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LUCIANNE SANT’ANNA DE MENEZES
PÂNICO: EFEITO DO DESAMPARO NA CONTEMPORANEIDADE.
Um estudo psicanalítico.
São Paulo 2004
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LUCIANNE SANT’ANNA DE MENEZES
PÂNICO: EFEITO DO DESAMPARO
NA CONTEMPORANEIDADE. Um estudo psicanalítico.
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
Orientadora: Profª. Drª. Ana Maria Loffredo
São Paulo
2004
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Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca
e Documentação do Instituto de Psicologia da USP
Menezes, L. S. Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade. Um estudo psicanalítico / Lucianne Sant’Anna de Menezes. – São Paulo: s.n., 2004. – 199p. Dissertação (mestrado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Orientadora: Ana Maria Loffredo. 1. Pânico 2. Psicanálise 3. Psicopatologia 4. Subjetividade 5. Cultura 6. Freud, Sigmund, 1856-1939 I. Título.
Capa: Ym Estúdio Gráfico
Francis Bacon, Three Studies for a Crucifixion, 1962.
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a minha mãe, Lucy Mary, por seu amparo, amor e generosidade,
que sempre me estimulou neste caminho, toda minha gratidão;
a minha avó Luiza (in memorian), por sua doce e eterna presença,
que no seu silêncio me ensinou sobre “as dores da alma”;
a querida amiga Márcia, que tudo acompanhou, por sua cumplicidade e presença sublime,
a quem devo constante incentivo e interlocução, sem os quais teria sido muito difícil toda esta realização.
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RESUMO
MENEZES, L. S. Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade. Um estudo psicanalítico. São Paulo, 2004. 199p. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
A proposta geral do presente estudo é contextualizar o pânico, na
atualidade, a partir do referencial psicanalítico freudiano. Nesse sentido, o
objetivo principal deste trabalho é articular o que Freud denominou de “mal-estar
na civilização” às psicopatologias contemporâneas, examinando a relação da
incidência da sintomatologia do pânico com os modos de subjetivação na
atualidade. A noção freudiana de desamparo (Hilflosigkeit) foi tomada como
operador metapsicológico fundamental para delimitar as bases psicopatológicas
do fenômeno do pânico segundo uma perspectiva psicanalítica. Tendo em vista o
exame das condições peculiares do desamparo na contemporaneidade, é
enfatizada a face do desamparo relativa à falta de garantias do sujeito sobre seu
existir e sobre seu futuro. Dessa maneira, problematiza a subjetividade na cena
social atual que, diante do deslocamento da ordem paterna como referencial
central, provoca efeitos nos modos de subjetivação, tendo suas implicações nos
laços sociais e nos sintomas. Sob esse prisma, há um processo de produção social
de determinadas psicopatologias, como é o caso do pânico, que encontra as suas
condições de possibilidade no espectro de valores que sustenta a sociedade atual.
Nesse contexto, insere-se a hipótese segundo a qual o pânico pode ser entendido
como um modo que o sujeito encontrou de se organizar na sociedade
contemporânea, respondendo aos subsídios oferecidos pela organização social
atual, para que ele se sustente além da cena familiar. O pânico seria, por um lado,
uma manifestação clínica do desamparo e, por outro, uma das expressões do mal-
estar que marca, na atualidade, a relação do sujeito com a cultura.
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ABSTRACT
MENEZES, L. S. Panic: an effect of helplessness in contemporary society. A psychoanalytical study. São Paulo, 2004. 199p. Master’s Thesis. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
This study attempts to bring panic to the context of today’s society, in a
Freudian psychoanalytical approach. The main objective is to articulate what
Freud called “civilization and its discontents” to contemporary psychopathologies,
examining the relationship between the incidence of panic symptoms and
contemporary ways of subjectivity construction. The Freudian approach of
helplessness (Hilflosigkeit) was used as a main metapsychological concept to
define psychopathological basis of panic phenomena, in a psychoanalytical
perspective. Considering the peculiar conditions of helplessness on contemporary
society, the helplessness aspect related to the subject’s lack of certainty about his
existence and his future is emphasized. So, this study discusses the subjectivity in
a contemporary social scene, in face of current displacement of paternal order as a
central reference and its consequences in social links and symptoms. Under this
light, there is a process of social production of some psychopathologies, as is the
case of panic, that finds the conditions to emerge in the spectrum of values upon
which contemporary society is based. In this context it might be introduced the
hypothesis that panic may be understood as a way, used by the subject, to
organize himself in contemporary society, as an answer to the information
provided, so that he can manage himself beyond the familiar scene. So panic
would be, on one hand, a clinical feature of helplessness and, on the other hand,
one of the features of “civilization and its discontents” that marks the relationship
between the subject and his culture.
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AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todas as pessoas que, direta ou indiretamente,
colaboraram para que eu pudesse realizar este trabalho.
Aos professores Eda Bomtempo, Maria Cristina Kupfer e Luis Carlos
Nogueira (in memorian), que me abriram as portas da Universidade.
Especialmente, a Professora Ana Maria Loffredo, que se interessou por
minhas idéias e com rigor, amor, paciência e confiança, orientou-me neste
trabalho, sou sinceramente grata a seus ensinamentos e a essa experiência ímpar.
Aos Professores Daniel Delouya e Miriam Debieux Rosa, pela leitura
cuidadosa, acolhimento e sugestões fundamentais apresentadas no exame de
qualificação.
Aos psicanalistas Iolanda Toledo e Durval Mazzei Nogueira Filho, pelo
carinho e interlocução ao longo dos anos que foi de suma importância para meu
caminho na psicanálise.
Ao amigo e colega de profissão Luis Eduardo Aragon, que sempre
respeitou e incentivou meu trabalho, por seu carinho e companheirismo e por
“nossas conversas” sobre subjetividade ao longo desses anos, um germe deste
estudo.
Aos colegas do NAAP e da Comissão Editorial da Revista Boletim (Depto
Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae), António Sérgio
Gonçalves, Denise Vieira, José Carlos Garcia, Lineu Silveira, Margareth
Marques, Margarida Dupas e Marina Ribeiro, pela expectativa sempre confiante.
Agradeço também ao Prof. Emir Tomazelli por seu interesse e disponibilidade.
A amiga e companheira de consultório Cláudia Beltran do Valle, por seu
carinho, interesse e apoio em momentos delicados, assim como pela versão para a
língua inglesa, tão bem realizada, do resumo desta pesquisa.
A amiga e companheira de consultório Taeco Toma Carignato, por sua
continência carinhosa, paciência e interlocução importantes para este trabalho.
A Professora Mônica Udler Cromberg, velha amiga, pelas conversas a
respeito da polissemia do termo Panik e pela dedicada revisão ortográfica deste
estudo. Shukran.
Ao amigo Dinoval Carignato, pela paciência e dedicação na confecção da
bela capa deste trabalho.
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Aos colegas da Faculdade Morumbi Sul, em especial aos Professores Jorge
e Laurelli pelo apoio, compreensão e confiança e aos Professores Emmanuel,
Izabel, Moisés, Shan, Silvana e Rebeca pela torcida e interesse.
Ao meu saudoso avô, Orozimbo Alves de Sant’Anna (in memorian),
minha referência maior na vida e com quem aprendi o gosto por sentar numa
escrivaninha, dedico este momento de gratidão.
Ao meu querido pai, José Burgos de Menezes Filho, por sua presença,
amor e incentivo em todos os momentos, muito obrigada.
Ao meu irmão, José Renato Sant’Anna de Menezes (Maminho) agradeço a
expectativa confiante e carinhosa. E aos meus amados sobrinhos, Renatinho e
Luciana, pela leveza e alegria de viver.
A querida Tia Ofélia P.B. de Menezes, uma mãe para mim, sou muito
grata pelo carinho e incentivo.
A querida “irmã”, Marta Tornavoi, por seu interesse, apoio e respeito ao
meu trabalho.
As “eternas” Adriana Godoy, Bia Machado, Lucia Helena Tapajós, Renata
Bittencourt e Betina Matarazzo, por 20 anos de amizade e pelo apoio
incondicional desde o início deste trabalho.
Aos queridos amigos Ana Lúcia Miranda, Bia Cassis, Cinthya Randi
Neves, Denis Silva, Fátima Brilhante, Leila Victor, Luisa Travassos, Nevaldo
Alle F°, Sérgio Gondim e Sueli Pacífico, pela paciência, torcida, carinho, interesse
e apoio durante o período em que estive envolvida com este trabalho.
Aos amigos e parentes de Rio Preto e Mirassol, Suzana e Mara Quintana,
Valéria Bernardino de Souza, Neusa, Neusinha, Solange e D.Zezé pelo carinho e
expectativa sempre confiante e por terem cuidado de minha mãe e de minha avó,
Luiza, nos momentos em que estive ausente por conta deste trabalho.
Aos meus analisantes, agradeço a inspiração constante na busca de novos
modos de viver.
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APRESENTAÇÃO.
Desde criança, marcou-me uma queixa de minha avó materna (Luiza): “me
sinto mal, nervosa; tenho um grande vazio no estômago que dói, mas não é dor de
estômago; tenho muita aflição... não sei explicar... uma dor no peito que me aperta
muito... parece um mal-estar, uma coisa ruim, mas não sei o que é. Sinto tristeza,
mas não sei do quê. Tenho desânimo, uma vontade de não fazer nada... uma
vontade de desaparecer.” E gemia, constantemente, enquanto estava assim. Passou
por vários médicos que lhe medicaram das mais diversas maneiras, até que foi
parar em psiquiatras que só continuavam lhe medicando e diziam que vovó tinha
“depressão”. Enfim, esses episódios de sofrimento apareciam e desapareciam
como num passe de mágica ou de entorpecimento medicamentoso.
Vovô (Orozimbo) reagia a essa situação como podia: “Não fique assim,
Luiza, reaja, força... Sorria! Não diga: ‘huumm, huumm’ (gemidos), diga: ‘estou
feliz’. Não quero ouvir esses gemidos. Você não tem nada. Esse negócio de
‘depressão’ é bobagem... Vamos pescar, vamos sair de casa, vamos visitar
alguém...”. Até que seu último recurso era internar vovó – a seu próprio pedido –,
em hospital geral para tomar soro. Lá, ela passava um, dois ou três dias até que
melhorava, seus sintomas desapareciam, ela se sentia bem e voltava para casa
como se nada tivesse acontecido.
Sempre fiquei intrigada: o que acontece com vovó? O que é “essa coisa”
que ela sente e não sabe explicar? É claro que ela tem alguma coisa. Acho que
vovô e os médicos não entendem o que ela quer dizer.
Depois que comecei a cursar Psicologia, conversei muito com ela e com
meu avô, até que consegui que ela fosse fazer terapia. Fato que melhorou seu
sofrimento, mas não suprimiu seus sintomas, até que ela abandonou o tratamento.
Por fim, de psiquiatra em psiquiatra, até o psicólogo, conseguimos acertar um
geriatra. Deste, vovó passou por mais três, pelo menos; até que o último cuidou
dela até a morte. Vovó sempre fez tratamento medicamentoso.
Somado a esse episódio de minha avó, desde meus vinte e poucos anos,
comecei a presenciar e ter notícias de vários amigos que tinham ou tiveram
“depressão”. E eu pensava: mas o que está acontecendo que “todo mundo” sofre
de “depressão”? Será mesmo “depressão”? Será que o “mundo ficou deprimido”?!
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Ou, simplesmente, são episódios relacionados à questão da angústia? Assim, meu
interesse pelo incognoscível da angústia começou!
Até que essa “repetição” começou a se dar na minha clínica.
Coincidentemente ou não, minha prática envolvia pessoas com questões ligadas à
angústia, medo e desamparo. Mais especificamente, esses analisantes se
queixavam de uma irritabilidade geral, acompanhada de expectativa ansiosa com
conteúdo vago, ou seja, subitamente, eram tomados por um medo avassalador sem
saber “de quê” nem “o porquê” e sempre ligado a um mal-estar somático. Essa
sintomatologia começava com dores na cabeça, enrijecimento do pescoço, falta de
ar, tremores, calafrios, taquicardia, dor ou desconforto no peito, acompanhados do
medo de enlouquecer ou de morrer, o que gerava uma tendência pessimista das
coisas e uma “sensação de estar morrendo”.
Nesse quadro, essas pessoas, muitas vezes, ficavam impedidas de trabalhar
e de sair de casa, pois o único lugar em que se sentiam, relativamente, seguras era
em suas próprias casas. Diziam que experimentavam “ataques brutais” e absurdos
de angústia ou medo, sem aparentemente ter qualquer relação com o resto de suas
vidas, apresentando-se como ataques espontâneos e incompreensíveis. Esses
analisantes chegavam em meu consultório dizendo: “tenho síndrome do pânico”.
Comecei a ficar atenta, na minha clínica, para o aumento dessas queixas,
fosse por indicação de um psiquiatra ou pelo próprio analisante ter se identificado
com tal patologia. Fato é que essas pessoas começaram a aparecer no meu
consultório expressando seu sofrimento pela tal “síndrome do pânico”.
Paralelamente a essa questão, há dois fatos: primeiro, o do crescimento assustador
– pelo menos para mim – desse sintoma na mídia escrita e falada, dentro e fora
dos âmbitos da saúde. Segundo, o discurso de uma grande facção de psicanalistas,
a qual repudiava tal sintoma com a explicação de que é uma “neurose de angústia”
já descrita por Freud em 1895 e que concordar com tal nosografia psiquiátrica
seria romper com a especificidade da psicanálise.
Foi dessa maneira, então, que meu interesse pelo tema “pânico na clínica
psicanalítica”, iniciou-se por volta de 1994, época em que era aluna do curso
“Formação em Psicanálise” – curso de especialização do Departamento Formação
em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.
Realmente, desde essa época, concordava que “síndrome do pânico” não
era uma nova categoria nosográfica; entretanto, discordava daqueles psicanalistas.
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Pensava que não poderíamos “cruzar nossos ouvidos” diante de tais
acontecimentos. Essa postura era, no mínimo, pré-conceituosa e cômoda.
Repudiar uma explicação biologizante com uma psicanalizante não nos faz chegar
a lugar algum.
E comecei a me perguntar: O que estas pessoas estão expressando e/ou
querendo nos dizer? Por que se identificam com o nome “síndrome do pânico”?
Por que “síndrome do pânico” é uma psicopatologia da atualidade? Por que hoje
aparecem mais crises de angústia que na época de Freud? O que a tendência
contemporânea dos laços sociais tem a ver com isso? Como pode a psicanálise
contribuir para esse debate?
Recorri à teoria psicanalítica clássica e, inicialmente, o máximo que
encontrei de algo próximo ao que vivia na minha experiência psicanalítica eram
os “ataques de angústia” que não clareavam em nada a direção do tratamento,
tendo em vista que ataques de angústia podem se dar em qualquer quadro
psicopatológico.
Assim, por volta de 1994, iniciei uma “pesquisa despretensiosa” a respeito
do “pânico na clínica psicanalítica.” Primeiro, nenhum professor do meu curso
sabia me indicar qualquer bibliografia, no máximo artigos sobre fobias. Depois,
fui à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, onde encontrei duas
monografias a respeito do tema. Eram dois estudos de caso sob orientação
kleiniana.
E a literatura psiquiátrica “fervilhava” a esse respeito.
Entretanto, os debates contemporâneos em torno da questão da angústia,
assim como das mudanças nas queixas dos analisantes e a construção das novas
formas de subjetivação começaram a aumentar.
Foi assim que, a partir da minha experiência clínica, dediquei-me ao
aprofundamento do tema pânico. Comecei a levantar a hipótese de que o
surgimento de novas modalidades de queixas e sofrimentos dos analisantes
poderia se articular ao momento histórico em que vivemos, repleto de grandes
mudanças ocorridas nas últimas décadas, ligadas ao acelerado avanço tecnológico
presente no cotidiano, o que propicia uma trama social complexa, interferindo nos
modos de subjetivação.
Comecei a traçar uma articulação teórica que pudesse dar sustento à minha
prática. Ou seja, “novos sintomas” exigem de nós psicanalistas novas formas de
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acolhimento para essas “novas modalidades de queixas e sofrimentos”. Em outras
palavras, um trabalho metapsicológico. Pela psicanálise, pude entender que essas
pessoas eram tomadas por uma angústia intensa, para a qual parecia não haver
elaboração psíquica. A única forma de proteção encontrada para esse impacto
violento da angústia vinha a partir do real do corpo (taquicardia, sudorese etc), sob
a forma de ataques. Era assim que conseguiam expressar seu sofrimento, sua
dificuldade de existir, por meio dos assim chamados, atualmente, “ataques de
pânico”. Contudo, a bibliografia específica era escassa, estando aquém de
questões fundamentais, como o tratamento e a constituição subjetiva peculiar a
essas pessoas. A bibliografia específica à qual me refiro restringe-se ao campo da
psicanálise porque, diferentemente, no campo da psiquiatria, esse tema era mais
explorado. Porém, tratando-se de dois campos distintos – Psicanálise e Psiquiatria
– e, portanto, construções teórico-metodológicas e interpretações distintas para
descrições sintomatológicas e fenomenológicas semelhantes. Enquanto a
psiquiatria moderna, por meio de seu discurso empírico-pragmático desimplicava
o sujeito de seu sofrimento – porque excluia qualquer implicação da subjetividade
–, a psicanálise fazia o movimento inverso. Coloquei-me então, à “escuta” desses
sujeitos. O que nos diz um sujeito que sofre desse fenômeno da angústia
denominado pânico?
Em 1997, deparei-me com um norteador maravilhoso: o primeiro livro de
Mário Eduardo Costa Pereira Contribuição à psicopatologia dos ataques de
pânico. Foi uma glória para mim! Depois, em 1999, ele publicou Pânico e
Desamparo: um estudo psicanalítico.
Nessa esteira, por reflexões e perguntas pautadas na clínica e no cotidiano
que, naturalmente, foi surgindo a necessidade de elaborar uma produção
científica. O primeiro passo do meu trabalho foi um levantamento bibliográfico
em periódicos de destaque da área psicanalítica. Consultei, referente ao período
compreendido entre 1994 a 2001, 22 revistas e jornais – 10 internacionais e 12
nacionais –, dentre os quais foram encontrados 23 artigos (14 nacionais e 9
internacionais) referentes ao tema pânico.
Em 2001, resolvi desenvolver um anteprojeto de dissertação de mestrado e
procurar a USP como um lugar de acolhimento.
Bem, foi assim que ingressei no Departamento de Psicologia da
Aprendizagem e do Desenvolvimento Humano e desenvolvi a presente pesquisa.
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INTRODUÇÃO
A referência a uma modalidade de sofrimento psíquico conhecida como
“pânico”, mais especificamente, como “ataque de pânico”, ocupa um lugar
proeminente nos debates contemporâneos no campo da psicopatologia. Em
virtude da criação, em 1980, da categoria psiquiátrica “transtorno do pânico” ou
“síndrome do pânico”1 esta classificação, fundada nas bases “operacionais” e
“pragmáticas” que norteiam a perspectiva objetivante da psiquiatria americana,
ultrapassa o âmbito profissional e vem tendo uma enorme repercussão na mídia
escrita e falada.
Nesse quadro, o germe desta pesquisa surgiu da pergunta de caráter geral:
que contribuições o referencial psicanalítico pode dar a esse debate, uma vez bem
circunscritos os campos epistemológicos distintos aos quais se articulam a
psicopatologia psiquiátrica e psicopatologia psicanalítica? E, mais
especificamente, a que se deveria o retorno, na contemporaneidade, desse termo
clássico da psicopatologia – o pânico – durante muito tempo relegado ao
esquecimento, como enfatiza Pereira (1999)?
Reportando-nos a Freud, é possível observar que a temática do pânico não
é estranha à evolução de sua teoria da angústia. O início de seu trajeto teórico, em
1895, no quadro da Neurose de Angústia, a sintomatologia dos denominados
ataques de angústia2, muito se assemelha aos componentes dos ataques de pânico,
conforme descritos no DSM-III-R. Posteriormente, em 19213, Freud descreve o
pânico como uma angústia neurótica provocada pelo rompimento dos laços
emocionais que unem o indivíduo a um líder (ideal) e aos membros do grupo e, tal
situação, libera um medo gigantesco e insensato.
Como não se trata de nos ocuparmos do pânico como uma categoria
nosográfica, conforme descrita pela psiquiatria contemporânea como “síndrome
do pânico” ou “transtorno do pânico”, abordá-lo a partir da perspectiva da
psicanálise freudiana significa atribuir-lhe um estatuto de pertinência, tanto do
ponto de vista metapsicológico, quanto clínico. Este recorte permite, não só
1 Breviários de Critérios Diagnósticos do DSM-III-R / American Psychiatric Association (1990, p.91-3) e Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID-10 / Organização Mundial de Saúde (1994, p.341-2). 2 Freud, (1895) Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma síndrome particular intitulada Neurose de Angústia.
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ampliar esse debate para além das concepções biologizantes e empíricas de uma
vertente da psiquiatria contemporânea, como definir um campo próprio à
psicanálise no tratamento desse quadro psicopatológico, desde que as abordagens
teórico-metodológicas desses dois campos são absolutamente, distintas.
Dessa maneira, o termo “pânico”, difundido pelo mundo contemporâneo
por meio da psiquiatria, é usado, aqui, enquanto suplência e não em oposição ao
biológico. O que, na atualidade, dentro e fora do âmbito da ciência, está sendo
chamado de “pânico”?
Introduzir uma perspectiva psicanalítica para o estudo desse estado afetivo
extremo de angústia implica marcar a pertinência a um campo clínico e discursivo
próprios, além do rompimento com o discurso ideológico que desimplica o sujeito
em relação a seu sofrimento. Nesse sentido, a proposta geral deste estudo é
abordar o pânico como um dos fenômenos do campo psicopatológico do
angustiante, referido na obra freudiana, e sua contextualização na atualidade.
Certas formas de sofrimento psíquico podem ser consideradas como
psicopatologias da atualidade, no sentido de expressões dos modos de
subjetivação promovidos pela sociedade contemporânea. Há um estilo de
sociedade em pauta que gera condições e possibilidades para produção de
determinadas psicopatologias como típicas de sua época. Isso não quer dizer,
necessariamente, que são psicopatologias inéditas, mas são novas formas de
padecimento expressas por meio do pânico, da bulimia, da anorexia, das
disposições depressivas, das toxicomanias, das psicossomatizações, dentre outras,
que ganham espaço progressivo na cena social atual.
Concordamos com Birman (2001), para quem existe um processo de
produção social dessas psicopatologias que encontra as suas condições de
possibilidade na ética da sociedade atual. (p.192). Para ele, a
... psicopatologia da pós-modernidade se caracteriza por certas modalidades privilegiadas de funcionamento psicopatológico, nas quais é sempre o fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência que está em pauta. Esta é justamente a questão da atualidade.(...) Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência, sendo considerado, pois, um fracassado segundo os valores axiais dessa visão de mundo. (p.168-9).
3 Freud, (1921) Psicologia de grupo e análise do ego.
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Essas formas de sofrimento integram e expressam, na sua sintomatologia,
redes de significações entrelaçadas ao redor de ideais predominantes na
atualidade. Desse modo, trabalhamos com a hipótese de que existe um processo
de produção social do pânico, pela via do espectro de valores que impera no
mundo atual. Sob esse prisma, como se caracterizam as subjetividades
contemporâneas? Quais são os contornos éticos da sociedade atual? Quais são as
condições de possibilidade que fazem do pânico uma das formas do mal-estar
contemporâneo? O pânico poderia ser considerado um dos efeitos dos modos de
subjetivação contemporâneos?
Nesse sentido, o objetivo principal desse estudo, é articular o que Freud
denominou de “mal-estar na civilização” às psicopatologias contemporâneas,
examinando a relação da incidência da sintomatologia do pânico com os modos de
subjetivação emergentes.
O trabalho com essas questões exigiu o manejo simultâneo das teorias
freudianas da angústia e da cultura e da temática relativa às novas formas de
subjetivação e seus efeitos nos sujeitos e nos laços sociais, vertente da pesquisa na
qual foram importantes as contribuições de alguns autores do campo da
sociologia.
Nosso trabalho se apresenta em três capítulos e considerações finais.
No primeiro capítulo procuramos estabelecer os fundamentos
metapsicológicos do pânico. Inicialmente, buscamos circunscrevê-lo no campo
psicopatológico do angustiante, conforme referido na obra freudiana, que reúne
fenômenos distintos referentes à angústia. Qual a especificidade desse afeto
extremo de angústia? A partir desta pergunta, por meio da polissemia da palavra
pânico, procuramos tanto o que é próprio ao termo Panik, empregado por Freud
em seus escritos, quanto apreender a concepção geral do afeto para Freud.
Posteriormente, trabalhamos a relação entre a sintomatologia da neurose de
angústia e a do pânico, por meio da conceituação freudiana de desamparo,
percorrendo, assim, o campo da angústia na obra freudiana.
Adotamos a hipótese sugerida por Pereira (1999) segundo a qual o
desamparo constitui, para Freud, uma noção metapsicológica capaz de delimitar
as bases psicopatológicas do fenômeno do pânico a partir de uma perspectiva
psicanalítica. Nesse sentido, a noção freudiana de Hilflosigkeit é nosso operador
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metapsicológico fundamental. Essa noção implica numa dimensão de desamparo,
independentemente de sua concreta efetivação numa situação traumática. Há,
portanto, a condição de desamparo, fundante e estruturante do psiquismo e a
situação de desamparo, como concretização dessa condição instalada na situação
traumática, relativa ao excesso pulsional que não pôde ser simbolizado.
Sob esse prisma, a problemática do desamparo na obra de Freud tem dupla
face: a face erótica e sexual, que diz respeito a um lugar infantil e à sexualidade
traumática vinda da mãe – o desamparo original estruturante do psiquismo; e a
face da falta de garantias do sujeito sobre seu existir e sobre seu futuro, que é
obrigado a uma renúncia pulsional como condição para viver em sociedade.
Embora haja uma evidente articulação entre ambas, a vertente relativa à falta de
garantias do sujeito no mundo é objeto privilegiado de nosso estudo, tendo em
vista que estamos examinando as condições peculiares do desamparo do sujeito na
atualidade.
Para compreender esse quadro e proceder à articulação com as
psicopatologias contemporâneas, o primeiro passo foi buscar subsídios na
produção teórica freudiana a respeito da civilização. Nesse sentido, dedicamos o
capítulo dois ao estudo metapsicológico da questão da Lei, dos ideais e da
identificação. Tendo em vista que, na visão freudiana, o sujeito não é dado a
priori, mas construído na articulação com a sociedade, Freud apresenta os
processos subjetivos que devem ser desenvolvidos para que sejam mantidas as
organizações social e individual. Sob esse prisma, a relação dinâmica e conflitante
entre o sujeito e a civilização é marcada por um mal-estar (Unbehagen), pois é
permeada pelo antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as
restrições da civilização. Ou seja, o mal-estar diz respeito ao desamparo no campo
social e, para viver, as pessoas devem criar possibilidades afetivas para o
enfrentamento da condição desamparo.
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Dessa maneira, no capítulo três, buscamos circunscrever o mal-estar na
atualidade. Quais as condições atuais do mal-estar na civilização? Por meio do
esboço dos movimentos subjetivos na modernidade e na contemporaneidade,
objetivamos apresentar os elementos mínimos que caracterizam a cena social atual
e as subjetividades emergentes. Procuramos mostrar que as formas de sofrer que
os sujeitos manifestam, seus mal-estares, são indissociáveis das transformações
que remodelam o campo social.
Seria o pânico um dos efeitos das novas formas de subjetivação? Poderia o
pânico ser considerado uma das modalidades subjetivas que o sujeito encontrou na
tentativa de evitar o confronto com o desamparo no mundo atual? Enfim, seria o
pânico uma das expressões do mal-estar contemporâneo? Convidamos o leitor a
viajar conosco na investigação desse enigmático afeto de angústia que é pânico.
1. PÂNICO E O CAMPO PSICOPATOLÓGICO DO ANGUSTIANTE SOB
A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA.
1.1. O campo do angustiante na obra freudiana: Angst, Furcht,
Schreck, das Unheimliche, Panik, Angstsignal, automatishe Angst.
Freud chama de “o Angustiante” (das Ängstlichen) um campo
psicopatológico que reúne fenômenos heterogêneos ligados à angústia tais como o
sinal de angústia, o terror, o medo, o sentimento inquietante de estranheza e o
pânico (Pereira, 1999, p.79). Portanto, trata-se de um campo amplo e, nessa
medida, extremamente útil, para a investigação de nosso objeto de estudo – o
pânico – sob o prisma psicanalítico, tendo em vista que essa noção aponta para
especificidades psicopatológicas erigidas sobre o fundo comum da angústia.
Essa questão aparece no texto O estranho (1919), em que Freud se esforça
por delimitar uma categoria específica do campo do angustiante: “a inquietante
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estranheza” (das Unheimliche), considerando que há um ramo particular ligado à
estética que revela um campo remoto,
...relacionando-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror (...) coincide com aquilo que desperta o medo em geral. Podemos esperar que esteja presente um núcleo especial de sensibilidade que justificou o uso de um termo conceitual peculiar (o estranho). Fica-se curioso para saber que núcleo comum é esse que nos permite distinguir como ‘estranhas’ determinadas coisas que estão dentro do campo do que é amedrontador. (1980, p.275-6; os grifos são meus).
Dessa forma, entendemos que o campo do angustiante na obra freudiana
engloba o afeto da angústia e tudo relativo a ela, na medida em que esse campo se
configura, não só no texto Das Unheimliche, mas em todos os momentos de sua
obra em que aparece a tentativa de delimitar categorias específicas e, portanto,
distintas ligadas aos fenômenos da angústia.
O pânico é, assim, um desses fenômenos do campo psicopatológico do
angustiante, tendo em vista que, no capítulo V de Psicologia de grupo e análise
do Ego (1921), Freud esforça-se por delimitar um estado afetivo terrorífico e
extremo de angústia que irrompe tanto no indivíduo quanto na massa.
Não é de esperar que o uso da palavra “pânico” (Panik)4 seja claro e determinado sem ambigüidade. Às vezes ela é utilizada para descrever qualquer medo coletivo (Massenangst), outras até mesmo o medo no indivíduo (Angst) quando ele excede todos os limites, e com freqüência, a palavra parece reservada para os casos em que a irrupção do medo não é justificada pela ocasião. Tomando a palavra Panik no sentido do medo coletivo (Massenangst), podemos estabelecer uma analogia de grandes conseqüências. No indivíduo o medo (Angst) é provocado seja pela magnitude de um perigo, seja pela cessação dos laços emocionais (catexias libidinais); este último é o caso do medo neurótico ou angústia. Exatamente da mesma maneira o Panik surge. (1980, p.123; os grifos são meus).
Além disso, como colocamos na introdução, desde muito cedo Freud
(1895) procurou especificar estados afetivos intensos de angústia. Esse aspecto
acentua o que falamos em relação ao esforço de Freud em delimitar a
23
especificidade de determinados estados afetivos de angústia, além de contribuir
para a evolução de sua teoria da angústia, da qual trataremos no quarto tópico
desse capítulo, assim como da inscrição da temática do pânico na mesma.
Entretanto, quando falamos de “estados afetivos de angústia”, faz-se
importante introduzir, mesmo que brevemente, a concepção psicanalítica do afeto,
tema de nosso terceiro tópico.
Nesse momento, voltemos aos fenômenos do campo do angustiante na
obra freudiana. É importante assinalar a problemática existente nas traduções dos
termos em alemão, principalmente, em relação a Angst e Furcht, os quais nem
sempre podem ser traduzidos, respectivamente, por “angústia” e “medo”, uma vez
que Angst, em determinadas situações, também pode significar “medo”.
Autores como Alix Strachey, Jean Laplanche e J.-B. Pontalis, Paulo César
de Souza e Luiz Hans5, dentre outros, discutem os problemas ligados ao
significado, etimologia, uso e tradução psicanalítica dos termos do alemão
relativos à angústia e seus “derivados”. Além do fato de que estes têm diferenças,
dependendo da língua para a qual são traduzidos, o próprio Freud em alguns
momentos os emprega, indiscriminadamente, transitando do uso conceitual para o
coloquial, como ocorre, por exemplo, na XXV Conferência de introdução à
Psicanálise: “A angústia” (1917) ou em A análise da fobia de um garoto de cinco
anos (1909), em que usa alternadamente os termos Angst e Furcht, contrariando a
diferenciação que ele próprio estabelece entre eles no mesmo texto.
De um modo geral, os autores são unânimes quanto à etimologia do termo
Angst. Contudo, diferem quanto à tradução. Apenas para ilustrar essa
problemática, pois não é nosso intuito esgotar esse tema, adotaremos as
colocações de Souza e Hans.
Angst é derivado da raiz indo-européia angh e da antiga palavra angust que
se referem a “apertar”, “pressionar”, “amarrar” e “estreiteza”, “aperto”,
respectivamente. O termo em português “angústia” é derivado do latim, que
significa “aperto”, “opressão”. Tanto a língua portuguesa derivada do latim e
4 Nessa citação, os termos em alemão que estão entre parênteses correspondem ao texto original no alemão, Freud, (1921/1987) Massenpsychologie und Ich-Analyse, p.105. 5 Respectivamente nas obras: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (1980), em inúmeros comentários e notas; Vocabulário da Psicanálise (1986), no verbete angústia, p.61-2; As palavras de Freud: o vocabulário Freudiano e suas versões (1998), no verbete Angst, p.189-97; Dicionário comentado do alemão de Freud (1996), no verbete angústia, p.62-80.
24
como a alemã, de uma língua indo-germânica, tiveram origem num só idioma,
denominado indo-europeu. Assim, como coloca Souza (1998), “é evidente a
semelhança gráfica e fonética entre o termo alemão e o português ... pois ambos
derivam da mesma palavra.”(p.189-90).
Segundo Hans (1996),
... em alemão Angst significa “medo”, abarcando desde os sentidos de “temor” e “receio” até os sentidos intensos de “pânico” e “pavor”, podendo referir-se a objetos específicos ou inespecíficos. Não há bons equivalentes em alemão para “ansiedade” ou “angústia” e ocasionalmente os três termos (“angústia”, “ansiedade” e “medo”) podem se corresponder. Do ponto de vista lingüístico, não haveria porque traduzir Angst preponderantemente por “ansiedade” ou “angústia”; poder-se-ia traduzir geralmente por “medo”. Todavia há um entremeio onde língua coloquial, tradições de tradução e teoria psicanalíticas se entrecruzam, exigindo algumas considerações (...) Atualmente, o termo Angst tem se consolidado nas traduções psicanalíticas para o português como “angústia” e “ansiedade”, eventualmente como “medo”, “temor” e “receio”. As traduções francesas e espanholas tendem a privilegiar “angústia”; as inglesas, “ansiedade”. (p.71-2).
Freud utiliza o conceito Angst em inúmeros textos de sua obra e podemos
localizar a discussão do termo em alguns deles, como veremos a seguir.
Em A análise da fobia de um garoto de cinco anos (1909), Freud
diferencia Angst (angústia sem objeto) de Furcht (medo com objeto determinado):
“A angústia de Hans, que assim correspondia a uma ânsia erótica reprimida (pela
mãe), como toda angústia infantil, não tinha um objeto com que dar saída: ainda
era angústia (Angst) e não medo (Furcht).”(1980, p.36). Entretanto, no mesmo
texto, usa esses termos, indiscriminadamente, referindo-se ao “medo do cavalo”
como Furcht vor dem Pferd e a “angústia da rua” como Strassenangst , como
mostra Souza (1998, p.190).
Na XXV Conferência de introdução à Psicanálise (1917), embora Freud
transite do uso conceitual para o popular em relação aos termos Angst e Furcht,
tranqüilamente, afirma:
Evitarei aprofundar-me na questão de saber se nosso uso idiomático quer significar a mesma coisa, ou algo nitidamente diferente, com a palavra Angst, Furcht e Schreck. Apenas direi que julgo Angst referir-se ao estado e não considera o objeto,
25
compreensão do “sentido temporal que a preposição também possui em alemão:
‘antes de’, angústia anterior a algo – o que seria mais condizente com o teor da
primeira oração, com idéia de expectativa: angústia à espera, à espreita de algo,
para se manifestar mais plenamente.” (p.197).
Hans (1996) considera que, “seja qual for o termo que se empregue na
tradução, é importante que o leitor tenha em mente que em Angst, mesmo quando
se trata de um medo vago e antecipatório, ocorre um estado de prontidão reativa,
visceral, intensa, algo vinculado à sensação de perigo e muitas vezes próximo da
fobia e do pavor.” (p.79).
De qualquer forma, toda essa problemática aponta para a importância
teórico-conceitual do termo Angst e de todos os fenômenos ligados à angústia,
inclusive o pânico. Concordamos com Pereira (1999), em relação ao fato de que
Freud insistiu em várias ocasiões sobre a distinção entre os termos Angst, Furcht e
Schreck, “o que demonstra por si só que o campo do angustiante não é homogêneo
e que os termos nele implicados não podem ser empregados como sinônimos e
sem um mínimo de precisão conceitual.” (p.84).
Pereira (1999) trabalha, exaustivamente, a palavra pânico e o termo
Schreck, esforçando-se por mostrar que Schreck é o termo que Freud usa, desde
1895, no Projeto para uma psicologia científica, a fim de caracterizar um estado
afetivo extremo de angústia. Esclarece que a palavra alemã é traduzida na versão
francesa das obras completas de Freud por panique e que na versão brasileira,
advinda da tradução inglesa, Schreck é traduzido por “susto”. Além disso, lembra-
nos que Laplanche (1993), em Problemáticas I: a angústia, mostra que o
... termo Schreck insiste sobre a característica de não preparo e de transbordamento de excitação que submerge o eu num estado de angústia avassaladora. Nesse caso, o sujeito encontra-se confrontado diretamente com o perigo mais extremo sem ter sido previamente preparado por um sinal de angústia. Tal é a essência econômica da situação traumática: o desamparo do aparelho psíquico em face do aumento incontrolável da excitação pulsional. (p.85-6; os grifos são meus).
Dessa maneira, Pereira (1999) mostra a proximidade entre o significado de
Schreck e pânico, esboçando sua hipótese de trabalho numa abordagem
metapsicológica do pânico, por meio do alcance “das implicações da noção
27
freudiana de desamparo (Hilflosigkeit), no desencadeamento e manutenção das
crises de angústia.”(p.71). Para ele, “a abordagem psicanalítica do pânico passa
necessariamente pelo questionamento do lugar ocupado pela figura do... Senhor
Onipotente que protege e reúne os homens. Esse lugar – sugere Freud –, é um
lugar de desamparo (Hilflosigkeit)...” (p.71).
Essa questão torna-se bem clara na concepção de Freud sobre pânico
presente em Psicologia de Grupo e análise do ego (1921), segundo a qual o
“medo” (Panik) se instala, subitamente, quando o sujeito rompe as catexias
libidinais que o protegiam de um grande perigo, quando rompe a ligação com um
ideal protetor6, com algo que “protege e reúne os homens”. E, se o pânico é
análogo à angústia neurótica7, esse “grande perigo” é interno: ser tomado pela
força pulsional incontrolável, por um transbordamento de excitações no
psiquismo. Essa situação é vivida como algo da ordem do terrorífico (no sentido
de Schreck), que dispara a sensação do fim de tudo, da morte: o pânico. Agora, o
sujeito está imerso na falta total de garantias, no terror, perdido no “lugar do
desamparo” (Hilflosigkeit).
Contudo, as palavras Schreck e Panik não possuem o mesmo significado.
Note-se que Freud (1921), ao trabalhar o fenômeno do pânico, opta pelo uso do
vocábulo Panik8 e não Schreck.
Vejamos então, as múltiplas significações que a palavra pânico nos oferece
para podermos traçar os limites entre Panik e Schreck.
1.2. As nuances da palavra pânico: do mundo de Pã ao Panik.
Como questionamos no início desse estudo, o que, na atualidade, dentro e
fora do âmbito da ciência – ou seja, do senso-comum à psiquiatria e à psicanálise
–, está sendo chamado de “pânico”?
A psicanálise considera que repetições de elementos num discurso torna
esse discurso, potencialmente, portador de significações. Sob esse prisma, a
insistência da palavra “pânico” na linguagem contemporânea no senso comum, na
psiquiatria e na psicanálise configura um discurso capaz de nos ensinar algo a
6 Trabalharemos a questão dos ideais no capítulo 2. 7 Veremos no quarto tópico desse capítulo. 8 Vide p.7.
28
respeito da questão psicopatológica do pânico. Quais elementos se repetem nesse
discurso e que significações lhes podemos atribuir?
Primeiramente, sabemos que o termo “pânico” tem fortes raízes populares,
ou seja, está enraizado na cultura. Na linguagem cotidiana, a palavra pânico evoca
a imagem de um estado de caos na multidão, de pessoas em desespero e
descontrole. Quem de nós não guarda na memória alguma cena televisiva,
cinematográfica ou mesmo pessoal de uma situação desse tipo? Culturalmente, é
uma imagem de abundante plasticidade. Com isso queremos apenas sublinhar que
não se trata de uma questão do uso técnico ou cotidiano das palavras, mas da
importância das variadas facetas nos múltiplos usos da palavra pânico. Vejamos,
então, o que se repete nesse discurso.
A palavra pânico, segundo Ferreira (1986), é derivada do grego panikón
(terror, terror que vem de Pã) e do latim panicu. Enquanto adjetivo é “relativo ao
deus Pã; que assusta sem motivo; que suscita medo por vezes infundado e foge a
um controle racional: terror pânico”. (p.1257). Como substantivo masculino,
refere-se ao “medo que os antigos diziam ser causado pelo deus Pã; susto ou
pavor repentino, às vezes sem fundamento, que provoca uma reação desordenada,
individual ou coletiva, de propagação rápida”. (p.1257). Nesse sentido, a palavra
pânico guarda o mito de Pã. Não é um “susto” (Schreck) qualquer, mas,
especificamente, um Schreck que vem de Pã.
O vocábulo Pã constitui uma das raizes etimológicas da palavra pânico; é
derivado do grego Pán, Panós e do latim Pan, Panos; é um substantivo masculino
que corresponde à “divindade greco-latina que os pastores adoravam; é o símbolo
mitológico da natureza.” (p.1243).
E o termo “pan”, também uma das raízes etimológicas da palavra pânico,
derivada do grego pás, pantós; pâsa, páses; pân, pantós (esses últimos os mesmos
radicais que derivam a palavra Pã), corresponde ao elemento de composição
“tudo”, “todos”.
Deslizando da palavra “pânico” para a palavra “pane”, encontramos outra
nuance interessante. “Pane”, substantivo feminino originário do francês panne,
também tem o mesmo radical Pan e significa “parada por defeito do motor de
avião, automóvel, motocicleta etc.” (Ferreira, 1985, p.1025). Porém, no
imaginário popular, “pane” é utilizado como referência a um estado de paralisia
e/ou perturbação geral que acontece de repente. A pessoa diz: “Me deu um pane!”
29
ou “Entrei em pane!”. Nesse sentido, “pânico” enfatiza uma súbita parada de um
mecanismo que até então estava funcionando adequadamente.
Sob esse prisma, a palavra “pânico” evoca, antes de tudo, o pavor
inspirado pelo deus Pã que está em tudo, em todos, em todas as partes. O termo
“pânico” está ligado a idéia de totalidade, ou seja, pânico é um medo
generalizado, um medo do todo. É o pavor súbito, terror pânico ou simplesmente
pânico. Como conseqüência, não há necessidade de que exista um perigo real,
concreto para a emergência do pânico. Basta, apenas, o rumor de que Pã,
subitamente, inspire seus pensamentos, ou seja, o imaginário que assusta e se
deixa levar aos extremos. Exatamente, o estado terrorífico em que se encontra o
panicado totalmente entregue aos poderes de Pã. Tomado de súbito por algo que
lhe inspira horror e está em qualquer lugar (em todas as partes), defronta-se
violentamente com o desamparo e entra em pânico.
Há algumas versões para o mito de Pã. Adotaremos aquela9 em que Pã,
concebido da união de Hermes (filho de Júpiter e de Maia) com a ninfa Dríope,
nasceu com formas monstruosas: meio humano e meio bode, sendo abandonado
logo após o nascimento por sua mãe que ficara apavorada com sua feiúra.
Entretanto, Hermes logo o apresentou para os deuses que lhe deram o nome de
Pã, ou seja, tudo, todos.
Pã nascera para suprir a necessidade de proteção dos habitantes da Arcádia
(situada no centro da Peloponésia na Grécia Antiga), que se dedicavam ao
pastoreio e à agricultura – na proteção de seus rebanhos, caminhos e caminhantes.
Inicialmente, Hermes era encarregado dessa função, mas sua agitação itinerante o
levou a exercer também a função de mensageiro, de responsável pelas
ressonâncias sociais entre os imortais, como os deuses, e os mortais, como os
comerciantes, e, para que isso ocorresse de forma rápida, puseram asas em suas
sandálias. De mediador e intermediário passou a agir também como deus protetor
dos emboscadores e ladrões. Em suma, as tarefas de Hermes foram se
multiplicando ao ponto de fazê-lo começar a abandonar sua tarefa inicial de
salvaguardar os interesses dos pastores e camponeses. Por isso nasceu Pã. Nesse
sentido, Hermes cuidava da transcendência enquanto Pã, da imanência.
9 Bulfinch, O livro de ouro da mitologia (2000) e Schwab, As mais belas histórias da antiguidade clássica (1994).
30
Pã era tido como deus protetor dos bosques, campos, pastores e rebanhos e
por significar tudo passou a ser considerado a personificação da natureza e mais
tarde – por sua imanência – olhado como representante de todos os deuses.
Como personificação da natureza, o deus Pã parece também estar
associado ao natural entregue a si mesmo, abstraído dos deuses e da imortalidade
e, portanto, gerador de pânico.
Pã reunia ao mesmo tempo as características de sátiro, bode e homem-
falo. Ele tinha uma atividade sexual muito intensa, principalmente, com as ninfas,
o que evidencia uma forte relação de Pã com a sexualidade. Além disso, era
amante da música. Inventou a flauta de pastor ou Sírinx, a qual usava não só para
seduzir as ninfas como para fugir do tédio, da solidão, principalmente, à noite. E,
assim como os outros deuses que habitavam a floresta, Pã era temido por aqueles
cujas ocupações os obrigavam a atravessar as matas durante a noite. Em tais
lugares reinavam as trevas e a solidão, que predispunham os espíritos ao rumor
supersticioso. Por isso, os ruídos inesperados, os pavores súbitos, desprovidos de
qualquer causa aparente, eram atribuídos a Pã, que se divertia seduzindo ninfas e
aterrorizando pastores e camponeses enquanto dormiam.
Impossível deixar de associar esta figura horrenda, chifruda, meio homem
meio bode, com a figura do diabo. Havendo ou não uma determinação histórica
daquela sobre esta, a coincidência da representação deve ser levada em conta,
assim como seus efeitos no imaginário.
Na tradição grega o “pânico” é um fenômeno coletivo causado por Pã,
além de ser, intimamente, relacionado à sexualidade, ao terror súbito desenfreado,
como pudemos analisar.
Pereira (1999) assinala que
... a figura desse deus aterrador com sexualidade ilimitada vem nos lembrar a dimensão de gozo sexual desenfreado que é co-substancial ao pânico, como Freud o sugeriu em várias ocasiões no decorrer de sua obra. O pânico coloca em primeiro plano o lado apavorante do sexual que se apresenta quando este não encontra mais pontos de referência simbólicos onde ancorar. (p.66).
31
Analisemos agora, a proximidade e o distanciamento entre Schreck e
Panik10.
No dicionário Warig, o mais consagrado dos dicionários alemães, consta o
seguinte a respeito dos termos Panik e Schreck: “Panik11 – uma perturbação
generalizada12, é um medo irracional que irrompe13 repentinamente
(especialmente, na multidão).”. “Schreck14 – Forte e repentino abalo anímico
associado com medo e horror; um evento assustador e aterrorizante.”
A palavra Panik implica em paralisia, independente de se saber a
etimologia da palavra, que, como vimos, tem a ver com o tudo, com o todo, com
Pã, com pane. É o Schreck generalizado, um estado de susto generalizado que
irrompe repentinamente e sem sentido, no qual o indivíduo fica com medo do
todo, com medo de tudo. De repente algo parou de funcionar, teve uma quebra,
uma ruptura, uma falha.
O Schreck15 é uma reação, um efeito; é a forma pela qual o indivíduo
reage ao perigo sem estar preparado para ele; dá ênfase ao fator surpresa e não à
paralisia que provoca esse Schreck. Panik seria um estado e não uma reação. O
Schreck tem uma causa: algo provocou aquele susto, portanto, não é um estado. O
Schreck é um medo perante um perigo real; não está relacionado com a
imaginação. Entretanto, o Panik pode ser provocado por nada, ou seja, está
relacionado com a imaginação porque é um medo injustificado.
Qualquer ser humano tem um Schreck mediante uma situação de perigo
para a qual não estava preparado. Em outras palavras, Schreck não envolve uma
questão psicopatológica, ao contrário de Panik. Podemos dizer que Schreck é uma
reação comum, ao passo que o Panik se trata de um estado subjetivo e pessoal:
generaliza esse susto e paralisa. Nem todo Schreck resulta num pânico.
Lembremos Freud (1917): “a pessoa protege-se do terror (Schreck) por
meio da angústia (Angst).” (1980, p.461). A Angst é uma precaução, uma
10 Agradeço a Profa. Mônica Udler Cromberg que me forneceu em conversa pessoal, adendos sobre essa questão. 11 “Panik – allgemeine Verwirrung, plötzlich aus brechende, sinnlose Angst (bes. Bei Massenansammlungen); eine.~brach aus.” (Wahrig, 1980, p.2775). A tradução deste trecho, do alemão para o português, foi realizada pela Profa. Mônica Udler Cromberg. 12 Ou geral; daí vem sua relação com Pã que é o todo, o tudo. 13 É de uma vez, não é aos poucos. 14 “Schreck – scherecken; ach du mein ~!~, lab nach! <ung.> (Ausrufe der Berstüzung); vor ~ aufschveien, beden, davonlaufen, zittern; sie war vor ~.” (Wahrig, 1980, p.2775). A tradução deste trecho, do alemão para o português, foi realizada pela Profa. Mônica Udler Cromberg. 15 Vide as citações de Freud na página 10.
32
proteção, uma preparação contra esse Schreck que pode vir ou não. Angst envolve
a expectativa ante algo16. Dessa maneira, a Angst pode provocar o Panik: o
indivíduo tem tanto medo que acaba por se paralisar e assim, entra no estado de
Panik antes do Schreck. O indivíduo entra em pânico para se proteger do Schreck.
Angst, Furcht e Schreck são palavras impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são de fato, capazes de uma distinção clara em sua relação com o perigo. A Angst (angústia) descreve um estado particular de esperar o perigo ou prepara-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O Furcht (medo) exige um objeto definido de que se tenha temor. Schreck (pavor, horror, susto), contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa. (Freud, 1920/1980, p.23-4).
Desse modo, Schreck e Panik coincidem apenas no substrato econômico
da situação traumática, ou seja, na característica de não-preparo e de
transbordamento da excitação no psiquismo17, em que o ego mergulha num estado
avassalador de angústia, no lugar do Hilflosigkeit. Tanto no Schreck quanto no
Panik, o sujeito é confrontado com o perigo sem ter sido preparado para ele pelo
sinal de angústia18.
Acompanhando Freud (1920), no emprego das diferentes expressões em
sua clara distinção na relação com o perigo, perguntamos: de que perigo se trata
no caso do Panik? O perigo é o do desabamento de todo mundo simbólico,
psiquicamente organizado19. O sujeito em pânico não consegue mais simbolizar,
transcender, perdido que está no mundo de Pã, da imanência, do real. O medo-
pânico está em todos os lugares, pertence à totalidade, é generalizado. Há o
rompimento da ligação com Hermes (Deus pai protetor) que lhe permitia
simbolizar a Angst, portanto, que o protegia de todos os perigos. Não há mais
transitoriedade. A terra é desligada do céu. A existência do indivíduo fica
reduzida a ela mesma, ao mundo de Pã, ao real da concretude, à morte própria. O
real do corpo passa a ser o limite último para Angst do sujeito que no mundo de
Pã está sem o auxílio de mais nada, ou seja, está no lugar do Hilflosigkeit.
16 Vide citações de Freud na página 10. 17 Trata-se da angústia automática, vide p.45. 18 Vide p.45-7. 19 Vide p.74.
33
Assim também é a idéia do pânico na multidão: é cada um por si e não há
mais um Deus por todos. Ninguém ajuda ninguém. Cada um quer salvar a própria
pele. Não há mais uma comunidade, mas uma massa perdida, apavorada, sem
referenciais, sem o auxílio de nada nem de ninguém.20
A palavra Hilflosigkeit – traduzida na nossa língua por “desamparo” –
significa “ausência de ajuda”, “não ter ajuda”, ou seja, não há mais ajuda possível,
não tem mais o pai nem a mãe nem ninguém que olhe pelo indivíduo. Essa é a
motivação básica do pânico: a perda do ideal protetor ou o medo da perda do
amor.
1.3. Uma breve exposição a respeito da concepção psicanalítica do
afeto.
No tópico anterior, referimo-nos ao pânico como um dos fenômenos
heterogêneos do campo psicopatológico do angustiante (das Ängstlichen); mais
precisamente, relativo aos diferentes “estados afetivos de angústia” trabalhados
por Freud em sua obra, no esforço de traçar especificidades psicopatológicas a
cada um deles. Essa questão nos exige uma breve reflexão acerca da concepção
freudiana de afeto, na medida em que a angústia é um caso particular de afeto.
Vários autores contribuíram nesse sentido, como, por exemplo, André
Green, Jean Laplanche, James Strachey, Ernest Jones e no Brasil, Carlos Paes de
Barros21. Utilizaremos algumas dessas contribuições para nossa reflexão a
respeito do afeto.
Como sabemos, desde o início, a clínica freudiana está intrinsecamente
articulada à metapsicologia, que implica na criação, por Freud, de instrumentos de
trabalho que tornassem possíveis a experiência psicanalítica que vivenciava, assim
como a exigência de outras configurações teóricas para os processos psíquicos.
Em outras palavras, os remanejamentos teóricos de Freud faziam-se ao mesmo
tempo em que ele destacava o aspecto quantitativo da pulsão, o que alterava
20 Vide p.74. 21 Respectivamente nas obras: O discurso vivo: uma teoria psicanalítica do afeto (1982); Vocabulário da Psicanálise (1986) e Problemáticas I: a angústia (1993); comentários e notas na ESB das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (1980); A vida e Obra de Sigmund Freud (1989), vol.I; Contribuição à controvérsia sobre o “ponto de vista econômico” (1975).
34
progressivamente o paradigma metapsicológico – a predominância de um dos
registros sobre o outro –, enfocando o registro econômico.
Dessa maneira, vários temas ao longo da obra freudiana sofreram
alterações conceituais, e a noção de afeto não foge a essa regra. Como aponta
Green (1982):
... não se pode assinalar uma localização particular para o afeto no conjunto dos trabalhos de Freud. Este não lhe consagrou nenhuma obra específica (...) O problema do afeto depende, no decorrer dos diferentes estágios da teoria, das linhas diretoras desta última: primeira e segunda tópica, avatares das teorias das pulsões, etc. Às vezes os remanejamentos teóricos implicam uma modificação do estatuto do afeto, às vezes uma diferença de apreciação de seu valor funcional explicará uma mudança na teoria (por exemplo, do recalque)... O problema do afeto está numa relação dialética com a teoria, um remetendo ao outro necessariamente. (p.14).
Como mostra Barros (1975), encontramos no discurso freudiano a
“composição de vários construtos psicanalíticos” (p.59-61) que, por vezes, são
usados como sinônimos, geralmente, de forma despercebida pelo próprio Freud:
afeto (Affekt), quantidade de afeto (Affektgrösse), quantum de afeto ou cota de
afeto (Affektbetrag), memória da experiência afetiva ou estrutura afetiva
(Affektbildung) e estado afetivo (Affektzustand).
Entretanto, como mostra Green (1982) e Strachey (1980), o que à primeira
vista parece ser o emprego de Freud de termos sinônimos, não se mostra
posteriormente como tal, pois no decorrer de sua obra, em diferentes textos, Freud
retoma esses construtos especificando cada vez mais a natureza dos afetos.
De qualquer maneira, a noção de afeto em Freud está ligada tanto a uma
perspectiva qualitativa (tradução subjetiva da energia pulsional) quanto
quantitativa (quantidade de energia pulsional). A primeira, como coloca
Laplanche (1986), diz respeito à “ressonância emocional de uma experiência
geralmente forte” (p.35); enquanto que a segunda traduz “a autonomia do afeto
em relação às suas diversas manifestações”(p.35), ou seja, o ponto de vista
econômico. Green (1982) resume essa idéia na seguinte frase: “o afeto é uma
quantidade cambiante, acompanhada por uma tonalidade subjetiva. É pela
descarga que ele se torna consciente, ou pela resistência à tensão crescente que o
caracteriza, seguida pela dissipação dessa resistência.” (p.86).
35
A pulsão traduz-se por uma força constante que exige trabalho. O circuito
de circulação pulsional no indivíduo é um modelo que transita do corpo para a
psique e da psique de volta ao corpo, “num circuito onde as pulsões irão brotar,
amalgamar-se a pensamentos e afetos e circular entre as esferas consciente e
inconsciente e influenciar e ser influenciadas pelo psiquismo na dimensão das
Vorstellungen (representações).” (Hanns, 1999, p.52). Entretanto, para Freud
(1915), a pulsão só se presentifica no psiquismo através de seus representantes: o
representante ideativo (Vorstellungrepräsentanz) e o afeto, mais especificamente,
um quantum de afeto (Affektbetrag). Diz ele:
Uma pulsão (Trieb) nunca pode tornar-se objeto da consciência – só a idéia (Vorstellung)24 que a representa (repräsentiert) pode. Além disso, mesmo no inconsciente, uma pulsão não pode ser representada (repräsentiert)25 de outra forma a não ser por uma idéia (Vorstellung). Se a pulsão não se prendeu a uma idéia ou não se manifestou como um estado afetivo (Affektzustand), nada poderemos conhecer sobre ela. Não obstante quando falamos de uma moção pulsional (Triebregung) inconsciente ou de uma moção pulsional (Triebregung) recalcada, a imprecisão da fraseologia é inofensiva. Podemos apenas referir-nos a uma moção pulsional (Triebregung) cuja representação ideacional (Vorstellungrepräsentanz) é inconsciente, pois nada mais entra em consideração. (1915/1980, p.203).
Dessa maneira, na representação psíquica da pulsão (quando há uma
moção pulsional), o representante ideativo (Vorstellungrepräsentanz) refere-se à
representação (Vorstellung) ou grupo de representações nas quais a pulsão se fixa
ao longo da história do indivíduo e por meio da qual se inscreve no psiquismo.
(Laplanche, 1986, p.588). O representante ideativo é o que constitui,
propriamente, o conteúdo inconsciente.
Já o afeto designa a parte energética (quantum de afeto) ligada ao
representante ideativo, podendo dissociar-se dele no inconsciente. Como dissemos
a pouco26, o afeto (essa parte energética) é dotado de uma qualidade e de uma
quantidade e, como descarga, “está orientada para o interior, para o corpo em
24 Nessa citação, alguns termos em alemão que estão entre parênteses correspondem ao texto original no alemão, Freud, (1915/1987) Das Unbewusste, p.275-6. Os outros termos foram sugeridos pelo autor. 25 Hanns (1999) explica que “ser representado” não tem o sentido de ser imaginado, mas que significa “ter um representante”, ou seja, algo que está em seu lugar.(p.78). 26 Vide p.19.
37
maior parte. Tendo partido do corpo ele (afeto) retorna ao corpo.” (Green, 1982,
p.86).
A seguinte passagem de Freud (1915) ilustra bem essa questão:
Até esse momento, (...) tratamos do recalque (Verdrängung)27 de um representante pulsional (Triebrepräsentanz)28, entendendo por este último uma idéia (Vorstellung), ou grupo de idéias, catexizada com uma quota definida de energia psíquica (libido ou interessa) proveniente de uma pulsão (Trieb). Agora, a observação clínica... nos indica que, além da idéia (Vorstellung), outro elemento representativo da pulsão (Trieb repräsentiert) tem que ser levado em consideração (...) Geralmente, a expressão quota de afeto (Affektbetrag) tem sido adotada para designar esse outro elemento do representante psíquico (Element der psychischen Repräsentanz). Corresponde à pulsão na medida em que esta se afasta da idéia e encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são sentidos como afetos (Affekte der Empfindung). (1980, p.176).
Sob esse prisma, concluímos, acompanhando Green (1982), que o “afeto
só é compreendido por intermédio do modelo teórico da pulsão. Esta, embora
incognoscível, é a sua referência.” (p.85).
A pulsão é, portanto, um processo dinâmico que compreende quatro
características:
1) Impulso ou pressão (Drang), que é “seu fator motor, a quantidade
de força ou medida da exigência de trabalho que ela representa. A
característica de exercer pressão é comum a todas as pulsões; é de
fato sua própria essência.” (Freud, 1915/1980, p.142). O afeto é
ligado de forma direta à Drang da pulsão.
2) Origem ou fonte (Quelle), que é “o processo somático que ocorre
num órgão ou parte do corpo e cujo estímulo é representado na
vida mental por uma pulsão.” (p.143). A fonte de uma pulsão se
encontra nas zonas erógenas do corpo e, como coloca Freud,
“embora as pulsões sejam inteiramente determinadas por sua
origem numa fonte somática, na vida mental nós as conhecemos
apenas por suas finalidades.” (p.144).
27 Nessa citação, os termos em alemão que estão entre parênteses correspondem ao texto original no alemão, Freud, (1915/1987) Die Verdrängung, p.254-5. 28 Aqui Freud se refere ao representante ideativo.
38
3) Objetivo ou finalidade (Ziel), que “é sempre a satisfação, que só
pode ser obtida eliminado-se o estado de estimulação na fonte da
pulsão.” (p.142). Pode haver diferentes caminhos que levem à
satisfação, finalidade última e imutável de cada pulsão, de maneira
que uma pulsão pode ter “várias finalidades mais próximas ou
intermediárias, que são combinadas ou intercambiadas entre si (...)
há pulsões que são ‘inibidas em sua finalidade’ (...) no sentido da
satisfação pulsional ser inibida ou defletida (...) mesmo assim esses
processos envolvem uma satisfação parcial.” (p.143).
4) Objeto (Objekt) é o meio através do qual a pulsão pode atingir sua
finalidade: a satisfação. O objeto “é o que há de mais variável
numa pulsão e, originalmente, não está ligado a ela.” Não é
necessariamente estranho, podendo ser uma parte do próprio corpo
da pessoa. “Pode ser modificado quantas vezes for necessário no
decorrer das vicissitudes que a pulsão sofre”, podendo um mesmo
objeto servir ao mesmo tempo para a satisfação de várias pulsões.
Não há correlação entre objeto e pulsão; por isso mesmo é que
fantasiamos ou que existe a fantasia! Mas, pode ocorrer o que
Freud chama de fixação, ou seja, “uma ligação particularmente
estreita da pulsão com seu objeto” sendo que ocorre,
“freqüentemente em períodos muito iniciais do desenvolvimento de
uma pulsão, pondo fim à sua mobilidade por meio de sua intensa
oposição ao desligamento.” (p.143). Aqui Freud se refere ao
chamado recalque primário, do qual falaremos no capítulo três.
Para Freud, a espécie humana sempre vai ter que lidar com a questão de
uma energética pulsional que marca sua relação com o outro (a mãe, o pai, a
família, o professor, a cultura), que determina, portanto, as características dos
laços sociais e que dá o movimento da subjetividade, seu colorido.
Desse modo, é no processo de desenvolvimento da pulsão, na constituição
da subjetividade, assim como no decorrer da vida, que as pulsões são obrigadas a
procurar diferentes destinos. Entretanto, Freud enuncia destinos diferentes para a
representação (Vorstellung) e para o afeto (Affekt). Portanto, o afeto não está
necessariamente ligado à representação e é exatamente essa separação que garante
a cada um dos representantes psíquicos da pulsão diversos destinos diferentes.
39
Como coloca Freud (1915/1980), “ao descrevermos um caso de recalque
(Verdrängung)29, teremos de acompanhar separadamente, aquilo que acontece à
idéia (Vorstellung) como resultado do recalque e aquilo que acontece à energia
pulsional (quantum de afeto) vinculada a ela.” (p.176).
Dessa maneira, o recalque incide sobre o representante ideativo da pulsão,
podendo designar quatro vicissitudes: 1) reversão a seu oposto, em que a pulsão
tem uma mudança na finalidade, por exemplo, da passividade para atividade, caso
exemplificado por meio dos pares sadismo-masoquismo (torturar / ser torturado) e
escopofilia-exibicionismo (olhar / ser olhado); e, também, uma reversão no seu
conteúdo, como no exemplo isolado da transformação de amor em ódio; 2)
retorno em direção ao próprio eu do indivíduo, situação em que a essência do
processo está na mudança do objeto, ao passo que a finalidade permanece
inalterada. “O masoquismo é na realidade, o sadismo que retorna em direção ao
próprio ego do indivíduo e o exibicionismo abrange o olhar para seu próprio
corpo.” Nesses exemplos, o retorno contra a própria pessoa “e a transformação da
atividade em passividade convergem ou coincidem.”; 3) sublimação, que é o
destino mais elevado de uma pulsão, pois implica em direcionar sua energia para
fins não-sexuais, portanto, priorizando o coletivo em detrimento do pessoal; a
sublimação “situa os objetivos sociais acima dos sexuais”30; e 4) recalque, um dos
destinos que uma moção pulsional pode sofrer, passando para o estado de
recalcado. (1915/1980, p.147-8). “É a operação pela qual o indivíduo procura
repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens,
recordações) ligadas a uma pulsão.” (Laplanche, 1986, p.553). O recalque produz-
se quando a satisfação (finalidade) de uma pulsão ameaça provocar desprazer.
Vale ressaltar que Freud (1915/1980) também considera essas vicissitudes
como modalidades de defesas contra as exigências pulsionais. (p.147). Em
Inibições, sintomas e angústia (1926), deixa claro que, além do recalque, há
29 Nesse estudo optamos pelo uso do termo recalque como tradução para o termo alemão Verdrängung, mesmo que na ESB das Obras Completas de Sigmund Freud a tradução para Verdrängung apareça como “repressão”. Na língua portuguesa, assim como na língua francesa, há psicanalistas que adotam a diferenciação entre recalque (Verdrängung) e repressão (Unterdrückung). O primeiro, indica a passagem de um sistema (pré-conciente/consciente) para outro (inconsciente), o que enfatiza ser o recalque um processo inconsciente; enquanto que, no segundo, trata-se de uma exclusão da consciência e não da passagem de um sistema para outro, portanto, um mecanismo consciente. Tendo em vista que a tradução das Obras Completas de Freud para o português foi realizada do inglês e não diretamente do alemão, nossa escolha implica num cuidado terminológico e numa preferência de estilo. 30 Freud, (1916-1917) Conferencia XVII, p.403-4.
40
outros processos que o ego utiliza para se defender das exigências pulsionais.
Cada defesa está relacionada a fases de desenvolvimento do ego, sendo que as
duas primeiras vicissitudes citadas acima correspondem às defesas mais primárias
do aparelho psíquico, correspondentes ao período anterior à separação entre ego e
id e anterior à formação do superego. Posteriormente, o aparato psíquico melhor
desenvolvido lançará mão do recalque e da sublimação. Entretanto, diz ele:
... pode muito bem acontecer que antes da sua acentuada clivagem em um ego e um id, e antes da formação do superego, o aparelho mental faça uso de diferentes métodos de defesa dos quais ele se utilize após haver alcançado essas fases de organização. (1980, p.188-9).
Acompanhamos o que acontece à idéia (representante ideativo) como
resultado do recalque. Vejamos agora, o que acontece ao afeto ligado a ela.
No que tange ao afeto, segundo Freud (1915), suas vicissitudes podem ser
três:
O fator quantitativo do representante pulsional (Triebrepräsentanz)31 possui três vicissitudes possíveis:... ou a pulsão é inteiramente suprimida (unterdrückut), de modo que não se encontra qualquer vestígio dela, ou aparece como um afeto (Affekt) que de uma maneira ou de outra é qualitativamente colorido ou transformado em angústia (Angst). As duas últimas possibilidades nos apontam a tarefa de levar em conta, como sendo uma vicissitude pulsional ulterior, a transformação em afetos e, especialmente em angústia, das energias psíquicas das pulsões (Trieben). Recordamos o fato de que o motivo e o propósito do recalque (Verdrängung) nada mais eram do que a fuga ao desprazer. Depreende-se disso que a vicissitude da quota de afeto (Affektbetrag) pertencente ao representante (Repräsentanz) é muito mais importante do que a vicissitude da idéia (Vorstellung) ... Se um recalque não conseguir impedir que surjam sentimentos de desprazer ou de angústia (Angst), podemos dizer que falhou, ainda que possa ter alcançado seu propósito no tocante à parcela ideacional (Vorstellungsanteil). (1980, p.177).
Além disso, ao mesmo tempo em que Freud (1926) caracteriza cada
organização neurótica segundo seus modos específicos de defesa, também
31 Nessa citação, os termos em alemão que estão entre parênteses correspondem ao texto original no alemão, Freud, (1915/1987) Die Verdrängung, p.256-7.
41
relaciona, desde muito cedo (1894)32, as mesmas formações neuróticas conforme
os diferentes destinos do afeto: “conheço três mecanismos: a transformação do
afeto (histeria de conversão); o deslocamento do afeto (obsessões); e troca do
afeto (neurose de angústia e melancolia).” (1980, p.210).
Desde As neuropsicoses de defesa (1894), Freud destaca a importância
teórica do quantum ou cota de afeto33. Diz ele:
Gostaria finalmente de demorar-me por um momento na hipótese de trabalho que utilizei nesta exposição das neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que nas funções mentais deve ser distinguida alguma coisa – uma cota de afeto ou soma de excitação – que apresenta todas as características de uma quantidade (embora não disponhamos de meios para medi-la), capaz de crescimento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços de memória das idéias, tal como uma carga elétrica se expande na superfície de um corpo. (1980, p.73; os grifos são meus).
Essa passagem assinala a importância da linguagem econômica no
pensamento freudiano. Na expressão “cota de afeto” (Affektbetrag), o afeto está
ligado à noção de quantidade de energia pulsional, enquanto que o afeto remete à
qualidade subjetiva. Como assinala Green (1982), a “soma de excitação” ou
... energia de investimento se refere a uma quantidade de energia em jogo numa operação, enquanto cota de afeto designa apenas o aspecto quantitativo energético ligado ao aspecto subjetivo qualitativo que, por assim dizer, “qualifica” o afeto. Portanto, se todo afeto remete ao aspecto quantitativo de energia pulsional que lhe corresponde, nem toda quantidade de energia está forçosamente relacionada com um afeto. (p.19).
No apêndice que acompanha o artigo de Freud citado acima, Strachey
(1980) comenta a aparente equivalência dos termos “cota de afeto” (Affektbetrag)
e “soma de excitação” (Erregungssumme):
A explicação da aparente ambigüidade parece residir na subjacente concepção de Freud da natureza dos afetos (...) em O inconsciente.(1915)(...) Freud declara que os afetos “correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos.”. Do mesmo modo, na
32 Freud, (1892-1899) Carta 18 (21 de maio de 1894). 33 Retoma a expressão cota de afeto nos Artigos sobre metapsicologia (1915).
42
Conferência XXV. (1916-7), ele indaga sobre o que é um afeto “em sentido dinâmico”, e continua: “uma afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou descargas motoras e, em segundo luigar, certos sentimentos; estes são de dois tipos: percepções das ações motoras que ocorreram e sentimentos diretos de prazer e desprazer que, conforme dizemos, dão ao afeto seu traço predominante.” Por último no artigo O recalque (1915),(...) ele escreve que a quota de afeto “corresponde a pulsão na medida em que esta... encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são sentidos como afetos. Assim, é provavelmente correto supor que Freud considerava a “cota de afeto” como uma manifestação particular da “soma de excitação”. (p.81-2; os grifos são meus).
Barros (1975) retoma esse aspecto, assinalando que “podemos afirmar,
com segurança, que a ‘cota de afeto’ é o concomitante psicológico da ‘soma de
afeto’ e que esta corresponde ao fator intensivo da energia de excitação
neurônica.” (p.53). Ou seja, “alguma coisa” a que Freud (1894) se refere34,
representa ao mesmo tempo “a intensidade da energia neurônica (capaz de
aumento e diminuição) e a quantidade da mesma energia (capaz de deslocamento
e descarga)”. (Barros, 1975, p.53).
A respeito da mesma passagem freudiana, Green (1982) mostra que Freud
distingue quatro fatores a respeito da noção de afeto ou, mais precisamente, da
cota de afeto: 1)a quantidade mensurável de direito, se não de fato; 2)a variação
dessa quantidade; 3)o movimento ligado a essa quantidade; 4)a descarga. (p.30).
Dessa maneira, quantum de afeto e soma de excitação35 não são a mesma
coisa.
Outro aspecto interessante que Green (1982) aponta, diz respeito ao termo
“moção pulsional” (Triebregung). É um termo problemático na discussão
semântica e também um ponto que divide estudiosos e tradutores de Freud. De
qualquer maneira, Green (1982) coloca que o termo não é sinônimo de pulsão
(Trieb). Para ele, moção pulsional designa a pulsão sob seu aspecto dinâmico e
não deixa de ter relação com a soma de excitação ou energia de investimento:
Ela representa o correlato dinâmico do que a energia de investimento é no nível econômico... A noção de afeto sempre
34 Vide segunda citação da página anterior. 35 É a soma de excitação que o aparelho psíquico procura manter constante. Esse é o postulado do Princípio de Constância desenvolvido por Freud desde o manuscrito de 1892, princípio este precursor do Princípio de prazer, ambos relativos ao ponto de vista econômico do psiquismo.
43
esteve ligada por Freud à descarga, isto é, a um processo em ato e em movimento. Portanto, pode-se dizer que moção é uma qualificação geral da pulsão e o afeto indica uma direção particular (movimento para o interior do corpo) desta última. (p.20).
Dessa maneira, os destinos do afeto que enunciamos anteriormente
referem-se aos destinos do fator quantitativo da moção pulsional. Há uma
passagem de Freud, na parte III do artigo metapsicológico O Inconsciente (1915)
que, não só trata desse fato, como traz à luz questões importantes sobre os afetos,
por exemplo, os afetos inconscientes:
Em geral, o emprego das expressões “afeto inconsciente” e “emoção inconsciente” refere-se a vicissitudes sofridas, em conseqüência do recalque, pelo fator quantitativo da moção pulsional. Sabemos que três dessas vicissitudes são possíveis: ou o afeto permanece, no todo ou em parte, como é; ou é transformado numa cota de afeto qualitativamente diferente, sobretudo em angústia; ou é suprimido, isto é, impedido de se desenvolver... Sabemos também, que suprimir o desenvolvimento do afeto constitui a verdadeira finalidade do recalque e que seu trabalho ficará incompleto se essa finalidade não for alcançada. (1980, p.204; os grifos são meus).
Nessa medida, o recalque torna a representação inconsciente (latente,
irreconhecível pelas deformações e associações, enfim, pelos mecanismos
inconscientes), enquanto que suprime (distancia da consciência) o fator
quantitativo, o investimento energético da pulsão. Assim, nos dizeres de Green
(1982), “no sentido econômico, é o afeto que deve ser tornado inconsciente; no
sentido tópico e sistemático, é a representação... o afeto reprimido é tornado
inconsciente; a repressão é o objetivo específico do recalque.” (p.55).
Freud (1915) esclarece, então, que o verdadeiro objetivo do recalque é
suprimir o desenvolvimento do afeto e não somente afastar certos conteúdos da
consciência. Em outras palavras, o recalque consiste em impedir a manifestação
afetiva da moção pulsional e a atividade muscular correspondente. Esse fato
clarifica como o sistema Cs. controla tanto o acesso à motilidade quanto à
afetividade.
E continua Freud (1915):
44
Em todos os casos em que o recalque consegue inibir o desenvolvimento de afetos, denominamos esses afetos (que restauramos quando desfazemos o trabalho do recalque) de “inconscientes”. Assim, não se pode negar que o emprego das expressões em causa é coerente, embora, em comparação com idéias inconscientes continuam a existir como estruturas reais no sistema Ics., ao passo que tudo naquele sistema que corresponde aos afetos inconscientes é um início potencial impedido de se desenvolver. A rigor, então, e ainda que não se possa criticar o uso lingüístico, não existem afetos inconscientes da mesma forma que existem idéias inconscientes. Pode porém, muito bem haver estruturas afetivas no sistema Ics., que, como outras, se tornam conscientes. A diferença toda decorre do fato de que idéias são catexias – basicamente de traços de memória –, enquanto que os afetos e as emoções correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. (1980, p.204-5; os grifos são meus).
Na medida em que as representações são catexias (investimentos)
fundadas em traços mnêmicos, e os afetos e emoções correspondem a processos
de descarga, sendo as emoções manifestações finais percebidas como sensações
(sentimentos), o que está em jogo é o fator quantitativo da moção pulsional, pois
no afeto este fator é rebelde, exige descarga, é ingovernável, enquanto que nos
traços mnêmicos ele é manejável, passível de ser ligado.
Dessa maneira, mesmo que inadequada, a expressão “afetos inconscientes”
refere-se à inibição do desenvolvimento do afeto causada pelo recalque. É nesse
sentido que os “afetos inconscientes” existem, mas, como coloca Green (1982), “o
inconsciente não se dá do mesmo modo para o afeto e para a representação.”
(p.55).
Entretanto, detecta-se uma ambigüidade nas colocações de Freud a
respeito do teor inconsciente do afeto. Primeiro, diferencia idéia inconsciente de
afeto inconsciente, uma vez que a idéia inconsciente (ou recalcada) fica
representada no inconsciente por uma estrutura real, ao passo que isso não
acontece com o afeto. Porém, logo depois lança a possibilidade da existência de
“estruturas afetivas no sistema Ics”, como maneira de resolver a questão
inconsciente do afeto.
Vejamos então, essa idéia de estrutura afetiva na tentativa de esboçar uma
proposta que “resolva” essa problemática dos afetos inconscientes.
Barros (1975) trabalha esse termo e mostra que, da mesma forma que há
uma memória cognitiva (uma estrutura para as representações), há uma memória
45
afetiva (uma estrutura para os afetos). Além disso, demonstra, precisamente, os
significados dos vários construtos psicanalíticos em torno da palavra Affekt. Diz
ele:
Assim como a percepção dos objetos do mundo exterior (Wahrnehmung) deixa um resíduo mnêmico (Erinnerungsspur), também a percepção das oscilações tensionais e das descargas viscerais, do mundo endógeno (Empfindung), é acompanhada de um outro tipo de resíduo mnêmico, a estrutura afetiva (Affektbildung)... uma memória cognitiva (Erinnerungsspur) é uma estrutura neural que, energizada por um afeto (Affektgrösse), durante os processos de evocação ou (re)percepção, adquire uma certa intensidade psíquica (Affektbetrag) – apresentando-se então, como uma experiência psíquica, ideacional (Vorstellung), ou perceptual (Wahrnehmung). Do mesmo modo, uma estrutura afetiva (Affektbildung) é uma estrutura neural que, energizada por um afeto (Affektgrösse), durante os processo de evocação ou (re)percepção, adquire uma certa intensidade psíquica (Affektbetrag) – apresentando-se então, como uma experiência psíquica, emocional (Affektzustand) ou endo-perceptual (Empfindung). Cada uma dessas experiências psíquicas (Vorstellung, Wahrnehmung; Affektzustand, Empfindung) são processos conscientes, porque energizados pelo Affektgrösse. Separados dessa quantidade de excitação, isto é, recalcadas, as estruturas neurais subjacentes (Erinnerungsspur, Affektbildung) ficam inconscientes (na formulação dos anos 90). Se ocorrem simultaneamente uma percepção exógena (Wahrnehmung) e uma percepção endógena (Empfindung), então os respectivos resíduos mnêmicos (Erinnerungsspur e Affektbildung) ficarão associados, por facilitação neurônica.(...) Na linguagem freudiana, a conexão entre uma idéia e um afeto pode corresponder, ora à ligação entre uma memória (Erinnerungsspur) e uma quantidade de afeto (Affektgrösse), ora à associação entre uma idéia (Vorstellung) e um estado afetivo (Affektzustand) e, portanto, entre os seus engramas (Erinnerungsspur e Affektbildung). Evidentemente, é a existência do conflito (associação de uma idéia a um estado afetivo penoso) que mobiliza a defesa do “ego” (separação das estruturas mnêmicas subjacentes – Erinnerungsspur e Affektbildung – de suas quantidades de afeto). As estruturas mnêmicas ficam recalcadas, inconscientes, e as quantidades de afeto podem ser convertidas (na histeria de conversão), deslocadas (na neurose obsessiva), descarregadas visceralmente (na histeria ansiosa), etc. Com o retorno do recalcado, aparecem as idéias obsessivas e os afetos (estados afetivos) obsessivos, porque as estruturas mnêmicas recebem, novamente, quantidades de afeto. Na histeria ansiosa, a quantidade de afeto, que é descarregada visceralmente, está produzindo uma “expressão de emoção”. (p.61).
46
Nessa linha de argumentação, Loffredo (1975) esclarece alguns pontos em
relação aos representantes pulsionais, ou seja, Vorstellung e Affekt. Vejamos:
Podemos supor que há no sistema Ics., representando a pulsão, duas estruturas (engramas), uma ideacional e outra afetiva, que denominamos respectivamente, memória e estrutura afetiva. Esses engramas, quando ativados, isto é, catexizados, correspondem a uma idéia e a um estado afetivo, que são os componentes do impulso instintivo36. O processo de repressão37 consistiria na separação dessas estruturas de suas respectivas catexes. A energia assim liberada se deslocaria para outras estruturas ideacionais e afetivas, estando nesse deslocamento a explicação da formação das idéias substitutivas nas neuroses e as vicissitudes possíveis para o componente afetivo do impulso. O termo reprimido38 aplica-se, portanto, tanto à estrutura ideativa como à estrutura afetiva, que permanecem decatexizadas. (p.22).
Desse modo, Loffredo (1975) contribui com a idéia de que há para todo
afeto uma estrutura afetiva correspondente e inconsciente. E, tendo em vista que
a angústia é um afeto, há uma estrutura afetiva para ela também, de modo que o
estado afetivo de angústia corresponderia a uma reativação desse engrama,
referente à primeira experiência de angústia (angústia automática ou econômica),
que à luz da teorização desenvolvida em Projeto para uma psicologia científica
(1895), estaria registrada no sistema Psi-Pallium39 (sinal de angústia).
Retomaremos essa questão no próximo tópico.
Pelas colocações de Barros (1975) e Loffredo (1975), o estado afetivo
(Affektzustand) corresponde ao quantum de afeto (Affektbetrag) que energiza uma
estrutura afetiva (Affektbildung) e dessa maneira, o que é verdadeiramente
inconsciente não é o afeto (Affekt), mas a estrutura afetiva – proposta que nos
instrumentaliza para dar encaminhamento a questões relativas à angústia. Aqui
cabe a pergunta: qual é a origem e a matriz (estrutura afetiva) da angústia?40
36 Leia-se moção pulsional. 37 Leia-se recalque. 38 Leia-se recalcado. 39 Trata-se de um dos sistemas neurônicos propostos por Freud em 1895, no Projeto para uma psicologia científica, referente à primeira topografia do aparelho psíquico. São eles o sistema Phi (φ ), Psi (Ψ) – subdividido em sistema Psi-Nuclear e Psi-Pallium –, e Ômega ( ω ), sendo que o aparelho psíquico propriamente dito, é formado apenas pelos sistemas Psi-Pallium e Ômega. 40 Veremos no próximo tópico, que Freud situa a origem da angústia como o desamparo primordial podendo a estrutura afetiva ser filogenética: a angústia de castração.
47
Nesse sentido, temos um quantum de afeto que energiza uma estrutura
afetiva, originando um estado afetivo e um quantum de afeto que energiza um
estrutura ideativa, originando uma idéia ou representação. A ligação entre o
representante ideativo e o afeto (complexo representação-afeto) implica na ligação
entre essas duas formas. Portanto, o recalque é a separação dessas duas formas,
assim como a repressão implica na supressão do quantum de afeto correspondente
a cada uma. Vejamos o que diz Freud (1915):
É de especial interesse para nós o estabelecimento do fato de que o recalque pode conseguir inibir uma moção pulsional, impedindo-a de se transformar numa manifestação de afeto. Isso mostra que o sistema Cs. normalmente controla não só a afetividade como também o acesso à motilidade, e realça a importância do recalque, mostrando que ele resulta não apenas em reter coisas provenientes da consciência, mas igualmente em cercear o desenvolvimento do afeto e o desencadeamento da atividade muscular (...). A importância do sistema Cs.(Pcs.) no que se refere ao acesso à liberação do afeto e à ação, permite-nos também compreender o papel desempenhado pelas idéias substitutivas na determinação da forma assumida pela doença. É possível ao desenvolvimento do afeto proceder diretamente do sistema Ics.; nesse caso, o afeto sempre tem a natureza de angústia, pela qual são trocados todos os afetos “recalcados”(“verdrängten”Affekte). Com freqüência, contudo, a moção pulsional tem de esperar até que encontre uma idéia substitutiva no sistema Cs. O desenvolvimento do afeto pode então provir desse substituto consciente e a natureza desse substituto determina o caráter qualitativo do afeto. (1980, p.205-6).
É nesse artigo que Freud admite a existência de afetos (quantum de energia
pulsional) que irrompem diretamente do inconsciente para a consciência: a
transformação em angústia é originária, portanto, de um “afeto inconsciente”; ou,
mais precisamente, da estrutura afetiva correspondente a ela que, energizada por
um quantum de afeto, designará determinado estado afetivo de angústia. Esse
ponto Freud retomará no artigo Inibições, sintomas e angústia. (1926), e portanto,
já na segunda tópica, em que postula a existência de afetos do id, como a angústia
automática, uma transformação bruta e violenta da energia livre que penetra no
ego vinda diretamente do id, antes que qualquer elaboração psíquica
(simbolização, ligação) tenha podido funcionar. Veremos, no próximo tópico, que
esse é o processo que ocorre no estado afetivo do pânico.
48
Nos Estudos Sobre Histeria (1895), Strachey (1980) lembra-nos de que
Freud citou duas vezes o volume de Darwin sobre o assunto (Darwin, 1872) e, na
segunda ocasião, recordou que Darwin ensinara que a expressão das emoções
“consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma
finalidade (ESB, v.II, p.231)” (p.103) de modo que podemos pensar numa
abordagem teleológica.
E o comentador continua: “num debate perante a sociedade psicanalítica
de Viena em 1909, Freud, segundo Jones (1955, 494) havia afirmado que ‘todo o
afeto... é apenas uma reminiscência de um fato’.” (Strachey, 1980, p.103, os
grifos são meus). Esse fato implica que, quando expressamos um tipo de emoção,
ela é parecida em todos os seres humanos. Por exemplo, a expressão de alegria é
parecida para todos nós; alguém que está alegre não tem a expressão de um
deprimido. É a comunicação não-verbal dos pacientes. É evidente que se trata do
aspecto, do colorido, de uma expressão das emoções que se encarna. Se uma
pessoa está triste, o corpo fica triste. Nessa medida, Freud está voltado no que dá a
formatação da emoção, de tal forma que possamos reconhecer no outro ou em nós
mesmos determinada emoção, mesmo que esta esboce certas nuances diferentes
para cada ser humano. “O afeto (...) é apenas uma reminiscência de um fato.” Um
traço de memória?
A seguir, Strachey (1980) pontua que, na Conferência XXV das
Conferências Introdutórias (1916-7), Freud abordou esse ponto novamente e
expressou a crença de que “o ‘núcleo’ de um afeto é a ‘repetição de alguma
experiência significativa específica’.”. (p.103). Chamamos a atenção para a
palavra “repetição”: trata-se, portanto, de alguma coisa que ficou inscrita.
Acrescenta Strachey (1980):
Recordou também a explicação que havia dado anteriormente sobre ataques histéricos (Apreciações gerais sobre os ataques histéricos (1909) parte c) como revivescências de fatos da infância e acrescentou sua conclusão de que ‘um ataque histérico pode ser parecido com um afeto individual recém-construído, e um afeto normal com a expressão de uma histeria geral que se tornou herança.’ Ele repete essa teoria, quase nos mesmos termos, na presente obra (p.30-1 e 72-3). (p.103).
Parece que Freud vai entender o afeto, portanto, como uma espécie de
“histeria da humanidade”.
50
Freud trará no artigo Inibições, sintomas e angústia (1926), uma nova
explicação a respeito da angústia, considerando que o ato de nascer representaria a
primeira experiência de angústia.
O que nos importa, neste momento, é que Freud tem uma teoria dos afetos
e, ao que tudo indica, inspirou-se em Darwin. Parece que considerava o afeto
alguma coisa relativa a uma bagagem que trazemos, talvez da filogênese, para que
o afeto tenha uma “certa carga”, se assim podemos dizer.
É aqui que, mais uma vez, a proposta de Barros (1975) e Loffredo (1975),
a nosso ver, tem fundamento. Do mesmo jeito que uma estrutura representacional
(ou ideativa, memória) pode ser investida (catexizada), caracterizando uma
representação (ou idéia), o mesmo pode valer para o afeto. Podemos pensar que,
para Freud, temos uma formatação de afeto: uma estrutura afetiva.
A estrutura afetiva está no inconsciente, “quietinha” e, ao ser catexizada
por uma carga afetiva, transforma-se num estado afetivo. Esse modo de pensar
pode explicar, por exemplo, o “sentimento de culpa inconsciente”41.
1.4. Um passeio pela teoria da angústia em Freud.
Para vários autores, há consenso em reconhecer duas teorias da angústia na
obra freudiana. Podemos citar como exemplo, Zeferino Rocha – Os destinos da
angústia na psicanálise freudiana (2000); Jean Laplanche – Problemáticas I: a
angústia (1993) / Vocabulário de Psicanálise (1986), no verbete sinal de
angústia); Pierre Kaufman – Dicionário enciclopédico de Psicanálise: o legado de
Freud e Lacan (1996), no verbete angústia; Luiz Hans – Dicionário comentado do
alemão de Freud (1996), no verbete angústia; e Mário Eduardo Costa Pereira –
Pânico e desamparo (1999).
Entretanto, trabalharemos com Green – O Discurso Vivo: Uma Teoria
Psicanalítica do Afeto (1982) e Loffredo – Angústia e repressão: um estudo
crítico do ensaio “Inibição, sintoma e angústia” (1975), para os quais há três
períodos na teoria freudiana da angústia. Contudo, a hipótese de Loffredo vai mais
além: para ela, esses três períodos, poderiam ser considerados “componentes de
41 Retomaremos o sentimento de culpa nos próximos capítulos.
51
uma mesma teoria e referem-se a etapas do mesmo processo” (p.93), como já
enunciamos no tópico anterior.
Os três momentos da teoria da angústia no discurso freudiano seriam,
seguindo a proposta de Green (1982):
1) Presente desde o início de seus trabalhos teóricos (1893 a 1895), esse
primeiro momento, localiza-se em torno do estudo da “Neurose de
Angústia” e suas relações com a vida sexual. Aqui, a angústia é definida
como uma descarga automática, sem a participação do psíquico (quando
há um acúmulo de excitação sexual que ultrapassa um valor limite, não
podendo ser elaborado psiquicamente, é descarregado diretamente para o
corpo).
2) O segundo, de 1909 à 1917, gira em torno das relações da angústia e a
libido recalcada. Inicia-se quando Freud define a Histeria de Angústia
como um processo patológico independente, como aparece no “Pequeno
Hans” (1909). Aqui, a angústia é considerada “um dos resultados
possíveis de serem obtidos” por transformação da libido liberada com o
recalque (Verdrängung). A angústia é fruto do recalque.
3) Finalmente, o terceiro período de 1926 à 1932, corresponde às relações
da angústia e o aparelho psíquico. É uma reformulação do período
anterior. Aqui, a angústia é concebida como a condição necessária para
colocar o processo de recalque em ação. Em “Inibições, sintomas e
angústia.” (1926), Freud expõe essa reformulação, passando a considerar
o ego como sede da angústia. Assim, quando o mesmo se defronta com
“situações de perigo”(ameaça da instalação de uma situação traumática,
de um acúmulo de excitação com o qual o ego não pode lidar) libera
intencionalmente a angústia (angústia sinal).
Vejamos, em linhas gerais, cada um desses momentos.
No primeiro, há uma atenção peculiar à esfera somática como um destino
especial da angústia. É contornado pelos rascunhos dirigidos a Fliess42, pelos
42 Freud, (1893-1895) Extratos dos documentos dirigidos a Fliess – Rascunhos B, E, F, J.
52
primeiros escritos sobre fobias43 e fundamentalmente, pelo artigo sobre a neurose
de angústia, além da réplica às críticas que este ensaio provocou44.
É no trabalho de Freud sobre as “neuroses atuais”, em particular a
neurose de angústia, que a angústia se inscreve no corpo. Preocupado que estava
com a etiologia das neuroses, observou que os indivíduos tinham uma vida sexual
precária: ou excesso ou gasto de libido. Nas “neuroses atuais”, supunha que um
fator real (concreto) e atual (no tempo, não era algo do passado infantil)
desencadeava a neurose. Correspondia à vida sexual atual e posterior à maturidade
sexual: aumento de masturbação, abstinência sexual, coito interrompido etc. Na
neurose atual, o fator sexual era o fator real. Então, o acúmulo de libido física se
transformava diretamente em angústia. Assim, na neurose atual não havia
recalque (Verdrängung), era a prática sexual atual que determinava a neurose. O
paciente transformava a excitação psíquica em angústia: não havia mediação
psíquica.
No texto Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma síndrome
particular intitulada Neurose de Angústia (1895), Freud distingue a neurastenia
da neurose de angústia tanto em sua sintomatologia quanto em sua etiologia. Na
primeira, o que estava em jogo era a escassez de energia sexual, adquirida assim
através do aumento da masturbação. Já a neurose de angústia decorria de um
aumento, um acúmulo da energia sexual, fosse por abstinência, excitação não-
consumada ou coito interrompido. Porém, para Freud, na “vida real” essas
neuroses, geralmente, apareciam combinadas (neuroses mistas). Assim, dizia ele,
“a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo da libido sexual, ou
desejo psíquico (...) o mecanismo da neurose de angústia deve ser procurado em
uma deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica, com um
conseqüente emprego anormal dessa excitação.” (1980, p.126).
Dessa maneira, como afirma Green (1982), “os sintomas da neurose de
angústia são substitutos da ação específica (o coito) que deveria seguir
normalmente a excitação sexual.” (p.75).
43 Freud, (1894) As Neuropsicoses de Defesa, (1895) Obsessões e Fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia, (1896) Novos comentários sobre as Neuropsicoses de Defesa.. 44 Freud, (1895) Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma síndrome particular intitulada Neurose de Angústia, (1895) Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia, (1897) Sinopses dos escritos científicos do Dr. Sigmund Freud.
53
É importante ressaltar que nessa época, 1895, Freud não havia postulado
as pulsões, como o faria posteriormente. Sua noção de pulsão era de um lado a
excitação sexual somática (“libido física”) e de outro lado libido sexual ou desejo
psíquico (“libido psíquica”). Como esclarece Rocha (2000),
... as duas faces da libido (física e psíquica) antecipam o que Freud vai dizer depois sobre o conceito fronteiriço (Grenzbegriff) da pulsão (Trieb), que articula também dois mundos: o somático e o psíquico. A libido, na sua face física, é um “quantum energético” que pode aumentar e diminuir, ser “de mais”, ou ser “de menos”. Na sua face psíquica, ela é qualitativa, pois existe na medida em que é ligada às representações psíquicas, fruto da elaboração do trabalho do aparelho psíquico e se manifesta sob a forma do prazer ou do desprazer. (p.54).
Nesse sentido, Laplanche (1993) indica que
... na teoria freudiana, o acúmulo de excitação somática – o qual é, efetivamente, considerado causal na angústia – jamais é explicado diretamente pela ausência de descarga ou de orgasmo. (...) o que falta, em primeiro lugar, é a ausência de psiquisação ou (...) a ausência de “simbolização” da excitação somática. O problema na neurose atual é um problema de simbolização ou mesmo de fantasmatização. O que é patogênico é a ausência de libido psíquica ou ausência de elaboração psíquica da excitação. (...) É a insuficiência da libido psíquica que acarreta uma derivação imediata da tensão
Para Freud (1895) a neurose de angústia compreende os sintomas de: 1)
irritabilidade geral – “em que a irritabilidade aumentada sempre indica um
acúmulo de excitação ou uma inabilidade em tolerar tal acúmulo”; 2) expectativa
ansiosa: é o sintoma nuclear da neurose de angústia, podendo ser de três níveis –
há um quantum de energia livremente flutuante (um mínimo de expectativa
ansiosa); pode se concretizar ocasionalmente, fixando-se em qualquer coisa, “pega
carona” na primeira representação disponível (fobia típica); uma tendência à
concepção pessimista das coisas. 3) A característica fenomenológica indica um
ser ansioso sem saber o porquê; com conteúdo vago (medo da morte, ameaça de
loucura ou medo de ficar louco); ligado a um distúrbio sensorial ou de uma
disfunção corporal (respiração, função cardíaca, vasomotora e glandular), em
que há sempre um mal-estar somático; uma fobia típica estruturada, na qual se
desenvolvem dois grupos: “o primeiro relacionado a riscos fisiológicos gerais e o
segundo à locomoção.” Pertencem ao primeiro grupo medos naturais, como de
cobra, insetos, altura, tempestades, etc. O outro grupo inclui “a agorafobia com
todas as suas formas acessórias caracterizadas por sua relação com a locomoção.”
(1980, p.109-16; os grifos são meus).
Junto à sintomatologia, Freud anexa uma lista das formas de ataque de
angústia por ele conhecidas: a) ataques de angústia acompanhados por distúrbios
de atividade cardíaca, tais como palpitação ou arritmia transitória ou com
taquicardia de duração mais longa; b) ataques de angústia acompanhados por
distúrbios respiratórios, como dispnéia nervosa, asma e equivalentes; c) ataques
de suor, geralmente à noite; d) ataques de tremuras e calafrios; e) ataques de fome
devoradora, acompanhados de vertigem; f) diarréia sobrevindo em forma de
ataques; g) ataques de vertigem locomotora; h) ataques de congestão; i) ataques de
parestesias. (1980, p.112-13; os grifos são meus).
A título de comparação, o DSM-III-R (1990) descreve a Síndrome do
Pânico (com ou sem agorafobia) como: “Em alguns momentos durante a
perturbação, um ou mais ataques de pânico (períodos discretos de medo intenso
ou desconforto) ocorreram: (1) inesperadamente (...) e (2) não são disparados por
situações nas quais a pessoa foi o foco de atenção dos outros; (...) pelo menos
quatro dos seguintes sintomas se desenvolveram durante pelo menos um dos
ataques: falta de ar (dispnéia) ou sensações de asfixia; vertigem, sentimentos de
instabilidade ou sensação de desmaio; palpitações ou ritmo cardíaco acelerado
55
(taquicardia); tremor ou abalos; sudorese; sufocamento; náusea ou desconforto
abdominal; despersonalização ou desrealização; anestesia ou formigamento
(parestesias); ondas de calor ou calafrios; dor ou desconforto no peito; medo de
morrer; medo de enlouquecer ou de cometer ato descontrolado. (p.91-2; os grifos
são meus).
Encontramos aqui, do ponto de vista sintomatológico, a referência de
Freud a algo que se apresenta contemporaneamente como vemos no DSM-III-R
(1990), constatada a semelhança da descrição fenomenológica e sintomatológica
dos mesmos46. Contudo, divergindo na compreensão teórica e metodológica,
como já assinalamos no início do nosso trabalho. No âmbito desse estudo
tratamos a questão psicopatológica do pânico, no plano psicanalítico, por meio de
uma abordagem metapsicológica amparada na noção freudiana de desamparo
(Hilflosigkeit). Como coloca Pereira (1999):
... a teorização freudiana do desamparo (...) situa o problema do pânico para além da simples descrição fenomenal e para além de uma simples psicologia dos afetos. Considerado por Freud como “o núcleo, a situação de perigo” (der Kern, die Bedeutung de Gefahrsituation) constitui uma noção psicopatológica capital, situando-se no cerne da teoria de angústia, das hipóteses sobre o traumatismo psíquico e da compreensão deste afeto desenfreado que o terror (Schreck) constitui. (p.36).
Continuemos nosso caminho metapsicológico.
No artigo Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia
(1895), Freud aprofunda a complicada situação etiológica da neurose de angústia
postulando o conceito de “equação etiológica” (que serve a todo tipo de neurose),
da qual fazem parte os seguintes componentes:
a) Pré-condição: fator indispensável para a produção da neurose, mas
insuficiente por si só. No caso da neurose de angústia, é relativo à
hereditariedade.
b) Causa Específica: sempre vai estar presente e, para ocorrer a neurose, há a
necessidade de se chegar a um certo grau de intensidade (quantidade de
excitação). Em relação à neurose de angústia, esse fator é sexual, no
46 Observem os grifos.
56
sentido de uma deflexão ou desvio da tensão sexual somática em relação
ao campo psíquico (não há elaboração psíquica ou simbolização).
c) Causas Auxiliares: não são indispensáveis para a produção da neurose,
mas se unem às demais causas (a e b), compondo a “equação etiológica”.
Na neurose de angústia, referem-se a quaisquer perturbações banais como
emoção, terror, exaustão física. (1980, p.156-160).
A equação etiológica demonstra que, para Freud, as neuroses são
sobredeterminadas, visto que para sua ocorrência há uma confluência de
várias causas. É a causa específica que determina o tipo de neurose, contudo,
sua ocorrência ou não vai depender do fator quantitativo em jogo47, na
capacidade do sistema de suportar a intensidade da tensão. Assim, um fator
específico para a neurose de angústia pode estar presente, mas a “patologia” só
vai aparecer se houver um acréscimo quantitativo proveniente de uma causa
auxiliar, por exemplo, um acidente, que atua como fator desencadeante. O
fator quantitativo é a soma das causas sobredeterminadas.
Por fim, das “neuroses atuais” Freud destacou as psiconeuroses (histeria
de conversão, neurose obsessiva e histeria de angústia), nas quais ocorria a
mediação simbólica da qual resultavam os sintomas psíquicos, como, por
exemplo, a cegueira histérica.
Nesse contexto, quais seriam as diferenças entre neurose de angústia e
histeria de conversão? Na histeria de conversão há uma transformação do
psíquico sexual para o somático, enquanto que na neurose de angústia a
transformação é do físico sexual para o somático. Tendo em vista que a conversão
histérica conserva a capacidade de elaboração psíquica, pertence ao simbólico.
Entretanto, como na neurose de angústia o mesmo não acontece, ela não tem mais
vínculos com a simbolização. Para Green (1982), “neste caso pode-se falar de
uma perturbação econômica e simbólica desqualificante.” (p.75).
Nas psiconeuroses os sintomas são produzidos para impedir o
aparecimento da angústia. Aqui, destaca-se o segundo momento da teoria da
angústia. Neste, Freud aborda a angústia inscrita no psiquismo relacionada às
pulsões recalcadas. Aqui, o acento cai sobre a dominância do conflito psíquico,
saindo da esfera da relação da angústia com o corpo. Freud preocupa-se com as
47 Vide p.26.
57
relações entre os representantes afetivo e ideativo da pulsão, direcionando-se para
a transformação e destino do afeto.
Embora a angústia responda a uma libido recalcada, é o recalque o
promotor de sua transformação em angústia. E o recalque é inseparável de uma
situação de perigo.
“Pequeno Hans” (1909), Artigos sobre Metapsicologia (1915), XXV
Conferência Introdutória sobre psicanálise (1917) e “O Homem dos Lobos”
(1918) são os artigos principais de referência sobre esse segundo momento da
teoria da angústia.
No estudo sobre o “Pequeno Hans”48, em 1909, Freud considerou a fobia
como um processo psicopatológico independente, que passou a ser designada
como “histeria de angústia”. Escolheu essa denominação pela semelhança
existente com a “histeria de conversão”, pois, em ambas, o mecanismo do
recalque proporciona a separação entre os representantes ideacional e afetivo.
Contudo, na histeria de angústia, a libido não é convertida, como na histeria de
conversão (libido desviada da esfera mental para a esfera somática), mas é
liberada sob a forma de angústia, orientando-se no sentido de uma fobia. Há um
deslocamento da angústia sobre um objeto que se torna fóbico, como meio de
defesa contra essa angústia, ou seja, houve uma formação substitutiva49, em que o
objeto fóbico passou a ser cada vez mais a fonte geradora de angústia, cada vez
mais a própria formação substitutiva.
Na XXV Conferência Introdutória sobre psicanálise: A angústia (1917),
Freud distingue a “angústia real” (Realangst)50 da “angústia neurótica”
(neurotischen). Considerava que a primeira ocorre diante de um perigo real, como
uma interpretação dos sinais de perigo que ameaçam a integridade física do
sujeito, portanto, na dependência da pulsão de auto-conservação. No entanto, visto
que na angústia neurótica o perigo vem de outro lugar (é interno), ela em nada
tem a ver com a pulsão de auto-conservação. Na verdade, ela funciona como uma
resposta à preparação para um perigo. A ausência de preparação para o perigo
causa um arrombamento destrutivo no ego, como mostram as neuroses
traumáticas. Diz Freud (1917): “poderíamos dizer que uma pessoa se protege do
48 Refere-se ao artigo: Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). 49 A catexia retirada do impulso desloca-se para uma idéia substitutiva. 50 Freud, (1917/1987) XXV Die Angst, p.408.
58
terror (Schreck) por meio da angústia (Angst).” (1980, p.461). Aqui, podemos
localizar o sinal de angústia (preparação para o perigo), sobre o qual Freud vai
teorizar de forma mais elaborada em Inibições, sintomas e angústia (1926), obra
relativa ao terceiro momento da teoria.
No terceiro momento da teoria da angústia, marcado em Inibições,
sintomas e angústia (1926), Freud desiste da teoria anterior (de que o recalque
provocava a angústia), definindo a angústia como reação a um modelo específico
de situações de perigo, ou seja, a angústia provoca o recalque. Na parte V do
referido texto, Freud retoma o caso do “Pequeno Hans” (1909) e do “Homem dos
Lobos” (1918)51, chegando à conclusão de que apesar das marcantes diferenças
entre os dois casos, o resultado final foi, aproximadamente, o mesmo: uma fobia
para ambos. Diz Freud (1926):
As idéias contidas nas angústias deles – a de ser mordido por um cavalo (Pequeno Hans) e a de ser devorado por um lobo (Homem dos Lobos) – eram substitutos por distorção, da idéia de serem castrados pelo pai. Esta foi a idéia que sofreu recalque (...) Mas o afeto de angústia, que era a essência da fobia, proveio, não do processo de recalque, não das catexias libidinais dos impulsos reprimidos, mas do próprio agente repressor (...). (1980, p.130-1).
Detectou, assim, que a força motriz do recalque fôra a mesma para
ambos: o temor à castração iminente.
A angústia pertencente às fobias a animais era um medo não transformado de castração. (...) Foi a angústia que produziu o recalque e não, como eu anteriormente acreditava, o recalque que produziu angústia (...) É sempre a atitude de angústia do ego que é a coisa primária e que põe em movimento o recalque. A angústia jamais surge da libido recalcada. (1926/1980, p.131; os grifos são meus).
Nesse texto, Freud vê a angústia como “um estado afetivo especial de
desprazer com atos de descarga ao longo de trilhas específicas” (p.156),
presumindo a presença de um fator histórico que une a sensação de angústia e
suas inervações. Nesse sentido, presume que o nascimento é a primeira
experiência de angústia vivida pelo ser humano, na medida em que a experiência
51 “Homem dos lobos” refere-se ao artigo de Freud Historia de uma neurose infantil (1918).
59
do nascimento comporta um fluxo enorme de excitações libidinais incontroláveis
pelo aparelho psíquico do bebê, ainda muito frágil. “A angústia surgiu
originalmente como uma reação a um estado de perigo e é reproduzida sempre
que um estado dessa espécie se repete”. (p.157).
Lembremos que a angústia é um afeto e, dessa maneira, seu caráter de
desprazer indica, na verdade, um acúmulo de excitação no aparelho psíquico,
sendo que, para ocorrer a descarga de angústia, é necessário que esse acúmulo
ultrapasse um valor limiar.
A situação, portanto, que ela (criança) considera como um “perigo” e contra a qual deseja ser protegida é a de não satisfação, de uma crescente tensão devida à necessidade, constante a qual ela é inerme. (...) A situação de não satisfação na qual as quantidades de estímulo se elevam a um grau desagradável sem que lhes seja possível ser dominadas psiquicamente ou descarregadas deve, para criança, ser análoga à experiência de nascer – deve ser uma repetição da situação de perigo. O que ambas as situações têm em comum é a perturbação econômica provocada por um acúmulo de quantidades de estímulo que precisam ser eliminadas. Em ambos os casos a reação de angústia se estabelece. (1926/1980, p.161; os grifos são meus).
Dessa maneira, o nascimento é a experiência prototípica de todas as
situações de perigo que o sujeito vai se defrontar pela vida afora podendo ser
ressignificada como traumática, ou seja, a reprodução a posteriori desse estado
frente a outras situações de perigo pode ser inadequada, ocorrendo o que Freud
chama de angústia automática. A reação adequada se efetuará no reconhecimento
de que tal situação pode acontecer novamente, isto é, numa ameaça assinalada
pela liberação de angústia, com o objetivo de impedir que tal estado se instale,
Freud designou como sinal de angústia. E Freud (1926) esclarece que “nesses
dois aspectos, como um fenômeno automático e um sinal de salvação, verifica-se
que a angústia é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile
natural de seu desamparo biológico.” (1980, p.162). Falaremos sobre essa questão
mais a frente52.
Freud distingue duas formas de angústia: a angústia automática, na qual o
determinante fundamental é a ocorrência de uma situação traumática, tendo como
52 Vide p.47-8.
60
protótipo uma experiência de desamparo por parte do ego face a um acúmulo de
excitação com o qual não pode lidar (angústia cuja sede real é o ego); e a angústia
sinal, como resposta do ego à ameaça de instalação de uma situação traumática,
ou seja, o sinal de angústia é uma forma do ego de evitar a angústia, de evitar a
instalação da situação traumática (angústia originada diretamente da vida
pulsional, do id).
A situação de perigo constitui, portanto, uma ameaça de tal situação
traumática, isto é, uma expectativa e lembrança da situação de desamparo
(Hilflosigkeit). Note-se que há duas características do afeto de angústia: 1) seu
caráter de expectativa que se origina da situação de perigo; e 2) a existência de
falta de objeto ligada à situação traumática.
Dessa forma, a angústia automática corresponde à angústia presente no
nascimento, situação na qual não há elaboração psíquica (ou não há
simbolização), reproduzida em outras situações diferentes a posteriori, como
ocorre, por exemplo, na neurose de angústia. Aqui, o primeiro momento da teoria
da angústia se relaciona com o terceiro momento. É a reativação da estrutura
afetiva de angústia diretamente pelos afetos do id.
Como mostra Green (1982),
... a angústia patológica se manifesta essencialmente de duas formas: uma angústia flutuante, pronta a ligar-se a qualquer representante, como mostra a espera ansiosa da neurose de angústia, e uma angústia circunscrita ligada a um perigo. Essa oposição pode ser resumida dizendo que no primeiro caso, o perigo está em toda a parte e a segurança em nenhum lugar; no segundo o perigo é localizado, a segurança está em todos os outros lugares. Essa comparação permite-nos encontrar dois estados de angústia: a angústia na qual qualquer manobra de evitação é impotente devido ao investimento do ego pelo afeto e a angústia dominada numa certa medida pela evitação da situação angustiante, mecanismo de defesa operado pelo ego. Freud mantém, portanto, a oposição do primeiro período. A angústia flutuante é interpretada como uma inibição à descarga. (...) nela é encontrada a falta de elaboração psíquica postulada desde 1895 e o papel agravante dos fatores quantitativos. A conclusão permanece a mesma: o entrave da libido dá origem a processos, todos eles, unicamente de natureza somática. (p.77; os grifos são meus).
Essa passagem de Green também aponta para a importância do fator
quantitativo no desenvolvimento de patologias, as quais, por não promoverem a
61
elaboração psíquica, têm o corpo como destino. “O entrave da libido dá origem a
processos, todos eles, unicamente de natureza somática”. Exatamente como ocorre
no caso do pânico e outras psicopatologias, muito freqüentes na
contemporaneidade, como as psicossomatizações, anorexia, bulimia dentre outras.
A condição de que, sem os cuidados de um outro, o bebê não pode
sobreviver, primeiramente, do ponto de vista biológico, faz Freud conceber a
posição fundamental do desamparo na constituição psíquica. O bebê precisa de
um outro para satisfazer suas necessidades (por exemplo, a fome), o que revela
sua impotência na extinção da tensão interna. O crescimento de uma tensão de
necessidade com a qual a criança não consegue lidar sozinha, trata-se de um
acúmulo de excitação que ultrapassa o valor limite do seu aparelho psíquico,
vivido então, como sensação de desprazer. Esse é o traço comum entre a situação
de perigo do nascimento e as posteriores a ela. Nessa medida, para o adulto, o
desamparo (Hilflosigkeit) é o modelo da situação traumática que gera angústia.
Mas, quando pela experiência a criança descobrir que um objeto externo
perceptível (mãe) pode por fim à situação de perigo que lembra o nascimento, diz
Freud (1926):
... o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber a perda do objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo e logo que surge esse perigo a criança dá o sinal de angústia, antes que a temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro grande passo à frente na providência adotada pela criança para sua autopreservação, representando ao mesmo tempo uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da angústia para a reprodução intencional da angústia como um sinal de perigo. (...) verifica-se que a angústia é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo biológico. (1980, p.162; os grifos são meus).
Os “perigos internos” (aumento da tensão no aparelho que corresponde à
angústia neurótica53), tanto quanto os do mundo exterior (perigos reais que
correspondem à angústia real), acarretam um valor exagerado ao objeto, o único
53 Entretanto, a ênfase na diferenciação entre angústia real e angústia neurótica, não é tão importante, pois o próprio Freud assinala que quando o ego vivencia uma situação de dor insuportável por conta de um acúmulo de excitação com o qual não pode lidar “o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico”: a situação econômica é a mesma.(Freud, 1926/1980, p.193).
62
que pode proteger contra esses perigos. “O fator biológico, então, estabelece as
primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará
a criança pelo resto de sua vida.”. (Freud, 1926/1980, p.179). Em outras palavras,
será sempre a perda do outro amado que remeterá à condição de abandono total e
de desamparo ante o aumento pulsional.
Dessa forma, os perigos internos são ligados à perda ou separação e geram
um aumento de tensão. Essas excitações internas, quando extremas, podem se
configurar na incapacidade do indivíduo de dominá-las e ser, então, dominado por
elas. É o estado gerador do sentimento de desamparo, como observamos no
pânico.
Aqui cabe um aparte à relação da criança com a mãe (ou quem cumpre
essa função), na medida em que esse momento inicial na vida do ser humano, a
maneira pela qual a função materna é exercida, é determinante na constituição de
alicerces básicos para o funcionamento psíquico. Em conseqüência disso,
“tropeços” experimentados nessa época estão relacionados com determinados
tipos de psicopatologias como é o caso do pânico, por exemplo.
Lembremos que, para Freud, a mãe é o primeiro objeto de amor da criança
(seja menino seja menina). Ao desempenhar sua função de erogeneização do bebê,
através de seus cuidados, a mãe exerce uma ação de sedução sobre ele, que é
totalmente dependente dela. Note-se que essa sedução é exercida num período
anterior à aquisição da fala pela criança, ficando a sedução materna uma ação
impossível de ser simbolizada. Sob esse prisma a sexualidade, vinda da mãe, é
sempre traumática; não há representação que dê conta dela. A tensão libidinal que
a criança vive é intensa e, enquanto sujeito, está despreparada para administrar tal
tensão. Essa ação específica, realizada pela função materna, caracteriza o ser
humano como dependente do amor do outro.
Nesse quadro, a teoria do desenvolvimento da libido corresponde à
complexa história da sexualização do corpo da criança. No seu trajeto
psicossexual, por volta do complexo de Édipo, o desejo sexual muito intenso (que
a criança vive num corpo imaturo) estabiliza-se e dessexualiza-se em relação aos
pais para que possa ser direcionado a outros objetos.
63
Lembremos que o Édipo não ocorre da mesma maneira para os dois
sexos54. Devido à tese freudiana da organização genital infantil da libido, em que,
para ambos os sexos, há uma primazia do falo55, cria-se uma dissimetria entre a
organização edipiana do menino e da menina. Ambos passam pelos desejos
amorosos e hostis em relação aos pais, ou seja, pela dupla triangularidade do
complexo de Édipo. Entretanto, o menino sai do Édipo por conta da ameaça de
castração, enquanto a menina entra no Édipo quando descobre a castração e sua
conseqüente inveja do pênis. Diz Freud (1932): “com o passar do tempo, uma
menina tem de mudar de zona erógena56 e de objeto57 e um menino mantém
ambos.” (1980, p.147). Portanto, ao contrário do menino, a menina se desliga do
objeto do mesmo sexo (a mãe) para se ligar ao objeto de sexo diferente (o pai).
Nela o complexo de Édipo manifesta-se pelo desejo de ter um filho do pai.
Entretanto, no Édipo, subsiste uma simetria para ambos os sexos, na
medida em que a mãe, como dissemos, é o primeiro objeto de amor tanto para o
menino como para a menina. Desse modo, a ligação aferrada à mãe é o elemento
comum e primário. Esclarece Freud (1938): “ (...) a mãe, estabelecida
inalteravelmente para toda vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e
como protótipo de todas as relações amorosas posteriores – para ambos os sexos.
Em tudo isso, o fundamento filogenético leva tanto a melhor sobre a experiência
acidental da pessoa.” (1980, p.217). Ou seja, para Freud, o complexo de Édipo
refere-se à dupla questão do desejo incestuoso e de sua proibição necessária para
que não se transgrida a sucessão das gerações, como ocorreu no mito de Édipo em
que ao matar Laio e desposar Jocasta, Édipo toma o lugar do pai, e seus filhos
com Jocasta eram também seus irmãos. Nesse sentido, Édipo mistura em si três
gerações etárias que jamais deveriam se misturar58.
Uma mãe que dirige seus desejos para outros objetos (que não somente a
criança) permite a entrada do pai em cena, produzindo um limite, um corte nessa
relação dual (criança/mãe), ou seja, promove a castração. A castração atua
duplamente: ao mesmo tempo que priva a criança de ter sua mãe, priva a mãe do
54 Segundo Freud, (1924) A dissolução do complexo de Édipo, (1925) Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, (1932) Conferência XXXIII e (1938) Esboço de Psicanálise. 55 Segundo Freud, (1923) A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. 56 Do clitóris para vagina. 57 Da mãe para o pai.
64
objeto de seu desejo. Em outras palavras, a criança controla o fato de não ser,
exclusivamente, o objeto de desejo da mãe, para aventurar-se como sujeito
humano, ao designar, simbolicamente, sua renúncia ao objeto perdido. Dessa
maneira, a castração escancara uma falta fundamental no sujeito – tanto na criança
quanto na mãe, na medida em que nem a criança nem a mãe são completas. A lei
intermediada pelo pai (ou quem cumpre a função paterna), é o momento de acesso
ao simbólico, pois a criança, através dessa operação, pode exercer um controle
sobre o objeto perdido. É a partir desse momento que a criança tem acesso à
linguagem, ou melhor, é a linguagem que funda a necessidade de renúncia ao
objeto materno tanto quanto sua constituição como objeto perdido. É a linguagem
que expõe a falta e a impotência do próprio sujeito e de seu destino.
Sob esse prisma, é a mãe que exerce junto ao bebê uma função primordial
de proteção contra todos os perigos e sofrimentos experimentados em função do
desamparo original. É através da continência materna, de seu amor trazido à
criança, que se faz a primeira possibilidade de abertura para um mundo
simbolicamente organizado.
Nesse sentido, se a mãe desempenha sua função de maneira satisfatória,
significa que a criança – imersa na ilusão de onipotência e de controlar
magicamente o mundo (regime do narcisismo) segundo seus desejos – passará,
lentamente, por um processo de desilusão e de subjetivação de um mundo que não
corresponde àquele que ela imaginava. Dito de outra forma, esse processo de
desilusão, realizado por uma função materna adequada, permite que a descoberta
da realidade do desamparo possa ser uma experiência tolerável59.
Voltemos ao significado da perda do objeto como determinante da
angústia, o qual se estende ao longo do desenvolvimento infantil, influenciando o
conteúdo da situação de perigo.
Vimos que, inicialmente, com o nascimento, o perigo é o do desamparo
psíquico, dado que o ego é imaturo e incapaz de dominar o acúmulo de excitação
proveniente de fontes internas e externas. Posteriormente, até a primeira infância
(enquanto é dependente dos outros), o perigo é a perda do objeto mãe (quem o
protege e o ama). A transformação seguinte da angústia, refere-se à angústia de
castração pertencente à organização fálica da libido. Constitui, também, um medo
58 Vide p.68. 59 Retomaremos essa questão mais à frente.
65
A crescente independência da criança, a divisão de seu aparelho psíquico
em várias instâncias (id, ego e superego) e o advento de novas necessidades
exercem influências sobre o conteúdo da situação de perigo. Até aqui, mostramos
a mudança desse conteúdo a partir da perda da mãe como objeto até a castração. A
mudança seguinte é causada pelo “poder do superego” (período de latência).
Segundo Freud (1926):
... com a despersonalização do agente parental a partir do qual se temia a castração, o perigo se torna menos definido. A angústia de castração se desenvolve em angústia moral – angústia social – não sendo agora tão fácil saber o que é a angústia. A fórmula ‘separação e expulsão da horda’ só se aplica àquela porção ulterior do superego que se formou com base em protótipos sociais, não ao núcleo do superego, que corresponde a instância parental introjetada. (1980, p.163; os grifos são meus).
Para Freud (1938) como resultado do complexo de Édipo, forma-se no ego
da criança um precipitado que corresponde às identificações com os pais. A
criança abandona os pais como objeto e os introjeta no ego por identificação.
Assim, uma parte do mundo externo torna-se parte integrante do mundo interno.
“Esse novo agente psíquico continua a efetuar as funções que, até então, haviam
sido desempenhadas pelas pessoas (os objetos abandonados) do mundo externo:
ele observa o ego, dá-lhe ordens, julga-o e ameaça-o com punições, exatamente
como os pais cujo lugar ocupou.” (1980, p.235). O que o ego sente como perigo,
ao qual reage com um sinal de angústia, é a punição do superego como se
estivesse com raiva dele, podendo deixar de amá-lo. “Os tormentos causados pelas
censuras da consciência correspondem precisamente ao medo da perda de amor
por parte de uma criança, medo cujo lugar foi tomado pelo agente moral.” (1980,
p.236).
O superego, “herdeiro do complexo de Édipo”, só se estabelece quando a
criança se liberta desse complexo e essa é a razão para excessiva severidade do
superego: ela “não segue um modelo real, mas corresponde à força da defesa
utilizada contra a tentação do complexo de Édipo.” (Freud, 1938, p.236).
A transformação final pela qual passa o medo do superego é “o medo da
morte (ou medo pela vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do
destino” (p.164), nos dizeres de Freud (1926/1980).
67
No entanto, Freud (1926) assinala que os conteúdos da situação de perigo
(medo da perda do amor, angústia da castração, medo do superego e medo da
morte), os quais têm seu protótipo em fases de desenvolvimento do ego, e os
determinantes de angústia podem persistir lado a lado, expressando-se em
períodos posteriores ao apropriado, e podendo, também, entrar em ação ao mesmo
tempo. Além disso, para ele “é possível que haja uma relação razoavelmente
estreita entre a situação de perigo que seja operativa e a forma assumida pela
neurose resultante.” (1980, p.166). Sob esse prisma podemos abordar o pânico
como a expressão da instalação de uma situação de perigo interna insuportável
para o sujeito: a situação de desamparo. É deste ponto que interpretamos o
estado afetivo do pânico (Panik) como uma evidência clínica do desamparo
(Hilflosigkeit), expressando-se na angústia que marca sua condição subjetiva
(desamparo original estruturante do psiquismo) e que, em última instância, pode
ter seu limite no real do corpo, como é evidente nos ataques de pânico.
Ao analisar o perigo da castração, Freud (1926) considera a “angústia de
castração como a única força motora dos processos defensivos que conduzem à
neurose.”. E para ambos os sexos, tendo em vista que no determinante da angústia
“não se trata mais de sentir a necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de
perder o amor do objeto (...) como um determinante da angústia, a perda do amor
desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça da castração nas fobias
e o medo do superego na neuroses obsessiva.” (1980, p.167).
Um ponto importante a ser assinalado, em Inibições, sintomas e angústia
(1926), é a demonstração de Freud acerca da criação do sintoma como evitamento
de uma situação de perigo: o perigo da castração, o perigo do desamparo
(Hilflosigkeit). Ao revisar a teorização da angústia e suas relações com a formação
do sintoma, Freud conclui que a castração é o referente central de todo o sintoma.
A conclusão a que chegamos, portanto, é esta. A angústia é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer que se criam sintomas de modo a evitar a geração de angústia (...) se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de angústia (...) o perigo em causa foi o de castração ou de algo remontável à castração. (Freud, 1926/1980, p.152).
68
conseguiu ser simbolizado (elaborado psiquicamente), integrado no circuito
representacional e o limite último que encontra, é o real do corpo.
Dessa maneira, a concepção freudiana de sintoma aponta para a dimensão
da subjetividade, na medida em que traz em si uma mensagem do conflito
individual e familiar do sujeito humano, assim como social, já que a construção
do psiquismo se dá no entrelaçamento da pulsão e da cultura63. Será sob esse
prisma que buscaremos um sentido para o pânico como mostraremos no
desenrolar dos próximos capítulos.
Em suma, pela nova visão de Freud, nesse terceiro momento da teoria da
angústia, o ego é a sede real da angústia; vai produzi-la, intencionalmente, como
reação a uma situação de perigo; e, sendo a mesma um afeto, só pode ser sentida
pelo ego. Entretanto, Freud não consegue resolver a contradição de sua
reformulação teórica referente às relações entre recalque e angústia: se é a
angústia que produz o recalque, como explicar o aparecimento do afeto de
angústia após o recalque? Em Inibições, sintomas e angústia (1926), Freud expõe
contradições e dúvidas a esse respeito, porém não consegue conciliar seu ponto de
vista atual com o anterior.
1.5. A proposta de uma única teoria do afeto de angústia.
Como foi dito, podemos considerar que os três momentos da teorização
sobre a angústia sejam concebidos como componentes de uma só teoria.
(Loffredo, 1975). Seriam etapas de um mesmo processo em que a angústia
automática – definida no terceiro momento como um excesso de excitação que
ultrapassa um valor limiar, sendo descarregada diretamente, ou seja, sem
elaboração psíquica –, seria herdeira da neurose de angústia (primeiro momento),
no sentido da conseqüência de uma marca deixada.
O segundo momento – angústia como fruto do recalque –, aparentemente,
oposto ao terceiro momento – angústia como disparadora do recalque –, na
verdade, corresponde à explicitação de uma primeira etapa complementada, no
terceiro momento, ou seja, é uma tentativa teórica única das relações entre
recalque e angústia. Segundo essa proposta, a angústia automática e o sinal de
63 Segundo Freud, (1930) O mal-estar na civilização.
70
angústia “não são opostos entre si (...), nem correspondem a duas teorias – mas
sim, são dois conceitos referentes a etapas do mesmo fenômeno”. (Loffredo, 1975,
p.88).
Pereira (1999) também considera que, na teoria freudiana da angústia, a
angústia automática é herdeira da neurose de angústia. Essa idéia deve-se ao fato
de que ambas comportam a mesma definição de angústia: uma excitação pulsional
acumulada que ultrapassa um valor limiar no aparelho psíquico (com o qual o ego
não pode lidar ou controlar), sendo descarregada sob a forma de angústia (o que
estabelece a situação traumática, uma vez que não há simbolização ou elaboração
psíquica).
Mas, com o conceito de desamparo (Hilflosigkeit), Freud localiza a
angústia automática como resposta a uma situação de desamparo, vivida pelo ego
frente a esse acúmulo pulsional, e diz respeito a um lugar infantil e à sexualidade
traumática vinda da mãe; trata-se, portanto, do desamparo original estruturante do
psiquismo, conforme definido no texto Inibições, sintomas e angústia (1926).
É importante ressaltar que a angústia é vista por Freud como a repetição de
uma experiência já vivida. Loffredo (1975) assinala que Freud colocou a angústia
como correspondente a “um estado afetivo de acordo com uma imagem mnêmica
já existente”64, sendo que o estado afetivo de angústia, “como os estados afetivos
em geral, acham-se presentes como resíduos de experiências traumáticas
primitivas e são revividos quando experiências semelhantes a essas ocorrem
posteriormente.” (p.44). Essa teoria dos afetos de Freud, segundo o qual estes
seriam repetições de experiências primitivas, segunda a autora, aparece em outras
de suas obras e está sem dúvida, expressa em Inibições, sintomas e angústia
(1926), em mais de uma ocasião. Ou seja, há uma memória afetiva.
Visto que na angústia automática ocorre uma situação de desamparo por
parte do ego, a situação traumática se estabelece. Há uma descarga que, no plano
do aparelho psíquico, é percebida pelo sistema ω65,deixando uma estrutura
afetiva como registro de sua ocorrência, ou seja, o sinal de angústia. Nesse
sentido, a angústia automática é a primeira experiência de angústia vivenciada
pelo sujeito. O estado afetivo ansioso aparecerá, posteriormente, quando for
reativado o engrama dessa experiência primitiva.
64 Segundo Freud, (1938) Esboço de Psicanálise. 65 Vide p.32, nota 36.
71
Nessa medida, o sinal de angústia tem dois sentidos: refere-se ao engrama
de angústia automática e ao resultado de sua ativação, ou seja, o estado afetivo de
angústia.
O sinal de angústia (melhor seria dizermos o estado afetivo ansioso que corresponde a ativação do sinal de angústia) só pode ser liberado pelo ego se já existir, no sistema Psi-pallium, um engrama de uma angústia econômica primitivamente experienciada. O engrama dessa situação traumática pode ser adquirido através da experiência do indivíduo, isto é, ontogeneticamente (neurose ‘atual’) ou pode já fazer parte da bagagem filogenética, e, nesse caso, trata-se do engrama da castração. (...) a ativação desse engrama leva ao aparecimento da regressão, condição para o aparecimento da defesa. Se o tipo de defesa utilizada for a repressão (leia-se recalque - Verdrängung), um dos resultados possíveis de se obter através dela é a angústia. Portanto, a expressão desse estado afetivo ansioso, como conseqüência da repressão (Verdrängung), em nada contradiz a formulação de um sinal de angústia como causa da repressão Verdrängung). São duas etapas de um mesmo processo e não, como afirma Freud, duas teorias irreconciliáveis sobre a angústia. (Loffredo, 1975, p.93-4; os grifos são meus).
1.6. Pânico e a noção de Hilflosigkeit: da neurose de angústia à
angústia automática.
Dado o exposto até agora, podemos localizar a neurose de angústia, na
teoria freudiana da angústia, como o início da formulação teórica da angústia
automática. Assim, é pela problemática do desamparo e suas relações com a
angústia que abrimos a possibilidade de pensar o pânico sob o prisma
psicanalítico, ou seja, para além da sintomatologia e fenomenologia deste estado
afetivo terrorífico de angústia. Para Freud, em última instância, a angústia funda-
se sobre o Hilflosigkeit.
Estamos assim, trabalhando com a hipótese de Pereira (1999) segundo a
qual é possível um estudo psicanalítico do pânico por meio da noção freudiana de
desamparo (Hilflosigkeit), que “dispõe da potência metafórica necessária para dar
uma inscrição propriamente metapsicológica ao problema do pânico.” (p.36)66.
A noção de Hilflosigkeit, para Freud, configura a finitude do sujeito, na
medida em que o psiquismo se constrói sobre um fundo de desamparo (desamparo
72
original estruturante do psiquismo), que em última instância diz respeito à falta
fundamental de garantias sobre o existir e o futuro. Tal precariedade da
organização psíquica decorre do fato de ser impossível a total subjetivação da
pulsão. Haverá sempre um resto, algo que não é simbolizável e que, por essa
mesma condição, poderá tornar-se traumático67, fazendo emergir o sintoma que,
como vimos, é considerado por Freud como a angústia de desamparo na criança.
Recordemos que a mãe, como coloca Freud (1927), “que satisfaz a fome
da criança, torna-se seu primeiro objeto amoroso e, certamente, (...) sua primeira
proteção contra a angústia.” (p.36). Nessa relação dual, narcísica e absoluta, existe
o ser onipotente (mãe) que, amorosa e ilusoriamente, protege outro ser (criança)
contra todos os sofrimentos e perigos imagináveis e inimagináveis da vida.
Portanto, que sustenta uma ilusão de proteção absoluta e um objeto idealizado de
amor.
Dissemos68 que a passagem da criança por um lento e progressivo
processo de desilusão permite que a descoberta da realidade do desamparo possa
ser uma experiência tolerável, ou seja, que o sujeito possa suportar que não há
proteção absoluta na vida e tampouco um ser onipotente que lhe garanta uma
estabilidade. É preciso que o objeto idealizado de amor seja dado como
verdadeiramente perdido para que se possa tolerar a realidade do desamparo: a
condição do limite, da finitude, da solidão, do inominável do resto pulsional.
Para Freud “a impressão terrificante do desamparo na infância despertou a
necessidade de proteção através do amor”. (1927/1980, p.43). Na função de
proteção, a mãe “é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição
pelo resto da infância”. (p.36). “É a defesa contra o desamparo infantil que
empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem
que reconhecer”. (p.36). Mas, “o reconhecimento de que esse desamparo perdura
através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez
porém, um pai mais poderoso69”. (p.43).
Dessa maneira, o desamparo original estruturante do psiquismo, conforme
definido no texto Inibições, sintomas e angústia (1926), diz respeito à face erótica
e sexual do desamparo. Diz respeito a um lugar infantil e à sexualidade
66 Vide p.41. 67 Lembremos que o núcleo da situação traumática diz respeito ao desamparo. 68 Vide p.50-1.
73
traumática vinda da mãe, sendo, desde então, as organizações psicopatológicas
relativas, portanto, à castração da mãe e à cena primária, na medida em que a
angústia não é somente um sinal para o perigo da castração, mas também uma
reação perante uma separação, uma perda (do amor da mãe)70. A angústia é um
afeto que expressa um duplo sentido para a questão da separação: tanto uma ação
no sentido da castração quanto uma reação no sentido da perda.
Portanto, o desamparo é condição geral no funcionamento psíquico de
qualquer pessoa e, dessa maneira, a Hilflosigkeit de Freud refere-se à condição de
“ausência de ajuda”71 como possibilidade efetiva da vida psíquica.
O que Freud mostra, detalhadamente, no referido texto, é que essa
condição de desamparo pode se concretizar numa situação traumática.
Lembremos que o evento traumático, para Freud, é uma situação de desamparo:
“o desamparo constitui o núcleo da situação de perigo”, e, como sabemos, o
perigo é o do inundamento psíquico. Quando o aparelho não dá conta do afluxo
pulsional, portanto de sua impotência na total subjetivação da pulsão, é que se
estabelece a situação de desamparo, a situação traumática.
Desse modo, a noção de Hilflosigkeit implica numa dimensão de
desamparo, independente de sua concreta efetivação numa situação traumática.
Essa questão torna-se mais clara a partir de O futuro de uma ilusão (1927) e O
mal-estar na civilização (1930), em cujos textos Freud retoma a problemática do
desamparo enquanto uma condição de desamparo, isto é, destacando a falta de
garantias do sujeito sobre o seu existir e o seu futuro. Nesses textos, o desamparo
é trabalhado sob o ponto de vista da falta de garantias do sujeito no mundo, que é
obrigado a uma renúncia pulsional como condição de viver em sociedade.
Trabalharemos esse ponto de vista nos capítulos dois e três.
A título de ilustração, a primeira vez que Freud tratou do tema desamparo
foi em Projeto para uma psicologia científica (1895):
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica (no mundo externo). Ele se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna (por exemplo, pelo grito da criança). Essa via de
69 Retomaremos essa questão no próximo capítulo. 70 Como dissemos, Freud considera o sintoma como a angústia de desamparo na criança. 71 Vide p.18.
74
descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (...) O desenvolvimento biológico dessa espécie de associação extremamente importante (...) é uma parte da via que conduz à mudança interna, que representa a única descarga enquanto não se descobre a ação específica. Essa via adquire uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (geralmente o próprio objeto de desejo) para o estado de anseio e aflição da criança; e desde então, passa a servir ao propósito da comunicação, ficando assim incluída na ação específica. (1980, p.336 e 338).
Por esse trecho vemos que, no início, mesmo o desamparo sendo visto
como uma incapacidade motora do recém-nascido em satisfazer suas próprias
necessidades, há uma significação a posteriori do desamparo biológico no
desamparo psíquico. “Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima
função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a
fonte primordial de todos os motivos morais”.72
Podemos dizer então que a problemática do desamparo na obra de Freud
aponta para duas dimensões: a condição de desamparo, fundante e estruturante do
psiquismo, portanto, no funcionamento da vida psíquica, relativa à linguagem na
sua dimensão de metáfora (somos seres falantes e faltantes); e a situação de
desamparo, enquanto concretização dessa condição de desamparo instalada na
situação traumática, do excesso, do resto que não é possível simbolizar, do
inominável vivido no real do corpo.
Para Pereira (1999):
De certa forma, o pânico instaura-se por não haver no sujeito a discriminação clara de que pelo fato de ele estar fundado sobre uma condição de desamparo, isso não implica necessariamente em estar condenado a ter que vivenciar situações efetivas de desamparo, tal como na situação traumática, ao longo de toda sua existência. O pânico é um estado psicopatológico que se instaura quando não houve as condições para uma subjetivação tolerável da condição fundamental de desamparo. (p.370).
Nesse sentido, o pânico não é, simplesmente, uma situação traumática, que
expressa o fracasso do psiquismo em dar conta do excesso do afluxo pulsional,
emergindo pelo corpo; mas, como manifestação de um afeto extremo, “o pânico é
75
uma forma desesperada de resistência contra a instauração do traumático; um
ataque de angústia constitui um esforço extremo para tornar a condição de
desamparo acessível ao pensamento.” (p.370).
Para Pereira (1999), o ataque de pânico é um trabalho psíquico, no sentido
de um “esforço de pré-simbolização e de subjetivação do desamparo que se
encarna na forma temática da morte-própria”. (p.314). Entretanto, é um esforço
inútil, na medida em que a morte própria não tem representação no inconsciente.
(Freud, 1926/1980, p.153). As experiências repetidas do estar morrendo no ataque
de pânico constituem uma tentativa
... de obter um certo domínio sobre o que escapa às possibilidades de simbolização e que é vivenciado sob o nome geral de “morte”. (...) uma tentativa de esvaziar a morte do seu conteúdo incognoscível, por meio de uma atualização-antecipação do momento de entrada nesse estado de desvalia; trata-se de um esforço por “tocar” o impossível, aquilo que escapa sempre e necessariamente ao psíquico, isto é, um esforço de controlar o momento do abandono por parte do outro suposto protetor e fiador do mundo. (p.39; grifos do autor).
A dimensão do desamparo aponta para o horizonte de todos os possíveis e
da incerteza que isso comporta, para o mistério e indeterminação da vida, para
toda criatividade. Dessa maneira, para Pereira (1999), “o desamparo diz respeito à
linguagem ao passo que o pânico deve ser situado como esforço psicopatológico
do pensamento.” (p.39).
Obviamente, neste capítulo em que priorizamos a teorização da angústia,
voltamo-nos mais para a face erótica do desamparo, objetivando circunscrever o
pânico como uma evidência clínica do desamparo (Hilflosigkeit). Embora haja
uma evidente articulação entre as duas faces, destacamos a outra face do
desamparo como objeto privilegiado de nossa investigação sobre o pânico, ou
seja, as condições peculiares de desamparo do sujeito na contemporaneidade.
Nos próximos capítulos nos dedicaremos a compreender melhor essa outra
face do desamparo a fim de contextualizar o pânico como uma forma de
sofrimento psíquico que expressa os modelos de subjetividade promovidos pela
sociedade contemporânea. Como dissemos na introdução, como um processo de
72 Aqui já está em germe a constituição dos ideais que veremos no capítulo dois.
76
produção social. Veremos como o pânico é uma das expressões do mal-estar
contemporâneo.
Lembremos que em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), que
trabalharemos mais detalhadamente no próximo capítulo, Freud diz que o Pânico
surge quando há o rompimento das catexias libidinais até então sustentadas por
um ideal protetor e o sujeito se vê inerme num gigantesco e insensato medo73.
Aquilo que lhe garantia, imaginariamente, a estabilidade, desfez-se. Agora, o
sujeito se descobre desamparado e confrontado com um afluxo imenso de libido
que, até então, estava ligada pelo amor a um ideal. Há um grande perigo análogo
ao aniquilamento do ego.
73 Vide p.7 e 11-2.
77
2. A construção do vínculo social sob o ponto de vista freudiano: a Lei,
os ideais e as identificações.
2.1. Uma breve introdução.
No capítulo anterior, trabalhamos o pânico como um estado afetivo
extremo de angústia, como um fenômeno do campo psicopatológico do
angustiante referido na obra freudiana. Sob esse prisma, vimos que o pânico é
uma das possibilidades afetivas que o sujeito encontrou no enfrentamento da
condição de desamparo necessária e insuperável na constituição da vida psíquica.
Todavia, como dissemos na introdução desse trabalho, entendemos o
pânico também como um processo de produção social. Há um estilo de sociedade
em pauta que gera condições e possibilidades para a produção de determinadas
psicopatologias como típicas de sua época. E nesse sentido, o pânico é uma das
psicopatologias contemporâneas.
Entretanto, para deslizarmos na esteira dessa idéia, primeiro é necessário
compreendermos o pensamento freudiano a respeito da civilização, da sociedade,
da formação dos grupos e da subjetividade – dito de outra forma, a questão da Lei,
dos ideais e da identificação. Dedicaremos esse capítulo ao estudo
metapsicológico desses temas.
Em vários momentos, Freud empregou suas idéias da psicologia individual
humana com o intuito de compreender o funcionamento dinâmico e conflitante
entre o homem e a civilização. Priorizamos três artigos:
1) Totem e tabu (1913) – texto inaugural da teoria freudiana sobre o
fundamento do social e da cultura, que tem como mito fundador o
parricídio, em que relata a união pelo crime, ou seja, o nascimento
do grupo pela recusa de amor do chefe. Também coloca como
interdição fundadora da civilização a proibição do incesto.
2) Psicologia de grupo e análise do ego (1921) – explica a psicologia
dos grupos com base em alterações na psicologia individual, e
estabelece a importância da formação do ideal do ego na
construção do psiquismo e, portanto, a importância do líder na
formação de um grupo; aqui analisa a união pelo amor, ou seja,
78
concebe o nascimento do grupo a partir de um ato de amor do
chefe e coloca a identificação como ponto fundamental do vínculo
emocional, por conseguinte, do vínculo social. É a identificação
integrada à formação do ideal do ego que articula o funcionamento
dos indivíduos nos grupos e das instituições.
3) O mal-estar na civilização (1930) – aponta para a semelhança entre
os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do
indivíduo, faz uma analogia entre os processos de desenvolvimento
da civilização e do desenvolvimento individual, e conclui que a
relação do sujeito com a civilização é marcada por um mal-estar
incontornável.
Em outras palavras, nesses artigos, Freud mostra que o sujeito humano não
é dado a priori, mas constituído na articulação com a sociedade. Contribui para a
elucidação de processos e mecanismos na constituição dos laços sociais,
propondo, portanto, uma teoria da cultura74.
Dessa maneira, Freud marca processos subjetivos que devem ser
desenvolvidos para que seja mantida a organização social e individual
(organização simbólica). Esses processos dizem respeito à construção da
identificação e dos ideais, seja do indivíduo (ideal do ego) seja do grupo (ideais
culturais). Veremos como os ideais orientam os laços sociais sustentados pelo
desejo e pelas identificações.
2.2. A emergência da civilização: a gênese das instituições.
Em Totem e tabu (1913), Freud deixa-nos a mensagem de que a
humanidade teria nascido de um crime, cometido em conjunto, e do qual ela
jamais se libertaria. Partindo da horda primeva de Darwin – em que a sociedade
humana era uma horda governada despoticamente por um macho todo-poderoso –
e a celebração da refeição totêmica, Freud cria o mito originário da humanidade,
o advento do social:
74 Freud não diferencia os termos cultura e civilização. Para ambos utiliza o vocábulo Kultur. Além disso, refere-se à cultura ocidental.
79
constituída a partir do conflito pulsional, ou seja, do conflito entre pulsões de vida
e de morte.
Dessa forma:
O pai morto tornou-se mais forte que o fora vivo (...) o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...) anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim o sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente, aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. (Freud, 1913/1980, p.172; os grifos são meus).
O pai não existe enquanto pai real, mas apenas realmente morto ou
simbolicamente. O pai apenas existe como ser mítico. Enquanto ser real
(concreto), encarnado, ele provoca horror e medo; transforma-se em chefe
onipotente que transcende os filhos. Estes eram excluídos da palavra e da
sexualidade, enquanto o pai real gozava de todo o poder e do desfrute de todas as
mulheres. Portanto, nessa época, não havia razão para conflito entre os irmãos.
Entretanto, consumada a morte do pai, surge a rivalidade entre eles: quem vai
assumir o lugar do pai? Quem gozará o desfrute de todas as mulheres? Quem
assumirá esse poder transcendente?
Com a morte do pai os irmãos sentem-se culpados e ameaçados, pois surge
a possibilidade de que cada um seja esmagado por todos os outros. Assim, para
evitar uma guerra entre eles ou o extermínio, os irmãos organizam-se e criam um
modo de barrar esse gozo ilimitado: restauram a autoridade simbólica do pai sob a
forma da proibição do incesto. A partir de agora cada filho tem direito a todas as
mulheres menos à mulher do pai. “O pai morto tornou-se mais forte que o fora
vivo”. Temos aqui o reconhecimento ou a instauração da função paterna e sem
essa referência, segundo Freud, nenhuma cultura é concebível. O pai real deu
lugar ao pai simbólico.
Desse modo, os filhos, que antes eram uma massa indiferenciada, após a
morte do pai, a instauração da Lei paterna e da interdição do incesto, tornam-se
irmãos sujeitos à diferença e ao conflito. Em outras palavras, a alteridade é
reconhecida e a sexualidade repartida entre todos. Além disso, a linguagem
fortifica o vínculo erótico porque, depois do ato, os irmãos estão condenados a
81
falar uns com os outros eternamente. A Lei, que cobra de cada membro do grupo a
nova ordem social, não foi imposta pela força de Um, mas pela união dos irmãos,
ou seja, pelo coletivo.
Os dois grandes crimes da humanidade, o parricídio e o incesto – fonte do
sentimento de culpa da humanidade – são transformados nos dois tabus do
totemismo e correspondem aos dois desejos do complexo de Édipo. Temos aqui
dois pontos importantes no pensamento freudiano: primeiro, que a ontogênese
repete a filogênese, e, segundo, que há uma herança da culpa.
O parricídio cria a cultura, nos introduz no mundo da culpabilização, da
renúncia, institui a função paterna na origem da humanidade e implica a
necessidade de uma referência externa a essa Lei, que se manifestará na
“organização social, nas restrições morais e na religião”, portanto, na necessidade
de instituições sociais. Não há sociedade sem um sistema de repressão coletivo,
sem um sistema de parentesco, de regras de aliança e filiação.
Enfim, Freud está nos dizendo da importância do surgimento de uma
instância interditora75 que visa a impedir a satisfação imediata da pulsão e ao
mesmo tempo permitir a ligação durável e inevitável do desejo e da Lei tanto no
indivíduo quanto no coletivo. A instauração da função paterna implica numa
instância simbólica mediadora do desejo, na medida em que somente após a morte
do pai, após a instituição da Lei paterna, os filhos passam de uma massa submissa
a sujeitos desejantes. Portanto, a função paterna é que garantirá as identificações
e, por conseguinte, o corpo-próprio e o mundo subjetivo simbolicamente
organizado. Nesse sentido, a função paterna também é mediadora das relações
entre as pessoas e da cultura. Isso quer dizer que o pai simbólico é representante
da Lei, é uma metáfora, é o lugar da Lei simbólica. Significa o pacto instituído
pelos irmãos agora livres e desamparados. A Lei simbólica é a que protege os
irmãos para que não se destruam mutuamente, entregues que estão à violência
pulsional.
Sob esse prisma, o Édipo76 é uma questão colocada tanto no
desenvolvimento individual quanto no do corpo social. É o que transforma a
criança de um pequeno selvagem num pequeno socializado. É uma questão
75 Veremos mais adiante que se trata aqui do ideal do ego e do superego derivados da função paterna. 76 Vide p. 48-50.
82
decisiva para alcançar o estado de cultura, ou seja, para viver relações
estabilizadas e simbolizadas77. A expressão pulsional direta é incompatível com a
criação e perpetuação da sociedade. Em 1930, Freud dirá claramente que, para
viver em sociedade, o sujeito humano é obrigado a uma renúncia pulsional.
Marcamos alguns pontos importantes para nosso estudo no mito de Totem
e tabu: primeiro, Freud deixa-nos a mensagem da importância da dimensão ética
numa sociedade. Segundo, o pai real da horda oferecia uma proteção capaz de
fazer da filiação um destino; entretanto, com o assassinato do pai, ocorre a
passagem da condição de filho para a condição de irmão, ou seja, da condição de
submissão absoluta para a condição de sujeito humano (ou de cidadão ou de seres
desejantes) e isso não se dá sem o luto pelo amparo que o pai tirano oferecia.
Depois do assassinato do pai, os irmãos estão livres e desamparados.
Retomemos a afirmação de Freud (1927), no capítulo anterior, de que a
impressão terrificante do desamparo infantil despertou na criança a necessidade de
proteção através do amor. Na função de proteção, a mãe é logo substituída pelo
pai mais forte. Ou seja, o reconhecimento de que esse desamparo perdura através
da vida (condição de desamparo) tornou necessário o aferramento à existência
ilusória de um pai todo-poderoso que dê garantias à estabilidade do mundo, de um
ideal protetor de todos os perigos possíveis e inimagináveis.
A atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira. (...) Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai, constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as conseqüências de sua debilidade humana. (Freud, 1927/1980, p.36; os grifos são meus).
Dessa maneira, para Freud (1927), a ilusão de que há uma “Providência
divina” que nos governa com amor, diminui nossos medos em relação aos
77 Vide p.52. Os perigos assinalados no Édipo apontam para o abandono do sujeito a um estado de total desamparo.
83
“perigos da vida”. Os conflitos da infância, que surgem do complexo paterno e
que nunca foram superados inteiramente, “são dela retirados e levados a uma
solução universalmente aceita”, o que constitui para o psiquismo individual a
experiência de um alívio enorme. Contudo, “todas essas coisas são ilusões”.
Ilusão no sentido de que “uma realização de desejo constitui fator proeminente em
sua motivação e, assim procedendo, há o desprezo de suas relações com a
realidade”. Um exemplo é que “o estabelecimento de uma ordem moral mundial
assegura a realização das exigências de justiça, que com tanta freqüência
permaneceram irrealizadas na civilização humana”. (1980, p.43-4). Ou seja, é a
defesa contra o desamparo infantil o modelo para a reação do adulto ao desamparo
que ele deve reconhecer.
Em outras palavras, em Totem e tabu (1913), a figura do pai não protege
mais seus filhos. É esse tema que Freud retomará em O mal-estar na civilização
(1930), o pai falhou e já não é mais uma figura protetora e por isso todo sujeito
humano está exposto à possibilidade da morte e do trauma (condição de
desamparo). Constitui-se então, um dos maiores problemas da humanidade para o
sujeito: não poder contar mais com a figura do pai idealizado e protetor, o Deus
todo-poderoso. Essa é a difícil condição do homem moderno, para Freud78.
Veremos, posteriormente79, como todo desejo no limite é um desejo de servir ao
poder (submissão total) como forma de se proteger do desamparo: é o traço
masoquista fundamental.
Enfim, em Totem e tabu (1913), Freud trabalha a gênese da civilização, do
social. Entretanto, já anuncia os elementos fundamentais na constituição de um
grupo: a identificação e o vínculo afetivo relacionados tanto ao ideal (pai/líder)
quanto aos membros do grupo (irmãos unidos). Esses elementos serão
desenvolvidos nos próximos tópicos.
2.3. Os mecanismos de funcionamento da civilização: a vida das
instituições.
78 Trabalharemos esse tema no capítulo três. 79 Capítulo três.
84
Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud trata dos
elementos fundamentais para o funcionamento dos grupos: a identificação, o ideal
do ego e o vínculo afetivo80.
No início do referido artigo, Freud aponta, claramente, que a psicologia
individual é ao mesmo tempo psicologia social, o que nos indica sua recusa na
divisão indivíduo-sociedade:
Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. As relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com seu médico, na realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais e, com respeito a isso, podem ser postas em contraste com certos outros processos, por nós descritos como ‘narcisistas’, nos quais a satisfação das pulsões é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas. (1980, p.91-2; os grifos são meus).
Dessa passagem, podemos destacar alguns pontos importantes. Primeiro,
que a história individual, isto é, os elementos que levaram o sujeito a adotar
determinado modo de funcionamento psíquico, que refletem a história de suas
identificações, só tem sentido se inserida num contexto social.
O “algo mais” que está envolvido na vida mental do indivíduo é um outro.
Desse modo, ao admitir que é preciso um outro, um outro tecido de relações
sociais, na formação do sujeito humano – portanto, das posições identificatórias e
dos conflitos que elas acarretam – podemos afirmar que para Freud nenhuma
conduta humana é, definitivamente, fixa.
Outro ponto importante refere-se ao fato de que, se “as relações de que
tratamos na pesquisa analítica podem ser consideradas como fenômenos sociais”,
nossos comportamentos, sofrimentos, sintomas, etc, podem ser considerados
como uma resposta às solicitações do ambiente, ou seja, da família, da sociedade.
Sob esse prisma, não há como negar que uma sociedade desenvolve processos
80 Reservamos o próximo tópico (2.4.) para melhor compreender como se articulam esses elementos e o narcisismo, tendo em vista que os temas da identificação e do ideal são importantes para nosso estudo.
85
sociais e individuais, que a vida social exige que o indivíduo se modifique e,
conseqüentemente, por que não pensar em (psico)patologias específicas de uma
época da civilização? Específicas de um modo de relacionamento dos sujeitos
num grupo? Ou como resposta às exigências desse grupo?
E ainda, as relações do indivíduo, consideradas como fenômenos sociais,
podem ser “postas em contraste com processos narcisistas”, indica que Freud
coloca o narcisismo como outro fator importante na formação dos grupos. Nesse
artigo, Freud mostra como o narcisismo deve ser remodulado na construção dos
laços sociais. É isso que permitirá a entrada do sujeito no grupo, entrada essa que
o modifica, como já enunciamos, principalmente, na dimensão dos ideais, como
veremos no próximo tópico.
Outro ponto importante do trecho citado que estamos analisando, refere-se
a que o outro está envolvido na vida psíquica do sujeito humano como “um
modelo, um objeto, um auxiliar e um oponente”. Antes de qualquer ponto, Freud
indica aqui a noção de alteridade, ou seja, as modalidades específicas com que
entramos em contato com um outro ser, aceitando vê-lo em sua singularidade.
Ao colocar o outro como “modelo”, Freud trata do outro como referência
ao devir humano. Trata-se da problemática identificatória centrada na aceitação da
lei simbólica. Freud (1921) considera a identificação “como a mais remota
expressão de um laço emocional com outra pessoa.” (1980, p.133). Ela
desempenha papel importantíssimo na formação do complexo de Édipo, e este,
segundo Freud, não é somente estrutural do indivíduo81, mas também da
humanidade82. Assim como a formação do sujeito, as formações sociais só podem
ser compreendidas se forem associadas ao componente identificação.
O outro enquanto “objeto”, implica na questão da relação, do vínculo, da
ligação libidinal, incluindo o caráter ambivalente dessa relação (amor e ódio,
aproximação e distanciamento, etc). É nesse movimento que podemos ancorar no
outro nossa satisfação pulsional, a satisfação de nossas fantasias, medos e que nos
vinculamos a ele para nos definir e nos transformar. Dessa maneira, o indivíduo,
ao se enlaçar nos grupos sociais, transforma-se. Para Freud (1921), “a essência de
um grupo reside nos laços libidinais que nele existem”. (1980, p.122).
81 Vide p.52. 82 Vide p.69.
86
O outro como “um auxiliar e um oponente” representa as relações de
solidariedade e de hostilidade.
De qualquer forma, o outro só existe se ele existe para nós, portanto, se
dispensamos a ele alguma forma de ligação (identificação, amor, ódio,
solidariedade, hostilidade, etc). É necessário, portanto, um vínculo afetivo sem o
qual o outro é um ser indiferente. O chefe da horda primitiva não podia ser vivido
como outro, pois só depois de morto ele é transformado em pai (simbólico).
Assim, a psicologia social trabalha com as formas de alteridade devendo criar um
lugar essencial para os investimentos libidinais (ou afetivos) sem os quais um
grupo organizado não pode existir. Um ser humano só existe para nós quando o
investimos afetivamente.
Se “desde o começo” o outro está implicado na constituição do indivíduo,
é pelo fato de o outro nos amar, nos desejar, que podemos existir como sujeitos
humanos. Nosso psiquismo se constitui por meio do investimento afetivo de um
outro, e esse outro, inicialmente, refere-se aos nossos pais (ou aqueles que cuidam
e ocupam esse lugar). Nesse sentido, é o vínculo libidinal que permite a
construção dos seres, portanto, o vínculo libidinal é originário seja do indivíduo
seja do grupo. Enquanto existia a horda, esta não era um grupo. Somente após o
assassinato do chefe que o mesmo vira pai, constitui-se num outro, ou seja, em
objeto de amor e ódio, permitindo o reconhecimento mútuo (dos irmãos) e a
criação do outro de forma geral (alteridade).
Destacamos aqui a primeira característica essencial que Freud assinala
para que exista um grupo: o vínculo afetivo, o poder de união da pulsão de vida.
... [trabalhamos] com a suposição de que as relações amorosas (ou... os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal. (...) um grupo é claramente mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo? (1921/1980, p.117).
Nessa medida, é o amor que permite que um grupo exista e permaneça
unido por seus laços emocionais, por seus vínculos afetivos, que, para Freud
(1921), referem-se ao vínculo com o líder (pai/ideal) e com os semelhantes. Mas o
amor pelo líder, diz ele, “é realmente indispensável à essência de um grupo (...) o
87
laço com o líder parece ser um fator mais dominante do que o outro, que é
mantido entre os membros do grupo.” (1980, p.127).
Entretanto, para Freud (1921), esse líder, indispensável na formação e
manutenção de um grupo, é erigido em figura ideal. Analisando a Igreja e o
exército como grupos artificiais, o autor aponta para a necessidade de que haja um
ideal protetor ilusório. Diz ele que, em ambos os grupos, “prevalece a mesma
ilusão de que há um cabeça (...) que ama a todos os indivíduos do grupo com um
amor igual. Tudo depende dessa ilusão.” (1980, p.120). O ideal protetor ilusório é
aquele que garante a estabilidade de tudo, do mundo, que protege o sujeito de
todos os perigos. E sabemos que esses perigos se referem, em última instância, ao
inundamento pulsional no psiquismo: à angústia automática, à instalação da
situação traumática, da situação de desamparo. O perigo é o de perder o amor do
objeto, o perigo é o desabamento de todo o mundo simbolicamente organizado.
Em outras palavras: o retorno para o desamparo (Hilflosigkeit) original.
É daqui que sai a essência da proposta freudiana na compreensão do
fenômeno do pânico seja na massa seja no indivíduo. Com o propósito de ilustrar
suas conclusões acerca da importância do amor de cada um dos membros do
grupo para com o líder (ideal) e dos laços fraternos entre eles, assim como da
manutenção do grupo, Freud (1921) mostra que
... surge o pânico se um grupo desse tipo [militar] se desintegra. Suas características são de que as ordens dadas pelos superiores não são mais atendidas e a de que cada indivíduo se preocupa apenas consigo próprio, sem qualquer consideração pelos outros. Os laços mútuos deixaram de existir e libera-se um medo gigantesco e insensato (...) pertence à própria essência do pânico não apresentar relação com o perigo que ameaça, e irromper freqüentemente nas ocasiões mais triviais. (...) o fato é que o medo-pânico pressupõe relaxamento na estrutura libidinal do grupo e reage a esse relaxamento de maneira justificável. (1980, p.123; os grifos são meus).
Nesse sentido, o pânico é o resultado do súbito rompimento do laço
amoroso com o líder (ideal), gerando a ruptura do grupo organizado (da vida
psíquica simbolicamente sustentada). Portanto, o líder (o ideal) é o fator
dominante na organização dos grupos, e como psicologia individual é psicologia
social, o ideal também é fator dominante na organização psíquica individual.
88
2.4. A identificação e o ideal do ego.
Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud coloca a
identificação como o mecanismo que incute o líder (o ideal) em cada ser humano,
provocando nele o amor, a veneração e permitindo a passagem do amor ao líder
(ideal) ao amor dos outros. Nesse sentido, demonstra a importância e o poder do
ideal na constituição do indivíduo e dos grupos.
É para discutir a natureza dos laços no grupo que Freud introduzirá o
conceito de identificação, o qual é trabalhado de maneira integrada à formação do
ideal do ego e ao funcionamento dos indivíduos nos grupos e, conseqüentemente,
das instituições.
Vejamos então algumas questões sobre esses conceitos, objetivando um
aporte para, no terceiro capítulo, trabalharmos o pânico na atualidade como uma
maneira encontrada pelo sujeito para se ancorar no contexto da sociedade atual ou
como uma resposta às exigências dos ideais contemporâneos.
Comecemos pelo fato de que é necessário barrar o narcisismo para que se
façam os laços sociais. Diz Freud (1921): “se assim, nos grupos, o amor a si
mesmo narcisista está sujeito a limitações que não atuam fora deles, isso é prova
irresistível de que a essência de uma formação grupal consiste em novos tipos de
laços libidinais entre os membros do grupo.” (1980, p.131). Portanto, como disse
anteriormente, o narcisismo é rearticulado quando os vínculos sociais se
constroem.
A identificação tem valor central na teoria freudiana. É o mecanismo pelo
qual um indivíduo humano se constitui. Ela desempenha papel importante na
formação do complexo de Édipo e nos seus efeitos estruturais, além de contribuir,
a partir da segunda tópica freudiana, na diferenciação em instâncias a partir do id.
A personalidade é formada e diferenciada por uma série de identificações.
Interessa-nos aqui, obviamente, o prisma da identificação que Freud trata
em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), ou seja, as formações coletivas
só são compreendidas se associadas ao mecanismo de identificação.
O seguinte trecho de Freud (1921) aponta para a primeira questão da
identificação nos grupos:
89
Estamos cientes de que aquilo com que pudemos contribuir para a explicação da estrutura libidinal dos grupos, reconduz à distinção entre o ego e o ideal do ego e à dupla espécie de vínculo que isso possibilita: a identificação e a colocação do objeto no lugar do ideal do ego. (1980, p.164).
Pensemos um pouco na distinção entre ego e ideal do ego. Em Sobre o
Narcisismo: uma introdução (1914), Freud distingue o ideal do ego do ego como
uma formação autônoma, que serve de referência ao ego e que é fundado com
base no narcisismo:
O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção e esse novo ego ideal83, o qual como o ego infantil84, se acha possuído de toda perfeição de valor (...) O homem não está disposto a renunciar à perfeição narcísica de sua infância (...) procura recuperá-la sob a nova forma de um ideal do ego. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal. (1980, p.111).
Nesse artigo, Freud (1914) está falando sobre a formação das instâncias
ideais da personalidade (ego ideal e ideal do ego). O ego ideal corresponde “ao
ideal narcísico onipotente forjado a partir do modelo do narcisismo infantil”
(Laplanche, 1986, p.190); enquanto que o ideal do ego é a instância da
personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das
identificações com os pais, com seus substitutos e com os ideais coletivos.”
(Laplanche, 1986, p.289). Essa definição conceitual de Laplanche (1986) é aqui
útil, por dois motivos: primeiro, porque Freud não estabelece uma distinção
conceitual clara entre ego ideal e ideal do ego85; segundo, porque em Freud não é
fácil delimitar a noção de ideal do ego na medida em que a mesma está ligada à
elaboração da noção de superego.
O superego é no conjunto do texto Sobre o Narcisismo: uma introdução
(1914) trabalhado como uma instância psíquica crítica de auto-censura e auto-
observação; interiorizada quando o narcisismo infantil é abandonado pela crítica
exercida dos pais à criança. Coloca Freud (1914): “um agente psíquico especial
que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcísica proveniente do ideal do
83 Leia-se ideal do ego. 84 Leia-se ego ideal.
90
ego e que com essa finalidade em vista, observasse constantemente o ego real,
medindo-o por aquele ideal”. (1980, p.112). Freud supõe que essa instância crítica
é o que chamamos de “nossa consciência” (que depois desenvolverá como
“consciência moral”): “a instituição da consciência foi, no fundo, uma
personificação, primeiro, da crítica dos pais e, subseqüentemente, da sociedade.”.
(1980, p.113). Aqui está a participação da sociedade na formação dos ideais.
sentimento inconsciente de culpa (...) isto é, a fonte de seu caráter compulsivo86, que se manifesta sob a forma de um imperativo categórico. (1980, p.49).
Tendo em vista que o superego é herdeiro do complexo de Édipo, ele
“constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais
importantes vicissitudes libidinais do id”. (Freud, 1923/1980, p.51). Erigindo o
ideal do ego, o ego não somente dominou o complexo de Édipo como colocou-se
em sujeição ao id. O ego é representante do mundo externo, da realidade. Em
contrapartida, o superego é representante do mundo interno, do id. Nesse sentido,
Freud (1923) esclarece que
... os conflitos entre o ego e o ideal (...) em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno. (...) A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego. (1980, p.51-2; os grifos são meus).
Dessa maneira, Freud (1923) explica como “os primitivos conflitos do ego
com as catexias objetais do id podem ser continuados em conflitos com (...) o
superego.” (1980, p.53). Para esse autor, quando o ego não domina
adequadamente o complexo de Édipo, as catexias deste, que se originam do id,
mais uma vez irão atuar na formação reativa do ideal do ego. Nesse sentido, o
sentimento inconsciente de culpa é uma formação reativa aos desejos do id.
Falaremos do sentimento de culpa mais à frente.
Em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932), Freud
retoma a distinção ideal do ego e superego, atribuindo ao superego “as funções de
auto-observação, de consciência (moral) e de manter o ideal”. (1980, p.86). O
superego é
... o veículo do ideal do ego, pelo qual o ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir. Não há dúvida de que esse ideal do ego é o precipitado da antiga imagem dos pais, a expressão de
86 Trabalharemos mais adiante essa questão do caráter compulsivo e imperativo do superego que diz respeito a sua ligação com a pulsão de morte (vide p.102).
92
admiração pela perfeição que a criança então lhes atribuía. (1980, p.84).
Aqui o ideal do ego aparece como uma das funções do superego. Diz
respeito à influência da antiga representação parental. A distinção entre superego
(uma instância) e ideal do ego (uma função ligada à influência parental) também
aparece no artigo Esboço de Psicanálise (1938),
... o longo período da infância, em que a criança é dependente dos pais, deixa um precipitado no ego, um agente especial no qual se prolonga a influência parental. Ele [o agente especial] recebeu o nome de superego. (...) Essa influência parental inclui em sua operação não somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como as tradições do milieu social imediato que representam. Da mesma maneira, o superego, ao longo do desenvolvimento de um indivíduo, recebe contribuições de sucessores e substitutos posteriores aos pais, tais como professores e modelos, na vida pública, de ideais sociais admirados. (1980, p.171; os grifos são meus).
Nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932), Freud diz,
claramente, que o “superego de uma criança é, com efeito, construído segundo o
modelo não de seus pais, mas do superego de seus pais” (1980, p.87), portanto,
identificação com as instâncias parentais e não com pessoas; além disso, os seus
conteúdos são os mesmos, sendo, portanto, veículo da tradição e dos valores
duradouros que dessa forma se transmitem de geração em geração. Dessa maneira,
“quando levamos em conta o superego, estamos dando um passo importante para
nossa compreensão do comportamento social da humanidade”. (1980, p.87). Em
O mal-estar na civilização (1930), texto anterior a esse, Freud tratará desse tema.
Enfim, interessa-nos marcar que na obra freudiana, a instância do superego
surge em continuidade com o ideal do ego, e que, portanto, há uma íntima ligação
entre os aspectos do ideal e da interdição. Entretanto, é inegável que há uma
nuance entre ideal do ego e superego e que nem sempre o próprio Freud usou a
ambos como sinônimos, tendo em vista que em seus últimos textos apareceu essa
distinção. Esse fato é discutido por comentadores de Freud, como, por exemplo,
Strachey, Laplanche e Pontalis. Justamente porque há uma problemática sem
resposta clara em torno dessa questão, é que optamos em nosso estudo pela
sugestão de Laplanche (1986) de que “se mantivermos, pelo menos como
93
subestrutura particular, o ideal do ego, então o superego surge principalmente
como uma instância que encarna uma lei e proíbe a sua transgressão”. (p.644).
Sobre esse mesmo ponto, Laplanche (1986) sublinha que “Lagache fala de um
sistema superego–ideal do ego, dentro do qual estabelece uma relação estrutural:
‘o superego corresponde à autoridade e o ideal do ego à forma como o indivíduo
se deve comportar para corresponder à expectativa da autoridade”. (p.291).
O fato de apontar o ideal do ego como uma função do superego ou uma
‘subestrutura particular’, portanto, não como sinônimos, é importante para nós
tendo em vista que a motivação básica do pânico é o rompimento das catexias
libidinais direcionadas para o ideal, o que não é o mesmo que dizer que é o
rompimento com o superego. Pelo contrário, no sujeito que sofre de pânico, há
uma grande tensão na relação entre ego e superego. Este é tão cruel e sádico para
com o ego que uma de suas respostas às exigências do superego pode
corresponder à idealização onipotente, ou seja, funcionar no regime do narcisismo
infantil. Em outras palavras, o pânico remete-nos, especificamente, às questões
em torno dos ideais.
Voltemos então à distinção entre ego ideal e ideal do ego. O primeiro
corresponderia à idealização da onipotência do ego, portanto, ao regime do
narcisismo infantil. Enquanto que o segundo estaria vinculado aos problemas da
Lei e da ética, colocando-se diante do ego como seu ideal.
Cabe aqui um aparte a Lacan em relação ao esclarecimento e distinção
conceitual que procuramos estabelecer entre ideal do ego e ego ideal. No
Seminário 1, Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954), o autor sustenta que
Freud, no texto de 1914, ao tratar do ideal do ego e do ego ideal de fato designa
duas funções diferentes.
Freud emprega aí Ich-Ideal (ideal do eu), que é exatamente simétrico e oposto ao Ideal-Ich (eu ideal). É o signo de que Freud designa aqui duas funções diferentes. (...) Um está no plano do imaginário, o outro no plano do simbólico – porque a exigência do Ich-Ideal (ideal do eu) toma seu lugar no conjunto das exigências da lei. (...) A distinção é feita nessa representação entre Ideal-Ich e Ich-Ideal, entre o eu ideal e o ideal do eu. O ideal do eu comanda o jogo de relações de que depende toda relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária. (...) O Ich-Ideal, ideal do eu, é o outro enquanto falante, o outro enquanto tem comigo uma relação simbólica,
94
sublimada, que no nosso manejo dinâmico é ao mesmo tempo, semelhante e diferente da libido imaginária. A troca simbólica é o que liga os seres humanos entre si, ou seja, a palavra, e que permite identificar o sujeito. O Ich-Ideal (ideal do eu), enquanto falante, pode vir situar-se no mundo dos objetos ao nível do Ideal-Ich (eu ideal), ou seja, ao nível em que se pode produzir essa captação narcísica com que Freud nos martela os ouvidos ao longo desse texto. (1996, p.157,165, 166).
Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud dá continuidade à
mesma idéia de Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914), com relação à
diferenciação entre ego e ideal do ego:
Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de “ideal do ego” e, a título de funções, atribuímos-lhe a auto-observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a principal influência na repressão. Dissemos que ele é o herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil desfrutava de auto-suficiência; gradualmente se reúne, das influências do meio-ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode estar sempre à altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar, satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego. (1980, p.138).
O longo processo na transformação do ego ideal em ideal do ego, articula-
se ao próprio complexo de Édipo87, o qual é regulado pela angústia de castração,
como vimos no primeiro capítulo. É importante, portanto, que o ego não se
estabeleça como sendo sua própria origem (ego ideal), que reconheça suas
insuficiências face a um ideal colocado como objetivo a ser atingido (ideal do
ego).
Costa (1991) esclarece-nos esse ponto trabalhando as injunções ideais
nesse mesmo sentido. Ao estabelecer o ideal do ego em oposição ao ego ideal
narcísico, afirma que, para Freud, “o ideal é uma projeção do narcisismo adulto
sobre a criança. (...) o ideal do ego produz efeitos narcísicos (...) porque qualquer
remanejamento na economia do desejo tem sua contrapartida no narcisismo
egóico”. (p.98-9). A questão é explicada da seguinte forma:
87 Vide p.78-9.
95
Quando o sujeito é submetido às injunções ideais, representantes das leis do parentesco, do simbólico ou da linguagem, submete-se a elas, não obstante o narcisismo. A promessa de prazer embutida na obediência à lei da castração não é produzida pelos ideais porque eles são narcísicos. Esta promessa, ou esperança de prazer (...) é criada pelo ego, que, para alterar-se, vê-se no futuro como um ego-ideal (...) toda injunção dos ideais só pode ser eficiente quando permite a realização na fantasia do ego-ideal (...) o ideal é alguma coisa que nunca se realizou e assinala a existência de uma falta no sujeito; o ego-ideal é algo que está sempre realizado e que assinala a fantasia de completude, a qual o ego aspira. Ambas têm uma dimensão imaginária, mas nem todo imaginário é narcísico. (Costa, 1991, p.99; os grifos são meus).
Outra forma de nos referirmos aos termos metapsicológicos ego ideal e
ideal do ego é a oposição entre o amor de si e o amor do outro, assim como a
oposição entre processos psíquicos narcisistas e alteritários, ou seja, que envolve o
reconhecimento de um outro em sua singularidade.
Destacamos uma passagem de Birman (1997) que sintetiza a questão da
subjetividade e da alteridade em relação ao ego ideal e a diferenciação do ideal do
ego e superego:
... duas modalidades conflitantes de subjetividade: uma que se acredita autocentrada (eu ideal) e outra que se representa descentrada (ideal do eu), pois orientada pela alteridade. Posteriormente, o discurso freudiano delineou uma outra instância de alteridade do sujeito e que acentuava mais ainda o seu descentramento: o supereu. O que evidencia esse conjunto de figuras do sujeito não é apenas a multiplicidade e diversidade de sujeitos no interior do indivíduo, mas também a ênfase de que a produção do sujeito se realiza pelo outro, mesmo que exista o autocentramento do eu como um de seus efeitos e cristalização no psiquismo. Essa concepção alteritária da origem do eu... está na origem do conceito de identificação. É justamente porque o sujeito se constitui no e pelo outro que o seu ser é a marca indelével que o outro traça no seu corpo nas experiências de satisfação. (p.32).
Assim, essa ação em que um ego (ego ideal) se assemelha a outro ego
(ideal do ego) chama-se identificação. Em Psicologia de grupo e análise do ego
(1921), Freud define as diferentes modalidades de identificação:
1) Como forma originária de um laço afetivo com o objeto. Como
dissemos, é “a mais remota expressão de um laço emocional com
outra pessoa”. (1980, p.133);
96
2) Como substituto regressivo de uma escolha de objeto abandonada:
“de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma
vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da
introjeção do objeto no ego”. (p.136). Assim, a identificação
aparece no lugar da escolha de objeto e a escolha de objeto regride
para identificação. (p.135). A identificação regressiva é discernível
no sintoma histérico em que a formação do sintoma se constitui
pela imitação do sintoma da pessoa amada, como é o caso de Dora,
por exemplo, que imita a tosse do pai.
3) Como forma de identificação por meio do sintoma – o “mecanismo
é o da identificação baseada na possibilidade ou desejo de colocar-
se na mesma situação” (p.135) da pessoa que está sendo copiada.
Aqui, portanto, não há qualquer investimento sexual do outro.
“Pode surgir como qualquer nova percepção de uma qualidade
comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto da
pulsão sexual”. (p.136). Essa forma de identificação é construída
sobre um ponto de coincidência entre dois egos e esse ponto deve
ser mantido recalcado.
Sobre o mecanismo da identificação por meio do sintoma, Freud (1921)
esclarece que “um determinado ego percebeu uma analogia significante com outro
sobre certo ponto. (...) Uma identificação é logo após construída sobre esse ponto
e, sob a influência da situação patogênica, deslocada para o sintoma que o
primeiro ego produziu.” (1980, p.136).
À identificação por meio do sintoma, Freud (1921) acrescenta que quanto
mais importante for essa qualidade comum partilhada, “mais bem sucedida pode
tornar-se essa identificação parcial88, podendo representar assim o início de um
novo laço”. (1980,p.136). E Freud continua, dizendo que “o laço mútuo entre os
membros do grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa
importante qualidade emocional comum” e que essa “qualidade comum reside na
natureza do laço com o líder”. (p.136). Nesse sentido, esse tipo de identificação
fornece referenciais para as identificações imaginárias entre os membros do
88 Vide p.71, final da citação de Freud (1921), a respeito dos processos descritos como‘narcisistas’, “nos quais a satisfação das pulsões é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas”.
97
grupo, assim como reforço narcísico para cada um deles e para o grupo. Sob esse
prisma a construção dos laços sociais é um efeito da problemática do indivíduo
em relação aos ideais e às identificações, em relação à alteridade.
Aqui cabe um aparte para Birman (1997) a respeito da idéia de que Freud
não opõe individualidade e sociedade, mas que essa “oposição efetiva se daria
entre processos narcísicos e intersubjetivos”.
Vale dizer, a oposição no campo do sujeito se daria entre interioridade e exterioridade, entre o sujeito regulado pelo eu ideal e o sujeito figurado como ideal do eu e supereu. Seria esse contraponto que marcaria os destinos do sujeito entre os pólos do dentro e do fora, entre a interioridade e a exterioridade, indicando a dialética fundamental de produção e reprodução do sujeito entre as pulsões e o outro. Enfim, o sujeito não seria a causa de si mesmo, pois o dentro se constitui pelo fora, a interioridade pela exterioridade. (p.32-3).
É através da hipnose e da paixão amorosa que Freud explica a relação do
líder com o grupo pela oposição do mecanismo de identificação ao de
substituição: colocar o objeto no lugar de uma instância. O líder do grupo toma o
lugar do ideal do ego de seus membros.
Há uma identificação quando o objeto é integrado ao ego. A identificação,
portanto, implica uma modificação ou alteração do ego. Já na substituição, o
objeto é posto no lugar do que constitui o ideal do ego, portanto, implica uma
conservação do objeto.
O desenvolvimento do ideal do ego envolve um processo de idealização.
Coloca Freud (1914): “a idealização é um processo que diz respeito ao objeto; por
ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e
exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido
do ego quanto na da libido objetal.” (1980, p.111).
Dessa maneira, na fascinação e sujeição próprias ao estado amoroso
apaixonado, assim como ao estado hipnótico, subjaz um superinvestimento do
objeto à custa do ego. Portanto, é preciso distinguir a relação amorosa em que o
amor é partilhado e a relação amorosa em que há o fascínio amoroso. Na primeira,
os sujeitos se encontram. Na segunda, um objeto idealizado é colocado no lugar
do ideal do ego. Diz Freud (1921):
No caso da identificação, o objeto foi perdido ou abandonado; assim ele é novamente erigido dentro do ego e este efetua uma
98
alteração parcial em si próprio, segundo o modelo do objeto perdido. No outro caso, o objeto é mantido e dá-se uma hipercatexia dele pelo ego e à expensas do ego (...) outra alternativa abrange a essência real da questão, ou seja, se o objeto é colocado no lugar do ego ou do ideal do ego. (1980, p.144).
Lembremos da importância da renúncia ao objeto perdido que trabalhamos
no capítulo anterior89. No pânico, o objeto idealizado de amor não foi dado como,
perdido, verdadeiramente, na medida em que foi colocado no lugar do ideal do
ego. Voltaremos a esse tema mais adiante.
Assim, Freud mostra que a relação hipnótica isola um elemento importante
na complicada textura do grupo: a relação do indivíduo com o líder. Ambas as
relações não diferem em sua estrutura libidinal.
Como dissemos anteriormente, aqui está a primeira questão da
identificação nos grupos: sua estrutura libidinal “reconduz à distinção entre ego e
o ideal do ego e à dúplice espécie de vínculo que isso possibilita: a identificação e
a colocação do objeto no lugar do ideal do ego”.
Diz Freud (1921):
Podemos fornecer a fórmula para a construção libidinal dos grupos (...) aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante uma “organização” demasiada, adquirir secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal de ego e, conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego. (1980, p.147).
Essa mesma relação de um todo-poderoso e um dominado (hipnotizador e
hipnotizado; sádico-masoquista) é evocada por Freud em Totem e tabu (1913), no
sentimento de culpa e na divinização do pai morto enquanto conseqüências
inevitáveis do parricídio. No pai da horda, o pai morto é idealizado como um
objeto de amor único e introduzido como ideal de ego. Os irmãos unidos, agora,
renunciam aos privilégios e às atitudes hostis, o que acaba por promover a
identificação entre eles e a conseqüência do afeto positivo entre os membros do
grupo90. O pai passa a representar o ideal comum de todos, o que leva a uma
89 Vide p.50. 90 Lembremos que a culpa se origina no retorno do amor sob a forma de remorso (vide p.67).
99
identificação entre os egos dos indivíduos do grupo, pois é impossível ter o pai
somente para si mesmo e obter seu amor exclusivo. Identificação entre iguais
numa situação de igualdade. Em outras palavras, a identificação no grupo, que
deriva do amor pelo chefe idealizado, pode conduzir a condutas simples,
programáveis e manipuláveis.
Aqui está outro problema da identificação nos grupos: o grupo é moldado
segundo um grupo primário. “Assim, o grupo nos aparece como uma
revivescência da horda primeva. (...) As características misteriosas e coercivas das
formações grupais (...) podem assim, ser remontadas à sua origem na horda
primeva. O líder do grupo ainda é o temido pai (...) o pai primevo é o ideal do
grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego”. (Freud, 1921/1980, p.156 e
161).
Para Freud (1921), em última instância, o ciúme e a intolerância do pai
primevo, “tornaram-se as causas da psicologia de grupo”. (1980, p.157).
Abre-se aqui mais uma questão a respeito da identificação nos grupos.
Afirma Freud (1921):
Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. – podendo também elevar-se sobre elas na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade. (...) é exatamente nesses ruidosos grupos efêmeros, superpostos uns aos outros, por assim dizer, que encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas temporário, exatamente daquilo que identificamos como aquisições individuais. (1980, p.163).
O indivíduo ressurge no grupo exatamente porque pertence a diversos
grupos e por suas múltiplas identificações. Entretanto, pode perder suas aquisições
singulares quando “abandona seu ideal do ego e o substitui pelo ideal do grupo,
tal como é corporificado na figura do líder (...) Em muitos indivíduos, a separação
entre o ego e o ideal do ego não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem
facilmente; o ego amiúde preservou sua primitiva auto-complacência narcisista”.
(1980, p.163).
100
Recordemos que para Freud (1914), “o desenvolvimento do ego consiste
num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de
recuperação desse estado”. (1980, p.117). Desse modo, o desenvolvimento do
sujeito humano constitui-se no distanciamento do narcisismo primário e nas
tentativas de recuperar essa satisfação narcísica “perdida” através dos
investimentos nos objetos e na tentativa de identificação aos ideais (ou ideal do
ego). Entretanto, concomitantemente, o ego tem uma tendência a voltar para o ego
ideal, para o estado de total onipotência, ou seja, para o regime do narcisismo
primário e do desamparo original (Hilflosigkeit).
Vejamos a seguinte passagem de Freud (1914):
O ideal do ego desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além de seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação. Ele vincula não somente a libido narcisista de uma pessoa, mas também uma quantidade considerável de sua libido homossexual, que dessa forma retorna ao ego. A falta de satisfação que brota da não realização desse ideal libera a libido homossexual sendo esta transformada em sentimento de culpa (angústia social). Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de punição pelos pais ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas. (1980, p.119; os grifos são meus).
Aqui se abrem duas questões básicas para nós. A primeira, que Freud
complementará em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), refere-se à idéia
de que a formação coletiva nasce de uma ilusão produzida pela relação (como a
hipnose) entre o indivíduo e seu ideal (líder), funcionando como uma neurose
coletiva. O processo de civilização solicita que cada indivíduo se desvie de seus
objetivos sexuais diretos – o que pode gerar de cada um uma uniformidade de
comportamento –, o ego é obrigado a se curvar perante os ideais da civilização.
Em outras palavras, o ideal do ego da cultura cria “sistemas de ilusões
coletivas”, em que são construídos, instituídos e veiculados valores e significações
que dão forma às representações do mundo, dos egos e das relações entre eles
criando nos indivíduos uma realidade concebida como “natural” e que orientam
suas normas de conduta.
101
A segunda questão, que Freud trabalhará detalhadamente em O ego e o id
(1923), refere-se à “atitude do ideal do ego que determina a gravidade de uma
doença neurótica”. (1980, p.66).
Os indivíduos são levados então, a experimentar, cada vez mais, tensões
intoleráveis entre o ego e o ideal do ego que se expressam sob a forma de
sentimento de culpa; e esse sentimento de culpa, o medo de perder o amor dos
pais, marcará para sempre a relação do sujeito com o outro, com a sociedade
como angústia social91.
A respeito da neurose, Freud (1921) diz que “seus sintomas devem ser
remetidos a impulsos diretamente sexuais que são recalcados, mas permanecem
ainda ativos”, ou seja, são impulsos que foram inibidos em seus objetivos, mas
cuja inibição não foi, inteiramente, bem sucedida, permitindo o retorno do
objetivo sexual recalcado. E acrescenta:
Está de acordo com isso que uma neurose torne associal a sua vítima ou a afaste das formações habituais de grupo. Pode-se dizer que uma neurose tem sobre o grupo o mesmo efeito desintegrador que o estado de estar amando. Por outro lado, parece que onde foi dado um poderoso ímpeto à formação de grupo, as neuroses podem diminuir ou, pelo menos, temporariamente, desaparecer.(...) Tudo isso se correlaciona com o contraste entre os impulsos diretamente sexuais e os inibidos em seus objetivos. Se é abandonado a si próprio, um neurótico é obrigado a substituir por suas próprias formações de sintoma as grandes formações de grupo de que se acha excluído. Ele cria seu próprio mundo de imaginação, sua própria religião, seu próprio sistema de delírios, recapitulando assim as instituições da humanidade de uma maneira distorcida, que constitui prova evidente do papel dominante desempenhado pelos impulsos diretamente sexuais. (1980, p.177-8; os grifos são meus).
Ou seja, para Freud, as neuroses apresentam, por um lado, pontos de
concordância com as instituições sociais, a religião, a arte, etc, mas, por outro
lado, parecem distorções delas. A divergência está no fato de as neuroses serem
estruturas associais: os neuróticos “esforçam-se por conseguir, por meios
91 A teorização freudiana a respeito da angústia social, refere-se às tensões entre o ego e o ideal, expressas sob a forma de sentimento de culpa. Entretanto, essa teorização foi se modificando ao longo do tempo. Em 1914 (vide citação p.88), a explicação de Freud, sobre a angústia social, era pelo excesso da pulsão homossexual como resultado do confronto entre o ego e o ideal. Em 1926 (vide citação da p.52), a angústia social ganha o teor do perigo de perder o amor do ideal.
102
particulares, o que na sociedade se efetua através do esforço coletivo”.
(1913/1980, p.95). Quando o neurótico cria seu próprio mundo de fantasias, muito
mais agradável do que o mundo real, ele está se distanciando da sociedade
humana e de suas instituições coletivamente criadas, e, nesse sentido, as
formações de sintomas são, em última instância, uma maneira que o sujeito
encontra de se organizar dentro de um grupo. Podemos dizer que a organização
social é uma nova versão da Lei paterna.
Em outras palavras, a sociedade oferecerá subsídios para o sujeito se
organizar para além da cena familiar. A cena social “recaptura” o sujeito humano,
recolocando-o dentro de uma dinâmica em que sua constituição subjetiva,
engendrada no complexo de Édipo, deve se articular com suas transformações
quando se enlaça em grupos sociais.
É sob esse prisma que, no próximo capítulo, pretendemos mostrar que o
“panicado” como um excluído da cena social atual, “abandonado a si próprio”, é
obrigado a substituir por sua própria formação de sintoma a grande formação da
sociedade contemporânea. Rosa (1999), em A subjetivação nas configurações
familiares da “pós-modernidade”, trabalha com a idéia de que, na atualidade,
vivemos um declínio da Lei paterna, o que mudou o sintoma social e o próprio
indivíduo. E essa questão, aproxima-nos “da idéia de que atualmente o sintoma
que amarra os homens à modernidade é o narcisismo”. (p.209). Assim, podemos
interpretar que o aumento da incidência do pânico, na atualidade, aponta para uma
maneira que o sujeito encontrou de se organizar dentro da sociedade
contemporânea.
À medida que o ego se curva perante os ideais da civilização pode
acontecer que os ideais do grupo (sociedade) tenham uma exigência de tal porte
que o sujeito não consegue responder a eles. Nesse sentido, pode haver uma fuga
para o ego ideal, para a onipotência, para o regime do narcisismo primário, o que
vai aumentando cada vez mais o desarranjo pulsional. Dessa maneira, o arranjo
pulsional que o sujeito encontra refere-se ao masoquismo primário92, isto é, à
ascendência da culpa e ao retorno para o desamparo original. Se é, exatamente, a
Veremos, posteriormente (vide p.107), que, em 1930, a expressão mal-estar (Unbehagen) foi a que Freud utilizou para se referir a essa questão. 92 Trabalharemos esse tema no último tópico do próximo capítulo.
103
atitude do ideal do ego que determina a gravidade de uma neurose, sob esse
prisma, os ideais do grupo podem gerar patologias.
Dito de outra maneira, a sociedade gera condições e possibilidades na
produção de determinados tipos de sintoma que são articulados historicamente.
Entendemos que o pânico é um exemplo desse caso, podendo ser considerado uma
produção social da civilização contemporânea, como veremos no próximo
capítulo.
É através do estudo do pânico no grupo que Freud (1921) faz uma analogia
com o pânico no indivíduo, trazendo, claramente, a idéia de que o rompimento
súbito do vínculo afetivo entre o indivíduo (ego) e o ideal (ilusório protetor) o
lança no abismo do desamparo, pois não há mais nenhuma garantia de proteção
para os perigos; não há mais garantias para as identificações sobre as quais se
funda a integridade do eu (e, no caso do coletivo, a unidade do grupo). O pânico,
portanto, é o efeito imediato dessa ruptura:
No indivíduo o medo (Angst)93 é provocado seja pela magnitude de um perigo, seja pela cessação dos laços emocionais (catexias libidinais); este último caso é o caso do medo neurótico ou angústia (neurotischen Angst)94. Exatamente da mesma maneira, o pânico (Panik) surge, seja devido a um aumento do perigo comum, seja ao desaparecimento dos laços emocionais que mantêm unido o grupo, e esse último caso é análogo ao da angústia neurótica (neurotischen Angst). (1980, p.123-4).
Essa passagem mostra que o pânico corresponde a uma condição de caos e
desagregação que se instala no psiquismo do sujeito dado o desabamento da
estrutura libidinal que até então era sustentada por um ideal onipotente colocado
no lugar do ideal do ego95. Note-se que Freud assinala a instalação do pânico
quando há a decadência do ideal ilusório que garantia a estabilidade do mundo
psiquicamente organizado, ou seja, à falência do simbólico. Nessa medida, o
pânico origina-se da confrontação do sujeito com a possibilidade do perigo sem
esperar nenhum tipo de proteção transcendente. Recordemos que, no primeiro
93 Nessa citação, os termos em alemão que estão entre parênteses correspondem ao texto original no alemão, Freud, (1921/1987) Massenpsychologie und Ich-Analyse, p.105. 94 Precisamente, como trabalhamos no capítulo 1. 95 Vide p.85.
104
capítulo96, uma das facetas para o significado do vocábulo pânico é “o terror
provocado pelo deus Pã”. Este era um deus que tinha por função a proteção da
natureza, das lavouras, do mundo terreno, portanto, um deus imanente e não
transcendente como Hermes, seu pai, aquele a quem fora destinado o serviço da
comunicação entre os mortais e os imortais.
Em pânico, portanto, o sujeito não transcende, não consegue simbolizar,
está mergulhado num mar de angústia. O medo é imanente, está em todos os
lugares. O sujeito então, se vê totalmente desamparado e confrontado com o
afluxo pulsional caótico. A libido, que até então estava ligada pelo amor a um
ideal, agora se torna energia livre. O sujeito em pânico descobre com horror que
não há garantias absolutas na vida, ou seja, a capacidade protetora onipotente
atribuída ao pai é imaginária. Entendemos o pânico como um pedido
transcendente de amor (um apelo) dirigido ao pai idealizado e onipotente que
garanta sua proteção contra o desamparo.
Recordemos a necessidade de que a criança passe por um lento processo
de desilusão97 para que a descoberta da realidade do desamparo seja uma
experiência tolerável. No pânico, entendemos que a criança não passou,
adequadamente, por esse processo de desilusão98 e, portanto, não renunciou
verdadeiramente ao objeto perdido. Essa criança “fez de conta” que renunciou. Há
o objeto perdido, pois, caso contrário, ela seria psicótica, sendo que o sujeito que
sofre de pânico tem funcionamento psíquico neurótico. De certa forma, a criança
conservou o objeto perdido, como objeto de amor idealizado e protetor no lugar
do ideal do ego.
Lembremos que na idealização o objeto é mantido por uma hipercatexia do
ego e à expensas dele, portanto, há um empobrecimento e enfraquecimento do
ego99. Por isso, nesses casos, o vínculo libidinal do ego com seu ideal é frágil e as
catexias libidinais podem cessar a qualquer momento. A energia ligada torna-se
energia livre e o afluxo pulsional é excessivo e caótico: a situação traumática
instala-se. Esse momento refere-se à descoberta da realidade nua e crua do
desamparo que estava enuviada: não há garantias absolutas de proteção na vida,
96 Vide p.14. 97 Vide p.50-1 e 59. 98 (Vide p.48) são os “tropeços” experimentados no momento inicial da vida do ser humano que podem gerar psicopatologias. 99 Vide p.85.
105
não sabemos do nosso destino, não sabemos da própria morte, escapa-nos uma
apreensão subjetiva definitiva a respeito do sexual, e nosso desejo é inominável.
Essa descoberta é súbita, não foi aos poucos (lento processo de desilusão), é um
choque, tem o teor de um Schreck generalizado. O sujeito entra no estado de
Panik. O pânico, como coloca Pereira (1999),
... instala-se em momentos em que o aparelho psíquico vê-se obrigado a reconhecer os limites enquanto tais, de suas possibilidades de simbolização, mas não suporta nem o peso nem as conseqüências desse reconhecimento dado que a existência de tais limites passa a ser vivenciada como ameaça iminente de desabamento do mundo simbolicamente organizado. (p.38).
A defesa contra o desamparo infantil (condição de desamparo) empresta
suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de
reconhecer: estabelece-se a situação de desamparo.
Como dissemos, anteriormente, as formações de sintomas são, em última
instância, uma maneira que o sujeito encontra de se organizar dentro de um grupo.
Veremos, no próximo capítulo, que o pânico é expressão de um modo que o
sujeito encontrou de se organizar na sociedade contemporânea, como uma
maneira de responder aos subsídios que a organização social atual oferece para ele
se sustentar para além da cena familiar.
Não é coincidência então que exatamente no artigo Psicologia de grupo e
análise do ego (1921), Freud estuda o fenômeno do pânico: por um lado, um
fenômeno do campo da angústia e por outro lado, como algo advindo de uma
estrutura de relação de grupo.
Enfim, a construção da identificação e dos ideais seja do indivíduo seja do
grupo é marcada por processos subjetivos que devem ser desenvolvidos para que
sejam mantidas tanto a organização individual (organização simbólica ou
psíquica) quanto a organização social. Esses processos, segundo Freud, dão-se
entre duas formas de existência da subjetividade: entre os registros do narcisismo
(ego ideal/amor de si) e da alteridade (ideal do ego, superego/amor de outro).
Retomando Birman (1997):
A problemática freudiana se estabelece para pensar as passagens e os impasses entre o narcisismo e a alteridade.
106
Portanto, o que o discurso freudiano realiza é uma leitura metapsicológica das formações de cultura, onde o que fica em pauta é o funcionamento da função sujeito nessas formações, assim como uma indagação das operações estésicas no contexto destas formações de cultura. Dessa maneira, as oposições freudianas destacadas acima se inscrevem entre o narcisismo e a sociedade, isto é, entre o narcisismo e a alteridade. O que está em pauta é a oposição entre duas formas de existência da subjetividade, na qual a primeira é eminentemente narcísica e a segunda alteritária. (p.91).
Sob esse prisma, o processo de subjetivação implica na atividade do ideal
do ego como possibilidade de ativação do sistema de simbolização.
2.5. A problemática do desamparo (Hilflosigkeit) do sujeito no campo
social.
Em O futuro de uma ilusão (1927) e em O mal-estar na civilização (1930),
Freud retoma a problemática do desamparo (Hilflosigkeit)100 como uma condição
de desamparo, isto é, destacando a falta de garantias do sujeito sobre o seu existir
e o seu futuro. O desamparo é trabalhado sob o ponto de vista da falta de garantias
do sujeito no mundo, que é obrigado a uma renúncia pulsional como condição de
viver em sociedade. E, como sabemos, é sobre esse fundo de desamparo que o
psiquismo se constrói.
A civilização, para Freud (1930), “descreve a soma integral das realizações
e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais,
e que servem a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de
ajustar seus relacionamentos mútuos”. (1980, p.109). Portanto, a cultura tem por
função a proteção da condição do desamparo (Hilflosigkeit) humano frente ao
mundo (forças da natureza) e aos outros homens, tanto quanto a organização de
suas relações sociais e a divisão dos bens.
Ninguém, no entanto, alimenta a ilusão de que a natureza já foi vencida, e poucos se atrevem a ter esperanças de que um dia ela se submeta inteiramente ao homem. Há os elementos, que parecem escarnecer de qualquer controle humano: a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que lhes antepõe; as doenças,
100 Vide p.59-60, a respeito da dupla face do desamparo.
107
que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra a qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização. (Freud, 1927/1980, p.27; os grifos são meus).
Essa passagem mostra, claramente, que o desamparo não é simplesmente
uma etapa específica do desenvolvimento infantil ou uma regressão neurótica a
esse estado de dependência infantil ou o núcleo de uma situação traumática, mas
expressa a dimensão fundamental e insuperável sobre a qual repousa a vida
humana. É o motor na construção da civilização. O homem ergueu a civilização
numa tentativa de diminuir seu desamparo diante das forças da natureza, dos
enigmas da vida e sobretudo da própria morte.
Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber, claramente, que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (Freud, 1927/1980, p.30).
Para Freud (1927), a condição de impotência do ser humano frente às
forças da natureza e da morte traz-nos duas questões: primeiro que, em última
instância, a ameaça que ronda é a morte própria e, nesse sentido, o universo é
fonte de todos os “Schrecks”101; segundo que tornou o homem incapaz de
enfrentar esses perigos sozinho, impondo-lhe a necessidade de criar uma vida em
comum, uma relação simbolicamente estruturada com o outro, ou seja, a
civilização.
Em O futuro de uma ilusão (1927), Freud continua na esteira de Totem e
tabu (1913) e de Psicologia de grupo e análise do ego (1921), no que diz respeito
à constituição da lei, da função paterna, na organização do psiquismo. Caracteriza
muito bem o vínculo social por meio de uma análise do nascimento da civilização
e do funcionamento de suas organizações, o que, entretanto, garante sua própria
101 O plural de Schreck é Schrecken.
108
degradação e as perspectivas para o futuro, das quais depende uma ilusão
necessária.
... um homem transforma as forças da natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como seus iguais (...), mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já tentei demonstrar (Totem e Tabu), não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético. No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras observações de regularidade e conformidade à lei nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perderam seus traços humanos. O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. (1921/1980, p.29; os grifos são meus).
A condição de impotência do ser humano frente às forças da natureza e da
morte não é específica da infância, mas do humano. Lembremos que para Freud
os perigos são sempre de natureza pulsional, assim sendo, os perigos reais que a
natureza comporta não são exatamente uma ameaça de morte, mas uma ameaça a
nosso narcisismo, uma ameaça à imagem amada de nós mesmos. Os perigos reais
são avaliados segundo o referencial narcísico.
Temos aqui elementos que reforçam a noção de Hilflosigkeit que
começamos a desenvolver no capítulo um. Ela é uma condição fundamental no
funcionamento do psiquismo, assim como o motor da civilização, e não somente
uma situação eventual na história do sujeito.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud trabalha a problemática do
desamparo (Hilflosigkeit) do sujeito no campo do social, que é obrigado a uma
renúncia pulsional como condição para viver em sociedade e como conseqüência
da satisfação pulsional frustrada, o sujeito experimenta um desconforto que é
sentido como um mal-estar.
O mal-estar articula-se em torno da assimetria existente entre as
exigências da força pulsional e as possibilidades psíquicas de satisfação reguladas
pela simbolização (elaboração psíquica). Essa assimetria é caracterizada pela
oposição entre a continuidade da força pulsional e a descontinuidade dos
símbolos. É nesse jogo assimétrico entre as ordens da continuidade pulsional e da
descontinuidade simbólica que o sujeito pode criar objetos que possam promover
a experiência de satisfação, além de ser a condição para angústia, pois indica
permanentemente a condição de desamparo estrutural para o sujeito. Como essa
109
condição é inaceitável para o sujeito, ele estabelece a relação de conflito
interminável com a condição de desamparo.
Em outras palavras, ao trabalhar o antagonismo irremediável entre as
exigências pulsionais e as restrições da civilização, Freud (1930) demonstra que a
relação do sujeito com a civilização é marcada por um mal-estar, pois é permeada
pelo conflito e a impossibilidade de resolvê-lo totalmente. Como vimos, desde o
capítulo um, esse conflito irremediável é constitutivo da condição subjetiva do
humano, sendo o desamparo a base dessa condição.
Dessa maneira, a noção de desamparo (Hilflosigkeit) configura a finitude
do sujeito para Freud, e a expressão mal-estar (Unbehagen) foi a que Freud
utilizou para se referir a esse destino trágico do sujeito para a psicanálise. Nesse
sentido, a condição subjetiva102 do humano é subjugada a esses dois fatores.
No referido artigo de 1930, o autor trabalha a pulsão de morte e seus
efeitos sobre a sociedade103. Na verdade, introduz a hipótese da pulsão de
morte104 no domínio da civilização. Aponta que a inclinação agressiva inata,
originária e autônoma no ser humano, não pode ser explicada pela ambivalência
amor/ódio existente nas pulsões sexuais (pulsões de vida), mas provém da pulsão
de morte.
Para Freud (1930), as restrições aplicadas pela civilização à manifestação
das pulsões são explicadas pela ação da pulsão de morte enquanto pulsão de
agressividade. As fontes do sofrimento humano (as fontes do mal-estar)105 têm
origem no social e derivam de nosso pertencer à civilização. Conclui que a
evolução da civilização representa uma luta de Titãs, ou seja, entre Eros e
Thanatos:
... a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade (...) essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade106, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural impulso agressivo
102 Vide final p.53. 103 Tema que trabalharemos no próximo capítulo. 104 Freud, (1920) Além do princípio de prazer. 105 Vide p. 142, 151 e 154. 106 Refere-se a Ananke, a necessidade externa que cria a compulsão para o trabalho. Para Freud Eros e Ananke – o poder do amor e da necessidade –, também são os pais da civilização humana.
110
do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Essa pulsão agressiva é o derivado e o principal representante da pulsão de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não é mais obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre a pulsão de vida e a pulsão de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. (1980, p.145).
Lembremos que, para Freud (1920), a pulsão de vida (Eros) engloba o
antagonismo pulsional de sua primeira teoria das pulsões, isto é, as pulsões do ego
(ou de auto-conservação e de conservação da espécie), assim como as pulsões
sexuais. Sua meta é fazer ligações, produzir unidades cada vez mais elevadas e
conservá-las. Diferentemente, a pulsão de morte (Thanatos) tem como meta
dissolver unidades, desligar, romper, destruir. Seu destino último é conduzir a
vida a restaurar um estado anterior de coisas, ou seja, retornar ao estado
inanimado. Nesse sentido, cada classe de pulsões tem sua própria finalidade. A
energia da pulsão de vida Freud chamou de libido. Não denominou nenhuma
nomenclatura para a energia da pulsão de morte; entretanto, refere-se a ela como
“agressividade”, “impulso destrutivo”, “impulso de domínio” ou “vontade de
poder”107.
A pulsão de vida é visível e ruidosa, ao passo que a pulsão de morte é
silenciosa (não tem representação no psiquismo), operando no organismo no
sentido de sua destruição. Para demonstrar as atividades da pulsão de morte, para
as quais não temos provas, Freud (1923) esclarece que ela vem à luz como uma
pulsão de agressividade e destrutividade desviada no sentido do mundo externo:
“ao final viemos reconhecer o sadismo como seu representante. (1980, p.55)108
Freud (1923) presume que há uma fusão e amalgamação em proporções
amplas e variáveis das duas classes de pulsões, de modo que jamais teremos
pulsões de vida puras e pulsões de morte puras, mas aparecerão sempre
misturadas e em quantidades diferentes. Entretanto, corresponde a essa fusão a
possibilidade de existir uma desfusão das pulsões. A desfusão pulsional e o
107 Como aparece, por exemplo, em: (1924) O problema econômico do masoquismo, p.204; (1930) O mal-estar na civilização, p.133, 144-5; (1938) Esboço de psicanálise, 1980, p.175. 108 Como referência ao trabalho com as duas classes de pulsões, estamos usando os artigos: (1920) Além do princípio de prazer, (1923) O ego e o id, (1924) O problema econômico do masoquismo, (1930) O mal-estar na civilização, (1932) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, (1938) Esboço de Psicanálise.
111
surgimento pronunciado da pulsão de morte são importantes para a compreensão
de processos patológicos. Exemplifica a mistura das duas classes de pulsões
através do sadismo e do masoquismo109. O componente sádico da pulsão sexual é
o exemplo clássico de uma fusão pulsional útil. Mas, o “sadismo que se tornou
independente como perversão seria típico de uma desfusão”. (1980, p.57).
Dessa forma, na luta entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, a libido
tem o objetivo de tornar inócua a pulsão destruidora, desviando-a em grande parte
para fora, no sentido de objetos do mundo externo. Diz Freud (1930):
No sadismo (...) conhecido como impulso componente da sexualidade, teríamos (...) um vínculo entre as tendências para o amor e o impulso destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade para dentro e a sexualidade, união que transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra conspícua e tangível. (1980, p.141-2).
Na verdade, ao examinar os fenômenos do sadismo e do masoquismo,
Freud (1938) está argumentando a favor de um impulso agressivo e destrutivo nos
homens. No processo de viver, em que as duas classes de pulsões se mesclam, a
pulsão de morte é colocada a serviço da finalidade de Eros, sendo especialmente
voltada para fora na forma de agressividade.
Acode-nos ao pensamento a importância da possibilidade de que a agressividade pode não conseguir encontrar satisfação no mundo externo, porque se defronta com obstáculos reais. Se isto acontece, talvez ela se retraia e aumente a quantidade de autodestrutividade reinante no interior. (...) A agressividade tolhida parece implicar um grave dano. Realmente, parece necessário que destruamos alguma outra coisa ou pessoa, a fim de que não nos destruamos a nós mesmos, a fim de nos protegermos contra a impulsão de autodestruição. (1980, p.132).
Entretanto, como dissemos anteriormente110, o impulso agressivo do
homem opõe-se ao programa da civilização. Aqui parece haver uma distinção
entre os processos civilizatório e de desenvolvimento do indivíduo. Ambos os
processos caracterizam-se pela luta entre as pulsões de vida e de morte e pelos
109 Retomaremos o tema do masoquismo no final do capítulo três. 110 Vide p.97-8.
112
efeitos desse conflito de forças em permanente mudança. Também em ambos os
processos estão em interação duas premências: a premência no sentido da
felicidade individual – que Freud (1930) chama de “egoísta” – e a premência no
sentido da união com os outros seres humanos – que Freud (1930) chama de
“altruísta”. Nesse sentido, os processos de desenvolvimento do indivíduo e
civilizatório diferem nas premências que enfatizam. No primeiro, a ênfase recai
sobre a premência “egoísta”, enquanto que o segundo enfatiza a premência
“altruísta”, “que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente se contenta com a
função de impor restrições. (...) No processo civilizatório, (...) o objetivo da
felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo plano.” (1980, p.165).
Freud (1930) esclarece:
... pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente aspectos especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a comunidade como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o segundo. (1980, p.165).
Sob esse aspecto, o ser humano participa do desenvolvimento da
civilização ao mesmo tempo em que busca seu próprio caminho individual. E
continua Freud (1930):
Assim também as duas premências (...) devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta entre o indivíduo e a sociedade não constitui um derivado da contradição – provavelmente irreconciliável – entre as pulsões primevas de Eros e da morte. Trata-se de uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final do indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará, no futuro da civilização, por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo. (1980, p.165-6).
Dessa maneira, em O mal-estar na civilização (1930), Freud também
continua na esteira de Totem e tabu (1913) e de Psicologia de grupo e análise do
ego (1921), porém introduzindo a pulsão de morte, que é o maior impedimento à
civilização, fazendo-se aparecer em seus aspectos repetitivos, homogeneizantes,
113
em modalidades de agressividade face à natureza e aos outros homens. A
civilização instaurada pelo parricídio ligado ao desejo incestuoso é desde o
princípio contra o aspecto de Eros, ou seja, contra o amor. O vínculo erótico é um
vínculo perigoso, pois pode assumir a forma do imprevisto, da individuação. Para
que novos crimes não aconteçam é preciso abafar o amor. O homem é o lobo do
homem. Dessa maneira, Freud (1930) esclarece que “o problema que temos pela
frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização – isto é, a inclinação,
constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua.” (1980, p.167).
Lembremos que a pulsão de destruição é fundamentalmente ligada ao narcisismo
e ao desejo de onipotência.
No questionamento de Freud (1930) a respeito das formas utilizadas pela
civilização para domar a agressividade implícita ao humano, o sentimento de
culpa ganha cena. Mais uma vez, para compreender as facetas do
desenvolvimento da civilização, Freud (1930) se volta para a história do
desenvolvimento do indivíduo:
... sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre os outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (1980, p.146-7; os grifos são meus).
Nessa passagem há alguns desdobramentos importantes. Primeiro, que a
origem do superego está no recalcamento da agressividade própria111 e, em
conseqüência disso, a crueldade do superego em relação ao ego está ligada,
portanto, à pulsão de morte. Nesse sentido, a severidade original do superego
refere-se principalmente à própria agressividade do eu para com o objeto.
Lembremos de que uma quantidade considerável de agressividade desenvolve-se
111 Vide p.77-80 a respeito da formação do superego.
114
na criança contra a autoridade que lhe impôs restrições às primeiras e mais
importantes satisfações pulsionais. Na imposição em renunciar à satisfação dessa
agressividade vingativa, a criança, “através da identificação, incorpora a si a
autoridade inatacável. (...) A agressividade vingativa da criança será em parte
determinada pela quantidade de agressão punitiva que espera do pai.” (Freud,
1930/1980, p.153-4). Dessa maneira, o sentimento de culpa é a percepção no ego
da severidade do superego: está vinculado à agressividade própria, à punição que
a criança espera do pai. Além disso, a idéia do superego como portador do ideal
do ego (função do ideal relativa à instância crítica e proibidora do superego)
aparece aqui indiretamente112, na medida em que Freud atribui ao superego as
funções de ideal e de interdição.
O superego, portanto, deverá ter um caráter rígido e cruel a fim de criar o
sentimento de culpa sem o qual a civilização não se pode manter. Dessa maneira,
se estabelece a crueldade da civilização (“uma guarnição numa cidade
conquistada”) contra a possível crueldade dos indivíduos. Essa crueldade da
civilização é a agressividade internalizada contra o ego que corresponde à
angústia frente ao superego.
Desse modo, qualquer satisfação pulsional frustrada pode resultar numa
elevação do sentimento de culpa e isso só é aplicável aos impulsos agressivos.
Nesse sentido, um aumento do sentimento de culpa aparece no lugar de uma
exigência erótica não satisfeita. Freud (1930) esclarece que “a prevenção de uma
satisfação erótica exige uma agressividade contra a pessoa que interferiu na
satisfação, e que essa própria agressividade, por sua vez, tem de ser recalcada (...)
apenas a agressividade é transformada em sentimento de culpa.” (1980, p.163).
Nesse sentido, o autor extrai uma conclusão a respeito do processo de recalque e
dos sintomas neuróticos:
Os sintomas neuróticos são, em sua essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados (...) talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição (...) quando uma tendência pulsional experimenta o recalque, seus elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em sentimentos de culpa. (1980, p.163; os grifos são meus).
112 Portanto, em 1930, já encontramos uma referência indireta à distinção entre ideal do ego e superego que Freud vai retomar nas “Novas conferências”de 1933 e no “Esboço”de 1938.
115
Na verdade, essas pulsões recalcadas são transferidas para o superego, que
as dirige contra o próprio indivíduo sob a forma de sentimento de culpa.
Dessa maneira, Freud (1930) enuncia que o sentimento de culpa é o
problema mais importante no desenvolvimento da civilização: “o preço que
pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda da felicidade
pela intensificação do sentimento de culpa”. (1980, p.158).
Para Freud (1930) a origem do sentimento de culpa está fundamentalmente
no desamparo original (Hilflosigkeit) e em outras etapas de desenvolvimento “é
claramente, apenas um medo da perda do amor, uma angústia social”. (p.148; os
grifos são meus). Para as crianças, o sentimento de culpa “nunca pode ser mais do
que isso” e para muitos adultos “ele só se modifica até o ponto em que o lugar do
pai ou dos genitores é assumido pela comunidade mais ampla”. (1980, p.148).
Quando a civilização estabelece no interior do sujeito um agente como uma
guarnição numa cidade conquistada.
Quanto à origem do sentimento de culpa (...) está em ação uma influência estranha, que decide o que deve ser chamado de bom ou mau (...) a pessoa deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo (Hilflosigkeit) e na dependência dela em relação a outras pessoas e pode ser bem mais designado como medo da perda do amor. Se ela perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos. Acima de tudo fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais forte mostre a sua superioridade sob a forma de punição. De início, portanto, mau é tudo aquilo que com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo dessa perda, deve-se evitá-lo. (1980, p.147-8; os grifos são meus).
Em outras palavras, o sentimento de culpa tem uma origem dupla: a
angústia frente à recusa de amor e a angústia frente ao superego. Para Freud
(1930) há uma seqüência cronológica em dois tempos:
Em primeiro lugar, vem a renúncia à pulsão, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (É a isso, naturalmente, que o medo da perda do amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.) Depois vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia à pulsão devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más intenções são
116
igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência continua a agressividade da autoridade. (...) de início, a consciência surge através do recalque de um impulso agressivo, sendo subsequentemente reforçado por novos recalques do mesmo tipo. (1980, p.151-2).
Dessa forma, o sentimento de culpa aparece efetivamente a partir da
delimitação do superego como instância crítica ideal e interditora, na tensão entre
ego e superego/ideal do ego. Entretanto, Freud deixa claro que o sentimento de
culpa é anterior à formação do superego, pressupondo sua constituição subjetiva
desde o medo da perda do amor.
Além disso, podemos dizer que a angústia social113, num primeiro tempo,
é a evolução da angústia diante da perda do amor do ideal para a angústia diante
da autoridade, a má consciência. Num segundo tempo, é a angústia frente ao
superego. “As más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento
de culpa e necessidade de punição”, que em sua relação com a cultura pode
aparecer “sob uma espécie de mal-estar”. Lembremos, que em 1926, Freud
enfatiza que “com a despersonalização do agente parental a partir do qual se temia
a castração, o perigo se torna menos definido. A angústia de castração se
desenvolve em angústia moral – angústia social – não sendo agora tão fácil saber
o que é a angústia”. (1980, p.163). A mudança que ocorre é do externo onipotente
para o interno onipresente, isto é, a autoridade é internalizada dando origem ao
superego que, para Freud (1938), “é também o veículo do ideal do ego, pelo qual
o ego se avalia”. (1980, p.84).
Nesse sentido, a angústia social refere-se, desde o começo, ao confronto do
ego com o ideal que, em termos subjetivos, refere-se à possibilidade de perda do
amor do ideal protetor onipotente que garante a estabilidade do mundo
organizado. Podemos dizer que o desamparo original é retomado na onipotência
do superego, nas exigências do ideal do ego ao ego. Lembremos que o superego,
herdeiro da agressividade própria, que substitui as instâncias parentais, é
carregado também de pulsões do id, conservando de certa forma as pulsões
infantis. Na formação da consciência moral, a má consciência não é abandonada,
como disse, conserva um infantilismo pulsional. Dessa maneira, a angústia frente
ao superego é uma transformação reconfigurada da angústia de desamparo e da
117
angústia frente à perda do amor. O sentimento de culpa, herdeiro da ambivalência
afetiva, é antes de tudo herdeiro da angústia vista como perigo.
Em relação ao sentimento de culpa, Freud (1930), em última instância, está
se referindo à história da morte do pai. A seguinte fórmula do referido autor abre
caminho para o tema que inspirou nosso estudo psicanalítico sobre o pânico: “o
que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo.” (1980,
p.157). O que começou com o pai primevo, hoje se completa em relação à massa e
seu líder e em cada superego (infantil). O amor ao pai (ideal) e a culpa114 ligada
ao parricídio modificam-se nos laços mútuos e em sentimentos difusos de culpa.
Tudo se passa como se o pertencimento à civilização provocasse de alguma
maneira o dissolvimento das diferenças individuais no interior de uma massa, em
que cada um é identificado com os outros. “Visto que a civilização obedece a um
impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo
estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um crescente
fortalecimento do sentimento de culpa.” (1980, p.157; os grifos são meus).
Em outras palavras, se a civilização é o caminho necessário para o
desenvolvimento que vai da família à humanidade como um todo, em resultado do
conflito surgido da eterna luta de Titãs, “acha-se a ele inextricavelmente ligado
um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo
considere difíceis de tolerar.” (Freud, 1930/1980, p.157). Será o pânico uma
expressão desse conflito pulsional no sentido de uma intolerância ao aumento do
sentimento de culpa?
Para Freud (1930)
... o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da angústia; em suas fases posteriores, coincide completamente com o medo do superego. E as relações da angústia com a consciência apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A angústia está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo sintoma; em determinada ocasião, porém, toma, ruidosamente, posse da totalidade da consciência, ao passo que, em outra, se oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de angústia inconsciente, ou, se desejarmos ter uma consciência psicológica mais clara – visto a angústia ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento –, das possibilidades de angústia. Por conseguinte, é bastante concebível que tampouco o
113 Vide p.89, nota 18. Voltaremos a essa questão mais a frente (vide p.107). 114 Vide p.68 a respeito da herança da culpa.
118
sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar (Unbehagen), uma insatisfação para a qual as pessoas buscam outras motivações. (1980, p.159-60; os grifos são meus).
Destacamos algumas questões importantes contidas nessa passagem.
Primeiramente, sentimento de culpa e angústia distinguem-se num “primeiro
tempo” enquanto lugares (“variação topográfica da angústia”) para num “segundo
tempo”, interligarem-se em relação àquilo de que são efeito115: angústia primitiva
e angústia do superego. Lembremos que os conteúdos da situação de perigo e
determinantes de angústia podem persistir lado a lado, expressando-se em
períodos posteriores ao apropriado, podendo, também, entrar em ação ao mesmo
tempo116. Assim sendo, as transformações da angústia, referem-se em última
instância à angústia primitiva ligada ao desamparo original, ao perigo do excesso
pulsional, ao medo da perda de amor.
O homem faz um renúncia pulsional por temer perder o amor do outro, por
não suportar a angústia frente à perda do amor. Essa angústia é transformada em
sentimento de culpa como forma de proteção ao desamparo e marcará para
sempre a relação do sujeito com o outro, com a sociedade como um mal-estar
incurável: a “angústia social117, não sendo agora tão fácil saber o que é angústia”.
(Freud, 1926/1980, p.163). Sob esse prisma, a culpa é uma proteção frente à
angústia, frente àquilo que pode levar ou levou o sujeito à perda do amor do outro.
Dessa maneira, nas variadas relações do sentimento de culpa com a
angústia, localizamos o pânico como um dos efeitos do mal-estar (do sentimento
de culpa) produzido pela cultura118.
Vimos, portanto, que o superego é o agenciador das relações entre o
sujeito e a cultura, havendo uma ligação indissolúvel entre cultura e o sentimento
de culpa; a cada sacrifício da pulsão agressiva aumenta o sentimento de culpa. Eis
o mal-estar: culpa e frustração que acaba por gerar um ressentimento contra a
civilização. Para Freud (1930), o superego protetor representa os poderes do
Destino: “(...) o estágio infantil original da consciência (...) não é abandonado
115 Referimo-nos à constituição subjetiva do sentimento de culpa em dois tempos numa seqüência cronológica (vide p.104). 116 Vide p.53. 117 Vide p.52, 88-9 e 104.
119
após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por trás dele. O Destino é
encarado como um substituto do agente parental.” (1980, p.150).
Na medida em que trabalhamos com a hipótese de que a motivação básica
do pânico é o rompimento com o ideal protetor, esta hipótese desdobra-se numa
articulação entre sentimento de culpa e pânico pelo viés da relação conflituosa
entre ego e ideal do ego. Como dissemos, anteriormente, será o pânico uma
expressão desse conflito no sentido de uma intolerância ao aumento do sentimento
de culpa?
É importante lembrar que a expressão “sentimento de culpa”119 tem uma
acepção ampla no pensamento freudiano. Por um lado, designa um estado afetivo
consecutivo a uma ação do indivíduo considerada como má e nesse sentido é um
“sentimento de culpa consciente” ou ‘consciência de culpa” ou “remorso”. Por
outro lado, refere-se a um sistema de motivações inconscientes, ou seja, é
“originado da percepção de um impulso mau” e nesse sentido o sentimento de
culpa permanece inconsciente. (Freud, 1930/1980, p.162).
Vimos, anteriormente120, que a diferenciação do superego como instância
crítica e punitiva para o ego introduz o sentimento de culpa como expressão da
relação intersistêmica no psiquismo. Sob esse prisma, o “sentimento de culpa
inconsciente”, refere-se à relação conflituosa entre ego e superego/ideal do ego
que pode ser inconsciente, traduzindo-se em efeitos subjetivos nos quais a culpa
sentida (consciente) está ausente. Segundo Freud (1923), essa questão explica, por
exemplo, condutas delinqüentes ou criminosas, comportamentos de fracasso no
momento em que as aspirações do indivíduo deveriam ser realizadas, sofrimentos
infligidos a si mesmo, contradições e inibições características da neurose
obsessiva, autodepreciação melancólica e a reação terapêutica negativa121 na
clínica. (1980, p.65-9).
Entretanto, o autor esclarece que, quando queremos nos referir ao
“sentimento de culpa inconsciente”, a expressão “necessidade de punição” é mais
118 No próximo capítulo, mostraremos que o pânico, na atualidade, pode ser entendido como uma das expressões do mal-estar contemporâneo. 119 As principais discussões de Freud a respeito do sentimento de culpa são encontradas em: (1923) O ego e o id [no capítulo V – As relações dependentes do ego], (1924) O problema econômico do masoquismo, (1930) O mal-estar na civilização [nos capítulos VII e VIII]. 120 Vide p.78, citações de Freud (1923). 121 Resistência de certos analisantes à aproximação da cura, como se estes indivíduos preferissem o sofrimento à cura. “Freud liga este fenômeno a um sentimento de culpa inconsciente inerente a certas estruturas masoquistas.” (Laplanche, 1986, p.546).
120
adequada, tendo em vista “que abrange o estado de coisas observado de modo
igualmente apropriado. Não podemos, porém, impedir-nos de julgar e localizar
esse sentimento inconsciente de culpa do mesmo modo como fazemos com o tipo
consciente.” (Freud, 1923/1980, p.208). Ou seja, a expressão “necessidade de
castigo”, como mostra Laplanche (1986), em última instância, “designa uma força
tendente ao aniquilamento do indivíduo e talvez irredutível a uma tensão inter-
sistêmica, enquanto que o sentimento de culpa, seja consciente ou inconsciente,
reduz-se sempre a uma mesma relação tópica.” (1980, p.616).
Na verdade, a concepção freudiana do sentimento de culpa considera o
caráter inconsciente na gênese da culpa. Freud (1923) diz que podemos “aventar a
hipótese de que grande parte do sentimento de culpa deve normalmente
permanecer inconsciente, pois a origem da consciência (conscience) acha-se
intimamente vinculada ao complexo de Édipo, que pertence ao
inconsciente”.(1980, p.68). Ou seja, a noção de culpa, na obra freudiana, está
intimamente relacionada com o delineamento da noção de superego122, que como
vimos, origina-se tanto da filogênese quanto da ontogênese123.
O que está em jogo aqui é o parricídio e o incesto como fontes do
sentimento de culpa da humanidade124 e a ação da pulsão de morte, isto é, da
agressividade intrínseca ao ser humano.
De qualquer forma, o sentimento de culpa, indiscutivelmente, guarda um
caráter inconsciente, referindo-se às tensões entre o ego e o superego/ideal do ego.
É sob esse prisma que marcamos a articulação entre sentimento de culpa e pânico
que nos referimos, anteriormente125.
Enfim, na luta entre Eros e Thanatos, Eros pressupõe o vínculo libidinal, o
desejo do outro, portanto, a alteridade, enquanto que a civilização pressupõe o
fascínio amoroso e, conseqüentemente, a identificação narcísica. À medida que
Eros, através do vínculo libidinal dirige-se a unidades cada vez maiores, o
trabalho da pulsão de morte expressa-se pelo fascínio hipnótico do tipo
chefe/submissos (sádico/masoquista). Lembremos que em Psicologia de grupo e
análise do ego (1921), Freud já nos havia advertido de que “o amor homossexual
é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de
122 Vide p.101-2. 123 Vide p.78. 124 Vide p.68.
121
impulsos sexuais desinibidos” (1980, p.177) e nesse sentido, os grupos e as
organizações são formações que não toleram um amor que considere a diferença,
o outro em sua singularidade. “O que começou em relação ao pai é completado
em relação ao grupo”.
Vimos que Freud considera que o caráter fundamental para a existência e
permanência de um grupo é um ideal comum. Isso o levou a estabelecer a
distinção entre ego ideal (narcisimo) e ideal do ego (alteridade). Para ele não
existe um grupo sem líder. Este pode ser real ou fantasmático, visível ou invisível,
originar um grupo ou surgir dele, porém, o que importa é que o líder assegura ao
grupo uma referência a um ideal e promove as identificações comuns a todos.
Todavia, Freud adverte-nos para o perigo de nos defrontarmos não com um grupo,
mas com uma massa:
Além e acima das tarefas de restringir as pulsões, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. (1980, p.138).
Uma massa constitui-se numa série de indivíduos identificados uns com
os outros sem referência a um ideal, ou seja, identificam-se por mimetismo,
imitação, colagem ou qualquer outro mecanismo que cumpra essa função. São
pessoas incapazes de elaborar um projeto comum. O sujeito forja assim uma
identidade imaginária: partindo de si para si mesmo, nas identificações
imaginárias, o sujeito tem uma referência autônoma e independente da maneira
como é visto pelo outro. Em conseqüência disso, os indivíduos manifestam
capacidades psíquicas reduzidas. A miséria psicológica é a miséria de suas vidas
sexuais fragmentadas, parciais. Nesses casos, há uma massificação das
identidades porque na conformação das instâncias identificatórias há um
predomínio das formações do ego ideal (narcisismo) sobre as do ideal do ego
(alteridade), acabando por configurar modos hegemônicos de produção de
125 Vide p.107.
122
subjetividade. Recordemos que as relações conflituosas entre ego e o ideal do ego
são influenciadas pelos ideais da cultura.
Em outras palavras, Freud anuncia-nos uma civilização de massa em que
a sociedade se vincula numa tendência à igualdade, na qual seus membros buscam
a felicidade perdida (o ideal narcísico) no apagamento da diferença, na negação do
outro. Sua preocupação frente ao avanço da civilização (leia-se modernidade126) é
a constituição de uma subjetividade na qual há o declínio da Lei paterna.
Na atualidade, vivemos uma situação desse tipo. A civilização parece não
atender mais às funções de proteger e organizar as relações entre os homens,
assim como o aspecto de oferecer a pertinência a um grupo desenvolvido por
ideais comuns tornou-se pó ao vento.
Como vimos, para viver, as pessoas criam possibilidades afetivas no
enfrentamento do desamparo (Hilflosigkeit), e o pânico é uma dessas
possibilidades. Retomamos uma das perguntas inspiradoras desse trabalho: quais
são as condições peculiares de desamparo do sujeito na atualidade?
3. A CENA SOCIAL ATUAL: O MAL-ESTAR E AS NOVAS
FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO.
3.1. Modernidade ou Pós-Modernidade?
Desde as últimas décadas do século XX, as ciências sociais voltam-se ao
tema da “pós-modernidade”127. Estamos no limiar de uma nova era? Num “para
além da modernidade”, o que configura uma nova sociedade, a pós-moderna,
distinta da sociedade moderna? Ou estamos num novo momento no projeto da
modernidade, portanto, vivendo conseqüências da mesma?
De fato, há uma polêmica nessa discussão, além da dificuldade na
aceitação do termo pós-modernidade, assim como no uso do prefixo pós. No
126 Discutiremos esse tema no próximo capítulo.
123
entanto, não pretendemos tratar dessas questões. Nosso intuito é apenas marcar a
existência desse debate, o que nos leva, antes de qualquer questionamento, a
indagações sobre a subjetividade contemporânea para a discussão atual de nossa
experiência clínica psicanalítica e, conseqüentemente, de nosso objeto de estudo,
o pânico.
Escolhemos como norteadores de nosso estudo, para uma apresentação
geral dos elementos mínimos que caracterizam a cena social atual, os sociólogos
Anthony Giddens e Zygmunt Bauman e algumas produções psicanalíticas
contemporâneas128, principalmente as de Joel Birman, que servirão como fios
condutores na circunscrição do mal-estar na atualidade, ou seja, dos tipos de
sofrimento que as novas formas de subjetivação configuram.
Dessa forma, objetivamos o exame da subjetividade na atualidade para um
melhor entendimento das condições que propiciam o aumento do aparecimento de
determinados sintomas. Como dissemos no início desse trabalho, certas formas de
sofrimento psíquico podem ser consideradas como psicopatologias da atualidade,
no sentido de expressões dos modelos de subjetividade promovidos pela
sociedade contemporânea, portanto como um processo de produção social. Trata-
se de um estilo de sociedade em pauta que gera condições e possibilidades para
produção de determinadas psicopatologias, sofrimentos psíquicos, como típicos de
sua época.
Por que o pânico, assim como a depressão, a toxicomania e a violência
exacerbada, são modelos que desfilam constantemente na passarela da moda
contemporânea? Nossa hipótese, fornecida pelo referencial psicanalítico, é que
são expressões do mal-estar que marcam a relação do sujeito com a cultura na
atualidade. São maneiras horripilantes que o sujeito escolhe para se defender do
desamparo incurável e que, ao mesmo tempo, expressam seu fracasso em
responder às exigências dos ideais e valores que a sociedade atual prega. Nesse
sentido, qual é o estilo, quais são as condições de possibilidade que a organização
social da sociedade contemporânea propicia ao sujeito, para que ele expresse seu
mal-estar sob a forma do pânico?
127 Segundo Fridman, Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas, 2000. 128 Com a finalidade de ilustrar o panorama da produção psicanalítica contemporânea sobre esse assunto, agregamos a Joel Birman recortes das produções de Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Mário Fuks e Miriam Debieux Rosa como uma amostra desse cenário.
124
Segundo Giddenls (1991), “Modernidade refere-se a estilo, costume de
vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e
que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.”
(p.11). Dessa maneira, o termo modernidade implica uma série de transformações
sociais, materiais, políticas e intelectuais a partir da emergência e difusão do
Iluminismo, e que acabaram por se misturar à Revolução Industrial e às
transformações geradas pelo Capitalismo.
Nos dizeres de Bauman (1998), a idéia de progresso baseado na ciência e
na razão é resultado dos padrões críticos e racionais surgidos no Renascimento.
Essa mentalidade embalou as realizações e aspirações humanas daí provenientes,
determinando a ideologia de uma dinâmica social caracterizada pela inovação
permanente e por uma “obsessiva marcha adiante”.
Desde a Revolução Francesa, utopias políticas influenciaram
marcadamente o imaginário ocidental. O Iluminismo enunciou o “ideal de
felicidade” segundo o qual o homem dominaria a natureza com base na razão
científica e constituiria uma sociedade igualitária. Dessa maneira, a ideologia
cientificista do progresso e da civilização “prometia” uma reforma do espírito
humano e da sociedade.
Houve, portanto, uma alteração da ordem social, ou seja, da ordem
tradicional para a ordem moderna. Mas, certamente, este não é o cenário social
atual e, tampouco, o ideal iluminista se concretizou.
Da mesma forma que a modernidade alterou a ordem social com suas
conquistas tecnológicas, científicas, culturais e políticas, algo semelhante ocorreu
no século XX, principalmente nas últimas décadas. Vimos surgir novos estilos,
costumes de vida e diferentes formas de organização social. É evidente o declínio
da esfera pública e política, a mistura entre o público e o privado, as novas formas
de identidade social, o impasse histórico do socialismo, a expansão dos
fundamentalismos, os tribalismos, as conseqüências que a informatização gerou
na produção material e no cotidiano, a crise ecológica, as dimensões da
globalização.
Se há ou não uma nova ordem social, é fato que tais fenômenos
provocaram alterações de grande porte e transtornos nos modos de vida social que
reclamam por considerações teóricas compatíveis com esse quadro.
125
Para Giddens (1991), Jean-François Lyotard é o autor responsável pela
popularização do termo pós-modernidade, referindo-se “a um deslocamento das
tentativas de fundamentar a epistemologia, e da fé no progresso planejado
humanamente. A condição da pós-modernidade é caracterizada por uma
evaporação da grand narrative.” (p.12). Noutras palavras, a pós-modernidade
caracteriza-se pela ausência de história. O movimento da historicidade humana se
constrói num eixo temporal a partir do presente, avaliando o passado (definitivo) e
projetando-se no futuro (predizível). É esse “enredo” dominante, por meio do qual
somos inseridos na história, que, na opinião de Lyotard, evaporou.
Giddens (1991) critica a posição desse autor, pois avalia que o mesmo
“procura demonstrar que uma epistemologia coerente é possível” e que, portanto,
“um conhecimento generalizável sobre a vida social e padrões de
desenvolvimento social podem ser alcançados.” (p.12). Adverte-nos para o
cuidado na maneira de entender a historicidade. “Ela poder ser definida como o
uso do passado para ajudar a moldar o presente, mas não depende de um respeito
pelo passado. Pelo contrário, historicidade significa o conhecimento sobre o
passado como um meio de romper com ele.” (p.56).
A principal crítica de Giddens (1991) incide sobre os focos das análises
sociológicas realizadas por vários autores nesse campo. Enfatiza que,
freqüentemente, as “controvérsias enfocam amplamente questões de filosofia e
epistemologia”, como é o caso de Lyotard, e que dada sua orientação cultural e
epistemológica esses debates, na sua maioria, “não enfrentaram as deficiências
das posições sociológicas estabelecidas.” (p.12-3).
Entretanto, os debates sobre essas questões recaem, também, sobre
“transformações institucionais, particularmente as que sugerem que estamos nos
deslocando de um sistema baseado na manufatura de bens materiais para outro
relacionado mais centralmente com informação”. Essa é a proposta de Giddens
(1991): uma análise institucional da natureza da própria modernidade, com o
objetivo de diagnosticar suas conseqüências na atualidade:
Em vez de estariddens
diferente do que é atualmente chamado por muitos de “pós-modernidade”. (p.13).
Para Giddens (1991), as instituições sociais modernas são diferentes de
todo tipo de ordem social tradicional, ou seja, da sociedade tradicional anterior à
sociedade moderna. Sob seu ponto de vista, é importante que se faça uma
“interpretação ‘descontinuísta’ do desenvolvimento social moderno.” (p.12-3). Ou
seja, é necessário compreender as “descontinuidades”129 em questão, objetivando
uma análise do que realmente é a modernidade, pois a influência a longo prazo do
evolucionismo social deixou de lado o caráter descontinuísta da modernidade.
As descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das
ordens sociais tradicionais têm diversas características que podem ser resumidas
em três: 1) o “ritmo de mudança nítido que a era da modernidade põe em
movimento”, em que a rapidez é extrema e isto é óbvio no que toca à tecnologia;
2) o “escopo da mudança”, uma descontinuidade que se dá conforme diferentes
partes do mundo se intercomunicam, proporcionando “ondas de transformação
social”, penetrando virtualmente em toda a superfície da Terra, ou seja, o processo
de globalização como resultado da disseminação global das instituições da
modernidade; 3) a “natureza intrínseca das instituições modernas”, que
caracterizam formas sociais sem precedentes em períodos históricos anteriores,
como, por exemplo, o “sistema político do estado-nação” ou “a completa
transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado.” (Giddens,
1991, p.15-6).
Nesse quadro, para Giddens, associar a pós-modernidade ao “fim da
história” é algo perigoso.
A “história” não tem forma intrínseca nem teleologia total. Uma pluralidade de histórias pode ser escrita e estas não podem ser ancoradas por referência a um ponto arquimediano (tal como a idéia de que a história tem uma direção evolucionária). A história não deve ser equacionada à “historicidade”, pois esta última está claramente ligada às instituições da modernidade. (1991, p.55).
129 Termo trabalhado por Giddens em The Constituition of Society (Cambridge, Eng.: Polity, 1984) para enfatizar a idéia de que a história humana é marcada por “descontinuidades”, isto é, não tem uma forma homogênea de desenvolvimento e, no que tange ao período moderno, há uma descontinuidade específica ou um conjunto de descontinuidades associadas a ele.
127
A “radicalização da modernidade”, nos dizeres de Giddens (1991, p.58), é
tão perturbadora e significativa que nos leva a um novo e inquietante universo de
experiência. Recordando, seus traços mais evidentes são: a dissolução do
evolucionismo, o desaparecimento da teleologia histórica, o reconhecimento da
reflexividade meticulosa e constitutiva e a evaporação da posição privilegiada do
ocidente face à globalização.
Entretanto, para compreendermos o dinamismo da modernidade e o
escopo globalizante de suas instituições, é necessário continuarmos na esteira da
indagação de suas descontinuidades em relação às culturas tradicionais.
O dinamismo da modernidade deriva basicamente de três fontes: 1) a
separação de tempo e espaço; 2) o processo de desencaixe dos sistemas sociais; 3)
a apropriação reflexiva do conhecimento133. Essas características das instituições
modernas nos ajudam a compreender melhor por que, na atualidade, estamos mais
à mercê da desregulamentação e da liberdade individual.
Essas três fontes do dinamismo da modernidade não são tipos de
instituições modernas, mas as condições que facilitaram a transição da ordem
tradicional para a ordem moderna. Como coloca Giddens (1991), “elas estão
envolvidas, bem como são condicionadas, nas e pelas dimensões institucionais da
modernidade.” (p.69; os grifos são meus).
As dimensões institucionais da modernidade podem ser divididas em
quatro dimensões básicas: o capitalismo, o industrialismo, o poder militar e a
vigilância que, como “feixes organizacionais”, estão envolvidos de maneira
dinâmica, inter-relacional direta e/ou indiretamente, nas instituições da
modernidade.
Dessa maneira, a combinação das mais variadas formas de todos esses
fatores possibilitou o advento da modernidade, assim como propiciou a expansão
ocidental pelo globo, ou seja, a disseminação global das instituições da
modernidade. Mas como tudo isso se deu?
Segundo Bauman (1998), o que conduziu o ser humano “em sua viagem
de descoberta moderna” foram os ideais de beleza, pureza e ordem, os quais não
possibilidade de solidariedade; enquanto que, para Bauman, é justamente a produção ininterrupta de “outros” que não permite as chances de solidariedade. Trataremos dessa questão mais à frente. 133 Vide p.116.
130
foram abandonados na contemporaneidade. Simplesmente, são perseguidos às
custas do maior predicado humano atual: a liberdade individual, que “outrora era
uma responsabilidade e um (talvez o) problema para todos os edificadores da
ordem.” (p.9).
Pare ele, podemos definir a modernidade “como a época ou estilo de vida
em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem
“tradicional” herdada e recebida; em que “ser” significa um novo começo
permanente.” (p.20; os grifos são meus).
Nessa linha, a visão de pureza está intrinsecamente ligada à visão de
ordem, na medida em que “as coisas”, para serem puras, devem ocupar seus
lugares adequados ou convenientes. Dessa maneira, a impureza ou a sujeira são
coisas “fora do lugar”, inapropriadas; são essencialmente desordem, transgridem a
ordem e, portanto, devem ser atacadas através da ordem, se queremos manter um
padrão de pureza/limpeza. Ou seja, a sujeira deve ficar de fora; não deve ser
incluída.
O objetivo de limpar, ordenar as coisas em seus lugares devidos, portanto
de organizar o ambiente, “em vez de manter intacta a maneira como as coisas
existiam” (ou seja, a ordem natural, portanto, relativa à fixidez), “tornou-se mudar
a maneira como as coisas costumavam ser, criar uma nova ordem que desafiasse
a presente”. Assim, a criação de uma nova ordem, uma ordem artificial, constituiu
um novo começo, uma mudança no status da ordem tradicional que coincidiu com
o advento da era moderna. (Bauman, 1998, p.20).
Se pensarmos a ordem e a pureza em relação aos vírus, bactérias, ratos,
ácaros ou baratas, parece-nos bem sensato. Mas, em termos sociológicos e
psicológicos, quando se trata de seres humanos “concebidos como um obstáculo
para a apropriada organização do ambiente”, configura-se uma certa categoria que
se torna “a sujeira” e, como tal, deve ser banida, tendo em vista que é a sujeira que
desafia os propósitos de organização. Nesses termos, o estranho é impactante,
pois ameaça a segurança da vida diária.
Dessa maneira, o desmantelamento da ordem existente e sua substituição
por um novo modelo de pureza (que não é mais o natural), cria uma rotina de
eliminar sujeiras para manter a ordem; é assim que emerge uma nova condição em
que até as coisas comuns e familiares podem se converter em sujeira, em
estranhos. Sob esse aspecto, aparece um estado de começo permanente que gera
131
sempre, nos dizeres de Bauman (1998), “novos alvos de pureza e a cada novo alvo
ficam de fora novas categorias de sujeira(...) e com modelos de pureza que mudam
demasiadamente depressa(...) já nada parece seguro: a incerteza e a desconfiança
governam a época.” (p.20; os grifos são meus).
Chega-se ao ponto no qual a “colocação em ordem” é indistinguível da
“proclamação de novas anormalidades.” Na verdade, as preocupações com a
organização giram em torno do estranho. À medida que o mundo está em
constante movimento, configura-se o medo de estranhos, que se condensa na
angústia impregnando o cotidiano. Na visível instabilidade do mundo moderno, é
irresistível a instalação de uma ordem segura contra todos os desafios futuros, ou
seja, a busca por um mundo perfeito, bom, sem impurezas, sem estranhos. Diz
Bauman (1998):
Quase todas as fantasias modernas de um “mundo bom” foram em tudo profundamente antimodernas, visto que visualizavam o fim da história compreendida como um processo de mudança (...) as utopias modernas (...) concordavam em que o “mundo perfeito” seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo... em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã (...) um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem “estranhos”. (p.21; os grifos são meus).
Não é de se estranhar que na prática o “problema dos estranhos” foi tão
apaixonadamente abordado quanto à severidade no tratamento destinado a eles. O
nazismo, o Holocausto, o fascismo e o comunismo primaram por isso, assim
como o confinamento dos “loucos” nos hospitais psiquiátricos ou mesmo a
recente guerra ao Iraque e o grito de “por fora” aos “panicados” e “deprimidos”.
Estes últimos, então, são excluídos da cena social atual por serem estranhos à
nova ordem pós-moderna. Nos dizeres de Birman (2001), “são os fracassados da
cultura do narcisismo, pois não conseguem ocupar a cena teatral da sociedade do
espetáculo.” (p.247). Voltaremos a essa questão mais adiante.
Enfim, a “pureza das raças”, a “pureza das classes” e a “pureza mental”.
A modernidade é um “fenômeno de dois gumes”, como assinala Giddens
(1991), na medida em que o desenvolvimento da ordem moderna e sua difusão
global, ao mesmo tempo em que “criaram oportunidades bem maiores para os
seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante mais que qualquer
132
tipo de sistema pré-moderno” (p.17), trouxeram a violência exacerbada e em
escala mundial.
O desenvolvimento das forças de produção (o trabalho industrial)
submeteu os seres humanos a um trabalho maçante e repetitivo, mas também
trouxe um poder destrutivo em grande escala em relação ao meio ambiente e ao
poder político e militar. No primeiro caso, vemos as preocupações ecológicas que
não existiam nas sociedades pré-modernas. No segundo caso, particularmente, o
totalitarismo e, no terceiro, a tecnologia do armamento militar ou a
“industrialização da guerra”.
A ordem moderna, que se esperava fosse mais feliz, segura e
essencialmente pacífica, em contraste com o militarismo e o despotismo
precedentes, não apenas tornou possível o totalitarismo134 como a ameaça do
confronto nuclear. Vivemos num mundo demasiadamente perigoso e cheio de
riscos.
Foi assim que se formaram os chamados estados-nação (ou sociedades
modernas): “um tipo de comunidade social que contrasta de maneira radical com
os estados pré-modernos.” (Giddens, 1991, p.22).
Para Bauman (1998), os estados-nação trazem, visivelmente, porém de
forma menos radical, a marca do totalitarismo “na tendência do estado nacional
moderno como tal a escoar e reforçar a uniformidade da cidadania do estado com
a universalidade e abrangência da filiação nacional.” (p.22).
Temos, aqui, as dimensões institucionais da modernidade.
Primeiro, como bem define Giddens (1991, p.61-2), o industrialismo, uso
de fontes inanimadas de energia material na produção de bens, combinado ao
papel central da maquinaria no processo de produção, pressupõe a organização
social regularizada da produção, no sentido de coordenar a atividade humana, as
máquinas, as aplicações e produções de matéria-prima e os bens. Tem sua origem
na “Revolução Industrial”, porém sua noção se aplica a cenários de alta tecnologia
em que a eletricidade é a única fonte de energia, afetando não apenas o local de
trabalho como os transportes, as comunicações e a vida doméstica.
134 O totalitarismo é diferente do despotismo tradicional, pois “o governo totalitário combina poder político, militar e ideológico de forma mais concentrada do que jamais foi possível antes da emergência dos estados-nação modernos” e, por isso mesmo, mais aterrorizante.(Giddens, 1991, p.18).
133
O capitalismo, um sistema de produção de mercadorias centrado na
relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse
de propriedade, forma o eixo principal de um sistema de classes. O
empreendimento capitalista depende da produção para mercados competitivos,
sendo os preços sinais para investidores, produtores e consumidores.
Podemos reconhecer, segundo Giddens (1991, p.63), as sociedades
capitalistas como um subtipo das sociedades modernas porque têm características
institucionais específicas, tais como: 1) sua ordem econômica; 2) relacionamentos
econômicos; 3) propriedade privada dos meios de produção; 4) autonomia do
estado condicionada por sua dependência da acumulação do capital. Dessa forma,
a sociedade capitalista é uma “sociedade” porque é um estado-nação, e isso pode
ser interpretado pelo nível de coordenação administrativa desenvolvido, ou seja,
pelo controle coordenado que ele consegue exercer sobre territórios delimitados.
Essa concentração depende do desenvolvimento de condições de vigilância
absolutamente distintas das existentes nas sociedades tradicionais. Como pontua
Giddens (1991, p.63), a vigilância é a supervisão das atividades da população
súdita na esfera política, embora não confinada somente a essa esfera. Esse
controle pode ser direto, como nas escolas, prisões e locais de trabalho, ou
indireto, como no controle das informações.
Nessa linha do controle, distinguimos o controle dos meios de violência,
que no estado moderno aliou o poder militar ao poder político, ou seja, promoveu
o monopólio bem sucedido dos meios de violência dentro de fronteiras territoriais
precisas. Nas civilizações pré-modernas, o centro político nunca foi capaz de
assegurar apoio militar estável; a força militar das autoridades governantes
dependia de alianças com príncipes ou senhores locais.
Dessa forma, o capitalismo separa o econômico do político, traz a
vigilância como ponto fundamental da organização, em particular o estado-nação,
alterando substancialmente o poder militar, além do fato de que o industrialismo
aliado ao capitalismo trouxe o desenvolvimento das forças de produção.
O quadro abaixo, criado por Giddens (1991), fornece um bom panorama
dessa problemática, ou seja, das dimensões institucionais da modernidade.
134
AS DIMENSÕES INSTITUCIONAIS DA MODERNIDADE135
Por meio do quadro acima, podemos ver relações diretas entre o poder
militar e o industrialismo, como, por exemplo, a industrialização da guerra;
relações entre a vigilância e o industrialismo, como, por exemplo, o poder
administrativo no interior das fábricas; relações entre o industrialismo e o
capitalismo, como, por exemplo, a transformação em mercadoria da força de
trabalho – como nos ensinou Marx –, o que colocou o trabalho como “abstrato” e
diretamente programado no projeto tecnológico de produção.
Como relações indiretas, podemos verificar, por exemplo: 1) o
industrialismo como eixo principal na interação dos seres humanos; 2) os estados-
nação, como veículo do monopólio dos meios de violência e vigilância ligados ao
poder militar; 3) a produção capitalista que, aliada à industrialização, propiciou
riqueza econômica e poder militar.
As sociedades modernas (ou estados-nação) situaram o “problema da
ordem” como um distanciamento tempo-espaço. A separação do tempo e do
espaço culminou numa recombinação que permitiu o zoneamento tempo-espacial
preciso da vida social e num alvo indefinido (ou global).
Nas sociedades pré-modernas, o cálculo do tempo era vinculado ao lugar
e, geralmente, impreciso e variável. Não era possível dizer a hora do dia sem fazer
referência a outros marcadores sócio-espaciais. A criação do relógio mecânico e
sua difusão na população separou definitivamente tempo e espaço. O relógio
VIGILÂNCIA (Controle da informação e supervisão local / ligado à
CAPITALISMO
(Acumulação de capital no contexto de trabalho e mercados de produtos
com
p
etitivos
)
PODER MILITAR (Controle dos meios de violência no contexto da industrialização da guerra)
INDUSTRIALISMO
(Transformação da natureza: desenvolvimento do “ambiente
P
135
Giddens, As conseqüências da modernidade, p.65.
135
acabou por expressar uma dimensão uniforme de tempo que correspondeu à
uniformidade na organização social do tempo, tendo em vista que quantificou a
designação precisa de “zonas” do dia (como as jornadas de trabalho). Essa
mudança, segundo Giddens (1991), coincidiu com a expansão da modernidade
(final do século XVIII).
Um dos principais aspectos dessa questão é a padronização dos calendários
em escala mundial e a conseqüente representação de um tempo monocrônico
(seqüencial, linear e econômico) na sociedade ocidental.
Além disso, o “esvaziamento do tempo” é pré-condição para o
“esvaziamento do espaço”. O espaço vazio se dá por conta da separação entre
espaço e lugar. O lugar, segundo Giddens (1991), é melhor compreendido por
meio da “idéia de localidade, que se refere ao cenário físico da atividade social
como situado geograficamente.” (p.26-7).
Dessa maneira, nas sociedades tradicionais, espaço e tempo coincidem,
pois as dimensões espaciais da vida social são dominadas pela “presença” das
pessoas em atividades localizadas. Em condições de modernidade, o espaço vai
sendo cada vez mais separado do tempo, tendo em vista que as relações podem ser
localmente distantes, prescindindo da interação face a face e incitando as relações
entre outros “ausentes”. O que estrutura o local não é mais somente o que está
presente na cena, mas outras relações distanciadas que determinam também sua
natureza.
Um dos principais aspectos dessa questão foi o mapeamento progressivo
do mundo, pois a criação de mapas universais estabeleceu independência do
espaço de qualquer lugar particular.
Entendemos, agora, por que a separação entre o tempo e o espaço
recombinou as atividades sociais e, na verdade, é uma reordenação tempo-espaço.
O tempo tanto quanto o espaço é eminentemente cultural. Ele está associado a um
sistema, a uma ordem social, a um universo de representações da natureza, da vida
e das relações que todos esses elementos mantêm entre si.
Portanto, a separação tempo-espaço é pré-condição para o processo de
desencaixe dos sistemas sociais. Retirando as atividades sociais de seus contextos
localizados, o dinamismo da modernidade reorganizou as relações sociais através
de distâncias indefinidas tempo-espaciais; também proporcionou a organização
racionalizada (capaz de conectar o local e o global de maneiras impensáveis nas
136
sociedades tradicionais); e, finalmente, propiciou uma nova visão de historicidade
(dependente de modos de inserção no tempo e no espaço, indisponíveis para as
sociedades pré-modernas). A Internet, principalmente as “salas de bate-papo”,
traduz bem esse fato. Aqui estamos lidando com duas questões fundamentais e
que estão interligadas: a globalização e o projeto de uma nova identidade
(identidade pós-moderna).
Vejamos, primeiro, a globalização. Esta, segundo Giddens (1991), refere-
se essencialmente ao processo de alongamento que se deu nas relações entre
formas sociais e eventos locais e distantes,
... na medida em que as modalidades de conexão entre diferentes regiões ou contextos sociais se enredaram através da superfície da Terra como um todo. A globalização pode ser assim definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa.(...) A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço. (p.69-70).
O processo de globalização é um processo dialético. O desenvolvimento
das relações sociais globalizadas serve, por um lado, para diminuir o sentimento
nacionalista ligado ao estado-nação, mas, por outro, serve também para a
intensificação de sentimentos nacionalistas mais localizados. Esse fato alterou
substancialmente as características de “comunidade”; tanto fortalece a autonomia
local e identidade cultural e regional como prepara um terreno fértil para o
“ressurgimento” de fundamentalismos e tribalismos.
O que a modernidade se propôs a destruir está tão presente em nossos dias
como há dois séculos, porém sob outro aspecto. A nacionalidade, a comunidade, a
tradição, o amor ao que se possui, os laços de sangue, o aferramento às raízes e ao
solo não foram destruídos ou condenados, pelo contrário, agora são seus críticos.
Como diz Bauman (1998), “é o tribalismo miraculosamente renascido, que injeta
espírito e vitalidade no louvor da comunidade, na aclamação de fazer parte, na
apaixonada busca da tradição.” (p.101).
A “esperança de tornar as coisas melhores do que são”, traço mais
característico da modernidade, continua entre nós, já que as coisas não estão
melhores do que eram. Porém, fracassou o grande artifício que a modernidade
137
prometeu construir. “Os projetos racionais de perfeição artificial e as revoluções
destinadas a imprimi-los no mundo” não cumpriram sua promessa. Assim, pode
ser que “as comunidades” – organismos não planejados que cresceram
naturalmente – cumpram o que as frias abstrações desses projetos não puderam
cumprir.
À maneira de Stalin ou Hitler, por exemplo, a paixão pela perfeição
projetada, dentre outros aspectos, culminou na heterofobia, canalizando-a sob a
forma de genocídio. Entretanto, os fundamentalismos e os tribalismos
desordenados pelo mundo, também fundados na heterofobia, configuram uma
saída de exílio muito mais que de genocídio. Frases como: “eu gosto de negros,
mas o lugar deles é na África” ou “eu gosto dos nordestinos, mas o lugar deles é
no nordeste” ou “nos preocupamos muito com os pobres, mas o lugar deles é na
periferia”, ilustram bem essa problemática.
A esse fenômeno Freud (1930) deu o nome de ‘narcisismo das pequenas
diferenças’, em que “se trata de uma satisfação conveniente e relativamente
inócua da inclinação para agressão, através da qual a coesão entre os membros da
comunidade é tornada mais fácil.” (1980, p.136). Como é difícil para o ser
humano abandonar a satisfação de sua inclinação para a agressividade, um ‘grupo
cultural pequeno’ oferece a vantagem de conceder um escoadouro para esse
impulso agressivo sob a forma de hostilidade contra intrusos. Diz Freud (1930):
“é sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto
sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade.”
(1980, p.136).
Dessa maneira, nas antipatias e aversões declaradas que as pessoas sentem
por estranhos com os quais têm que se relacionar, podemos identificar a expressão
do amor a si mesmo, isto é, do narcisismo, que dentro do grupo se desvanece
temporária ou permanentemente, na medida em que os laços mútuos exigem uma
limitação do narcisismo. “Os indivíduos no grupo comportam-se como se fossem
uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e
não sentem aversão por eles.” (Freud, 1921/1980, p.130). Ou seja, essa aversão
está direcionada para o outro grupo e, assim, o primeiro grupo sobrevive.
Enfim, da mesma forma que existia um conflito ambivalente na
modernidade, expresso na tendência a apagar as diferenças, em nome de um
padrão homogêneo mundial, ao mesmo tempo que se recuava diante do êxito de
138
tal operação, na pós-modernidade há um conflito ambivalente análogo. Este
ocorre na medida em que o reconhecimento pós-moderno da diferença hesita ante
o repulsivo e adorável extremo liberalismo, ao mesmo tempo que o tribalismo
nega aos outros o direito de comparar e avaliar. Como diz Bauman (1998), “a
tolerância da diferença bem pode ser aliada à categoria recusa da solidariedade.”
(p.103). Desde sempre o combate ao mal que facilmente é reconhecido no outro,
no diferente, no estrangeiro que deve ser excluído ou deixado de fora.
Outro ponto que a globalização trouxe foi a evaporação da posição
privilegiada do ocidente face ao mundo, tendo em vista que promoveu a extensão
global das instituições da modernidade.
Giddens (1991) aponta para quatro dimensões da globalização –
intrínsecas à quádrupla classificação136 das instituições da modernidade – como
mostra o quadro abaixo. São elas: 1) a economia capitalista (que se tornou
mundial); 2) o sistema de estados-nação (atores principais dentro da ordem
política global e da economia mundial); 3) a ordem militar mundial (que diz
respeito não só ao armamento e às alianças entre as forças armadas de estados
diferentes, mas à própria guerra); 4) o desenvolvimento industrial (que gerou a
expansão da divisão internacional do trabalho, isto é, a difusão mundial das
tecnologias de máquina, afetando não só a esfera da produção como o caráter
genérico das interações humanas e o meio-ambiente natural; sendo que um dos
grandes efeitos do industrialismo foi a transformação das tecnologias de
comunicação, ou seja, o impacto globalizante da mídia).
AS DIMENSÕES DA GLOBALIZAÇÃO137
136 Vide p.124.
SISTEMAS DE ESTADOS NAÇÃO
ECONOMIA CAPITALISTA
DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
137 Giddens, As conseqüências da modernidade, p.76.
139
Podemos, agora, tratar da outra conseqüência do processo de desencaixe: o
projeto de uma nova identidade, a identidade pós-moderna.
Vimos até aqui que a sociedade moderna tendeu a “coletivizar e
centralizar as atividades de ‘purificação’ destinadas à preservação da pureza”.
Temos, por exemplo, como formadores de ordem, a escola e o exército, dentre
tantos outros. Entretanto, na atualidade, essas estratégias “tendem cada vez mais a
serem substituídas pela desregulamentação e privatização”, como aponta Bauman
(1998, p.22).
O estado não se interessa mais pela uniformidade, ou seja, pela sua antiga
tarefa de promover e manter a “ordem tanto singular quanto abrangente”: a
integração social. Esta tarefa, agora, fica por conta “das forças de mercado
amantes da variedade”, nos dizeres de Bauman (1998, p.105, 23). O espírito
moderno iluminista do “impulso para adiante” está afrouxando, ao mesmo tempo
que aparece o interesse persistente pela diversificação e pela desordem mundial.
O indivíduo pós-moderno, acrescenta esse autor, “acha a infixidez de sua
situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza.”
(p.22) São seduzidos por novas experiências, propostas de aventuras, mas sem
fixação de compromissos. Preferem opções abertas, como o “ficar”, na relação
amorosa do adolescente que se estende até a maturidade. Há uma “mudança de
disposição” que é favorecida e controlada por um mercado organizado na procura
do consumidor e na manutenção de uma “procura permanentemente
insatisfeita.(...) o estranho, agora é tão resistente à fixação como ao próprio
espaço social.” (Bauman, 1998, p.23).
Dessa maneira, na atualidade, “de estilos e padrões de vida livremente
concorrentes”, as pessoas devem passar por um severo teste ou critério de pureza:
“a aptidão para participar do jogo consumista”. Quem não passa nessa prova é a
“sujeira da pureza pós-moderna”. Os novos “impuros” são deixados de fora, são
“pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’
definido em função do poder de escolha do consumidor.” São os consumidores
falhos, pessoas que não conseguem ser capazes de serem seduzidas “pela infinita
possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se
regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça
interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante
experiência.” (Bauman, 1998, p.22; os grifos são meus).
140
Os consumidores falhos fazem parte da categoria dos fracassados, segundo
a visão de mundo (ideal da cultura) atual, ao mesmo tempo que expressam os
modelos de subjetividade promovidos pela sociedade contemporânea. Fracassam
no exercício da rapidez e infixidez, da infinita possibilidade da constante
renovação, da sedução e promessa de felicidade que a mudança permanente traz.
São excluídos sociais. Nesse contexto, poderíamos dizer que os panicados, os
deprimidos e os psicossomatosos são consumidores falhos, excluídos sociais?
Todavia, paradoxalmente, são indivíduos que estão dizendo “não” a esse
imperativo categórico de ser, denunciando a sua maneira que, na atualidade,
estamos mais à mercê da desregulamentação e da liberdade individual.
Lembremos que a modernidade viveu numa permanente guerra à tradição
“legitimada no anseio de coletivizar o destino humano” num plano superior que
substituísse a ordem tradicional pela nova ordem. Devia, assim, purificar-se em
seus próprios princípios. Como aponta Bauman (1998), a maior impureza da
“versão moderna da pureza eram os revolucionários”, os quais o espírito moderno
tinha tudo para gerar. Eles eram os mais fiéis e crentes adeptos da moderna
revelação, que se esforçavam para absorver as mensagens das lições mais radicais
e de colocá-las “em ordem além das fronteiras do que o mecanismo de colocar em
ordem podia sustentar.” (p.26). Isso resultou no excesso de ordem e na escassez de
liberdade.
Em contrapartida, a pós-modernidade vive numa permanente pressão
contra a “interferência coletiva no destino individual”; vive para
desregulamenteção e privatização. Agora, não são os revolucionários a maior
impureza, mas, como aponta Bauman (1998), a odiosa impureza da versão pós-
moderna da pureza são aqueles que, ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com as
próprias mãos, como os assaltantes, grupos de extermínio e terroristas. Mais uma
vez, eles são os mais fiéis e crentes adeptos da revelação pós-moderna que se
esforçam para absorver as mensagens das lições em pauta e colocá-las em prática
até sua conclusão mais radical:
A busca da pureza moderna expressou-se diariamente na ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação punitiva contra moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagabundos e indolentes. Em ambos os casos, a “impureza”
141
no centro da ação punitiva é a extremidade da forma incentivada como pura. (p.26, os grifos são meus).
É na chamada “classe baixa” que se armazenam depósitos de fracassados e
rejeitados pela sociedade atual: a sociedade de consumo. Os pobres e
desempregados, agora, não são mais o “exército de reserva de mão-de-obra”,
como o eram na sociedade de produtores, mas se configuram na “população
redundante” que está transgredindo a norma “estar empregado”.
Como diz Bauman (1998), “cada vez mais ser pobre é encarado como um
crime; empobrecer, como produto de predisposições ou intenções criminosas –
abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e assistência, merecem ódio e
condenação –, como a própria encarnação do pecado.” (p.59). Aqueles que
aterrorizam a “classe baixa”, ao fazê-lo, estão afastando os próprios terrores
internos. Um tipo de heterofobia que se configura na saída de exílio, da exclusão
dos estranhos, como mostramos anteriormente, ou, parafraseando Freud, no
“narcisismo das pequenas diferenças”. O mal que facilmente é reconhecido no
outro (e não em nós mesmos), para que não nos aterrorize, é preciso ser afastado,
ser deixado de fora, excluído.
O “estado de bem-estar” era um instrumento manejado pelo estado para
reabilitar os temporariamente inaptos, ou seja, tornar empregável a mão-de-obra
desempregada; não era uma caridade, mas um direito do cidadão, portanto uma
forma de seguro coletivo. Entretanto, esse quadro se dava na época em que “a
indústria proporcionava trabalho, subsistência e segurança à maioria da
população.” Hoje, o progresso tecnológico e administrativo se dá pela redução da
força de trabalho, portanto dos funcionários. Na atualidade, “racionalizar”
significar cortar empregos, e não criar novos empregos. As melhorias econômicas
não anunciam o fim do desemprego, pelo contrário, aumentam o refugo dos
desempregados. A previdência, antes um direito do cidadão, hoje se transforma no
estigma dos incapazes. Os desempregados são considerados como puros
absorventes do dinheiro do estado e dos contribuintes. Cada vez mais os
humilhados são associados ao parasitismo, à negligência, à promiscuidade ou ao
abuso de álcool. Atualmente, ouvimos a seguinte frase: “já não podemos mais
custeá-los”, o que significa que o estado e a comunidade não consideram mais
conveniente a responsabilidade pelos custos sociais e humanos da subsistência
142
econômica, transferindo “o pagamento às próprias vítimas presentes e futuras (...)
a tarefa de lidar com os riscos coletivamente produzidos foi privatizada.”
(Bauman, 1998, p.51-2; os grifos são meus).
Para Bauman, desde que os órgãos coletivos encarregados da ordem
societária global não exercem mais sua função, “a responsabilidade pela situação
humana foi privatizada e os instrumentos e métodos de responsabilidade foram
desregulamentados”. A sociedade atual desencoraja a fundamentação da
esperança em ações coletivas, na medida em que seus padrões de comportamento
não estão mais fundamentados numa ordem estável e seus integrantes estão sendo
expulsos da posição de produtores e sendo definidos como consumidores. “Ao
contrário do processo produtivo, o consumo é uma atividade inteiramente
individual.” (Bauman, 1998, p.53).
Na atualidade, o consumo se tornou a medida de uma vida bem-sucedida.
Consumir e possuir determinados objetos e adotar determinados estilos de vida é a
condição necessária para a felicidade e dignidade humanas.
E, a todo momento, o consumo abundante é mostrado e insuflado como a
marca do sucesso e o caminho para a fama. Os meios de comunicação propagam
insistentemente a mensagem de que no momento o modelo é o de “apoderar-se de
mais” e a norma é o imperativo de saber aproveitar bem as cartas de que se dispõe
para esse jogo. Dessa forma, os indivíduos da sociedade de consumo devem
lançar mão de todos os recursos de que dispõem para jogar, tendo em vista que os
jogadores incapazes são mantidos fora do jogo, ou seja, os consumidores
falhos.138 Estes são a encarnação do próprio terror interno que a “classe superior”
quer afastar de si mesma e, como já aprendemos, para que ela se mantenha como
um grupo unido e estruturado é preciso que exista um “outro grupo” depositário
das manifestações de sua agressividade. A “classe superior” não quer ser o refugo
do jogo que sempre existirá, porque num jogo, incontestavelmente, há
“ganhadores” e “perdedores”.
Esse fato, cada vez mais, gera uma linha de separação muito tênue entre o
lícito e o ilícito. Assim, a cena social atual desenha uma sociedade de
consumidores guiada pelo mercado consumidor, portanto uma sociedade
desregulamentada e privatizada (ou com excesso de liberdade individual), em que
138 Vide p.130.
143
se lança um novo projeto de vida no qual se configura um novo projeto de
identidade: a identidade pós-moderna.
O projeto moderno, como coloca Bauman (1998), “prometia libertar o
indivíduo da identidade herdada” (p.30-1); transformou, assim, a identidade de
uma questão de atribuição em realização, ou seja, a identidade passou a ser uma
tarefa individual e de responsabilidade do indivíduo. Ela foi lançada como um
projeto de vida, devendo ser construída passo a passo. Havia um planejamento a
longo prazo e a visão de conseqüências de cada movimento. Diz ele:
... havia assim, um vínculo forte e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto, sendo a última impensável sem a primeira. Se não fossem os esforços coletivos com o fim de assegurar um cenário de confiança, duradouro, estável, previsível para os atos e escolhas individuais, construir uma identidade clara e duradoura bem como viver a vida voltada para essa identidade seria quase impossível. (p.31).
Entretanto, não é o que detectamos no contexto da vida pós-moderna. O
projeto de vida individual não encontra terreno estável e/ou fértil para se enraizar
(fixar) e o esforço na constituição da identidade individual não consegue retificar
as conseqüências do processo de desencaixe dos sistemas sociais gerados pela
modernidade. Os “eus” (egos) estão flutuantes e à deriva, diferentemente da
suposta solidez e continuidade do contexto da vida moderna.
Nesse sentido, configura-se um quadro em que há um processo gradual e
progressivo de desagregação do tecido social. O abandono do Estado – com
relação a necessidades que somente ele poderia suprir – aumenta a vivência de
desvalia e desamparo por parte dos indivíduos, potencializando a sensação de
vazio; o que culmina na busca frenética de objetos que preencham esse vazio, que
dêem sentido à existência do sujeito.
Parece que estamos vivendo o que Freud (1930) temia, ou seja, a
constituição de uma subjetividade em que há a decadência da Lei paterna, como já
assinalamos no capítulo anterior139. Na atualidade, predominam as formações de
ego ideal (narcisismo) sobre as de ideal do ego (alteridade), caracterizando uma
modalidade de subjetividade autocentrada140. Esse é um dos efeitos dos processos
139 Vide p.90 e 110. 140 Vide p.83.
144
sócio-históricos que vimos assinalando: a configuração de ideais associados aos
modos hegemônicos de produção de subjetividade e, conseqüentemente, às formas
de sofrimento psíquico predominantes na atualidade.
Uma grande conseqüência disso tudo é a alteração nas modalidades de
sociabilidade que aponta para a fragilização dos vínculos sociais, ou seja, dos
laços mútuos e da constituição e permanência dos grupos.
Lembremos que a construção dos laços sociais é um efeito da problemática
do indivíduo em relação aos ideais e às identificações, ou seja, em relação à
alteridade141. Entretanto, quando os vínculos de uma sociedade são constituídos,
principalmente, pela identificação dos seus membros uns com os outros sem que
um ideal comum tenha a importância que lhe deveria caber na formação de um
grupo, corremos o perigo da massificação das identidades142.
O sujeito pós-moderno forja uma identidade imaginária em que, nas
identificações imaginárias, parte de si para si mesmo, tendo, como conseqüência,
uma referência autônoma e independente da maneira como é visto pelo outro. A
alteridade cede lugar para o narcisismo ou, em outras palavras, a subjetividade
descentrada (ideal do ego) dá lugar à subjetividade autocentrada (ego ideal).
Vejamos como se dão essas questões.
Tomando a conceituação de identidade de Christopher Lasch, Bauman
(1998) mostra que a mesma se refere tanto a pessoas quanto a objetos. Diz ele:
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida com experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo as opções abertas”.(...) no jogo da vida... a estratégia sensível (...) é manter curto cada jogo (...) o que significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que (...) possa parecer (...) não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo (...) proibir o passado de se relacionar com o presente. (p.113).
141 Vide p.83. 142 Vide p.110.
145
Joel Birman, Maria Rita Kehl e Jurandir Freire Costa esclarecem
desdobramentos dessas considerações em relação às psicopatologias na
atualidade, às novas formas de subjetivação e, portanto, à caracterização da
identidade pós-moderna e ao declínio da Lei paterna na sociedade contemporânea.
Birman (2001) apoia-se em Lasch – no conceito de cultura do narcisismo –
para mostrar as transformações da individualidade na atualidade. Para ele, o
autocentramento absoluto do sujeito (a exaltação desmesurada do eu) se expressa
no individualismo em seu limite máximo e se apresenta sob a forma da
“estetização da existência, na qual o que importa para individualidade é a
exaltação gloriosa do próprio eu.” (p.166). Portanto, uma subjetividade que
privilegia processos psíquicos narcísicos, ou seja, a idealização da onipotência do
ego (ego ideal)143. Além disso, suas interpretações acerca das modalidades de
sociabilidade também incluem o conceito de sociedade do espetáculo
desenvolvido por G. Debord. Diz Birman:
Pelos imperativos da estetização da existência e de inflação do eu, pode-se fazer a costura entre as interpretações de Debord e Lasch, já que a exigência de transformar os incertos percalços de uma vida em obra de arte evidencia o narcisismo que o indivíduo deve cultivar na sociedade do espetáculo. Nessa medida, o sujeito é regulado pela performatividade mediante a qual compõe os gestos voltados para a sedução do outro. Este é apenas um objeto predatório para o gozo daquele e para o enaltecimento do eu. As individualidades se transformam, pois, tendencialmente, em objetos descartáveis, como qualquer objeto vendido nos supermercados e cantado em verso e prosa pela retórica da publicidade. Pode-se depreender, com facilidade, que a alteridade e a intersubjetividade são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento. (2001, p.188).
As formas corriqueiras de predação do corpo do outro são a evidência do
autocentramento no registro do sexual. A manipulação do corpo do outro se
constitui como técnica de existência para a individualidade, como forma
privilegiada para exaltação de si mesmo. Diz Birman (2001):
Por meio da predação, o sujeito empreende também a estetização de seu eu, por um outro viés, polindo seu brilho pelo cultivo infinito da admiração do outro (manipulação)(...)
143 Vide p.81.
146
Com efeito, para o sujeito não importam mais os afetos, mas a tomada do outro como objeto de predação e gozo, por meio do qual se enaltece e glorifica.(...) na cultura do espetáculo, o que se destaca para o indivíduo é a exigência infinita da performance, que submete todas as ações daquele... Nessa performance, marcada pelo narcisismo funesto (...) o que importa é que o eu seja glorificado, em extensão e em intenção.(...) Isso nos remete à psicopatologia da pós-modernidade que se caracteriza por certas modalidades privilegiadas de funcionamento psicopatológico, nas quais é sempre o fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência que está em pauta... são quadros clínicos fundados sempre no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo. Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência, sendo considerado, pois, um fracassado segundo os valores axiais dessa visão de mundo. (p.167-9; os grifos são meus).
Para esse autor, toda essa construção é mediada pelo universo da imagem.
A imagem é a condição fundamental para “o espetáculo na cena social e para
captação narcísica do outro”, destacando-se a mídia na produção desse imaginário
social. Os meios de comunicação de massa através da televisão, dos outdoors, da
informática e do jornalismo escrito, fomentam o poder de captura do outro. A
cena pública sempre se desenha por imagens e a imagem é a condição para a
sedução e o fascínio. Nesse sentido, vai-se constituindo uma nova concepção de
realidade e do que é real:
Assim, ser e parecer se identificam absolutamente no discurso narcísico do espetáculo, sendo aquele o pressuposto ontológico dessa interpretação da sociabilidade. Pela subversão das hierarquias entre verdadeiro e falso, original e cópias, a sociabilidade narcísica é antiplatônica por exelência. Com isso, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade, de maneira que aquele é marcadamente autocentrado. Nesse sentido, o sujeito se transforma numa máscara, para exterioridade, para exibição fascinante e para captura do outro. (Birman, 2001, p.189; os grifos são meus).
Outro ponto interessante é o fato de Birman (2001) trabalhar a noção de
autocentramento do sujeito não identificada com a noção de sujeito dentro-de-si,
mas fora-de-si. Para ele, “o que caracteriza o autocentramento da subjetividade na
cultura do narcisismo é justamente o excesso de exterioridade.” (p.170)
Deparamo-nos com uma
147
... nova modalidade de sujeito fora-de-si que não é representada pelo modelo da psicose (como modelo de alienação mental do século XIX em que o sujeito fora-de-si era desvalorizado, excluído socialmente) (...) o sujeito autocentrado é efetivamente fora-de-si, pois é exterioridade por excelência. Na condição de fora-de-si essa modalidade de autocentramento é valorizada socialmente na cultura do narcisismo. O problemático é quando o sujeito não é assim e é recusado pela sociedade, como acontece com os panicados e deprimidos. Da mesma maneira a cultura da drogadição é estimulada socialmente pelas vias médicas e do narcotráfico.(...) Esse novo sujeito fora-de-si é altamente positivado em oposição ao da psicose. Na medida em que é legitimado, ele não é socialmente excluído, como o da psicose. Ao contrário, o autocentramento é o índice da integração do sujeito no social. Este seria o modelo de ser do sujeito na atualidade, o ideal de moralidade proposto para ele. Não é justamente nisso que se quer transformar agora o depressivo e o panicado? Não é assim que se quer moldar os que sofrem dos excessos de interiorização –, para que possam ser cidadãos de pleno direito da sociedade do espetáculo? (p.171-2; os grifos são meus).
O autocentramento do sujeito com valor de exterioridade está no âmago
das formas de construção da subjetividade no mundo atual, ou seja, o eu se
encontra em posição privilegiada nas novas formas de construção da subjetividade
(ego ideal em detrimento do ideal do ego, portanto o regime do narcisismo).
Conseqüentemente, o campo social contemporâneo é caracterizado,
fundamentalmente, pela fragmentação da subjetividade. “Esta fragmentação é não
apenas uma forma nova de subjetivação, mas a matéria-prima por meio da qual
outras modalidades de subjetivação são forjadas.” (Birman, 2001, p.23).
Se, no início da modernidade, a subjetividade “tinha seus eixos
constitutivos nas noções de interioridade e reflexão sobre si mesma”, (p.23) agora
nos deparamos com uma leitura da subjetividade nas noções de exterioridade e
autocentramento do eu. “E com isso, a subjetividade assume uma configuração
decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático
passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica.” (Birman,
2001, p.23).
Dessa maneira, Birman (2001) aponta para o que está no fundamento das
psicopatologias contemporâneas: “modelos privilegiados de subjetivação
investidos pela cultura do narcisismo e pela sociedade do espetáculo” (p.24), que
enfatizam a exterioridade e o autocentramento do sujeito humano na atualidade.
148
Há uma recusa à interiorização, pois o que interessa é o exterior, o espetáculo, a
cena, a sedução, a capitação narcísica do outro. Começamos a delinear o estilo de
sociedade em pauta, na atualidade, que gera condições e possibilidades na
produção de suas próprias psicopatologias. É nesse panorama que se insere o
pânico.
É a partir, portanto, de um modelo de subjetividade autocentrada que o
sujeito contemporâneo encontra uma posição (no grupo) a partir da qual ele pode
falar com alguma propriedade de quem ele é e se situar dentro do contexto atual.
Nesse cenário, para Birman (2001), “os destinos do desejo assumem uma
característica marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte
intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas.”
(p.24).
Essa questão é facilmente notável quando detectamos que, na atualidade, a
solidariedade enquanto valor está em baixa. As trocas inter-humanas (laços
sociais) são fundamentadas na alteridade, como reconhecemos socialmente
através da solidariedade. Entretanto, hoje a regra é: “cada um por si e o resto que
se dane!”
A alteridade se fundamenta em que o sujeito humano reconheça o outro na
sua singularidade e diferença. Porém, o autocentramento do sujeito não permite se
descentrar de si mesmo, impossibilitando a admiração do outro na sua diferença.
Essa é a característica fundamental da subjetividade na cultura contemporânea e
que se transforma em terreno fértil para o desenvolvimento da violência no campo
social. Como coloca Birman (2001):
Referido sempre a seu próprio umbigo e sem poder enxergar um palmo além do próprio nariz, o sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto.(...) o sujeito vive permanentemente em um registro especular, em que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da própria auto-imagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função abjeta. Com isso, as relações humanas assumem características nitidamente agonísticas, de uma maneira perturbadora. Na ausência de projetos sociais compartilhados, resta apenas para as subjetividades os pequenos pactos em torno da possibilidade de extração do gozo do corpo do outro, custe o que custar. Este é o cenário para a estridente explosão da violência na cultura da atualidade(...) saquear o outro, naquilo que este tem de
149
essencial e inalienável, se transforma quase no credo nosso de cada dia. (p.25; os grifos são meus).
Se o outro é obstáculo, basta eliminá-lo. A vida torna-se algo banal. Nos
dias atuais, a morte e o assassinato são triviais no cotidiano. É o ethos da
violência, nos dizeres de Birman.
Nesse sentido, em Sobre ética e Psicanálise (2002), Kehl considera que há
uma crise ética em curso no mundo contemporâneo, que produz sintomas
alarmantes, principalmente relacionados à violência. Situa essa crise em duas
vertentes principais: no “reconhecimento da lei” e na “desmoralização do
código”. (p.12-3).
A lei a que se refere diz respeito à lei universal que funda nossa condição
de seres de cultura: a interdição do incesto. É pelo efeito da lei que os sujeitos
participam do laço social. Lembremos Totem e tabu (1913). Freud coloca que,
com a morte do pai, os irmãos, culpados e ameaçados, organizam-se e criam um
modo de barrar o gozo ilimitado (o assassinato): restauram a autoridade simbólica
do pai sob a forma da proibição do incesto. “O pai morto tornou-se mais forte que
o fora vivo.” (p.172). Temos aqui o reconhecimento ou a instauração da função
paterna e sem essa referência, segundo Freud, nenhuma cultura é concebível. O
parricídio, a Lei paterna e a interdição do incesto tornam os irmãos sujeitos à
diferença e ao conflito. Em outras palavras, a alteridade é reconhecida e a
sexualidade repartida entre todos144.
Entretanto, o apelo contemporâneo de nos fazer gozar mais, como enfatiza
Kehl (2002), dificulta “o nosso reconhecimento da lei”.
A transmissão, assim como a origem da lei, se inscrevem no inconsciente; sua inscrição subjetiva se dá por meio da linguagem, mas sua consistência imaginária é preservada pelas grandes formações da cultura (...) as sociedades modernas têm na liberdade, na autonomia individual e na valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais (...) orientados para o gozo e para o consumo (...) Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso com os antepassados, incapaz de reconhecer o peso do laço com os semelhantes, vivos e mortos na sustentação de sua posição subjetiva (...) A crise que se refere ao reconhecimento da lei, portanto, se deve a dificuldade do reconhecimento da dívida simbólica – o preço que todos pagamos pela condição humana, marcada pela
144 Vide p.68.
150
linguagem e pela vida em sociedade.(...) a lei, tal como costumamos pensá-la – imperativo de renúncia ao gozo – vai perdendo sustentação na cultura. Nenhuma lógica se sobrepõe à lógica do capital (...) que hoje depende de um mercado movido por um apelo não à renúncia, mas ao próprio gozo. (p.13-4).
A desmoralização do código, segundo a autora, refere-se à falência do
pacto simbólico. Pelo menos por dois séculos houve um código que regeu a vida
burguesa e submeteu outras classes aos valores e ideais dessa mesma burguesia.
Diz ela:
É verdade que esse código caiu não por força de alguma conquista antiburguesa, mas por ter entrado em contradição com os próprios termos do individualismo que sustenta imaginariamente os sujeitos nas sociedades de mercado. (p.18).
Nessa medida, a crise ética em curso no mundo contemporâneo, situada na
dificuldade do reconhecimento da lei e na desmoralização do código, tem
produzido o alarmante efeito da constituição de uma subjetividade em que há a
decadência da função paterna, como já vimos assinalando. E como Freud (1930)
nos advertiu, o grande perigo é a constituição de uma civilização de massa na qual
a sociedade se vincula numa tendência à igualdade, em que seus membros buscam
a felicidade perdida (o ideal narcísico) no apagamento da diferença, na negação do
outro.
É por conta dessa crise ética que se sustenta a sociedade do espetáculo e do
narcisismo, que propiciam modos hegemônicos de produção de subjetividade. Em
outras palavras, a ética da sociedade contemporânea configura um ideal de cultura
em que os valores soberanos são, como vimos, o autocentramento, o excesso de
exterioridade, portanto a exigência do sucesso, do enriquecimento a qualquer
preço e de imediato. Há uma redução do homem à dimensão da imagem,
culminando em relações sociais regidas pelo imaginário.
Como demosntra Kehl (2002):
As formações imaginárias organizam-se em torno do eu narcísico, das identificações e das demandas de amor e reconhecimento. Existir por intermédio da imagem torna insuportável qualquer forma de exclusão – se eu não sou visto, eu não sou. Diante disso, qualquer forma de alteridade se torna ameaçadora. Há quem se autorize a tirar a vida alheia ou
151
mesmo prefira pagar com a própria vida o preço dos quinze minutos de fama e de visibilidade aos quais, supostamente, todos teríamos direito, já que a ‘fama’ vem a ser o substituto da cidadania na cultura do narcisismo e da imagem. (p.25).
Para essa autora, assim como para Birman, na atualidade, a indústria das
comunicações se apóia nessas formações imaginárias, acabando por ocupar um
grande área do que consideramos “espaço público”. Assim, era de se esperar que,
na interface entre o mundo “real” e o imaginário social – por exemplo, através dos
telejornais –, as telecomunicações fossem “eficientes na produção de uma nova
ética para os novos tempos.” (p.25). Entretanto, não é o que está ocorrendo. Todos
os dias, por exemplo, assistimos pela televisão à guerra no Iraque, transmitida
incansavelmente para o mundo todo, gerando horror e fascínio.
Deparamo-nos com o caráter espetacular de uma cobertura jornalística
que, evocando o imaginário do cinema de Hollywood, transmite ao vivo a guerra
como se fosse um filme. E o olhar de milhares de telespectadores não funciona
como o “olho da lei”, isto é, como uma testemunha que pode denunciar atos de
violência proibidos e intoleráveis para a sociedade. Ao contrário, o olhar dos
telespectadores transforma a guerra em espetáculo. Como sublinhamos145
anteriormente, com Birman, é esse olhar do outro no campo social e mediático
que ocupa posição estratégica na economia psíquica do sujeito pós-moderno: a
subjetividade assume uma configuração estetizante.
Dessa maneira, noticiando as cenas do dia-a-dia como cenas de um show,
o espetáculo telejornalístico não favorece em nada o pensamento crítico das
pessoas a respeito, por exemplo, do terrorismo internacional, das injustiças sociais
e da melhor política para lidar com esse quadro. Na verdade, as formações
imaginárias sustentadas pela linguagem televisiva causam o impacto de uma falsa
realidade, isto é, as coisas são como aparecem na televisão, dispensando-nos da
necessidade de pensar e, portanto, poupando-nos da dúvida e da incerteza.
Como esclarece Kehl (2002),
... são colagens de elementos imaginários que remetem os telespectadores a um mundo de fantasia no qual – ainda que
145 Vide p.138.
152
sejam fantasias de horror – somos todos poupados da dúvida e da incerteza, dispensados da necessidade de pensar. A linguagem televisiva nos infantiliza a todos, pois o impacto das imagens produz a falsa certeza de que as coisas “são como são”. Com isso a opinião pública torna-se participante de uma cena totalitária em que todas as alternativas estão contidas nos termos que a imagem comporta, dispensando a capacidade humana de questionar as versões oficiais, criar fatos novos e inventar soluções para as grandes crises sociais.(...) As formações imaginárias mobilizam os afetos e dispensam o pensamento. (p.25-7; os grifos são meus).
Esse fato exemplifica como o caráter público de uma situação não
funciona para coibir a violência, demonstrando os efeitos nocivos da
predominância das formações imaginárias na organização do laço social146.
As reflexões de Costa (1988) são semelhantes às de Birman e Kehl. No
texto Narcisismo em tempos sombrios, em que aborda o narcisismo pelo ângulo
das relações com os ideais em geral e com os ideais sociais, afirma que o
narcisismo continua sendo uma noção problemática, tanto na clínica atual quanto
na teoria.
Parte da premissa freudiana de que “o narcisismo é o modo mesmo do
funcionamento egóico” e que a compulsão à síntese ego-narcísica atende à
sobrevivência do sujeito, seja pelo viés consciente seja pelo viés inconsciente. O
primeiro, no sentido de que o “ego é uma ficção necessária à ação e à adaptação
ao mundo”; o segundo, na exigência inconsciente decorrente “do estado inicial da
experiência humana, chamado por Freud de impotência/desamparo
(Hilflosigkeit)”, (Costa, 1988, p.163) como condição de estruturação do
psiquismo, do sujeito humano, não sendo um mero acidente genético.
Essa impotência jaz no coração da angústia, das ilusões religiosas e de outros processos culturais. A síntese ego narcísica é o primeiro anteparo imaginário que, na luta contra a angústia derivada da impotência, assume a forma de um Eu em face de um outro.(...) é o ego narcísico que, de acordo com sua constituição imaginária, tenta historicizar o início imprevisível, criando representações positivas de quem age e quem fala,
146 A título de ilustração, o programa “Big Brother Brasil”, realizado pela Rede Globo de Televisão, é também um ótimo exemplo da transformação do cotidiano em espetáculo e do fascínio que isso gera nas pessoas. Aqui se sustenta, exatamente, a idéia da existência mediada pela imagem; eu só existo se sou visto. E pela ‘fama’ e ‘visibilidade’ se paga qualquer preço, já que esses são os ideais que a cultura atual prega.
153
como sendo o que sou Eu e o que é o outro. (Costa, 1988, p.165).
Costa (1988) mostra como Freud localiza esse estado de
impotência/desamparo estrutural “no início de cada vida individual, mas também
em meio à cultura e à civilização sob a espécie da Ananke” (p.165) que, aliada a
Eros na tarefa civilizatória, confronta o sujeito humano “com uma tríplice
vicissitude”, marca do desamparo estrutural: o envelhecimento do corpo, as forças
da natureza e a ameaça contida nas relações dos seres humanos com outros seres
humanos, ou seja, com a condição de desamparo do sujeito no mundo147.
Escreve esse autor:
Mais uma vez, para reagir a esta situação de “humilhação narcísica”, o Ego entra em cena, acionando seus mecanismos de autodefesa. Ora, uma das razões dos fenômenos conhecidos como distúrbios narcísicos encontra-se justamente no modo como os elementos da Ananke/Hilflosigkeit apresentam-se ao ego e no modo como o Ego reage a esta presença. Isto é verdadeiro tanto para os casos classificados na psicopatologia clínica quanto para os casos da psicopatologia da vida cotidiana. Incluímos nesta rubrica as personalidades narcísicas ou as representações do indivíduo na cultura narcísica. Este último termo, criado por Christopher Lasch(...) Hoje, definiríamos cultura do narcisismo como aquela em que o conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou imaginariamente os efeitos de Ananké, forçando o Ego a ativar paroxisticamente os automatismos de preservação face ao recrudescimento da angústia de impotência. Ou visto de outro ângulo, é a cultura onde a experiência de impotência/desamparo é levada a um ponto tal que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social. (Costa, 1988, p.165; os grifos são meus).
Assim, vamos delineando as condições de desamparo do sujeito na
contemporaneidade. Face às exigências dos ideais da cultura contemporânea o
sujeito responde no regime da idealização do ego (narcisismo), correndo o perigo
de se perder no lugar do Hilflosigkeit, da “impotência que jaz no coração da
angústia”. Esse quadro aumenta cada vez mais o desarranjo pulsional e a busca
frenética do sujeito em tamponar de qualquer maneira essa fenda que se alarga.
147 Como já colocamos, anteriormente, como as fontes do mal-estar (do sofrimento psíquico) na civilização. (Vide p.97, 153 e 156).
154
Costa (1988), ao refletir sobre as manifestações da cultura narcísica,
sublinha que Freud, “numa espécie de ensaio de ficção social”148, antevê o
“funcionamento de uma sociedade onde o declínio da autoridade e da perda da
crença na transcendência da justiça podem descer ao seu nível mais baixo.”
(p.166). Coloca que Freud (1921) chamou de “pânico narcísico” ao estado social
em que “os indivíduos, sem deus nem lei, agiam exclusivamente pressionados
pelo medo ou por motivos e interesses privados.” (p.167). Essa é uma
interpretação de Costa para o estado de Panik que irrompe tanto no indivíduo
quanto na massa, dada a cessação dos laços libidinais com o ideal.
Certos padrões de comportamento social no Brasil de hoje são suficientemente estáveis e recorrentes para que possamos afirmar a existência de uma forma particular de medo e reação ao pânico, que é a cultura narcísica da violência. Essa cultura nutre-se e é nutrida pela decadência social e pelo descrédito da justiça e da lei. Seu efeito mais imediato e mais daninho é a exclusão de representações ou imagens do Ideal do Ego que, contrapondo-se aos automatismos conservadores do Ego narcísico, possam oferecer ao sujeito a ilusão estruturante de um futuro passível de ser libidinalmente investido. Na cultura da violência, o futuro é negado ou representado como ameaça de aniquilamento ou destruição. De tal forma que a saída apresentada é a fruição imediata do presente; a submissão ao “status quo” e a oposição sistemática e metódica a qualquer projeto de mudança que implique em cooperação social e negociação não violenta de interesses particulares. (Costa, 1988, p.167)
Desse modo, a falência dos Ideais implica um desequilíbrio psíquico que
tem como resultado o pânico, que afeta tanto o sujeito quanto a sociedade: “a
cultura da violência mostra como a falência dos Ideais, acenando com o “pânico
narcísico”, desequilibra a economia egóica e compromete seriamente o bem-estar
do sujeito e de sua sociedade.” (Costa, 1988, p.172).
Em outras palavras, dizer que, na atualidade, há o declínio da Lei paterna é
considerar que a sociedade contemporânea se caracteriza como uma sociedade em
que há a falência dos ideais e, nesse contexto, o aumento da incidência do pânico
aponta para essa questão.
Corroboramos nossa idéia com Costa (1991): “dada a concepção de ideal
que defendo, creio que possa existir, sim, sociedade sem ideais. Por acaso não é a
148 O autor se refere ao artigo (1921) Psicologia de grupo e análise do ego.
155
isto que Freud alude quando se refere ao ‘pânico narcísico’? Onde estão os ideais
de um corpo social formado por hordas de sujeitos narcisicamente atomizados?”
(p.99).
E para mostrar como isso é possível, Costa (1991) diferencia lei de ideal,
apontando que
... nem toda lei é lei ideal. Lei é simplesmente uma injunção para se seguir regras. Portanto, podemos estar submetidos a uma lei louca, como a do superego freudo-lacaniano (...), mas isto não quer dizer que dispomos de uma lei ideal. Basta haver regularidade no cumprimento de regras para haver lei. Lei ideal, no entanto, só existe quando escapamos às injunções do gozo e, pela castração, formulamos regras capazes de perpetuar a cultura, através da diferença dos sexos e das gerações. (p.100; os grifos são meus).
Nessa medida, a idéia do pânico como um processo de produção social,
como uma forma, dentre várias, que o sujeito encontrou de se organizar na cultura
contemporânea, não contradiz em nada a definição de Freud (1921) do Panik
como efeito imediato da ruptura com o ideal, configurando um estado afetivo
terrorífico e extremo de angústia tanto no indivíduo quanto na massa.
Lembremos que, para Freud (1923), é a atitude do ideal do ego que
determina a gravidade de uma neurose, ou seja, os ideais da cultura podem gerar
patologias.149 Vejamos algumas colocações de Costa que clareiam bem essa idéia
freudiana.
Em Violência e psicanálise (1984), Costa discute sobre as implicações do
conceito de cultura narcísica criado por Lasch. Dessa discussão, destacamos
apenas o ponto em que ele discorda da afirmação de Lasch de que a cultura
americana produz indivíduos patologicamente narcisistas:
Lasch confunde traço étnico com traço psicopatológico. O primeiro é fruto da socialização, o segundo representa um distúrbio nesse processo de socialização. (p.147).
Costa (1984) aponta para esse lapso de raciocínio de Lasch – de que “a
identidade étnica do americano médio é um produto psicopatológico da cultura
americana”(p.148) – como algo importante, pois “acreditar que a cultura
149 Vide p.90.
156
americana elaborou um traço étnico psicopatológico(...) equivaleria em termos
mais simples a dizer que os americanos são ‘doentes’ só pelo fato de serem
americanos”.(p.149). Lasch acredita que a cultura americana é patogênica,
entretanto, como mostra Costa (1984), “não o é porque cria o tipo psicológico por
ele estudado”(p.148), mas, como qualquer cultura, pode de fato funcionar como
estímulo psicopatogênico. Diz ele:
Isso ocorre não porque ela [cultura] reproduz e fixa certos traços étnicos, mas porque, ao universalizar esses traços, impõe a certos indivíduos um desempenho psicológico cujos requisistos excedem os meios de que dispõem estes indivíduos para atingirem os fins desejados. Ou seja, não é o traço étnico em si que é psicopatológico; é o tipo de estratégia empregado pelo sujeito para apropriar-se destes traços que conduz à psicopatologia. (grifos do autor) O sujeito, por várias razões pode recorrer à psicopatologia como meio de enfrentar as tensões causadas pela exigência da performance psicológica ideal. A patologia emerge quando faltam ao sujeito os meios habituais, ou seja, culturalmente codificados e legitimados para lidar com os conflitos derivados das imposições do Tipo Psicológico Ideal. (grifos meus) A saída psicopatológica (...) demonstra que o sujeito, privado dos meios usuais de resolução dos conflitos, mobiliza constelações não-convencionais de recursos psicológicos para fazer frente a estes conflitos. (p.148).
Ou seja, na atualidade, os meios culturalmente codificados e legitimados
para o sujeito lidar com os conflitos gerados pela exigência da performance
psicológica ideal, implicam-lhe o uso de estratégias na apropriação desses traços
que acabam por conduzi-lo à psicopatologia.
Assim, para Costa (1984), a psicopatologia é produto de um entrave no
processo de socialização. A cultura pode ser um fator patogênico, não porque
produz um tipo particular de identidade étnica, mas porque é um “elemento causal
na cadeia patogênica” quando produz uma dissimetria entre as exigências do
“Tipo Psicológico Ideal” e os meios adequados para cumpri-las.
Aqui, alinhavamos a proposta de Costa às de Birman, costurando o tecido
do pânico como um sintoma que expressa o descompasso entre as exigências do
“Tipo Psicológico Ideal” atual, da exaltação desmesurada do eu e da estetização
da existência, e a incapacidade para o cumprimento dessas exigências ou para a
“adequação” a esse tipo ideal de ser. O sujeito que sofre de pânico poderia ser
considerado, neste contexto, alguém que fracassou no atendimento a essas
157
exigências, um excluído social e, também, um consumidor falho? É a mais pura
expressão da incerteza e insegurança do mundo pós-moderno? Como dissemos
anteriormente, no contexto da vida pós-moderna, a inexistente fixidez e o
desenraizamento são aspectos pouco férteis na constituição de uma identidade
individual que consiga retificar as conseqüências do processo de desencaixe dos
sistemas sociais gerados pela modernidade. Os “eus” estão flutuantes e à deriva do
desamparo.
Na medida em que o tempo é ceifado do passado e do futuro, ele é
separado da história e da memória. O fluxo do tempo torna-se um presente
contínuo, não tendo mais o caráter de direção. Já não há a idéia de “para frente” e
“para trás”, mas a habilidade de se mover. A ordem é flutuar.
Dessa maneira, o tempo já não estrutura mais o espaço. A estratégia da
vida pós-moderna é evitar que a identidade se fixe. Além disso, a incerteza que,
no contexto do mundo moderno, era encarada como algo temporário e, portanto,
passível de ser abrandada ou transposta inteiramente, no contexto do mundo pós-
moderno prepara-se para uma nova condição: a de permanente e irredutível.
Associada a essa nova configuração da incerteza está a nova configuração
da segurança que, outrora, era tecida e sustentada pela família, vizinhança e
comunidade; hoje, se não se desintegrou, está consideravelmente enfraquecida.
Essas são graves conseqüências na mudança das relações interpessoais
que, agora, permeadas pelo consumismo, como coloca Bauman (1998), “dispõe
do outro como a fonte potencial de experiência agradável” e que, se em parte
parece boa, “não tem como gerar laços duradouros, nem mais seguramente, laços
que se suponham duradouros (...) os laços que ela gera, em profusão, têm
cláusulas (...) passíveis de retirada unilateral; não prometem a concessão nem a
aquisição de direitos e obrigações.” (p.35).
Dessa forma, o lento e implacável esquecimento das habilidades sociais
vai tomando conta da cena social na atualidade. O que nas sociedades tradicionais
era mantido pelas habilidades individuais conjuntamente com o uso de recursos
inatos, na ordem moderna passou a ser mediado por ferramentas tecnológicas que
podem ser compradas no mercado. E, na ausência de tais ferramentas, as parcerias
e os grupos se desintegram, na medida em que “a presença e elasticidade das
coletividades se tornam, em proporções cada vez maiores dependentes do
158
mercado.” (Bauman, 1998, p.35). O cidadão, sustentado na ética fundada na lei
paterna, cede lugar para o consumidor, sustentado na ética do consumo.
Assim, a mensagem da indeterminação e maleabilidade do mundo (um
mundo em que tudo pode acontecer e tudo pode ser feito) é eficazmente
transmitida pelos meios de comunicação cultural. Estamos num momento de
incerteza radical a respeito do mundo material, social e político, e é exatamente
essa incerteza que a indústria da imagem nos oferece.
Como diz Bauman (1998):
Nesse mundo, os laços são dissimulados em encontros sucessivos, as identidades em máscaras sucessivamente usadas, a história da vida numa série de episódios cuja única conseqüência duradoura é a sua igualmente efêmera memória. Nada pode ser conhecido com segurança (...) a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair instantâneos dos outros. (...) em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente (...) uma série de “novos começos” se experimentam (...) como uma identidade de palimpsesto. Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer (...) mais do que a arte de memorizar (...) e de aprender é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita finalidade do campo de visão (...) e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda vida (...) graças a essa admirável perícia. (p.36; os grifos são meus).
Essas são algumas das dimensões da incerteza pós-moderna. O processo
de construção da identidade, agora, é construído e reconstruído e construído mais
uma vez e reconstruído novamente e incessantemente. Bem sabemos que uma das
características do indivíduo na nossa sociedade contemporânea é viver
permanentemente com o “problema da identidade” não-resolvido.
Como dissemos, os meios de comunicação são eficazes nessa mensagem e
reproduzem a idéia de que construir uma identidade, ter uma identidade
solidamente fundada e resistente a oscilações é muito mais uma desvantagem do
que uma qualidade, em circunstâncias pós-modernas. As identidades devem
mover-se, ao invés de se fixarem.
Na atualidade, o ambiente configura-se numa atmosfera de medo em que
os problemas de identidade acabam por trazer uma angústia relacionada a eles e
159
uma disposição para se preocupar com toda coisa “estranha” sobre a qual a
angústia possa ser ligada e, portanto, ter sentido. Essa sensação é para Bauman
(1998), “potencialmente universal”, embora afetando as pessoas de diferentes
formas e graus, trazendo “conseqüências de significação variável para as procuras
de suas vidas.”
Dessa maneira, encontramos no cenário contemporâneo um ambiente
favorável para o desenvolvimento de fenômenos do campo da angústia como, por
exemplo, o pânico.
Os últimos 40 anos, aproximadamente, foram decisivos na história do
modo como foi moldada e mantida a sociedade ocidental (industrial, capitalista,
democrática e moderna). Como enfatiza Bauman (1998), “é esse modo que
determina os nomes que as pessoas tendem a dar a seus medos e angústias ou às
marcas nas quais elas suspeitam residir a ameaça a sua segurança.” (p.35). Essa
questão remete-nos a uma de nossas perguntas iniciais: o quê, na atualidade,
dentro e fora do âmbito da ciência – ou seja, do senso-comum à psiquiatria e à
psicanálise –, está sendo chamado de “pânico”? Remetemo-nos também, a todo
trabalho que fizemos no capítulo um a respeito da polissemia do termo pânico.
De qualquer maneira, no quadro da atualidade predominam as
modalidades de sociabilidade em que a subjetividade articulada à historicidade
humana não é mais valorizada, e, conseqüentemente, as mediações simbólicas e
regulações narcísicas vão desaparecendo. “A cultura da exaltação desmesurada do
eu”, nos dizeres de Birman (2001), promove a lógica do narcisismo – o que não
propicia sua “quebra”, condição necessária para o laço social. Vai-se construindo
um tipo de laço social no qual o vínculo é “frouxo”, precário, leve, superficial,
não havendo mais lugar para as experiências de perda e luto, de enraizamento e
fixidez. Nesse cenário, as individualidades são descartáveis, assim como as
identificações e os vínculos eróticos e afetivos. A alteridade e a diferença vão
dando lugar à igualdade e à massificação. Desenha-se uma cena social em que
“ter” equivale a “ser”.
O ideal de valores que pauta a forma de ser da individualidade
contemporânea, da subjetividade pós-moderna, enaltece o eu, a imagem, o corpo
estético, o que resulta em fragmentação social e alteração dos laços sociais,
portanto, das relações amorosas e do erotismo. São construídos e veiculados
ideais, valores e significações que configuram um tipo de representação de
160
mundo, dos “eus” e das relações entre eles, que produz nos sujeitos uma realidade
concebida como natural e universal, indicando o imperativo moral do que
devemos ser, o que muitas vezes nos conduz a psicopatologias.
Podemos dizer que, na atualidade, a cultura da imagem é um efeito da
prática de produção da subjetividade consumidora. O consumo consome o sujeito.
Na medida em que a publicidade (propaganda, pesquisas, estudos de mercado,
marketing etc) manipula o poder de decisão de compra do indivíduo, transferindo-
o para as empresas, acaba por fabricar seu próprio produto: o consumidor
perpetuamente insatisfeito e entediado.
Os efeitos desse quadro envolvem abalos nas relações entre as pessoas e
das pessoas com o campo dos fenômenos sociais, isto é, com o campo
intersubjetivo que é patrimônio social compartilhado. São abalos na concepção de
realidade e identidade que fazem predominar sentimentos de impotência que,
como coloca Rosa (1999)
... contrasta com a euforia da oferta de inúmeras oportunidades de prazer e de conhecimento, com garantias implícitas de oportunidade de uma vida sem limites e impossibilidades, reforçadas pelas promessas de eternidade e onipotência advindas dos progressos tecnológicos, inclusive da medicina. É como se a impotência e o sofrimento devessem ser excluídos dos sentimentos humanos, pois seriam fora da época. (p.85).
Desse modo, criou-se um imaginário social negativo, uma modalidade
negativa de subjetividade em torno daquelas pessoas que não se encaixam no
perfil que a sociedade atual traça: o culto ao eu, à imagem e ao sucesso. Esses são
os consumidores falhos, os estranhos, os impuros pós-modernos que devem ser
excluídos, destruídos a qualquer preço. Portanto, não há lugar nem para a
impotência nem para a frustração. Os sofrimentos devem ser banidos dos
sentimentos humanos. O que é positivo no imaginário social, na atualidade, como
estilo de ser, caracteriza-se por um ideal de valores que sustenta esse culto e
indica a performance do tipo psicológico ideal.
Dessa forma, abafa as singularidades dos sujeitos em nome de uma
homogeneização dos mesmos em função do consumo. Na “cultura da exaltação
desmesurada do eu” não há lugar para aqueles que não conseguem dizer: “estou
aqui, apareço e sou o máximo”, estes estão descartados da cena social. Como diz
161
Birman (2001): “o que interessa agora é a estetização da existência e a inflação do
eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento.” (p.188).
Enfim, como dissemos150, a civilização atual parece não atender mais às
funções de proteger e organizar as relações entre os homens, assim como parece
não oferecer mais a pertinência a um grupo desenvolvido por ideais comuns.
Parece sim, que tudo isso tornou-se pó ao vento. Essa é a cena social pós-
moderna.
3.3. Do mal-estar de Freud ao mal-estar na atualidade: a questão do
pânico.
Em O mal-estar da pós-modernidade (1998), Bauman, inspirado no texto
de Freud O mal-estar na civilização (1930), trabalha sobre as diferenças entre o
modo de subjetivação moderno e o modo de subjetivação na atualidade, para o
qual usa o termo subjetividade pós-moderna.
Afirma que esse texto de Freud conta a história da modernidade. “Só a
sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da ‘cultura’ ou da
‘civilização’ e agiu sobre esse auto-conhecimento com os resultados que Freud
passou a estudar; a expressão ‘civilização moderna’ é por essa razão um
pleonasmo.” (Bauman, 1998, p.7).
Também Birman (1997) faz a mesma afirmativa no livro Estilo e
modernidade em Psicanálise. Ao realizar uma leitura extensa desse tema,
considera que Freud faz um esforço para circunscrever o mal-estar do sujeito na
modernidade, ao tecer seus comentários sobre “a posição e os impasses do sujeito
na cultura”. Coloca que “a leitura freudiana sobre o sujeito na cultura é uma
elaboração psicanalítica sobre os impasses do sujeito na modernidade.” (p.10).
Inscreve historicamente a obra de Freud no horizonte da modernidade e afirma
que O mal-estar na civilização (1930) é a crítica freudiana (ou psicanalítica) da
modernidade, ou seja, dos impasses que a modernidade constituiu para o sujeito.
Em O mal-estar na civilização (1930), Freud começa, cautelosamente,
abordando a questão do objetivo da vida dos homens que é a busca da felicidade e
sua manutenção eterna. Entretanto, rapidamente, parte para a experiência
150 No final do capítulo dois.
162
cotidiana da infelicidade dos homens e suas formas de evitá-la. Até que, na parte
III do texto – em que trabalha os ideais modernos de beleza, pureza e ordem, além
dos temas tempo e espaço –, entra a fundo no seu propósito fundamental,
anunciando que a fonte do sofrimento humano tem origem no social e deriva de
nosso pertencer à civilização. A civilização ao exigir tanta renúncia à satisfação de
nossas necessidades, acaba por se transformar na causa da proliferação de nossos
sofrimentos: “... o que chamamos de nossa civilização é em grande parte
responsável por nossa desgraça... ” (1980, p.105).
Nessa obra, Freud (1930) demonstra como a ilusão é um processo
fundamental para o desenvolvimento da civilização, destacando-a na religião, na
ciência e na tecnologia. O avanço tecnológico, a posse do objeto e a ilusão de
onipotência permitiram a humanidade garantir o seu domínio sobre a natureza e
aproximaram cada vez mais os homens no consumo da imagem de um “Deus de
prótese.” (1980, p.111-2). Todavia, esta dominação e ilusão são causas de outra
desilusão: nem o progresso nem sua semelhança com Deus trouxeram ao homem
mais felicidade.
Como mostramos no final do capítulo dois, nesse artigo, Freud (1930)
introduz a hipótese da pulsão de morte no domínio da civilização e afirma que as
restrições aplicadas pela civilização à manifestação das pulsões são explicadas
pela ação da pulsão de morte como pulsão de agressividade. Conclui, assim, que a
evolução da civilização representa uma luta de Titãs.
No antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições
da civilização, Freud (1930) demonstra que a relação do sujeito com a civilização
é marcada por um mal-estar, pois é permeada pelo conflito e a impossibilidade de
resolvê-lo totalmente. E, como vimos, esse conflito irremediável é constitutivo da
condição subjetiva do humano, sendo o desamparo a base dessa condição. Nesse
sentido, as manifestações da subjetividade se dão em relação ao que ele chamou
de mal-estar na cultura, mal-estar este constitutivo da sociedade, como já
assinalamos.
No livro O mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de
subjetivação, Birman (2001) considera que a leitura freudiana do mal-estar na
civilização é sua versão trágica da condição do sujeito na modernidade e que seria
o “contraponto psicanalítico” do que foi também desenvolvido por autores em
campos diferentes:
163
... pela retomada sistemática da filosofia de Nietzche, Heidegger caracterizou a modernidade pela figura da morte de Deus. Da mesma forma, Weber considerou que o que marcaria a modernidade seria o desencantamento do mundo, o esvaziamento dos deuses e a racionalização crescente da existência forjada pelo discurso da ciência. (...) Mesmo que não digam a mesma coisa, as formulações dos diferentes autores (...) são (...) complementares. (p.17-8).
Este estudo traz a “problemática da subjetividade como ponto fundamental
de referência” e que se trata “de pensar nos destinos do desejo na atualidade, já
que esses destinos nos permitem captar o que se passa nas subjetividades. (...)
Com isso, podemos nos aproximar do que há de sofrente nas novas formas de
subjetivação da atualidade, circunscrevendo, então, o campo do mal-estar
contemporâneo”. Dessa forma, a partir de uma leitura crítica psicanalítica, sua
intenção nessa obra é indagar-se sobre algumas questões cruciais em relação à
condição da subjetividade na atualidade delimitando novos perfis e “novos
cenários de horror do sofrimento subjetivo.” (p.15-8).
Esse também é nosso intuito: circunscrever o mal-estar na atualidade, as
novas formas de subjetivação e suas conseqüentes formas de sofrimento, ou seja,
as psicopatologias contemporâneas. Entre estas, importa-nos o pânico.
Para Birman (2001), há um mal-estar na atualidade, tanto quanto havia um
mal-estar na modernidade, porém reflexo de diferentes modos de subjetivação. As
condições atuais do mal-estar na civilização dizem respeito
... ao vazio existencial produzido pela evaporação das visões de mundo, numa ordem social inteiramente perpassada pela ciência, que o desamparo do sujeito se tornou agudo e assumiu formas até então inexistentes. O mundo desencantado e sem Deus (...) produziu formas inéditas de desamparo quando as utopias do iluminismo e da modernidade foram silenciadas.(...) A busca de proteção face à angústia se empreende pelas formas de religiosidade que se apresentam como novas ofertas de salvação. Porém, para os incrédulos é preciso buscar os efeitos dionisíacos das drogas pelo narcotráfico e o silenciamento da dor psíquica pelos psicotrópicos. (p.229-30; os grifos são meus).
164
Dessa maneira, não floresceu a crença moderna de que, através da razão,
homens e mulheres pudessem atuar sobre as forças da natureza e na sociedade
rumo a uma vida satisfatória para todos151, buscando, portanto, a felicidade.
Tendo em vista que Freud apontava o desamparo do sujeito como
incurável, já não sustentava mais a crença no progresso reformista do espírito
humano através do cientificismo iluminista. Em 1930, ao refletir sobre a estranha
atitude de hostilidade contra a civilização, que tantas pessoas assumiram, coloca o
seguinte:
Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. (...) Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, (...) não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única pré-condição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural. Disso não devemos inferir que o progresso técnico não tenha valor para economia de nossa felicidade. (1980, p.107; grifos do autor).
E termina por nos advertir de que a maioria das satisfações obtidas com o
progresso tecnológico, como escutar a voz de um filho que mora a milhares de
quilômetros, segue o modelo do “prazer barato”, imediato. Claro que isso nos
alivia, traz prazer e felicidade. Mas a problemática está na repetição e reprodução
desses modelos de prazer. Na atualidade, o modelo do prazer imediato impera, o
que desbalanceia a relação entre narcisismo e libido objetal. A balança pende para
o lado do narcisismo, o que altera a economia psíquica e os laços sociais. Ambos
são modulados narcisicamente.
A felicidade, como disse Freud (1930), é “algo essencialmente subjetivo”
(1980, p.108) e equivale para nós à satisfação da pulsão. Mostra que a felicidade é
efêmera; está intrinsecamente ligada à satisfação das pulsões (ao “programa do
princípio de prazer”) e suas possibilidades de obtenção são “restringidas por nossa
própria constituição” e, por isso, é mais difícil de se experimentar a felicidade do
151 Pretensão característica do Iluminismo e da Revolução Francesa, ligada à idéia de progresso,
165
que o sofrimento. A felicidade “constitui um problema de economia da libido do
indivíduo” e no exame de suas possibilidades de obtenção deve ser considerada “a
relação entre narcisismo e libido objetal.” (1980, p.95, 104).
O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. (1980, p.95).
Por conta do que foi exposto até agora, há sem dúvida, na atualidade, uma
disposição diferente das questões humanas. Contudo, esse fato não garante um
passo adiante no caminho para obtenção da felicidade. Uma reavaliação de todos
os valores dos seres humanos pode ser apenas um momento feliz, na medida em
que os valores reavaliados não garantem, necessariamente, um estado de
satisfação.
O sofrimento152 (a infelicidade, uma vida não satisfatória ou o mal-estar)
nos ameaça a partir de três direções, como aponta Freud (1930): “de nosso próprio
corpo, condenado à decadência e à dissolução (...); do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras (...); e de nossos
relacionamentos com outros homens;”(p.95) e esse último tipo de sofrimento
talvez seja o mais penoso. Dessa maneira, o homem vai buscando maneiras de se
livrar do sofrimento: seja pelo isolamento voluntário (não se relacionar mais com
ninguém), pela ingestão química (uso de drogas), pelo aniquilamento das pulsões
(felicidade da quietude como no ioga). De qualquer maneira, tentamos controlar
nossa vida pulsional no deslocamento da libido (sublimação) e na satisfação
obtida através da fantasia (fruição das obras de arte ou no delírio psicótico).
Em outras palavras, buscamos a felicidade pelo amor sexual e pelo amor
inibido em sua finalidade sexual. Entretanto, nenhum desses caminhos leva-nos à
total felicidade, visto que a mesma é um problema da economia da libido. Como
coloca Freud (1930), não existe uma regra geral: “todo homem tem de descobrir
por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo.” (1980, p.103) Nos
dizeres de Birman (1996), a arte de viver está na busca pelo sujeito de um estilo
subjetivo de ser, capaz de lidar com seu sofrimento (as dificuldades de existir, a
como já mostramos anteriormente. 152 Vide p.144 nota 21 e p.153.
166
condição de desamparo) da melhor forma possível; que o sujeito possa recriar o
mundo para si a fim de adaptá-lo aos seus desejos. Ou seja, garantir a
singularidade e alteridade: uma atitude ética e estética.
A escolha da técnica na arte de viver, para Freud (1930), reside na
combinação de alguns aspectos: 1) quanta satisfação real o indivíduo pode obter
do mundo externo; 2) até onde o indivíduo é levado para se tornar independente
dele; 3) e de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo e adaptá-lo
aos seus desejos. Nesse último fator “sua constituição psíquica desempenhará
papel decisivo, independente das circunstâncias externas.” (1980, p.103).
Assim, na esteira da economia pulsional, lembremos da cota de
agressividade a que todo ser humano está exposto e, ao mesmo tempo, tão
disposto a repudiar. Freud (1930) assinala que a civilização impôs grandes
sacrifícios para o homem moderno, não apenas à sexualidade como à
agressividade. Ou seja, o homem civilizado teve que renunciar à satisfação
pulsional e, por isso mesmo, é difícil viver nessa civilização. “O homem
civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela
de segurança.” (1980, p.137).
A liberdade de ação do ser humano sobre seus próprios impulsos deve ser
coagida e essa coerção é dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios
sofrimentos. Dessa forma, o mal-estar, “marca registrada da modernidade”, nos
dizeres de Bauman (1998), resultou no excesso de ordem e na escassez de
liberdade. Entretanto, na atualidade, reinam a desregulamentação e a liberdade
individual, as quais promovem o mal-estar na atualidade. (p.8).
Nesse raciocínio, os ideais de beleza, pureza e ordem que, segundo
Bauman (1998), conduziram os homens e mulheres na modernidade não foram
abandonados. Pelo contrário, “agora devem ser perseguidos – e realizados –
através da espontaneidade do desejo e do esforço individuais.” (p.9).
Partindo, assim, da mensagem de Freud: “o homem civilizado (leia-se
moderno) trocou um quinhão de suas possibilidades de felicidade por um quinhão
de segurança”, ou seja, “você ganha alguma coisa, mas, habitualmente, perde em
troca alguma coisa”, Bauman (1998) faz uma reflexão sobre o que Freud designou
por mal-estar e demonstra que:
167
... a antiga norma mantém-se até hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos e perdas mudaram de lugar: os homens e mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. (grifos do autor) Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais. (grifos meus) (...) Se obscuros e monótonos dias assombraram os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade soçobra. (p.10-1; grifos meus).
Ou seja, a modernidade não promoveu a superação do mal-estar. Ao
contrário, na sua máxima radicalização, o que fez foi apenas “re-configurar” o
mal-estar. Na medida em que o mesmo é expressão da condição subjetiva do
humano, marcada pelo desamparo estruturante do psiquismo, tenderá sempre a
existir, porém configurado segundo as modalidades de subjetivação de sua época.
As formas de sofrer que os sujeitos manifestam, seus mal-estares, são
indissociáveis das transformações que remodelam o campo social. Na atualidade,
os modos de sofrimento são expressões dos modos de subjetivação
contemporâneos, ou seja, são expressões do mal-estar contemporâneo.
E o corpo tem destaque na expressão do mal-estar do sujeito
contemporâneo. Esse fato é visível no aumento das doenças psicossomáticas,
assim como do pânico, indicando “formas diferentes de corporeidade. Assim, são
formas de desrealização da experiência corpórea que mostram, paradoxalmente,
uma experiência de insuficiência narcísica.” (Birman, 2001, p.154). Nesse sentido,
apesar de vivermos numa cultura do narcisismo, as subjetividades
contemporâneas indicam uma insuficiência do investimento narcísico do corpo. O
real do corpo passa a ser o limite último para o desamparo do sujeito.
Tendo em vista que o mal-estar contemporâneo se caracteriza pelo excesso
pulsional e pela fragilidade de simbolização, entendemos, assim como Birman
(2003), que
... o mal-estar na atualidade assume características eminentemente traumáticas. É a vulnerabilidade psíquica ao trauma que indica as linhas de fratura presentes nas subjetividades contemporâneas, já que, em decorrência da fragilidade dos mecanismos simbólicos que poderiam nos proteger, estamos expostos a traumas regulares. (...) o pânico
168
se destaca no mal-estar pós-moderno em função das falhas existentes no mecanismo da angústia sinal, evidenciando sua marca essencialmente traumática. Como afirmou Freud sobre a neurose de angústia, o que está em pauta é a falha nos processos de simbolização, isto é de representação das intensidades, que se descarregam diretamente no corpo e provocam a certeza da morte iminente. (p.69-70; os grifos são meus).
Nesse quadro, podemos depreender uma leitura do pânico como uma das
expressões do mal-estar que marca a relação do sujeito com a cultura na
atualidade. O pânico é uma das formas de sofrimento, um dos efeitos dos modos
de subjetivação contemporâneos.
O pânico é uma das expressões dos conflitos do sujeito pós-moderno que,
na tentativa de realizar a glorificação do eu e da estetização da existência, fracassa
e responde com um modo de funcionamento psíquico patológico. Dito de outra
maneira, face às exigências dos ideais da cultura contemporânea – o
autocentramento e o excesso de exterioridade –, o sujeito responde no regime da
idealização do ego (narcisismo) correndo o perigo de se perder no lugar do
Hilflosigkeit. Entendemos que este é o caso do sujeito tomado pelo pânico.
Tendo em vista que as condições atuais do mal-estar na civilização dizem
respeito ao vazio existencial produzido pela destruição da narrativa, o desamparo
do sujeito tornou-se agudo, assumindo formas radicais como o pânico, por
exemplo, que irrompe quando o sujeito se depara com o abismo terrorífico da
experiência do vazio, com a total falta de garantias de ser e estar no mundo, com a
ausência de um ideal protetor ilusório que garanta a estabilidade do mundo
(psiquicamente organizado).
Lembremos que a busca da proteção da figura do pai originário para
realizar a denegação do desamparo é uma das várias maneiras que o sujeito pode
utilizar para gerir a condição de desamparo. Entretanto, se essa passa a ser a única
forma de gestão, o sujeito se insere na proteção onipotente narcísica, no registro
do ego ideal e na recusa do confronto com o imprevisível. Tudo isso pode custar
muito caro para o sujeito, pois recusando os impasses da castração, acredita-se
acima da finitude. A problemática do pânico diz respeito à descoberta com terror
da condição de finitude do sujeito humano.
Recordemos que as subjetividades contemporâneas caracterizam-se pela
modalidade de subjetividade autocentrada em que a alteridade se apaga e o
169
homem é reduzido à dimensão da imagem. Em conseqüência disso, as relações
sociais são regidas pelo imaginário e vai-se constituindo uma subjetividade na
qual há a decadência da Lei paterna.
Nesse quadro, um dos impasses que a modernidade criou para o sujeito foi
o fato de não poder contar mais com a figura do pai protetor onipotente, isto é, “o
pai não garante mais nada em termos de proteção subjetiva.” (Birman, 2001,
p.157). Foi isso que Freud mostrou em o Mal-estar na civilização (1930),
caracterizando o mal-estar na civilização como uma nostalgia do pai e um apelo à
proteção do pai, presentes em qualquer sofrimento neurótico, em qualquer
imaginário neurótico. O que está em jogo aqui é algo da ordem do masoquismo: o
apelo à proteção do pai como forma de proteção contra o desamparo é um traço
masoquista fundamental.
3.4. O masoquismo como figura da servidão: uma proposta para
pensar a questão do pânico na atualidade.
Os debates atuais a respeito das novas formas de mal-estar nas
subjetividades contemporâneas, como mostramos até agora, apontam para o
deslocamento da ordem paterna como referencial central e de seus efeitos no
sujeito. Pelo viés da interface entre psicanálise, cultura e política, o livro
Soberanias, organizado por Márcia Arán (2003), reúne trabalhos psicanalíticos
interessantes que giram em torno desses debates atuais, convidando-nos a um
percurso multidisciplinar e à reflexão sobre os novos desafios que essas questões
impõem à clínica psicanalítica.
Diante do deslocamento desse modelo soberano, o qual tinha como referência organizadora um eixo vertical e simbólico baseado principalmente na ordem paterna, discutem-se, por um lado, as modalidades subjetivas que fazem do masoquismo, da violência e da servidão uma forma de tentar evitar o desamparo no mundo atual e, de outro, as novas formas de padecimento expressas por meio da bulimia, da anorexia, da compulsão e adicção, do pânico e das disposições depressivas. (p.13; os grifos são meus).
Sob esse prisma, o masoquismo aparece como um dos efeitos dos modos
de subjetivação contemporâneos, como uma das formas de evitamento do
170
desamparo contemporâneo que, como vimos, tornou-se radical. De que maneira o
masoquismo se relaciona com o pânico?
Em torno dessas questões, Birman (2003) enfatiza que
... com a derrocada da centralidade e da unicidade da soberania e a multiplicação dos pólos de poder, produziu-se um impasse fundamental no qual as subjetividades tiveram de tecer laços sociais horizontais, confrontando-se com o desamparo. Diante da impossibilidade desse confronto, passaram seja a verticalizar o campo das relações horizontais em busca de proteção, seja a conviver com o pânico da ausência de referência soberana, tendo como resultado a disseminação do desalento e do mal-estar nas relações com o outro. (...) Freqüentemente as individualidades tratam as relações horizontais de poder segundo a lógica da verticalidade, no contexto histórico de quebra da soberania centralizada. Não por acaso, disseminam-se relações sadomasoquistas marcadas pelo assujeitamento e pela servidão, nas quais a figura sádica representa o pólo horizontal verticalizado por aquele que demanda proteção. (p.64, 71; os grifos são meus).
Nesse sentido, o pânico pode ser visto como um dos efeitos da desproteção
subjetiva provocada pela derrocada da soberania centralizada153, ou seja, o
descentramento da figura do pai154. Dito de outra maneira, o pânico pode ser
entendido como um dos efeitos da situação traumática155 em que a subjetivação
torna-se um processo de sujeição. O pânico, na atualidade, pode ser entendido
como um dos efeitos das “subjetividades que tiveram de tecer laços sociais
horizontais, confrontando-se com o desamparo” e o mal-estar na relação com o
outro.
No pânico há um pedido de amor desesperado, de reconhecimento,
dirigido ao pai protetor onipotente e transcendente, ao pai pré-histórico, o único
que pode libertá-lo de sua terrível vivência de estar morrendo. O pânico constitui-
se num apelo do sujeito para não ser abandonado a seu próprio desamparo, apelo
esse que, no circuito pulsional, diz respeito à ativação do masoquismo primário,
como veremos mais à frente.
153 Vide p.160. 154 A mudança do “elo social vertical (pai orientado)” para o “elo social horizontal”, foi um dos temas muito discutidos no Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, entre 30 de outubro e 2 de novembro de 2003, no auditório do Hotel Glória, Rio de Janeiro. 155 Lembremos que as subjetividades contemporâneas se caracterizam pela fragilidade dos mecanismos simbólicos que poderiam nos proteger e, nesse sentido, estamos expostos a traumas regulares (Vide p. 159).
171
Pereira (1999) afirma que a respeito da relação entre desamparo e pedido
de amor que há no pânico,
... em seu desespero, o paciente parece se dirigir diretamente a uma instância divina, onipotente e transcendental, que ele supõe ser a única capaz de libertá-lo de sua terrível vivência de estar morrendo. (...) No pânico, a relação intrínseca entre desamparo e pedido de amor mostra-se de modo incontestável. Apenas a demanda não está endereçada a um outro humano em particular mas, antes de tudo, ao Grande Fiador transcendental da existência. (grifos do autor) (...) O sujeito acometido pelo pânico é, como pudemos ver, alguém em falta de um protetor, de um ser benevolente, poderoso e imortal que sustente a vida contra os perigos inimagináveis que a ameaçam. Toda sua existência é condicionada à presença em pessoa desse Outro propício. (p.264, 268; grifos meus).
Tendo em vista que, na atualidade, os sujeitos passaram a verticalizar o
campo das relações horizontais em busca de proteção diante da impossibilidade do
confronto com o desamparo, o pânico aparece como ausência de referência
soberana156 e como um apelo de amor desesperado para que o outro ocupe esse
lugar de referência soberana, do Grande Fiador transcendental157 de sua
existência.
A partir de uma perspectiva psicanalítica e sob o ponto de vista das
subjetividades dos sujeitos que sofrem de pânico, produz-se a descoberta, no
sentido de uma “terrível revelação”, de que se realmente não há garantias para
nada, se ninguém pode nos proteger contra todos os possíveis, “a morte, a
tragédia, o pior existem e podem acontecer comigo, sem que ninguém possa fazer
nada!”(Pereira, 1999, p.267) É dessa forma, que os sujeitos acometidos pelo
pânico interpretam a morte ou eventos trágicos com pessoas que lhes são caras158
e, em geral, “os compreende assim: ‘se até com eles o trágico aconteceu, por que
não haveria também de acontecer comigo?’ Ou ainda, ‘se ele que me garantia vier
a desaparecer, então quem me protegerá? Meus Deus, ele também é mortal!”
(Pereira, 1999, p.267). Como dissemos anteriormente, o sujeito que sofre de
pânico, até então, acreditava-se acima da finitude159.
156 Lembremos que Pã é um deus da imanência. 157 Um apelo ao pai Hermes que cuidava da transcendência. 158 Acidentes, doenças ou situações de perda com pessoas que lhes são significativas afetivamente. 159 Vide p.160.
172
O sujeito sente desabar, subitamente, uma confiança que tinha no “poder
do outro”, confiança e poder que “nunca colocara de fato em questão.” Entretanto,
essa revelação não traz nenhum proveito subjetivo: o sujeito “nada compreende e
simplesmente mergulha no desespero. Passa a suplicar para que o salvem, que o
protejam, que o aliviem. Implora por presença, por reasseguramento e por
garantias.” (Pereira, 1999, p.267).
Sob esse prisma, a existência do sujeito acometido pelo pânico pode se
transformar em assujeitamento na relação com o outro, em que ocupa a posição de
submissão como forma de refúgio contra o desamparo, contra a ameaça da perda
do amor. O pânico coincide com o masoquismo. A pessoa cultua o outro,
submete-se a um outro qualquer, dando-lhe o direito de fazer o que quiser com seu
corpo e sua alma, desde que esse outro a proteja de uma situação de desamparo.
Nesse quadro, a idéia que desenvolvemos – do pânico na atualidade, como
uma das expressões do mal-estar contemporâneo, como uma das respostas às
exigências dos ideais da cultura atual – desdobra-se numa articulação com o
masoquismo como figura de submissão e assujeitamento e não,
fundamentalmente, pelo prazer com a dor. No evitamento da condição
fundamental de desamparo, na ameaça da perda do amor, o sujeito acometido pelo
pânico acaba por ocupar a posição de servidão na relação com o outro.
Fortes (2003), em O masoquismo: uma figura da servidão, apoia-se em
autores como Birman e propõe que uma
... análise do masoquismo como figura de servidão significa observar que o fundamental nessa categoria psíquica não é que o sujeito masoquista sinta prazer com a dor, mas que ocupe posição de humilhação e assujeitamento na relação com o outro. Gozar com a dor não é o que determina o masoquismo (...) O cerne dessa experiência é o sujeito ocupar a posição de servidão, ou seja, a dor é uma resultante e um desdobramento da posição servil diante do outro, mas não com o objetivo que o sujeito pretende na configuração pulsional do masoquismo. (p.76; os grifos são meus).
Entendemos assim, que o masoquismo na cena social atual, diz respeito a
uma das formas que o sujeito encontrou de proteger-se contra o desamparo
radical, implicando em efeitos sob a forma de um pacto: ‘você me protege do
desamparo e em troca eu me submeto à qualquer coisa’ (posição de servidão ao
outro). Disso decorre que há um pacto masoquista subjacente à experiência do
173
sujeito contemporâneo, portanto, subjacente às formas de sofrimento, ao mal-
estar atual. Quando o sujeito que sofre de pânico condiciona sua existência à
presença em pessoa do Grande Fiador Transcendental, seus laços com o outro
implicam num pacto desse tipo.
Segundo Fortes (2003),
... a ausência de lugares previamente definidos para os agentes sociais faz com que estes entrem na lógica empobrecida do circulo do senhor e do escravo, ou seja, o masoquismo é um elemento-chave para compreender os laços sociais de hoje, que se formam em função da necessidade de buscar no outro algum amparo diante do enorme sentimento de desproteção que acomete as pessoas. (p.78; os grifos são meus).
O pânico, na atualidade, é tanto a expressão máxima do ponto a que pode
chegar esse sentimento de desproteção que acomete as pessoas, como é expressão
radical da submissão masoquista a que o sujeito pode chegar como forma de
proteção contra as incertezas da vida.
Com relação à importância do masoquismo na compreensão dos laços
sociais contemporâneos, em Uma breve leitura do sintoma social dominante na
atualidade (2003), Peixoto Junior enfatiza que “o pacto social masoquista se
realiza, portanto, às custas de uma enorme humilhação da auto-estima. As
diferentes expressões desse pacto evidenciam uma relação sadomasoquista entre
os personagens que a ele aderem em busca de alguma identidade, ainda que
ilusória e alienante.” (p.154).
Nesse sentido, a experiência de submissão ao outro remete-nos, novamente
à questão do pai, ou seja, “o lugar do pai na experiência da submissão
masoquista”, como enfatiza Birman (2001, p.156) e que, no caso do pânico, tem o
teor do Grande Fiador de sua existência.
Para esse autor,
... as formas típicas de subjetivação contemporâneas são tentativas neuróticas e perversas para restaurar a ação, num plano imaginário, através de um gozo masoquista – e certamente sem saída – de uma figura de pai todo-poderoso, que proteja ao sujeito para poder viver e oferecer um destino para o seu desamparo. Com isso, impede, evidentemente, o sujeito de ter que inventar novas formas de vida diante do contexto histó-rico em que está colocado. (p.157-9; os grifos são meus).
174
Dessa maneira, diante do desamparo radical, o sujeito pós-moderno abre
mão de seu bem maior: a liberdade, pois em troca de uma segurança ilusória, ele
se oferece como escravo. Essa posição de servidão caracteriza uma condição de
extrema miséria psíquica, na medida em que o sujeito está inserido na proteção da
onipotência narcísica, no registro do ego ideal e não arrisca o imprevisível, ou
seja, não se aventura na experiência da castração160. Ele se submete aos seus
iguais, em laços sociais tecidos horizontalmente segundo a lógica da verticalidade.
Desse modo, “diante das angústias despertadas pelo exercício da singularidade do
desejo, o sujeito se eclipsa e se submete ao conforto da posição masoquista.”
(Birman, 2001, p.228).
Recordemos que Freud (1924) postula a existência de um masoquismo
primário, originário e erógeno em todos os seres humanos explicado,
principalmente, com base na fusão e desfusão161 das pulsões. Na luta entre a
pulsão de vida e a pulsão de morte, a libido tem o objetivo de tornar inócua a
pulsão destruidora desviando-a em grande parte para fora, no sentido de objetos
do mundo externo. Uma parte dela é colocada a serviço da função sexual; é o
sadismo propriamente dito. Outra parte permanece dentro do organismo “e com o
auxílio da excitação sexual acompanhante descrita acima, lá fica libidinalmente
presa. É nessa porção que temos de identificar o masoquismo original, erógeno.”
(p.204). O autor continua, dizendo que:
... a pulsão de morte operante no organismo – sadismo primário – é idêntica ao masoquismo. Após sua parte principal ter sido transposta para fora, para os objetos, dentro resta como um resíduo seu o masoquismo erógeno propriamente dito que, por um lado, se tornou componente da libido e, por outro, ainda tem o eu (self) como seu objeto. Esse masoquismo seria assim prova e remanescente da fase de desenvolvimento em que a coalescência (tão importante para a vida) entre a pulsão de morte e Eros se efetuou (...) O masoquismo erógeno acompanha a libido por todas as suas fases de desenvolvimento e delas deriva seus revestimentos cambiantes. (Freud, 1924/1980, p.205).
Dessa maneira, Freud (1924) apresenta o masoquismo erógeno em
referência à pulsão de morte, como um meio de impedir a satisfação imediata da
160 Vide p.160.
175
pulsão de morte, ou seja, de impedir a auto-destruição. Sob esse prisma, o autor
confere uma positividade ao masoquismo erógeno. Nesse contexto, ele não é da
ordem da patologia, mas do originário.
Note-se que se trata de um momento mítico como o recalque originário.
Ambos são articulados nos primórdios da constituição psíquica, assim como o
desamparo original. Embora Freud não coloque dessa forma, como fruto de nossa
pesquisa, postulamos a hipótese de que recalque primário, desamparo primordial e
masoquismo erógeno fazem parte de um campo conceitual comum fundante do
psiquismo. O masoquismo original, portanto, está ligado à estruturação do
psiquismo e indica a possibilidade da dimensão erótica e da sublimação no
psiquismo.
Entretanto, Freud (1924) coloca que
... em certas circunstâncias, o sadismo, ou pulsão de destruição, antes dirigido para fora, projetado, pode ser mais uma vez introjetado, voltado para dentro, regredindo assim à sua situação anterior. Se tal acontece, produz-se um masoquismo secundário, que é acrescentado ao masoquismo original. (1980, p.205).
Para fugir da condição originária de desamparo, para a qual sabemos não
há saída, o sujeito pode estabelecer com o outro uma relação de servidão figurada
pelos masoquismos moral e feminino. Estas duas outras formas de masoquismo,
para Freud (1924), são fundamentadas no masoquismo erógeno (1980, p.201) e
guardam em si um sentimento de culpa que encontra expressão nas fantasias
masoquistas. (1980, p.203, 207) O masoquismo feminino, como bem sintetiza
Roudinesco (1998), “não concerne especificamente à mulher, mas visa a posição
feminina compartilhada pelos dois sexos, e o masoquismo moral, a psicanálise
deu o nome de sentimento (inconsciente) de culpa.” (p.682).
No momento, não é nosso foco, discorrer sobre as formas de masoquismo
descritas por Freud, mas apenas marcar que essas formas se constituem em
patologias como modalidades de identificação fálica do sujeito face ao confronto
com o desamparo e o masoquismo erógeno. O que está em jogo aqui é a posição
masoquista do sujeito em relação à mãe fálica, onipotente, não-faltante. A crença
na onipotência do falo não permite a assunção do desejo. Essa é a dimensão da
161 Vide p.98-9.
176
No que tange ao pânico, entendemos que o sujeito está aprisionado e
submisso à figura da mãe fálica162 e com isso não se desloca do registro da
onipotência primordial (do regime do narcisismo, do ideal do ego) e tampouco se
arrisca na aventura da experiência da castração. Protege-se de sua impotência de
base pela ilusão do poder fálico.
Ao trabalhar a questão do “objeto-fiador”163 que há no pânico e, portanto,
na súplica por salvação, proteção e alívio, Pereira (1999) considera que até a
irrupção do primeiro ataque de pânico,
... uma pessoa concreta ou uma situação estável compensavam sua incapacidade de lidar com a falta e com a castração. O indivíduo vivia-se como castrado, mas estava protegido a tal ponto por uma situação favorável, que se dispensava de elaborar subjetivamente a ausência de um pai protetor absoluto. Por vezes, essa situação era sustentada por um “protetor” concreto, mas que até a constatação do risco de seu desaparecimento, nunca havia sido visto efetivamente como mortal. Até o início das crises, a questão do desamparo não se colocara de fato. Quando, subitamente, o indivíduo vê-se confrontado a ela, a ilusão desaba mas nada consegue ser colocado em seu lugar. Não há nenhuma possibilidade de subjetivação da falta de garantias pois essa “descoberta” terrível é feita toda de uma vez. Restam apenas o desespero e o esforço desatinado para “fazer alguma coisa”: a confluência dessas duas tendências materializa-se no pânico. (p.268; os grifos são meus).
O autor explica o apego dependente e concreto a alguém ou situação
estável – que cumpre o papel do Grande Fiador da estabilidade do mundo
daqueles que sofrem de pânico – como compensação para a incapacidade de lidar
com a falta e a castração. Nesse sentido, o sujeito em pânico não fala,
efetivamente, em seu nome, mas em nome da mãe fálica, em nome da manutenção
do poder fálico da figura materna, o que culmina na manutenção da relação
incestuosa com a figura da mãe. Em conseqüência disso, o sujeito protege-se do
impacto simbólico da castração paterna (lei do pai), evitando a experiência
simbólica da castração. O Grande Fiador tem uma dimensão maternal: o pai é
162 Vide p.50 e 59, a respeito do longo e lento processo de desilusão, ao qual a criança deve passar. Se realizado por uma função materna adequada, permite que a descoberta do desamparo possa ser uma experiência tolerável. 163 Vide p.163.
178
evocado em sua dimensão de protetor, o que preserva a aspiração à mãe carinhosa
onipotente e mantém afastadas as exigências e interdições do pai.
Como coloca Pereira (1999),
As aspirações incestuosas ao carinho da mãe e à proteção reasseguradora do pai vêem-se sintomaticamente conservadas nessas situações. Todos os gozos do sujeito passarão, a partir de então, pela reafirmação do amor e, sobretudo, pela presença indefectível desse deus particular. Desse ponto de vista, a dimensão “maternal” do fiador é completamente evidente. Ele materializa este aspecto da função materna que nunca pôde ser simbolizado e, portanto, abandonado enquanto realidade concreta: o da mãe carinhosa onipotente que protege o pequeno contra um mundo cruel e imprevisível. Não podendo ser simbolizada, esta referência materna deve persistir enquanto realidade concreta.
O pai é igualmente evocado em sua dimensão de protetor. No entanto, o aspecto castrador da função paterna, aquele que separa a criança da mãe, está afastado pela própria estrutura do sintoma: o sujeito não se vê ameaçado pela castração dado que é já alguém completamente frágil e impotente. Portanto, o pânico preserva a legitimidade da aspiração à mãe terna ao mesmo tempo que mantém afastadas as exigências e as interdições paternas. Estes gozos incestuosos velados constituem ao que tudo indica, uma das mais importantes fontes de resistência durante a análise de tais pacientes. Desse modo, a figura idealizada do pai é também entronizada no lugar de uma função paterna falha. Este substituto é interpelado como um agente de garantias para tudo o que a linguagem, por sua natureza, não pode garantir. (p.270-1; os grifos são meus).
Note-se que, para esse autor, há uma ‘função paterna falha’ no pânico, que
é compensada pela ‘idealização do pai’, ou seja, pela colocação do objeto de amor
no lugar do ideal, como desenvolvemos no capítulo anterior164. Dissemos165 que a
idealização do objeto é mantida por uma hipercatexia do ego e à expensas dele, o
que implica no seu empobrecimento e enfraquecimento. Nesses casos, o vínculo
libidinal do ego com seu ideal é frágil e as catexias libidinais podem cessar a
qualquer momento. A energia ligada torna-se energia livre e o afluxo pulsional é
excessivo e caótico: a situação traumática instala-se. Esse momento refere-se à
descoberta da realidade nua e crua do desamparo que até então estava encoberta.
164 Vide p.85. 165 Vide p.85 e 92.
179
Clinicamente, o pânico é expressão dessa ‘função paterna falha’, na medida em
que sua motivação básica é o rompimento com o ideal.
Ao mesmo tempo há uma ‘função paterna’, que mesmo ‘falha’ se fez ou se
faz, o que reforça a especificidade do ideal do ego em relação ao superego e
explica como pode haver um rompimento, especificamente, com o ideal e não
com o superego166. Essa questão remete-nos também à relação conflituosa, à
tensão entre o ego e o superego expressa pelo sentimento de culpa e às suas
relações com a angústia167, portanto, com o pânico. Parece-nos que por meio do
pânico o sujeito tenta suprir essa função paterna falha, exatamente como ocorre
com as formas de subjetivação expressas no mal-estar contemporâneo.
Entretanto, as alianças incestuosas custam muito caro ao sujeito. Custam-
lhe marcas que não se dissipam, marcas na dimensão erótica, marcas no registro
do desejo. Como dissemos168, anteriormente, no circuito pulsional, o sujeito
constitui uma relação de submissão à figura da mãe fálica, portanto, inscrevendo-
se num registro masoquista. O sujeito em pânico submete-se à onipotência da mãe
fálica como forma de se proteger do desamparo. Contudo, o pai é igualmente
evocado em sua dimensão de protetor e, nesse sentido, o apelo à proteção do pai
como forma de proteção contra o desamparo é um traço masoquista fundamental.
Pereira (1999) relata que na experiência clínica com pessoas que sofrem de
pânico é manifesto, particularmente, “o mito de um paraíso perdido” em que a
“perda do paraíso não é concebida como definitiva e sem apelo mas, ao contrário,
como algo de potencialmente reversível. O paraíso permanece algo passível de ser
atingido.” (p.271). Essa passagem exemplifica a idéia de que o sujeito que sofre
de pânico mantém-se no registro da onipotência narcísica, deixando-se encobrir
pela imagem do falo como função de tamponar sua insuficiência de base, ou seja,
o não-confronto com a condição fundamental de desamparo, com a incapacidade
de lidar com a falta e a castração.
Contudo, mesmo preso numa promessa mortífera (pois no aprisionamento
masoquista não há a assunção do desejo), há um gozo que o sujeito experimenta e
com isso tem um ganho secundário. Ao se colocar na posição de vítima, não se
responsabiliza por seu desejo, por sua existência, reafirmando sua posição como
166 Vide p.80. 167 Vide p.106-7. 168 Vide p.167 e 169.
180
alguém completamente frágil e impotente, portanto, longe da ameaça da castração
e da perda do amor.
Nesse sentido, ainda sobre a experiência clínica com esse sujeito, o autor
enfatiza que
... certas manifestações de raiva e violência observadas durante a análise desses sujeitos manifestam a revolta contra uma situação ou um objeto vivenciado como o verdadeiro culpado da situação atual de “exílio” em que se vê. Diferentemente do que observamos em outras situações psicopatológicas, esses pacientes não se sentem particularmente culpados por não se verem numa situação de felicidade absoluta mas, ao contrário, vítimas de um destino cruel que poderia ter sido diferente. (Pereira, 1999, p.271; os grifos são meus).
Essas considerações remetem-nos às colocações de Freud (1923) a respeito
da “reação terapêutica negativa”, que expressam o aferramento do sujeito ao
sintoma e ao sofrimento:
... existe algo nessas pessoas que se coloca contra o seu restabelecimento, e a aproximação deste é temida como se fosse um perigo.(...) Se analisarmos essa resistência (...) revela-se como o mais poderoso de todos os obstáculos à cura, mais poderoso que os conhecidos obstáculos da inacessibilidade narcísica, da atitude negativa para com o médico e do apego ao ganho com a enfermidade. Ao final, percebemos que estamos tratando com o que pode ser chamado de fator ‘moral ‘, um sentimento de culpa, que está encontrando sua satisfação na doença e se recusa a abandonar a punição do sofrimento.(...) enquanto o paciente está envolvido, esse sentimento de culpa silencia; não lhe diz que ele é culpado; ele não se sente culpado, mas doente. Esse sentimento de culpa expressa-se apenas como uma resistência à cura que é extremamente difícil. (p.65-6; os grifos são meus).
Em 1924, Freud junta essa questão ao prazer no sofrimento e na
humilhação, apontando o masoquismo moral como o próprio sentimento de culpa
‘ruidoso’ que há por trás de toda neurose, ou seja, ao valor dado ao sofrimento que
as neuroses acarretam para a tendência masoquista. Nesses casos, diz Freud
(1924),
... deparamos com pacientes a quem, devido ao seu comportamento perante a influência terapêutica do tratamento, somos obrigados a atribuir um sentimento de culpa
181
“inconsciente”. Apontei o sinal pelo qual tais pessoas podem ser reconhecidas (uma ‘reação terapêutica negativa’) e não ocultei o fato de que a força de tal impulso constitui uma das mais sérias resistências e o maior perigo ao sucesso de nossos objetivos médicos ou educativos. A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o mais poderoso bastião do indivíduo no lucro (geralmente composto) que aufere da doença – na soma de forças que lutam contra o restabelecimento e se recusam a ceder seu estado de enfermidade. O sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista.(...) uma forma de sofrimento foi substituída por outra e vemos que tudo quanto importava era a possibilidade de manter um determinado grau de sofrimento.(...) se abandonarmos o termo ‘sentimento inconsciente de culpa’(...) e falarmos, em vez disso, de uma ‘necessidade de punição’, que abrange o estado de coisas observado de modo igualmente apropriado. (1980, p.207-8; os grifos são meus).
Podemos depreender dessa passagem algumas questões importantes que
sustentam nossa idéia relativa às relações entre masoquismo e pânico, na
atualidade. A primeira delas refere-se a que tanto no masoquismo como no pânico
há um aparente afrouxamento com a sexualidade.
Pereira (1999) enfatiza que “a noção de desamparo articula as dimensões
de morte e de sexualidade de maneira inseparável.” (p.273). Com isso quer
mostrar que a vivência de abandono e desamparo que há no pânico
... não se dá simplesmente pelo encontro vazio e abstrato com a dimensão de falta de garantias, mas com a falta de garantias em face das próprias pulsões sexuais e destrutivas.(...) Sexualidade e abandono são duas faces da mesma moeda do desamparo.(...) (grifos meus) Nessa mesma operação (no pânico), ele se reconcilia com o pai mau e castrador das questões edípicas, protegendo-se assim de seu próprio desamparo em face da crueldade do rival onipotente.(...) o pânico permite que o sujeito assuma uma posição infantil aparentemente “dessexualizada”, necessitando de coisas mais urgentes, como a própria sobrevivência. (grifos meus) O pânico protege, através do desespero, dos perigos da sexualidade. (1980, p.274; grifos do autor).
É exatamente essa questão que Freud (1924) trabalha no masoquismo
moral: o aparente afrouxamento com a sexualidade.
O fato do masoquismo moral ser inconsciente nos leva a uma pista óbvia. Podemos traduzir a expressão “sentimento inconsciente de culpa” como significando uma necessidade de
182
punição às mãos de um poder paterno.(...) a consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a dessexualização do complexo de Édipo; através do masoquismo moral, porém, a moralidade mais uma vez se torna sexualizada, o complexo de Édipo é revivido e abre-se caminho para uma regressão, da moralidade para o complexo de Édipo. Isso não é vantajoso nem para a moralidade nem para a pessoa interessada.(...) o masoquismo cria uma tentação a efetuar ações ‘pecaminosas’ que devem então ser expiadas pelas censuras da consciência sádica... ou pelo castigo do grande poder parental do Destino. A fim de provocar a punição desse último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez destruir sua própria existência real. (p.211; os grifos são meus).
Para Freud (1924), o prolongamento inconsciente da moral (culpa) e o
masoquismo moral são frutos da relação entre o ego e o superego, e “em ambos os
casos o que está envolvido é uma necessidade que é satisfeita pela punição e pelo
sofrimento.” (1980, p.210). A diferença está no fato de que a culpa se articula
mais especificamente, às demandas do o superego, enquanto que o masoquismo,
ao ego. Na culpa, o ego “se submete” ao superego enquanto que no masoquismo,
o ego “deseja essa submissão”. Lembremos que o sentimento de culpa nada mais
é do que uma variação topográfica da angústia, que em suas fases posteriores de
transformação, coincide completamente com o medo do superego. Por outro lado,
o masoquismo remonta à dimensão erótica, ao campo do desejo: é a primeira
posição que o sujeito ocupa no circuito pulsional.
... a diferença existente entre uma extensão inconsciente da moralidade e o masoquismo moral. Na primeira, o acento recai sobre o sadismo intensificado do superego a que o ego se submete; na última, incide no próprio masoquismo do ego, que busca punição, quer do supergo quer dos poderes parentais externos. (Freud, 1924/1980, p.210).
O masoquismo e a culpa são duas modalidades diferentes da mesma
relação entre o ego e o superego, ou seja, da necessidade que o ego sente da
punição infligida pelo superego. Na culpa, trata-se do superego como herdeiro
direto do complexo de Édipo, do “Imperativo Categórico de Kant”, do resultado
de uma identificação que chegou à dessexualização das relações objetais
edipianas. No masoquismo moral, trata-se da oposição ao movimento regressivo
183
suplementam-se mutuamente e unem-se para produzir os mesmos efeitos.” (1980,
p.211-2; grifos do autor).
A respeito da agressividade e da satisfação pulsional frustrada, o autor
esclarece que
... podemos supor que essa parte do impulso destrutivo que se retirou, aparece como uma intensificação do masoquismo. Os fenômenos da consciência, contudo, levam-nos a inferir que a destrutividade que retorna do mundo externo é também assumida pelo superego, sem qualquer transformação desse tipo, e aumenta seu sadismo contra o ego. O sadismo do superego e o masoquismo do ego suplementam-se mutuamente e se unem para produzir os mesmos efeitos. Só assim, penso eu, podemos compreender como a supressão de uma pulsão pode, com freqüência ou muito geralmente, resultar em um sentimento de culpa e como a consciência de uma pessoa se torna mais severa e mais sensível, quanto mais se abstém da agressão contra os outros. (Freud, 1924/1980, p.212; os grifos são meus).
Entendemos que no pânico estamos lidando com um superego feroz, cruel
e sádico, que ao contrário de estabelecer barreiras para a satisfação pulsional
desregrada, ele a fomenta, tomando para si a força pulsional para aumentar sua
tirania ao ego. Nesse modo de sofrimento, parece que há um engrandecimento da
vertente feroz e cruel do superego em detrimento da vertente relativa à função de
agente da lei no psiquismo. Ou seja, o superego feroz e sádico não estabelece
limites adequados para um bom funcionamento psíquico, segundo as regras do
princípio de prazer; ao contrário, impõe ao psiquismo um modo de agir que
desconsidera o desejo e a singularidade.
O sadismo do superego e o masoquismo do ego suplementam-se. É a força
da destrutividade, da pulsão de morte. Lembremos que o superego é resultado do
recalcamento da agressividade própria, fruto da desfusão pulsional, assim como “a
pulsão de morte operante no organismo – sadismo primário – é idêntico ao
masoquismo.” (1980, p.205). O masoquismo é a prova da coalescência das
pulsões e, ao mesmo tempo, a certeza da existência de uma tendência que tem
como objetivo a autodestruição.
O pânico é um modo de padecimento em que o desejo do sujeito é
massacrado pelas injunções superegóicas, acabando por não se manifestar. Seu
185
apelo ao amor do outro tem como condição a proteção do desamparo, o que acaba
por condicionar sua existência à presença do Grande Fiador Transcendental. É
inegável a posição de servidão a esse senhor.
Essa situação tem ponto de âncora na cena social atual. Lembremos que as
psicopatologias atuais caracterizam-se pelos mesmos elementos que constituem o
homem contemporâneo: o imperativo categórico de agir a qualquer preço somado
à precariedade de referências subjetivas. Dessa maneira, há a produção de
modalidades subjetivas que fazem do masoquismo, da violência e da servidão
meios de proteção contra o desamparo radical do sujeito na contemporaneidade e,
nesse sentido, o pânico é uma das formas de padecimento como efeito desse
quadro, podendo, portanto, ser entendido como um processo de produção social.
As relações entre superego e a quantidade dos impulsos destrutivos são
determinantes na saúde dos homens tanto quanto no desenvolvimento cultural.
Para o indivíduo, em última instância, estão em jogo seus conflitos internos, mas,
para a humanidade, se as adaptações adquiridas pela espécie não forem
suficientes para lidar com as dificuldades surgidas, o que será dela? Lembremos
Freud (1938):
... quando o superego se estabelece, quantidades consideráveis do impulso destrutivo fixam-se no interior do ego e lá operam autodestrutivamente. Este é um dos perigos para a saúde com que os seres humanos se defrontam em seu caminho para o desenvolvimento cultural. Conter a agressividade é, em geral, nocivo e conduz à doença (à mortificação). (...) é possível suspeitar que, de uma maneira geral, o indivíduo morre de seus conflitos internos, mas que a espécie morre de sua luta mal sucedida contra o mundo externo se este mudar a ponto de as adaptações adquiridas pela espécie não serem suficientes para lidar com as dificuldades surgidas. (1980, p.175; grifos do autor).
Como tornar tolerável a experiência do desamparado?
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta geral desse estudo foi contextualizar o pânico, na atualidade, a
partir do referencial freudiano. Nesse sentido, nosso objetivo principal foi
articular o que Freud denominou de “mal-estar na civilização” às psicopatologias
contemporâneas, examinando a relação da incidência da sintomatologia do pânico
com os modos de subjetivação na atualidade.
Para tanto, partimos da hipótese sugerida por Pereira (1999) de que o
desamparo constitui para Freud uma noção metapsicológica capaz de delimitar as
bases psicopatológicas do fenômeno do pânico, segundo uma perspectiva
psicanalítica. Dessa maneira, a noção freudiana de Hilflosigkeit foi nosso operador
metapsicológico fundamental, que permitiu o entendimento do pânico como uma
manifestação clínica do desamparo e como uma das expressões do mal-estar que
marca, na atualidade, a relação do sujeito com a cultura.
No desenrolar de nosso estudo, pudemos mostrar que o pânico faz parte de
uma gama de diferentes formas do afeto de angústia, distinguíveis entre si, e que
constituem, na visão de Freud, o campo do angustiante: das Angstlichen. Sob esse
ponto de vista metapsicológico, vimos que o pânico corresponde ao afeto de
angústia despertado pelo confronto súbito do sujeito com a condição fundamental
de desamparo que, até então, estava enuviada.
O pânico atesta que o sujeito não conseguiu subjetivar a condição de
desamparo. Trabalhamos com a hipótese de que a função materna não foi
suficientemente adequada, a ponto de permitir que a criança passasse por um lento
e progressivo processo de desilusão e de subjetivação de um mundo que não
corresponde àquele que ela imaginava (onipotência narcísica), portanto, que
permitisse que a descoberta da realidade do desamparo pudesse ser uma
experiência tolerável.
O pânico, portanto, diz respeito à angústia despertada pelo desabamento da
ilusão de um ideal protetor onipotente, que garantia a estabilidade do mundo
psíquico organizado longe de incertezas, da falta de garantias e de indefinições. O
pânico é uma das possibilidades afetivas que o sujeito encontrou no enfrentamento
da condição de desamparo fundante e insuperável na constituição da vida
psíquica.
187
Contudo, o desamparo também é o motor da civilização. O homem ergueu
a civilização numa tentativa de diminuir seu desamparo diante das forças da
natureza, dos enigmas da vida e sobretudo da própria morte. O desamparo no
campo social refere-se à falta de garantias do sujeito no mundo, que é obrigado a
uma renúncia pulsional como condição de viver em sociedade. Para Freud, a
relação do sujeito com a cultura é marcada por um mal-estar (Unbehagen), pois é
permeada pelo antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as
restrições da civilização.
Tendo em vista que a construção do psiquismo se dá no entrelaçamento
entre a pulsão e a cultura, o sintoma, na concepção freudiana, apontando para a
dimensão da subjetividade, traz em si uma mensagem do conflito individual,
familiar e social do ser humano. Nesse sentido, as formações de sintomas são, em
última instância, uma maneira que o sujeito encontra de se organizar dentro de um
grupo.
Portanto, o pânico seria expressão de um modo que o sujeito encontrou de
se organizar na sociedade contemporânea, respondendo aos subsídios que a
organização social atual oferece para que ele se sustente para além da cena
familiar. Essa hipótese é pertinente, na medida em que Freud se refere ao
fenômeno do pânico, por um lado, como um fenômeno do campo da angústia e,
por outro, como algo advindo de uma estrutura de relação de grupo.
Sob esse prisma, a construção da identificação e dos ideais, seja do
indivíduo, seja do grupo, é marcada por processos subjetivos que devem ser
desenvolvidos para que sejam mantidas tanto a organização individual quanto a
organização social que, para Freud, têm como referencial central, como
organizador simbólico, a ordem paterna. Esses processos se dão entre duas formas
de existência da subjetividade: entre os registros do narcisismo (ego ideal/amor de
si) e da alteridade (ideal de ego, superego/amor de outro).
Por conseguinte, para Freud, os ideais orientam os laços sociais
sustentados pelo desejo e pelas identificações e, nesse sentido, a construção dos
laços sociais é um efeito da problemática do indivíduo em relação aos ideais e às
identificações, portanto, em relação aos processos narcísicos e alteritários. O
sujeito oscila entre os pólos do narcisismo e da alteridade, o que configura duas
modalidades conflitantes de subjetividade: autocentrada e descentrada.
188
Entretanto, mostramos que a cena social atual oferece poucas
possibilidades para experiências de alteridade, na medida em que os ideais da
cultura contemporânea, que têm como valores soberanos a glorificação do eu e a
estetização da existência, incitam o sujeito para o pólo do narcisismo, da
subjetividade autocentrada, ficando o mesmo restrito e aprisionado em si mesmo.
Quando a alteridade vai cedendo lugar para o narcisismo, vão se configurando
modos hegemônicos de produção de subjetividade. Não há lugar para diferenças.
O sujeito “pós-moderno” forja uma identidade imaginária em que, nas
identificações imaginárias, parte de si para si mesmo, tendo, como conseqüência,
uma referência autônoma e independente da maneira como é visto pelo outro. As
formações imaginárias causam o impacto de uma falsa realidade, poupando os
sujeitos da dúvida e da incerteza e congelando seus afetos e pensamentos.
As subjetividades contemporâneas caracterizam-se pelo apagamento da
alteridade, em que a tendência é uma redução do homem à dimensão da imagem.
Há uma ênfase no “exterior” em detrimento do “interior”: o que interessa é o
brilho, a cena, o espetáculo, o sucesso a qualquer preço, a imediatez, a capitação
narcísica do outro. Em conseqüência disso, as relações sociais são,
predominantemente, regidas pelo imaginário, constituindo-se uma subjetividade
em que há o deslocamento da ordem paterna como referencial central. Esse
quadro provoca efeitos no sujeito, efeitos nos modos de subjetivação, que
apontam para a fragilização dos vínculos sociais, dos laços mútuos e da
constituição e permanência dos grupos.
Demonstramos que as formas de sofrimento manifestadas pelos sujeitos
são indissociáveis das transformações que remodelam o campo social. A
modernidade, na sua máxima radicalização – o excesso de ordem e a escassez de
liberdade –, “re-configurou” o mal-estar. O mal-estar contemporâneo é efeito da
desregulamentação e do excesso de liberdade individual (privatização), é fruto do
excesso pulsional e da fragilidade de simbolização. Nesse sentido, tem uma marca
essencialmente traumática, o que aponta para a vulnerabilidade psíquica do
homem contemporâneo, assim como destaca o pânico entre os modos atuais de
sofrimento humano.
Dessa maneira, as condições atuais do mal-estar na civilização dizem
respeito ao vazio existencial produzido pela destruição da narrativa: o sujeito
contemporâneo está à mercê da solidão e do vazio. No cume desse quadro, o
189
desamparo do sujeito tornou-se agudo, assumindo formas radicais como o pânico,
por exemplo, que irrompe quando o sujeito se depara com o abismo terrorífico da
experiência do vazio.
Tendo em vista que a motivação básica do quadro psicopatológico do
pânico é o rompimento com o ideal, o pânico, na atualidade, pode ser visto como
um processo de produção social, pela via do espectro de valores que impera na
sociedade contemporânea. Em outras palavras, os ideais contemporâneos geram
condições de possibilidade para a produção do pânico, na medida em que os
meios culturalmente codificados e legitimados para o sujeito lidar com os
conflitos gerados pela exigência da performance psicológica ideal implicam-lhe o
uso de estratégias na apropriação desses traços, que acabam por conduzi-lo à
psicopatologia. Nesse contexto se insere nossa hipótese, segundo a qual o pânico
expressaria o descompasso entre as exigências do tipo psicológico ideal atual, da
exaltação desmesurada do eu e da estetização da existência, e a incapacidade no
cumprimento dessas exigências.
Desse modo, circunscrevemos o pânico como um modo de padecimento
que expressa o mal-estar na contemporaneidade, entendendo-o como um dos
efeitos do desamparo do sujeito contemporâneo, para quem a experiência de
impotência/desamparo é elevada a um ponto radical.
Na medida em que, na atualidade, os sujeitos passaram a verticalizar o
campo das relações horizontais em busca de proteção diante da impossibilidade do
confronto com o desamparo, o sujeito, na tentativa de evitar o desamparo radical,
pode fazer uso de modalidades subjetivas que privilegiam o masoquismo, a
servidão e a violência. Esse novo ângulo para abordar as questões de nosso
interesse gerou novas linhas de investigação a respeito do quadro psicopatológico
do pânico, com desdobramentos fundamentais relativos à metapsicologia do
pânico, abrindo perspectivas para novas pesquisas.
Nesse sentido, o desenrolar de nosso estudo culminou em duas possíveis
articulações metapsicológicas que se complementam. Para compreendê-las,
lembremos que partimos do pressuposto de que a motivação básica do pânico é o
rompimento com o ideal.
Mostramos que a relação conflituosa entre ego e ideal do ego/superego é
expressa por meio do sentimento de culpa que, nas suas variadas relações com a
angústia, diz respeito tanto ao mal-estar quanto ao medo do superego. Portanto, o
190
sentimento de culpa é fruto das exigências do superego em relação ao ego e das
exigências da civilização voltadas à dominação da agressividade, implícita no ser
humano. Pode acontecer o rompimento do vínculo libidinal que liga,
especificamente, o ego com seu ideal, no caso de o ego não suportar as injunções
superegóicas relativas às exigências dos ideais. Lembremos que estamos
trabalhando com a idéia de que o ideal do ego é uma sub-estrutura do superego.
Nesse sentido, o superego falha na sua função de manter o ideal. Situamos o
pânico como efeito de um aumento do sentimento de culpa que o sujeito não pôde
tolerar. Essa é a primeira articulação metapsicológica de que falamos
anteriormente.
Nesse quadro, o sujeito pode erotizar a culpa como meio de fazê-la
suportável, transformando-a, assim, em fonte de satisfação masoquista. Dessa
maneira, mantém o nível de culpa, investindo-a de maneira masoquista. Esse
movimento atestaria uma falha na organização neurótica do sujeito que sofre de
pânico. Mas, de que falha se trata? Do ponto de vista da culpa, uma neurose pode
ser entendida como uma organização que, por meio da formação de sintomas,
possibilita ao sujeito suportar a culpa ligada a seus desejos edipianos. Parece que,
no caso do pânico, essa estratégia falhou, sendo uma das poucas soluções que
resta ao sujeito é o investimento masoquista.
Entendemos que, no pânico, estamos lidando com um superego feroz,
cruel e sádico que, ao contrário de estabelecer barreiras para a satisfação pulsional
desregrada, fomenta-a, tomando para si a força pulsional para aumentar sua tirania
ao ego. Nesse modo de sofrimento, parece que há um engrandecimento da
vertente rígida e sádica do superego, em detrimento da vertente relativa à sua
função de agente da lei. Ou seja, o superego feroz e sádico não estabelece limites
adequados para um bom funcionamento psíquico, segundo as regras do princípio
de prazer; ao contrário, impõe ao psiquismo um modo de agir que desconsidera o
desejo e a singularidade. E, como conseqüência, acaba por conduzir o sujeito de
volta ao modo de funcionamento psíquico no registro do ego ideal, da onipotência
narcísica, ficando o sujeito assujeitado ao regime do masoquismo primário.
Portanto, o pânico pode ser entendido como um modo de padecimento em
que o desejo do sujeito é massacrado pelas injunções superegóicas, acabando por
não se manifestar. Frente à angústia despertada pelo exercício da singularidade do
desejo, o sujeito se submete à comodidade da posição masoquista.
191
Entretanto, demonstramos que o masoquismo também é uma modalidade
da mesma relação entre ego e superego, ou seja, da necessidade que o ego sente da
punição infligida pelo superego. A diferença está no fato de que a culpa se
articula, mais especificamente, às demandas do superego, enquanto que o
masoquismo, ao ego. Na culpa, o ego “se submete” ao superego; no masoquismo,
o ego “deseja essa submissão”. O masoquismo moral tem a aparência de uma
culpa fundada num superego dessexualizado, mas trata-se, na verdade, do desejo
de punição (que é sexualizado), da satisfação masoquista. O sujeito procura a
própria culpa e se dá a satisfação masoquista da punição. Há uma autopunição
(culpa) infligida pelo superego, mas, na realidade, o que o sujeito visa é a punição
pelo pai (edipiano).
Pudemos mostrar que essa situação tem ponto de âncora na cena social
atual, tendo em vista que o imperativo de agir a qualquer preço, somado à
precariedade de referências subjetivas, leva o sujeito para o regime do
masoquismo, como meio de proteção contra o desamparo radical no mundo atual.
No pânico está em jogo o masoquismo como figura de servidão. Essa é a segunda
articulação metapsicológica.
Dissemos que um dos impasses que a modernidade criou para o sujeito foi
o fato de não poder contar mais com a figura do pai protetor onipotente, ou seja,
que o pai não garante mais nada em termos de proteção subjetiva. Freud
caracterizou o mal-estar na civilização como uma nostalgia do pai e um apelo à
proteção do pai, presentes em qualquer sofrimento neurótico, em qualquer
imaginário neurótico. O apelo à proteção do pai como forma de proteção contra o
desamparo é um traço masoquista fundamental. Sob esse prisma, o pânico
constitui um apelo de amor desesperado para que o outro ocupe esse lugar do
Grande Fiador Transcendental de sua existência.
Ao nos indagarmos a respeito do lugar do pai na experiência da submissão
masoquista, no que tange ao quadro psicopatológico do pânico, entendemos que
tem o teor da presença concreta desse Fiador. A busca da figura do pai originário
para realizar a denegação do desamparo foi a única maneira que o sujeito que
sofre de pânico encontrou para gerir a condição fundamental de desamparo.
Entretanto, em resultado dessa única forma de gestão, o sujeito se insere na
proteção onipotente narcísica, no registro do ego ideal e na recusa do confronto
192
com o imprevisível. Tudo isso custa muito caro ao sujeito, pois, recusando os
impasses da castração, acredita-se acima da finitude.
Quando o sujeito que sofre de pânico condiciona sua existência à presença
em pessoa do Grande Fiador Transcendental, seus laços com o outro implicam
num pacto masoquista: “você me protege do desamparo e em troca eu me submeto
à qualquer coisa.” Como pudemos mostrar, o masoquismo é um elemento
importante para compreendermos os laços sociais contemporâneos. Vimos que,
em conseqüência das modalidades emergentes de subjetivação, que fazem do
masoquismo uma maneira de tentar evitar o desamparo na contemporaneidade,
institui-se a tendência de um pacto masoquista subjacente à experiência do sujeito
contemporâneo.
Por conseguinte, as psicopatologias contemporâneas – como é o caso do
pânico –, podem ser entendidas como defesas fálicas contra o desamparo, no
sentido de que o sujeito se protege de sua impotência de base pela ilusão do poder
fálico, o que tampona a falta e o mantém longe da castração. Entendemos que no
pânico o sujeito está aprisionado e submisso à figura da mãe fálica e, com isso,
não se desloca do registro da onipotência primordial, tampouco se arriscando na
aventura da experiência da castração. O apego dependente e concreto a alguém ou
situação estável – que cumpre o papel do Grande Fiador da estabilidade do mundo
daqueles que sofrem de pânico – é uma compensação para a incapacidade de lidar
com a falta e a castração.
O sujeito que sofre de pânico fala em nome da manutenção do poder fálico
da figura materna, o que culmina na manutenção da relação incestuosa com a
figura da mãe. Em conseqüência disso, o sujeito se protege do impacto simbólico
da castração paterna (lei do pai), evitando a experiência simbólica da castração. O
Grande Fiador tem uma dimensão maternal: o pai é evocado em sua dimensão de
protetor, o que preserva a aspiração à mãe carinhosa onipotente e mantém
afastadas as exigências e interdições do pai.
Em nosso estudo, mostramos que o rompimento com o ideal só é possível
porque o vínculo libidinal do ego com seu ideal é frágil. No pânico, há uma
“função paterna falha” que é compensada pela “idealização do pai”, isto é, pela
colocação do objeto de amor no lugar do ideal. Dissemos que no pânico o objeto
de amor não foi dado como verdadeiramente perdido. Demonstramos que a
193
idealização do objeto é mantida por uma hipercatexia do ego à expensas dele, o
que implica no seu empobrecimento e enfraquecimento.
Clinicamente, o pânico pode ser considerado expressão dessa função
paterna falha. Essa questão reforça nossa hipótese de que há um rompimento,
especificamente, com a função de ideal do superego, corroborando nossa idéia de
que no pânico há uma falha do superego, tendo em vista que, paradoxalmente, o
superego passa a ser fonte de desamparo.
Mostramos que, para Freud, a volta do sadismo contra o ego ocorre
regularmente onde uma supressão cultural das pulsões impede que grande parte
dos impulsos destrutivos do indivíduo, da agressividade, seja exercida na vida. A
satisfação pulsional frustrada pode resultar numa elevação do sentimento de culpa
e isso só é aplicável aos impulsos agressivos. Nesse caso, um aumento do
sentimento de culpa aparece no lugar de uma exigência erótica não satisfeita. Na
trilha do pensamento de Freud, quando uma tendência pulsional que experimenta
o recalque transforma seus elementos libidinais em sintomas, seus componentes
agressivos são transformados em sentimentos de culpa. Na verdade, essas pulsões
recalcadas são transferidas para o superego que as dirige contra o ego sob a forma
de sentimento de culpa. O sadismo do superego e o masoquismo do ego
complementam-se e se unem para produzir os mesmos efeitos.
Freud nos adverte de que as relações entre superego e a quantidade dos
impulsos destrutivos são determinantes na saúde dos homens, assim como no
desenvolvimento cultural. Para ele, em última instância, estão em jogo no
indivíduo seus conflitos internos, mas, para a humanidade, se as adaptações
adquiridas pela espécie não forem suficientes para lidar com as dificuldades
surgidas, o que será de nós?
O atual cenário em que nos inserimos é colorido, muitas vezes de choque e
pavor, de cenas de brutalidade, destruição e violência que provocam indignação,
desilusão e impotência em todos aqueles que se posicionam contra a injustiça,
contra a degradação e a depredação do ser humano. O pânico nos traz a seguinte
questão: como tornar tolerável a experiência do desamparo num mundo
desamparado?
Mais que respostas, essa questão exige nossa atenção para a relação
conflituosa do sujeito com o espaço social em que está inserido. Implica numa
proposta de interlocução entre a psicanálise e outras ciências, como a sociologia,
194
por exemplo, fruto de nosso trabalho, e que abriu possibilidades fecundas para
examinar determinados fenômenos atuais, como o pânico, de um novo ponto de
vista. Apostamos no intercâmbio da psicanálise com a política e a cultura, tendo
em vista que essas relações ampliam, substancialmente, a compreensão das novas
formas de mal-estar nas subjetividades contemporâneas e, com efeito, delineiam
novos desafios impostos por elas à clínica psicanalítica.
Se ignorarmos o contexto social que trabalhamos nesse estudo, corremos o
risco de desconsiderar as relações intrínsecas existentes entre manifestações
legítimas de insegurança social e inseguranças provenientes dos vínculos
primordiais com o outro. Entendemos que é fundamental para nós, psicanalistas,
poder acolher essas questões em nossos consultórios e reinventarmos a prática
clínica, resgatando sua dimensão subversiva. A análise individual pode revelar
máscaras que existem nos comportamentos cotidianos; desmistificar ideais e
ideologias; desnudar as relações sexuais entre sujeitos faltantes e finitos. Nesse
sentido, pode decompor o que preservava o “equilíbrio” (patológico) do
indivíduo. É sob esse prisma, que é possível supor que a análise individual pode
gerar efeitos sociais.
Foi essa a herança que Freud nos deixou:
Numa análise individual, tomamos como nosso ponto de partida o contraste que distingue o paciente do seu meio ambiente, o qual presume ser “normal”. Para um grupo de que todos os membros sejam afetados pelo mesmo distúrbio, não poderia existir esse pano de fundo; ele teria de ser buscado em outro lugar.(...) podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades culturais. (1930/1980, p.169).
Foi preciso que o tempo da desilusão chegasse aos contornos da atualidade
para que as mensagens, difíceis de suportar, que Freud transmitiu em seus textos
culturais – alguns dos quais foram trabalhados nesse estudo – pudessem ser
entendidas, digeridas e se tornassem ferramentas para a constante renovação
metapsicológica.
Nesse contexto, o pânico não poderia jamais ser compreendido,
simplesmente, como uma resposta afetiva de angústia automática. Pelo contrário,
ser tomado de pânico atesta a dimensão de desamparo fundamental sobre a qual se
195
desenrola o funcionamento psíquico. O pânico é um grito de alerta para o
desamparo radical do sujeito contemporâneo.
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