Lua Com Circo Traz Água no Bico

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“Lua Com Circo, Traz Água no Bico” O serão era longo, no Inverno! Anoitecia às cinco e meia e não tínhamos electricidade nem televisão. Alumiávamo-nos com candeeiros a petróleo, o que já era um luxo, porque a maioria das pessoas servia-se de candeias de azeite. A electricidade era um luxo que só algumas casas podiam ter. Felizmente que havia pilhas e tínhamos um aparelho de rádio, mas nem todos na aldeia tinham essa sorte e nem sempre o rádio transmitia programas de interesse. Quando o pai trabalhava de noite, a mãe costumava receber as vizinhas ao serão, para junto da lareira se conviver e passar melhor o tempo. A nossa cozinha era muito espaçosa e tinha uma lareira funda e larga, onde podia arder a raiz de uma árvore inteira. O sobrado servia de banco porque ficava mais alto do que a pedra onde ardia o fogo, como se fosse um grande degrau rectangular. Sentávamo-nos todos à roda e cada um tinha o seu lugar marcado. Por volta das oito horas, depois da ceia, chegavam as vizinhas e a Ti Hermínia era companhia certa. Era uma mulher que vivia com o filho, que trabalhava numa fábrica de serração de madeiras, perto das Termas de S. Pedro do sul. Gostava muito da minha família porque, como ela dizia, nos devia “grandes obrigações”. O meu pai tinha escrito uma carta a uma pessoa muito importante e tinha-lhe livrado o 1

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“Lua Com Circo, Traz Água no Bico”

O serão era longo, no Inverno! Anoitecia às cinco e meia e não tínhamos

electricidade nem televisão. Alumiávamo-nos com candeeiros a petróleo, o que

já era um luxo, porque a maioria das pessoas servia-se de candeias de azeite.

A electricidade era um luxo que só algumas casas podiam ter. Felizmente que

havia pilhas e tínhamos um aparelho de rádio, mas nem todos na aldeia tinham

essa sorte e nem sempre o rádio transmitia programas de interesse.

Quando o pai trabalhava de noite, a mãe costumava receber as vizinhas

ao serão, para junto da lareira se conviver e passar melhor o tempo. A nossa

cozinha era muito espaçosa e tinha uma lareira funda e larga, onde podia arder

a raiz de uma árvore inteira. O sobrado servia de banco porque ficava mais alto

do que a pedra onde ardia o fogo, como se fosse um grande degrau

rectangular. Sentávamo-nos todos à roda e cada um tinha o seu lugar

marcado.

Por volta das oito horas, depois da ceia, chegavam as vizinhas e a Ti

Hermínia era companhia certa. Era uma mulher que vivia com o filho, que

trabalhava numa fábrica de serração de madeiras, perto das Termas de S.

Pedro do sul. Gostava muito da minha família porque, como ela dizia, nos devia

“grandes obrigações”. O meu pai tinha escrito uma carta a uma pessoa muito

importante e tinha-lhe livrado o filho de ir para a Guerra do Ultramar. Os

rapazes com dezoito anos eram obrigados a cumprir o serviço militar e muitos

deles eram mandados para Angola, Moçambique, Guiné e S. Tomé e Príncipe,

combater na guerra. Muitos morriam, vítimas de uma granada, de uma mina ou

de um tiro de metralhadora. Andavam por lá dois anos inteirinhos! A Ti

Hermínia tinha só aquele filho e se ele morresse, ficaria só no mundo. Por isso

é que o meu pai escreveu uma carta muito bem escrita e conseguiu salvar o

filho dela de cumprir o serviço militar, alegando que ele era “amparo de mãe”.

Depois da ceia, chegaram a Guida e a mãe, a Gina e a mãe e o Luís,

que morava na casa em frente. Pouco depois, a Ti Hermínia bateu à porteira do

quintal, que abriu logo de seguida, chegando rapidamente à porta da cozinha.

- Dá licença, “se’nhá Lice”?

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A minha mãe chamava-se Alice, mas quando chamavam por ela, as

vizinhas juntavam as sílabas “senhora Alice” e ouvia-se “se’nhá Lice”. Era a

maneira de falar, naquela altura. Todos eram “Ti” – Ti Hermínia, Ti Ilda; e ao

chamar, todos chamavam “se’nha Ilda”; “se’nha Rosa”, etc.

- Entre, “se’nha” Hermínia, que a noite está gelada.

- Pois! E a lua leva circo, trás água no bico! Temos brevemente chuva,

de certezinha.

Olhámos para a lua. De facto, à sua volta havia um anel de neblina, um

círculo muito redondinho. Não era costume haver, à roda da lua, aquele anel.

Quereria significar chuva? Fazia sentido… Sentámo-nos à lareira e, como é

evidente, desbobinei à Ti Hermínia a aventura da Charica. A Gina esclareceu:

- Eua enoume! Pauedia um mondtdo. Eu vi-a munto bem. Mad a Dauica

não fudiu! Atacou-a cod dented. Dó fudiu quanda denhá Lide le deu cum pau

no lombo.

À lareira, enroscadinha como um novelo, a Charica abriu um olho,

olhando para a Gina, como quem diz:

- Não é “enoume”, é enorme! Não é “mondtdo”, é monstro! Qual Dauica?

Qual fudiu?! – E tornou a fechar os olhos, como se soubesse que os seus

protestos não serviriam de nada, porque a Gina tinha aquele defeito…e por

enquanto, nada havia a fazer.

- Ora não querem lá ver o raça da bichana! – Exclamou a Ti Hermínia.

Aquilo é de certeza a incarnação de alguma alminha perdida. Sim, sim. Só

pode ser. Uma gata preta…

Fiquei alerta. Vinha lá história. Todos silenciosos, olhávamos fixamente a Ti

Hermínia. Ninguém queria estragar a magia do momento.

- Pois fiquem sabendo que se fosse uma gata branca, podia muito bem ser

a princesa Bié.

- Conte lá se’nha Hermínia! – Implorámos.

- Queres que te conte um conto?

- Quero.

- Se queres, conto, se não quiseres, não conto. Queres que te conte um

conto?

- Sim!

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- Se queres, conto, se não quiseres, não conto. Queres que te conte um

conto?

- Por favor!

Bem! A Ti Hermínia tinha daquelas manias. Antes de contar um conto

fazia esta cantilena, tentando espicaçar-nos, para lhe rendermos homenagem.

Era um capricho muito engraçado, porque nos obrigava a dar as mais variadas

respostas. Às vezes erguíamos as mãos a implorar, outras dávamos-lhe um

beijo, outras vezes um abraço. Mas desta vez não sabíamos o que era que ela

desejava. Então o Zé teve uma brilhante ideia. Ajoelhou-se e pediu:

- Se’nha Hermínia, conte, por favor.

Este exagero valeu-lhe um ralharete da mãe:

- Bonito serviço! Suja as calças, que eu amanhã vou já a correr lavá-las.

Mas deu resultado. A Ti Hermínia endireitou os ombros, aclarou a voz,

inclinou a cabeça para o lado e começou a contar:

“Há muitos anos, num país muito distante, havia uma princesa muito

caprichosa. Queria que todos os criados e criadas estivessem sempre ao seu

serviço e aparecessem logo ao primeiro chamamento. Quando lhe traziam o

pequeno-almoço, estava sempre frio, ou quente demais; o almoço estava

salgado, com cheiro a esturro; o jantar era requentado e insonso. Punha

defeitos em tudo. Animal que se chegasse perto dela, era corrido a pontapé ou

à sapatada. Gatinhos e cachorros que no palácio viessem a parar, teriam de se

esconder muito bem e não aparecer à sua frente.

O rei, seu pai, bem tentava contrariar aquele mau feitio, mas a rainha,

sua mãe, achava-lhe imensa graça.

- É uma verdadeira princesa, a minha filhinha. Vais dar uma excelente

rainha. Lá saber mandar, já tu sabes muito bem.

- Magda! – Dizia o rei. Não deves incentivar a soberba da tua filha. Um

pouco de humildade e gentileza não lhe ficavam nada mal. Lembra-te que uma

boa rainha tem de ser caridosa, gentil e afável.

- Ora! A nossa filha precisa lá disso?! Ela nasceu para ser servida e para

reinar, Leandro!

E virava as costas ao marido, abraçando a filha, seguindo as duas de

mãos dadas e rindo da cara de preocupação do pai. Gabriela, a quem todos

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chamavam Bié, cresceu com aquele feitio, que se foi refinando e acentuando

com a idade. Aos dezasseis anos começou a frequentar bailes, conhecendo

assim muitos príncipes, que lhe iam fazendo a corte. Mas Bié, com o seu mau

feito, afastava qualquer um. Ninguém conseguia aturar o seu ar impertinente e

malcriado.

Mas um dia Bié apaixonou-se! Num baile, conheceu um belo rapaz que

lhe pediu para dançar e ela ficou en – can – ta – da”.

Nesta parte, a Ti Hemínia soletrou a palavra com ar zombeteiro, como

quem prevê que alguma coisa especial vai acontecer. E continuou:

“Gostou do seu porte: alto, moreno, com olhos muito escuros e ternos,

de sobrancelhas finas e arqueadas. Vestia um fato elegantíssimo e as suas

mãos, quando seguraram as dela, pareciam de cetim, de tão suaves e macias.

Os pais, ao verem os dois jovens enamorados, decidiram marcar a data

do casamento, porque naquele tempo eram os pais que tratavam dessas

coisas. Bié andava radiante e até parecia que o seu mau feitio se tinha

suavizado. Mas de vez em quando ainda tinha momentos de ira incontroláveis,

que deixavam as aias em pânico. Isto acontecia especialmente quando

experimentava o seu vestido de noiva, que ela queria que lhe caísse na

perfeição.

Chegou o dia do casamento e Bié estava belíssima: alta, muito loura, de

olhos azuis como duas turquesas, vestia um longo vestido cor-de-rosa, que lhe

realçava a pele do rosto. Bié resplandecia. Enquanto avançava pela nave da

igreja, sorria e os seus dentes muito brancos eram como pérolas sob a luz dos

candelabros. A sua mão esquerda, muito branca e delicada, com longos dedos

e unhas muito bem tratadas, estendeu-se para receber a aliança cravejada de

diamantes que, no seu dedo, emitia uma aura dourada. No final da cerimónia

os dois apaixonados partiram em lua-de-mel, de onde regressaram após um

mês de completa felicidade. Leandro amava Bié profundamente e esta

correspondia inteiramente ao seu marido. Durante algum tempo, nada parecia

ensombrar o amor daqueles dois. Nada? Bem…a certa altura alguma coisa

começou a correr mal”.

A Ti Hermínia fez uma pausa. Pegou na tenaz e meteu-a nas brasas,

provocando uma nuvem de pequenas estrelinhas luminosas, que se ergueram

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estralejantes e se sumiram no escuro. A mãe colocou um punhado de gravetos

no lume e logo de novo as labaredas se ergueram e iluminaram o rosto

engelhado da Ti Hermínia, que se baixara, com os olhos fechados e soprava

para avivar o fogo.

- E depois? E depois? – Perguntámos nós ansiosos.

- Depois? Morreram as vacas e ficaram os bois! – Respondeu ela

zombeteira.

Calámo-nos cautelosamente. Sabíamos que não podíamos desafiar a Ti

Hermínia numa altura destas. Se ela se aborrecia, lá se ia o resto da história. E

esta prometia!

“Certo dia, a velha ama de Leandro, que o criara desde menino, veio

visitá-lo e passar uns dias com eles. Leandro enchia a ama de mimos e

atenções, como é perfeitamente compreensível. Mas Bié, num acesso de

ciúme, misturado com a antiga arrogância, começou a dar ordens a Cidalina,

exigindo rapidez e eficiência. Isto sem o marido dar por isso, claro. A gatinha

de estimação de Cidalina levava sapatadas e palmadas constantemente. Tão

exigente e tão arrogante se revelou, que Cidalina teve de a castigar. Na

verdade, Cidalina era uma fada que tomara a seu cargo a felicidade de

Leandro. Virou-se para a jovem esposa, apontou-lhe o dedo e proferiu as

seguintes palavras:

- És arrogante, orgulhosa e presumida. Foste criada com muitos mimos

e não te ensinaram a humildade e a bondade. Vais para bem longe, onde terás

de mendigar o pão de cada dia. Serás uma gata, que vagueará pelo mundo,

em busca de perdão. Só voltarás a ser uma pessoa quando alguém te disser:

“Perdoo-te, Bié!”

Assim que acabou de proferir estas palavras, a jovem esposa

desapareceu e no seu lugar ficou apenas uma aliança cravejada de diamantes.

Quando se ia a baixar para a apanhar, entrou Leandro. Cidalina fingiu uma

certa aflição e informou:

- Ouvi um grande barulho e vim ver o que se passava. Apenas encontrei

esta aliança.

- Levaram Bié?! Quem poderá ter raptado a minha querida esposa?

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Leandro mandou imediatamente aparelhar os seus melhores cavalos e

juntamente com alguns criados partiu, em busca de Bié. Durante dias e noites

percorreu o reino de lés a lés, mas escusado será dizer que não viu rasto dela.

O pior era que ninguém a tinha visto, ninguém sabia de nada. Por fim

regressou a casa, cabisbaixo, muito abatido. O palácio parecia-lhe vazio, sem a

presença da sua amada e nada parecia consolá-lo.

- E Bié? Que terá sido feito dela? Podia contar-vos aqui todas as

peripécias que lhe ocorreram durante os meses que andou perdida pelo

condado, mendigando umas espinhas rançosas e uns restos gordurosos;

levando uma paulada aqui e uma pedrada acolá! Mas isso levaria mais outro

serão a contar! Se levava!

Ficámos especados a olhar para a cara da ti Hermínia, que parecia ter-

se transfigurado, iluminada pelos clarões das labaredas. A voz saía-lhe rouca e

meiga, arrastada, comovida, como se estivesse a sofrer as penas da criatura

castigada.

“Depois de muito calcorrear, Bié encontrou-se no mercado perto do seu

palácio, onde as criadas iam às compras. Ao reconhecer uma delas não

hesitou e esfregou-se-lhe nas pernas, enroscando-se e ronronando e miando

com meiguice, de vez em quando. A criada, que tinha bom coração, ao ver

uma gatinha branca, com os olhos azuis turquesa tão meigos, fez-lhe uma

festa. Bié não mais a largou e seguiu-a até casa. Chegadas aí, a gata soltou

um longo e triste “miau”. A criada, pensando que ela tinha fome, o que também

não era mentira nenhuma, deu-lhe um bocado de leite num caco. A gata

lambeu tudo num instante e sentindo-se “em casa” começou a percorrer todos

os cantos que tão bem conhecia.

Foi ter à sala de estar, onde tantas vezes se sentara a bordar e de

repente o seu coração acelerou como um tambor no circo, antes de o acrobata

saltar da corda. Na sua frente estava o seu adorado marido, sentado no seu

banquinho, olhando tristemente para o seu bordado inacabado. A gata

aproximou-se devagar e chegada junto dele soltou um “miau” tão triste, que

Leandro se assustou e levantou o rosto. Olharam-se fixamente e a gata gemeu

baixinho, “mmiiimm”! Leandro baixou-se e passou a sua suave mão pelo pêlo

macio da gatinha, que arqueou o lombo de prazer e começou a ronronar e a

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dar-lhe marradinhas nas pernas. Finalmente Leandro não resistiu e pegou na

gata ao colo, onde ela imediatamente se enroscou, consolada, dando-lhe

marradinhas no queixo e ronronando sem parar.

Cresceu em Leandro uma tal amizade pela gata que raramente se

separava dela. A gata, por seu lado, quase nunca saía de junto do seu “dono”.

Aos poucos Leandro notou que ela se excitava imenso sempre que ele

pronunciava o nome da sua esposa Bié junto de alguém. Assim que ele dizia

Bié, a gata soltava um “miau” profundo e corria imediatamente para junto dele.

Foi assim que Leandro deu o nome de Bié à sua gatinha de estimação.

Mas Bié sofria profundamente. Ela tinha ali o seu marido tão perto! Podia

tocar-lhe todos os dias, dar-lhe marradinhas, lambedelas…mas ele não sabia

que ela era a sua esposa. Continuava as buscas pelo reino, e pelos reinos

vizinhos. Todos os dias chegavam mensageiros sem notícias animadoras.

A certa altura Leandro mandou anunciar que ofereceria uma enorme

recompensa a quem lhe trouxesse a sua Bié. Escusado será dizer que

rapidamente começaram a chegar “caçadores de prémios”, cada um trazendo

consigo raparigas belíssimas. Leandro recebia-as, conversava com elas, mas

nenhuma era a sua Bié.

Ora bem! Bonita ia a carruagem! Dama para a esquerda, menina para a

direita, senhora para a frente, rapariga para trás…Leandro passava o dia de

roda daquelas mulheres todas. E quem é que não gostou nada da festa?

- A Bié! Respondemos nós em coro.

- Pois está visto que não gostou nadinha.

“Um dia, quando Leandro beijava a mão de uma delas ao despedir-se,

Bié saltou e deu uma valente sapatada nas pernas da pobre rapariga, que

começou aos gritos, com uma perna toda arranhada. Leandro, irritado com a

falta de educação da gata, deu-lhe uma palmada no lombo. A gata soltou um

“miau” assustado e magoado e fugiu. Correu, correu, para que ninguém visse

as lágrimas amargas que lhe caíam pelo focinho abaixo. Metia pena, a pobre

gata. Durante dois dias vagueou pelos muros que cercavam a propriedade

onde se situava o palácio e miava desalmadamente, com as lágrimas a cair

pelo focinho abaixo. A criada que a trouxera, levava-lhe leite num caco, mas a

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gata nem lhe tocava. Miava, miava e olhava fixamente para aquela sua amiga,

a única que tinha e que não a abandonava.

Mas…Leandro começou a sentir a falta da gata e começou também a

sentir remorsos de lhe ter batido. Ouvia-a miar ao longe e durante dois dias

resistiu à tentação de a chamar, até que não aguentou mais. Foi até ao local de

onde vinham os miados e avistou-a ao longe. Então começou a chamar:

- Bichinha! Bich..bich…bich…bichinha! Anda cá!

- Miaaauuu! - Respondia a gata. Mas não se chegava ao “dono”. Ficava

lá em cima do muro, a miar de tristeza e de medo. Isto durou uma tarde inteira.

Até que Leandro foi buscar uma escada, para ver se consegui tirar a gata de

cima do muro. Colocou a escada em posição e começou a subir por ela acima,

até chegar mesmo perto de Bié. Esta, quando o viu aproximar-se, deu uns

passos atrás, fugindo do seu alcance e desatou a chorar. As lágrimas caiam-

lhe pelo focinho abaixo e miava baixinho. Leandro ficou chocado com o

sofrimento da gata e por momentos vislumbrou a figura da mulher

desaparecida, sobre a da gatinha que chorava. O seu coração encheu-se de

uma ternura infinita e as lágrimas caíram dos seus lindos olhos negros. A gata

chegou-se para os seus braços e as lágrimas de ambos juntaram-se. Então

Leandro desceu da escada com a gatinha ao colo e antes de a colocar no chão

os seus lábios pronunciaram as palavras mágicas:

- Perdoo-te Bié!

Ia para lhe dar um beijo, mas o que Leandro encontrou não foi o pêlo

fofo da gatinha, mas sim a face rosada da sua querida Bié. Logo ali apareceu

Cidalina, que com um sorriso nos lábios esclareceu Leandro de toda a história.

Bié ficou curada da sua arrogância e nunca mais deixou de ser caridosa para

com as suas serviçais, especialmente para com Sara, a amiga dos dias difíceis.

Essa continuou durante muito tempo à procura da gatinha, sem a conseguir

encontrar, até que Bié trouxe para casa uma outra gatinha branca, de pêlo fofo

e olhos azuis, para recompensar a amiga”.

- E esta também era uma gata encantada? – Perguntou o palonço do Zé.

- Claro! Olha, gatinhas encantadas há por aí a dar com um pau, a cada

esquina. – Respondi eu no gozo.

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- Vamos, meninos, para a cama. Despeçam-se e toca a ir dormir, que o

pai está a chegar.

Demos um beijo a cada um dos presentes, que também se levantaram e

fomos dormir. No entanto, antes de me deitar fui fazer uma festa no lombo da

minha gatinha e disse baixinho:

- Perdoo-te Charica! …Mas nada aconteceu. Estava visto que aquelas

não eram as palavras mágicas para a minha gata.

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