Luanda – A vida na cidade dos extremos

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88 v 11 DE NOVEMBRO DE 2010 BAÍA DE LUANDA Barcos de luxo com vista para a marginal. A capital angolana é uma metrópole de cinco milhões de habitantes onde a maioria ainda vive em musseques ANGOLA MUNDO

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BAÍA DE LUANDA Barcos de luxo com vista para a marginal. A capital angolana é uma metrópole de cinco milhões de habitantes onde a maioria ainda vive em musseques

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LuandaA vida na cidade dos extremosEntre as barracas dos musseques e os condomínios de luxo, terão os portugueses encontrado na capital angolana o seu El Dorado? Como se vive na cidade mais cara do mundo, 35 anos após a independência de AngolaPOR ALEXANDRA CORREIA TEXTO E LUCÍLIA MONTEIRO FOTOS, ENVIADAS ESPECIAIS

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CONDOMÍNIO PRIVADO O luxo...

BELAS SHOPPING As compras das elites...

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MERCADO DO SAMBA... e o lixo

ROQUE SANTEIRO... e o centro comercial dos pobres

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A cidade mais cara do mundo não cheira a dó-lares. Por entre a névoa do cacimbo, a neblina própria da estação seca, sente-se o aroma do ci-

mento e do fumo dos escapes, a essência do lixo nos mercados e nos musseques, ou o perfume do país moderno, para os lados de Luanda Sul, onde nasce uma ci-dade nova de grandes avenidas, um esta-leiro com gruas e andaimes na paisagem. A banda sonora no ar é um concerto para buzina e berbequim. Estes sons, no entan-to, nunca bastariam para saciar o ritmo africano. Em Angola, depois do semba e da kizomba, é hora de ouvir kuduro. Canta Dog Murras, 33 anos, artista famoso: «Boa Angola para o chinês/Boa Angola para o português/Boa Angola para o libanês/Hum hum, hum hum para o angolano…»

Que é «hum hum» para a maior parte dos angolanos, percebe-se logo. O povo vive esmagado pelos preços do outro mundo. Como é que se deixa a barraca do musse-que quando se ganha 450 dólares (em pro-fissões como servente da construção civil ou motorista), se um apartamento T2 usa-do, num prédio sem elevador nem rede de saneamento, custa de renda, no mínimo, 3 500 por mês? É nestas casas do centro, ou nas vivendas do bairro de Alvalade, ou nos condomínios novos de Talatona, que vive grande parte dos portugueses. As condi-ções desafogadas, em contraste com as dos pobres, levam a imaginação a fantasiar rios de dinheiro. Mas nem tudo o que parece é.

Para se manter um estilo de vida de clas-se média, tal como o concebemos em Por-tugal, é preciso perder o amor às notas. No país dos muito pobres e dos muito ricos, já se encontram os «remediados», os «as-sim-assim», e os que «vivem bem» – as vá-rias tonalidades da classe média. Mas um litro de leite continua a custar 2,6 euros e beber um café deixa-nos três euros mais pobres. Ao menos a gasolina é barata, se-não esfumava-se o ordenado nas infinitas

horas de ponta, essas sim bem democrá-ticas a liquidar a paciência a todo o tipo de pessoas: aos que andam de jipe Toyota For-tuner com motorista e aos que balançam nos bancos rasgados das Toyota Hiace dos candongueiros.

Segundo as Nações Unidas, Angola ocu-pa o 146.º lugar, em 182 países, no índice de desenvolvimento humano: a esperança média de vida é de 48,1 anos; metade da po-pulação não tem acesso a água corrente e 54,3% vivem abaixo do limiar da pobreza. Ainda assim, é preciso assinalar a evolução – em 2003, um ano após o fim da guerra civil, 70% dos angolanos sobreviviam com menos de um dólar por dia.

«Vai chegar o tempo», diz Dog Murras, aliás Murthala Fançony Bravo de Oliveira, agora em conversa com a VISÃO, «é o tem-po a que eu chamo do 'tu para tu'. Como é? Agora que não há desculpas, isto não an-dou porquê?» A época em que o cidadão pede contas a si próprio… quando chegará também a Portugal?

A PAIXÃO DE ROSAA língua de Camões fala-se em Luanda, com dezenas de sotaques. O da própria cidade, o de Malanje, o de Benguela, o do Huambo, o brasileiro, o da Madeira, o do Porto, o das Beiras, o alentejano, o algarvio, o minhoto… Os pedidos de visto para Angola, por parte

Uma renda de 3 500 dólares mensais por um T2, num prédio sem saneamento nem elevador, é considerada um achado

MERCADO HISTÓRICO O Roque Santeiro foi arredado para um local a 18 km da cidade

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dos portugueses, aumentam todos os anos. A Direcção-Geral dos Assuntos Consulares calcula que, na antiga colónia, vivam 74 mil. Boa Angola para o português?

Sim, boa. Apesar dos pesares. Seja para aqueles que vão ganhar algum dinheiro e saem de lá antes que o diabo acabe de es-fregar o olho; seja para os que gozam, sa-boreando cada momento, a imensa paixão por África. Rosa ainda se lembra dessa pai-xão, mas está encurralada. «Se ganhasse o Euromilhões ia amanhã para Portugal. Mas diga-me: com 55 anos, o que vou eu fazer lá, no ramo das confeções?»

Encontramos Rosa Correia deitada na cama, a receber soro. Tem uma gastroen-terite que trata em casa, porque «se for para uma clínica, vai-se o ordenado de um mês». Paga pouco pelo pré-fabricado onde vive há mais de 20 anos, uma casa humilde, com dois quartos, à qual foi acrescentando divisões. Ao lado, um pré-fabricado com quatro quartos está alugado por 8 mil dó-lares. «Isto não é o El Dorado. Saio todos os dias de casa às 6 e 15 e regresso às 20 e 30, sem parar para almoçar. Estou a ganhar bem, mas tenho 25 anos de Angola. Quem vem para aqui ganhar 5 mil dólares achan-do que é dinheiro engana-se», avisa.

Rosa chegou a Luanda em 1985, oriunda da Póvoa de Varzim, «solteira e boa rapari-ga», cheia de sonhos revolucionários. «Era do PCP e pensava que vinha ajudar a cons-truir uma sociedade nova.» Em menos de um ano, deixou de acreditar no comunismo. «O marxismo-leninismo é como a Bíblia: lida é muito bonita, mas na prática nada se aplica. Foi o que aprendi aqui», conta. Em África, conheceu o seu marido, Vítor, 60 anos, também expatriado, e teve uma filha, atualmente a licenciar-se em Portugal.

Trabalhavam ambos na mesma empresa de confeções. Agora, Vítor tem o seu pró-prio negócio, de transporte de inertes, e Rosa retira um belo ordenado da gestão de três supermercados e um armazém. Quem olhar para a sua moradia de Vila do Conde vai achar que é rica: quatro suites, três sa-las, um salão com 200 metros quadrados, piscina, um grande jardim… Para gozar quando chegar a idade da reforma.

Entretanto, suspira. Se não sair de casa às 6 da manhã, demora três horas para per-correr quatro quilómetros; já foi assalta-da três vezes com uma arma apontada à cabeça; tem de pactuar com a corrupção «institucionalizada», pois sem a «gaso-sa», seja em dinheiro ou em géneros, «não se faz nada»; e nunca, nunca se habitou à

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miséria, às crianças de rua, aos mutilados, a uma certa cultura que permanece, de assegurar a sobrevivência para hoje que amanhã logo se vê.

A paixão, no entanto, não ficou presa no passado. O casal tem um grupo de amigos – chamam-se os Empoeirados – e, nos fins de semana prolongados, agarram nos jipes para mergulhar na paisagem, como cam-pistas. As praias de Benguela, as dunas do deserto do Namibe até à foz do Cunene… «Continuo a adorar África», resume Rosa, no país das contradições.

ADEUS AO ROQUE SANTEIROA hora de ponta, que dura todo o dia, com poucos e breves alívios, fez florescer um negócio: o dos vendedores da estrada. En-

tre o amontoado caótico de carros, sem delimitação de faixas de rodagem, naquele para arranca que é mais para que arranca, pode abastecer-se toda a despensa, encher o guarda-roupa e ainda decorar a casa. Cada vendedor desfila exibindo o seu pro-duto: comida, bebidas, uma cadeira, umas calças brancas, um chapéu de equitação, pasta de dentes, corta unhas, brinquedos, panelas, CDs com os discursos de Savimbi e tapetes, muitos tapetes farfalhudos. Uma autêntica loja chinesa ambulante.

As relações com a China inundaram também o histórico mercado Roque San-teiro com todo o tipo de artigos. O Roque, assim batizado devido ao sucesso da tele-novela da viúva Porcina, deu este verão os últimos suspiros. Era um mercado imenso,

CONTRASTES Este prédio no centro (à esquerda), inacabado desde o tempo colonial, é um musseque em altura; e a nova Luanda Sul (em cima) dos condomínios privados, onde um apartamento T3 custa 900 mil dólares

ao ar livre, com tapa sóis de zinco por cima de cada banca, criando um labirinto onde estavam expostos milhares de telemóveis, baterias e carregadores made in China e longas filas de extensões de cabelos lisos made in Índia. Tudo com vista para o porto de Luanda, um espaço de apetite para os investidores imobiliários.

Para os terrenos do mercado – arredado para Panguila, a cerca de 18 quilómetros da cidade, mas com condições higiénicas que irão afastar, finalmente, as moscas da

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abrigo de uma linha de crédito chinesa, em troca de petróleo angolano.

O negócio da construção chega, no en-tanto, para todos. Zonas nobres como a marginal, em frente da baía, ou o passeio à beira-mar da ilha de Luanda (na verdade uma península onde se encontram os clu-bes de praia da moda) estão a ser recupe-radas pelas portuguesas Mota Engil e So-ares da Costa (a marginal) e pela brasileira Odebrecht (a ilha).

ABISMOS SALARIAISA nova via rápida que vai para Luanda Sul é bem um retrato dos contrastes da cidade. De um lado, os musseques, os seus mon-tes de lixo e as poças de lama; do outro os condomínios junto da praia, com arame farpado e guardas à porta.

Quem tem dinheiro não vai aos merca-dos de má fama. Mete-se na via rápida e estaciona no shopping de Belas, o primei-ro centro comercial da cidade. Ali podem comprar-se óculos de sol Dior e polos da Gant, pelo triplo do preço que custam em Portugal. Perto, fica Talatona, zona que já foi campo e mato, de grandes embondei-ros, onde os angolanos iam caçar coelhos e veados, e agora tem condomínios em lar-gas avenidas de um só sentido, com faixas de rodagem assinaladas.

O empreendimento Dolce Vita ainda está em construção. Mas o andar modelo desvenda logo como será a «vida em gran-de estilo» que promete o cartaz publici-tário. Ginásio, spa, restaurante, creche, piscina e segurança 24 horas por dia, num total de 32 prédios, cada um com sete an-dares. Um T3 custa 920 mil dólares.

Sérgio Loureiro, 33 anos, natural de Penafiel, ajuda a erguê-los. É um dos 300 portugueses que a empresa Prebuild le-vou para uma obra que ocupa mais de mil trabalhadores. Formado em engenharia geotécnica, estava a trabalhar na Madeira, na fiscalização de obras, a recibos verdes e a ganhar 1 300 euros por mês. Agora ganha 4 mil como técnico de segurança e contro-lo de custos. Além da casa paga, do carro e das três viagens a Portugal por ano. «Vim há quatro meses com a ideia de ficar dois anos, mas posso ficar a vida toda. Aqui não me preocupo com o dinheiro», garante.

Sérgio mostra-nos a sua casa, no estalei-ro central do grupo Prebuild. É um T1 pré--fabricado, com ar condicionado, alinhado com outras 80 casas, onde 16 mulheres fazem a limpeza. Carlos Romão, 46 anos, também tem lá o seu cantinho. Deixou a

carne – estão prometidas infraestruturas para requalificar o bairro pobre da Sambi-zanga, onde José Eduardo dos Santos e Pe-dro Mantorras se fizeram homens. Apesar disso, o fim do Roque gerou polémica. Tal como a destruição de alguns musseques, porque enquanto os novos prédios de re-alojamento não estão prontos (longe do centro, nos arredores da cidade), as pes-soas são metidas em tendas de campanha, onde podem ficar um ano.

Os subúrbios são o paraíso da constru-ção civil, quilómetros e quilómetros de tapumes com carateres chineses. Entre o povo começam a aparecer anedotas sobre os produtos de «fantasia» dos chineses e não há quem se esqueça do novo Hospital Geral de Luanda, que foi evacuado em ju-lho, quatro anos depois de ter sido inaugu-rado, porque ameaçava ruir. Uma obra da China Overseas Engineering Group Com-pany, que custou 8 milhões de dólares, ao

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mulher, de quem nunca se tinha separa-do mais de dois dias, em Loures, e foi para Angola para escapar ao desemprego. «Era encarregado geral de uma empresa de construção civil, que deixou de me pagar e está à beira da falência», conta. Ganhava 1 500 euros líquidos. Agora vive com os 900 dólares que lhe dão de subsídio por es-tar deslocado. Pois não precisa de tocar no ordenado mensal de 4 160 euros, que vai diretinho para uma conta em Portugal.

Estes salários não são para todos. Na mesma obra, os angolanos serventes le-

TEMPO DE LAZER O desporto dos desfavorecidos passa pela ilha do Cabo (em cima). Os abonados podem escolher o spa da marginal de Luanda

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vam para casa 450 dólares (ou 150 se ain-da forem aprendizes). O abismo já não é ditado pela cor da pele, como no tempo da outra senhora; está na qualificação. As estatísticas, em Angola, são praticamente inexistentes. Segundo a UNESCO, a taxa de literacia era de 70%, em 2008, e apenas 57% das mulheres sabiam ler e escrever. A constatação, no entanto, é geral: o país tem grande carência de quadros, do licen-ciado ao mestre carpinteiro, por exemplo. Na fúria construtora de Angola, também se têm feito escolas e hospitais, é certo. Mas onde estão os professores e os médicos?

UMA ESCOLA PORTUGUESAA professora Leonor Sousa, 48 anos, é di-retora na Escola Portuguesa de Luanda,

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onde a lista de espera quase duplica o nú-mero de alunos inscritos: cerca de 1 400, do pré-escolar ao 12.º ano, no último ano letivo. A instituição é gerida pela Coope-rativa Portuguesa de Ensino em Angola e o edifício pertence ao Ministério da Edu-cação luso. Os seus preços são acessíveis comparados com os praticados pelas es-colas privadas – os alunos portugueses, a grande maioria, pagam cerca de mil euros por quadrimestre. Mas as condições po-diam ser melhores. As salas de aula são iguais às das escolas portuguesas, mas sen-

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Portugueses em Angola1 Trabalhadores de uma empresa de construção civil: Sérgio Loureiro, Manuel Mártires, Gonçalo Mendes e Carlos Romão (sentado); 2 A família Martins: António, empresário, e a sua mulher Helena, decoradora, com o filho João e a namorada deste, Margarida; 3 Leonor Sousa, diretora da Escola Portuguesa de Luanda; 4 Luís Castilho, dono do clube Chill Out, e Vânia Vilela, apresentadora de televisão; 5 Rosa Correia e o seu marido Vítor vivem em Luanda há 25 anos; 6 o casal António Moreira, contabilista, e Filomena Oliveira, professora

O novo Hospital Geral de Luanda, construído por uma empresa chinesa, foi evacuado quatro anos após a inauguração – estava em risco de ruir

te-se a falta de instalações desportivas e de balneários.

Mesmo assim, a instituição é a predileta dos portugueses. Não se compara com as escolas públicas de Luanda, algumas ainda em fase de «apetrechamento», ou seja, de aquisição de carteiras e material escolar; outras com condições higiénicas deficien-tes. No entanto, o crescimento da oferta de ensino público tem levado ao encerra-mento de algumas escolas privadas.

Há 20 anos em Angola, Leonor, a dire-tora, natural de Chaves, confessa ter difi-culdades em contratar professores portu-gueses, uma vez que o ordenado acaba por não ser atrativo, embora inclua também um subsídio, tendo em conta o custo de vida. «Há quem tenha dois empregos para ter dois salários», conta. Não é o caso de Filomena Oliveira, 49 anos, professora de Filosofia, porque, juntamente com o mari-do, António Moreira, 50 anos, contabilista na Soares da Costa, leva para casa cerca de 11 mil dólares por mês.

O casal, que chegou a Angola há 12 anos, vive no centro, num T2 de 1971, sem eleva-dor, pelo qual paga 3 500 dólares por mês. Já se tinham cansado a galgar a um sétimo andar, agora desceram para um segundo. «É preciso um certo espírito de adaptação, mente aberta. África é para ser vivida dia a dia; o espírito de vir sacar o máximo di-nheiro não funciona aqui, entra em choque com a cultura», explica António. A grande diferença, para Filomena, está na forma como vivem em família. «Estamos juntos ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, algo impensável em Portugal.»

Almoçar em casa ainda faz parte dos hábitos de muitos angolanos, apesar do trânsito. E essa é a razão pela qual a hora de ponta se estende ao meio-dia.

NOITES DE LUANDAQuinta-feira à noite, há música ao vivo no Miami Beach, um clube de praia da moda, na ilha de Luanda, do qual Isabel dos San-tos, a filha mais velha de José Eduardo dos

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AS PESSOAS QUE VIVEM nos musseques de Luanda ainda hoje amaldiçoam o filme brasileiro Cidade de Deus, por ter dado ideias aos gangs, que resolveram imitar as crueldades dos maus da fita. No Rangel, até há bem pouco tempo, os gangs, bem armados, dominavam a população e obrigavam os músicos de kuduro a incluir nas suas letras os nomes dos chefes da bandidagem, ora nos coros ora no refrão. Até que a polícia perdeu a paciência e os mandou para o outro mundo, com uma bala na cabeça. DJ Killamú, 27 anos, produtor musical, e Mestre Ara, 30, compositor, ambos com dois filhos, lembram-se bem desse tempo. No seu estúdio, uma sala de 2 por 3 metros, com um computador e um microfone, os jovens exibem os seus discos de sucesso, com temas cantados pelos bem conhecidos Puto Prata, Carina Fofandó e Noite e Dia. Apesar de o seu trabalho andar nos programas de televisão de maior audiência, os dois artistas permanecem na sombra e sustentam a família com biscates e business. Mestre Ara é autor de mais de 50 êxitos de kuduro, mas nunca recebeu direitos de autor. Tony Amado, 36 anos, natural de Malanje, é, por outro lado, nome grande em Angola – foi o homem que inventou a palavra kuduro, o «pai» de um género musical amaldiçoado pelas elites, por representar a voz do gueto. Mas também ele passou por maus bocados. «O meu problema foi não ter papas na língua. Por exemplo, dizia assim: 'Angola só tem três famosos: Tony, Zedu [José Eduardo dos Santos] e Savimbi… Isso não caía bem», conta. No meio das gravações do seu novo disco, Tony, o histórico do kuduro, quis dar a conhecer estes dois jovens do musseque, à procura de uma vida que faça justiça ao seu talento.

… e no condomínio com Dog MurrasUm artista privilegiado que é a voz do gueto

NO KUDURO, Dog Murras, 33 anos, é o único a cantar temas de intervenção social. A apontar o dedo, a denunciar injustiças, a falar das dores dos pobres. «Em todo o lugar vejo 'letra', em cada cidadão a dormir na rua ou de faca na mão, tudo é matéria de trabalho. Quem vai falar por eles? Se falar verdade é pecado, procurem-me no inferno», afirma. Em Luanda, à boca fechada, diz-se que Dog «falou de mais», daí as temporadas que passa no Brasil. Mas o cantor desmente. «Nunca tive problemas aqui. Nem pensar. E se tivesse teria dito. A minha esposa é brasileira, tenho investimentos no Brasil e tenho uma casa em Fortaleza», justifica. A vivenda onde nos recebe, num condomínio em Luanda, não foi o kuduro que lha deu – a sua empresa de construção de piscinas tem mais peso no rendimento. Dog não é menino de musseque, cresceu ao lado, no antigo bairro Salazar, filho de uma família da classe média. Estudou Belas-Artes na África do Sul e lá desenvolveu a sua paixão pelo reggae e pelo hip hop, géneros que o inspiraram nas letras socialmente comprometidas. A preparar um novo disco, Angolanidade, diz ter a preocupação de «passar informação» nas suas músicas. «O maior poder do mundo é a informação. Não é só falar, porque até papagaio fala. É preciso conhecimento», remata.

No musseque com Tony Amado…Viagem ao Rangel com o homem que inventou o kuduro

Santos, é sócia. As classes altas divertem- -se ali, à beira-mar, entre caipirinhas e pal-meiras. As classes baixas não precisam de pagar entrada para terem farra: basta uma aparelhagem numa rua de um musseque, sardinhas e cerveja para que o fim de sema-na seja uma delícia.

Quinta-feira é também noite grande no Palos, discoteca famosa, noite latina de salsa, rumba, minissaias rodadas e decotes generosos. Mas a sexta-feira é no Chill Out. Neste espaço, de inspiração marroquina, um jantar sem abusos custa 75 dólares por pessoa. Mais tarde abre a pista de dança,

com vista para o mar. O clube de Luís Cas-tilho, 28 anos, neto de portugueses, nasci-do na Namíbia, mas criado em Lisboa, é de topo. Nas suas festas, animadas por djs que leva da Europa, só entra quem deixar 100 dólares à porta. «Tenho o bar de referência em Luanda. Em Portugal não conquistava o que conquistei com esta idade», acredita.

A terra das oportunidades… uma faceta de Angola sempre presente nas conversas com os portugueses. E na vida de Vânia Vi-lela, 30 anos, apresentadora do magazine sociocultural Chocolate, na TV Zimbo, o primeiro canal privado do país. «Aqui há

muitas oportunidades profissionais que se concretizam muito rapidamente», diz. Vâ-nia é angolana, mas cresceu em Portugal. Licenciou-se em Comunicação Social e nem sonhava em ir viver para Luanda. Até que conheceu Luís, numa noite de música africana, numa discoteca do Porto...

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Licenciado em Gestão Hoteleira, Luís trabalhava a recibos verdes, organizando bares em festivais de verão ou coordenan-do ações de promoção quando o pai o cha-mou para abrir o Chill Out, em 2005. Há já alguns anos que o seu pai tinha regressado a Angola, depois de a família ter perdido os seus negócios, em 1975. De modo que o rapaz já tinha passado longos períodos de férias em Luanda, ainda antes do fim da guerra, onde, sem parabólica, sem espaços

noturnos e sem centros comerciais, o tem-po custava a matar.

Agora a sua grande ambição é interna-cionalizar o Chill Out, ficando o mundo a saber que a «casa-mãe» se situa na capital angolana. O empresário abdicou dos seus amigos, do seu estilo de vida em Lisboa, mas encontrou outras compensações. Tem um bom rendimento, faz férias em Miami ou Nova Iorque, e assiste à constru-ção de um país. O país de Vânia. Na confu-

são de Luanda, a apresentadora descobriu que, no Porto, vivera «como uma prince-sa». Mas aprendeu a desenrascar-se. «Aqui é preciso muito pouco para se ser feliz.»

‘UM ATO DE AMOR’Helena Martins, 54 anos, é que diz já não ter idade para lhe bastar o «amor e uma cabana». Certo é que a sua vivenda em Al-valade está muito longe de se parecer com uma cubata. O que a decoradora quer dizer é que sente a falta dos eventos culturais e dos desafios profissionais. Na sua área, batalha-se muito pela conquista do mer-cado e, apesar da evolução do comércio em Luanda, Helena continua a abastecer o seu show room nas feiras de design internacio-nais. Nascida no Uíge, foi para Lisboa em 1975, com 18 anos. «Sou angolana de cora-ção e portuguesa por opção. Viver aqui é um ato de amor», diz.

Amor pelo país e amor pelo seu mari-do. Porque os olhos de António Martins brilham quando fala da cidade que o viu

NOITES DOCES DE LUANDA Música latina na discoteca Palos (em cima) e o público de um concerto de Paulo Flores no seleto clube/restaurante Miami Beach (ao lado)

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À frente da cadeia de supermercados Martal ( juntamente com outros sócios), que inclui seis estabelecimentos, mais três com abertura prevista, um centro de distribuição e dois cash&carry, António fala das melhorias do seu país: «Todas as economias de guerra são caras, mas os preços estão agora a estabilizar. Há mui-to Estado, o que é próprio de uma socie-dade nova – se não for o Estado a fazer as infraestruturas, quem as faz?»

Em casa dos Martins ainda vive o fi-lho mais novo, João, de 17 anos, que nos

A cidade milionáriaA maioria dos seus habitantes vive com menos de dois euros por dia, mas o preço de um hambúrguer pode ultrapassar os quinze euros. Valores que convertem a capital angolana na mais cara do mundo, segundo um estudo da consultora Mercer sobre o custo de vida em 214 cidades do planeta. Lista com as 10 mais e Lisboa

1 Luanda • Angola2 Tóquio • Japão3 N’djamena • Chade4 Moscovo • Rússia5 Genebra • Suíça6 Osaka • Japão7 Libreville • Gabão8 Zurique • Suíça8 Hong Kong • China10 Copenhaga • Dinamarca72 Lisboa • Portugal

Relações económicasPortugal e China são os principais países onde Angola compra os seus produtos

População total 18,5 milhõesPopulação de Luanda 4,5 milhõesPIB ‘per capita’ 4 500 dólaresTaxa de inflação 13,7%Principais clientes

China; EUA; França; África do Sul; Canadá; Brasil

Principais fornecedores

Portugal; China; EUA; Brasil; África do Sul; França

Principais produtos exportados

Petróleo e derivados; Pedras e metais preciosos

Principais produtos importados

Máquinas e aparelhos mecânicos; Veículos automóveis

Empresas portuguesas em Angola

800Investimento de Portugal em Angola

Construção 55,5% Comércio 22,2%

Atividades financeiras 17,3 %FONTE Aicep

nascer, há 57 anos. «É a melhor terra do mundo. De modo algum troco viver aqui por uma vida em Portugal. Sinto-me em casa.» Quando o pai perdeu o seu «peque-no império colonial» de produção e distri-buição de bens alimentares, António tinha 22 anos. Em Portugal teve empresas de dis-tribuição de congelados. Em 1991, voltou a Angola. «Estava igual, com exceção de que não tinha gente nem havia quase nada para comer. A partir daí, passei a vir todos os anos até me radicar, definitivamente, em 2002», descreve.

desvenda os seus planos para o futuro: tirar o curso de Gestão em Portugal e re-gressar a Luanda. «Já é pon-to assente que volto. Aqui há muito mais oportunidades, está tudo por construir.» A sua namorada, Margarida, 26 anos, concorda. Formada em engenharia civil, chegou este ano a Angola e está a fis-calizar a construção de uma das maiores torres de es-critórios, na marginal. «Em Portugal nunca me dariam uma torre deste tamanho para fiscalizar, logo no iní-cio da carreira. Começaria provavelmente por arquivar papéis atrás de uma secretá-ria», resume. Já para a maior parte dos angolanos de Luan-

da o grande desafio está ligado à arte do desenrasca.

A 'GASOSA' ENTRANHADAOutra boa fonte de emprego é a seguran-ça, seja privada, à entrada dos condomí-nios, seja pública, militar ou policial. Mas muitos agentes também fazem pela vida, sempre à coca da gasosa (pagamentos por baixo da mesa). O estacionamento caótico é uma mina. Para quê pagar 800 dólares ao reboque para se recuperar o carro, quan-do 200, dados a uma autoridade, fazem o mesmo efeito?

Para a população, incluindo os portu-gueses, entrar ou não no esquema da ga-sosa não é uma opção – mais cedo do que tarde, vai ser impossível escapar-lhe. De acordo com a organização Transparency Internacional, Angola está entre os 20 paí-ses mais corruptos do mundo, ocupando o 162.° lugar (em 180) no índice que mede a perceção da corrupção nos serviços públi-cos e na sociedade em geral.

«O próprio regime habituou as pessoas a fingir que trabalham e o Governo a fin-gir que lhes paga. Então, passa-se mais tempo a criar esquemas de corrupção, em que os mais fortes sobrevivem e os mais fracos desaparecem. É uma espé-cie de darwinismo económico», descre-ve Rafael Marques, 39 anos, jornalista, que publica as suas investigações no site makaangola.com, uma dor de ca-beça para Eduardo dos Santos. «O Pre-sidente tem uma situação dúbia: por um lado institucionalizou a corrupção;

OBRAS E TRÂNSITO A hora de ponta é democrática: afeta o rico e o pobre

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por outro, é refém dessa política. A base do seu poder já não é o poderio militar, mas a capacidade de corromper a socie-dade. A questão dos vistos ou das dívi-das às empresas mais não fazem do que tornar o investidor estrangeiro depen-dente da nomenclatura», denuncia.

Justino Pinto de Andrade, 62 anos, combatente histórico da luta pela inde-pendência, mandado para o Tarrafal por Salazar, ri-se quando fala da nova Lei da Probidade, principal instrumento do combate à corrupção, que Eduardo dos Santos tem assumido nos seus recentes discursos. «Não acredito que o Al Capo-ne dê um bom juiz. Nenhum deles tem moral para julgar os outros. Sob a alçada da lei só caiu peixe miúdo. Veja-se o caso do Banco Nacional de Angola (de onde foram desviados 137 milhões de dólares): apanharam o porteiro e o estafeta, mas não vai cair seguramente um ministro», ironiza o diretor da Faculdade de Econo-

Em 1990, o Sr. Carlitos foi um dos fun-dadores do Movimento Nacional Espontâ-neo, de apoio à candidatura de José Eduar-do dos Santos à Presidência da República. Não é um movimento meramente político; é sobretudo desportivo, pois segue a sele-ção de futebol para todo o lado. Com ele vamos à ilha do Mussulo, a dez minutos de barco, vazia na época do cacimbo, quando os resorts aproveitam para fazer pequenas obras. As classes mais baixas também che-gam lá, mas essas montam tendas na zona mais despovoada da ilha.

As elites passam férias na Europa, no Brasil ou nos Estados Unidos, mas tam-bém têm casas no Mussulo, onde Eduardo dos Santos está atualmente a construir a sua (as mais baratas custam meio milhão de dólares). Na paisagem de palmeiras e coqueiros, destaca-se uma casa colorida, que foi de Agostinho Neto, o tal Presidente que dizia, referindo-se à fome: «Saco vazio não fica em pé.»

Boa Angola também para alguns ango-lanos… Deixamos a Luanda dos extremos ainda com o «kuduro de intervenção», de Dog Murras, na cabeça. O tema deu que fa-lar e chama-se Angola, Bué de Caras (quem sabe se ironizando com a revista Caras An-gola, de Tchizé dos Santos, outra filha do Presidente, onde semanalmente desfilam as elites): «Angola do petróleo, do diaman-te e muita madeira/Angola do paludismo, febre tifoide e muita diarreia… Angola dos herdeiros que não fazem nada e têm bué de massa/Angola do kota honesto, que bumba bué e não vê nada.»

ANGOLA MUNDO

Todos acabam por ter de desembolsar a «gasosa», o pagamento da corrupção

mia da Universidade Católica de Luan-da e líder do recém-criado partido Bloco Democrático.

'BUÉ DE CARAS'Alberto Arsénio Sabino, 50 anos, mais co-nhecido por Sr. Carlitos, não ia gostar nada desta conversa se a ouvisse. Homem do MPLA, ex-combatente, está convicto do esforço no combate à corrupção: «O cerco está montado. O Presidente tomou conta de tudo e agora é muito difícil ser corrup-to. Já brincaram de mais. Quem aprovei-tou já não aproveita mais. Agora é preciso justificar os sinais exteriores de riqueza», garante.

PASSADO E PRESENTE Uma década separa estas imagens (ao lado, a Luanda de 1999). Hoje, os habitantes dos musseques são empurrados para os subúrbios

ANTÓ

NIO

XAV

IER