medo. Alguém me levantou eme levou para a sala de estar, e, pelaforça, eu soube que era Danny. À minhavolta e atrás de mim havia um zumbido erumores de comoção. Eu ainda eraincapaz de ouvir, mas sentia a multidãoreunida me perguntando coisas.Encontrei minha última gota de força eolhei, por cima dos braços de Danny, e

os vi. Eles haviam ido atrás de mim.Tive um vislumbre do rosto vermelho deraiva deles, mas ainda assim sorrindo.Eles ficaram lá, conversando perto daporta. Eles estavam apontando para mime falando tão rápido que eu nãoconseguia ler o que diziam. Danny mecolocou deitada e os enfrentou,bloqueando seu caminho.

A sala caiu em silêncio. Olhei porentre meus dedos para tentar novamenteler os lábios do Pai.

— Isso é terrível. Pedimos desculpas— dizia o Pai. — Rebecca está doente,delirando, vamos levá-la para casa echamar o médico.

— Ela é um pouco difícil, você sabe,a nossa Rebecca — acrescentou a Mãe.— Você sabe como os adolescentespodem ser problemáticos! — Eu vi oPai lançar um olhar para ela, dizendo-lhe que calasse a boca, que ele lidariacom a situação. Ela abriu seu sorrisotenso.

Danny permaneceu onde estava, decostas, uma barreira entre eles e eu.Rezei para que ele fosse forte osuficiente para mantê-los longe e queentendesse que era a única pessoa entremim e um desastre. Eu já vira muitasvezes o Pai agir daquele seu jeitopeculiar e não podia subestimar seupoder. Ele deu um passo adiante,

segurando os braços e sorriu, ah, tãosincero. Eu li meu nome em seus lábiosnovamente. Ele iria enganar Danny e melevar de volta, dizendo que eu era louca,falando qualquer mentira. Eu tinha deimpedi-lo. E agora sabia que podia.

Quando falei, Danny virou-se.

— Não deixe que eles me levem. Porfavor, Danny, não deixe que façam isso.

Ele balançou a cabeça imediatamente.À medida que avançava, colocava osbraços em torno de mim, uma barricadade amor tão forte quanto o aço. Aliestavam os braços de um pai que eununca tivera, e eu me abrigava atrásdeles e de outras mãos, as mãos de meus

amigos, de Suki e de Michaela, da chefe,a Sra. Sweet, que mantinham os Pais adistância. Eles devem ter percebido quehavia pessoas demais para dominar, e,enquanto virávamos para ouvir a sireneque soava em nossa direção, eles seforam, fundindo-se nas paredes, commedo das consequências de tudo o quehaviam feito. Alguma alma caridosadeve ter chamado a ambulância. Eu tivesorte, dessa vez não seria tarde demais.

— Eles se foram? — perguntei aDanny.

— Sim, sim, você está bem. Eles seforam. O que aconteceu? — Seusemblante era de choque.

— Não sei. Não me pergunte. Porfavor? — sussurrei através de meuslábios secos, rachados. Tossi paralimpar a garganta e minha cabeça caiu.

Eu me perguntei se algum dia eu iriacontar.

Hephzi

Antes

Quando chegou o recesso de Natal,fiquei doente. Não sabia se era apenassaudade de Craig, mas era pior que isso,era horrível; eu me sentia fraca eenjoada o dia todo e só a visão dacomida que a Mãe cozinhava me faziacorrer para o banheiro a toda hora. Maseu ainda tinha de trabalhar, ajudandocom os corais, preparando a igreja paraos eventos de Natal, enviandoinformativos, indo a reuniões ecerimônias de Advento, limpando a casa

paroquial. O Pai nos fazia trabalharmais duro do que nunca. Como nãotínhamos a desculpa da escola, eleestava recuperando cada minutoperdido. Rebecca e eu mal parávamospara respirar ou para comer, semprehavia algo mais a ser feito. Ela me davacobertura nas minhas atividades quandoeu me sentia muito mal, e, às vezes, euescapava para o quarto e tirava umcochilo. Porém, quando chegava a noite,eu começava a me sentir melhor e,quando escutava a moto de Craig na rua,saía da cama e descia para encontrá-lo.Por algum motivo ele discutira com suamãe, então tínhamos de ir ao pub ou aoponto de ônibus. Quanto antes eu memudasse, melhor seria. Talvez

conseguíssemos um lugar só nosso.

Craig me perguntou por que eu estavasempre doente. Expliquei queprovavelmente era um virose, só isso.

— Você está tomando pílula, né? —indagou ele. Eu não fazia ideia do queaquilo significava, então concordei coma cabeça. O rosto dele brilhouinstantaneamente. — Deve ser um vírusentão. — E concordei outra vez.

Mais tarde, perguntei a Rebecca o queisso queria dizer. Ela balançou a cabeçae pareceu mais preocupada que nunca.

Eu queria que o feriado de Natalacabasse logo. Nós ficávamos tãoocupadas indo às cerimônias que eu não

tinha nem chance de fugir para verCraig, e ficava preocupada que eleviesse e batesse à nossa porta, comoameaçara fazer quando eu falei que nãopodia ir vê-lo. Ele fez as pazes com suamãe e ela queria que meus pais fossemvisitá-los para tomar vinho quente ecomer torta. Eu disse que não e Craigficou chateado.

— E que tal se você fosse lá em casano dia de Natal? — sugeriu ele. — Nãovejo você direito faz tanto tempo. Eupoderia pedir a minha mãe para vocêpassar a noite, acho que ela não teriaproblema com isso. O que você acha?

— Não. Eu não posso. — Eu estavaquase chorando. Sei que é bobagem, mas

tudo me fazia choramingar ultimamente.

— Tudo bem. Como quiser. Só nãochore, OK?

Engoli o choro e sorri, apesar davontade que eu tinha de berrar. Se pelomenos eu tivesse coragem de contar paraele minha ideia de me mudar de umavez; mas, se ele cortasse o meu baratome dizendo que não, seria pior do quequalquer coisa.

Ele apareceu uma noite, naantevéspera do Natal, e ouvi sua motoroncando na esquina. Debrucei-me najanela para espantá-lo de lá. Era muitoperigoso, São Roderick e Mãe Mariaestavam no andar debaixo com uma

porção de seus comparsas, a Sra. Sparkse sua turma, e ele estava sóbrio e alerta,tomando chá e se fazendo de santo. OPai estava animado porque pelo menosuma vez ele era quase importante, e eudevia estar lá embaixo também, sendo asenhorita Perfeitinha. Ele poderia subira qualquer instante para me arrastar devolta às minhas tarefas. Mas Craig disseque, se eu não descesse, ele subiria,então tive que deslizar pela janela. Eudizia palavrões enquanto desciarapidamente pela árvore, desfiando aroupa e embaraçando o cabelo.

— O que foi?

— Linda. — Ele sorriu para mim,determinado a não se sentir ofendido.

Deixei que me beijasse.

— Aqui. — Ele mexeu em seu bolso etirou uma caixinha, fina e quadrada, aqual peguei de sua mão.

— Devo abrir agora?

— Não. É para o Natal. Já que vocênão vai passar na minha casa, acheimelhor fazer uma entrega especial.

— Obrigada — sussurrei, segurandoa caixinha como se alguém estivesseprestes a roubá-la de mim.

— De nada. Eu a vejo em breve.

Vi Craig ir embora, chateada por nãodar um presente a ele, e determinada aabrir a caixa assim que possível.

A corrente de prata com minha inicialpendurada escorria em minhas mãoscomo se fosse mágica. Eu jurei quenunca iria tirá-la e a coloquei nopescoço, certa de que ela tinha poderesespeciais, certa de que era um sinal.

O dia seguinte era véspera de Natal,e, apesar de todos os meus protestos,Craig apareceu para a missa da meia-noite com Pam. Eu não acreditava queele fizera isso. Eu lhe dissera mil vezespara não ir à casa paroquial ou à igreja,e lá estava ele, andando e sorrindo paramim. Estava vestindo um sobretudo, queeu nunca vira antes, estava bonito eparecia mais velho. Sentia meu coraçãobatendo nos ouvidos e o banco se

inclinava sob mim como se o mundoestivesse girando sem controle, não maisperfeitamente suspenso no universo, mascaindo depressa em direção ao sol.Rebecca os viu também e nossos olharesse encontraram no limite de algoterrível. Então, a Mãe me cutucou devolta à realidade com seu cotovelo finoe virou sua cabeça para trás, sentindominha ansiedade, e pude ver que elapercebera. Seu olhar parou em Pam eCraig, sentados algumas fileiras atrás denós e, quando Pam sorriu para ela, elavirou a cabeça para a frente novamente,e seus olhos arregalados olharam parameu Pai. Haveria problemas mais tarde.

O Pai começou a cerimônia. Ele

entonou as orações de seu jeito natalinousual. Ele adorava essa celebraçãoporque muitas pessoas apareciam,mesmo que algumas fossem os bêbadosdo pub, e ele dava um sermãosuperlongo, provavelmente para puni-los por não aparecerem durante o restodo ano.

— O nascimento do Cristo menino éum momento de alegria a sercompartilhado. Nós damos as boas-vindas a essa celebração paracompartilharmos essa alegria. Em toda anossa vida, a chegada de uma criança éuma bênção de tamanha magnitude quemal pode ser expressada. Mas onascimento do menino Jesus, vindo para

salvar os pecadores, para carregar opesado fardo da humanidade, é umadádiva além da compreensão humana.Para fazer o sacrifício de si mesmo, sero último e não o primeiro. É isso queJesus Cristo, uma criança simples ehumilde, ensinou, e é uma lição quetodos devemos aprender.

E assim ele continuou, tentandoalcançar sua congregação com os braçosestendidos. Ele normalmente conseguiamanter o demônio fora do sermão deNatal, mas nesse ano ele não resistiu.Achei que fora especialmente para mim,pois ele me olhava fixamente enquantolambia os lábios e continuava.

— Então abençoado seja Deus por

mandar Seu filho para nos salvar dodemônio. Abençoado seja quando Eleveio nos salvar da tentação da luxúria,do brilho da ganância e do sono dapreguiça. Confessemos nossos pecadoscomo um só aqui esta noite e deixemosessa igreja renovados em nossa fé, maisdeterminados a banir o demônio e seusdesejos de nosso coração. Celebremos oNatal surdos para a batida dos tamboresdo demônio.

Ele estava com tudo aquela noite. Euachei que ia passar mal.

Alguns “améns” foram murmurados eo coral começou a cantar um hino. Meufavorito sempre foi “Away in a

Manger”[11] eu já o cantara uma vez,sozinha, mas não iriam cantá-lo aquelanoite, então não participei. Meus lábiosmal se moviam, e os de Rebeccatampouco. Ela apertou meus dedos comforça, como se não fizesse mais sentidonos preocuparmos se ele veria ou não.

Eu não ousaria olhar para trás denovo.

Quando o coral finalmente terminou oúltimo hino, peguei na mão da Mãe ecorri para fora da igreja antes que Pamtivesse a chance de nos alcançar. Eu vique ela estava segurando algo em formade garrafa e imaginei que trouxera algopara presentear meus pais. Meu Deus!

Se ela falasse com eles, seria o fim,nossos segredos seriam revelados e tudoestaria acabado. Ainda era muito cedo,eu não estava pronta. Não fizera asmalas, nem sabia como ir embora. ERebecca, o que ela faria se eu fugisse?Arrastei a Mãe comigo, de volta à casaparoquial, e Rebecca veio junto,apressada, ainda segurando minha mão.Mas isso não estava certo, não erapermitido, nós deveríamos estar nafrente da igreja nos despedindo dacongregação e lhe desejando FelizNatal, atuando segundo nosso papel. Emvez disso, escondemo-nos atrás da portada casa paroquial. A Mãe olhou paramim.

— O que está acontecendo?

— Nada.

— Então o que você acha que estáfazendo? — Ela me empurrou, tentandopassar, mas fiquei firme no lugar.

— Nada.

Ela virou para Rebecca:

— O que está acontecendo aqui?

Reb ficou em silêncio e ganhou umforte tapa no rosto. A porta da frente seabriu e eu caí para o lado. Ele entrou.Eu não acreditei, ele estava sorrindo eminha boca relaxou por um segundo,aliviada. Então percebi o que aquilosignificava e me encolhi atrás de minha

irmã, cujo corpo frágil estava firmecomo um escudo. Atrás dele vieram Pame Craig. Todos estávamos juntos nosaguão.

— Maria, esse é o namorado deHephzibah, Craig, e sua mãe, Pam. — AMãe deu um passo e apertou a mão dePam, e sorriu, como um ser humanonormal. Eu sabia que ele convidara osdois só para que eu tremesse de medopor mais tempo e eu não estavaaguentando. Eu queria que fossemembora naquele minuto. Eu queria pegarminhas coisas e ir com eles. Rebeccapoderia ir também.

Pam estava sorrindo para mim, muitosatisfeita. Ela estava louca para

conhecê-los. Por que eles ficariamlonge, como eu pedira?

— Craig e Hephzibah já estãonamorando há um bom tempo, Maria, é oque Pam estava me dizendo. — Eu nãoousava olhar para meu pai. — Sabe, eubem que imaginava que algo estavaacontecendo, não é engraçado, Pam? Umfilho pode tentar ser discreto, mas nós,pais, os conhecemos muito bem.

— Ah, sim, Craig sempre foi umpouco assim também. Mas nós adoramosa presença de Hephzi, ela é uma garotaadorável. Vocês devem ter muitoorgulho dela.

— Certamente, é claro. — O Pai

sorriu e olhou para mim. Craig também.Achei que ele queria que eu dissessealgo e pensei no que deveria dizer.Deveria ter me oferecido para colocarágua para ferver? Ou para pegar umbolo de Natal que minha mãe tãocarinhosamente assara para uma ocasiãocomo aquela? Duvidei que fosse isso.Em vez disso, tentei sorrir de volta paratodo mundo, mas o sorriso morria emmeus lábios. Rebecca segurava minhamão com ainda mais força. Ela disseraque isso aconteceria, mas eu achava quepoderia fazer meu plano dar certo.

— Foi um prazer conhecê-la, Pam.Veremo-nos novamente, com certeza —disse o Pai. Eles não perceberam a

frieza de sua despedida porque estavamlonge, desejando Feliz Natal, acenandocom as mãos. Adeus, Craig, pensei.Adeus.

A porta se fechou silenciosamenteatrás deles. O Pai se virou. Ele noscolocou para dentro, formávamos umafila na frente dele. Havia um silêncioque era mais imóvel e escuro que anoite, e esperamos a bomba explodir. Euestava pronta para correr. A garrafa quePam dera para ele acertou a parede atrásde nós e se estilhaçou; o vinho seespalhou e escorreu como sangue, e obarulho finalmente tomou conta. Ele nãoparou para fazer perguntas. Nadapoderia justificar o descumprimento de

suas regras e ele não estava interessadoem escutar minhas desculpas. Não. Elefoi direto para a punição. O Natal enfimchegara.

Acordei no meio da noite, estavamuito cedo para já ser de manhã, e porum momento imaginei o que havia deerrado comigo. Então me lembrei dasurra e senti minha bochecha inchada,movi meu ombro deslocado. Aquelasdores eram familiares; não eram elasque tinham me acordado. Então sentiuma umidade quente entre as pernas.Minha menstruação, finalmente, pensei,e tentei sair da cama para me limparantes que a bagunça ficasse maior. Masde repente senti um grande jorro descer

pelas minhas pernas e pus a mão bemonde ele me chutara na barriga e medobrei de dor. Imediatamente, Rebeccaestava ao meu lado.

— Hephzi? Você está bem?

— Não. — Eu mal conseguia falar ourespirar e desabei no chão. Ouvi-aofegar quando ela acendeu a luz e viu osangue. Ouvi-a perguntar-me o quedeveria fazer, mas tudo que eu sentia erador. Eu imaginava, enquanto estava lá,por que ela não ia buscar socorro, eutinha certeza de que deveria, mastambém sabia que ela estava com medoe, enquanto eu sangrava, imaginava oque poderia estar acontecendo comigo eo que ele fizera.

— Está tudo bem — disse ela. — Vaipassar rápido.

Eu não imaginava como ela poderiasaber disso já que eu não sabia o quehavia de errado comigo. Talvez eu tenhalhe perguntado, no entanto, ela memandou ficar quieta, pensei tê-la ouvidodizer que era apenas um bebê e que eunão deveria me preocupar, mas eu nãosabia como isso poderia ser verdade.Ela pegou um pano frio para colocar emmeu rosto e esperei me sentir melhor.

A dor, entretanto, piorou, e a noiteescura parecia aumentar enquanto a dorse espalhava por minhas pernas. Minhacama estava coberta de toalhas e euestava deitada lá, imóvel e sangrando.

Eu devia estar morrendo. Ninguémnunca me disse que era assim que agente morre. Comecei a tremer e pedimais cobertores a Rebecca. Ela pairousobre mim, seu rosto era uma pequenaestrela próxima do céu.

Sonhei um pouco que estava andandomuito rápido com Craig em sua moto, egritei quando caímos em direção a umabismo negro. O sonho me fez acordarassustada de novo, e eu estava suando emuito quente, então joguei os cobertorespara o lado. Quando vomitei, Rebeccaestava lá me segurando, dizendo-me queeu estava bem. Eu sabia que não estava.Ela me trouxe água, mas vomitei denovo.

A noite era tão longa.

— Reb, por favor, me ajude —implorei.

— O que eu devo fazer? — perguntounovamente, mas eu precisava que elaassumisse o controle. Ela sempre meprotegera. Por que não agora?

— Devo chamá-los? — questionou, eeu concordei. Ela sumiu e depois voltou,mas ainda sozinha. Eu chorava por causada dor e por causa de todo o restante, eentão me esqueci de quem eu era e paraonde ia. Houve um momento em quepensei ter ouvido a voz de Craig, láfora, gritando por mim, e me sentei,assustada, mas era apenas Rebecca

colocando água em minha boca,implorando-me para beber enquantoenxugava o suor de meu rosto.

O dia amanheceu, cinza e tedioso.Nós nunca havíamos aberto as meias deNatal, nem uma, pensei de repente.Ouvi-os gritando para descermos eirmos para a igreja, e Rebecca colocouuma roupa, beijou-me rapidamente esaiu. Os sinos estavam tocando, ah,venham todos os fiéis, e os ouvi saindosem mim. Quando a porta bateu e a casaficou vazia, chorei e pensei se veriaminha irmã novamente.

O dia se arrastou. O sanguecontinuava saindo. Eu me sentia cansadae fraca e não conseguia mais falar.

Tentei encontrar um pano frio em meucolchão, eu precisava descansar, euprecisava de paz. Rebecca voltou ecuidava de mim. Quando a noite chegounovamente, uma sombra pairou sobreminha cama. Meu pai. Tentei alcançá-locom a mão, olhá-lo no rosto e pedirsocorro. Ele se virou e me deixou lá.

Alguém chamou uma ambulância, ouvio barulho ao longe.

PARTE DOIS

Rebecca

1

Ela morreu por causa de uma infecção.Foi isso o que disseram. O sangue queela perdera, o bebê que ela deixara nochão de nosso quarto, não foi o que amatou. Fora o veneno enraizado que aatacou até que ela não conseguisse maislutar. Ninguém culpou o Pai. Ninguéminterrogou a Mãe. Ninguém perguntoupor que eles não a levaram mais cedo.

Se eu não tivesse chamado aambulância, ela nunca teria nem mesmoido ao hospital. Acho que ela já estavamorta quando a ambulância chegou.

Claro que me culparam. Disserampara todos que eu mantivera isso emsegredo, que eu a mantivera trancada láe fingira que ela estava com gripe paraprotegê-la porque eles haviam brigado.Apenas uma discussão de família, vocêsabe como é. Claro que ia ver como elaestava todas as noites, mas, uma vez queperceberam a situação, bem, isso tudoacontecera muito rápido, e o que elesfizeram para tentar ajudá-la foi inútil,pois era tarde demais. Via a Mãederramar suas lágrimas de crocodilo

enquanto apontava o dedo para mim, e omédico balançou a cabeça e colocou amão em seu ombro para confortá-la. Erauma tragédia, ninguém poderia terprevisto que Hephzi iria embora tãocedo, ela realmente não deveria seculpar.

Na manhã seguinte à morte de Hephzi,voltamos para a casa paroquial e tive delimpar a bagunça. As toalhas molhadasno banheiro transformavam o brancoencardido das peças de porcelana emvermelho, manchas que pareciam florescarmesins pintavam o chão e minhasmãos enquanto eu arrastava lençóis eroupas pelo quarto até o banheiro. Elebebia lá embaixo enquanto eu limpava.

Ela estava sentada na cozinha fazendosuas orações. Deixamos Hephzi lá nonecrotério, fria e sozinha, sem nemmesmo seu bebê para acompanhá-la. Euqueria sair e voltar lá para ficar comela, para segurar sua mão e contar umahistória, mas não ousei pedir. Em vezdisso, esperei as horas passarem emnosso quarto, meu quarto, perguntando-me se tudo aquilo não fora apenas umsonho. Uma semana depois, o funeral foirealizado. Fizeram-me usar um vestidodela e choraram lágrimas falsas. Todomundo sabia que eu era a única culpada.

Ninguém nunca falou comigo ou comHephzi sobre bebês. Nós duasaprendemos da maneira mais difícil.

Eu devia ter imaginado que ela estavagrávida quando ficou doente por todoaquele tempo e com a menstruaçãoatrasada. Talvez eu soubesse, masestava escondendo de nós duas. Ocurioso é que Hephzi gostava decrianças pequenas. Eu sempre achei quecrianças eram irritantes. Quando éramosmais novas, uma de nossas tarefas eracuidar das crianças menores enquanto ospais estavam em suas reuniões deoração ou em alguma das atividades doPai. Uma das mães normalmentepróxima para ficar de olho em nós, elesficavam incomodados quando me viamtocar seus filhos, embora sempreconversassem com Hephz.

— Você é boa com bebês. O que achade ser nossa babá uma noite dessas? —perguntou uma senhora certa vez. Ela erabastante nova na cidade e não sabiacomo as coisas funcionavam.

— Ah, obrigada, seria ótimo! —Hephzi era idiota o suficiente parapensar que isso seria realmentepossível. Minha irmã poderia esperarsentada.

— Você quer ter filhos quando formais velha, sabe, quando você forcasada? — continuou a mulher. Tenteinão revirar os olhos.

—Talvez. — Hephzi fez uma pausa.— Eu não sei ao certo… Como você

conseguiu um bebê?

A mulher deu um sorriso engraçado.

— Ah, você deve perguntar à suamãe, ela vai lhe contar tudo sobre isso.

Acho que ela pensava que uma garotade 11 anos de idade deveria conhecer osfatos da vida. E ela deve ter contado àMãe sobre a conversa, porque depoisdisso ela limpou nossa boca com sabão,fazendo-nos vomitar, até que ele nosencarou e disse para que nunca maistocássemos nesse assunto sujonovamente. Hephzi não estava satisfeitacom isso e ela se perguntava e seperguntava. Talvez Vovó nos tivesseexplicado se houvesse tido uma chance.

No momento em que fui para a escola,todo mundo sabia tudo o que havia parasaber e ninguém pensou em nos contar.Isso era notícia velha. Não para Hephzi.Nós nunca tínhamos estudado biologia,nunca praticamos como colocar umacamisinha numa banana. Fiquei de bocaaberta quando Archie me disse que elesfizeram isso no nono ano e que ele riudisso mais tarde com sua mãe e seu pai.

Tudo que Hephzi sabia era que issoera uma coisa suja, a coisa que a Mãedisse que não deveríamos fazer, porquese o fizéssemos iríamos para o inferno.O mesmo ela falou sobre nossamenstruação. Fora o diabo que fizeraque sangrássemos todos os meses. O

sangue estava lá, um sinal do diabo,assim como o meu rosto, para noslembrar de que éramos podres.Acreditei nela por um tempo até Hephzidescobrir por meio de uma menina dogrupo da igreja que era tudo normal eapenas parte do crescimento. Elasconversaram sobre isso sussurrando nobanheiro durante uma reunião na igreja.Hephzi poderia saber que ela estavaindo para o inferno por fazer o que fezcom Craig, mas ela não sabia que teriaum bebê. Coitadinha. Craig nemimagina, e eu nunca vou lhe contar.

Depois que escapei da casa paroquiale fiz minha corrida louca para a Casa deRepouso, uma ambulância veio e me

levou para o hospital. Talvez tenha sidoa mesma que levara minha irmã morta,seis meses antes. Danny veio comigo.Agarrei-lhe a mão, mas ele afastou meusdedos rígidos, pousando minha mãosobre os lençóis brancos para deixarque me medicassem e colocassem o soroe os curativos. Eles iriam me manterviva, e eu iria sobreviver. Hephzideveria ter passado pelo mesmo. Elapoderia ter passado pelo mesmo se eutivesse pedido ajuda um pouco maiscedo.

As enfermeiras me fizeram perguntas,mas fiquei quieta, não havia necessidadede responder, elas não acreditariam emmim; por que deveriam? Eu vira isso

antes. Danny voltou e eu lhe pedi quenão me deixasse sozinha novamente, eele concordou com a cabeça.

A menos que Danny estive lápresente, o Pai poderia aparecer e melevar de volta para a casa paroquial, eeu não escaparia de lá novamente. Achoque ele entendeu que essa era minhaúnica chance.

Danny falou que ia chamar a polícia,mas balancei a cabeça com tanta força edisse-lhe que eu me mataria se elefizesse isso, então ele se encolheu emsua cadeira como um grande urso querecua e volta para sua caverna. Ele disseque aquilo poderia esperar, mas só atéeu me sentir melhor.

No entanto, alguém chamou a polícia.Uma policial apareceu no dia seguinte,com seu bloco de notas, e fez perguntas.Fingi que estava dormindo. Ela nãodesistiu e voltou todos os dias até que,por fim, tive de me sentar e falar, apenasna esperança de me livrar dela.

— Rebecca, como você está?

— Bem. — Olhei para ela comatenção. Eu não gostava do jeito que elaolhava para mim, acho que ela pensavaque eu era um incômodo.

— Então, você pode me explicarcomo veio parar aqui?

— Não.

— Pense novamente, durante a noiteem que você foi ferida, o que aconteceu?

Isso era ridículo. Na noite em que fuiferida? A qual noite ela estava sereferindo? Eu nunca iria dizer a ela. Esua voz soou aflita, eu não queria deixá-la com raiva de mim, mas eraprecisamente isso que aconteceria se elapercebesse que eu estava mentindo. Eusimplesmente balancei a cabeça.

— Você não precisa ter medo,Rebecca, ninguém pode machucá-laagora, você sabe disso.

Isso é o que ela pensava. Ela nãosabia sobre o Pai. Ele matara a Vovó.Ele matara Hephzi. E eu era a próxima

em sua lista.

— Você sabe que os médicos memostraram seus raios X. Eu vi todas asprovas. Tudo de que preciso é umapalavra sua.

Dei de ombros e ela suspirou e selevantou para sair, virou-se e caminhouaté a porta e depois parou.

— Se alguém fizesse com meus filhoso que fizeram com você, bem, eu nãoseria responsável por minhas ações,minha querida. Eu vi cada cicatriz,contei cada fratura em seus raios X, asvelhas e as novas, ouvi sobre suascontusões e sobre como você gritaenquanto dorme. Sei que você está com

medo, Rebecca, mas você tem de pararcom isso. Você tem de ser corajosa. Euestarei pronta quando você estiver.

Por um momento, ela quase meconvenceu. Eu a vi com as crianças,lendo histórias para elas, brincando comjoguinhos em casa num dia chuvoso,assando bolos de aniversário. Por ummomento, eu quase fui convencida. Masentão me lembrei de quão poderoso eleera. Ele escaparia impune, mentiriadaquele seu jeito, deixando minhahistória sem sentido, e faria todospensarem que eu era louca. Ele iriamostrar as correntes com as quais euestava presa quando estava prestes afugir dizendo mentiras sobre mim.

Afinal, um homem de batina era maissagrado que a lei. Sua palavra eradivina. Danny veio novamente e tentouconvencer-me a falar, mas não deiouvidos a ele. Pela primeira vez, eu iriafazer as coisas do meu jeito.

Então veio o psiquiatra. E a assistentesocial. Em seguida, os alunos e osterapeutas e, logo depois, a policialnovamente. Ela olhou para mim comtristeza.

— Você não vai continuar sendoboba, não é, Rebecca?

Virei o rosto para a parede. Era fria ebranca e borbulhava de segredos.

— Se me disser o que aconteceu,

então vou garantir que quem fez issocom você seja punido. Vou fazer issopara que nunca mais possa ferir outrapessoa.

Ela caminhou em círculos ao lado dacama e, então, encontrou minha mãofechada em volta de uma bola de gazebranca e a segurou.

— Por favor, deixe-me ajudá-la. —Ela desapareceu no borrão formado porminhas lágrimas, mas eu sentia a pressãocontra meus dedos enquanto ela osapertava e dizia palavras de confortofrias e vazias.

Eu não podia falar com essesestranhos. Enquanto os médicos me

cutucavam e me empurravam, colocandoem mim uma prótese auditiva e sugeriamuma cirurgia em meu queixo econversavam sobre como eu era um casoincomum e muito fascinante, fingi queestava com Hephzi; eu, Hephzi e Vovósentadas num balanço num parque comlago, balançando cada vez mais alto,cantando e rindo, no azul do céu.

2

Foi no dia que Danny me levou de voltapara sua casa que a história finalmenteveio à tona. É como se estivesseesperando sua chance, esperando por umlugar seguro para as palavras fugirem deseu esconderijo. Abri a boca e aspalavras saíram como ratos seguindo oFlautista de Hamelin. Logo a sala estavacheia com os sons da praga que eu

libertara. Nos trechos mais difíceis,Danny saía da sala e eu podia ouvi-loquebrando coisas na cozinha. Mas nãome preocupava. Eu sabia que ele nãoestava zangado comigo.

Não contei a ele sobre o bebê quechorava no quarto. Lembrei-me das maisprofundas cicatrizes, as histórias que euescondia, aquelas que não podiaexplicar. Algumas coisas eram muitovergonhosas para mostrar até mesmo aosseus amigos. Meu bebê teve de ficar láatrás, em nosso quarto, oculto pelopapel de parede. Gostaria de saber seHephzi estava cuidando dele, e o medome atingiu mais uma vez, um choquecomo uma ferroada no coração. Eu

esperava que ela estivesse segura.

Por um segundo, vi o rosto de Hephzino dia seguinte à festa de aniversário deCraig. Ele estava marcado com o vergãode uma correia. Ela permitira que elefizesse isso com ela. A coisa. A coisaimunda.

— Não me olhe desse jeito — falou.— Pare com isso, Rebecca!

Eu não disse nada. Levantei, arrumeiminha cama e desci para começar astarefas. Para mim, foi um dia comoqualquer outro, para ela, bem, eradiferente. Ela nunca me disse como, elaqueria manter seu segredo.

Hephzi pensava que eu não sabia de

nada. Ela pensava que eu era umainocente abençoada. Mas acho que porum bom tempo eu provavelmente sabiamais que ela. Enquanto o corpo delacresceu, o meu manteve sua estruturaóssea infantil, e imaginei quanto tempose passaria até que eu pudessedesaparecer.

O Pai não me queria, ele queriaHephzi. Era óbvio. Eu via nos olhosdele após sua ronda pelos quartos epercebia como ele procurava suascurvas, sua perfeição vital. Emborabatesse nela, ele nunca ia longe demais,o nariz dela permanecia intacto, ascostelas a mantinham forte e ereta, emesmo com os dedos flexionados ela

era graciosa e bonita. Mas, quando eleolhava para a linha de suas costas, paraseus belos ombros, para a boca e paraos seios, eu fazia qualquer coisaestúpida para distraí-lo e lembrá-lo deme odiar em vez de machucá-la.

Uma vez ele foi bastante longe. Eunão contei a ninguém como foi aquelanoite de domingo, quando ele estava tãobêbado e com tanta raiva emergindo. Euestava com apenas 13 anos, ainda tinhamuito medo dele, meu coração estavacom hematomas negros e azuis.

Ele fizera Hephzi sentar-se em seucolo e ler para ele. Ela era muito alta esuas pernas pendiam sobre as dele,tocando o chão. Ele gostava do Antigo

Testamento, mas Hephzi não era boa emleitura em voz alta, e as palavras longase antigas a faziam gaguejar e tropeçar.

— La… lamen… desculpe, Papai! —Ela procurou dar um sorrisinho eencontrar perdão no rosto dele antes detentar de novo. — Lamentata…lamenta… — Ela tossiu e olhou paramim. Eu murmurei a palavra lentamentepara ela: La-men-ta-ções, então elabalançou a cabeça, feliz por terconseguido.

Vi a mão dele contrair-se e vi seudedo como a esfaquear uma e outra veza página conforme ela errava aspalavras. Foi cansativo esforçar-secontra a tensão, esperando uma pausa.

Meu corpo implorou para cair contra acadeira, para desinflar e murchar, masminha vigilância era tudo o que manteriaa minha irmã segura. Ele esvaziou ocopo e a mandou buscar mais e, quandoela passou por mim, eu lhe disse com osolhos que não voltasse. Hephzi assentiucom a cabeça e esperei sentir seus pésna escada.

Um instante depois que ela saíra dasala, o Pai caiu repentinamente no sono.Pensei que eu estivesse livre também,era só sair de mansinho e deixá-lo aliem seu estupor. Mas devo ter sidodesajeitada ou feito algum barulho,porque ele sacudiu a cabeça e acordouenquanto a porta traía minhas intenções

com um gemido de Judas.

— Onde ela está? — perguntou, coma voz grossa e os olhos piscando.

— Ela foi para a cama. O senhordormiu. Devo ler agora?

Ele balançou a cabeçadescontroladamente como se tentasseescapar de uma abelha que zumbia emseus ouvidos, ficou de pé e entãoavançou.

Eu devia ter corrido, mas para onde?Eu não poderia fazê-lo ir lá para cima,não para o nosso quarto, não para ondeHephzi estava segura. Talvez eu pudessegritar, mas sabia que ninguém escutaria.As paredes eram grossas, pesadas e

silenciosas.

Ele poderia estar bêbado, mas aindaera forte. Forte como um touro, ele metratava como se eu fosse carne. A portaestava quase fechada quando ele mejogou contra ela e agarrou meu pescoço.A Mãe desaparecera e Hephzi foradormir lá em cima de nossa cabeça,inconsciente.

Fechei os olhos e senti as lágrimasescorrerem, senti o peso dele contraminhas costas, a carne de sua mãoenfiada na minha boca para que eu nãopudesse chorar ou falar ou gritar. Dequalquer forma, eu não teria tentado, eunão deixaria que ele soubesse a dor quesentia enquanto me golpeava e fazia

minha cabeça girar e perder os sentidos.Os hematomas em minhas coxaspermaneceram por semanas e doíamquando eu andava, mas mantive essesegredo escondido em algum lugar atrásda parede.

Quando o bebê de Hephzi chorava lá,o meu também chorava.

Depois disso, senti-me velha. Velha,fria e roubada. Eu não tinha ninguémpara contar e não havia palavras paracontar. Hephzi não descobriria o que euenterrara; ela se escondeu do horror atéque a caçaram.

E agora ele não vai me ferir mais.

Lentamente eu me recuperava. Archiedormia lá embaixo, no sofá, para que eupudesse ficar em seu quarto. Eu nãotinha sentimento de culpa, o sentimentofora drenado de fora de mim quandocontei minha história a Danny; eletomara tudo para si, em seus ombros, eagora, quando eu o via, ele pareciaescuro e sombrio. Implorei para que elenão dissesse nada, que não soltassenenhuma palavra para a polícia ou paraalgum amigo ou qualquer outra pessoa, eele não podia perder minha confiança.Cheryl também tentou convencer-me afalar, mas pedi que me dessem umtempo, e eles, relutantes, concordaram.Danny me trouxe livros, pilhas deles, e

os deixou sobre minha cama, ondeficaram me esperando para lê-los. Eunão tive vontade. Depois de todo aqueletempo ansiando por histórias, eu nãoconseguia começar uma única linha; avisão da pilha me deprimiu e me vireide novo para encarar a parede, fugindodo futuro.

O que eu fazia era me sentar aocomputador de Archie.

Durante toda a noite eu digitava edigitava no teclado. Eu descobri tudoque nunca contaram para nós. Pelamanhã, meus olhos doíam e Cherylsacudia a cabeça enquanto trazia meucafé da manhã.

— O que é que você andou fazendo,querida? Você parece exausta.

— Nada. Não dormi bem, só isso.

— Você tem de dormir um poucoagora. Querida, você precisa dormirpara se recuperar. — Ela me deu umbeijo na testa e depois saiu correndopara o trabalho. Então coloquei abandeja no chão e entrei no desfiladeirode sites, fóruns e blogues, lugares ondeeu poderia fazer todas as perguntas paraas quais nunca tivera respostas. Eudescobria tudo que nunca soubera sobremim mesma. Vovó tentara explicar, maseu nunca compreendera realmente.Havia pessoas como eu em todo omundo. A vida delas não fora marcada;

elas tinham casas, famílias, diplomas eempregos. Sim, as pessoas riram etiraram sarro delas, mas elassobreviveram. Eu chorava de alívio.

Eu descobrira o motivo por que eutivera um bebê e Hephzi também. Claroque eu sabia que a “coisa suja” é quecausava isso, mas não sabia nada donegócio com o óvulo e o espermatozoidee que era simples biologia, nem Deusnem o diabo tinham a ver com isso. Naverdade, era tudo normal, realmentenormal e natural, e não um segredodoente. Fiquei triste por Hephzi e peloque ela perdera. Mas quando ela estevecom Craig deve ter sido diferente paraela, ao menos era o que parecia. Eu

esperava que tivesse sido melhor. Tenteiescutar se ela tinha algo a dizer, mas elanão disse nada.

— Hephzi, você está aí?

Ela não respondeu, então olhei aomeu redor, procurando-a pelo quarto,esperando que estivesse escondida emalgum lugar. Eu queria conversar.

— Por favor, Hephz, preciso de você.Por favor, apareça.

Geralmente, ela aparecia quando eu achamava. Mas, agora, nada.

Se não estava ali, onde ela estaria?

Depois que os hematomas sedesvaneceram, Archie vinha todos os

dias para sentar-se na extremidade dacama e conversar.

— Tudo bem? — indagou, olhandopara mim, esperançoso, ainda maissardento do que eu me lembrava. Nemmesmo isso me fez sorrir. Desviei osolhos e me enfiei debaixo das cobertas,mas ele continuou se aproximando.Imaginei que Danny o fizera vir, comonuma espécie de serviço comunitário, outalvez ele pensasse que poderíamosficar nos lamentando juntos. Eu disse amim mesma para não ser amarga.

Após uma semana de silêncio, Archiepegou um dos livros, o que estava notopo da pilha, e começou a ler. Ouvi-logaguejar e tropeçar nas palavras foi

muito doloroso, então me sentei, apesarde minha pouca vontade, e peguei olivro de suas mãos.

— Dê-me, vou fazer isso. —Ignorando seu rosto corado, li em vozalta até minha boca secar e minhasbochechas doerem, e ele ficou sentado,ouvindo com a cabeça apoiada nospunhos, rindo ou fazendo caretas,totalmente entretido com a história. Erauma boa história, Frankenstein; eununca lera antes, eu não chegara ao S, deShelley, e, enquanto lia, perguntava-mese Archie percebia a ironia.

— O que você quer dizer?

— Ah, nada. Esqueça. — No entanto

eu sentia pena da Criatura do livro.

Eles a chamavam de monstro também.Archie concordou que era triste elenunca ter encontrado alguém que oamasse, então fingi estar cansada.

Um dia, Archie me disse que aindaestávamos em agosto. Puxou as cortinase abriu as janelas, deixando-asescancaradas. Cheryl também fazia issotodas as manhãs, mas, assim que ela saíado quarto, eu fechava tudo, tapando aluz, mas naquele dia deixei tudo comoArchie fizera. Por um momento, o sol mefez sentir bem.

— Você podia descer. O papai estáfazendo um churrasco. Vamos.

Seus olhos pareciam tão brilhantes eesperançosos, esperança em mim eesperança de que seria o único a meatrair para fora do quarto escuro, para odia de sol lá embaixo, por isso eu nãopude recusar.

— Você pode me dar um minuto?

Cheryl comprara roupas para mim eas deixara em sacolas no chão. Ingrata,eu nunca nem esvaziara as sacolas. Sóagora eu colocava a mão numa delas etirava as roupas. Roupas novas. Algoque eu não via fazia mais de cinco anos,desde o nosso 12o aniversário, comVovó, em nossa expedição de compras.Havia um vestido de um tecido enrugadocom estampa de pequenas flores. Tinha

tiras finas e pregas suaves um poucoacima de meus joelhos. Eu o segureicontra o pijama que estava vestindohavia semanas. Não tinha certeza sedevia, mas arranquei as etiquetas e vestias roupas de baixo e o vestido novos.Meus braços estavam nus, minhas pernastambém. Isso nunca teria sido permitidoantes, e eu me senti um pouco nua.Mexendo nas sacolas, encontrei umcasaco curto, era cor-de-rosa e demangas curtas. O espelho estava na sala.Eu teria de sair para ver. Se Hephziestivesse aqui, ela diria como eu estava,seria honesta. Eu ainda precisava dela,mas ela não viria agora. Ela estavadesaparecida desde o dia que escapei, enão importava quanto tentasse chamá-la

de volta, nunca havia uma resposta.

Archie bateu à porta, fazendo-mesaltar.

— Você está pronta?

— Ah, sim. Estou indo.

Ele me acompanhou até lá embaixo,segurando meu braço como se eu fosseuma inválida, percebi que talvez fossedesse jeito que ele me via, e, depois, meapresentou orgulhosamente para orestante da família, como se tivesseacabado de fazer uma feliz descoberta.Eu preferiria que fosse assim tão fácil,que um anjo tivesse movido uma pedra eeu tivesse, de fato, renascido e merefeito. Eu queria ser uma versão melhor

de mim, uma com todas as feridascicatrizadas. Mas isso não acontece navida real. Na vida real não háressurreição, ainda que você a desejetodas as noites.

Eu vi como todos exclamavam emvolta de mim, todos, exceto Ben, que selevantou e me cobriu com um abraçoenorme.

— Estou feliz que você não estejamorta agora! — comentou, e percebi queeu estava feliz também. Por ummomento, ninguém riu, e em seguida mepeguei rindo de mim mesma.

— Eu também, Ben. Obrigada. — Ogelo fora quebrado, então Danny me

ofereceu um cachorro-quente e Cherylum copo de Coca-Cola; o gelo tilintavaenquanto eu levantava meu copo parabrindar com Ben, várias vezes até queCheryl lhe disse para parar. Sentada emminha cadeira, ouvia a família em tornode mim, todos brilhando ao sol.

Fiquei lá por meia hora naquele dia, efoi o suficiente. Ao longo dos próximosdias e semanas, o tempo que passavafora de meu quarto foi aumentandogradualmente, e nos habituamos uns aosoutros. Eles nunca me faziam sentirincômodo, e eu ajudava Cheryl nacozinha e na limpeza quando eladeixava.

Uma tarde, Cheryl me levou com ela a

um supermercado para fazer umacompra bem grande.

— Você me ajuda a escolher, querida— disse ela. — Pegue os seus favoritos.

Eu não tinha favoritos, gostava do queela fazia e disse isso a ela. Mas, aindaassim, ela me incentivou a escolher oque eu queria e tentou bater papo efofocar, enquanto caminhávamos peloscorredores. Ela pensou que, se memantivesse ocupada, eu não notaria aspessoas me olhando. A loja era enorme,como a barriga de uma grande baleia, eeu tinha certeza de que nunca maisiríamos sair de lá. As fileiras e maisfileiras de comida e roupas e xampus etelevisores e eletrodomésticos e bebida

me deixaram tonta. Nós sócomprávamos na loja local; aquela era aprimeira vez que eu ia a uma loja desdenosso 12o aniversário.

Finalmente conseguindo pensar emalguma coisa para pedir, disse a Cherylque eu gostaria de sorvete para asobremesa, e ela saiu em disparada paraencontrar. Fiquei para trás, olhando emvolta. Uma voz rompeu o meu devaneio.

— Rebecca?!

Reconheci a voz imediatamente. Enão quis que ela parasse e falassecomigo.

— Rebecca, querida?

Ela pôs a mão no meu braço, entãoparei e esperei.

— Como você está? Seus pais medisseram que você saiu de casa. Então,onde você está vivendo agora? — Suavoz era pesada, preocupada, quaseabafada por sua tensão.

— Estou bem, Sra. Sparks, obrigada.Como a senhora está?

— Eu estou bem. Obrigada porperguntar.

— Bem, melhor eu ir agora.

— Ah, é claro, querida, mas, vocêsabe, você deveria ir e tentar fazer aspazes com seus pais. Espero que você

não se chateie comigo por dizer isso,mas, você sabe, eles estão arrasados.Estamos todos rezando por você.

Eu quase gritei, mas logo me lembreide onde estava. Você ouviu isso,Hephzi? Eu a chamei, mas ela não deunenhuma resposta. Em seguida, Cherylpassou zunindo, acenando com a listapara mim, dizendo que deveríamos nosapressar. A Sra. Sparks a olhoudesconfiada.

As duas esperavam para seremapresentadas.

— Cheryl, esta é a Sra. Sparks. Elavive no meu bairro. Ela auxilia naigreja.

— Sacristã, na verdade, eu conheçoas meninas, quero dizer Rebecca, desdepequena.

— Ah, é, você as conhecia? — A vozde Cheryl se tornara áspera. Entãoagarrei a alça do carrinho e comecei apuxá-lo em direção às caixasregistradoras.

— Eu conheço você, tenho certeza —a Sra. Sparks falou, logo atrás de nós.— Você não é a esposa do rapaz quetrabalha na Casa de Repouso?

— Não responda a ela, Cheryl, ela éuma intrometida, ela vai contar tudo aeles.

— Eu quero dar uma boa resposta —

murmurou Cheryl. Ela colocava ascompras nas finas sacolas plásticas eapressadamente digitou a senha docartão e corri atrás dela de volta para ocarro. No caminho para casa, elaquebrou o silêncio.

— O que eu não entendo é como todasessas pessoas se mantiveram afastadasesse tempo todo vendo vocês serem tãomaltratadas. Não consigo entender. Nãoconsigo.

Ela queria que eu explicasse. Eubrincava com meu cinto de segurança.

— Quero dizer, isso não está certo,você não pode deixar esse tipo de coisacontinuar acontecendo debaixo do seu

nariz e não fazer nada. É um absurdo,isso sim.

Pensei no que ela estava dizendo.

— A Sra. Sparks tentava nos ajudar.Mais ou menos. Ela nos dava algumascoisas, como comida, roupas. Ela tentouajudar.

— Que nada! Ela não fez o suficiente.Você merecia mais do que isso.

Cheryl ainda não entendera quãoesperto o Pai era e como ele era bom emusar sua máscara, quão bem ele mantevea Sra. Sparks envolta em sua falsidade esua bajulação.

— E quanto a sua tia e seu tio, bem,

eles são ainda piores. Sua própria carnee sangue deixando você com pessoascom as quais eu não deixaria nem aminha gata, imagine duas criançasindefesas!

Cheryl esperava havia muito tempopara externar isso. Deixei-a falarenquanto voltávamos para casa. Nada doque ela disse foi surpresa para mim,pois eu tivera anos e anos para pensar asmesmas coisas.

— Tia Melissa se mudou para aEscócia. Ela realmente não podia nosvisitar.

— Não é um bom motivo.

— As pessoas não se preocupam, eles

querem uma vida sossegada.

— Bem, eles deveriam ter vergonhade si mesmos.

Talvez sim. A raiva exigira muitaenergia de mim, e eu precisava de todasas forças que me restavam para enfrentaro resto da minha vida.

Vivendo com Danny e sua família, euestava mais feliz do que jamais fora.Contudo, eu sabia que não poderiadormir no quarto de Archie para sempre,não era justo. Sentei-me na cama e tenteipensar numa alternativa para a situação,mas eu não tinha ideias brilhantes. Eurealmente poderia ter pensado emalguma coisa se tivesse minha irmã por

perto, ela sabia mais sobre ser normaldo que eu. Sua proposta teria sidoarranjar um namorado, entretanto, paramim não era uma opção. Eu encontrarauma família, mas eles não eramrealmente minha família e não haviaespaço suficiente para mim. Mesmo queeu ajudasse, passando o aspirador efazendo o jantar, sabia que não era umagrande contribuição e que eu nãodeveria me demorar mais tempo lá. Erahora de ir novamente.

Então, no fim do mês, recebi umtelefonema. Eu estava brincando comBen e nem pensava em nada disso atéCheryl me chamar e dizer que era paramim. Eu não gostei da expressão no

rosto dela quando peguei o fone de suamão e rumei para a cozinha,resmungando baixinho. Segurando otelefone como quem manejava umaarma, sussurrei um alô. A princípio, nãoreconheci a voz no outro lado da linha.

— Alô? — consegui falar novamente.

— Rebecca. É sua Tia Melissa.

Houve uma longa pausa enquanto euprocessava as informações. Eu podiaouvir sua respiração, muito rápida.

— Você ainda está aí?

Balancei a cabeça afirmativamente,mas é claro que ela não podia ouvirisso. Minha boca estava muito seca para

falar.

— Bem, Rebecca, se você estiverouvindo, quero que você saiba que eufiquei sabendo o que aconteceu comvocê, que você saiu de casa e, se quiser,bem, você é bem-vinda a qualquer hora.

Ela esperou por uma resposta minha.Parte de mim queria falar para ela queera tarde demais para ajudar, poisHephzi já estava morta e eu conseguiraescapar sem a ajuda de ninguém.

— Eu sinto muito por tudo isso. Eudeveria ter feito algo antes. — Sua voztornou-se agitada. — Ela nunca devia terse casado com ele, eu disse a elanaquela ocasião, mas ela estava

desesperada, você sabe.

— O que você quer dizer? —interrompi-a.

— Sua mãe. Bem, agora é passado,mas tenho certeza de que é tudo culpadele, de Roderick.

— Não. Nem tudo.

— Sim, bem… Enfim, se você meavisar, vou para aí a qualquer hora. Sónos avise. É apenas uma viagem. — Elariu nervosamente.

— Como você conseguiu estenúmero?

— A senhora Sparks. Aquela mulherda igreja, sabe? Ela me telefonou e me

contou o que aconteceu e onde vocêestava. Eu deixei meu número com elaquando nós estivemos por aí para o…você sabe… o funeral de sua irmã.

Pensei sobre isso e perguntei o quefora dito. Se a Sra. Sparks dissera a elaonde eu estava, então talvez tivessefalado para os Pais também, talvez elespudessem vir me procurar na calada danoite, me colocar num saco e me levarembora.

— Eu não quero ver você.

— Tudo bem, é justo. Mas gostaria deuma chance de falar com você, paraexplicar algumas coisas.

— OK — sussurrei finalmente. —

Ligo uma hora dessas.

Hesitante, ela passou seu número detelefone e eu o rabisquei num papel queenfiei no bolso. Refleti sobre a ligaçãodurante todo o dia e sobre o que eladissera dos Pais, decifrando suas pistasenigmáticas, preenchendo as palavras,completando o quebra-cabeça. Mas eunão podia chegar lá sozinha, ainda haviamuitas lacunas a serem preenchidas.

Eu sabia que tinha de deixar a casa deDanny e Cheryl, eu não eraresponsabilidade deles, e a casa nãofora feita para tantas pessoas, o queestava começando a ficar notório peloolhar de Cheryl, o qual Danny parecianão notar. Mas eu não sabia como sair

ou para onde ir. Viver com Tia Melissaestava fora de cogitação. Ela nos deixoupara apodrecer, além disso os Paispodiam aparecer. Eu não podia contarcom Tia Melissa e Tio Simon para meapoiar e me manter a salvo deles. Volteipara o quarto de Archie e fiquei lá oresto do dia. No meio da noite, arrumeiminhas coisas. Só depois disso dormi.

3

De manhã, quando a família desceu parao café da manhã, eu já estava prontapara partir, embora ainda não tivesseideia de para onde iria. Cheryl olhoupara mim enquanto descia a escada,ainda com os olhos sonolentos e vestidanum roupão.

— Está tudo bem, querida? O quevocê está fazendo acordada e vestida a

essa hora da manhã?

Eu me senti horrível ao anunciar:

— Estou indo embora hoje, Cheryl.Apenas estava esperando para… Querodizer, queria dizer adeus e obrigada.

— Você o quê? Você não podesimplesmente ir embora assim. Não sejatão tola, venha e tome seu café damanhã.

— Não, é sério, é hora de ir. Vocêtem sido muito amável. — Cada palavrame machucava, minha garganta doía como esforço que fazia para não chorar. Euqueria que ela não fosse tão legal, assimtudo seria mais fácil. Ben e Archie e asoutras crianças estavam descendo, e eu

queria sair de lá antes que tivesse deenfrentá-los também.

— Obrigada novamente, Cheryl. Euvou manter contato, OK?

Puxei a porta para abri-la e corri emdireção ao sol da manhã. Apertando osolhos como quem encara o brilho de umrefletor, corri pelo caminho, segurando amochila com minhas coisas. Eu nãopegara tudo o que Cheryl comprara paramim, apenas o necessário.

Era estúpido de minha parte irembora sem ter um bom plano, mas osentimento de que eu era um fardo navida daquelas pessoas amáveis setornara pior que a perspectiva de

encontrar um novo lugar para ficar. Eusó sabia que precisava encontrar minhairmã e caminhei rapidamente pelacalçada para fora da casa deles, emdireção à estrada principal. A partirdali, poderia pegar um ônibus de voltapara o meu bairro. Eu me perguntei seHephzi se mantivera longe simplesmenteporque não conseguira me encontrar.Estava assombrada pelo pensamento deque ela, de alguma forma, fora deixadapara trás e estava presa em nosso quartona casa paroquial, arranhando a janelapara ser solta. Se eu quisesse vê-la,então teria de ir atrás dela. Aquela era aúnica direção que eu conhecia, ecomecei a caminhada com o sol batendoem meus ombros e em minha cabeça;

ficaria mais quente mais tarde. Oscampos à minha volta, dos dois lados,estavam repletos de plantações de colza,e meus olhos começaram a coçar e onariz a escorrer; o pólen era umtormento que fazia coçar o fundo deminha garganta. Os campos amarelo-claros refletiam o brilho crescente dodia, o qual eu observava enquantocaminhava com os olhos fixos no chão àminha frente. Por um momento,perguntei-me o que aconteceria se o Paipassasse, me visse e parasse. Elepoderia facilmente me colocar na partetraseira de seu carro e me levar de voltaa seu covil. O pensamento tomou contade mim por um tempo, e quase me virei

e corri de volta para a segurança da casade Danny. Isso era uma loucura. Masalgo me forçava a seguir em frente, e eusabia que era Hephzi. Eu tinha de voltarpara ela.

O sol começou a me queimar, mascontinuei até que finalmente avistei aplaca de boas-vindas aos visitantes denosso bairro. Sedenta, lambi os lábiossecos, tentando não pensar em água.Então, ocorreu-me uma ideia, que veioágil e de uma vez só, como uma chuvarepentina. Apertei o passo e me movicada vez mais rápido. A casa de Craigera mais próxima de onde eu estava quea casa paroquial, ficava à direita, no fimda rua. Fazia sentido passar por lá; se

Hephzi não estava na casa paroquial,então era lá que com certeza ela estaria.

As ruas estavam silenciosas, algumasmães passaram por mim com seuscarrinhos em direção ao parque parajogarem migalhas aos patos eempurrarem suas crianças nos balanços.Uma garotinha de patinete, com suastranças voando, zuniu por mim enquantosua mãe corria atrás dela. Olheiadolescentes darem voltas no parque emsuas bicicletas e um pequeno grupo decrianças, aproveitando os últimos diaspreguiçosos do verão, caminhando emdireção à piscina pública, suas toalhasdebaixo do braço e garrafas de Coca-Cola balançando entre seus dedos.

Hephzi e eu nunca tivemos permissãopara ir, é claro. Continuei a avançar.Ninguém me notou.

Foi fácil encontrar a casa de Craig,Hephzi me levara lá diversas vezes nosúltimos meses. Eu lhe pedira para queparasse de me fazer agir como umaperseguidora, mas ela não se importou eme disse para não ser tão egoísta. Eucedia, como sempre. Agora eu estava naporta da frente não fazendo nada,esperando que ela aparecesse e medesse algumas instruções, como umadiretora de cinema extraindo o melhordesempenho de uma estrela difícil.Entristeci-me. Nada além do esvanecidoperfume das rosas do vaso junto à porta

pairava no ar. Sem Hephzi. Era inútil.Virei-me e voltei pelo pequeno caminhode concreto cercado de grama verde. Amotocicleta do Craig estava na rua emfrente à casa, e eu parei novamente. Eraestúpido vir até aqui e nem verificar seeles estavam lá dentro, ela poderia estarse escondendo, brava comigo por deixá-la, isso seria o tipo de coisa que elafaria.

Antes que eu mudasse de ideia, virei-me mais uma vez e fui até a porta,apertei a campainha com força eesperei, ouvindo o som da minharespiração. Ninguém atendeu. Elespoderiam estar nos fundos. Eu nãoqueria abrir o portão e dar a volta na

casa como eu fizera por toda a minhavida, nem queria tocar a campainhanovamente, mas o fiz, segurando o botãopor mais tempo dessa vez, até ouvir obarulho ressoar por toda a casa. Noandar de cima, em algum lugar, houvemovimento; eu senti e ouvi uma portabater e o peso dos passos na escada, eeis que Craig surge à porta, de cuecasamba-canção, recém-desperto,espiando pela fresta entre a porta e aparede, não me reconhecendo, aindaparcialmente cego pelo véu do sono.

— Oi?

Eu tossi, minha garganta ainda coçavapor causa do pólen, e esfreguei o dorsode minha mão contra o nariz. Esperei

que ele me notasse. Com a mão elepuxou para trás o cabelo que lhe caíanos olhos, eu nunca o vira sem seu bonéridículo, e ele tinha um cabelo bonito,supus, para ele. Ele abriu um poucomais os olhos e se deu conta de que eraeu.

— O que você quer? — Sua vozestava repentinamente brava e alta. Deium passo para trás, surpresa com seutom. Tive de reunir toda a minhacoragem para falar.

— Posso entrar?

— Por quê?

Essa era uma pergunta complicada.Eu teria de mentir.

— Quero conversar com você.

Esperei enquanto ele pensava arespeito. Eu podia ouvir o tráfego deruas distantes, o zunido das abelhasentre as flores, um bebê chorando emalgum lugar da rua. Eu esperei sem olharpara ele, fitando apenas o batente deplástico branco da porta e o degrau deconcreto. Finalmente, ele abriu a porta,e eu o segui até a sala. Ele não pareciaimportar-se por estar apenas de cueca,ele apenas permaneceu ali como se tudofosse normal. Fixei meus olhos na janelaatrás dele e tentei sentir se Hephziestava se escondendo em algum lugar.

— Sim? E o que é então? Pensei queeles tinham se livrado de você, isso é o

que eles andam falando.

— Quem?

Ele não me deu uma resposta e eutentei imaginar a máquina de fofocas dobairro funcionando, a Sra. Sparkspuxando uma alavanca, ligando o motore então enviando lotes de informações,verdadeiras ou falsas (quem seimporta?), através de caixas de correiose janelas, por cima de cercas de jardim,nos correios e na loja da esquina. Elesteriam se divertido com a história dafilha louca do pastor. Caminhandoenlouquecida pelas ruas do bairrovestida apenas com sua camisola,fazendo barulho e sendo levada para umhospício para seu próprio bem. Ou

talvez o Pai teria ressaltado em sua maisrecente pregação os perigos do diabo ea sua própria filha marcada com o sinal,que seria finalmente e abençoadamenteencarcerada. Agora sua congregaçãopoderia dormir tranquila sabendo que abesta estava engaiolada. Ouço suaspalavras sendo cuspidas de suamandíbula de arame farpado, sinto olaço com o qual ele me segurou e metorceu por toda a minha vida, como seele estivesse logo atrás de mim,rosnando em meu ouvido. Craig quebrouseu feitiço.

— O que você quer então? Vai ficaraí parada o dia todo?

— Água, eu queria um pouco de água.

Ele me olhou como se eu tivesseacabado de pedir as joias da coroa ou 1milhão de libras e, enquanto eledesaparecia em direção à cozinha, eumandava mensagens para Hephzi.Gritava pedindo que ela saísse de ondequer que estivesse se escondendo. Nada.Ele me entregou a água e a bebi de umasó vez sob seu olhar.

— Você está com fome?

Assenti. Eu saíra sem tomar o café damanhã.

Dessa vez, eu o segui até a cozinha eo observei enquanto procurava porcereais, tigelas e leite. Sentamos à mesajuntos e comemos. Ele mastigava e

tomava o leite ruidosamente,aproveitando sua comida, servindo-sede mais como se eu não estivesse ali.

Ao terminar, ele se lembrou de mim eme encarou enquanto eu raspava osúltimos cereais do fundo da tigela.

— Você não se parece nem um poucocom ela, sabia?

Eu ri. Ele realmente pensou que nuncativesse me dado conta? Ele corou etentou se defender.

— Vocês são gêmeas e tudo mais.Vocês deveriam se parecer um pouco.

— Não necessariamente. Não somosidênticas. — Minha voz soava irônica, e

ele sorriu e jogou um pouco de seufamoso charme. Endureci, determinada anão fraquejar. Se não fosse por dele,Hephzi não estaria morta. Antes que eupudesse me censurar, minha bocadisparou esses pensamentos, palavrasque eu nunca pensaria em pronunciar e,imediatamente, ele estava vermelho,queimando como fogo, e uma tempestadede faíscas veio estourando em minhadireção.

— Por que você está dizendo isso?Isso são mentiras, besteiras! Eu não fiznada, nada. Eu a amava. Eu a amo.

Igualmente brava, respondi:

— Você a engravidou, seu porco

estúpido. Você colocou o seu bebêdentro dela, e ela não se deu conta! Elanão era como as outras meninas, ela erainocente, e você se aproveitou disso.Você a destruiu.

— Não. Isso é mentira, papo furado.Cale a boca!

Nós dois estávamos de pé, e ele mesegurou pelos ombros e começou a mebalançar, sua ira pulsava em ondas depânico. Ele não era tão forte quanto oPai, seus dedos não mordiam minhacarne plantando sementes de morte, e eunão estava com medo. Eu o empurreipara trás, e ele me soltou.

— Por favor, diga que está mentindo.

Diga que não é verdade.

— É verdade. A princípio, não vimaqui para lhe dizer isso e sinto muito porfazê-lo. Estou indo agora. — Eu nãoqueria vê-lo chorar, eu não precisavaver sua dor se derramando no chão dacozinha e ser obrigada a limpá-la. Eunão aguentava mais isso.

Ele me segurou. Estava desesperadopara manter-me ali e descobrir o queachava que eu sabia.

— Conte tudo. Por favor, eu querosaber como ela morreu. Você tem de mecontar, ela me amava.

Dei de ombros.

— Aposto que você já tem outranamorada. Você não a amava, vocêapenas a usou. Você deveria ter pensadomelhor.

Ele balançou a cabeça vigorosamente.

— Você não entendeu, não nosentendeu. Ela deve ter lhe dito, ela deveter falado.

— Se a sua mãe estúpida não tivesseido à igreja e não tivesse interferidodaquele jeito, talvez Hephzi estivessebem. Ela teria sobrevivido e teria tidoseu filho. Suponho que a essa altura elejá teria nascido.

Ele estremeceu, e eu pude ver que eletemia o que eu estava dizendo. Eu

descobrira tudo sobre bebês nocomputador no quarto de Archie, todosos fatos, detalhes e informações, e eudisparava tudo como balas na direçãode Craig. Era a minha vez de machucar,e eu o bombardeava, meu alvo exposto,paralisado pela força de meu disparo.

— Por que ela não me contou?

— Ela não sabia! Eu lhe disse, elanão era como as outras.

— Eu teria tomado conta dela e dobebê. Eu teria feito qualquer coisa.

— Tarde demais. Você estragou tudo.Você devia ter ficado longe da minhairmã. Ela era muito boa para você.

— Eu sei. Eu sei. Sinto muito.

Choramingando como uma criança,ele desabou no chão, suas costas contraos armários da cozinha, esparramando-se na poça de sua própria miséria. Era oque ele merecia. Suspirei e com essesopro afastei meio ano de dor. Eu viaquilo me deixar, pairar no ar,partículas de escuridão escapando demeu corpo. Mais solta e leve me virei,pronta para partir.

— Você não deveria ser tão cretina.Sua irmã nunca me disse que você erauma cretina.

Eu parei. Hephzi falara de mim paraele. Isso significava que ele tinha coisas

que eu queria, palavras que por direitoeram minhas. Direcionei meu olhar aele, as lágrimas ainda escorrendo porsuas bochechas. Suponho que a tristezadele deveria ter me comovido.

— Ela era a minha irmã. Ela meamava.

— Ela me amava também.

Ele estava certo. Ela o amava, masapenas porque não o conhecia melhor eporque não tivera escolha.

— Você deveria tê-la ajudado, assimvocê a teria merecido. Mas você não fezisso, fez? Você destruiu as chances dela.Ela achava que podia confiar em você,Craig, mas você não se manteve à altura,

você agiu feito uma criancinha.

Finalmente de pé, ele me olhou nosolhos. Eu lhe revelei todo meu rosto, euestava cansada de me esconder. Eleparou de se lamuriar e assentiu.

— Está certo, então. Se você estivercerta, deixe-me ajudá-la.

— O quê?

— Você diz que tudo é culpa minha eque eu deveria ter feito algo, salvado aHephzi, mudado o curso dessa história.Eu não sei se teria conseguido fazerisso, se tivesse algo a mais… — Osolhos dele se perderam por ummomento. — E agora que ela se foi, eudarei o meu melhor ao próximo. Eu vou

ajudar você.

— Não, você não vai.

— Mas você precisa de ajuda, nãoprecisa?

Como ele sabia? Eu não aguentavamais ser tão transparente.

— Eu estou bem.

— Não, você não está. Senão vocênão estaria aqui. Você me odeia, deviaestar desesperada para ter vindo atéaqui.

Hephzi sempre me dissera que ele eraesperto, e agora eu entendia. Ele não eraapenas o idiota de boné emalcomportado com um cigarro na boca.

Incomodada, franzi o cenho e quis partir,mas ainda precisava saber o que elafalara de mim.

— O que mais ela lhe contou?

— Não muito. Ela era reservada. Euperguntava, mas raramente conseguiaalguma resposta. Eu queria que ela meapresentasse a você; a você e a suafamília. Ela disse que não havia chancede isso acontecer.

É claro que ela disse isso.

— Mas ela disse mais alguma coisa?

— Sim, de vez em quando ela deixavaescapar algumas coisas. Ela me disseque você a encobria.

Eu assenti, e meu rosto ficou aindamais severo. Ele meneou a cabeça emresposta.

— Obrigado.

— Eu não deveria. Eu não deveria tê-la deixado fazer isso tudo.

— Como você a teria impedido?

Ele estava certo novamente.

— Bem, você pode me contar tudo.Eu reconheço que deduzi muita coisa,mas ainda existem algumas lacunas. Euquero saber exatamente o que aconteceu.

Impossível. Craig não conheceriatoda nossa história, já era ruim obastante contar para Danny e Cheryl,

ruim o bastante eles me atormentarempara procurar a polícia e a assistênciasocial. Eu estava convencida de queessa história seria enterrada comigo, eua guardaria, pois quase matara Danny.Como não falei mais nada, ele perguntounovamente.

— Por que você não quer me contar?Por que vocês duas são tão reservadas?Agora que você está aqui de frente paramim posso dizer que vocês duas sãogêmeas, vocês têm o mesmo olhar, omesmo jeito de mexer a cabeça quandoalguém faz uma pergunta delicada. —Espirrei, e ele riu amargamente: — Atéo espirro é igual.

Eu queria que ele se calasse. A

maneira como ele falava me davavontade de puxar uma cadeira, sentar efazê-lo contar histórias sobre minhairmã. Eu queria que ele me contassesobre a vida que ela teve com ele, omundo secreto que ela trancava a setechaves, um jardim encantado de bonsmomentos, risadas e esperanças. Nósdois sabíamos que tínhamos exatamenteo que o outro queria, mas eu não sabiase ousaria realizar essa troca. Encarei-onovamente.

— Se eu contar o que você quersaber, então você vai ter de responder aminhas perguntas, todas elas. OK?

Ele parou e pensou por um momento,estudando-me atentamente. Eu não

entendi por que ele não hesitou e seafastou, por que ele não parecia seincomodar com minha aparência. Issoera algo que eu poderia lhe perguntar.Ele finalmente falou.

— OK. Fechado. Você conta tudo, eeu faço o mesmo.

— Certo, mas tem mais uma coisa.

— Ah, é? O quê?

— Nada do que você ouvir sairádesta sala. Você tem de me prometer quenão fará nada com as informações queeu revelar a você e manterá tudo emsegredo.

— Não. — Ele balançou a cabeça

rapidamente. — Não mesmo. Estoucansado dos segredos e de me esgueirarpor aí. Não quero mais saber disso. Euvirei essa página.

— O que você quer dizer com isso?

— Vou começar a escola emsetembro, aquela na cidade. Vou passarno resto dos exames em mais um ano erecuperar tudo que perdi. Então voupara a faculdade. Vou trabalhar para mesustentar e vou conseguir. A vida émuito curta para a gente não se esforçarao máximo. Hephzi sabia disso.

— Ela podia saber, mas não podefazer mais nada disso — soltei.

— Não, mas foi isso que ela me

ensinou, a me lançar, a esperar pelomelhor e lutar pelo que eu quero. Esse éo meu plano e vou seguir com ele.

— Que bom para você. — Não seipor que eu soava tão ressentida. Talvezeu quisesse que ele fosse o Craig maupara sempre, talvez eu estivesse bravapor ter sido necessário minha irmãmorrer para ele finalmente crescer.

— Sim, sei que agora é tarde,Rebecca, mas eu tenho de tentar, senãoficarei louco. Após a morte dela eupensei que estava… sabe… ficandolouco. Foi difícil. Mas a minha mãe meajudou a superar, e eu devo muito a elapor isso também. Desde que meu paipartiu, ela sempre esteve ao meu lado,

cuidando de mim, confiando em mim. Eulhe devo muito mesmo.

— Sua mãe gostava da Hephzi?

— É claro que gostava! Quem nãogostava? Hephzi era… gloriosa, eragloriosamente adorável, engraçada eesperta.

Suas palavras me tocaram. Eu nãoesperava que ele fosse usar palavrascomo essas ou que ele entendesse aessência de minha irmã tão bem.

Ele continuou, estava empolgado:

— Ela pensava que Hephzi eraperfeita para mim, achava que elapoderia me endireitar. Talvez tenha feito

isso no fim das contas. Mas acho que eufui uma má influência por um tempo.Arrependo-me agora, não devíamos termatado aula como fizemos, eu não deviater feito isso.

— Não, você não devia ter feito isso.Por que você simplesmente não foi umnamorado normal?

— Como eles são?

— Como eu saberia? — Dei deombros e ele abriu um meio sorriso.

— Você está certa, eu deveria terfeito mais, ela merecia o melhor.

— Conte-me o que vocês dois fizeramjuntos.

— OK. — Ele caminhou até a portado fundo e entrou no pequeno jardimquadrado. Eu o segui, e ele se jogousobre um pedaço de grama sombreado.Então, ele começou a falar e não parou.Por toda a tarde ficamos sentados, e elefalou sobre minha irmã, e eu bebia desuas palavras, pegava o mel que pingavade seus lábios e o levava à minha boca,saboreando o doce calor que acalmoumeu coração, que queimava. Ele melevou com eles para o passeio de motoatravés dos campos, aos vilarejos àbeira-mar e às cidades iluminadas. Eleme fez ver o mundo por cima de seuombro, como Hephzi vira quandosegurava a cintura de Craig enquanto ele

acelerava sua moto. Os olhos delareluziam com as estrelas de seu futuro.Quando ele me levou por todos osmomentos, mostrou-me todos ossegredos dela, segurou a mágoa deHephzi para deixar-me ver, deu-me aalegria dela e seu sorriso, sentei-meexposta ao sol da tarde em seu jardim,onde eles se beijaram pela primeira vez.Senti a grama sob meus dedos eesperava que ela o estivesse ouvindotambém, que ela pudesse ver o quequisesse.

— Obrigada — murmurei, arrancandoas pétalas de uma margarida. —Desculpe por ter sido tão dura.Desculpe por não ter ajudado mais. Ela

nunca me disse tudo isso. Você era osegredo dela. Você era sagrado,precioso. Ela realmente o amava.

— Espero que sim. Cara, estoudespedaçado. Foi um dia e tanto. Vocêquer uma bebida?

Ele correu para dentro e voltou comduas garrafas de cerveja gelada. Prendio líquido em minha boca aproveitandocada bolha e saboreando seu frescor.Ele ergueu uma sobrancelha.

— Hephzi não bebia, ela passavamal.

— Ah! — Coloquei a garrafa nagrama, ao meu lado, e estremeci umpouco à medida que o sol desaparecia

atrás das grandes árvores no horizonte.Quais seriam as outras coisas que eununca saberia sobre minha irmã? Craigme dera tudo que tinha, mas semprehaveria muita coisa a ser dita. Isso medeixava triste. Craig tocou meu braço eme ajudou a levantar, conduzindo-mepara dentro pela mão. Ele era gentil,gentil e bom, e eu estivera errada.

Ele saiu e comprou peixe com fritas.Comemos vorazmente em silêncio, e eleraspou nossos pratos, terminando o queeu não conseguira comer. A intimidadedesse gesto me fez corar, e disse a mimmesma para não ser tonta, não me deixarenganar. Ele nunca gostaria de mimcomo gostara dela, eu nunca tomaria o

lugar dela, e eu não queria, não seriacerto. Entretanto, sentar com ele e comerjuntos, à vontade um com o outro, medeixou-me feliz demais para perceberisso. Talvez fosse apenas a ideia de queencontrara um amigo, mais um.

— Quando sua mãe volta? —perguntei.

— Ela não volta, está num curso.

— Ah…

— Você pode passar a noite aqui sequiser. — Ele olhou o meu rosto e seapressou em esclarecer: — No quartode hóspedes. Está tudo certo, você podeconfiar em mim.

Eu ri da ideia absurda de que alguémcomo ele pudesse algum dia querer ficarcom alguém como eu.

— Do que você está rindo? — Eleparecia irritado.

— De você se justificando demais.Acho difícil você querer me estuprar,não? Suponho que eu não seja o seu tipo.

— Isso não é engraçado, sabe. Vocênão devia fazer esse tipo de piada.

O sorriso desbotou de meu rosto.

— Você está certo. É doentio. — Fizuma pausa e me deixei dizer: — Eu souestranha, todos sabemos disso, mas nãome culpe, ter ficado presa a maior parte

de minha vida me deixou assim.

Ele me observava e sentimos o pesodessas palavras entre nós. Agora elaspairavam sobre nós.

Craig hesitou, inseguro antes deperguntar:

— O que você quer dizer com presa?

Respirei profundamente. Eu teria deexplicar tudo de novo. Tinha desatisfazer a curiosidade dele a partir dozero. Era por isso que eu fora até lá, nãoera? Para encontrar Craig e encontrar airmã que eu perdera para ele, e agora eutinha de fazer essa troca. Entregar meussegredos a ele.

— Não é óbvio? Hephzi e eu nãotivemos vida até setembro do anopassado, quando entramos na escola.Como nós conseguimos ir à escola éuma coisa que ainda me deixa intrigada.Vamos apenas dizer que os Pa… querodizer, nossos pais achavam que nãoprecisávamos do mundo exterior.

— Eu sabia que eles eramsuperprotetores. — Ele tinha um tomcauteloso, tateando o caminho que olevaria a esse novo território.

— Esse é o eufemismo do século! Semeu pai e minha mãe tivessem seguido ométodo deles, nós nunca teríamosdeixado a casa paroquial.

— Entendi. O que mais?

— Ah. Tem certeza de que está prontopara isso?

— Totalmente!

Em seguida, contei para Craig minhahistória, e ele ouviu com a mesmaatenção de antes e os únicos movimentosque revelavam sua tensão era a batidade sua perna e pé, rápido como umatarantela, parando e voltando, e secontorcendo e batendo no chão. Eu iriadeixá-lo saber tudo. Os anos e anos depalavras e punhos, a cinta, o silêncio, omedo, as punições e os crimes e, porfim, as últimas e difíceis horas de vidade Hephzi. Ele ficou perdido, totalmente

perdido, e quando voou para fora dasala, eu estava lenta demais para detê-loe estúpida demais para lembrar-me deque ele não prometera não contar. Corriatrás dele no caminho para fora da casae me joguei sobre sua moto, logo atrásdele. Ele não parou e me empurrou parafora, acelerou o motor tão alto e forteque quase caí, sentindo as ondas dapoderosa máquina pulsarem pelo meucorpo, e tive de me segurar nele comtanta força quanto seguraria minha vidase alguém estivesse tentando tirá-la demim, tão forte quanto eu deveria tersegurado Hephzi.

Era óbvio para onde estávamos indoe, ao estacionarmos a moto do lado de

fora da casa paroquial, não sentinenhuma surpresa, apenas umentorpecimento tão terrível que seestendia do couro cabeludo até os pés,preparando-me para o que eu esperavaser a última batalha.

Craig me encarou, seus olhosbrilhantes e fervorosos na escuridão dofim do verão.

— A árvore? — questionou.

— Não. — Eu o fiz me seguir até aporta da frente. Ela estava trancada,então me inclinei sobre a velhacampainha que permanecia orgulhosa àentrada da casa. Ela ressoou forte obastante para ser ouvida, mas ninguém

apareceu para nos deixar entrar. O lugarinteiro estava imerso na escuridão,fechado e cansado, adormecido pelanoite. Não havia medo segurando meubraço, tentando arrastar-me para asegurança. Silenciosa e livremente,caminhei rápido em volta da casa emdireção aos fundos. Craig me seguiu,movendo-se raivosamente; eleborbulhava de ira e precisava infligirdor. Eu parei e segurei o braço dele.

— Deixe eu fazer isso, OK? Não valea pena arruinar sua vida com isso.

— Eu quero matá-los — rosnouentredentes. Meneei a cabeça,compreendendo.

— Você não pode. Se fizer isso,acabará na prisão e será quem maissofrerá. Você não deve desperdiçar seuódio com ele e não deve tocar emnenhum dos dois. Promete?

Ele balançou a cabeça e olhou comose pudesse entrar no meio dos jardins daigreja como uma ferida parcialmentecicatrizada. Sua dor era voraz e crua.

— Pense no seu futuro, aquele de quevocê me falou. Não jogue tudo fora,Craig, por favor.

Finalmente ele pareceu calmo obastante para continuar e seguimos emdireção aos fundos da casa. O perfumedas rosas de verão e das madressilvas

que cresciam às margens do jardiminundavam meus sentidos, e eu tentavanão pensar em Hephzi e em mim quandonos inclinávamos sobre nossa janela,duas menininhas com muito calor paradormir, ansiosas pelo verão e tentandoalcançar o ar. Era esse ar quecheirávamos juntas e que respirávamosprofundamente na esperança de guardarum pouco para mais tarde, algo que devepermanecer nos cantos de minhamemória para adoçar minha tristeza.

A porta de trás estava igualmentefechada e Craig bateu nela, xingandocomo um louco enquanto eu tentavacalá-lo e decidir qual seria o próximopasso. Eu estava surpresa por ninguém

ter aparecido para investigar o barulhãoque fazíamos; não era tão tarde, afinal,os Pais não estariam na cama àquelahora. Ele provavelmente estariabebendo, e ela estaria procurando poralguma tarefa inútil numa tentativa deesfregar a mancha indelével de suasexistências. Craig forçou novamente aporta, e ela acabou cedendo, a velhamadeira se curvou para dentro como umhomem velho aceitando a derrota. Ládentro, o ar estava frio e úmido, e sentio cheiro de mofo de minha infância. Oodor perfurou as paredes de controleque eu cuidadosamente construíra ecobri meu rosto com as mãos.

— Está tudo bem, Reb, está tudo bem.

— Por um momento, pensei que fosseHephzi falando, ela era a única que mechamava assim, o apelido de infânciaque ela usava desde que começamos afalar. Porém, era Craig quem mesegurava forte pela mão e me levavapela cozinha, caçando qualquer coisaque ele pudesse usar.

Nós dois saltamos quando elaapareceu das sombras envolta no mesmovelho roupão de sempre, amarradofirmemente em volta de sua esqueléticasilhueta.

— Quem está aí? — murmurou a Mãena escuridão ecoante do corredor. — Oque você quer? Saia daqui antes que euligue para a polícia.

Eu estava chocada por ela aindaparecer a mesma, mas, afinal de contas,só se passara um mês desde que nosvíramos pela última vez. Ela estavamagra, triste e branca como papel. Ofato de ela não me reconhecer deimediato era um pequeno triunfo; o meurosto era o mesmo, é claro, contudominha força era nova. Eu não ia maispermitir que ela fizesse eu me odiar.Endireitei os ombros e fiquei mais alta.

— Sou eu. — Minha voz era clara eecoava pelo lugar. Eu podia me ouvircom clareza e, em comparação, aresposta dela foi fraca. Ótimo, pensei.

— O que você quer? — repetiu ela.— Saia. Saia daqui agora.

— Onde ele está? — Eu não estavamais me escondendo, os dias de meesconder nas sombras eram passado, eeu queria que ela soubesse disso.

— Não está aqui. Se estivesse ele amataria. Agora saia.

Eu caminhava na direção dela e aindasem medo.

— Para que você veio aqui? —perguntou, com aspereza. — Deixe-meem paz. Você rompeu seus laços comeste lugar, saia e me deixe em paz.

— Não. Por que eu deveria? —Hephzi estava trancada ou seescondendo em algum lugar na casaparoquial, eu tinha certeza. Passei por

ela e comecei a subir as escadas, meuspés encontrando naturalmente os lugaresque não faziam barulho. Craig pisavacom força atrás de mim, sem medo dosproblemas que os rangidos e os gemidosda casa poderiam revelar. A Mãe nosseguia, sombria e resmungando. A portade nosso quarto estava fechada e puxei amaçaneta; eu estava convencida de queHephzi estaria lá dentro. Se ela nãoestava na casa de Craig então ela tinhade estar ali.

Entretanto, não havia nada. Paredesbrancas desbotadas olhavamsilenciosamente para mim, vazias emisteriosas na penumbra. Craig apertouo interruptor e o bulbo nu da lâmpada

retornou à vida apenas revelando maisdo mesmo. Deixaram o quarto como senunca tivéssemos vivido nele.Freneticamente, eu procurava por sinaisde Hephzi e do bebê dela nas paredes,mas nenhum inchaço ou protuberânciarevelou o esconderijo deles. E ondeestava a minha criança, aquela quenunca segurei ou conheci, aquela que aMãe enterrara em algum lugar numanoite escura? Eu a vira pegar uma pá eremexer a terra, e, em seguida, jogar opacote em uma cova rasa, cobrindo seurastro como um gato escondendo asfezes. Ela não enterrara as provas fundoo bastante, e meu bebê voltou para meassombrar, sussurrando pelas paredes.Eu parei e olhei pela janela, como se a

árvore pudesse me contar seus segredos.Os galhos balançavam vagarosamente emoviam seus braços verdes, batendo najanela com seus dedos vazios. Euentendi.

Era claro que não estavam ali. Óbvio.Eu crescera além daquele quarto,crescera livre, mais livre e viva do quejamais imaginara possível. Aquelequarto não segurava mais minha irmã enossos filhos, seus fantasmas haviamvoado. Agora que sabia que elesestavam seguros eu vi que o pesadelopoderia terminar.

Craig veio atrás de mim e colocouuma mão sobre meu braço.

— Venha, vamos. Ele não está aqui.Eu vou voltar.

— Espere um segundo! — falei e mecoloquei de joelhos, puxando uma dastábuas no canto do quarto. Eu não iriaembora sem as coisas dela.

O alívio roubou meu ar quando meusdedos se fecharam em volta da correnteda Hephzi e rapidamente a tomei emminha mão. Então, levantei-me e olheipara a Mãe.

— Antes de ir embora, quero saber.Por que você nos odiava? Por que vocême odiava?

Sua boca se contorceu.

— Vocês são sombrias. Criaturassombrias. Ninguém queria vocês,nenhuma das duas, mas vocês vieramassim mesmo. Tive de pagar por vocêstodos os dias da minha vida.

Sua resposta não me dizia nada, elaera louca, pensei, completamente louca.

— Nós éramos garotinhas. Nãoéramos más, perversas ou equívocos! —gritei para ela. — Você deixou Hephzimorrer!

Ela gritou e em seguida veio emminha direção com os dedos em garra,repleta de ódio. Craig a afastou,jogando-a no chão e me arrastou parafora do quarto. Ao fazê-lo, o mundo de

meu passado, nosso palácio, nossaprisão, esfarelou-se num espaço frio ebranco.

— Você é doente! — disparou elepara minha mãe enquanto saíamos. —Estou avisando-a, fique esperta, porqueeu ainda não terminei com você.

Ela cuspiu na direção dele edescemos as escadas rapidamente,precisando fugir, precisando de arfresco.

— Se fosse seu pai, eu o teriamatado!

— Não. Não, Craig. Isso não mudarianada.

— Como você pode ser tão calma?

— Porque essa era minha vida. Tivebastante tempo para me acostumar comela. É tudo o que sempre existiu paramim.

— Por que ninguém os impediu?Como eles puderam arruinar a vida devocês dessa maneira? Eu não entendo!

A angústia que ele sentia em meulugar era mais uma prova de que ele eraum cara bom. Timidamente toquei suamanga.

— Agora não importa mais, Craig.Por favor, esqueça. Tudo bem?

— Eu não posso!

Eu o deixei nutrir sua raiva e suaânsia por vingança.

A única coisa que me importavaagora era a perda da minha irmã. Euestivera tão certa de que ela estaria ali,tão certa de que ela explodiria dealegria ao nos ver juntos, indo,finalmente, resgatá-la. Eu estavacontente por sua liberdade, mas aindaqueria encontrá-la, pelo menos algumvestígio dela, e despedir-me melhor . Eutinha de dizer-lhe quanto sentia por nãotê-la salvado, devia-lhe isso. Nãoconseguira dizer-lhe isso em seu funeral,oito meses antes, e eu não tivera acoragem de dizer-lhe o tempo todo queela estivera comigo, ajudando-me e

dizendo-me para tomar as rédeas deminha vida antes que o Pai acabassecom ela. Naturalmente, eu não podiacontar a Craig o que estava acontecendo,ele me internaria no manicômio juntocom minha mãe louca, mas eu sabia quemeu pedido de desculpas a Hephziestava atrasado.

Voltar para a casa de Craig parecia aúnica opção plausível agora que a noitecaíra, mas pedi que ele esperasse maisum pouco por mim. Não longe dali, naCasa de Repouso, todos já estariam nacama, mas sabia que Danny estavatrabalhando até tarde. Michaela medeixou entrar, sorrindo, abraçando-me eacariciando minhas bochechas, dizendo

quão bom era me rever, quão alegre,quão feliz. Perguntei por Danny e elaapontou a cozinha. Ele se virou ao meouvir chamar seu nome.

— Aqui está você! Você apareceu.Cheryl andou muito preocupada.

— Sinto muito. Eu vim lhe dizer queeu estou bem.

— Tudo bem, querida. Estou feliz porver você, mas você nos deixoupreocupados. Cheryl estava prestes aligar para a polícia.

— Ela não ligou, ligou?

— Não. Eu a acalmei. Disse a ela quevocê não iria longe, não sem dinheiro ou

algum lugar para ficar. Então, o queandou fazendo?

— Eu voltei para lá. — Meneei acabeça na direção da casa paroquial.

— Você fez o quê? — Seu rostoembranqueceu. Eu sabia que trabalhartão perto era uma tortura para ele, poistodo dia Danny tinha de se conter paranão ir até lá e dar ao pastor um pouco dopróprio remédio, isso foi o que Archieme dissera. É claro que os Pais, em vezde fazerem a coisa certa e seguir emfrente, ficaram firmes, alimentandorumores, dizendo às pessoas que eu eralouca e que Danny era um tipo depedófilo que me mantinha sob seuencanto demoníaco. A maioria ignorava

as mentiras, de acordo com Archie, maseu ainda me sentia mal por Danny e pelaconfusão que trouxera à vida dele.

— Está tudo bem. Eu tinha de pegaralgumas coisas. Só isso. Ele não estava.

— Graças a Deus. Caramba,Rebecca, você não é uma pessoa quequer levar uma vida pacata, não émesmo? Agora, por que você não esperaum pouco na sala? Eu vou terminardaqui a meia hora, eu posso lhe dar umacarona.

— Não, obrigada, Danny. Está tudobem. Obrigada de qualquer modo.

— Como assim?

— Vou passar a noite na casa de umamigo e, amanhã, bem, quem sabe.Talvez eu vá visitar minha tia.

— Certo. — Seu sorriso alegre sedesmanchou num rosto franzido epreocupado. — Você tem certeza de quevai ficar bem?

— Sim. Obrigada por tudo que fezpor mim. Você foi o melhor pai que eupoderia ter.

— Pare com isso. — Suas bochechascoraram até ficarem rosa e ele sorriutristemente para mim. — Aindaestaremos por aqui se você precisar denós, quero que você venha sempre queprecisar de algo, de qualquer coisa,

certo? Promete?

Eu prometi e ele me apertou num deseus abraços de urso, o melhor abraçodo mundo. Em seguida, ele colocou 20libras na minha mão. Tentei devolver odinheiro, mas ele não quis nem saber.

— Você vai precisar de um pouco dedinheiro, querida, até que você seresolva, e isso não é muito. E me avisese precisar de mais, que eu ajudo você.Archie e as crianças vão sentir sua falta,sabia?

Sua gentileza era infinita e olhei parabaixo, tentando não deixar minhaslágrimas caírem. Eu era forte agora, eleme ajudara a ser forte, e eu queria que

ele sentisse orgulho. Antes de ir embora,entrei no quarto de Cyrilla; ela nãoestava totalmente adormecida. Dei-lheum beijo na bochecha macia e sussurrei-lhe adeus. Acho que ela sorriu e quaselevantou uma mão para se despedir.

Ao poucos eu estava ajeitando ascoisas. Ao poucos estava mepreparando. Eu realmente estavapartindo. Estava saindo das trevas eprocurando uma vida. Aquela queesperou por mim todo esse tempo.

4

Na manhã seguinte, Craig dormiu atétarde, mas eu acordei com o sol. Eusabia para onde iria agora. A caminhadanão era longa e ainda não estava muitoquente. Meu couro cabeludo, braços erosto ainda ardiam por causa do sol dodia anterior, mas a dor e o latejamentoapenas me lembravam de que eu aindaestava viva. Craig me dera um pouco de

creme, o que acalmou a minha peleenquanto dormia. Eu me sentia quasebem.

Antes de partir para sempre, aindahavia coisas que eu queria fazer. Ovilarejo ficara muito pequeno para mim,as memórias muito grandes, e eu queriaalgo diferente agora. Eu poderiaencontrar um médico ou voltar para aescola e estudar algo que meinteressasse. Os planos de Craiginspiraram os meus; se ele podia ir paraa universidade, eu também poderia.Craig não olhava para mim como se eufosse um monstro, nem Archie; eu meperguntei se talvez, um dia, euencontraria alguém que me amasse

apesar de meu rosto. A vida poderecomeçar se você tiver sorte osuficiente, e eu decidi ter sorte. Mas,antes que qualquer futuro acontecesse,eu tinha de fazer um último esforço eencontrar Hephzi.

Uma lápide simples marcava o túmulode Hephzibah, e a grama cresceraselvagemente na terra fresca. Li seunome, nosso aniversário e o dia de suamorte. Não havia nenhuma palavraespecial. Eu abri o fecho de sua correntede prata e a tirei do pescoço, agachei-me sobre a grama fresca. As folhasmortas e molhadas tocavam meustornozelos fazendo cócegas à medidaque eu cavava um buraco na terra úmida

com os dedos; uma leve chuva de verãocaíra durante à noite, e o ar cheiravacomo se alguém o tivesse limpado. Comterra debaixo das unhas, levei seu colaraté meus lábios, beijei-o e sussurrei umrecado antes de enterrá-lo o mais fundopossível.

— Hephz, você está aí? — sussurreipara dentro da terra.

Não houve resposta. Deitei-me nochão ao seu lado e chamei novamente.

— Hephzibah, é Rebecca. Estou aquipara me despedir. Por favor, falecomigo, você não ficará brava comigoporque estou partindo, ficará?

Ela ainda estava quieta.

— Eu vim lhe dizer que sinto muito.Eu sei que deveria ter salvado você. Seeu tivesse sido mais corajosa. Se eutivesse chamado uma ambulância antes.Desculpe. Eu a amo, Hephz.

Os pássaros faziam barulho ecantavam nas árvores, o vento levantavagentilmente meus cabelos. Esperei maisum tempo até sentir cada uma de minhascélulas vivas. Hephzi estava ali. É claroque ela estava. Ela estivera o tempotodo. No vento em minha pele e no solsobre meu rosto, no brilho das estrelasque vi em minha cama no hospital, naescuridão de minha sombra e na força demeus passos ao fugir da casa paroquialpara a liberdade. Ao me deitar ao sol ao

lado dela, senti as asas de sua beleza melevantarem e, enquanto as senti bateremcom esperança, eu soube que podiacontinuar. Hephzibah estava em outrolugar, mas também em mim.

Craig já estava acordado quandovoltei para sua casa e tomamos café damanhã juntos mais uma vez. Ele estavaquieto, e eu sabia que estava meditandosobre tudo que eu contara. Eu sentiamuito por ele ter tido de ouvir essascoisas horríveis sobre a vida de Hephzi,e disse isso a ele.

— Tudo bem. Eu queria saber. — Eleme olhou e pude ver o fogo em seusolhos, dando-me conta de que ele ainda

queria se vingar. Porém, eu já virasangue suficiente pelo resto da minhavida e de jeito nenhum ia derramar mais.Entretanto, Craig estava certo de algumamaneira; ainda haviam coisas a seremfeitas.

Pensei em Tia Melissa. Ela prometeraque me ajudaria. Eu não precisava queela me salvasse agora, mas queria suahistória. Perguntei a Craig se eu poderiausar o telefone e engoli meu orgulho eminha amargura.

Ela ficou surpresa ao ouvir minhavoz, isso era óbvio, e, por um instante,me perguntei se seu interesse repentinopor mim fora uma farsa.

— Você está bem, Rebecca?

— Sim, obrigada.

— Como posso ajudar você? Vocêainda está morando com seus amigos?

— Não, eu saí de lá.

— Ah.

— Está tudo bem, mas a casa delesera muito pequena e eu já estava faziauns meses.

— Entendo. Onde você está agora?

— Na casa do namorado da Hephzi.Mas não posso ficar muito.

Nenhuma de nós duas falou por ummomento e tentei imaginar o que ela

estava fazendo. Será que estava fazendocaretas de pânico para o Tio Simon oufranzindo o cenho de preocupação? Elame queria ou não?

— Posso visitar você? Ver se possoajudar? — ofereceu ela finalmente.

— Sim, se quiser.

— Certo, me dê o endereço, mas sópoderei ir amanhã. Tudo bem?

— Sim. Eu posso ficar mais uma noiteaqui.

Ao desligar o telefone, pensei emVovó. Eu poderia ter corridodiretamente para ela, ela teria meacolhido sem pensar duas vezes. Eu

poderia ter cuidado dela em sua velhice,poderia ter frequentado a escola duranteo dia ou ter estudado em casa e ter mesentado com ela à noite fazendopalavras cruzadas ou assistindo a TV.Não era justo.

— Então ela está vindo? — perguntouCraig, e eu assenti e saí do quarto.

Naturalmente, não pude dormirnaquela noite. Não eram mais ospesadelos que me mantinham acordada,em vez disso, pensava em Tia Melissa.Eu sabia o que eu queria, e essa era aresposta. Mas eu também precisava deuma casa e de uma vida, e ela nãopoderia me dar nenhuma das duascoisas.

Assisti a TV a manhã toda, aindaviva, ainda esperando.

Às dez horas, a campainha tocou. Osdois estavam ali, Melissa e Simon.Craig ainda não acordara e eu abri aporta já vestindo minha jaqueta. O solnão estava tão quente naquele dia,nuvens cinzentas estavam se aglutinandoao longe, um exército estabelecendosuas linhas defensivas. O ar estavapesado e úmido. Cheirava a chuva.

Caminhamos até o carro. Simondirigiu, Melissa se virou em seu banco eme olhava. Seu sorriso podia partir-setão facilmente quanto um coração.

— Você está bem?

Eu assenti.

— Para onde devemos ir?

— Para longe daqui.

Simon balançou a cabeçaafirmativamente e dirigiu para fora dovilarejo, no sentido oposto à casaparoquial. Ao chegarmos à cidade, eleestacionou e nós todos saímos. Nãotinha ideia de onde estávamos e osdeixei me guiarem para fora doestacionamento e para dentro de umcafé. Aquele não era um bom lugar,deveríamos ter ficado na casa de Craig.Simon foi ao balcão e pediu bebidas e ocafé da manhã. Melissa e eu nossentamos uma de frente para a outra.

— Obrigada por virem — conseguidizer finalmente, porque sabia que elaqueria chorar.

— Sinto muito por ter demoradotanto.

Esbocei um pequeno sorriso.

— Mas estou aqui agora. Nós estamosaqui. Vamos ajudá-la como pudermos.

— OK.

— Do que você precisa?

— Você tem de me contar tudo.

— O que você quer dizer?

— Ao telefone, você disse coisas.Você disse que ela nunca deveria ter se

casado com ele. O que você quis dizer?

Melissa não esperava por isso. Elaolhou para baixo, então olhou paraSimon no balcão e, em seguida, parasuas mãos, e ficou girando a aliança emseu dedo.

— Ah, isso é coisa antiga, nãoimporta mais.

— Apenas me diga — insisti.

— Eu não quero magoá-la, Rebecca.

— Você não vai. Eu aguento o quefor. — Entendi que Tia Melissa aindanão fazia ideia de como fora minha vidaaté então. Se ela pensava que suaspalavras me machucariam, estava

enganada.

— Tudo bem, se é isso que você quer.

— Sim, é o que quero.

Então veio a história de RoderickKinsman e Maria Detherby. Minha mãetinha 18 anos quando se envolveu com ogrupo da igreja. Melissa se recordavade Roderick indo à sua casa buscar suairmã antes das atividades e aacompanhando de volta para casa.Apesar de ser bonito, ele era rígido, elacontou. Rígido e não sorria, usavasempre um casaco longo, camisa egravata.

— E aqueles olhos… — murmurouela —, quando ele me olhava, os

cabelos de minha nuca se arrepiavam.Eu sempre achei que havia algo deaterrorizante naqueles olhos.

Eu sabia do que ela estava falando.

Melissa me disse que Roderick serecusava a entrar para um chá ouchocolate quente e se esquivava dosconvites para os almoços de domingo.Era óbvio que ele desaprovava tantoVovó quanto Tia Melissa. Melissa usavamaquiagem e gostava dos Stone Roses;Maria usava um crucifixo e escondia osCDs de sua irmã.

— Por que ela era assim?

— Eu não sei. Pode ser porque nossopai, seu avô, havia morrido. Ela sempre

fora sua favorita, ele a adorava. Quandoele teve um derrame isso afetou a todasnós, mas Maria não reagiu bem. Ela setornou obcecada pela religião e pelosencontros na igreja. Eu não teria meimportado se não tivesse sido tão claroque eles estavam sendo enganados. Elapegava o dinheiro da mamãe para doá-loàquele cara, o pastor deles. Eles tinhamideias esquisitas, jejuando por váriosdias seguidos, e aquele lance todo comas mãos. Ela achava que podia falar emoutras línguas. Imagina! Ela não queriamais ver seus amigos antigos ou fazer asatividades a que estava acostumada.Tentamos que ela fizesse outras coisas,mas Maria simplesmente não seinteressava.

— O que aconteceu depois?

— Bom. Sua mãe sempre teve umaatitude um pouco impetuosa. Talvez umpouco como Hephzi.

Ela sorriu, mas eu não retribuí. AMãe e Hephzi não tinham nada a veruma com a outra. Tive de me conter paranão lhe perguntar o que diabos elapensava que sabia sobre minha irmãpara fazer comentários como aquele,mas Melissa percebeu seu erro.

— Desculpe, não, eu não quis dizerisso. Bem, sua mãe era obstinada eteimosa. Quando Roderick lhe fez aproposta de casamento, ela prontamenteaceitou; apesar de sua avó aconselhá-la

a ir antes para a universidade eencontrar uma boa carreira, ela não aouviu. Roderick ainda estudava também,estava apenas no terceiro ano dafaculdade.

Ela se inclinou na minha direção,como se estivesse prestes a contar-mealgo importante.

— Sua mãe não é estúpida, Rebecca,ela era inteligente e ia bem na escola,poderia ter se virado bem sem ele.

— Então você não pôde impedi-la?

— Não. Mas fomos ao casamentoapesar de na véspera ela e sua avó teremtido uma briga feia. Minha mãe aadvertiu sobre Roderick, ela pressentia

algo ruim em relação a ele.

— Ele odiava a Vovó.

— Eu sei.

— É culpa dele que ela tenhamorrido. — Eu não pude me conter eacabei dizendo, apesar de saber queMelissa não entenderia.

— O que você quer dizer com isso?Minha mãe caiu nas escadas, ela teve umenfarto e ninguém a encontrou a tempopara ajudá-la. Ela nunca usava aqueledispositivo de emergência, aquela velhateimosa, você sabe disso.

— Se não fosse por ele, ela aindaestaria viva, sei disso.

— Talvez. Mas isso já não importa, épassado.

Melissa não entendia nada. Ela eraestúpida e sem graça, pensei, e mearrependi de ter iniciado aquelaconversa; no ritmo em que ela contava ahistória levaria horas até eu descobrirqualquer coisa relevante. Sentindominha frustração, ela recomeçou. Simonjuntou-se a nós com as bebidas. Molheios lábios no chá e ouvi.

— Após se casarem, ela descobriuque estava grávida. Ela voltou correndopara nós, chorando e se lamentando.Naturalmente, não tinham se deitadoantes do casamento. Deus proibira que aesposa de Roderick não fosse virgem.

Entretanto, como eu disse, Maria era umpouco levada. Ela fez o que quis apesarda religião, ou talvez por causa dela, eentão ela nos disse que Roderick não erao pai, ele não poderia ser porque ela jáestava no terceiro mês. Ela era tãomagra que quase não dava paraperceber, mas ela sabia que logo elateria de contar a ele.

Mais bebês secretos, pensei, masdessa vez eram Hephzi e eu.

Se Melissa esperava que sua históriachocasse ou machucasse, ela se enganounovamente. Eu estava apenas curiosa.

— Então quem é meu pai?

— O seu pai era o pastor de Roderick

e Maria, o líder daquele estranho grupoda igreja com o qual os dois seenvolveram. Roderick surtou quando sedeu conta de que Maria o traíra. Eleainda estava estudando, e eles erampaupérrimos e viviam no seu quarto deestudante. Ele não aceitava nenhumtostão de sua avó, mesmo quandodescobriu que Maria estava grávida. Suaavó estava desesperada para ajudar, elase preocupava o tempo todo com o queaconteceria com eles. Ele estavaestudando para ser da igreja, bem,logicamente, você sabe disso e, paracomeçar, eu não tenho ideia de por queele se misturou com aquele povoesquisito. Eu não tenho nada contra aigreja. Afinal, Simon e eu nos casamos

numa!

Eu olhei para ela. Ela disse isso comose eu devesse me lembrar. Dei deombros.

— Nós convidamos vocês. Vocêsduas eram pequenininhas, então pedi quefossem damas de honra. Pensei que seriasimpático.

Hephzi teria adorado isso. Imaginei-anum vestido de cetim cor-de-rosasegurando uma cesta de flores.

— Por que ele não a abandonou? Nosabandonou? Teria sido melhor paratodos. — Eu estava frustrada pensandoem outra vida, uma certamente menossofrida com a ausência de Roderick

Kinsman. Joguei logo a ideia fora. Caiana real, disse para mim mesma.

— Você está provavelmente certa,mas esse não seria Roderick, seria? Elegosta do papel de mártir, e o pastor veiocom tudo para cima dele, acho, ele falousobre o escândalo que seria e a desgraçaque cairia sobre todos os envolvidos.Ele deve ter ameaçado Roderickdizendo que arruinaria sua carreira naigreja. Além disso, seu pai biológico jáera casado, e isso destruiria a carreiradele também. Roderick entendeu isso.Ele estava terrivelmente bravo, mas suamãe achou que ele superaria com otempo.

Então era isso, é claro. As aparências

tinham de ser mantidas a todo custo, asmáscaras nunca poderiam cair. E o Paiamava ter a oportunidade de punir aMãe pelo resto de seus dias, assim comoa nós. Toda a minha vida eu paguei commeu corpo e minha alma pelo pequeno esórdido caso que a Mãe tivera.

— Mas então vocês nasceram… —Melissa não terminou a frase, mas ouvio que ela não ousava dizer. Quando eunasci ele não suportou; criar o filho deoutro já era ruim, mas um como eu, bem,isso era um insulto supremo.

— Então essa é a história. Isso étudo?

— Sim, é tudo.

Não era tudo. Ela não explicara porque nos deixou com eles quando poderiater tentado ajudar. Vovó tentara, masonde estava Tia Melissa? Simon seremexeu estranhamente em sua cadeira.O silêncio segurava suas perguntas. Euolhei para cada um dos dois.

— Você se importava? Você não sepreocupava por estarmos com eles?Você não via o que acontecia conosco?

Minha voz era baixa e cheia detristeza. Melissa empurrou sua cadeirapara trás, que rangeu sobre o chão docafé, e ela correu para o banheiro,escondendo o rosto.

Encarei o olhar de Simon.

— Ela se importa, Rebecca. Mesmo.Especialmente porque não temos filhos.Eu lhe disse que haveria apenas umapequena chance de termos um bebêcom… Você sabe…

Ele balançou a cabeça em minhadireção para ilustrar o que queria dizer,e então tirou os olhos de mim, virou-se eolhou para o banheiro onde estava aMelissa.

— De todo modo, eu lhe disse quepoderíamos fazer o teste, hoje em dia épossível fazer o teste genético, e que eupagaria, sem problemas, se isso areconfortasse, mas ela não queria falar arespeito. Porque sabíamos de você e eladecidiu que era melhor não arriscar.

Minha cabeça latejava com essa novainformação. Eu me perguntava se ele sedava conta de que, calmamente, estavame dizendo que teria sido melhor paratodo mundo se eu não tivesse nascido.Um simples teste poderia ter medescartado muito tempo atrás e poupariaas pessoas de mais um problema.

— Nós queremos adotar — continuouele, ignorante —, mas temos de esperar.Isso está desgastando a Mel, ela estámuito frágil no momento.

Estava na hora de partir. Eu melevantei, saí do café e caminhei pelacidade. A chuva ainda ameaçava cair emeus braços estavam arrepiados. Aspessoas corriam pela praça do mercado,

não se demorando nas bancas. Olhei àminha volta, sentindo-me perdida e meperguntando onde era o ponto de ônibus.Melissa e Simon não tardaram a mereencontrar.

— O que você vai fazer agora? —perguntou Simon.

— Eu não sei. Preciso encontrar umlugar para morar.

— Você pode voltar conosco, sequiser — ofereceu Melissaapressadamente, e eu me lembrei do Paiapresentando seu punho como um favor.Eu não precisava de tal ajuda.

— Não, obrigada. Vou ficar por aquiem algum lugar, mas não voltarei para o

meu bairro. — Minha voz era um soprofrio no ar úmido e pesado, e ela lançouum olhar preocupado ao marido.

— Você tem algum dinheiro?

Eu balancei a cabeça. Melissasegurou meu braço e se aproximou demim.

— Escute, quando sua avó morreu,ela deixou todos os bens para mim. Elanão confiava em Roderick, mas sei queela teria gostado que eu cuidasse devocê com esse dinheiro.

Olhei para Melissa. Seus olhostinham o mesmo tom castanho deHephzi.

— Você aceitaria? Aceitaria essedinheiro?

5

Ela sacou tudo que podia naquela tardee me prometeu mais assim que eu tivesseuma conta bancária. Eles me deixaramna casa de Craig, a borracha dolimpador de para-brisa gritava numritmo de dor. Simon tossiu e ligou orádio. Não houve beijo de despedida eolhei o carro afastar-se, parecia menordo que antes. Dei a volta na casa, com

os bolsos cheios de dinheiro.

— Tudo bem?

— Sim, obrigada.

— O que eles disseram?

— Ele não é meu pai. — Isso era oessencial, o resto foram apenas detalhes.

— Ah!

— Fiquei contente — ressaltei oóbvio, apenas para ouvir as palavras emvoz alta.

— Sim.

— E ela me deu dinheiro. Era daminha avó, não é caridade. — Eu járecebera caridade o suficiente, e só

queria mais uma coisa de Melissa, masisso poderia esperar um pouco mais.

— Bom.

— Você me ajuda a encontrar umapartamento?

— Claro.

Porém, antes de fazer isso, eu tinhauma última questão a resolver. Eudeixara o pior para o final. Eu decidicontar a Craig, caso eu não voltasse.

— Eu vou voltar lá mais uma vez.Amanhã. Irei no horário dos serviçosmatinais.

Ele me olhou e disse:

— Você não pode fazer isso, não

sozinha.

— Por que não? Você não pode meimpedir, Craig, eu não tenho medo dele.

— Bem, eu vou com você.

— Saiba que não estou indo fazerjustiça com as próprias mãos — adverti-o.

— Eu sei, mas ainda assim eu vou.

Eu me senti calma ao caminhar emdireção à igreja, na manhã seguinte,mais do que antes. Dessa vez, eu sabiaque partiria quando quisesse e ninguémme impediria de exercer minha vontade.As ruas estavam repletas de pazdominical, e os dedos do medo que

antes me agarravam por dentro a cadapasso que eu dava entre a escola eminha casa não existiam mais. Eu viDanny e Cheryl do lado de fora daigreja, esperando por nós. Craiginsistira que eles também fossem.“Reforços”, ele disse. E mesmo eu tendodito que não era necessário, deixara queCraig ligasse para eles.

Danny me deu um grande abraço,assim como Cheryl, e ficamos do ladode fora segurando um ao outro. Emseguida, afastei-me e puxei a pesadaporta da igreja.

O serviço já começara. Eu podiaouvir a voz dele entoando as rezas ecaminhei firmemente em sua direção,

meus pés silenciosos sobre o chão depedra. Algumas almas estavamrecolhidas sobre os bancos da igreja efiquei impressionada com o pequenonúmero delas; sua congregaçãodiminuíra ainda mais. Ela se esvaziaragradualmente ao longo dos anos e astentativas dele de recrutar novos fiéistinham perdido a eficiência haviatempos. Porém, sempre houvera maisque isso. Alguma coisa deve teracontecido. Identifiquei as costasrecurvadas da minha mãe e sua cabeçainclinada; ela estava sentada em suaposição habitual no primeiro banco. ASra. Sparks estava sentada do ladooposto com o marido, e eu fiquei de pépor um momento no corredor decidindo

onde me sentaria. Os outros estavamatrás de mim, seguindo meus passos.Quando me movi para a frente, o homemno altar percebeu minha presença e, aocruzarmos nossos olhares, a reza morreuem seus lábios. Seus olhos eram domesmo azul penetrante que sempreforam. Encarei-o firmemente e caminheipara a frente, sentando-me logo atrás deminha mãe, onde eu podia vê-lo. Eusabia que as pessoas estavam meolhando indiscretamente, mas não meimportava; seus olhares caíam sobremim como gotas de chuva escorrendodas folhas. Danny, Cheryl e Craigsentaram-se atrás de mim, e senti a mãode Danny repousar brevemente sobre

meu ombro.

Aquela seria a última vez que euveria o homem que se mascarara de pai,e eu soltei um longo suspiro e virei orosto na direção dele.

Ele esperava que eu me curvasse e meescondesse, ele ansiava por essa reação,e ouvi seu rosnado desenrolar-se e seuslábios se mexerem. Ao receber nadamais que meu olhar em troca, um olharque não pedia nada a não ser meu direitode existir, sua voz voltou a falhar, eminha mãe virou a cabeça para saberpor quê. Deixei-a olhar-me, mas ela sevirou rapidamente. Tão rápido quanto olivro que caíra da mão dele e que ele seagachara para recuperar. Ele se levantou

novamente, folheou as páginas paratentar reencontrar o ponto, tossiu e olhoupara a frente. Mas seus olhos sevoltavam para mim. Eu o olhei tentandosorrir.

— Desculpem-me — continuou ele—, vamos rezar. — Suas palavras nuncatinham sido tão falsas.

Algumas pessoas se levantaram e sejuntaram à reza. Elas ouviram o trechoda Bíblia que ele leu apressadamente.Senti pena das velhinhas e dos poucosdevotos remanescentes de seu rebanhoque se juntaram com seu amém. Eesperaram pelo sermão.

Que palavras ele preparara, ninguém

nunca soube.

Ele ficou lá parado, congelado, emsilêncio, a boca paralisada à medida quetodos olhavam para ele, e eu ouvi oscochichos começarem.

Em seguida, levantei-me e me afastei,tão lentamente quanto entrara.

6

Na segunda-feira, com ajuda de Craig,encontrei um lugar longe o bastante parasentir-me segura. Era pequeno e limpo.Eu poderia convidar Cheryl e Danny.Tia Melissa me mandou o restante dodinheiro e Craig me ajudou com amudança. Pam me deu coisas de que elanão precisava mais e planejei pegar orestante quando pudesse. Eu não

necessitava de muito.

Meu último pedido para Tia Melissaera que ela me enviasse o álbum defotos de Vovó. Ele chegou envolto numpapel delicado com um recado gentil,repetindo mais uma vez quanto Melissalamentava e me convidando para passaro Natal ou qualquer ocasião com eles.Removi a embalagem e guardei orecado. Craig e eu olhamos para oálbum juntos.

— Vamos, dê uma olhada — disseele.

Eu virei as páginas; elas eram tãofinas e fáceis de virar como eu melembrava. Um novo passado floresceu à

minha frente, e examinei as velhas fotosde Tia Melissa e da Mãe, lindosbebezinhos, vestidos de rosa, gordinhose fofos. Vovó parecia tão jovem, comum permanente no cabelo e muito batomrosa, rindo para quem quer que estivessetirando a foto dela e das filhas sentadasem seus joelhos. Havia mais fotos daMãe e de Melissa; suponho que elastinham entre 12 e 13 anos, estavam numapraia, com os braços entrelaçados etrajando roupa de banho, em outraestavam sentadas eretas e orgulhosas nolombo de um cavalo, ou posando com arsério num uniforme escolar ao lado deminha avó e de meu avô, o qual nuncaconheci. Maria era bonita, de uma formadiscreta e elegante, e tinha um sorriso

adorável. Eu não pude reconhecernaquela menina a mãe que nunca foicapaz de me amar. Olhei para as outrasfotos, algumas dos Pais, rígidos emtrajes de casamento, algumas de Melissaem sua formatura e outras que eu rasgaraquando criança. Vovó deve ter feitocópias. Fechei o álbum de uma só vez.Eu olharia para elas mais tarde, quandoestivesse sozinha.

Ao acompanhar Craig até a porta, eleparou antes de se despedir.

— Tome.

— O que é isso?

— Um presente de boa sorte. Pegue.

Peguei o livro Noite de reis, deShakespeare.

Olhei para ele, intrigada.

— Você vai gostar. Tem um finalfeliz. E olhe.

Ele abriu o livro e dentro algumacoisa estava solta, um pedaço de papelbrilhante. Eu o peguei e olhei-o por umlongo e delicioso momento. O rosto deHephzi sorria para mim na foto, repletade felicidade e esperança, seus olhosmais vivos do que eu jamais vira.

— Você a quer?

— Eu tenho outras. Posso fazercópias. Tenho muitas fotos dela. Você

pode colocá-la no álbum.

— Ah! — Eu gostaria que ele tivessemencionado isso antes.

— Eu lhe enviarei mais fotos. Passe-me seu e-mail quando estiver tudoresolvido, OK?

— Tudo bem, obrigada. É linda.

— Eu sei. Ela era.

Nós nos abraçamos por um longomomento, e então ele partiu. Eu fechei aporta vagarosamente e depois passei acorrente. Segurando a foto de Hephzi, eusabia que não a colocaria no álbum deVovó, mas encontraria o porta-retratosperfeito para ela, colocando-a num lugar

em que eu pudesse vê-la todos os dias.Eu sabia que ficaria tudo bem agora.

7

Nunca tive a intenção de voltar esuponho que nem precisasse, mesmoapós o incêndio. Entretanto, queriacertificar-me de que eles realmentetinham partido.

Haviam se passado algumas semanasdesde minha pequena jornada à igreja,onde encarei Roderick Kinsman pelaúltima vez. O outono começara, mas o

sol brilhava, o ar cheirava a frescor, e aocasião não podia sombrear o brilho dodia. Haviam se passado nove mesesdesde o funeral de Hephzibah, e aquiestava eu, mais uma vez.

Poucos estavam enlutados. Algunsmembros do clero, a Sra. Sparks, queevitava meus olhos, e curiosos locais,que vinham ciscar como galinhafamintas em busca de sementes de umahistória que cresceria como ervadaninha nas próximas semanas. TiaMelissa e eu ficamos ao fundo. Eupoderia ter tido pena da minha mãe, masela não merecia meu pesar, e eu apenasolhava impassivelmente enquanto onovo pastor procurava palavras para

dizer sobre ela. Ele encontrou algunsvelhos clichês: uma trabalhadora dacomunidade, esposa devotada, blá-blá-blá. Pelo menos, ele não sugeriu que elaera uma mãe amada.

Após a missa, as outras pessoas seesvoaçaram feito poeira, e o novo pastorse aproximou de mim. Ele murmuroualgum tipo de desculpa que ouvi eassenti; afinal, ele não era culpado.Finalmente, deixaram-me sozinha comminha tia. Talvez naquela ocasião eunão tenha falado o bastante com ela, masaté onde eu sabia eu tinha sido educada.Ela não parecia tão chateada com amorte da irmã, apesar de eu ter notadoque ela enxugara discretamente os olhos

durante o serviço. Manter as aparênciasparece realmente ser primordial emminha família.

Algumas pessoas escolheramacreditar que o incêndio fora acidental,um curto-circuito ou algo do tipo. Éengraçado como a verdade pode ser tãoevasiva quanto o horizonte, afastando-seà medida que a gente se aproxima dela.Nem mesmo a prisão do pastor foi osuficiente para alterar a realidadedessas pessoas.

No entanto, eu estava contente porRoderick ter sobrevivido ao seu própriofogo. Era estranho que as chamas não otivessem consumido, como ele desejava,

permitindo-lhe escapar. Estava feliz desaber que ele definhava na prisãoenquanto esperava seu julgamento,mesmo que isso significasse revelar asferidas que ele abrasara nas profundezasde meu coração, feridas que finalmentecomeçavam a cicatrizar.

— Rebecca, você vai falar, certo? —perguntou-me a policial quando veio medar a notícia, e eu concordei, assentindocom a cabeça. Aquela história erapassado, mas eu aceitava que ela aindafosse contada enquanto pensava nofuturo. Hephzi desejaria que eu falassepor ela, e sempre fui corajosa o bastantepor nós duas.

Não deixei que enterrassem os restos

da Mãe ao lado de Hephzi. Em vezdisso, incineramos o que sobrara delaapós a conflagração e joguei a urna comsuas cinzas na lixeira mais próxima.Depois disso, não havia muito mais aser feito. Eu caminhei ao longo daestrada e olhei à minha volta,observando o bairro com olhosrenovados, sussurrei minhas despedidasà medida que passava pelos lugares: aescola, a loja, a biblioteca que sempredesejei visitar, a farmácia que Hephziroubara, a casa da Sra. Sparks. Antes departir, voltei aos escombros do queoutrora fora a casa paroquial. Tudo foraconsumido pelas chamas, menos aárvore, nossa árvore, que ainda estavade pé. Um pouco escurecida, um pouco

machucada, mas ainda orgulhosa e forte.Um sopro de vento acariciou suasfolhas, e algumas delas caíramvagarosamente no chão como aexpressar sua tristeza pela minhapartida. Pensei que ela também medesejava sorte.

Do outro lado da estrada, um homemem sua motocicleta acenou, depoisacelerou e desapareceu. Eu o verianovamente. Haveria tempo para isso epara outras coisas também. Agora, euestava feliz por estar sozinha.

Assim me afastei das ruínas dopassado. Vi que o dia brilhava e o solestava mais forte do que o outonocostumava permitir. Ele resplandecia

nas pedras das casas e de longe as faziabrilhar como ouro. Negras eram asferidas, mas azul era o céu e, à medidaque o futuro abria seus braços, eu seguiaem frente e sorria.

AGRADECIMENTOS

Muitíssimo obrigada a Amanda Punter, aMari Evans e a Alex Clarke, da Penguin.Obrigada por sua paixão, conhecimento,sabedoria e discernimento. Obrigada atodo o pessoal brilhante da Penguin ePuffin, que apoiou e auxiliou napublicação deste livro.

A Amanda Preston, da Luigi BonomiAssociates, minha gratidão por amarCorações Feridos, por não desistir demim e por suas brilhantes habilidades deagenciamento.

A minhas superirmãs Emily eMargaret Barry, obrigada por sempre

quererem ler o que escrevo e por mefazerem acreditar que outras pessoaspossam querer lê-lo também! Obrigada aGill e Dave por tudo. À minha grandeamiga Juliette Tomlinson, cuja opinião eajuda contam para um grande negócio. Ea Sarah Mitchell, que tem sido ávidaleitora de cada um de meus rascunhos, eacreditou no livro desde o início.Obrigada.

Ao Gilded Palace of Sin, pelasmelodias tenebrosas.

A Rita Gabrielle Wilson. Se algumavez houve uma mulher que amava aspalavras, era você.

Acima de tudo, ao meu querido

marido, Alistair. Obrigada por meaturar, por conhecer genética, por ler eacreditar. Obrigada às minhas filhasmaravilhosas, que me fazem rir todos osdias.

NOTAS

[1] “Você não é, você não é/Nãomais, um sapato preto/No qualeu vivi como um pé/Durantetrinta anos, pobre e branca/Malconseguindo respirar ouatchim.” (N.E.)

[2] Obra de Charles Dickens,publicada em 1861. (N.E.)

[3] Referência à personagem dolivro Grandes Esperanças, umamulher solteira de meia-idadeque vive numa mansãodecadente. (N.E.)

[4] Middlemarch — um Estudoda Vida na Província, escrito

entre 1869 e 1871 por GeorgeEliot, pseudônimo de Mary AnnEvans, faz uma análise doimpério britânico nos anosdifíceis que precederam oreinado vitoriano. (N.T.)

[5] EastEnders é uma telenovelabritânica criada por Julia Smith eTony Holland, transmitida desde1985 pela BBC One.Atualmente, está entre osprogramas mais assistidos noReino Unido. EastEnders contaa história doméstica eprofissional de um grupo depessoas que vive na cidadefictícia de London Borough deWalford, em East End, Londres.(N.T.)

[6] BBFL é a sigla em inglês paraBest Friend For Live, quesignifica “melhores amigos paravida (inteira)”. (N.T.)

[7] Romance da escritora inglesaCharlotte Brontë. (N.T.)

[8] Personagens do livroOrgulho e preconceito, de JaneAusten. (N.E.)

[9] Refere-se ao livro TheMagic Faraway Tree (A casana árvore), da escritorabritânica Enid Blyton. (N.T.)

[10] A Noite das Fogueiras, ouBonfire Night, é um eventoanual que comemora a captura e

morte, em 5 de novembro de1606, de Guy Fawkes, umsoldado católico que conspiroupara matar o rei Jaime I daInglaterra. Fawkes foicondenado à forca por traição, ea data é celebrada ainda hojecom fogueira e fogos deartifício. (N.T.)

[11] “Away in a Manger” é umacantiga de Natal composta em1885, na Filadélfia, e muitodifundida entre os países delíngua inglesa. É uma dascantigas de Natal mais popularesna Inglaterra. (N.T.)