LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO VIOLÊNCIA NO …ª de. de Tese... · O mundo imaginal do adolescente...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ENFERMAGEM LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO VIOLÊNCIA NO QUOTIDIANO DE FAMÍLIAS DE ADOLESCENTES NEGROS: ENFOQUES PARA O CUIDAR DE ENFERMAGEM Salvador 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE ENFERMAGEM

LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO

VIOLÊNCIA NO QUOTIDIANO DE FAMÍLIAS DE ADOLESCENTES

NEGROS: ENFOQUES PARA O CUIDAR DE ENFERMAGEM

Salvador 2009

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LUCIMEIRE CARVALHO DE ARAÚJO

VIOLÊNCIA NO QUOTIDIANO DE FAMÍLIAS DE ADOLESCENTES

NEGROS: ENFOQUES PARA O CUIDAR DE ENFERMAGEM

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Universidade Federal da Bahia, como requisito para o título de Doutora em Enfermagem, área de concentração “Gênero, Cuidado e Administração em Saúde”.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Climene Laura de Camargo

Salvador 2009

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Enfermagem, Escola de Enfermagem, UFBA.

Bibliotecária: Flávia Ferreira

Araújo, Lucimeire Carvalho A663 Violência no quotidiano de famílias de adolescentes negros: enfoques para o cuidar de enfermagem/Lucimeire Carvalho de Araújo.- Salvador, 2009. 222f.: il

Orientadora: Climene Laura de Camargo Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Enfermagem, 2009.

1. Crime contra adolescente 2. Violência familiar. I. Camargo, Climene Laura de. II Universidade Federal da Bahia. Escola de Enfermagem. III. Título.

CDU: 343.435

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DEDICATÓRIA

Agradeço primeiramente a Deus, por ele ter iluminado meu caminho, a fim de que eu perseguisse o ideal de

Doutoramento e conseguisse concluir meus estudos. Aos meus pais serei eternamente grata pela

oportunidade de realizar um dos maiores sonhos da minha vida, que apesar do peso, das dificuldades e

incansáveis noites de sono perdidas acompanhando meu filho Ryan durante plantões, encorajaram-se em

prol da minha alegria e realização, mantendo meu controle emocional. Ao meu marido e meu filho pela

compreensão e tolerância de suportar este tempo de ausências sendo solidários em silêncio.

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas foram importantes para que mais uma janela se abrissse na minha vida, como o

construto de Tese de Doutoramento em questão, desafio pessoal e profissional. Hoje sei que é tão difícil

expressar algo grandioso quando tantos sentimentos se misturam dentro de mim. Saber reconhecer o quão

é notável os empreendimentos de pais, familiares e amigos para que tudo dê certo, sem dúvida, é uma

Dádiva de Deus, pois contando nos dedos não saberia enumerar quantos professores, colaboradores e

alunos do CRESCER estiveram envolvidos desde a coleta de dados até o momento crucial de análise do

estudo, sempre comprometidos, preocupados e desejando um trabalho que mostrasse a realidade de vida da

população negra.

Obrigado aos meus familiares pela possibilidade de estar - junto, vivendo comigo cada momento

felicidade, tristeza e até eu poderia dizer de tormento. Lembro-me da contribuição de cada um através de

pequenos gestos, auxílios, inspiração e apoio que fizeram em galgar mais um degrau na escada do

conhecimento.

Não poderia deixar de agradecer a minha orientadora, Dra. Climene Laura de Camargo, que desde

o início, apesar das minhas dúvidas, na angústia e pouca produção, não desanimou; pelo contrário apostou

nos projetos encaminhados e aprovados pelo CNPQ e FAPESB e conseguia concatenar idéias brilhantes

sobre o que iria escrever e pesquisar sempre, indicando temas de leituras, disponibilizando livros e

materiais necessários ao desenvolvimento do estudo.

Agradeço em especial à professora Dra. Regina Lopes Mendonça por acreditar e confiar no meu

potencial desde o momento da seleção de doutorado, questionando, buscando sempre participar da

construção do trabalho, muito embora não sendo do Grupo CRESCER, opinou e apontou questões de

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grande contribuição para o aprofundamento do objeto de pesquisa, o que foi maravilhoso para facilitar

minha caminhada acadêmica.

Gostaria também de lembrar e registrar meus agradecimentos a algumas amigas pessoais, do

doutorado e de trabalho do Centro Pediátrico Professor Hosannah de Oliveira que sempre estiveram

presentes nos momentos de sufoco como: Ana Carla, Luciana, Neiva, Nadirlene e Luiza. Ah! Que bom

saber que vocês estiveram ao longo dessa trajetória de alguma forma comigo, obrigada por poder contar

com vocês sempre.

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Cotidiano

Arte

Por não ser nada

O Tudo que me habita

(Débora Barreto, 2004).

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Araújo, Lucimeire Carvalho de. Violência no quotidiano de famílias de adolescentes negros: enfoques para o cuidar de enfermagem, 2009, 212f. Tese (Doutorado). Universidade Federal da Bahia. Escola de Enfermagem, Salvador.

RESUMO

A pesquisa tem como objetivo geral compreender o quotidiano de adolescentes negros que experienciam a violência no âmbito familiar e como objetivos específicos caracterizar a violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, construir a partir dos discursos de adolescentes negros e seus familiares às concepções de violência; analisar as relações familiares e sociais que permeiam o cotidiano dos adolescentes negros em situação de violência e descrever as estratégias utilizadas por estes no enfrentamento da violência. Trata-se de um estudo descritivo de natureza qualitativa de cunho compreensivista sustentada pelos pressupostos do Interacionismo Simbólico e conceitos mais significativos da Microssociologia do quotidiano de Michel Maffesoli que propõe a razão sensível. A coleta de dados foi realizada no período de setembro de 2007 até outubro de 2008. Foram estudadas duas famílias, com histórico de violência intrafamiliar, a primeira, foi um caso de violência física e a segunda um de violência sexual, conforme boletins de ocorrências selecionados aleatoriamente nas Delegacias do estudo: DERCA, DEAM e Liberdade, do município de Salvador-Ba. Como instrumentos de coleta foram utilizados formulários com questões fechadas e espaço para descrição do fato e um roteiro de entrevista semi-estruturada com questões abertas. Os dados quantitativos obtidos através do formulário serviram para elaboração de um panorama epidemiológico caracterizando tipos de violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, considerando como variável independente a violência e as variáveis dependentes: cor, sexo, idade, tipos, natureza da violência, características do agressor e da vítima. Dos dados qualitativos emergiu como eixo central: Quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar, as categorias: Habitus essencial da existência: a cotidianidade e o estilo de vida do adolescente negro e sua família; Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro e O que está por trás da imagem? O mundo imaginal do adolescente e sua família sobre ser negro e subcategorias: Quotidiano que se mostra como uma repetição, Não há tempo para brincadeira Um Quotidiano de trabalho, Tem que trabalhar e estudar, Ter trabalho é ter potência, Ter trabalho digno e prazeroso, Violência (racista) no Quotidiano de trabalho, Bater e Apanhar faz parte do quotidiano, Violência no quotidiano familiar e Apoio e proteção familiar, Negação étnica, Branqueamento e Racismo/sexismo , tendo sido adotada a análise de discurso para demonstrar o processo de viver, experiências, estilo de vida e as interações entre os adolescentes negros e seus familiares, cujos discursos apontam imagens, imaginário, símbolos e significados que nos fazem concluir o quão é difícil para adolescentes negros enfrentar/conviver com a violência; ao mesmo tempo em que confirma-se a tese de que o racismo influencia o processo de construção da violência nas relações familiares e sociais dos adolescentes negros, tornando-os vulneráveis. Palavras–chaves: Saúde do adolescente. Enfermagem pediátrica. Enfermagem. Violência. Saúde.

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Araújo, Lucimeire Carvalho de. Violence in everyday life of families of black adolescents: approaches to nursing care, 2009, 212f. Thesis (Doctorate). Federal University of Bahia. School of Nursing. Salvador.

ABSTRACT

The research aims to understand the general daily life of black adolescents who experience violence in the family and as specific objectives to characterize the violence suffered and practiced by black teenagers and their families, build from the speeches of black teenagers and their families to the concepts of violence, examine the social and family relationships that pervade daily life of black adolescents in situations of violence and describe the strategies used by them in the face of violence. This is a descriptive study of qualitative nature of the sustained nature understandable assumptions and concepts of the Symbolic Interactionism Microssociology most significant of the everyday lives of Michel Maffesoli proposes that the reason sensitive. The collection of data was carried through in the period of september of 2007 until october of 2008. Two families had been studied, with description of intrafamily violence, the first one, were a case of physical violence and the second one of sexual violence, as bulletins of occurrences selected randomly in the Police stations of the study: DERCA, DEAM and LIBERDADE, of the city of Salvador-Ba. As collection instruments forms with closed questions and space for description of the fact had been used and a script of interview half-structuralized with open questions. The gotten quantitative data through the form had served for elaboration of a panorama epidemiologist having characterized types of violence suffered and practiced for familiar black adolescents and its, considering as changeable independent one the dependent violence and variable: color, sex, age, types, nature of the violence, characteristics of the aggressor and the victim. Of the qualitative data it emerged as central axle: Quotidian of black adolescents in situation of familiar violence, the categories: Essential Habitat of the existence: the routine and the style of life of the black adolescent and its family; Violence and bows of familiar socialite in the daily one of the black adolescent and What it is for backwards of the image? The imaginable world of the adolescent and its black family on being and subcategories: Quotidian that if it shows as a repetition, No time for play and a Quotidian of work, Has that to work and to study, To have work it is to have power, To have worthy work and pleasant, Violence (racist) in the quotidian of work, Beat and Catch is part of the quotidian, Violence in the familiar quotidian and Support and familiar protection, ethnic Negation, whitening and Racism/sexism, having been adopted the analysis of speech to demonstrate the process of living, experiences, style of life and the interactions between the black adolescents and its familiar ones, whose speeches point images, imaginary, symbols and meanings that make in them to conclude the is difficult stops black adolescents to face/to coexist the violence; at the same time where it is confirmed thesis of that racism influences the process of construction of the violence in the familiar and social relations of the black adolescents, becoming them vulnerable. Key-words: Health of the adolescent. Pediatric nursing. Nursing. Violence. Health.

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Araújo, Lucimeire Carvalho de. La violencia en la vida cotidiana de las familias de los adolescentes negro: enfoques para la atención de enfermería, 2009, 212f. Tesis (Doctorado). Universidad Federal de Bahia. Escuela de Enfermería. Salvador.

RESUMEN

La investigación apunta a comprender la vida cotidiana de negro adolescentes que sufren violencia en la familia y como objetivos específicos para caracterizar los actos de violencia sufridos y negro practicado por adolescentes y sus familias, la construcción de los discursos de negro adolescentes y sus familias a los conceptos de la violencia, examinar las relaciones sociales y familiares que impregnan la vida cotidiana de los adolescentes negro en situaciones de violencia y describir las estrategias utilizadas por ellos en el rostro de la violencia. Este es un estudio descriptivo de naturaleza cualitativa de la naturaleza sostenida comprensible hipótesis y conceptos de la Interaccionismo Simbólico Microssociologia más importantes de la vida cotidiana de Michel Maffesoli propone que la razón sensible. La recopilación de datos se realizó durante el período comprendido entre septiembre de 2007 a octubre de 2008. Se estudiaron dos familias con un historial de violencia, el primero fue un caso de violencia física y sexual de un segundo asalto, ya que los informes de sucesos delegacias seleccionados aleatoriamente en el estudio: DERCA, DEAM y Libertad, la ciudad de Salvador-Ba . Como instrumentos se utilizaron para recoger formularios y preguntas cerradas con espacio para la descripción de los hechos y una hoja de ruta para la entrevista semi-estructurada con preguntas abiertas. Cifras obtenidas a partir de la forma utilizada para la preparación de un epidemiológicos que caracterizan a los tipos de violencia que sufren y negro practicado por adolescentes y sus familias, considerando la violencia como la variable independiente y las variables dependientes: color, sexo, edad, tipo y naturaleza de la violencia , las características del agresor y la víctima. Los datos cualitativos surgido como un eje central: la vida de negro adolescentes en situaciones de violencia familiar, las categorías: Habitus esencial de la existencia: la rutina del negro y el estilo de vida adolescente y su familia, la violencia y los vínculos familiares de la sociabilidad en la vida cotidiana del adolescente negro y ¿Qué hay detrás de la imagen? El mundo imaginal de la adolescente y su familia acerca de ser negro y subcategorías: el estilo de vida que es una repetición, No hay tiempo para jugar una vida de trabajo, tiene que trabajar y estudiar, el trabajo es tener poder, tener un trabajo decente y agradable, violencia (racismo) en el trabajo diario de rutina, golpear y captura parte de la vida cotidiana, la violencia cotidiana en la família, y el apoyo familiar y la protección, la negación étnica, de dinero y el racismo / sexismo se adoptó el análisis de discurso para demostrar el proceso de la vida, experiencia, el estilo de vida y las interacciones entre negro adolescentes y sus familias, cuyos discursos muestran imágenes, imágenes, símbolos y significados que nos hacen concluir lo difícil que es para los adolescentes hacer frente negro / vivir con la violencia, al mismo tiempo que confirma Es la tesis de que el racismo afecta el proceso de construcción de la violencia en la familia y las relaciones sociales de los adolescentes negro, lo que los hace vulnerables. Descriptores: Salud de los Adolescentes. Enfermería pediátrica. Enfermería. Violencia. Salud

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Genograma interacional família Ogum......................................................................58

Figura 2 Genograma interacional família Oxossi.....................................................................59

LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Análise de discurso das entrevistas.........................................................................70

LISTA DE TABELAS

Tabela 3 Distribuição das ocorrências segundo delegacias do estudo, Salvador – Bahia, 2009...........................................................................................................................................72 Tabela 1 Dados sócio-demográficos das vítimas de violência, Salvador – Bahia, 2009..........73 Tabela 2 Dados sócio-demográficos do agressor, Salvador-Bahia, 2009.................................74

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Distribuição percentual das ocorrências por relação de parentesco da vitima com o agressor, Salvador-Bahia,2009.................................................................................................75

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS..........................................................................................2 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................5 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................12 2.1 DA VIVÊNCIA-CONVIVÊNCIA FAMILIAR À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA.....12 2.2 FAMÍLIA E IDENTIDADE NEGRA: CONFORMAÇÃO E (DE) FORMAÇÃO.....17 2.3 O VISÍVEL E O NÃO-VISÍVEL DA VIOLÊNCIA NUMA SOCIEDADE RACISTA............................................................................................................................28

2.4 SER ADOLESCENTE NEGRO...................................................................................36 3 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO.....................................................44

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO...................................................................................72 4.1 CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOFRIDA E PRATICADA POR ADOLESCENTES NEGROS E SEUS FAMILIARES, SEGUNDO DELEGACIAS DO ESTUDO, SALVADOR-BAHIA, 2009.............................................................................72

4.2 QUOTIDIANO DE ADOLESCENTES NEGROS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA FAMILIAR.........................................................................................................................77

5 CONCLUSÃO..............................................................................................................133 REFERÊNCIAS..............................................................................................................138 APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.................................151

APÊNDICE B – Roteiro de Entrevista.........................................................................152

APÊNDICE C – Formulário..........................................................................................153 APÊNDICE D – Entrevista individual e grelha de análise.........................................157 ANEXO – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa...................................................212

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Iniciei a presente pesquisa de tese de doutoramento consciente da dificuldade,

complexidade e abrangência de debruçar-me sobre um tema aparentemente novo na minha

vida pessoal e profissional – a violência.

Como enfermeira atuante na pediatria do Centro Pediátrico Professor Hosannah de

Oliveira, Mestre na área de atenção a Saúde da Criança e do Adolescente e professora da

Universidade do Estado da Bahia, inclinei-me a estudar com muito afinco sobre a violência,

seus determinantes e repercussão na saúde.

Tendo em vista uma história de Graduação, Especialização e Mestrado com interesse e

muitas produções voltadas para captar o universo dos estressores, sua ação sobre a vida

humana e intervenções de enfermagem necessárias para prevení-los ou minimizá-los, houve

uma preocupação enorme de minha parte de como seria desenvolver um estudo, cuja trajetória

possuía interface, mas não era exatamente o tema de domínio teórico-prático que vinha

dedicando-me durante os anos de enfermagem desde a minha formação até a atualidade.

Mas, para minha surpresa logo após as primeiras leituras e elaboração de manuscritos

que hoje encerram capítulos da Tese, confirmei o quanto os dois temas estão aproximados e

porque não dizer imbricados.

Como havia dito, esse tema que aparentemente era novo, na verdade sempre esteve

presente na minha vida como mulher negra, na educação, saúde, orientação pessoal, cuidado

profissional e tantas outras áreas de vivência e convivência familiar, sócio-comunitária,

hospitalar e de ensino, ou seja, em diferentes contextos, às vezes de forma mais ativa, outras

escamoteada.

Neste percurso, com a aprovação pelo CNPq do projeto intitulado: “O cotidiano de

violência familiar na população negra: um estudo de determinantes sociais”, aceitei o desafio

de construir algo que na essência era desvendar o quotidiano de pessoas que

enfrentam/vivenciam a violência, e que na realidade traria aspectos e situações onde estariam

submersos inúmeros estressores; porque a violência é um estressor capaz de causar

sofrimentos físico, psíquico e/ou social, trazendo consigo prejuízos à saúde dos indivíduos

expostos.

Após muitas discussões no Grupo de Estudos da Saúde da Criança e do Adolescente –

O Grupo CRESCER da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia, chegamos

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ao título da pesquisa que seria realizada por mim: Violência no quotidiano de adolescentes

negros1.

Assim, a tese de doutorado trouxe como proposta apresentar os traumas, os dramas, a

potência, a teatralidade da vida, crenças, valores, rituais, símbolos e significados, enfim, a

cultura do ser e viver a adolescência na família de indivíduos negros, considerando o

histórico-quotidiano vivido de violência.

Para tanto, o fio que conduziu a rede de elementos do quotidiano que intervém nos

cuidados prestados à população negra, como também as descontinuidades de cuidados

familiares e sociais foi o racismo.

Nessa perspectiva, o estudo do adolescente negro é importante para que afinal seja

possível delimitar como estes se situam no viver da família de indivíduos negros, seu modo de

estar-junto, interações intra e extrafamiliares desenvolvidas, com toda sua ambigüidade em

existir, resistir e continuar sobrevivendo frente ao ambiente que na maioria das vezes é hostil.

A partir da compreensão de como a violência interfere no quotidiano do adolescente

negro, será possível identificar vulnerabilidades e atuar diante destas, promovendo o ser

saudável.

Por isso o tema em questão foi colocado em discussão tendo como pano de fundo

dados epidemiológicos e sócio-demográficos da violência que acomete indivíduos negros e,

tendo como ponto de partida para investigação a gravidade da violência que se mostra pelas

elevadas taxas de morbimortalidade.

Este aspecto nodal do tema, emergiu, como ponto obscuro que necessitava ser

desvelado/compreendido, pelo olhar qualitativo, de modo que a escolha do estudo da unidade

familiar para buscar respostas sobre a violência no quotidiano de adolescentes negros reveste-

se de bastante importância na área da Saúde da Criança e do Adolescente, tendo em vista a

família ser considerada fonte de refúgio e consolação entre seus membros.

Esses pressupostos permitiram o surgimento de vários questionamentos sobre as

experiências veladas do adolecer do negro numa sociedade racista e de compreensão da

experiência de como vive este ser humano que cuidamos como enfermeiras, nos vários

espaços institucionais.

________ 1. Recorte específico de projeto financiado pelo CNPq intitulado: “O cotidiano de violência familiar na população negra: um estudo dos determinantes sociais”.

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Autor do desenho: Anderson Santos Lima

“A discriminação racial é ato de violência, onde sujeito é concebido como coisa, desprovido de valor e

identificação social, inferior, insignificante.”

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1 INTRODUÇÃO

Os elevados índices de morbimortalidade da população brasileira pelas violências

fazem com que o fenômeno ocupe posição de destaque na pauta da saúde pública como objeto

de reflexão e ação.

As mortes violentas estão contidas na 9ª Classificação Internacional de Doenças (CID-

9) da Organização Mundial da Saúde (OMS), nomeadas por "causas externas de lesões e

envenenamentos". Conjuntamente, as mortes por violências e acidentes ocupam o segundo

lugar no perfil de mortalidade geral no Brasil. E, dentro deste contingente de mortes, os

homicídios vêm despontando como uma subcausa importante a ser analisada (BRASIL,

2002).

Os dados expressam que nos últimos 20 anos houve um aumento de mais de 200% nas

taxas de homicídios, passando da ordem de 13.601 no ano de 1980 para 45.343 em 2000.

Neste mesmo ano, os homicídios corresponderam a 38,3% do total de mortes por causas

externas, sendo 70% destes cometidos pelo uso de armas de fogo, atingindo pessoas na faixa

etária entre 10 e 39 anos, das quais 83% são jovens do sexo masculino, na grande maioria,

pobres, negros e residentes nas periferias dos grandes centros urbanos.

A pesquisa mais recente realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA) sobre indicadores sociais da população negra, baseada em dados da Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílio (PNAD), revela que houve relativa melhora nos índices de

escolaridade, renda e pobreza a favor da população negra nos anos de 1996 a 2006, em

virtude da formulação e implementação de políticas públicas específicas para esta população

(SALLES, 2008).

Entretanto, apesar da melhora desses indicadores, estudos mostram que as

disparidades entre as etnias existem e ainda que são bem marcantes, estando associadas às

condições precárias de vida da população negra em decorrência do racismo. Ressalta-se que

as pesquisas baseadas no item cor/raça, são extremamente importantes, pois confirmam a

situação de exclusão em que vive a população negra e possibilita afirmar que os preconceitos

raciais não foram superados no Brasil, que não vivemos numa democracia racial, e que a

discriminação não está associada simplesmente ao fato do negro ser pobre, e sim a sua

cor/raça que lhe dificulta ascensão social (SALLES, 2008).

Conforme IPEA em 2006, enquanto 58,4% dos brancos estavam matriculados no

ensino médio com idade adequada para o curso, apenas 37,4% dos negros alcançam o mesmo

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patamar, aponta também que os brancos ainda vivem com quase o dobro da renda mensal per

capita dos negros. Outro dado importante é que em 1996, 46,7% dos negros estavam numa

maior situação de pobreza que estão hoje em 2006, com 33, 2%, entretanto, mesmo com a

queda nos percentuais dos indicadores; os negros estão muito distantes da realidade de vida

dos brancos (SALLES, 2008).

Acrescenta-se ainda dentro desse contexto, que os negros constituem o grupo mais

presente dentro das penitenciárias brasileiras, sendo também presença majoritária na

Penitenciária Lemos de Brito - PLB na cidade de Salvador-Bahia (ADORNO, 1998;

LEITÃO, s/d 2008).

Os autores confirmam que a prisão segrega a população mais pobre e os indivíduos

negros, o que pode indicar uma maior desconfiança/vigilância policial sobre a população

negra em comparação à branca, decorrentes de um imaginário social que marginaliza o negro,

como alguém perigoso e perturbador da ordem social.

Adorno (1996) em seus estudos sobre violência na população negra carcerária,

também encontrou dados que ratificam a existência de práticas racistas contra a população

negra, a partir das seguintes constatações: existe um quantitativo maior de brancos do que de

negros respondendo pelos crimes em liberdade, os negros criminosos são mais condenados do

que os brancos em relação aos mesmos crimes praticados e também os negros parecem levar

desvantagem no que se refere à amenização de sua situação ou pena mediante a apresentação

de provas testemunhais que os brancos.

Diante destas considerações e a despeito da mudança nos indicadores sociais da

população negra da década de 80 aos dias atuais, os índices de morbimortalidade e a situação

carcerária apontam que os indivíduos negros são vítimas e ao mesmo tempo agressores, em

uma sociedade que confirma a tendência de acirramento da questão social, sobretudo de

desigualdades; haja vista as condições e circunstâncias de escassez de oportunidades e

perspectivas aos adolescentes e adultos jovens brasileiros. Assim, este grupo mais

intensamente atingido pela pobreza e violência tende a assumir um papel relevante no

contexto de violências, particularmente no que tange à criminalidade.

Diante disso, apesar de suas manifestações múltiplas, a violência dominante na

consciência coletiva contemporânea é a criminal e a delinqüância, encerrando a noção de

violência como fenômeno sempre produzido pelo “outro”, que se transforma em alguém

capaz de realizar os mais bárbaros e cruéis crimes e atrocidades; a citar o algoz

narcotraficante, assaltante e assassino (MYNAIO, 2006).

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Segundo a mesma autora, o mundo da violência insiste no status, ao acesso a bens

econômicos e de consumo e ao infindável reconhecimento social, que se apresenta numa

conjuntura crescente de exclusão social, cultural e moral contemplada na acumulação

capitalista, como também na omissão por parte dos governantes e sociedade em proporcionar

dignidade de sobrevivência humana.

Dessa forma, o processo de construção da violência aparece segundo a autora como

resultante dos três tipos de exclusão porque passam os indivíduos, a citar: social, cultural e

moral. No entanto, acrescentamos a esta assertiva, a exclusão racial, porque acreditamos que

este tipo de exclusão tem um impacto ainda maior na situação de violência, porque engloba

em si os três tipos de exclusão.

Concomitantemente à problemática trazida, o surgimento de novas subjetividades,

como a perda e valor das hierarquias tradicionais e autoridade familiar e comunitária têm

contribuído para desvirtuar condutas e a própria moralidade do ser humano.

De modo semelhante, Algeri e Souza (2006) pontuam que as políticas públicas de

assistência à criança e ao adolescente em situação de violência ainda não se atentaram na

análise de como as famílias violentas concebem jovens violentos, assinalando que a exposição

de crianças à violência familiar, ativa o ciclo da violência intra e intergeracional, garantindo a

reprodução da violência na adolescência e na fase adulta, tanto na esfera familiar quanto na

social.

Estudos sobre morbidade e mortalidade da população negra revelam que as principais

vítimas de estupro e violência familiar são adolescentes negras e pobres. Como também

apontam, que os jovens negros participam do mercado de trabalho exercendo atividade laboral

em idade considerada ilegal pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em conseqüência das

precárias condições de vida de suas famílias (PRONEGRO, IBGE; 2002).

Em face às considerações, constata-se que o adolescente negro é vulnerável à situação

de violência. Lopes (2005) afirma que a necessidade do negro integrar-se socialmente e,

paralelamente, proteger-se dos efeitos adversos dessa integração determina condições

especiais de vulnerabilidade; pois sempre estiveram carentes de educação, habitação,

alimentação, saúde, ou seja, desprotegidos e por isso mais expostos às violências.

Salvador, não diferentemente de outros grandes centros urbanos brasileiros tem seu

desenvolvimento sustentado nas desigualdades e marginalização social. A população estimada

em 2004 de 2.631.831 habitantes é na sua maioria negra, correspondendo a 2.184.419, ou

seja, 83% do total de habitantes (SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE

SALVADOR, 2006).

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De acordo com um dos indicadores oficiais de monitoração do grau de

desenvolvimento social, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), apesar de o município

ter uma alta concentração de renda, este desenvolvimento não beneficia a todos os segmentos

da população, ocorre na verdade uma segregação de benefícios e vantagens em função do

poder aquisitivo, pois os 20% mais ricos detêm 70% da renda e os 20% mais pobres possuem

apenas 1,6%, de modo que a população branca os brancos têm posse da maior parte da renda

do Estado (IBGE, 2002).

O IDH revela que indivíduos brancos de Salvador possuem rendimento médio familiar

per capita de 5,4 salários mínimos enquanto que os indivíduos negros recebem 1,67 dessa

quantia, o que significa que estes últimos possuem um menor aporte de recursos financeiros

para suprirem suas necessidades básicas.

O IBGE (2002) ao analisar o analfabetismo por raça/cor em 2001, na região

metropolitana de Salvador, evidenciou que 6,7% dos indivíduos com 15 anos ou mais de

idade eram analfabetos, desse quantitativo 16,6% eram negros e 3,3% não-negros. Dos

analfabetos funcionais 42,6% eram negros e 10,2% não-negros e ainda em relação à

continuidade do estudo pela população negra identificou que os negros possuíam 4 anos ou

menos de estudo quando comparados com os brancos.

Esta inserção desvalorizada do negro na sociedade, por causa do racismo, traz

conseqüências à qualidade de vida e saúde da população negra, corroborando para motivação

de atos violentos em nome da sobrevivência.

Segundo MUNANGA (s/d 2009, p7): O racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo ao qual ele pertence.

O racismo é geralmente abordado a partir da raça, conceito abstrato se examinado do

ponto de vista biológico, entretanto, o valor da raça/racismo provém de sua construção

sociológica e do domínio que possui no aparato ideológico. Como qualquer ideologia,

esconde algo não proclamado: a relação de poder e de dominação. E como realidade social e

política é uma categoria social de dominação e de exclusão, portanto, o conceito de

raça/racismo é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder.

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De modo que quando apontamos o mundo racista em que vivem os negros, falamos da

dominação, exclusão pessoal, econômica e social, aos quais estes estão expostos; vivenciando

situações de humilhação, submissão e inferioridade em decorrência de seu comportamento,

cultura, atitude e corpo físico de “negro”, que é o que determina um relacionamento social

prejudicado .

Nessa condição, a família enquanto reduto do viver dos adolescentes negros

materializa no seu cotidiano a vitimização perpetrada ao longo dos anos, legando aos

descendentes, a experimentação da violência e os mecanismos de defesa para o enfrentamento

da situação.

Por isso, acreditamos que o racismo sofrido pelas famílias negras contribui para que as

agressões se naturalizem no interior destas, motivando comportamentos violentos, como uma

tradução do vivido histórico-quotidianamente.

Bido (2006, p.6) afirma que “adolescentes e sociedade são agressivos e se vêem

representados, cada um deles, na agressividade e violência do outro. Sentem-se justificados

em suas atitudes violentas pela atitude violenta do outro”. O que implica em dizer que, o

adolescente (negro) é vulnerável aos atos de violência, que são consentidos socialmente,

tornando-se assim, vítima e agressor; vítima ao considerarmos à situação de extermínio a que

está exposto, e agressor, porque utiliza constantemente da violência para superar os

obstáculos no seu quotidiano, a citar a própria violência.

O mesmo autor expressa que a sociedade é vítima da violência que ela própria motiva.

Resume o ciclo da violência explicando sua causalidade da seguinte forma: a violência se

inicia com a “agressividade externa”, ou seja, o indivíduo não carrega em si a natureza

violenta, ele a internaliza somente após contato com o meio ambiente externo; de modo que

após o processo de vitimização começa a processá-la e posteriormente efetua sua

“transferência” ao meio externo, que pode ser imediata ou tardia, trazendo como desfecho

uma violência menor, da mesma amplitude ou maior àquela que viveu, dependendo do

significado que atribuiu a experimentação.

Assim, entendemos que quando a violência está naturalizada na vida dos indivíduos

(negros), os atos violentos praticados representam a contrapartida de um processo de violência

vivido, em substituição ao diálogo e outras formas de negociação dos conflitos. Na verdade,

compreendemos que para o adolescente negro, pela própria constituição histórica familiar, a

violência vem sendo aprendida como forma de resolução de conflitos, principalmente nas

situações de vulnerabilidade, onde estão presentes relações familiares conflituosas, descrenças

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em relação à potencialidade e a identidade, falta de perspectivas econômicas- sociais e tantas

outras situações socialmente negativas.

Diante da problemática aqui exposta, partimos do pressuposto de que a

experimentação da violência para o adolescente negro tem como um dos seus determinantes o

racismo, acreditando que este influencia o processo de construção da violência nas relações

familiares e sociais dos adolescentes negros. Para confirmá-la, ou refutá-la trazemos como

questão norteadora: Como os adolescentes negros experienciam a violência no quotidiano

familiar?

O estudo do quotidiano de adolescentes implicados neste tipo de interação

possibilitará a detecção fatores de risco que contribuem para vitimização e/ou

desenvolvimento dos comportamentos violentos ou ainda identificar fatores de proteção que

aumentam a resiliência dos adolescentes promovendo redução dos conflitos e da violência

familiar.

Para apreendermos esta realidade, objetivamos compreender o quotidiano de

adolescentes negros que experienciam a violência no âmbito familiar. De forma específica,

pretendemos:

- Caracterizar a violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus

familiares;

- Analisar as relações familiares e sociais que permeiam o quotidiano dos

adolescentes negros em situação de violência;

- Descrever as estratégias utilizadas pelos adolescentes negros no

enfrentamento da violência.

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Autor do desenho: Anderson Santos Lima

Violência se enfrenta com violência.

“... bater e apanhar faz parte do cotidiano...”

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 DA VIVÊNCIA-CONVIVÊNCIA FAMILIAR À SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

Estudiosos sobre família e saúde vêm pontuando algumas considerações importantes

para o entendimento do cuidado do ser humano na perspectiva familiar, partindo-se do

princípio de que a família é uma unidade básica do sistema de saúde dos indivíduos

(LITMAN, 1974; ELSEN, 1984). Assim, o ser humano, em seu processo de viver constrói

através das interações cotidianas familiares condições para sobrevivência e bem-estar.

O estar bem, ou ser saudável deve retratar a possibilidade do ser humano ter seu

corpo-biológico em harmonia/equilíbrio, como também de viver e estar no mundo da família

e das relações sociais de modo pleno e igualitário.

De acordo com Elsen (2004) o cuidado familiar se apresenta sob a forma de presença

e proteção desde o nascimento do ser humano, pois ao integrar um núcleo familiar, o

indivíduo tem sua condição de pertença vinculada àqueles que irão garantir a preservação,

manutenção e recuperação de sua saúde.

Segundos os autores, estes atributos familiares são imprescindíveis para que os seres

humanos possam adquirir competência e maturidade biopsicossocial, cultural e espiritual para

enfrentar adversidades, podendo crescer e desenvolver-se adequadamente.

Quando a família se preocupa e ao mesmo tempo se responsabiliza por cada um de

seus membros mutuamente, a presença e a proteção existem, formando vínculos afetivos

fortes e capazes de ajudar na superação de crises decorrentes da transição de fases etárias,

dificuldades de socialização, situação de doenças e outros.

O cuidado familiar também inclui orientações para a vida em sociedade, através do

ensinamento aos seus membros, de normas e condutas sociais aprendidas no espaço intra e

extrafamiliar e que compõe o repertório de significados, valores, crenças, símbolos, saberes e

práticas estabelecidos como desejáveis para o exercício da convivência.

O quotidiano da vida familiar, então, se estrutura pela convivência baseada em um

legado que a família considera importante para o viver comum e que é transmitido de geração

em geração a cada nova formação familiar influenciando o pensar e o agir social (ELSEN,

2004).

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O processo de viver em família deve permitir o respeito às individualidades de cada

membro da família, fortalecendo o “eu” de cada um, como também o “nós” referente ao

sentimento de pertença à família, evitando uma convivência familiar conflituosa e

desgastante. Deste modo, a família como fonte primária de socialização humana, direciona a

vida dos indivíduos, impulsionando-os para uma vida social harmônica como a do próprio

grupo familiar (ALTHOFF, 2001).

O processo de cuidar familiar caracteriza-se de acordo com ELSEN (1984) como um

sistema de saúde diferente e complementar ao sistema profissional e de serviços de saúde, já

que a família tem recursos próprios para o cuidado dos seus membros em situação de saúde e

doença, recorrendo à rede de serviços de saúde quando esgotam suas possibilidades de

atuação.

Pode-se dizer que a família possui um conjunto de papéis dirigidos ao cuidado do

indivíduo no sentido de promover seu bem-estar, integrando-os aos diversos contextos da vida

social. Nesta perspectiva, o sistema familiar é um sistema aberto que permite trocas entre a

família e o mundo social, influenciando-o e sendo influenciada por ele.

Reitera-se, portanto, que ambos, o sistema familiar e o mundo social estão imbricados

na construção de padrões morais e de conduta humanos. Se por um lado, as interações da

família com o mundo social permitem aprendizado e desenvolvimento de posturas altruístas,

por outro, pode contribuir para atitudes consideradas destrutivas e violentas.

Waldow (1995, p.17) afirma que “a capacidade para cuidar pode ser desenvolvida,

despertada ou inibida através da experiência educacional”, de modo que a capacidade de

cuidar está colocada do ponto de vista de uma ação interativa, de valores e no conhecimento

do ser que cuida para e com o ser que é cuidado.

Dessa maneira, o cuidado que os pais proporcionam ao filho depende das

oportunidades de aprendizagem familiar inter e intrageracionais socialmente assimiladas no

seu processo de viver. A propósito, a capacidade de realizar o cuidado, não surge

automaticamente, este aprendizado é elaborado pelas famílias sob a influência da cultura,

ideologia e de uma política que responsabiliza de forma "expressiva” a família pelo que vai

sendo ensinado aos seus membros.

É nessa relação familiar, que os membros interagem, e, portanto, nela a criança inicia

seus primeiros contatos sociais, captando a realidade e significando-a a partir da experiência

resultante da interação.

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A criança pode perceber-se na interação familiar, ainda que de maneira incipiente,

com um ser de relações, aprimorando gradativamente seu próprio self. Por não dominar o

conhecimento de pessoas e objetos, utiliza o simbólico do corpo, para expressar-se.

No uso da linguagem metafórica do corpo, a criança procede à imitação dos pais,

aprendizado que denota a importância que a criança atribui a essas pessoas e a necessidade de

mostrar-se semelhante a eles, para poder a partir de então, construir sua própria identidade. É

na relação com o outro que inicia sua constituição enquanto sujeito, ao perceber quem é o

outro e qual o seu papel dentro da organização familiar, elabora e projeta seu eu.

(VYGOTSKY, 1984; MOURA, 2002). Assim, na ocasião da infância os comportamentos são

motivados pelas impressões das crianças sobre o que é considerado permitido e desejável

pelos pais.

De modo semelhante, na adolescência, o self define-se pelo convívio social e vínculo

afetivo com seus pares. Apesar de a adolescência ser considerada uma fase de instabilidade,

ligadas a períodos de crises existenciais, sem dúvida, é um marco importante na vida das

pessoas evocando mudanças, reorganizações e aprendizagens significativas. Nesta fase, os

valores, as crenças, os limites e o respeito familiar são muito questionados e derivam do que

foi cotidianamente e culturalmente construído no interior da família desde a infância.

Por isso, os pais, através de seus discursos e fundamentos servem de modelo de

identificação do existir adolescente, conferindo sistemas de representações e práticas

fundamentais no plano da sociabilidade.

Compartilhando com Sanchez (2005) também acreditamos que os padrões sociais de

conduta são aprendidos nos períodos da infância e adolescência, dentro dos próprios lares, na

interação com os pais. Nesse pensar, os comportamentos violentos de crianças e adolescentes

é a objetivação do que foi aprendido nos modos de ser, pensar e agir de seus pais. [...] os comportamentos sociais apreendidos por crianças são orientados pela inserção do sujeito em relações cujo modelo a ser assimilado é resignificado elaborando modelos organizadores do pensamento que podem ser orientadores dos comportamentos das pessoas (Sanchez, 2005 p.2).

Ao criar o homem, num ambiente de competitividade e combatividade, a família

contribui para reprodução do modelo capitalista, que per si é excludente, produzindo a

violência familiar com a mesma lógica capitalista de dominação e exploração pelo capital e

poder.

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Os sujeitos tornam-se aptos a participar da vida em sociedade na disposição para

rivalizar com o outro em prol de ascensão, posições sociais privilegiadas e reconhecimento

que são cultivados no seio familiar.

Ao mesmo tempo, o arcabouço familiar que estimula a competitividade

mercadológica, imprime a marca de submissão entre os integrantes da família, perseguindo a

idéia de que os indivíduos novos devem obediência e subserviência aos mais antigos em troca

de proteção.

As concepções de poder e posse arraigada nas relações familiares reafirmam a

dominação dos pais sobre os filhos e os vínculos formados são imbuídos de autoridade e

medo (NEVES e ROMANELLI, 2006). Daí, os modelos familiares que se arrastam na

história da humanidade, evidenciam a segregação de poder e luta pela sobrevivência e/ou

adaptação às adversidades.

As constantes mudanças lançadas à família pela selvageria do mundo moderno

confirmam a mutabilidade, redefinição de papéis e evolução dos núcleos familiares em

resposta à crescente turbulência no processo de viver humano, gerando ainda mais

instabilidade e fragmentação.

Neves e Romanelli (2006, p.302) enfatizam que “a família ao ser transformada,

assimila, modifica e devolve à sociedade os elementos processados no seu interior que, por

sua vez, os modifica”. Neste sentido, o autor focaliza a família como mediadora das relações

entre seus integrantes e o mundo social. Entendida como um produto histórico-social, a

família pode potencializar ou reprimir padrões culturais e afetivos dos indivíduos, a depender

das relações que estabelece com o espaço privado econômico, político e simbólico que

sustenta o sistema familiar.

Seguindo esta lógica, a violência inicia-se na família, quando esta determina o papel

que cada um dos seus membros deve desempenhar para ser aceito no sistema familiar e social,

mostrando-lhes, sobretudo, a maneira como devem agir e reagir frente às situações sociais

impostas pela assimetria das relações.

Tais relações não ajudam a constituir e definir um outro livre, capaz e pleno,

provocando um efeito devastador na estrutura psíquica dos indivíduos, edificando na

diferença a possibilidade de exploração-dominação.

O prejuízo causado internamente ao indivíduo vitimizado irá determinar em muito, a

maneira como este irá lidar com o mundo ao seu redor. Infere-se que o mal-estar gerado desse

processo pode ser transformado em atitude reativa, em contenção angustiada ou neurótica ou

resignação (SANCHEZ, 2005; MARCONDES FILHO apud SANCHEZ, 2005).

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Ressalta-se que um dos preditores mais significativos para comportamentos violentos

e condutas destrutivas pelo ser humano são destacadamente maus–tratos na infância, seja por

abuso sexual, negligência e demais tipos de violência da esfera cotidiana familiar (ROLIN,

2006).

Mediante suas manifestações, a família fonte de presença e proteção torna-se

causadora de dor e sofrimento, podendo imprimir precocemente nos indivíduos marcas físicas

e psíquicas que contribuem para a construção do processo de violência.

Os números apresentados de violência familiar ainda estão aquém da representação

real do fenômeno, uma vez que o espaço privado familiar com a delimitação de suas

fronteiras e regras de relacionamento permite obscurecer fatos e acontecimentos mediante

ameaças explícitas e veladas que garantem o sigilo e o continuum da violência (RIBEIRO e

BORGES, 2005).

Cada família, quando organiza o modo de viver do seu agrupamento, faz exigências e

têm especificidades para condução e orientação de seus membros, pactuando-se valores de

autopreservação familiar (RIBEIRO, RODRIGUES e LÁPIDUS, 2005). Por isso, consciente

ou inconscientemente, a insegurança, o medo de represálias frutos do conflito da

consangüinidade, da proximidade, dos laços afetivos e instinto de proteção para com o outro

com quem se convive são alguns exemplos de justificativas de se manter em segredo

situações de violência familiar.

A violência familiar traz consigo um contexto carregado de contradições onde vítima e

agressor alternam posições, a depender do contexto do vivido. Segundo Tilmas-Ostyn (2001)

um indivíduo que foi vítima de violência em sua infância, mesmo mostrando-se injustiçado e

revoltado com o comportamento violento dos pais, segue o ciclo da violência, reproduzindo a

violência sofrida.

Percebe-se que apesar de criticar o comportamento violento, o indivíduo tende a

repeti-lo, perpetrando a violência na sua condição de agressor, entretanto, não deixa de ser

vítima de um passado de desrespeito e abusos que naturaliza a violência no seu quotidiano,

pois traz consigo uma memória de violência que o impulsiona a agir de forma violenta.

Conquanto operem as condições sociais desfavoráveis que venham afligir a família,

confirma-se a hipótese de Espinheira (2004) de que há participação expressiva familiar para

constituição dos modos violentos de ser dos indivíduos.

Partindo do pressuposto de que o macro social pode ser compreendido a partir da

esfera micro, a violência no âmbito familiar adquire relevância para problematização das

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violências, apresentando-se como um campo propício para o estudo dos significados e

sentidos das violências.

3.2 FAMÍLIA E IDENTIDADE NEGRA: CONFORMAÇÃO E (DE)FORMAÇÃO

A família tem sido vista como um todo que integra um sistema complexo e dinâmico

de contextos do viver de indivíduos que estão em constante interação, formando uma

organização caracterizada pelas relações de parentesco e, sobretudo de vivência e

convivência. Assim, a família, lugar das relações íntimas, apresenta grande contribuição na

construção identitária dos seus membros e na comunidade em que se insere.

Como célula máter da sociedade, a família produz e ao mesmo tempo retém o que é

produzido das interações ambientais, sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas,

tecnológicas, entre outras. Nesse sentido, o conceito de família e o seu modo de organização,

ou diríamos de vivência e convivência dos indivíduos que vem se arrastando ao longo dos

tempos, tem sido modificado pela presença de novos fatos sociais, quais sejam, os modos de

vida, os arranjos diversificados de convivência, os valores, as crenças e os conhecimentos

intergeracionais, que são na maioria das vezes, conflitantes.

Constatamos de acordo com Carvalho (2002) que nunca existiu um modelo dominante

de arranjo familiar, mas que as expectativas em relação à família que estão no imaginário

coletivo são, apesar disso, ainda as representações idealizadas da família nuclear que produz

cuidados, afeto, proteção e vínculos de pertencimento. Entretanto, o autor assevera que cada

família se configura de forma diferente e possui diferentes expectativas, de modo que não se

tem a garantia de que a família será sempre um ponto de equilíbrio para os seus membros, ou

seja, a família pode ser o ponto forte, ou ao contrário pode agir negativamente esfacelando as

potencialidades de seus membros.

Sarti (1995, p.139) quando se refere ao modo de organização do grupo familiar de

classe social baixa, nos diz que “a família entre os pobres urbanos é estruturada como um

grupo hierárquico, seguindo um padrão de autoridade patriarcal, cujo princípio básico é a

precedência do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e dos mais velhos sobre os

mais novos”. Já Silveira, Falcke e Wagner (2000), afirmam que o modelo dominante na

família das camadas populares não é o nuclear, e sim, o monoparental. E Duarte (1995, p.34)

ao se referir à família de classe popular mostra que ela pode ser tão numerosa se

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assemelhando “à família camponesa; em que pesem tantas e tão fortes diferenças dos

contextos sociais em que se desenvolvem”.

O modelo de família historicamente discutido tanto para brancos/ricos quanto para

pretos/pobres sempre foi o patriarcal e hierárquico, modelo herdado da época do Brasil

colônia, no entanto, estudos já trazem ser o modelo da família monoparental o que mais bem

retrata as famílias de camadas populares, hoje em sua grande maioria, chefiada por mulheres

(PALUDO e KOLLER, 2008).

Fato, que não quer dizer, segundo Paludo e Koller (2008) que a família de indivíduos

negros/pobres não sofra influência dos valores e modelos ideais vigentes da família ideal - a

burguesa, porém em decorrência das condições em que vive, a mesma não pode se comportar

de modo semelhante a esta. Um dos aspectos que as difere significativamente é a escassez de

recursos materiais e de subsistência da família de indivíduos negros, que certamente impõe a

estas o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência .

Encontra-se na nossa realidade, um misto na constituição da família de indivíduos

negros, o modelo nuclear que forma a vasta maioria das famílias do Brasil, tendo o homem

como principal provedor e chefe da família, como também de forma mais predominante à

família numerosa e extensa, estando presente no mesmo ambiente familiar pai, mãe, filhos,

avó, tia, ou ainda, se avaliarmos as últimas décadas, o crescimento da família monoparental

onde o pai ou mãe com os filhos constitui a unidade familiar.

Por isso, discutir sobre a instituição família no Brasil parece-nos bastante oportuno

para entender a constituição da identidade do adolescente negro na atualidade, porquanto seja

forma específica de agregação que possui dinâmica própria, sendo influenciada pelo processo

de desenvolvimento sócio-econômico e das ações do Estado através de suas políticas

econômicas e sociais.

A família passa desde a época colonial até a presente data, por um contínuo de

mudanças que a afeta, podendo-se citar de acordo com Kaloustian (2005) os atentados aos

direitos humanos e a sua sobrevivência, as barreiras econômicas, sociais e culturais, expressa

pela exclusão, exploração e abuso, acirramento das desigualdades e outros que

frequentemente tem contribuído para desestruturação do espaço familiar.

A família na época colonial organizou-se pela influência de duas culturas distintas: a

branca, dos europeus que dentro de uma estrutura hierárquica de poder exerciam o papel de

senhores escravagistas, e, a negra, dos africanos que no papel de escravo viam extinguidos de

suas vidas possibilidades de estabelecimento de vínculos afetivos, solidariedade e de união

entre si (CRAMER et al, 1976).

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De ordem escravocrata e compelida pelos senhores brancos, a família de negros se

organizava em torno da Casa Grande e Senzala, viabilizando o enriquecimento do homem-

patriarca, detentor do poder e, portanto, soberano e responsável pelas decisões, controle e

sustento familiar (CRAMER et al, 1976).

Nesse período, para evitar rebeliões que porventura pusessem em risco a perda do

mando do patriarca ou o alcance de mobilidade social do negro foram adotadas estratégias das

mais cruéis que regulavam as relações e reduziam a força do grupo. Evidentemente, a

primeira delas era separar o negro da sua família, o seu maior vínculo; e outras se somaram

com a finalidade de regimentar suas vidas, a exemplo da imposição de idioma e religião. O

negro seguia um destino inquestionável de solidão e mortalidade precoce cumprindo jornada

de trabalho exaustiva, em média de dezesseis horas diárias de trabalho, com agravante de

maus-tratos e da violência quotidiana vivenciada nas suas mais diversas formas. Por isso,

nesta situação de aniquilamento (moral, cultural, físico, social e psicológico) a prática do

aborto era considerada algo comum entre as escravas negras, como também o infanticídio e

mesmo o suicídio, foram utilizados como formas de resistência, para não sofrer e nem deixar

os filhos à mercê das atrocidades da escravidão (CRAMER et al, 1976).

Observa-se que no período escravagista, não existia reconhecimento da condição

humana dos negros, motivo utilizado como justificativa para escravizá-los. Essa concepção

racista era ainda reificada pela Igreja, advinda do pensamento católico ibérico, que

considerava a escravatura como uma missão de salvação da raça inferior dada à

“inumanidade” dos negros, que em sua condição pré-humana, de coisa-objeto, de criaturas

sujas, promíscuas, verdadeiros animais, e assim, deviam ser resgatados, salvos. Com efeito, e

particularmente associada a esta problemática, a Igreja em sua feita missionária estava

convocada, a favor do Estado, a controlar a escravaria e ditar normas de conduta social e

sexual, adestrando-os (KALOUSTIAN, 2005).

A vida em cativeiro não só marca a diferença entre brancos e negros e seu valor social,

como também desapropria o negro do seu corpo, costume e família, atuando como fator de

desconstrução identitária.

As relações sociais à época prendiam-se a um componente estrutural extremamente

rígido conformando divisão de papéis e deveres bastante inflexíveis e severos que expunham

os indivíduos à degradação física, moral e psicológica, sendo o trabalho escravo equivalente

ao animalesco. Para tanto, a família de negros na sociedade escravocrata precisava ser

numerosa para conter os efeitos de uma elevada mortalidade e de uma esperança média de

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vida relativamente baixa, que certamente traria prejuízos aos senhores, no caso de déficit na

taxa de natalidade (DIAS, 2000).

Diante dessa necessidade de manter a mão-de-obra escravocrata a todo vigor, os

negros tinham a missão de procriar, mas sem dúvida ainda era o tráfico negreiro que dava

conta de suprir seu quantitativo e qualitativo. Os negros ao chegarem ao Brasil passavam por

uma espécie de seleção, onde através de um sistema de conferência de mercadoria eram

examinados - seios manipulados, genitais escancarados, palpados, inspecionados para

avaliação de sua qualidade reprodutiva, ou seja, a mercadoria deveria ter a garantia à função a

que se destinava (SOARES, 1982).

Orientada, sobretudo, para a satisfação das necessidades dos senhores brancos que

ocupavam o topo da pirâmide hierárquica da sociedade elitizada, a constituição familiar

advinda da Casa Grande e Senzala, respeita e valoriza o patriarca, o senhor. Decerto, as

relações entre senhores e escravas calcadas no caráter altamente repressivo e produtor de

normas disciplinadoras de controle social matiza a convivência violenta.

Os corpos negros colonizados estiveram confinados aos desejos de seus senhores, que

fizeram do sexo o melhor dos seus atrativos. Cultivando relações desprovidas de qualquer

afetividade, a sexualidade entre brancos e negros podia ser traduzida como mais umas das

formas de dominação e do exercício da autoridade do branco, onde o corpo negro era somente

objeto de satisfação sexual (PINHO, 2004).

Segundo Kaloustian (2005) durante o Brasil colônia não houve constituição da família

nuclear composta por negros, estas sequer foram estimuladas. E apesar de ser o ideal proposto

pela Igreja, nota-se que o desprezo e descaso dos senhores pelos escravos, sobretudo com

relação às crianças escravas promoveram o concubinato, a ilegitimidade e o abandono de

crianças escravas.

Kidder (1972, p.44) traz que o destino das crianças negras era conclamado a Roda dos

expostos, porque os senhores “não querendo ter trabalho, nem fazer gastos com a criação dos

negrinhos [...] obrigavam muitas escravas a abandoná-los, na enjeitaria”. Estava claro que

havia preferência pelo escravo adulto que era mais resistente para a lida, além do mais a

criança somente iria dificultar o trabalho do escravo adulto. Como não era alvo de

preocupação social, as crianças tinham suas vidas lançadas à sorte, podiam viver nas ruas ou

serem recolocadas em casas de família por ação da Roda dos expostos.

Como já dizia Freyre (1980, p.12) em suas notas, o abandono de crianças,

principalmente das crianças negras no país, seria chancela para comportamentos que

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definiriam no futuro próximo a personalidade dos indivíduos desassistidos ou tardiamente

assistidos: [...] Os meninos mestiços. De crias da Casa grande. De afilhados de senhores de engenho, de vigiários, de homens ricos, educados como se fossem filhos por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só por uma história [...] sociológica, psicológica, antropológica e não cronológica – será possível chegar-se a uma idéia sobre a personalidade do brasileiro. É o menino que revela o homem.

O certo é que nem o Estado nem a Igreja quiseram assumir as crianças abandonadas. A

Roda dos expostos então, foi o artifício criado para garantir subterfúgios a estas crianças,

mantendo o anonimato dos filhos ilegítimos frutos de uniões proibidas entre senhores e

escravas, e tantas outras uniões que desonrasse a mulher de elite e seus senhores. A Roda

também servia para dar destino às crianças negras até completar a idade de ser útil à

sociedade, ou seja, de poder estar entre adultos promovendo benfeitorias aos senhores através

dos seus serviços na senzala ou na Casa Grande.

A família patriarcal representou na época colonial a unidade política, econômica e

social e teve papel fundamental na definição da história da família brasileira. A família

nuclear moderna, nada mais foi e ainda é uma representação dominante da política que utiliza

para o alcance da democracia e do bem–estar comum a “Autoridade”. Esta bandeira da

modernidade somente disfarça a tradição conservadora escravocrata que se tem no Brasil

colônia para “Defesa da Ordem” (ALMEIDA, 1987; FREYRE, 2005).

A idéia de “Ordem e progresso” do final do século XIX de cunho político e econômico

calhava com um novo Brasil e modelo de organização familiar que previa a educação como

estratégia para inclusão do ex-escravo recém-liberto. No entanto, ao contrário do previsto, não

foram realizadas quaisquer medidas ou políticas educacionais voltadas à inclusão da

população negra na sociedade brasileira, porque ao considerá-los como ser “biologicamente

inferior” presumia-se não terem condições de aprendizado (aptidão/inteligência) e nem de

assumir as responsabilidades com o cultivo da terra e sua própria sustentação

(KALOUSTIAN, 2005).

Sob a égide do racismo biologicista e do positivismo há inoperância de políticas

educacionais e de assistência aos ex-escravos por conta da dita ineficácia psico-afetiva do

negro. Isso implicou em desapropriá-lo de suas terras para que pudesse trabalhar para os

Senhores, alimentando a mão-de-obra necessária ao processo de industrialização. Como a

mão-de-obra era farta, ou seja, resultante da massa de ex-escravos desempregados, os negros

foram obrigados a trabalhar em troca de comida e moradia, mantendo-se de igual modo

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prisioneiros ao sistema capitalista vigente, que estabelecia claramente na sociedade de castas

sua posição inferior. Mesmo fora das senzalas e designados como trabalhadores livres, os

negros nunca estiveram livres na perspectiva desejada, na verdade eram trabalhadores livres,

porém eternos prisioneiros do abastecimento do sistema capitalista (KALOUSTIAN, 2005).

Ainda neste momento de difusão das idéias progressistas em prol da industrialização

deu-se a entrada maciça dos imigrantes no país dinamizando a economia e permitindo o

excedente ainda maior de mão-de-obra, ajudando a consolidar relações capitalistas de

produção que privilegiava o imigrante (branco) em detrimento do negro (PRIORE, 1999).

A desvalorização da mão-de-obra livre negra foi definida por uma política econômica

e social que estimulou a formação da força de trabalho para as indústrias pela escolha de

homens brancos, destacadamente europeus, que tinham todo o incentivo para vir para o Brasil

compor a massa trabalhadora capaz de garantir os avanços requeridos pela modernidade.

Dessa forma, o ex-escravo vai se constituir um contingente de força de trabalho diferenciada

dos imigrantes, sendo empurrado cada vez mais para baixo na escala de estratificação social.

O fato impulsionou alguns negros em represália à situação posta, a se organizarem,

discutirem sobre seus problemas e buscarem soluções para os interesses do grupo. Deste

processo de organização resultou a edição dos jornais negros - A Redentora e o Getulino que

estavam preocupados em mostrar a realidade da população negra e suas reivindicações, como

também em criar espaços reservados ao lazer, saúde e cultura negra. Esta tentativa de pressão

social foi logo tolhida pela sociedade dominante que perseguiu e prendeu os responsáveis

pelas editorações dos jornais desarticulando o grupo e seu propósito (MACIEL, 1997).

De algum modo, segundo o autor, as manifestações da população negra estiveram

sempre reprimidas, quer fossem dentro de um contexto próprio de discriminação ou dadas às

“condições históricas” que fizeram com que o critério racial fosse um componente importante

no processo de ofertas de oportunidades ocupacionais, culminando no fim do interesse pelo

homem negro como trabalhador. E, por uma questão de empoderamento promover o

ajustamento do imigrante europeu no mercado de trabalho brasileiro era mais benéfico ao

sistema do que favorecer a inserção do negro, já que este era maioria e poderia futuramente

utilizar isso a seu favor.

O autor ainda reforça que a violência contra o contingente negro da população

corroborou para mantê-los fora da participação na distribuição do resultado da produção

social, pois ao serem preteridos pelo imigrante não lhes restava mais nada, a não ser o

trabalho mal remunerado, quando encontrava emprego, e, tocar sua vida em condições

subumanas. No entanto, esta prática racista adquire no cenário político condições de não

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serem interpretadas como tal, tendo como princípios a culpabilidade ao negro pela sua

condição, advinda da democracia racial.

Em outras palavras, o processo de industrialização/urbanização da modernidade

associado à não-reforma agrária, determinou a continuidade de homens negros pobres que

sem ter onde morar acabara em cortiços e/ou favelas de grandes centros urbanos, constituindo

suas famílias dentro de uma “concepção moderna”.

Os cortiços e as instalações das antigas senzalas formavam as habitações dos negros

que viviam amontoados e em condições insalubres. A vida amarga nas precárias habitações se

transformava em motivo de tragédias e crimes, sendo a grande maioria, oriundos da fome,

desemprego, relações matrimoniais informais, instabilidade emocional e violência (MACIEL,

1997).

O autor mostra também que as inúmeras mortes na população negra eram ocasionadas

pelas epidemias de febre amarela e varíola que estavam relacionadas à ausência de políticas

de assistência a este grupo populacional. Os jornais da época apontam como causas de

mortalidade da população negra: morte por síncope cardíaca, envenenamento, enforcamento,

afogamento nas enxurradas de chuvas e rios, assassinatos por faca, tiros, espancamentos,

atropelamentos, acidentes de trabalho quando empregados, como também morriam de frio, de

velhice e inanição.

A perseguição aos negros e a falta de assistência foi algo notório e comum,

objetivando fazê-los desaparecer de todas as formas dos espaços públicos. Além de

socialmente desassistidos, os negros eram interceptados de realizar protestos e manifestações

de rua, quais seja, samba, capoeira, cantigas, sob alegação de que sua a presença estava

comumente associada à briga e confusão; motivo que exigia ação policial intensa, de modo a

resguardar os indivíduos civilizados dos riscos e incômodo destes (MACIEL, 1997).

Nesse contexto, verifica-se o aumento da criminalidade e na mesma proporção o

aumento das máquinas de repressão aos infratores, que eram na maioria menores negros que

rechaçados nesta sociedade excludente reagia aderindo ao mundo do crime. Assim, ao longo

de sua existência a imagem do negro esteve associada à violência e ao negativo social, sendo

amplamente veiculada pela imprensa para que a população soubesse dos perigos que a raça

negra oferecia a sociedade (MACIEL, 1997).

O confinamento de crianças e adolescentes em instituições de “tratamento da

personalidade” foi à estratégia adotada para a “recuperação destes jovens” a fim de

transformá-los em cidadãos (PRIORE, 1999).

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As crianças e adolescentes que deviam ser a esperança de mudança e de um futuro

melhor, já não correspondiam e nem mereciam tanto investimento social. De acordo com

Priore (1999), “[...] a criança não ideal achou os estigmas definitivos de sua exclusão,

passando de menor na rua para menor de rua com todas as conseqüências nefastas implícitas

nesse rótulo”, o que significou sofrimento de todos os tipos e de perseguição policial.

Por isso, acreditamos que a sociedade racista, com sua poderosa força de ideologia

racialista, onde a miscigenação estabeleceria o processo de democratização racial e social no

país, garantiu, como até o impulsionou o racismo, porque encoberta pelo propósito da

liberdade, da eugenia de raças e do branqueamento, excluiu a participação equânime do negro

na sociedade brasileira.

Data do Brasil republicano a propagação da idéia de eugenia das raças e mito da

democracia racial, que postulava o branqueamento como a saída para formação de

organizações familiares regulares e saudáveis. O mito de democracia racial instaurado

mobilizou a nação brasileira a constituir sua identidade nacional que sob o argumento da

miscigenação propôs um outro tipo de sociedade, de caráter moderno, progressista, mas que

obviamente deveria responder a demanda essencialmente capitalista (KALOUSTIAN, 2005).

Nesse ínterim, segundo SOUSA (2006), o decreto de 14 de dezembro de 1880 foi a

estratégia política que teve o propósito de sancionar a idéia de que o fim da escravidão poria

fim também às idéias racistas, extinguindo a possibilidade de continuidade do racismo.

Apoiada na idéia fictícia de promoção de fraternidade e igualdade racial, o simples ato de

queimar toda documentação relativa à escravidão promulgou o marco da democracia racial

onde se teceu sutilmente um racismo sem precedentes e de ideologia dominante que acabara

por culpabilizar o negro pela sua imobilidade social, marcando profundamente seus costumes,

imaginário, cultura e perfil étnico-racial.

Em nome da reconstrução da identidade nacional, a diversidade cultural foi de alguma

forma engolida, urdindo por intermédio da miscigenação uma unidade cultural. Nesse caso, a

nação para readquirir sua “integridade” viu na mestiçagem a saída para o problema,

projetando a figura do mulato como instrumento de conversão ideológica e de fomento ao

processo de assimilação da cultura branca.

Para tanto, os efeitos da limpeza de sangue adquirida pela miscigenação seria o de

melhorar o indivíduo negro que adquiriria “caracteres biológicos brancos”, que por serem

superiores os qualificariam para o êxito. Desse modo, ser mestiço era a única possibilidade de

vivenciar sem “traumas” a incumbência de modificar o destino de ser negro, passando de um

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lugar sem perspectivas, para outro onde não enfrentaria a problemática da cor, visto ser a

miscigenação a síntese das culturas branca e negra (PINHO, 2004).

Ainda segundo o autor (p.2) a aculturação promovida pela miscigenação ao invés de

amenizar as desigualdades raciais, ao contrário “ideologiza as diferenças sociais como

diferenças natural-culturais”.

Podemos dizer que com a mestiçagem, a aglutinação de culturas tão apregoada

cumpriu o seu destino, o de distanciar o negro de suas raízes. Seguindo em busca de uma

sociedade mais aberta a sua passagem para o alcance da mobilidade social, o negro opta pela

miscigenação abandonando seu corpo afrodescendente. No entanto, o alcance da mobilidade

social apenas se daria quanto mais pálidos fossem seus traços, o que garantiria a sobreposição

da raça branca à negra, ou seja, essa passagem tão esperada estava ainda condicionada ao

resultado da “mistura”, que poderia impedir indubitavelmente a concretude da passagem.

Mesmo expostos a muitas desvantagens não tinham como recusar o “convite” à

miscigenação, pois era grande sua necessidade de inclusão social e de pertença, já que sempre

estiveram comprometidos com a violência e a exclusão social desde o processo de

colonização.

Desta maneira, a proposta de democracia racial atingiu diretamente os indivíduos

negros, inclusive marcando profundamente o seu imaginário para constituição familiar.

Através dos tempos, a família de negros foi sendo doutrinada por brancos e mesmo por negros

a aceitar sua condição de inferior legando aos descendentes, submissão, inferioridade,

dependência e marginalidade, derivada do racismo como estrutura e categoria de pensamento,

ponto-chave que a faz sucumbir à irregularidade em todos os níveis de sua formação: física,

psicológica, cultural, pessoal-social, entre outros.

Ao responder a miscigenação, o elemento negro, como relata Pinho (2004, p.6)

“produziu o mestiço como um objeto indeterminado, incapaz de propor-se como um sujeito.

Este objeto, o mestiço ou cultura miscigenada, está eivado de componentes raciais e de

controle social [...]”. A justaposição do conceito de cultura à noção de raça estabelecida pelo

conjunto de procedimentos ideológicos de controle social se dá compondo o jogo discursivo

necessário para abreviar ou enfim obscurecer a discussão em torno do “problema do negro”,

garantindo o aproveitamento do “melhor da cultura negra”.

Para Kaloustian (2005) esse pensamento hegemônico enfatizou a formação da família

de negros e sua relação com a irregularidade e a pobreza, que foi construída historicamente

pelas elites e propagada até a presente data por força política e ideológica.

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Com dizia Santos (1998, p.154):

Ser negro no Brasil é, pois, com freqüência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente comporta-se [...].

A construção social de uma relação baseada no poder fez com que os negros

assimilassem sua inferioridade e ao mesmo tempo aprendessem a se ver como objetos, pois

como escravos tinham que abdicar do seu corpo, do controle da própria vida e destino;

tornando-se vulnerável à violência que se legitima e se naturaliza quotidianamente.

O processo civilizador ao longo dos cinco séculos, quatro de escravidão propriamente

dita e um de exclusão, trouxe consigo estereótipos raciais que se cristalizaram a partir do

arcabouço do patriarcado, pela política de controle social. As relações étnico-raciais que se

seguem mostram que a imagem e o imaginário sobre o negro estão relacionados à submissão e

a dependência, que per si orienta até hoje nossa sociedade a enxergá-lo como sujeito

diferente, de direitos diferenciados ou de não-direitos (CRUZ, 2004).

O fracasso histórico em amalgamar as etnias coexistentes no Brasil possibilitou a

edição de uma distorcida nacionalidade e cidadania brasileira, inspirada na superioridade dos

brancos que insistiram em não “enxergar” o negro como seu semelhante e não como alguém

diferente, a ponto de negar formas de proteção e de assistência necessárias ao ser humano de

cor negra. E, mais do que isso, exigindo “branqueamento” como forma de apagar, dar sumiço

no corpo e na identidade negra.

Portanto, de ordem ideológica o ato de rejeitar e discriminar está muito presente e vivo

no imaginário e discurso quotidiano de brancos e negros, que não conseguem forjar

completamente seu comportamento para dizer-se anti-racistas, deixando escapar inclusive

alguns jargões populares que identificam a representação social que tem no self do negro:

“negro correndo na rua é ladrão”, “negro filho de cachorro”, “negro só sobe na vida quando o

barraco explode”, “negro só anda de carro quando vai à caçapa do camburão”.

Nesta perspectiva, somos levados a esmos pela ideologia dominante a pensar e tratar o

negro com descaso, desprezo, desrespeitando as diferenças étnico-culturais e desqualificando

a priori seu potencial humano, atitude racista, que tem dificultado a inserção valorizada do

negro na sociedade.

Em Lopes (2005) encontramos estudos confirmando que os negros seguem no

mercado de trabalho ocupando cargos inferiores à sua qualificação e recebendo mais baixos

salários se comparados aos dos brancos com mesma qualificação.

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Diante do exposto, entendemos que ao longo da história muitas foram às mudanças

que se processaram no interior da sociedade por fins econômicos, políticos, culturais e

religiosos que conduziram ao comportamento contemporâneo dos indivíduos negros e sua

família.

Gália (2003) aponta que nos últimos tempos os indivíduos negros têm a necessidade

de demarcação de território, valorização pessoal e visibilidade social. A busca pelo poder tem

feito parte do jogo social para sobrevivência e tem contribuído para que os negros busquem

igualdade nas relações, resgatem o seu eu, suas crenças e valores, fortaleça seu ego a fim de

disputar em condições equânimes oportunidades, espaços e lugares.

E é justamente esta estrutura que dá início na pós-modernidade ao que Baumann

(1998); Freud (1997) apontam como crise, onde “[...] deixar de conquistar algo significa uma

grande fonte de angústia [...] o desejo de conquista é fonte de ansiedade”. De onde

entendemos que a liberdade adquirida no pós-moderno caminha junto com o aumento da

necessidade de materializar a conquista, principalmente para os negros que viveram anos a fio

em uma ordem conservadora, restritiva e de tabus. Hoje, naturalmente rejeitam a idéia de

inferioridade, de subserviência, trilhando caminhos em busca do prazer que está reiterado na

aquisição de prestígio e poder que nunca tiveram.

Prova disso, tem sido a presença e força do movimento negro, principalmente na

Bahia, através da organização de grupos na defesa dos direitos da população negra e de uma

participação cada vez mais ativa na sociedade. A criação desses espaços, além de outros

tantos movimentos, tem ajudado o negro no reconhecimento de si, da afirmação da sua

identidade negra, reconstituindo sua história de luta e de busca pelo empoderamento.

O caminho percorrido foi longo, por isso, não podemos deixar de dizer quanto temos

que enquanto sociedade civil engendrar esforços para que crianças, adolescentes e a

população negra em geral sejam reconhecidas no tocante às políticas públicas, como sujeitos

de direitos, cidadãos.

Como vimos, a família do negro teve sua identidade destituída ou mesmo arrancada,

pela violência sofrida ao longo dos anos, fato que contribui para que enquanto instituição

formadora da identidade social, étnica e cultural de seus membros propagasse através das

relações familiares e sociais o que aprendeu e viveu de violência.

Diante destas considerações, podemos entender como a violência foi e continua

fazendo parte da vida e prática quotidiana da família do negro, passando de geração em

geração como uma espécie de herança e cada vez mais fortalecendo o ciclo de violência.

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3.3 O VISÍVEL E O NÃO-VISÍVEL DA VIOLÊNCIA NUMA SOCIEDADE RACISTA

Tomamos como questão central para discussão da violência causada pelo racismo, a

família, concordando com Rolin (2006) de que a violência é uma construção coletiva que se

mostra alicerçada nos entremeios indivíduo-família-comunidade. Por assim entender,

investigamos a violência no quotidiano de adolescentes negros e seus familiares, utilizando

como foco as organizações e relações familiares desses indivíduos na presença (percebida ou

não) do racismo, porque supomos que este seja um dos fatores determinantes da violência,

tanto familiar quanto social.

O viver humano na esfera micro e macro-social têm sido permeados de conflitos,

desde os primórdios da humanidade, sendo originado por uma cultura da violência e orientado

por uma ideologia de violência (MULLER, 2006).

Podemos tomar como exemplo os escritos bíblicos que revelam o surgimento dos

conflitos e da violência no ambiente familiar através da disputa de dois irmãos que culmina na

morte do Abel por Caim. A passagem bíblica revela que a ganância e o poder produzem ódio

e ressentimento nos corações levando ao aniquilamento uns dos outros.

À medida que se estabelece no quotidiano de convivência familiar uma relação

assimétrica e hierárquica, marcada por desigualdade e subordinação entre familiares, a própria

relação de poder, disciplina e dominação que persegue estes indivíduos dentro e fora dos

contextos familiares dá margem aos atos violentos.

De acordo com Zaluar (2002, p.43) a violência se inscreve no interior das consciências

e subjetividades dos indivíduos que não se reconhecem como sujeitos, nem como cidadãos,

pois não encontrou abrigo na família e “também não foi acolhido na escola ou pela

comunidade, a sociedade passa por ele como se ele fosse transparente, como se não tivesse

nenhuma densidade, ontológica, antropológica, ou sequer, humana”.

O ser humano necessita da condição de pertencimento a alguém ou algo para existir,

ou seja, para que possa ser alguém ele precisa seguir um padrão, uma referência. Os alicerces

familiares e sociais são estruturas que ajudam e apóiam os indivíduos na transposição dos

obstáculos, enfrentamento dos desafios e manutenção do seu equilíbrio. Neste contexto,

promovem a formação da identidade e personalidade dos indivíduos, isto é do seu self.

No entanto, quando o ser humano constrói-se às expensas de uma repudia familiar e

social, extrai-se do indivíduo a possibilidade de crescimento e desenvolvimento saudável,

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pois os sentimentos de desvalorização e inutilidade comprometem sua imagem enquanto

pessoa e sua relação com o outro.

De fato, o comportamento violento é por sua natureza um fenômeno da ordem do

vivido e cujas manifestações provocam ou são provocadas por uma forte carga emocional de

quem a comete, de quem a sofre e de quem a presencia (MINAYO, 2006). Portanto,

conjeturamos que os indivíduos possuem graus de risco diferenciados para a prática da

violência, na dependência da cultura, classe social, sexo, idade e raça.

Contudo, para entender a motivação de comportamentos violentos, partimos do

pressuposto de que a violência acompanha o núcleo familiar que apresenta história

intergeracional conflituosa, permeada de dificuldades sócio-econômicas e que não obteve

suporte social suficiente (SCHIMICKLER, 2001).

Neste sentido, o estudo da violência nas famílias de negros, que são em sua maioria

indivíduos pauperizados e historicamente excluídos remonta a importância de discutir a

relação racismo-violência, considerando o racismo como uma forma de violência

experienciada quotidianamente pelos indivíduos negros.

Observa-se um número volumoso de publicações sobre as violências e suas

repercussões à saúde dos indivíduos. Os diferentes autores têm pontuado a dificuldade de

explicar a etiologia e causalidade da violência, reconhecendo sua dinâmica e complexidade,

como também de estabelecer estratégias apropriadas à resolução deste conflito (MINAYO,

2006; BATISTA, 2006; BIANCARELLI, 2006; JÚNIOR E OLIVEIRA, 2006).

Pensando na violência como um fenômeno complexo circunscrito nas diversas

dimensões da natureza humana e no contexto das relações, o modelo ecológico proposto pela

OMS busca respostas ao fenômeno pela análise dos fatores biológicos e pessoais, carregados

de subjetividade e concentrando-se nas características que predispõem os indivíduos a

vivência de violência, relacionais, comunitários e sociais mais amplos, evidenciando quais

interações e influências estão imbricadas com sua ocorrência (OMS, 2003 apud MINAYO,

2006).

Müller (2006, p.21) ao tratar da etiologia da violência, apresenta como primeira causa

para justificação da violência, a natureza humana, para o autor “[...] é o homem violento que

vai criar a ideologia da violência [...]”, pois o ser humano ao possuir razão, diferencia-se dos

demais animais, agindo conscientemente na escolha pela destruição do outro, sendo, portanto,

o único animal na natureza que realmente é violento, uma vez que possui a capacidade de

violentar deliberadamente.

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Estas considerações colocam a natureza humana como fator predisponente para a

vivência da violência, denotando que fatores biológicos e pessoais próprios do ser humano

influem fortemente para o comportamento de violentar e/ou ser violentado.

Segundo Minayo (1994, p.7) tal ponto de vista erudito, só se justifica no estudo

legítimo da violência como um fenômeno multifacetado que abarca componentes do plano

individual, pois “trata-se de complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial [...]”, como

também que se conecta com os demais planos da vida deste indivíduo, a saber, “[...] seu

espaço de criação e desenvolvimento é a vida em sociedade [...]”.

Daí conclui-se que a violência não faz parte da natureza humana e, portanto, não tem

raízes biológicas, motivo pelo qual é valorizado o contexto histórico, das relações, do Direito,

da Psicologia, da moral e das vertentes político-econômicas para análise das violências. O agir

violento é um fenômeno humano-histórico construído socialmente, onde algumas situações

potencializam outras, levando-se em conta as representações individuais, os espaços de

convivência humana e as especificidades dessa ocorrência. É nessa dialética de

interioridade/exterioridade ao ser humano, que a violência, na sua complexidade, deve ser

analisada em rede, como adverte Domenach (1981, p. 40): [...]formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e grupos tem que ser relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem.

Os aparatos legais da sociedade moderna para manutenção da vida civilizada, ordem e

segurança nacional sob responsabilidade do Estado, tem sido a repressão, seja através do

armamento policial, validadas pelo uso abusivo da força pela polícia, sistema de justiça

criminal, que mostra sua fragilidade e ineficácia quando revela as discrepâncias e injustiças

sociais que enfrentam os cidadãos, a fraude política ou políticas sociais inconsistentes ou

ainda carência de assistência social e de saúde (BATISTA, 2006).

O modelo também evidencia que outros fatores sociais mais amplos como a jurisdição,

norma, cultura e ideologia utilizadas socialmente como forma de resolver conflitos entre os

indivíduos podem ao invés de atenuá-los, agravá-los.

Na seqüência, aponta-se o fator relacional e sua importância no desenvolvimento da

violência. O processo inicia-se a partir das interações no núcleo familiar e alimenta-se pelo

movimento indivíduo-família-comunidade.

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Müller (2006) reitera que as interações sociais são em sua essência conflituosas, já que

ao estabelecer um processo de convivência com alguém, várias vezes percebemos o outro que

se aproxima como uma ameaça, mesmo no núcleo familiar, onde as pessoas são íntimas,

buscam acolhimento e tem afinidade.

Na família, o nascimento de um novo ser demanda responsabilidade, envolvimento e

preparo dos membros para aceitação, caso contrário, abre-se a possibilidade para o

surgimento do conflito e situações em que permeia a violência.

Parece que a ameaça que o alguém representa a outrem, está pautada no medo da

ruptura da ordem estabelecida ou que se queira estabelecer. Assim, socialmente, o outro pode

ser reconhecido como alguém que ameaça os meus direitos ou o que eu já consegui

conquistar, àquele que contraria os meus desejos, limita minha liberdade enquanto ser e

ameaça minha própria existência. Então, o medo da perda de algo, pode incitar a motivação

para o enfrentamento do outro, no intuito de resolver o conflito e assim, garantir aquilo que

foi perdido.

Neste sentido, o gerenciamento inadequado do medo do outro com quem convivo e o

uso equivocado da agressividade e força para resolução dos conflitos oriundos das relações

sociais quotidianas engendram atos violentos.

Quando se avança para análise do sistema de relações comunitárias e sua influência na

dinâmica da construção da violência, perceber-se que os modos de sociabilidade podem

contribuir na vitimização ou perpetração da violência. Ou seja, as relações estabelecidas entre

indivíduo/família, vizinhança, amigos, escola e trabalho quando marcadas por desigualdade,

sobretudo pela discriminação corroboram para criminalidade e delinqüência.

É interessante notar que as causas da violência são bastante profundas e entrelaçadas

por fatores intrínsecos e extrínsecos aos indivíduos, cujas conexões fortalecem sua existência.

A propósito, apesar da subjetividade que envolve a situação de violência, evidentemente há

uma objetividade em sua manifestação que evidenciam que suas causas e conseqüências são

derivadas de um contexto de desigualdade e exclusão.

Portanto, tomamos os pressupostos de Maciel (1997) para discutir a questão do

racismo como um tipo de violência a que sempre esteve exposta à população negra,

destacando a cor/raça como integrante dos mecanismos utilizados para essa ação-social

discriminatória e violenta.

De acordo como o autor com o fim da escravidão, os negros buscaram participar da

sociedade dita livre em igualdade de direitos, tornando as relações raciais mais conflituosas, e

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fazendo com que, o racismo latente começasse a emergir como argumento diferenciador entre

brancos e negros com intuito de manter o status quo da população branca.

Outro pressuposto a ser considerado foi a substituição do tráfico de escravos pelo de

imigrantes, como forma de estabelecer um exército de reserva e mão-de-obra barata ao capital

industrial, mantendo o controle social (controle do negro). Como também, as estratégias de

miscigenação, ideal de branqueamento e democracia racial tinham como objetivos a

desconstrução da identidade negra.

O terceiro pressuposto é de que os movimentos reivindicatórios dos negros para

consecução dos objetivos sociais, econômicos e políticos se confundem com o do branco

pobre, que está meramente situado na esfera econômica, dificultando as reivindicações

específicas dos negros que não tem só haver com os aspectos econômicos.

O quarto pressuposto é que a violência sempre foi desde a escravidão o instrumento

utilizado para manter a população de negra fora do cenário social representativo. A proposta

era criar algo para relativizar, frenar o negro socialmente, por isso, ao aglutinar as raças negra

e branca em um depositário – o mestiço, suas manifestações estariam no mínimo restritas,

tornando-os vulneráveis a dominação-exploração.

Observa-se que estes fatores históricos e ideológicos utilizados na formação do caráter

nacional e na época da escravidão que perduram no imaginário contemporâneo contribuíram

para formação dos selfs dos indivíduos brancos e negros culminando no que denominamos

imaginário social do negro e que vem contemplando o processo de construção da violência

contra o negro e a partir do próprio negro está baseada em princípios racistas que alimentam

a todo instante a discriminação.

Portanto, o racismo vivenciado por indivíduos negros e sua família é um tipo de

violência que tem suas raízes na barbárie da escravidão e se estende ao século XXI de modo

sutil, mas com toda a carga ideológica do passado, de modo que reforça quotidianamente o

sofrimento psíquico vivido por estes indivíduos, produzido e reproduzido na sua história de

vida.

O racismo, enquanto ideologia dirigida pelas classes dominantes, vai sendo

interiorizada pelo restante da sociedade, num movimento compulsivo de institucionalização

hegemônica, onde os negros são considerados ignorantes, indolentes, inferiores.

A palavra “racial” foi emanada no século XIX, através da teoria do determinismo

racial que postulava a superioridade da raça branca sobre as demais. Ao estabelecer distinções

entre as raças incentivava uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça,

tida como pura e superior, dominar as demais inferiores, a partir de características

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supostamente biológicas. E, apenas no século XX introduziu-se formalmente o termo “raça”

para combater todas as formas de miscigenação, na prerrogativa de que a mistura de raças

levaria a raça humana a graus sempre maiores de degenerescência, tanto física quanto

intelectual, diminuindo sua vitalidade, capacidade criativa, além de propiciar a corrupção e

imoralidade. Por estas, e por muitas outras razões, ideologicamente o racismo tomou corpo no

imaginário dos indivíduos e o preconceito contra pessoas negras, julgadas inferiores, alimenta

através dos tempos, atitudes de extrema hostilidade contra o objeto de dominação e

exploração (CHAUÍ, 2007).

Para MUNANGA (s/d, 2009) o racismo é uma forma de extermínio de populações,

para que a hegemonicamente mais forte possa dominar/governar/explorar as demais, assim: a classificação da humanidade em raças hierarquizadas na realidade é mais uma máscara doutrinária que científica, utilizada para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana que se esconde nas nuances de cor de pele, olhos e cabelos formatados pela melanina. Sem dúvida, a intenção de banir as raças mais inferiores foi uma verdade discutida nas teorias racialistas que se difundiram rapidamente dos círculos intelectuais e acadêmicos para as populações ocidentais dominantes, depois pelos nacionalismos nascentes como o nazismo, a fim de legitimar as exterminações necessárias, configurando-se na grande violência que foi a Segunda Guerra Mundial

Chauí (1985, p.28) considera que a violência pode ser entendida como um problema

de poder, estando representa pela “conversão de uma diferença e de uma assimetria numa

relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e de opressão” ou

“ação que trata um ser humano, não como sujeito, mas como coisa”.

Quando a autora expressa sua concepção de violência revela que a discriminação

racial é um ato de violência, pois o sujeito é visto e concebido como “coisa” pelo agressor, um

sujeito desprovido de valor e identificação social, inferior, insignificante.

O preconceito e discriminação racial são manifestados através de comportamentos

individuais e coletivos de repugnação, não-aceitação e desfavorecimento dos indivíduos

negros, a despeito da instaurada abolição da escravatura, que fazem com que estes

experimentem progressivamente um processo de exclusão social, cultural, moral e de

identidade.

O ponto de partida para este processo de estigmatização segundo Azevedo (1987) foi a

percepção por parte da elite branca que a população negra era majoritária dentro do

contingente populacional brasileiro, o que fomentou uma maciça política imigratória européia

a fim de diluir pela miscigenação o poder de mobilização e organização da população negra

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na reivindicação por seus direitos. A alternativa viável para o fortalecimento da hegemonia da

elite branca era o investimento numa miscigenação capaz de levar a população negra à

extinção.

O fato é que diante do medo, dos pesares, da angústia e estresses acumulados pela

violência física e simbólica durante quase quatro séculos de escravidão por qual passou a

massa negra, motivou a elite branca a buscar estratégias de controle da situação, a exemplo de

políticas institucionais excludentes que fadavam o negro ao insucesso e os confinavam ao seu

biótipo diferente e, portanto, degenerado e inferior.

A miscigenação enfatizada por Carone (2002) aponta que o cruzamento racial não foi

um processo natural, foi mais uma das violências sofrida pelo negro, contrariando Freyre

(1980) na sua afirmativa de que a miscigenação foi um precursor da democracia racial.

A exigência de branqueamento e das normas advindas dessa ideologia era condição

sine qua non ao negro para o alcance de ascensão social e adequação à vida civilizada em que

viviam os brancos.

Abordar a violência racista significa repensá-la na ordenação do passado, dos

determinantes históricos e na materialização da violência simbólica, subjacente da ruptura de

vínculos e identidade do ser negro, ao longo das gerações.

Como afirma Santos (2007) a violência simbólica descrita por Pierre Bourdieu refere-

se a um tipo de violência cuja matriz está arraigada nos símbolos e signos culturais do pátrio

poder, como uma espécie de pacto desenvolvido com base em um respeito que "naturalmente"

se exerce de alguém para outrem, impetrado no sentido de manter a ordem das coisas. Um

tipo de violência simbólica, como é o caso do racismo, muitas vezes é exercida com o

consentimento da vítima, não sendo percebida como violência, especialmente pelo

reconhecimento implícito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas que

efetivamente dominam no cenário macroeconômico e político.

Na verdade, é como se houvesse uma concordância entre o dominador e o dominado,

em acertar posições de comando e submissão respectivamente, na qual a dominação é

legitimada por ambos de certa forma; quando na verdade apesar de não ser vista, ou

concretamente delatada, a violência está ocorrendo pela ação das forças sociais e pela

estrutura das normas internas do campo do mundo social em que os indivíduos se inserem, e

que de certa maneira se incorporam (até mesmo corporalmente) em seus habitus.

É neste contexto social que vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder e se

estrutura uma relação assimétrica entre os indivíduos, palco para o exercício da violência.

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O branqueamento, perverso em sua concepção, nega ao indivíduo negro a construção

de uma identidade distante do passado escravocrata e dos indiscutíveis sinais de inferioridade

instituídos pelo branco.

Ao espelhar-se no branco, o negro perde a representação de si mesmo, constituindo-se

uma ameaça para si e seus semelhantes negros, porque tudo que lhe é familiar passa a ser

visto como hostil e é projetado para fora, traduzindo o sentimento de insegurança, proveniente

da fragilidade de auto afirmar-se (BENTO, 2002). De negro passa a branco em todas as suas

vicissitudes, destituindo-se da condição de negro, sente-se branco e, portanto, como branco,

pode hostilizar o outro que é negro obstinado à espoliação.

A violência racista, nascida da projeção do branco sobre o negro obriga o indivíduo a

experimentar uma verdadeira alienação relacional, mobilizando conteúdos inconscientes na

contemporização de uma maneira mais confortável de ser negro.

A internalização paulatina do desejo de ser branco extirpa do quotidiano do negro o

amor entre indivíduos negros, em todos os tipos de relação, inclusive nas conjugais. O negro

ao formular em seu self um projeto identificatório incompatível com o seu biótipo cria um

fosso relacional com o outro negro evitando macular sua brancura. A partir desse desarranjo

psíquico mantém aspiração por relações conjugais com brancos, com o propósito de expurgar

a cor negra das gerações seguintes, no desejo veemente pelo próprio extermínio (COSTA,

1983).

A violência racista imperativa nas ações do branco contra o negro e do negro contra o

próprio negro, ao conseguir subverter a organização mental dos indivíduos, ultrapassa os

limites psicossociais necessários à preservação da auto-estima, auto-imagem e autoconceito

dos negros sustentando muitas das violências na atualidade.

Partimos da experiência de adolescentes que vivenciam cotidianamente a

violência/racismo em sua família aceitando a prerrogativa de Bento (2002, p.34) que assevera:

“as inibições, repressões e fracassos vividos por um grupo geram nele cargas de rancor que

podem explodir, da mesma maneira que, em nível individual, o medo ou a angústia liberam e

mobilizam no organismo forças incomuns”. Justamente na adolescência, fase da vida humana

marcada por mudanças, construções, busca de realizações, onde se tem necessidade de

felicidade, os impactos dessa vivência de dor e sofrimento ocasionados pelo racismo lhe

trarão prejuízos nos campos psicológicos e afetivos podendo conformar padrões de

comportamento violento.

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3.4 SER ADOLESCENTE NEGRO

A adolescência é a fase do desenvolvimento humano em que se delineia a identidade

pessoal e social, nascida e negociada dialeticamente no plano espaço-temporal integrando

passado, com identificações e conflitos da infância; presente, que requer reestruturação

momentânea do self; e futuro, com suas perspectivas e antecipações (OLIVEIRA, 2006).

Na compreensão da autora, esta fase marcada por conflitos subjetivos de foco

biopsicossocial, suscita ajustes do indivíduo a uma ampla pauta de reconstruções identitárias

envoltas num processo transacional de elaboração mental e biológica de um novo ser. O

corpo e auto-imagem que se impõe à condição de adolescente trazem mudanças de

posicionamento mediadas pelas relações sociais, principalmente entre as gerações.

O corpo é um objeto social usado pelo indivíduo para pensar, representar, interagir e

comunicar-se com os outros e consigo mesmo (CHARON, 1989). Utilizando o critério da

“imaturidade” biopsicosocial da criança e do adolescente, o social projeta no corpo infantil

uma referência de dependência do outro (adulto) para que este corpo ainda inapto possa

enfrentar e sobreviver às adversidades. Assim, nessa relação social assimétrica o corpo

mediatiza e posiciona a criança e o adolescente como um ser frágil antecipando e

confirmando a condição de inferioridade da criança e do adolescente na composição familiar.

Segundo Chauí (1986), exatamente por não ter autonomia e capacidade de defesa para

resolução de conflitos, estes são mais vulneráveis, e nesse sentido, mais expostos às situações

de violência.

O corpo adquire dimensão significativa na vida do adolescente, definindo a história de

cada um, suas experiências, perdas e conquistas, atuando igualmente no desenvolvimento de

autoconceito, auto-estima, auto-imagem e de outros conceitos (OUTEIRAL, 1994; OSÓRIO

1992).

O adolescente, na relação com o próprio corpo abre a possibilidade de conhecer-se, re-

conhecer-se e mostrar-se. O corpo assume um importante papel na aceitação ou rejeição do

adolescente pelo grupo, logrando sucessivas reconstruções identitárias em resposta às

exigências sociais que são ditadas pelo corpo idealizado.

Os adolescentes vivem e manifestam intensamente a preocupação com o corpo, a

aparência e o ideal da beleza proposto pelo grupo. A valorização do corpo dá-se, no início da

adolescência pelo desejo de identificar-se com os outros. O corpo, enquanto objeto

materializado permite pelas características físicas observáveis, comparação, avaliação e

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apreensão de um "eu” concreto. Mas, no final da adolescência o corpo passa a ser objeto de

conquista, subjazido pelo estar com o outro, como também, da definição do "eu" mais abstrata

regulada por valores, crenças e padrões sociais.

A notável valorização do corpo é abordada por Savietto e Cardoso (2006) como um

fator que propicia angústia e insegurança na adolescência, já que ao ser representado pela sua

aparência corporal o sujeito sofre exposição e avaliação constantes. O corpo, que integra as

transformações que ocorrem no tempo-espaço da adolescência, passa a ser o princípio

orientador do interesse ou do desinteresse do adolescente pelo outro, mais ainda, da busca

pelo corpo desejável ou compatível.

Para estabelecer a importância do corpo para o adolescente é imprescindível entendê-

lo, tal como é significado na adolescência, objeto pulsante e animado, que tem linguagem

própria é dotado de sentido libidinal na mais forte expressão do vigor e da potência; é assim

uma referência para o mundo adolescente.

O indivíduo, na adolescência, processa sua imagem a despeito do que os outros

expõem sobre seu corpo. O corpo possui um valor inestimável na relação com os outros e

consigo próprio, apresentando-se como prioritário e determinante na satisfação relacional e de

auto-estima, na insatisfação ou até na negação de si mesmo (CORDEIRO, 2006).

A formação do self adolescente emprega um processo de reflexão e observação

simultâneas de experiências captadas no meio externo a si, pela qual o indivíduo se julga, se

compreende, vê a si mesmo e a sociedade (BIDO, 2006).

Existir entre “iguais” e obter aceitação do grupo de convívio é um construto da

adolescência, que abarca uma ampla pauta de conflitos e crises, principalmente, a partir da

representação que o adolescente elabora sobre seu próprio corpo. Estas representações

advindas de experiências passadas e presentes, reais ou fantasiosas, conscientes ou

inconscientes regulam a relação do adolescente com o grupo de pertença promovendo seu

self, sua ação, e, como conseqüência adoção de sua configuração identitária.

Estudo sobre a relação do adolescente negro com seu corpo, foi realizado por Gomes

(2002) intitulado “Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra

nos salões étnicos de Belo Horizonte” que representou tese de doutorado na área de

antropologia. O autor capta através de uma escuta atenta quais as vivências e representações

corpóreas do negro sobre seu próprio corpo e evidencia que várias depoentes, ao reportarem-

se ao corpo, relembraram momentos significativos da sua história de vida, dando um destaque

especial à trajetória escolar, momento da infância e adolescência.

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Considerando que o corpo fala a respeito do nosso estar no mundo, quando as

depoentes se reportam ao seu corpo negro e ao cabelo crespo como marcas que para elas

indicam inferioridade, é porque valorizam o padrão de beleza socialmente aceito que é o

branco; lamentavelmente, dessa forma reforçam estereótipos e representações negativas sobre

o segmento étnico/racial negro e o seu padrão estético.

“A sensação de ter o cabelo constantemente desembaraçado e de não precisar sofrer as

pressões do pente ou os puxões para destrançar o cabelo foram comentários constantes” de

negras que não suportam usar as tranças, porque passaram à infância e/ou adolescência sendo

submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo, para agradar os familiares,

amizades e seus pares, que primam pela beleza branca (GOMES, 2002, p.42).

Assim, desconhecendo o curso da história do uso de tranças que acompanha o negro

desde a África, a técnica de trançar os cabelos é interrompida, porque muitas famílias negras,

desconhecem o valor das “tranças”. No contexto da escravatura, tinha-se a convicção de que

usá-las era uma maneira de arrumar o cabelo das crianças, sobretudo das mulheres, como

também de romper com os estereótipos de que o negro é descabelado e sujo (GOMES, 2002;

GOMES, 1995).

No entanto, para viver em sociedade e manter bons relacionamentos afetivos, crianças

e adolescentes se acostumaram ao corpo branco, sendo que preferem muitas vezes abdicar do

seu corpo negro, pois para Gomes (2002, p.50) “Cortar o cabelo, alisá-lo, raspá-lo, mudá-lo

pode significar não só uma mudança de estado dentro de um grupo, mas também a maneira

como as pessoas se vêem e são vistas pelo outro; o cabelo compõe um estilo político, de moda

e de vida”.

Com base, no exposto, as significações do adolescente acerca de si resultam da

interação do seu self com o contexto relacional cultivadas na comunicação interativa do

adolescente com o outro - amigo, vizinho, família; que agrega valor e estruturação a sua vida.

De acordo com Oliveira (2006 p. 432) “o self adolescente [...] é o arranjo que se

produz na internalização/externalização ativa de experiências capitalizadas em diferentes

esferas da vida cultural e se expressa nas práticas narrativas”. Subentende-se que o

desenvolvimento social do adolescente se fundamenta na relação com o outro, construído da

experiência intersubjetiva para dentro de um contexto concreto de práticas sociais, onde a

cultura apresenta-se responsável pela afirmação das marcas sociais típicas de cada geração.

A adolescência, na atualidade, segrega marcas típicas de uma geração em tempos de

modernidade, que combina diversidade, insegurança e sistemas discriminatórios como base

para formação do adolescente (CASTRO e ABRAMOVAY, 2002).

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Introduz-se impiedosamente, na vida do adolescente a difícil tarefa de integrar o

mundo adulto, dando-lhes muitas vezes responsabilidade, sem que tenha o devido preparo

para assumir. Neste sentido, a família pauperizada tem confiado ao adolescente, o projeto de

ascensão social, perseverando no sentido de torná-lo protagonista, de certa forma, pelas

conquistas materiais necessárias ao sustento dos membros, levando-o a uma série de

frustrações quando do não alcance da proeza.

Percebe-se, no entanto, uma enorme tensão vivenciada pelos adolescentes neste

momento, que traz em seu bojo mudanças nas esferas familiar e social provenientes da

inserção do adolescente no mercado de trabalho. O fato é que, abreviando-se o processo de

adolescer usurpamos do adolescente suas próprias demandas e ideais, obrigando-o as mais

diversas renúncias para que possa assumir as responsabilidades do mundo adulto

(HERMANS, 2001 apud OLIVEIRA, 2006).

Há uma enorme luta psíquica do adolescente para não sucumbir às perdas

conseqüentes das responsabilidades assumidas, que ensejam muitas vezes, na interrupção dos

estudos, no distanciamento dos amigos, no afastamento de casa, na perda da liberdade. O

próprio ser adolescente nessa relação lhe propicia as primeiras limitações de conteúdo

existencial (ASSUMPCAO JR., 2001).

No ínterim das relações os indivíduos significam seu self e a sua ação dependerá das

interações sociais estabelecidas. Ramos (2001, p.14) compreende que:

[...] o processo de adolescer possui componentes genéticos e biológicos, conhecimentos e valores construídos ao longo das experiências de vida [...]. As marcas sociais desse processo fundam-se na história familiar e de socialização, nas relações de igualdade/desigualdade vividas em torno das categorias de gênero, classes sociais e etnia, no partilhamento de preceitos de moralidade e hierarquizações, entre outros tantos elementos que dão contorno a subjetividade humana.

A subjetividade que se reorganiza interna e externamente na relação com o outro e

com a cultura é que desencadeia o processo de identificação do adolescente com pessoas,

grupos, na constituição do senso de si e na sua filosofia e ideologia de vida (REY, 2003;

REY, 2004).

Vygotsky (1984) assevera que é na presença do outro, condição de alteridade, que o

homem se constitui, dado a importância dos indivíduos para formação de outros. O

estranhamento é uma condição que possibilita o reconhecimento de si e do outro, pois para

formação do eu, é preciso reconhecer que existe um outro, que ninguém está só, que o mundo

é relacional, e que esta relação somente se concretiza com ambos; portanto, subjetivar

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inferioridade-submissão em um self na medida em que se relaciona com o outro, aprisiona o

outro ser humano em uma relação conflituosa com seu self.

ROLNIK (1992, p.1) afirma que no “[...] plano das relações, onde se dá o encontro

dos seres no qual cada um afeta e é afetado, o que tem por efeito é uma instabilidade durante

interações sociais, de forma que cada um destes seres, produz transformações em si mesmo e

nos outros e que muitas vezes são irreversíveis”.

No plano das relações sociais, o racismo por conta de sua força ideológica e cultural

incita um duplo processo de exclusão social da população negra, posto que promove um

extermínio identificatório do negro, que não se reconhece como tal e da sociedade que não o

reconhece como sujeito de potencialidades.

Semeado quotidianamente, o racismo, com sua invisibilidade produz muitas

transformações na vida dos indivíduos que são vítimas deste tipo de agressão. Sousa (1983,

p.27) pontua que para viver no mundo dos brancos, o negro precisa estar em constante estado

de alerta, “colocar-se de modo a evitar ser atacado, violentado, discriminado”.

Desta forma, o racismo apreendido nas relações familiares e de socialização, penetra

no corpo e mente dos adolescentes negros, deformando seu self, contrapondo-se a elaboração

mental do seu eu individual e da possibilidade do mim produzido numa relação equânime,

trazendo concomitantemente para seu mundo psíquico e real uma inconcretude do ponto de

vista ontológico.

É nesse sentido que recai o olhar sobre o adolescente negro, que vem construindo sua

existência e self na dependência da cultura e estigmas sociais desfavoráveis.

O adolescente negro tem seu processo de viver desde o nascimento, marcado pelos

atributos de inferioridade herdados intergeracionalmente pela sua família, a citar seu corpo –

lábios grossos, cabelos crespos, pele escura, que nega a si próprio através da não aceitação de

sua feição. Portanto, a identidade do adolescente negro vem sendo construída historicamente

com base na sua “invisibilidade” social, fortalecida pelo preconceito e discriminação,

produzida e reproduzida nos espaços micro e macro-sociais.

O racismo que o negro está exposto representa uma possibilidade de crise existencial

para o adolescente, que vai se afirmando em um contexto de conflitos de identidade/alteridade

tornando o afastamento do outro quase que uma imposição.

Partindo da premissa que os problemas oriundos do racismo encontram-se enraizados

na vida da família de negros, podemos dizer que os pais transmitem aos filhos os

comportamentos sociais que de certa forma fortalecem a ideologia do patriarcado-racismo-

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capitalismo, apresentada por Safiotti (1987, p.17), como fio condutor de um sistema social

discriminatório, onde poder “define-se como macho, branco e rico”.

O adolescente negro destituído de uma identidade própria vem lutando para integrar

espaços que permita torná-lo visível socialmente, reproduzindo o que aprendeu. Para tanto,

estar entre “iguais” tem uma conotação diferente, a caricatura do branco.

O adolescente negro aprende desde cedo que o status social prima pela “brancura”,

que se inicia pela inserção privilegiada na classificação racial. O branco estaria no patamar

mais alto da hierarquia de classificação e os demais mestiços, a depender dos nuances de cor

iriam ocupando a partir da perspectiva de clareamento os degraus posteriores.

Assim, a negação ao pertencimento étnico/racial do negro parece coincidir com o

movimento por conseguir romper a barreira da cor, a fim de poder desfrutar das vantagens da

“brancura”. O corpo se apresenta ao adolescente negro como um impedimento a ascensão e

reconhecimento social obrigando-o a formular para si um projeto identificatório de

branqueamento, tal qual seja possível o seu direito de existência.

Recorremos novamente ao discurso de Sousa (1983, p.27) sobre o problema do ser

negro como produto do racismo e pontuamos que os modos de ser e estar-no-mundo deste

grupo é caracterizado pelo mito2 negro, compreendido através da análise dos elementos que

corroboram na sua composição; pelo poder de penetração que o mito possui nos espaços

sociais, ocupado e vivido pelo negro enquanto objeto da história e pelo desafio de superar-se

continuamente frente às expectativas e exigências da vida social.

O estudo de Gomes (2002) sobre as representações do negro sobre o próprio corpo,

mostra o quanto o corpo fala a respeito do estar-no-mundo, em suas falas os depoentes

deixaram transparecer a sensação de desencontro, mal-estar e desconforto em relação ao seu

tipo físico, cabelo, pele e cor, vividas na época da adolescência.

Nesta circunstância, o descontentamento com o mundo negro auxilia na tomada de

consciência das dificuldades impostas pelo racismo, reiterando a necessidade de construção

de estratégias de sobrevivência para driblá-lo no quotidiano.

Pensamos que as representações construídas sobre o negro no contexto de uma

sociedade racista influenciam formas sutis e explícitas de reação e resistência da população

negra à violência experienciada. Para nós, a violência perpetrada pelo adolescente negro é

uma reação e ao mesmo tempo uma forma de resistência ao conjunto de dispositivos sociais

impelidos ao seu extermínio. _____________

2. Mito é uma fala ou discurso – verbal ou visual – uma forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação, pessoa que

objetiva escamotear o real, produzir o ilusório (Sousa, 1983).

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Enfim, o adolescente tão carente de prestígio e dispositivos familiar-comunitários em

que possa se espelhar vê no mundo das drogas, do narcotráfico e na guerrilha a possibilidade

de auto-afirmação, manifesta pelo poder, controle e dominação capazes de lhes dar voz e

representação, preenchendo o vazio de uma crise de identidade pessoal e étnica.

Neste contexto, Maffesoli (1995, p.24) propõe uma atenção redobrada aos sonhos

coletivos que estão calcados no paroxismo ou no furor, pois ao assumir a forma de fanatismo

e de exclusão, adquirem força na dimensão do real “no corporativismo mais rasteiro, na

miséria do quotidiano, na revolta juvenil” que de modo agressivo e inconsciente carregam

pulsões primitivas que aos poucos impregnam o corpo social mantendo-os segregados por

uma “misteriosa” atração social na qual os remete de uma maneira orgânica ao vínculo social,

expresso numa forma violenta de ser e fazer-se reconhecido.

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Autor do desenho: Anderson Santos Lima

Não há tempo para brincadeira. Tem que trabalhar e estudar.

“... a vida obriga o adolescente a abdicar da vivência dos prazeres próprios da adolescência e ingressar no mundo do trabalho...”

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3 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

A perspectiva teórico-metodológica nos remete ao conjunto de conceitos, proposições

e procedimentos a serem adotados para proceder à reflexão, sistematização, interpretação e

análise de dados de uma pesquisa. Ou seja, delineia a trajetória escolhida para a obtenção de

resposta às indagações sobre o objeto investigado.

Como pesquisadores, estamos constantemente nos questionando: Quais as teorias ou

conceitos teóricos que nos aproximarão dos objetivos do estudo? Como nos aproximar e

aprofundar na compreensão do objeto? Quais as limitações dessa nossa perspectiva e

possibilidades de contribuição na interpretação de situações e contextos?

Partindo desses questionamentos, e com a pretensão de compreender o quotidiano de

adolescentes negros que experienciam a violência no âmbito familiar, optamos pela pesquisa

de abordagem quanti-qualitativa para investigação do objeto violência no quotidiano de

adolescentes negros. A abordagem quantitativa da pesquisa possibilita avaliar a

representatividade e abrangência do fenômeno na população estudada e a abordagem

qualitativa objetiva sua compreensão, portanto, os dados quantitativos e qualitativos da

pesquisa se complementam.

Utilizamos para parte quantitativa um desenho de estudo de natureza exploratória,

onde os dados servirão ao propósito de caracterizar a violência sofrida e praticada pela

população negra, com recorte específico para adolescentes negros.

A abordagem qualitativa de cunho compreensivista está sustentada pelos pressupostos

do Interacionismo Simbólico e conceitos mais significativos da Microssociologia do

quotidiano.

A Sociologia Compreensiva descreve o “vivido” na dimensão tanto real, como

imaginária, estando à segunda na complementaridade da primeira. Os fatos reais da vida

quotidiana não seguem, todavia, um itinerário linear e absoluto, apóia-se na topografia da

incerteza, imprevisibilidade, desordem, irracionalidade e efervescência. Paradoxalmente, o

saber e fazer quotidiano sustenta-se na investigação da aparente normalidade, na repetição, da

necessidade humana de seguimento de rotinas, da possibilidade de compreender o invisível

através do obscuro e subterrâneo, do subliminar existente nos prazeres e representações

constitutivas da vida quotidiana (MAFFESOLI, 1988).

Dessa forma, a Sociologia Compreensiva é utilizada como referência teórica para

pesquisas de abordagem qualitativa que pretendem desbravar a riqueza e a complexidade do

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quotidiano para compreender as interações humanas, segundo Maffesoli (2005) a mesma tem

buscado compreender tudo aquilo que foi separado na Modernidade, época em que prevaleceu

a idéia de que era preciso “separar” para explicar o mundo; justamente à palavra

“compreender” no latim vem de compreendere que significa “pegar tudo junto” sem

fragmentações, princípio indispensável para compreensão das coisas, das situações, do vivido,

já que em pleno século XXI vive-se na tentativa de resgatar valores ditos perdidos e ao

mesmo tempo prevenir a destruição de outros que ainda encontra-se de algum modo em

suspensão.

Nessa perspectiva, o pesquisador pode captar e interpretar as relações interpessoais e

sociais aproximando-se do quotidiano dos indivíduos. Portanto, a quotidianidade

aparentemente inerte, apresenta o indivíduo, sua essência, valores e contradições, como lida

com as questões do quotidiano, o que na vida quotidiana realmente atribuem significado,

como significam suas experiências, atitudes e relações sociais a partir do mundo social e

imaginal.

Para compreender o mundo visível onde se constrói as relações sociais torna-se

fundamental voltar-se para o interior dos indivíduos, reconhecendo no invisível a

possibilidade de obter respostas para motivações e maneiras de ser que nem sempre são

racionais e sensíveis (MAFFESOLI, 1988).

Neste modelo de pesquisa os pressupostos de Maffesoli serão utilizados para nortear

as discussões e análise dos dados, contemplando os objetivos propostos do estudo através da

resposta à questão norteadora: como os adolescentes negros experienciam a violência no

quotidiano familiar?. Tendo em vista a compreensão do mundo visível da violência no

quotidiano do adolescente negro, buscaremos nos bastidores da vida social do adolescente que

formas sociais afloram durante sua vida que o motiva a situação de violência.

Passamos então, aos pressupostos de Michael Maffesoli apresentados na sua obra O

Conhecimento Comum (1988), escrito em 1985, e publicado no Brasil três anos depois, em

que consta “a crítica ao dualismo esquemático”, “a busca pela forma”, a “sensibilidade

relativista”, a “pesquisa estilística” e o “pensamento libertário”.

Quando o autor critica o dualismo esquemático refere-se às teorias positivistas ou às

pesquisas que buscam e dão de certo modo um fim ao problema de investigação, quando do

término da pesquisa. Nesse sentido, a investigação coloca ao dispor da comunidade científica

sua verdade absoluta, contestando qualquer forma de conhecimento científico que não seja

este, objetivo e explicativo, onde a equação matemática mostra um único produto final.

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Com a formulação de outro pressuposto que seria a forma, sua conceituação, natureza

e inserção no mundo social, o autor mostra que a forma é algo estruturante, que atua no

processo de formação dos indivíduos, no qual se agregam eventos, situações, personalidades,

maneiras de pensar, ensinamentos familiares, de grupo, comunidade e outros espaços de

convivência cotidiana, de modo formante e não-formal. Na medida em que se forma o

humano, evidencia-se conflito, ordem, desordem, equilíbrio e desequilíbrio (MAFFESOLI,

1988; ARARUNA, 2007).

No entanto, mesmo aparentemente contrários, os elementos são indissociáveis e

importantes para dinâmica regular e estável constitutiva da organicidade humana. A forma

reserva, a cada elemento, sua própria autonomia e permite apreensão da imagem e sua

pregnância no corpo social (ARARUNA, 2007).

Assim, no estudo do quotidiano, compreender a forma permite aproximação com o

particular dos indivíduos sem negligenciar a dinamicidade presente no contexto de

sociabilidade; principalmente porque a vida está cada vez mais estruturada pela imagem.

A Sociologia Compreensiva aposta na sensibilidade relativista do pesquisador, ou seja,

na sua capacidade em utilizar o racional e o imaginário na pesquisa, cumprindo seu papel de

dar as tantas possibilidades de conhecimento científico a despeito do que é pesquisado, não no

sentido de esgotar ou tornar acabado o tema, mas reivindicando a complementaridade entre a

abstração e a empatia na pesquisa, pois essa forma parece definir bem o sentido da

compreensão explorada no quotidiano, quando emprega a intuição com elemento importante

na pesquisa, admitindo que existe “subjetividade” em toda interpretação humana e que esta se

faz necessária para das respostas também aos problemas científicos, sem, no entanto encerrá-

los; é prudente enxergar que os problemas de pesquisa estarão sempre inacabados, em aberto,

incitando novos olhares, questionamentos e discussões sobre os mesmos.

Maffesoli (1985, p. 37) pressupõe a necessidade de a pesquisa ser estilística quando se

trata do estudo do quotidiano, pois esclarece que “há um estilo cotidiano, feito de gestos, de

palavras, de teatralidade, de obras em caracteres maiúsculos e minúsculos, do qual é preciso

que se dê conta”, assim propõe desvelar as analogias e metáforas que constituem a trama

social quotidiana e que encontra de algum modo expressa nos discursos, cabendo ao

pesquisador decodificar o que tem por trás de um simples discurso.

Já o pensamento libertário consiste na clareza e originalidade do que está sendo dito, o

pesquisador deverá se contentar em dizer o que é e nada mais do que foi dito, “a compreensão

envolve a generosidade de espírito, a proximidade, a correspondência”, ou seja, a

cumplicidade com o objeto de investigação e os sujeitos de pesquisa faz com que sejamos

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elemento desta realidade, que não haja distanciamento entre pesquisador e objeto de

investigação como ocorre na pesquisa quantitativa. Percebe-se que a nossa presença, o estar-

junto serve de reforço ao propósito da pesquisa, pois “há convivência; às vezes, cumplicidade;

diríamos mesmo que se trata de empatia” reafirmando a importância de qualificarmos a nossa

capacidade de abstração, intuição e interpretação dos dados, através do saber fazer e saber

dizer para que se consiga a compreensão desejada. Enfatiza o modo como vamos dizer as

coisas, integrando e promovendo o equilíbrio entre o lógico e o não lógico, de modo a utilizar

categorias irreais para mostrar o real presente nos discursos (MAFFESOLI 1988, p.29 e p.43).

Maffesoli (1998) observa que os modos de sociabilidade e construção da trama social

se organizam pelos recursos da comunicação, da imagem e do estilo que são elementos

marcantes de uma nova cultura que está brotando na pós-modernidade, cultura essa, que está

revolucionando o estar-junto, deixando de constituir uma solidariedade orgânica3para

privilegiar uma solidariedade mecânica4.

De acordo com Maffesoli (2005) a violência está intimamente ligada aos modos de

sociabilidade, a forma e o modo com esta se apresenta, assim propõe que as relações sociais

sejam entendidas à luz das categorias em destaque: poder, potência, teatralidade e a

duplicidade.

Utilizamos um dos pressupostos de Maffesoli para dar sustentação à tese que ora

apresentamos de que o racismo influencia o processo de construção da violência nas famílias

de adolescentes negros, partindo da assertiva de que o estilo estético imposto socialmente é o

que caracteriza o indivíduo branco.

Maffesoli (2001) trata a violência do ponto de vista do seu dinamismo interno, como

algo nato a toda e qualquer civilização, estruturando constantemente a vida em sociedade,

enquanto força e potência, motor principal de uma engrenagem que nos remete ao confronto e

ao conflito. De maneira que a luta permeia as relações sociais e se manifestam tanto por

aspectos negativos, como positivos, a citar: a instabilidade, a espontaneidade, a

multiplicidade, os desacordos, as recusas.

É nessa hesitação que se inscreve a dialética do poder e da força, pois para o autor a

violência social é como se fosse simbolização da força, vivida coletivamente e ritualmente, já

a sanguinária surge quando não há possibilidade de simbolização e significa o retorno do

reprimido, quando o poder consegue enfraquecer a força coletiva (MAFFESOLI, 2001).

___________ 3.Solidariedade orgânica- capacidade dos indivíduos se protegerem, se solidarizarem, viverem de forma afetuosa e integrada.

4.Solidariedade mecânica- estar-junto pela necessidade de cumprir determinados papéis e responsabilidades sociais, ou mesmo lutar pela

sobrevivência de um grupo, a citar o familiar.

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Maffesoli (2001) une o poder à potência, por acreditar que desse confronto nasce a

socialidade. O autor designa a violência social como potência, ou seja, afirma que a potência é

um conjunto de elementos (força, coletivo, diferença) que funcionam bem sincronicamente,

nunca de forma desatrelada. Refere-se ao poder como algo que bloqueia o jogo da

ambivalência social, enquanto a potência refere-se ao pluralismo, à diversidade.

As questões relacionadas com a violência “sanguinária”, como o medo das guerrilhas,

de gangues, a insegurança em andar nas ruas, as organizações do narcotráfico, entre outras,

tem se tornado essencial para entender o nível de violência que vem transpondo os muros da

vida quotidiana, adentrando o interior das instituições familiares, comunitária, da educação e

da saúde e a total falta de controle para freá-la.

Esse imaginário de medo provocado pelo excessivo individualismo é próprio do

liberalismo moderno, onde a sociedade ou instituição cria a imagem do outro, um outro, cujas

conseqüências concretas são a marginalização e a exclusão, por ser alguém que é diferente

(TEIXEIRA e PORTO, 1998).

Nesse sentido, todos os que não se enquadram nos padrões sociais ideais não são

aceitos; em decorrência, sofrem as conseqüências do estigma e da exclusão. De modo que

medidas empregadas para tolher, mascarar ou domesticar a violência, não resolvem o

problema, pelo contrário, fazem mais que alimentar o imaginário do medo e incentivá-la.

Assim, o imaginário exerce um papel de aproximar ou distanciar os indivíduos a

depender do proposto nas sociedades, em se tratando do racismo, podemos dizer que o

imaginário coletivo de que o negro é inferior transfigura-se numa imagem muitas vezes

inapropriada, que o desqualifica enquanto indivíduo e cidadão e na qual se estabelecem

relações de desigualdade e exploração.

Ser e estar-no-mundo de modo ao exercício do poder e a potência de ser alguém estão

relacionados à questão da branquitude, da imagem do branco. No teatro da vida jogar o jogo

de ser branco e aceitar a vida como é e ao mesmo tempo estar-junto e resistir; talvez seja o

trágico do quotidiano que conduz o indivíduo negro, que se encontra em oposição ao estilo

estético preconizado, a experimentação do constrangimento, humilhação, restrições e

limitações, de modo que utiliza como instrumento de resistência a violência.

É por isso que para entender a motivação de comportamentos violentos torna-se

necessário o estudo das interações sociais, pensamos então, na interjeição de duas teorias que

se complementam a Microssociologia do quotidiano e o Interacionismo simbólico.

O Interacionismo Simbólico refere-se a uma perspectiva da psicologia social nascida

entre os anos de 1893 e 1931, com o professor George Herbert Mead, um professor de

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filosofia da Universidade de Chicago que perseverava nos estudos de congruência entre

indivíduo e sociedade. Diante do arcabouço teórico construído por Mead, seguidores e

discípulos do sociólogo, a citar Blumer e Kuhn, pensavam a sociedade reportando-se aos seus

pressupostos, fortalecendo-o e dando contribuições significativas para o entendimento deste

referencial.

Desse modo, a perspectiva teórica tem inspirado estudos do comportamento humano,

principalmente os que apresentam objetos sociológicos de investigação, a exemplo da

violência, empregando categorias estruturais como cultura, normas, valores, estratificação

social e níveis de status para analisar e apreender as significações quotidianas que engendram

“ação social” (PAIS, 2003).

Segundo Mead (1977) a convergência entre o indivíduo e a sociedade está

fundamentada na comunicação simbólica; comunicação que retrata a relação do ser humano

com o mundo. Assim, enquanto teoria interpretativa da comunicação simbólica, o

Interacionismo possibilita perceber a dinâmica dos processos interativos presentes nas

relações entre o indivíduo e sua rede social.

Em concordância, Blumer (1980) assevera que as investigações que buscam a

compreensão do comportamento humano devem dissociar-se de esquemas rigorosos

explicativos. De forma particularizada, deve se remeter à natureza empírica das interações e

ações humanas decorrentes de três premissas: a primeira premissa estabelece que a ação

humana encontra-se atrelada ao significado atribuído ao objeto, dito significante; podendo

modificar-se na relação com o mesmo, dependendo da significação propriamente dita; a

segunda premissa situa que a nascente dos significados é a interação social, ou seja, o sentido

da ação provém de um processo interativo entre sujeito-objeto e a terceira premissa diz que a

significação advém de um processo de interpretação que cada indivíduo dispõe e ao mesmo

tempo habilita ao deparar-se com coisas e situações que encontra.

Além da compreensão destas premissas, outros conceitos são imprescindíveis para o

entendimento da teoria, os quais se apresentam: o símbolo, o self, a mente, assumir o papel do

outro, a ação humana e a interação.

Dentre os conceitos do Interacionismo Simbólico, o símbolo é o que regulariza a

interação entre os seres humanos, na sua ausência a comunicação simbólica fica prejudicada.

Elemento de referência, o símbolo integra o homem a sociedade, lhe permitindo pensar,

comunicar-se e representar, pois é um objeto social usado como base do processo interativo.

Entende-se por objeto as idéias, perspectivas, vivências passadas e futuras dos

indivíduos, como também seu self, mente e símbolo. Portanto, o significado do objeto não se

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esgota internamente no indivíduo, mas, acrescenta-se ao aprendizado social, onde um mesmo

objeto pode ser significado diferentemente pelos indivíduos.

Os símbolos, entretanto, podem ser objetos físicos, pessoas, gestos, comportamentos

ações humanas ou palavras, tudo que possa ser capturado no agir uns com os outros,

adquirindo sentido para quem os utiliza.

Ressalta-se que os símbolos são desenvolvidos culturalmente e socialmente através da

interação, porém não são frutos exclusivos de acordos universais entre seres humanos, muitas

vezes podem ser arbitrariamente estabelecidos perante a criação ou manipulação dos mesmos

pelos indivíduos que os concebem e deles se utilizam. Assim, os símbolos têm significados

sociais e são manifestos para fazer referência ou apresentar a realidade.

Já o self, é um objeto social que surge na infância, através da interação das crianças

inicialmente com os pais e posteriormente com outras pessoas. Ao longo do processo de

crescimento e desenvolvimento, os indivíduos estão experimentando o novo, desfrutando de

experiências e se descobrindo, o que faz com que o self seja elaborado e modificado

constantemente sob influência do processo interativo.

O self é organizado em função da interação social, sendo a sociedade o contexto

dentro do qual surge e se desenvolve, definindo a ação humana. Começa por um processo de

auto-interação, indicação para si mesmo até uma transformação gradativa que se exterioriza

no plano das relações.

Mead (1977) apresenta o self em duas fases analíticas evolutivas do interior do

indivíduo: O Eu e o Mim. Na primeira fase evidencia que ainda não socializado, o indivíduo

conserva suas características naturais e tendências mais espontâneas. Na segunda, reconhece

que à luz da interação, o indivíduo torna-se objeto social e, já socializado, comunica–se,

dirige, julga, identifica, participa e avalia situações vividas.

A mente é a acepção de comunicação do indivíduo consigo mesmo por intermédio da

utilização de símbolos, pode ser considerada como uma interação simbólica com o self. O

indivíduo pela mente é capaz de definir as coisas diante de uma situação: identifica, qualifica,

classifica e desenvolve potencial de ação em relação às coisas significadas. Por razão da

atividade mental, a ação é uma resposta, não aos objetos, mas à interpretação desses objetos

pelo indivíduo.

Charon (1989) ao estudar o que motiva a ação humana, utiliza o princípio da

alteridade para referir-se ao simbólico de assumir o papel do outro na perspectiva

interacionista como um signo precursor da ação, quando diz que somente o encontro com o

outro na alteridade permite a construção identitária e desenvolvimento do self.

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A ação humana é o resultado de um processo constante e ativo de interpelação às

situações vivenciadas, diante da interação do indivíduo com o seu self e com outros

indivíduos. O indivíduo (re) age em resposta à intenção do outro com quem interage, intenção

definida por meio de palavras, gestos, sentimentos que se tornam simbólicos e capazes de

serem interpretados no intercurso da ação.

A interação é o contexto que abriga todos os conceitos traçados para o entendimento

da perspectiva do Interacionismo Simbólico. Os indivíduos em interação assumem papéis,

interpretam, ajustam sua ação em detrimento dos outros, direcionando e controlando seu self,

partilhando perspectivas e comunicando seus símbolos (DUPAS, OLIVEIRA e COSTA,

1997).

No entanto, a interação não é somente o que está acontecendo externamente ao

indivíduo, mas o que se processa no seu interior. O conteúdo interno dos indivíduos e como

agem no mundo define as situações - realidade definida ativamente pelo indivíduo segundo

interação com self e com o mundo, e o modo como essa interação se dá influenciará sua

definição (CARVALHO, CAMARGO, SILVA e SANTOS, 2007).

Por isso, na interação, as vivências do presente são dotadas de valor e significâncias.

Ao agir no presente, o ser humano tanto é influenciado pelo que aconteceu no seu passado,

pelo resgate de suas lembranças, quanto pelo que está acontecendo no exato momento vivido.

Em cada situação de interação, o sujeito está em um momento de sua trajetória de

crescimento e desenvolvimento, trazendo consigo inúmeras possibilidades de interpretação do

material que obtém do mundo externo. O indivíduo é imprevisível e ativo, o que implica dizer

que está agindo constantemente em relação às pessoas, situações e instituições sociais,

percebendo, interpretando e reagindo (CARVALHO, CAMARGO, SILVA e SANTOS,

2007).

Se a interação é construída a partir da ação humana em sociedade, ela influencia a

narrativa pessoal e social ao longo dos tempos e a criação de uma cultura e ideologia de vida

que se constitui e se expressa em corporação social. Dupas, Oliveira e Costa (1997, p.4)

reconhecem que “cada sociedade tem uma cultura; ela ajuda a criar continuidade ao longo do

tempo e é tomada pelos atores como guias para a ação”.

A família e a rede social que integra os espaços de vivência e convivência dos

adolescentes negros são enunciativas de uma interação quotidiana conflituosa, culturalmente

desenvolvida e que desperta para adolescência violenta, trazida essencialmente de tempos

históricos, sobretudo, atualizada nas estruturas sociais contemporâneas.

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Ao reconhecer o racismo como “condição” social capaz de promover a elaboração

psíquica que motiva comportamentos violentos em adolescentes, interessa-nos não somente o

presente, mas as interações passadas que refletem hoje, o dia a dia do negro.

O racismo e a violência advinda da época da escravatura se estruturou na sociedade

moderna, proporcionando um imaginário social de desvalorização do negro, aliando a sua

imagem com fatos e práticas criminais e delinqüências. O fato pode contribuir para o aumento

da violência na população negra, ou, mesmo, estabelecer condições que colaboram para

formação de um imaginário de medo em torno desses indivíduos e um afastamento social.

O referencial do quotidiano em seus conceitos possibilitará a argumentação teórica

necessária a uma compreensão do significado da interação do adolescente com os elementos

envolvidos no seu dia a dia, interrogando-se sobre a violência/racismo que corriqueiramente

passa despercebida, obscurecida.

A noção do quotidiano na sociologia compreensiva objetiva, compreender o

imprevisível, valorar a casualidade, as banalidades, as inconcretudes, as apresentações

incompletas da vida, as subjetividades, o que aparentemente não tem sentido, significado, que

não podem ser mensuradas pelos métodos científicos tradicionais, nem apreendidas pela

repetição, saturação simples das expressões ou eventos de uma formação discursiva

(PEREIRA, 2005)

Neste sentido, o quotidiano é o curso da vida, que segue uma rotina e certa

regularidade. No entanto, da monotonia subitamente pode revelar-se à efervescência, aliás, na

normatividade e repetitividade quotidianas, “no nada de novo” está disseminada a pluralidade

do vivido e da vivência; “[...] a vida quotidiana é também o espaço do ingovernável - donde

pode surgir o imprevisível, o aleatório, o imprevisto”, zonas dialéticas ritmam a tenacidade,

mutabilidade e as circunstâncias da vida social (PAIS, 2003, p.81).

A vida quotidiana se regula pelo que passa verdadeiramente com o indivíduo à

vigência daquilo que o rege, como normas, crenças, valores, como também do que faz para

fugir da rotina, contestar o holocausto; criar espaços, aberturas, frestas, provocar rupturas e

romper as barreiras do insólito quotidiano.

Procuramos saber se esses elementos são significativos na vida do adolescente,

quando/ou na interação com sua família, amigos e sociedade, e se utiliza ou como utiliza seus

mecanismos de defesa e enfrentamento ao agir mutuamente com os objetos mais

significativos na sua vida.

A Microssociologia do quotidiano ao explorar o marco espaço-temporalidade mostra

que os contextos do vivido e da vivência regulam os distintos campos de ação humana, onde

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“as condutas são os textos a que se reportam os contextos, a sua textura, a sua substância feita

de inscrições e traços” (PAIS, 2003, p.123).

Os textos são as maneiras de viver o presente no agir quotidiano do ‘aqui e agora’, que

focaliza a experiência no tempo e no espaço concreto e abstrato, da objetividade, da

subjetividade e do histórico. Dito isto, a textura, é a própria essência humana, a conjunção do

mundo interior dos indivíduos ao seu exterior, de onde se inscrevem traços que irão

conformá-los.

Estratégia de coleta de dados

O estudo contempla e integra dois procedimentos metodológicos, a metodologia

quantitativa com o objetivo de caracterizar a violência sofrida e praticada por adolescentes

negros e seus familiares, e um levantamento qualitativo que se propõe analisar o quotidiano

de vida de famílias para compreender suas concepções de violência, interações familiares e

sociais e quais estratégias de enfrentamento utilizam diante da situação de violência

experienciada.

Período de coleta de dados

Os dados quantitativos para realização do estudo foram coletados no período de

setembro de 2007 até setembro de 2008, retrospectivo a março de 2006 a março de 2007, de

onde se identificaram um total de 1178casos de denúncia de violência, dos quais apenas 121

envolviam diretamente adolescentes. Desse quantitativo, foram selecionados 05 casos, porém

somente 02 casos foram investigados de modo aprofundado.

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Local de coleta de dados

O lócus da pesquisa foram as Delegacias da Liberdade, Delegacia Especial de

Atendimento à Mulher (DEAM) e na Delegacia de Referência no Atendimento à Criança e ao

Adolescente (DERCA) em Salvador-Bahia.

As Delegacias foram escolhidas mediante a utilização de dois critérios, serem

consideradas como referências no atendimento de pessoas vítimas de violência e/ou estarem

situadas em bairros periféricos de Salvador, que abarcasse um grande contingente

populacional negro.

Cenário do estudo

Salvador, considerada a cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, agrega amplo

legado cultural de origem portuguesa, indígena e principalmente africana, tornando-se grande

atrativo para turistas, em virtude da musicalidade, culinária e de religiosidade, certamente seu

patrimônio histórico-cultural e as suas articulações regionais, tornam-se requisitos

fundamentais para se compreender a dinâmica da violência na vida do adolescente negro e sua

família.

De acordo com Soares (2007, p 10), os habitantes da cidade que são considerados mais

pobres não possuem rendimentos ou tem renda inferior a dois salários mínimos.

Aproximadamente 70,6% a 82,0% dessas pessoas moram nos bairros de Mussurunga I, II e III,

Parque São Cristóvão, Alto do Girassol, Raposo, Carobeira, Cassange, Nova Brasília de

Itapuã e entorno; Ilha de Maré; Valéria, ainda em Valéria, Nova Brasília de Valéria, Valéria e

proximidades; Subúrbio Ferroviário, Baixa de Coutos, Periperi e entorno, Pau da Lima,

Invasão Brasilgás, Beco do Bozó, São Caetano, Alagados, Lobato, Alto do Cabrito e

adjacências, Tancredo Neves, Cabula VI, Beiru e entre as áreas da Liberdade e Cabula.

Apesar de Salvador ser considerada a principal metrópole da Região Nordeste do

Brasil e apresentar área de 325 km2, a mesma possui 184 favelas onde residem mais de 30%

da sua população, das quais, 77 são loteamentos clandestinos e 170 loteamentos irregulares

que servem de abrigo a 100 mil analfabetos absolutos e 300 mil analfabetos funcionais. Se

levarmos em conta principalmente o elevado índice de 21,4% referente à evasão escolar no

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ensino fundamental (primeira à oitava série), apesar do recém instaurado Pro - Jovem, que

tenta resgatar o adolescente para conclusão desta etapa escolar, muitos dos jovens não

conseguem completar o quarto ano do ensino básico, contribuindo para a elevação destes

índices de analfabetismo (SOARES, 2007).

Concordamos com Maffesoli (1988) sobre a importância do estudo do quotidiano para

entender a dinâmica de construção social, particularmente quando diz que nos lugares mais

humildes, nas situações mais banais podemos buscar a compreensão de situações

consideradas destoantes e que parecem de alguma forma estar ordenada, porém são

inteligíveis, incompreensíveis se não forem minuciosamente examinadas.

A referência do domicílio para nós foi extremamente importante porque pudemos

estar - junto com os sujeitos de pesquisa no “seu lugar”, que remete a questão da tribo, sua

origem e inserção e seu território, que segundo Maffesoli (2004) produz vínculo, pois

justamente o espaço, o território, o local escolhido passa a contribuir para encontros

afetuosos; proximidade e troca de experiências, que não se faz se não por um sentimento de

compartilhamento emocional e de cumplicidade.

Sujeitos da pesquisa

O primeiro contato com as famílias foi bastante difícil. No primeiro momento, as ruas

estreitas, os becos e as pessoas nos pareciam muito diferentes, e certamente o estranhamento

nos causava medo, pensávamos como seria a família que iríamos entrevistar, se elas iam

aceitar participar da pesquisa e os preconceitos começam a nos acompanhar nesta nossa

caminhada até o domicílio, principalmente por se tratar de uma área de risco, andávamos o

tempo todo olhando ao nosso redor.

Entretanto, para nossa surpresa desde o primeiro momento em que estivemos nos

bairros sempre obtivemos ajuda dos moradores para localizar o domicílio procurado e eles só

nos deixavam depois de cumprida a tarefa da localização, certamente preocupados com o

nosso bem-estar. Já que as famílias entrevistadas moram em bairros de periferia da cidade de

Salvador-Ba, situados em grandes invasões reconhecidas popularmente como “área de risco”

pela iminência do tráfico de drogas. Portanto, a coleta de dados foi realizada pela

pesquisadora na companhia de voluntárias e bolsistas do GRUPO CRESCER.

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Os sujeitos que fariam parte da pesquisa qualitativa eram selecionados pelos boletins

de ocorrências (BO), mediante dois critérios: o primeiro seria constar no BO que se tratava de

adolescentes negros (pretos e pardos) e o segundo critério que fosse um caso de violência

familiar.

Assim, foram sujeitos da pesquisa adolescentes negros e seus familiares que

concordaram em participar e contribuir com o estudo, que já tivessem praticado ou sido

vítima de violência no âmbito familiar e tal registro estivesse formalmente sido notificado nas

delegacias de polícia selecionadas para o estudo.

Então, com base nesses critérios estabelecidos fomos lendo os BO focando nas seções

dos itens cor, idade e também na seção que descrevia o fato da violência, buscando examinar

minuciosamente a história da agressão para certificar-se de que era um caso de violência

familiar.

Terminada essa etapa inicial de identificação dos casos procedemos contato com os

adolescentes no domicílio. No entanto, no decorrer desse processo, ainda tínhamos muitas

dúvidas de como abordar a família, o adolescente, pois de algum modo ia invadir o território

do outro, a sua vida, e ao mesmo tempo temíamos como poderiam reagir quando lhes

apresentasse a proposta de trabalho

As primeiras três visitas domiciliares que realizamos ocorreram na primeira semana do

mês de junho e não obtivemos sucesso. No primeiro encontro, assim como nos demais que se

seguiram imediatamente, não conseguimos localizar os casos do estudo. Nesse primeiro

encontro achamos o endereço, nos apresentamos, mas ao que tudo consta parece ter havido

mudança da vítima e sua família para um novo endereço, porém não houvera tempo para novo

registro ou atualização de endereço na Delegacia. Nos dois encontros seguintes abordamos

sobre o trabalho que pretendíamos desenvolver, entretanto, percebemos certa apreensão da

família ao nos receber e posteriormente afirmaram que já não tinham contato com a pessoa

procurada, pois havia se mudado; enfim despistando muito carinhosamente, mas mostrando o

desinteresse pela proposta de participação na pesquisa.

Retornamos às delegacias e escolhemos outros dois casos de violência familiar para o

desenvolvimento do estudo. O primeiro caso identificado foi o de lesão corporal provocada

pelo ex-marido e o segundo foi de estupro ocasionado por tio, ambos envolvendo mulheres

adolescentes como vítimas.

Diante do já vivido e da dificuldade enfrentada buscamos outra estratégia para

abordagem da família. Primeiramente, ao chegarmos ao local de pesquisa (domicílio) nos

apresentávamos, mantínhamos alguns diálogos a respeito de como chegamos ao endereço da

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vítima na rede e perguntávamos como estava o andamento do caso. Mesmo assim, ainda que

mais receptivos, pareciam aflitos em ter que nos receber. Entretanto, logo que esclarecíamos

que não se tratava de polícia ou qualquer outra investigação, mas da possibilidade de realizar

uma pesquisa percebemos alguns suspiros e enfim uma pergunta: Isso paga? Rimos muito

juntos, e nessas entrelinhas conseguimos conversar, falar da profissão, do que é pesquisar, a

que se destina a pesquisa e, posteriormente, falávamos da proposta de estudo e possibilidade

de participação na pesquisa.

A partir da segunda entrevista percebíamos que o grau de intimidade com as famílias

aumentava, entrávamos, saíamos, o café posto à mesa estava servido, o convite para as

refeições era constante e nas outras entrevistas já havia bem mais correspondência. Logo,

estávamos participando entusiasmadas e mergulhando no mundo dessas famílias através das

conversas informais e das entrevistas.

De certo modo, nas visitas que sucederam estávamos mais tranqüilas, as pessoas

(vizinhança) nos reconheciam, acenavam em sinal de confiança e amizade, com isso o lugar

tornou-se comum e porque não dizer até agradável.

A caminhada até o domicílio já fazia parte de um ritual que se cumpria para realizar as

entrevistas e de algum modo era como uma ponte que precisávamos atravessar para chegar às

famílias que compuseram o corpus da pesquisa.

Mapeamento das famílias

Estudamos então, duas famílias de adolescentes de cor parda, a primeira adolescente

vítima de violência física e a segunda vítima de violência sexual. Entrevistamos um total de

oito sujeitos, sendo cinco adolescentes e três adultos, não conseguimos fazer contato com o

pai da vítima de violência sexual em nenhuma das três vezes em que estivemos em seu

domicílio.

As famílias do estudo estão caracterizadas por codinomes que mostram a força

histórica das raízes da população afrodescendente, elegemos Ogum e Oxossi.

A composição familiar segue como uma apresentação descritiva e Genograma

utilizado como recurso para mostrar o arranjo da família dos indivíduos negros e seu modo de

vivência e convivência familiar.

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A Família Ogum é composta pelo pai, pela mãe, sua duas filhas e dois netos. Eles

moram em casa de invasão de bairro de periferia, a casa apresenta sala, cozinha, um quarto e

quintal. O pai tem cinqüenta e três anos, estudou até a quinta série do ensino fundamental, já

trabalhou em gráfica e hoje é ajudante de pedreiro, sem renda fixa. A mãe tem quarenta anos,

estudou séries iniciais até alfabetização, já trabalhou de doméstica. A filha de dezesseis anos

estuda, cursa a oitava série e trabalha de doméstica. A filha de dezessete anos, não está

estudando no momento, tem dois filhos, foi vítima de violência do ex-marido que tem vinte e

quatro anos, não estuda e está desempregado. Participaram da pesquisa: pai, mãe e filhas.

Pai Mãe

Filha adolescente

Ex -marido Filha adolescente

Alcoolismo

Sofre Violência física

Legenda

Desemprego

Agressores

N N

Conflito

Vítima de agressão do ex- marido

Neto Neta

Figura 1 - Família Ogum

Figura 1- Genograma interacional da família Ogum

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A Família Oxossi é formada por quatro pessoas: pai, mãe (falecida), duas filhas e um

filho. Porém, por morar na mesma vizinhança, convive grande parte do tempo com tia e avós.

A família mora em casa própria de invasão de bairro de periferia, a casa apresenta três

cômodos (sala, cozinha e um quarto), tem energia elétrica e água encanada. O pai tem

quarenta e dois anos, estudou até a sexta série ginasial, trabalha de vigilante e tem três filhos e

sua esposa morreu há quatro anos. A filha do casal de quatorze anos estuda, cursa a quarta

série primária e não trabalha, foi a vítima de violência do tio. A filha de doze anos está na

segunda série primária. O filho de seis anos fica na creche pela manhã e vai para escola de

tarde. A tia mais próxima à vítima mora na casa de sua avó com seu atual companheiro, pois é

viúva de seu primeiro marido, tem um filho com onze anos e outra de seis anos. O seu filho

de onze anos já tentou suicídio, sua grande preocupação. Participam da pesquisa: a vítima de

violência, irmã, sua tia e seu primo, o pai esteve ausente em todas as visitas ao domicílio e

segundo a família o tio abusador encontrava-se no interior do estado da Bahia.

Pai

Filha adolescente

Filha adolescente

Mãe Falecida

Tia

Filho

Tio

Figura 2 - Família Oxossi

Legenda

Filho adolescente

Sofre violência

Vítima de discriminação racial

Agressor /Violência física

Vítima de violência sexual

F

Criança

Filho criança

Agressor /Violência sexual

Figura 2- Genograma interacional da família Oxossi

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Instrumento de coleta de dados

Para coleta de dados quantitativos, utilizamos um formulário, que foi elaborado a

partir dos boletins de ocorrência das Delegacias supracitadas e que foram visitadas

previamente à etapa de coleta.

O formulário (APÊNDICE C) intitulado Violência sofrida e praticada por adolescentes

negros e seus familiares consta de dados de identificação de ocorrência de violência por

natureza, local e data de denúncia, dias da semana, como também campos para preenchimento

de data e local de coleta de dados, outros campos fechados para marcação de apenas um item

sobre características sócio-demográficas da vítima e do agressor e espaço reservado para

descrição do histórico do fato.

Antes da coleta de dados foi realizado um treinamento com um grupo de 10 alunos

voluntários e bolsistas de iniciação científica do grupo de pesquisa GRUPO CRESCER,

objetivando capacitá-los para o preenchimento correto do instrumento de pesquisa. E assim

que obtivemos um quantitativo significativo de formulários preenchidos, iniciamos a

digitação no banco de dados formatado no EPIInfo.

Para realizar a pré-análise de dados quantitativos, efetuamos a conferência do

conteúdo presente no banco de dados do EPIInfo e o resultado final do material digitado.

Por se tratar de estudo retrospectivo transversal apenas de natureza descritiva

exploratória, não estabelecemos uma amostragem, examinamos os BO destas delegacias, e a

partir dos dados encontrados nos BO seguimos a caracterização da violência contra

adolescentes negros. Consideramos adolescentes, os indivíduos na faixa etária de 10-19 anos,

conforme preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, negro, todo indivíduo

preto ou pardo constantes nos registros dos BO, já que Segundo o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatísticas (IBGE) o termo “população negra” refere-se às populações preta e

parda em seu conjunto.

Os dados coletados foram organizados e tratados através do programa STATA 8.0 que

gerou tabelas primárias pelo programa Harvard Graphics, e a partir destas procedemos à

tabulação final.

Desse universo de 121 adolescentes em situação de violência selecionamos

aleatoriamente cinco casos para a parte qualitativa do estudo. No entanto, pelas dificuldades

de localização dos domicílios e também pela disponibilidade de participar da pesquisa,

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somente duas famílias foram estudadas nos meses de junho a setembro de 2008, sendo oito

pessoas entrevistadas no total.

Como instrumento de coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista com

questões abertas. O roteiro para a realização da entrevista (APÊNDICE B) contemplou

aspectos sociais, afetivos e de enfrentamento de situações cotidianas familiares que

determinam à violência, como também, especificidades no que se referem às percepções e

experiências diante do racismo.

O pré-teste do roteiro de entrevista foi realizado internamente como o grupo de

bolsistas de pesquisa e algumas questões realmente necessitaram de ajustes, sendo

reformulado com o auxílio da orientadora e de reuniões no próprio Grupo CRESCER.

Técnica de coleta de dados

O referencial teórico-metodológico da Microssociologia do quotidiano e o

Interacionismo Simbólico permitem o uso de um aparato metodológico amplo e a utilização

de técnicas de coleta como: entrevistas, observação participante, história de vida,

conversações, análise de documentos, cartas, diários, estudos de casos e outras (SANTOS e

NOBREGA, 2004; PAIS, 2003).

Em consonância com os referenciais, escolhemos dentre as técnicas supracitadas, a

entrevista semi-estruturada para coleta de dados qualitativos porque se mostrou mais

apropriada para este estudo, já que este tipo de entrevista parte de questões norteadoras que

interessam à pesquisa, direcionando o pesquisador na compreensão da experiência vivenciada

pelo participante através de uma linguagem discursiva e problematizada.

Trivinos (1992, p.146) mostra que a entrevista semi-estruturada subsidia a pesquisa

compreensiva na medida em que pode dar sustentação aos pressupostos do estudo e

reelaboração de novas teorias a partir do próprio interrogatório. Define a entrevista semi-

estruturada como aquela que através de “certos questionamentos básicos, apoiados em teorias

e hipóteses que interessam à pesquisa e que em seguida, oferece amplo campo de

interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que recebem as respostas

do informante”.

Ainda em relação à entrevista semi-estruturada autores recomendam que seja realizada

em ambiente doméstico, porque este tipo de entrevista costuma ter maior duração e, portanto,

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demanda concentração do entrevistado e do entrevistador. Na residência, por conta da

privacidade do ambiente, a experiência pode ser mais exitosa, permitindo ao entrevistado

maior liberdade para expressar suas idéias e ao entrevistador um ambiente de escuta atenciosa

“do que é dito” e reflexão “sobre a forma e conteúdo da fala do entrevistado”(BRANDÃO,

2000, p.8).

Os primeiros contatos com as famílias em seu habitat conferiram ao pesquisador

conhecer alguns aspectos e cenas da vida quotidiana destas famílias. Deparamos-nos com um

novo desafio o de realizar a entrevista garantindo privacidade e respeito ao sujeito a ser

entrevistado, já que preferimos proceder à entrevista com cada um em particular, acreditando

que por ser uma temática repleta de conflitos necessitaria de cumplicidade entre entrevistador

e o sujeito entrevistado. Portanto, foi uma grande preocupação a escolha do local da casa, mas

enfim, utilizamos os quintais, lajes e espaços de hall para nos distanciarmos um pouco do

restante da família, como também pedimos colaboração aos demais familiares no sentido de

permitir uma privacidade ainda maior para conseguirmos realizar a entrevista.

As entrevistas foram iniciadas com questionamentos impessoais para evitar

desconforto do participante em verbalizar sobre um tema que pode evocar sofrimento e

lembranças desagradáveis.

Abordamos o assunto com muita sutileza, de maneira a deixar o entrevistado presente

durante toda a entrevista. A pergunta norteadora da entrevista “Como é o seu dia-a-dia?” nos

trouxe claramente e de modo espontâneo a percepção do sujeito sobre sua vida, seu dia-dia e

perspectivas. Alguns, porém, ainda se mostraram pouco à vontade para falar sobre seu dia-a-

dia, de modo que invertemos a ordem dos questionamentos e optamos por direcionar a

pergunta para um aspecto do quotidiano: “Como é sua relação com seus pais”?. E nas

respostas ao questionamento, surgiam outras temáticas, como a escola e o trabalho. O tema

Escola apareceu nos discursos daqueles que estudavam e o trabalho para os que trabalhavam,

e assim fizemos o interrogatório sobre o quotidiano, até que no transcorrer da entrevista

pudéssemos retornar ao que não fora respondido e insistir nos questionamentos principais “O

que é violência para você, o que acha da violência, o que motiva o comportamento violento,

qual a sua cor, já foi vítima de racismo, em que situação?”, na tentativa de compreender como

a violência se apresenta no quotidiano do adolescente negro.

Nesse sentido, a entrevista teve uma dinâmica exploratória, onde o sujeito foi

entrevistado mais de uma vez, porque na medida em que analisávamos os dados coletados,

surgia a necessidade de acrescentar novos questionamentos que pudessem dar respostas ou

ampliar as possibilidades de discussão sobre o objeto de investigação.

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Os tempos das entrevistas variaram de vinte até sessenta e quatro minutos, estando as

entrevistas mais duradouras associadas a conversas anteriores descontraídas entre

pesquisadores e entrevistados. Percebemos que os adolescentes, principalmente aqueles que

não estão ligados diretamente aos casos de violência provenientes da denúncia, no caso a de

lesão corporal e de estupro, parecem ter mais facilidade de falar sobre a questão da violência e

do seu envolvimento e de sua família nessa situação.

As entrevistas foram gravadas em MP4, sendo transcritas e validadas durante o

processo de análise dos dados, principalmente nas situações de retorno aos entrevistados para

novos questionamentos ou para dirimir dúvidas sobre o que foi realmente dito pelos sujeitos

de pesquisa.

Embora seja mais indicado realizar a transcrição imediatamente após as entrevistas,

neste estudo, em virtude de num mesmo encontro entrevistarmos dois ou três familiares a

depender da disponibilidade dos mesmos, tornou-se inviável transcrever todas as entrevistas

realizadas em um mesmo dia. Então, a transcrição das entrevistas seguiu a ordem de sua

realização conforme a data da coleta.

O corpus da pesquisa será definido pela saturação teórica dos dados, que implica que

os dados foram coletados até o alcance do objetivo do estudo ou quando nenhum dado

adicional for capaz de acrescentar algo novo e contributivo à análise.

Duarte (2002) afirma que na metodologia de base qualitativa, não importa o

quantitativo de sujeitos que virá totalizar o quadro de entrevistas, a priori, o encerramento da

coleta depende da qualidade das informações obtidas em cada entrevista. O dado é que

recomenda o seguimento ou o cessar das entrevistas, a partir de sua densidade e consistência.

Aspectos éticos da pesquisa

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa – CEP

(ANEXO), da Maternidade Climério de Oliveira da Universidade Federal da Bahia, seguindo

o preconizado para o desenvolvimento de pesquisa com seres humanos, de acordo com a

Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, protocolado sob o número 146-

27.10.06, sendo subprojeto de “O cotidiano de violência familiar na população negra: um

estudo dos determinantes sociais”. Logo depois, contatamos os Delegados responsáveis na

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Delegacia da Liberdade, na DEAM e DERCA e pedimos autorização para coleta de dados,

que foi concedida, de posse das autorizações as pesquisadoras se preocuparam em:

1) A cada entrevista realizada, dar ao participante e/ou responsável o Termo de

consentimento livre e esclarecido (APÊNDICE A) para assinar depois de concedidas as

informações sobre o projeto e sanar possíveis dúvidas;

2) Solicitar autorização dos adolescentes e também de seus pais para que estes

pudessem participar da pesquisa;

3) Requerer antes das entrevistas autorização para gravá-las e durante as entrevistas

respeitar o direito do sujeito de pesquisa de somente falar o que quiser sobre o tema

apresentado;

4) Interromper a entrevista ao perceber qualquer situação de constrangimento ou

sofrimento aparente do sujeito de pesquisa. Perguntávamos sempre ao sujeito se ele queria

falar sobre o assunto ou não, e em caso afirmativo, aguardávamos se recompor

emocionalmente, no caso de não querer falar, apresentávamos imediatamente outro

questionamento como forma de evitar sofrimento desnecessário;

5) Conduzir integralmente as entrevistas, pois, apesar da participação de voluntárias e

bolsistas de iniciação científica do grupo de pesquisa GRUPO CRESCER, da qual a

pesquisadora faz parte, as entrevistas foram realizadas pela pesquisadora, considerando sua

maior experiência para lidar com situações conflitantes que pudessem ocorrer durante o

processo de coleta de dados. As alunas voluntárias e bolsistas de iniciação científica apenas

participavam na escuta dos depoimentos e transcrição dos mesmos, que eram confirmados

novamente pela pesquisadora após receber o arquivo gravado e a transcrição.

6) Utilizar codinomes para identificar cada família e sujeito de pesquisa entrevistado

com o intuito de resguardá-lo de qualquer possibilidade de identificação no material de

entrevista transcrito ou mesmo nas narrativas isoladas, conforme prevê a Resolução para

garantia do anonimato do pesquisado.

7) Foram utilizadas figuras de caráter ilustrativo para identificação de cada capítulo,

sendo de autoria de um profissional de designer que as desenhou e assinou ao final de cada

uma delas, no entanto, para compor a idéia mestra da Tese, foram-lhe repassadas orientações

sobre o que cada desenho deveria representar mostrando através das imagens a força que tem

o discurso e o imaginário no quotidiano dos indivíduos, como também que a imagem expressa

no nosso quotidiano toda carga simbólica que uma situação real trás consigo. Abaixo de cada

ilustração foi colocado texto extraído dos próprios discursos, temas, categorias e

subcategorias da Tese, para dar ênfase a questões consideradas importantes e fundamentais

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para o entendimento da compreensão do quotidiano de violência experienciado pelos

adolescentes e seus familiares.

Análise dos dados da pesquisa e a construção dos enunciados qualitativos

Compreender e interpretar fenômenos, a partir de significantes e contexto da

experiência humana constitui característica da pesquisa compreensiva de abordagem

qualitativa, cujo desenho de apreensão e representação dos dados é predominantemente

descritivo; os dados são organizados por meio do processo indutivo e a preocupação com o

detalhamento metodológico utilizado para o desenvolvimento da pesquisa encontra-se

presente (DUARTE, 2002).

Nessa pesquisa optamos pelo uso da análise de discurso (AD) para proceder

interpretação e análise do material resultante das entrevistas, por conta da sua

interconectividade entre quem fala, o que se fala e o mundo.

Através da técnica de análise de discurso que segundo Manhães e Moura (2004) é

possível desvendar as facetas da vida quotidiana, as experiências que pertencem à vida diária.

O indivíduo fazendo uso da linguagem expressa continuamente as diversas significações

(subjetivadas e objetivadas) provenientes da interação social, consequentemente a ação

humana e seu sentido podem ser compreendidos pela leitura dos discursos, ou seja, através da

análise da linguagem discursiva.

O discurso não representa o mundo concreto, nem a sua totalidade, mas projetam

possibilidades de assumir diferentes realidades e concepções de mundo, já que qualquer

enunciado discursivo permite uma multiplicidade de sentidos, um sentido que não é traduzido,

mas produzido, que se complementa ou compete entre si, formando um corpus constituído

pela formulação ideológica, histórica e lingüística dos indivíduos. Os sentidos das palavras, as

pressuposições, as metáforas e o estilo inscritos no texto exprimem orientações econômicas,

políticas, ideológicas e culturais dos indivíduos (CAREGNATO e MUTTI, 2006; RESENDE

e RAMALHO 2005).

Segundo Caregnato e Mutti (2006) o sentido é inesgotável, portanto incompleto, não

se expressa pelo texto ou semântica do enunciado, frase ou palavra, é elemento simbólico,

figurativo, por isso pode, ao não ser percebido, escapar da interpretação, pode inclusive, ter

sentido oposto ao que foi dito. O sentido não viceja sem a atividade do intérprete, sem o

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contínuo trabalho da interpretação do enunciado, a responsabilidade de tornar visível algo que

está encoberto.

De modo que um dos primeiros pontos a se considerar para AD é a construção do

corpus, já que sua delimitação está diretamente ligada à análise, principalmente porque

quando se decide o que vai fazer parte do corpus, justifica-se e se discutem propriedades

discursivas; como também ao se organizar o material, não se pode deixar de levar em

consideração a pergunta da entrevista, os objetivos da pesquisa, o contexto e o ponto de vista

de quem o organiza.

Como o objeto do discurso é empírico, este dado é bruto, necessitando portanto, que o

material seja trabalhado, a fim de converter o corpus bruto, em um discurso concreto, em

objeto lingüisticamente de-superficializado. O que significa dizer retirar do material transcrito

o discurso. A partir de então, já se pode analisar pela discursividade, que se desenvolve por

meio de raciocínio dedutivo.

Segundo Orlandi (2002, p.65) a desuperficialização trata de uma análise lingüística do

material bruto coletado (transcrição da entrevista) para identificar: “quem disse, o quê disse,

como disse, buscando pistas que explicitem como o discurso está contextualizado” e assim,

construir um objeto discursivo, a partir do que é dito nesse discurso, do que é dito em outros,

em diferentes condições, nas mais variadas circunstâncias e na observância das diferentes

memórias discursivas.

Para qualquer prática de AD são indispensáveis três operações: a diferenciação texto-

discurso, o fato de ter um sujeito/enunciador e a operacionalização do corpus (INIGUEZ

2004).

Para diferenciação texto-discurso, o primeiro passo é trazer para margem do texto à

discursividade; sempre olhando mais acima do nível da palavra ou frase, proposição, já que,

evidentemente nem todos os textos podem ser considerados integralmente discursos, uma vez

que, são um conjunto de enunciados transcritos e que precisam ser desvelados e esmiuçados

para que se seja possível visualizar o discurso concreto.

Na realidade, os textos devem estar inscritos em um contexto interdiscursivo que

revele aspectos do social, da história, literários, entre outros, ou seja, devem incluir um

posicionamento em uma estrutura discursiva., que tem valor para uma coletividade, que

envolvem crenças e convicções para serem partilhadas.

A AD não trabalha a linguagem como sistema neutro, mas como uma forma de

significar o mundo; porquanto se importam com as falas dos sujeitos, sua vida e seu

comportamento enquanto sujeitos mediante uma sociedade, estando fato, história e sociedade

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numa relação de interdependência, facilitando enormemente a análise de processos sociais de

construção de intersubjetividade, do poder, da ordem e da transformação social (ORLANDI,

2002, INIGUEZ, 2004).

O sujeito na AD assume o status de enunciador, isto é, autor textual, que define a

forma ou tipo do discurso a ser proferido a depender do lugar de enunciação, se igreja,

educação, justiça, e, no caso do estudo em questão a instituição familiar. No entanto, os

lugares de enunciação não pressupõem somente instituições formais de produção e de difusão

do discurso, como as citadas, podem-se considerar instituição, todo espaço que permita o

exercício da função enunciativa (INIGUEZ, 2004).

O discurso é um conjunto de enunciados que pertencem a uma mesma formação

discursiva. As formações discursivas são aquelas que revelam o sentido do discurso, numa

determinada situação. Assim como as palavras (linguagem) indicam posições ideológicas, as

formações discursivas fazem parte das formações ideológicas. De onde se conclui que na AD

a materialidade da ideologia é o discurso e a do discurso é a palavra (linguagem),

valorizando-se a relação linguagem-discurso-ideologia. (ORLANDI, 2002).

Não há enunciado que não esteja apoiado em um conjunto de símbolos, mas o que

permitirá situar/organizar um emaranhado de enunciados é justamente o fato de eles

pertencerem a uma determinada formação discursiva. Portanto, quando descrevemos

enunciados procedemos à individualização de uma formação discursiva ou sistema de

formação discursiva que compreende segundo FISCHER (2001): “[...] um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática” (p.82). “[...] pode-se dizer que seus enunciados têm força de "conjunto" e se situam como novos campos de saber, os quais tangenciam mais de uma formação. A formação discursiva deve ser vista, antes de qualquer coisa, como o "princípio de dispersão e de repartição" dos enunciados” (p.124).

Por isso, finalizada a etapa de transcrição e conferindo todo o material produzido

procedemos ao agrupamento dos discursos, separando-os pelo critério de semelhança,

complementação de idéias ou contradições que serviriam para identificação das unidades de

análise/categorias, como também para validá-la.

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Logo categorizamos aquelas temáticas que se apresentavam com maior força no

discurso, seja pela freqüência numa mesma narrativa ou em narrativas de sujeitos da mesma

família ou ainda pela repetição que se apresentou em diferentes entrevistas. Buscamos assim,

convergências e divergências que nos permitissem uma melhor compreensão dos aspectos em

estudo, de modo que também analisamos os silêncios prolongados e significativos, as

expressões de emoções como lágrimas, choro, raiva, impotência.

Ressalta-se que o enunciado, não está totalmente oculto nas letras, nos símbolos, e

emblemas descritos nos textos, mas também não é imediatamente visível, principalmente o

silêncio, que atravessa o texto e enfatiza algo que precisa ser dito e no momento não foi . Para

identificar os enunciados nos textos no entanto, deve-se: mapear as "coisas ditas" sobre o

tema; o próprio silêncio é considerado algo dito; situar as "coisas ditas" em campos

discursivos; depois extrair das coisas ditas os enunciados e colocá-los em relação a outros

enunciados do mesmo campo discursivo ou de campos distintos.

Desse modo operando sobre o material coletado, ordenando, identificando elementos

que identificarão o discurso e construindo unidades a partir das respostas dos

questionamentos: por que isso é dito aqui, deste modo, nesta situação, e não em outro tempo e

lugar, de forma diferente? É que será possível à construção de enunciados que estabeleçam

relações com o objeto de investigação, que realmente apreendam os discursos uniformes e

também os dissonantes e que mostre efetivamente o detalhamento e o aproveitamento

significativo do corpus.

Em função do tema da pesquisa, cuja essência trata de aspectos relativos à família, a

adolescência, a violência e ao racismo, trouxemos para discussão algumas categorias de

análise do quotidiano que são propostas por Maffesoli (1984) – aceitação da vida,

solidariedade orgânica, solidariedade mecânica, habitus, estilo e outras categorias que não

estão baseadas na reflexão do autor, mas que também fazem parte da construção categórica do

estudo do quotidiano. Da análise emergiu como eixo central: Quotidiano de adolescentes

negros em situação de violência familiar e categorias: Habitus essencial da existência: a

quotidianidade e o estilo de vida do adolescente negro e sua família; Violência e laços de

socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro e O que está por trás da

imagem? O mundo imaginal do adolescente e sua família sobre ser negro.

Dentro da categoria Habitus essencial da existência: a quotidianidade e o estilo de

vida do adolescente negro e sua família emergiram as subcategorias: o Quotidiano que se

mostra como uma repetição, Não há tempo para brincadeira e um Quotidiano de

trabalho. E da subcategoria um Quotidiano de trabalho, temáticas como: Tem que

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estudar e trabalhar, Ter trabalho é ter potência, Ter Trabalho digno e prazeroso,

Violência (racista) no quotidiano de Trabalho.

Na categoria Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do

adolescente negro, têm-se as seguintes subcategorias: Bater e apanhar faz parte do

quotidiano, Violência no Quotidiano familiar e Apoio e proteção familiar.

E por fim a categoria O que está por trás da imagem? O mundo imaginal do

adolescente e sua família sobre ser negro composta das subcategorias Negação étnica,

Branqueamento, Racismo/Sexismo.

Os referenciais teóricos da Sociologia Compreensiva e a análise do discurso

permitiram apreender os sentidos constituídos socialmente pelo adolescente negro ao viver em

família e sociedade, considerando a situação de violência, uma vez que a linguagem social é

dinâmica, interrupta, complexa e reveladora de posicionamentos e atitudes dos indivíduos

diante das situações vivenciadas.

Construímos o quadro abaixo que apresenta os temas, categorias e subcategorias do

eixo central - Quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar, que é

o resultado da análise de discurso das entrevistas.

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Quadro 1. Análise de discurso das entrevistas

Categorias Subcategorias Temas

Habitus essencial da

existência: a quotidianidade

e o estilo de vida do

adolescente negro e sua

família

Quotidiano que se mostra

como uma repetição

Não há tempo para brincadeira

Um Quotidiano de trabalho

Tem que estudar e trabalhar

Ter trabalho é ter potência

Ter Trabalho digno e

prazeroso

Violência (racista) no

quotidiano de Trabalho.

Violência e laços de

socialidade familiar no

quotidiano do adolescente

negro

Bater e apanhar faz parte do

quotidiano

Violência no Quotidiano

familiar

Apoio e proteção familiar

O que está por trás da

imagem? O mundo imaginal

do adolescente e sua família

sobre ser negro.

Negação étnica

Branqueamento

Racismo/Sexismo

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O que há por trás da

Autor do desenho: Anderson Santos Lima

O que há por trás da imagem? “...forte tendência da população negra em negar seu

pertencimento étnico e, ao mesmo tempo, primar pelo ideal de brancura...”

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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1 CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SOFRIDA E PRATICADA POR ADOLESCENTES NEGROS E SEUS FAMILIARES, SEGUNDO DELEGACIAS DO ESTUDO, SALVADOR-BAHIA, 2009.

O panorama epidemiológico foi elaborado a partir de uma perspectiva quantitativo-

descritiva, que buscou caracterizar a violência sofrida e praticada envolvendo adolescentes

negros em Salvador-Ba, ocorridos no período de março de 2006 até março de 2007.

Apresentamos três tabelas e um gráfico, a primeira aponta as características da vítima

(com idade entre 10 e 19 anos) estratificada segundo co-variáveis sexo, raça/cor, escolaridade,

ter pai e mãe, estado civil e a segunda expressa as características do agressor estratificada por

natureza da violência segundo as co-variáveis sexo, raça/cor, grupo etário, escolaridade, ter

pai e mãe, estado civil em Salvador – Ba, a terceira tabela mostra a distribuição das

ocorrências segundo local da denúncia e o gráfico trás a relação entre grau de parentesco do

agressor e vítima.

Do total de 1178 boletins de ocorrência de violência examinados, encontramos 121

casos de violência envolvendo adolescentes.

Observa-se na Tabela 1 que as denúncias de violência foram mais freqüentes na

DERCA por ser uma Delegacia especializada no atendimento de crianças e adolescentes. A

maioria dos casos foi registrado na DERCA (65-53,7%), constavam na DEAM (35-29,0%) e

na Liberdade (21-17,36%).

Tabela 1. Distribuição das ocorrências segundo delegacias do estudo, Salvador – Bahia, 2009.

Local de denúncia N (%) DEAM Liberdade DERCA TOTAL

35 21 65 121

28,9 17,4 53,7 100,0

Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.

Conforme a Tabela 2 observou-se que as adolescentes negras são as maiores vítimas

de violência, sendo que esta as atinge com a idade média de 15,9 anos.

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Percebe-se que na população de adolescentes, a maioria das vítimas é do sexo

feminino (90-74,4%), de cor parda (73-60,3%) e cor preta (9-7,5%), perfazendo o total de

(82-67,8%) adolescentes negras que são vítimas de violência.

Em virtude da subnotificação a análise ficou bastante prejudicada, pois muitos dados

não se encontravam preenchidos nos boletins de ocorrência gerando o item não consta

informação nas tabelas.

Apenas (55) boletins de ocorrências estavam preenchidos com o item escolaridade das

vítimas, destas (6) possuía 1º grau incompleto, (16) tinham o 1º grau completo, (15) o 2º grau

incompleto, (16) o 2º grau completo e (2) nível superior. O que revela que as adolescentes

vítimas de violência neste estudo apresentam escolaridade compatível com a idade. Tabela 2. Dados sócio-demográficos das vítimas de violência, Salvador – Bahia,2009.

Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.

Co-variáveis Violência

Idade média ± Desv.Padrão

15,9 anos ± 2,9

N % Sexo

Masculino 31 25,6 Feminino 90 74,4 Raça/Cor

Branco 8 6,6 Pardo 73 60,3 Preto 9 7,5

Não consta informação 31 25,6 Escolaridade

Nunca foi a escola 0 0 1º grau incompleto 6 5,0 1º grau completo 16 13,2

2º grau incompleto 15 12,4 2º grau completo 16 13,2

Universidade 2 1,7 Não consta informação 66 54,5

Mãe Sim 118 97,5 Não 0 0

Não consta informação 3 2,5

Pai Sim 101 83,5 Não 1 0,8

Não consta informação 19 15,7 Estado civil

Solteiro 54 44,6 Casado 4 3,3 Viúvo 0 0

Não consta informação 63 52,1

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A análise da Tabela 2 revela também que as vítimas de violência são em sua maioria

solteiras (54, 44,6%), apenas (4, 3,3%) são casadas.

Quanto à filiação a maioria das adolescentes vítimas de violência tem mãe e pai,

através dos respectivos percentuais 97,5% e 83,5%.

Ao analisar a Tabela 3 nota-se que dos 121 casos de violência contra adolescentes, a

grande maioria é praticada por pessoas do sexo masculino (95, 78,5%). Como também se

pode observar que o agressor é na maioria solteiro (41- 33,9%), tem pai (53- 43,8%) e mãe

(52-43%), possui 1º grau completo e incompleto (30-24,85%) e compreende indivíduos

adultos jovens na faixa etária entre 20-49 anos (59-48,8%).

Tabela 3. Dados sócio-demográficos do agressor, Salvador – Bahia, 2009.

Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.

Co-variáveis Violência

Idade média ± Desv.Padrão 33,7 anos ± 9,5 N % Sexo Masculino 95 78,5 Feminino 26 21,5 Raça/Cor Branco 7 5,8 Pardo 58 47,9 Preto 15 12,4 Não consta informação 41 33,9 Grupo etário 10-19 5 4,1 20-29 21 17,4 30-39 24 19,8 40-49 14 11,6 50-59 4 3,3 Não consta a informação 53 43,8 Escolaridade Nunca foi a escola 1 0,8 1º grau incompleto 8 6,6 1º grau completo 22 18,2 2º grau incompleto 5 4,1 2º grau completo 7 5,8 Universidade 0 0 Não consta informação 78 64,5 Mãe Sim 52 43,0 Não 6 5,0 Não consta informação 63 52,0

Pai Sim 53 43,8 Não 6 5,0 Não consta informação 62 51,2 Estado civil Solteiro 41 33,9 Casado 7 5,8 Viúvo 3 2,5 Não consta informação 70 57,8

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Em relação ao item cor, os dados mostram que o indivíduo pardo (58-47,9%) é o que

mais violenta, seguido pelo de cor preta com (15-12,4%), totalizando entre pardos e pretos

violentos (73-60,3%).

Quanto à variável relação do agressor com a vítima, vejamos o Gráfico 1.

Gráfico 1. Distribuição percentual das ocorrências por relação de parentesco da vitima com o agressor, Salvador-Bahia,2009.

Mae/pai ou ambos34,8%

Irmã/Irmão9,9%

Companheira/Companheir28,2%

Avó/Avô0,8%

Tia/Tio7,4%

Prima/Primo1,6%

Sogra/Sogro0,8%

Cunhada/Cunhado1,6%

Madrasta/Padrasto14,9%

Fonte: Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares, segundo delegacias de referência em Salvador-Bahia,2009.

Neste gráfico podemos perceber que o agressor em sua maioria é o pai e a mãe, ou

ambos, com 34,8% dos casos, fato que confirma a pregnância da violência no âmbito familiar,

onde há o abuso da autoridade dos pais na orientação dos filhos. Logo na seqüência, outros

familiares também aparecem como agressores companheiro/companheira com 28,2%,

madrasta/padrasto com 14,8%, irmão/irmã com 8,8%, tia/tio com 7,4% e os demais

primo/prima cunhado/cunhada, sogro, sogra, avô/avó com todos com 1,8%.

Os dados ratificam estudo realizado no município de Salvador–Ba, em 2003, que no

ciclo de violência familiar destacam-se os pais como os maiores agressores. As relações de

poder estabelecidas de modo patriarcal, onde os pais mandam e os filhos devem obediência,

justificam à violência familiar, sendo o adolescente vítima de violência em razão de sua

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vulnerabilidade financeira, de dependência, relações conflituosas entre os pais e outras que

acabam por incidir no ato violento dos pais para com estes. O macho utiliza a violência o

espaço doméstico para manter o controle familiar, ensinando aos filhos essa relação de

convivência, portanto, encontramos irmãos agredindo irmãos (Diniz et al, 2007, Saffioti,

1999) .

A verificação dos dados quantitativos presentes revelaram a ocorrência das violências

por natureza, considerando idade, sexo, cor, ter pai e mãe, escolaridade e estado conjugal de

vítimas e agressores, como também relação dos casos apresentados nas delegacias de

denúncia e de acordo com os dias da semana foram de fundamental importância para

subsidiar a análise qualitativa, pois através desta, pudemos constatar fatos significantes como:

os pardos aparecem como mais violentos que os pretos, dado que revela uma estreita relação

entre mestiçagem e a violência a ser discutida na análise qualitativa a posteriori, como

também em relação ao percentual de mulheres identificadas como vítimas de violência, que

reafirmam as características estruturais da sociedade patriarcal, ainda muito viva nos dias de

hoje, revelando o poder masculino e a desigualdade entre homem/mulher, adulto/criança e

adolescente dentro do ambiente familiar e ainda identificamos que parcela significativa de

agressores está na idade de 30-39 anos, fato que pressupõe que os adolescentes não violentos

na faixa etária de 0-19 anos, a depender de como forem vivenciando a violência, pode se

transformar possivelmente em futuros agressores. A violência não exclui classe social, por

isso, a baixa escolaridade das mulheres e adolescentes do estudo demonstram que são

economicamente menos favorecidas e, portanto, com pouca noção de direitos e de valores,

sendo alvos fáceis de violência.

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4.2 QUOTIDIANO DE ADOLESCENTES NEGROS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

FAMILIAR

O quotidiano de adolescentes negros em situação de violência familiar é refletido por

nós dentro do referencial da Sociologia Compreensiva concordando com Maffesoli (1995) de

que o mundo imaginal é razão de uma subjetividade coletiva, que adere inconscientemente

com o jogo das imagens e se dissemina pelos domínios da vida social. Dessa maneira,

compreender-se-á que o irreal presente através do imaginário seria o melhor caminho para

compreender o real, isto é, o próprio quotidiano.

Contemplar desse ponto de vista, esse quotidiano, a anomia, a banalidade, a

efervescência, o hedonismo, o lúdico ou onírico, “elementos que constituem a matriz em que

nascem, crescem e se reforçam as inter-relações feitas de atrações e repulsas, de todas essas

coisinhas insignificantes que compõem o conjunto do que se chama de socialidade (...) que

podemos resumir numa expressão: ‘interação simbólica’ é entendê-lo deliberadamente no

mundo relacional (MAFFESOLI, 2004, p.48)”.

Nessa perspectiva, o mundo em que vivemos, o espaço tal como é, nutre a

possibilidade de existência humana, “a partir da existência social e da existência natural (...)

da ordem da revelação interpessoal, mas que o é igualmente da relação com o ambiente físico,

com o ‘dado’ constituído pelo lugar em que vivo”. Nessa formulação de Maffesoli (2004

p.49-50) encontramos a referência ao lugar como causa e efeito da idéia de hábito herdado, eu

me constituo naquilo que compreendo e aprendo na relação com o outro e tal qual reproduzo

na relação com terceiros.

Essa forma de viver, sua pulsão estilística enquanto maneira de pensar, de agir, de

sentir, constrói-se na alteridade e convivência com o outro. Em suma, o quotidiano e os

desígnios do viver e da conformação da vida social contribuem de modo significativo para as

mudanças que se apresentam hoje no nosso dia-a-dia.

A pulsão estilística sofre influência do tempo, da história, da política e vai sendo

elaborado em cada época em questão, portanto, na Idade Média o estilo era teológico, o da

Modernidade foi econômico e hoje está sendo elaborado um estilo estético, centrado na

imagem. Entendendo que o estilo nos reporta a uma época, no estilo estético a imagem serve

de pólo de atração para a tribalização pós-moderna, e, nesse sentido se torna “ligante”, isto é,

capaz de unir todos entre si, como também agregar todos no mundo (MAFFESOLI,1995).

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Assim, a estética sugerida pelo autor para caracterizar a pós-modernidade, preenche o

vácuo existente entre as pessoas no mundo social, definindo-se como um cimento capaz de

agregar, unir, ligar realmente, e, como algo assim, reforça o desejo comunitário, de empatia, o

desejo de estar-junto, da emoção ou da vibração coletiva.

O contágio emocional que estava anteriormente ultrapassado volta a ter sua

importância nas relações, volta ao primeiro plano e acoplado a uma imagem, esta por sua vez

constitui-se fundamento necessário na busca pela afirmação. O retorno das imagens reflete

uma matriz de sociabilidade nascente, que utiliza múltiplos simbolismos que a imagem pode

provocar para reivindicar uma identidade autêntica, como exemplo a efervescência étnica

atual surge como forma de mostrar a consciência negra sobre sua condição e lutar por uma

convivência igualitária, fazer valer sua importância.

A nossa preocupação inicial com a imagem, com o estilo estético ocorre porque esse

constructo teórico nos permitir evidenciar mudanças ideológicas e certamente existenciais na

vida do adolescente negro e sua família. Como diz Maffesoli (1995, p.15):

“[...] a saturação dos valores da modernidade tende a dar lugar a valores alternativos, de contornos ainda imprecisos, mas cuja eficácia não se pode negar [...] negá-los não é mais possível. Denegá-los, não é sério. Tampouco pode-se contentar em considerá-los como marginais; certamente, é possível condená-los moralmente, mais isso não faz com que desapareçam.[...] ou em uma perspectiva de ação ou reação, avaliar as conseqüências sociais da emergência desses valores.

Não aspiramos de modo algum explicar qual a motivação ou conseqüência da

violência presente neste quotidiano e sim compreender, conhecer, nos aproximar dessa

realidade que é vivida dia-a-dia pelo adolescente negro e sua família, como também conhecer

sua pulsão estilística de pensar, sentir, fazer, sua potência de ser que é causa e efeito da

socialidade.

O re-nascente “mundo imaginal” mostra-se pelo modo de ser, agir e de pensar

inteiramente diferente entre os indivíduos, mas nascente de uma construção plural cujos

elementos primordiais são o vínculo social e a imagem. Ambos, o vínculo social e a imagem

são responsáveis pelo reencantamento dos indivíduos pelo mundo, uma leitura que não pode

ser descolada da imagem e do imaginário sobre ele próprio e o mundo que vive.

O imaginal está presente e pregnante – de maneira simbólica, lúdica ou onírica entre

todos os elementos do meio social e natural, pela imagem, pelo imaginário e pelo imaterial

que se esboçam na atenção dada a solidariedade orgânica, ao estar-junto e à correspondência e

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também da necessidade de instaurar uma razão sensível ao invés do racionalismo dominante

(Maffesoli, 2004).

Não podemos mais falar de individualidade na pós-modernidade, pois concordamos

com Maffesoli (2004) de que se “cada um só existe no e pelo olhar do outro”, que retrata um

“perder-se no outro”, uma “fusão afetiva”, “um presente que eu vivo com terceiros, num

determinado lugar”, há uma negação de si próprio em detrimento do coletivo, o indivíduo

perde sua individualidade e importância enquanto indivíduo para adquirir uma condição de

pertença na tribo a que adere.

No presentismo juvenil marcado pela busca incessante do gozo no aqui e agora, a

partir dessa nova composição do estar-junto, a imagem já alcançou seu lugar de destaque,

traduzindo-se na chamada empatia ou simpatia social, que é justamente o que fundamenta o

convívio.

A simpatia social de que se fala, propõe a “coexistência”, um ajustamento à forma, ao

modelo preconizado. É como uma fusão dos ideais solitários do indivíduo ao ideal de um

grupo com o propósito de segregação de interesses comuns; mesmo que obviamente na

presença de tensões conflitantes e perspectivas variadas ou contraditórias dos indivíduos o

intuito é a construção de um corpo comum.

Confirmamos com Maffesoli (2004) que é pelo olhar dos outros que o ser humano se

constitui e delimita o território em que se reconhece e no qual nasce sempre e mais uma vez,

juntos. O forte elemento ligante ou a pulsão estilística é o componente estético-ético, definido

pelo culto do corpo, da imagem, da amizade, dentre outros que convergem progressivamente

para um lugar - local de celebração, lugar de ligação e encontro com o outro, o lugar é que faz

elo.

Convém deixarmos claro que esses lugares emblemáticos de encontro com o outro,

quais sejam a família, a escola, o trabalho, a rua, são explorados pelos adolescentes como

espaços importantes de vivência e convivência – são compostos por afetos, emoções,

desafetos, diferenças e uma multiplicidade de experiências que exprimem a potência de seu

ser e do espaço do vivido.

Estamos dispostas em unir a razão e o sensível no procedimento analítico, na tentativa

de relativizar o pensamento racional e lógico em busca da compreensão que repousa na leveza

da ambição pela ligância das polaridades - emoção e razão; mesmo quando da perplexidade

diante dos problemas e situações que sem dúvida “atormentam nossa sociedade em mutação”

como é o caso do estudo da violência.

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Na análise da socialidade não podemos esquecer da experiência comum, verdadeiro

motor do ponto de vista social do corolário do vivenciado e que emana de uma “razão

sensível”. Então, em se reconhecendo a experiência comum como algo vital da socialidade,

cujo carro-chefe é a própria sensibilidade, sua significação decorre do estar-junto,

compreendido através da perda do próprio corpo para um corpo coletivo, ação designada de

comunhão sensível ou afetiva, que remete a um sentir em comum, é o coletivo em ato, são as

diversas aglomerações associativas, religiosas, esportivas, sexuais e do tribalismo,

principalmente o juvenil, que põe o societário sobre o individual e sobrepuja a sociedade

puramente utilitária (MAFFESOLI, 2004).

O quotidiano para o adolescente é repleto de prazeres, ele não se preocupa com o

ontem ou o amanhã, mas sim com o aqui e o agora, o que faz com que dêem vazão ao

tribalismo, que não reflete uma desestruturação ou uma desagregação social, mas um

reencontro dos indivíduos, ou seja, a relação somente aflora na presença ou evidência da

incompletude, um indivíduo necessita do outro para sobreviver. Os indivíduos desejam a

felicidade, mesmo que isto implique em perigo para a sua condição de ter saúde, por isso o

racismo é um fator capaz de desestruturar a vida individual e social, pois afeta diretamente o

psíquico dos indivíduos expostos, resultando em traumas e dificuldade em ter e manter

relações com o outro (MAFFESOLI, 1987).

Essa socialidade com “orientação para o outro” que utiliza como substrato o estar-

junto, a partir da fusão do eu com o outro, a produção de um nós que não se reduz, o nós da

coexistência, do agregado da razão com o sensível, que traz em sua condição de possibilidade

a formação de um grupo fruto da experiência vivida, da proximidade, da ideologia ou da

própria necessidade de proteção em tempos de violência.

Questionamos a partir de Maffesoli (1995) se o ideal democrático, propósito da

modernidade está se sucedendo ao ideal comunitário de concepção pós-moderna. Como

discute o autor, o que está em estado nascente ou mesmo re-nascente, esse modo de estar-

junto é elaborado na dor e na incerteza, e, portanto, a dúvida permanece sobre o resultado

desse processo, entretanto ao elucidar que o ideal comunitário retoma elementos arcaicos e

parece indicar o ressurgimento de valores que haviam sido esmagados pela racionalização

mundana desvela a potência do querer-viver a subjetividade na vida social atual.

Maffesoli (1995) recorre às efervescências das manifestações religiosas, ressurgências

étnicas, reivindicações lingüísticas e outros apegos para demonstrar que ainda existe o reforço

de estar-junto, o prazer dessa conjunção. Segundo o autor o ideal comunitário se encontra nas

várias formas de solidariedade ou de generosidade, que podem ser vividos de modo

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espetacular nas grandes causas humanitárias, exemplificam-se às ações de organizações não-

governamentais, as caridades provenientes das igrejas, na recrudescência das boas ações ou ao

contrário podem ser vividas discretamente na vida quotidiana pelo afeto daqueles que

praticam caridade por idealismo, onde o pouco que se tem pode ser dividido, compartilhado.

O sentido da existência, do prazer da vida está no próprio ato, no que se pode fazer no

presente, não há mais uma meta, um investimento em busca de um futuro distante e ideal

como acontecia na modernidade. O gozo não está mais atrelado ao futuro hipotético tranqüilo

e feliz, o momento presente é vivido de forma intensa seja lá como for, mas que lhe conduza a

auto-realização, pois o presente pós-moderno enfatiza as ocasiões e as boas oportunidades

(MAFFESOLI, 2004).

A tribalização, a cultura do sentimento, da estetização da vida, da predominância de

um quotidiano que se vive apenas pelo instante presente, possivelmente vai constituir uma

nova configuração de mundo, na qual se pode lamentar ou regozijar (MAFFESOLI, 1995).

O que será que atrai o adolescente para uma determinada tribo, como a rua, como o

tráfico, por exemplo? Será que não é a necessidade de ser reconhecido, de comungar o prazer

do vivido com alguém? Libertar-se das cobranças e responsabilidades familiares que incidem

sobre ele, usurpando-lhe a vivência? Ou ainda adquirir a imagem socialmente perfeita para si

e sua família para poder usufruir o que a vida tem de melhor? A concretização de um sonho

que é adiado na família de negros, sempre passado de geração em geração.

Maffesoli (1995) nos mostra que o que nos parece sem sentido, os eventos

insignificantes poderão ser causadores do caos de amanhã, porque isto que se deve desconfiar

do que não é da ordem do frívolo, pois alimenta um estilo, uma cultura que serve de substrato,

de húmus a vida social.

Assim é a violência familiar, algo “comum”, sobretudo banalizado e naturalizado em

nosso quotidiano, algo enraizado; permissível no processo educativo familiar, mas que

sabemos traz uma nova ordem, uma nova forma de socialidade, que pode ser induzida, nosso

pressuposto, pelo estilo próprio do adolescente negro e sua família para conseguir

reintegração social.

Segundo Fernandes; Alves; Nitschke (2008) o cuidado deve ser contínuo no

quotidiano da família, pois revela a promoção de interações saudáveis, que se apresentam na

presença de quem cuida – a enfermagem e as famílias cuidadas. A maneira de cuidar é

fundamental para lograr êxito no processo cuidativo, para isso torna-se essencial para

enfermagem mergulhar no mundo do adolescente negro e sua família e conhecer seus valores,

crenças, hábitos, estilos de vida, imagem, imaginário, delinear seus papéis ao longo do

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processo vital, evidenciando limitações e perspectivas, de modo que tentando compreendê-los

possa contribuir para sua melhor qualidade de vida.

Aproximando-se do quotidiano do adolescente negro e sua família e contemplando a

quotidianidade em sua anomia e efervescência, entendemos pelas imagens dos

acontecimentos relatados nos discursos que devido à importância que assumiu a forma e a

imagem, a nova socialidade que se esboça na modernidade inclui a violência no quotidiano. O

estilo de viver, o consumo ativista da imagem no aqui e agora, da aceitação de abrir mão de

qualquer segurança para viver intensamente o presente, viver essa onipresença quotidiana da

imagem que serve, mesmo que apenas temporariamente, de fator de agregação e vínculo

social. Acreditamos que o adolescente tem a necessidade de aquisição dessa imagem em prol

do reconhecimento social e adesão à tribo, a qualquer custo, de modo que a imagem acaba por

diferenciar uns dos outros e reifica ainda mais as diferenças daqueles que não conseguem o

alcance do estar-junto social.

a) Habitus essencial da existência: a cotidianidade e o estilo de vida do adolescente

negro e sua família.

O Habitus serve "à compreensão da ação e do pensamento do homem no espaço" e

nesta perspectiva, corresponde às práticas humanas que compõem o quotidiano e a vida, como

hábitos alimentares, linguagem, postura, modos de se vestir, se comportar, rituais que são

transportados ao social através da ação individual ou coletiva (WELS, 2008).

Para compreensão do quotidiano dos adolescentes negros e seus familiares, nos

baseamos nos comportamentos humanos, ou seja, nas práticas discursivas que moldam o

comportamento e que na verdade são causa e efeito deste, e que certamente resulta de um

estilo interativo do indivíduo com a educação, princípios familiares e contexto social. Um

estilo que transpira atitudes, gestos e linguagem própria onde “estão em jogo tantos afetos e

conversações", que contribui para a "sólida trama social que se constitui gradativamente" no

percurso de trajetos sinuosos até sua cristalização na identidade individual, familiar e social.

(MAFFESOLI, 1988, p. 161; WELS, 2008).

O quotidiano não poder ser compreendido somente por ações ativistas, o quietismo

sensível, representado pelo silêncio e impotência, também se mostra como um fator de

socialização, e cada um dos comportamentos aqui apontados trazem seu toque específico do

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vivido no seio da vida corrente. O pensamento, assim como a ação é uma obra de resistência,

de uma exigência que necessita de esforço para concretizar-se e que apela para um

significado, dada à força tanto do silêncio como da palavra.

Compreendemos que as imagens que emergiram a partir da interação que

mantínhamos com o adolescente e família durante a realização da pesquisa revelaram o

quotidiano naquilo que é, expresso por valores, sentimentos, crenças, metáforas, símbolos e

significados, um misto de criação e recriações daquele que vive tanto a grandeza quanto a

banalidade nas situações do dia-a-dia.

Apresentamos o quotidiano do adolescente negro e sua unicidade através da vida

familiar que entendemos estar imbricada, interconectada numa rede de interações em que os

envolvidos não se separam.

Neste momento, trazemos à tona esse quotidiano que contempla o processo de viver

humano, aparentemente insignificante, se não considerarmos a qualidade do movimento, da

sinergia e da repetição cíclica que faz parte da vida quotidiana – onde nunca é demais repetir,

já que a mutação exige regularmente recomeço, retorno às idéias consideradas arcaicas,

ultrapassadas, aos mitos comuns – é o essencial da trama societária (MAFFESOLI, 1995).

Quotidiano que se mostra como uma repetição

Assim trazemos a categoria o Quotidiano que se mostra como uma repetição. As

repetições do quotidiano evidenciadas pelo discurso dos adolescentes do estudo revelam que o

processo de viver humano é cíclico, aonde um dia vem em substituição ao outro, e que apesar da

similaridade presente entre um dia e outro, cada dia traz situações, vivências e condição diferente,

pois nada é exatamente igual. No entanto, as diferenças do quotidiano podem passar

desapercebidas pelos indivíduos, quando nele estão mergulhados de tal modo que lhe escapa a

percepção do que seja o efêmero.

Maffesoli (1998, p.129) nos fala de um "tempo místico", tempo da repetição/tempo

cíclico, que se configura em uma espécie de "situacionismo, disposto a fruir daquilo que se

apresenta, daquilo que se dá a ver, daquilo que se dá a viver". Para alguns, a vida cotidiana se

torna um refúgio para o desencanto do mundo, do futuro incerto, do “afrontamento do

destino”, de um viver desprovido de sentido em que a “seqüência de situações e de

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acontecimentos tem uma lógica própria de encadeamentos [...] que se desenrolam de uma

maneira quase autônoma sem que seja possível intervir”.

A repetição ritualística, orquestrada, programada, regida pela aparente estabilidade

dada pela rotina e pelo ordenamento das coisas, expressa que as experiências quotidianas

obedecem a um esquematismo herdado, aprendido no próprio quotidiano, do qual a relação

familiar faz parte.

Para estes adolescentes o quotidiano se mostra como algo corriqueiro. O presente é

aceito tal como é, uma rotina, que se apresenta através de um quotidiano preenchido com

atividades repetitivas do trabalho braçal, trabalho por sua vez socialmente destituído de valor.

[...] Não acho nada diferente, Todos os dias eu faço a mesma coisa. Lavo roupa, arrumo a casa, menos comida, todos os dias eu faço a mesma coisa. Faço a rotina de todos os dias, não tem nada de diferente, sempre a mesma rotina (Ogum-C). [...] Trabalho de doméstica, tudo que fazia em casa faço no trabalho, não acho nada diferente. Todos os dias eu faço a mesma coisa (Ogum-A).

Os discursos perpassam a idéia de um relativo conformismo e acomodação, refletida

na ausência de uma perspectiva de melhoria, de desfrutar do sonho de uma vida pulsante que

é própria da adolescência e que este trabalho de certa forma usurpa.

Por isso, intuímos que a aceitação da rotina e a aquiescência que emergem das falas

dos adolescentes quando apresentam a repetição sistemática da sua vida quotidiana,

representam o subterfúgio para o não-enfrentamento das situações quotidianas, já que não

conseguem encontrar potência para modificá-las.

É o que Maffesoli (1995) acentua como a existência corrente, percebida pelo

conformismo de pensamento e situações aparentemente sem significação, refletidas,

sobretudo, por meio de momentos anódinos inscritos no presentismo do vivido e sem

perspectiva de mudança.

Dentro desse contexto, a vida quotidiana aqui colocada em suspensão nos remete a

refletir sobre a importância da vida para esses adolescentes, num tempo em que segundo

Maffesoli (1995, p.35) “o estilo de ver, de sentir, de amar, de se entusiasmar em comum e no

presente se impõe, sem dificuldade, às representações racionais voltadas para o futuro”. Dito

isso, expectamos que mesmo na rotina alienadora, o vivido sustenta as relações sociais e

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exerce através do imaginário um poder, uma força que faz saltar para fora do indivíduo as

condições de transformação do impossível em possível.

O caos nos remete ao recomeço e a destruição a novas perspectivas e possibilidades,

pois não existe repetição sem a criação de algo novo, assim como o sol que nasce todos os

dias e se põe no horizonte de modo cíclico, mas nunca igual. Entendemos que muito embora

os sujeitos não se dêem conta do mistério que se esboça em cada dia vivido de modo corrente,

ele está sempre presente, mesmo em um quotidiano aparentemente anônimo (MAFFESOLI,

1995; MARTINS, 1998).

Não há tempo para brincadeira

Nesta categoria Não há tempo para brincadeira identifica-se que o lazer

praticamente inexiste para estas famílias, sendo substituído precocemente pelo trabalho.

Os relatos reforçam o drama de quem se divide entre o desejo de brincar e o de dar

sustentação financeira à família conforme o papel social que lhes é imposto pelos pais. A

desobediência é motivo de punição e maus-tratos; entretanto, para brincar era preciso

desobedecer:

No caso ele desobedecia. Jogava bola na rua. Ia para praia vender ovo de codorna e deixava a mercadoria em um lugar e ia brincar, aí ele perdia, porque deixava à toa para jogar bola. Aí quando chegava em casa sem a mercadoria, o pai batia.[Ele tinha que idade quando isso aconteceu?] 16 para 17 anos. Ele ia só para praia vender. Chegava lá encontrava gente jogando bola, aí pronto, deixava a mercadoria e ia brincar, chegava em casa sem a mercadoria e sem o dinheiro, aí apanhava. (Oxossi-G).

As poucas oportunidades de lazer, ou mesmo a substituição do lazer pelo trabalho na

época da adolescência, aliada à agressão vivenciada no dia-a-dia dentro do ambiente

doméstico, pode contribuir para a formação de adultos violentos, uma vez que o prazer da

brincadeira é aniquilado toda vez que chega em casa e se depara com as atitudes violentas dos

pais. Esta situação envolve circunstâncias emocionais e ao mesmo tempo financeiras

familiares, tendo a brincadeira um constituinte importante de crescimento e desenvolvimento

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da criança e do adolescente que precisa ser valorizado e a venda da mercadoria algo que

garante ao adolescente seu próprio alimento e/ou ganha-pão familiar.

A violência é a negação de valores considerados primordiais para uma vida saudável,

tais como a liberdade, a igualdade e o controle da própria vida, ela é capaz de reduzir e alienar

o ser humano de modo integral, castrando-lhe principalmente a liberdade (GUERRA, 1998).

A violência familiar está presente na relação social do ser humano desde os primórdios

da civilização estando associada a diversos fatores, a citar: desorganização familiar, punição

como forma de educação, entre outros, que provoca e instaura a instabilidade econômica e de

relações (WAIDMAN, DECESARO, MARCON, 2004).

A maneira de agir do agressor tem como causa fatores individuais e sociais podendo

manifestar-se mais ou menos criticamente a depender da sua experimentação de violência, e,

o comportamento da vítima, justamente pelas características da sociedade patriarcal vigente,

onde o pai tem o direito escolher e decidir por elas o que elas têm que fazer, faz com que ela

perca algo que muitas vezes é difícil de reconquistar ou reviver – o seu espaço de diversão,

entretenimento e brincadeiras que jazem de sua época de infância e adolescência e que

precisam ser garantidos e vivenciados em sua plenitude.

Quando existe violência, a família deixa de lado o caráter protetor e adquire o

agressor, assumindo uma postura de não–comprometimento com o agredido, quer por

dependência do agressor, medo ou indecisão, deixando os vitimados sob tortura como

prisioneiros nos seus próprios lares, onde certamente serão novamente vítimas de maus-tratos

(WAIDMAN, DECESARO, MARCON, 2004).

O caso em questão é um exemplo de violência intergeracional, pois quando adulto ele

passou a agir com sua filha exatamente como foi vítima da violência pelo seu pai, e também

pelo mesmo motivo pelo qual apanhava, pois a filha gostava de estar na rua e filar aulas para

jogar futebol:

Não pode ser como o pai de minha sobrinha que bate nela como ele apanhava do pai dele [...] Ele bate nela de murro porque quando era criança ele apanhava de murro. [É mesmo?] O pai dele sangrava a boca dele, o nariz.[...] Tem uns que quando apanha que quando o filho nasce, cresce, aí vai fazer a mesma coisa que já sofreu... (Oxossi G).

Não há dúvidas de que a violência é uma das experiências mais traumáticas que pode

ser vivida pelo ser humano, principalmente numa fase da vida de grande instabilidade, como a

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adolescência. As mudanças biopsicosociais constantes e na vida do adolescente podem

diminuir sua resiliência aos traumas facilitando a instalação de transtornos de comportamento,

ou seja, comportamentos violentos.

O adolescente em processo de crescimento e desenvolvimento tem suas necessidades e

demandas de saúde arraigadas nas transformações corporais e na construção de seu registro

somático, este último derivado da consistência e regularidade de vínculos em conformação

nos indivíduos, sua organização afetiva, possibilidade de auto-afirmação, formação da

personalidade e identidade e fortalecimento do seu ego (LIPP, 2002).

Portanto, a violência contra a criança e o adolescente independente de sua freqüência e

intensidade geram uma ruptura na harmonia das estruturas psíquicas e defesas

psicossomáticas promovendo desorganização somática, alterações na cognição, na

constituição mental, respostas emocionais e neuroendócrinas, além de interferir na resistência

física às agressões do meio (GAY E JUNIOR, 2005).

A violência contra o adolescente no âmbito familiar faz parte da realidade brasileira,

sendo a re-vitimização uma constante que acompanha o adolescente pouco assistido e

amparado, apesar da legislação e políticas de proteção ao menor.

Sem dúvida, a violência deixa marcas na criança e no adolescente por toda a vida,

tanto físicas, como comportamentais e psicológicas. Mesmo não apresentando de imediato,

sintomas externos relevantes que caracterizem sofrimento ou transtornos, não se devem

perder de vista que ela ainda pode vir a sofrer com os efeitos dessa experiência. O fato de não

estar no momento externalizando seu sofrimento pode ser interpretado como uma resposta de

congelamento diante da situação e as conseqüências do trauma embora latentes despontem o

risco.

A criança desde o nascimento participa de um sistema muito complexo de relações,

que começa na convivência com os membros de seu núcleo familiar, e prossegue durante o

curso da vida aglutinando outras relações sociais. Paradoxalmente, ao alargar sua rede de

comunicação e relações com outros indivíduos, a criança está ao mesmo tempo ampliando sua

interação com o mundo, do qual emerge condições de organização e de modificação de si

através de influências culturais, sociais e outras, assim como experimentando percalços

resultantes destas influências, interpostos ao seu desenvolvimento.

Nesta perspectiva, o trauma relacionado a experiências de abuso, ameaça e agressão

tem um enorme impacto sobre o crescimento e desenvolvimento humano, porque na infância

as áreas cerebrais responsáveis pela regulação emocional ainda estão se estruturando e,

portanto os traumas derivados de relações interpessoais negativas podem afetar o

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desenvolvimento cerebral, tornando-a mais vulnerável aos transtornos do estresse ainda

durante sua infância, na adolescência ou posteriormente na sua vida adulta

(GAWRYSZEWSKI, 2006).

O cenário familiar tem sido propício para o desencadeamento da violência contra a

criança e o adolescente, porque tradicionalmente a família enquanto núcleo privado de

organização social permite aos pais detentores do poder utilizar a autoridade para regular as

relações do lar. De modo que, as situações de crise familiar e de conflitos de ordem social,

situacional e outros, atuam como facilitadores de abusos, capazes de motivar traumas

(CAMINHA, 1999).

O adolescente exposto a um evento traumático no seio familiar, presenciando ou

sofrendo algum tipo de violência, aprende equivocadamente que nas relações humanas os

recursos que possibilitam a negociação e resolução de conflitos não é o diálogo e sim a

violência, e , portanto, acaba reproduzindo-a, tornando-se agressor.

Um quotidiano de trabalho

Outras falas expressam a vivência pelo adolescente e sua família de Um Quotidiano

de trabalho. Nesta categoria percebemos que o trabalho é visto como ação/função de suma

importância na vida cotidiana dos adolescentes negros e sua família, pois apesar de não ser o

trabalho ideal, lhes possibilita a subsistência e a valorização do seu SER.

Eu gosto do trabalho [...] eu mesmo acho que deveria ter, [mas] deveria fazer uma coisa melhor, né? Que eu tô estudando. Mas, eu não consegui uma coisa melhor, eu tô nesse serviço por enquanto, porque eu quero ajudar meu pai, minha mãe (Ogum-A).

Desde cedo, os adolescentes aprendem a desenvolver estratégias de sobrevivência,

com a finalidade de adquirir recursos financeiros para manutenção da família. Isto significa

que, nas famílias formadas por indivíduos negros a solidariedade ou ajuda mútua é uma forma

de garantir a existência familiar, ante um contexto de carências que estão presentes no seu

quotidiano.

Segundo BILAC (1995) as famílias de baixa renda incentivam seus membros tanto a

prover materialmente o grupo familiar quanto ao cuidado com os membros que considerem

ainda inaptos para a busca dos recursos, como as crianças de pouca idade.

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[...] eu arrumo a casa, lavo os pratos e arrumo meus irmãos para ir para o colégio (Oxossi-D).

De acordo com SANCHEZ (2005) os adolescentes seguem comportamentos

orientados pelo que socialmente aprendem nas relações familiares. Por isso, nas famílias

extensas, os membros são estimulados a participar junto à família na busca por recursos

financeiros, e por isso, os filhos são muitas vezes vistos como mais uma possibilidade de

força trabalho, de potência para ganhos econômicos, ao invés de despesas.

É nesse sentido que se pode compreender a assertiva de Vygotsky (1984); Moura

(2002) quando estabelece que somente através da interação os indivíduos são capazes de

aprender o que é certo ou errado e desempenhar papéis sociais, com o intuito de corresponder

aos ideais familiares e sociais. Assim, nas famílias de indivíduos negros é comum o

adolescente busca exercer junto aos pais o papel de provedor colaborando para o sustento

familiar.

Percebemos também que apesar da baixa renda, na família formada por indivíduos

negros a presença e a proteção existem. Acreditamos, porém, que essa presença e a proteção

ocorram de forma divergente de outras famílias, em que os pais são os únicos provedores do

lar, e que não necessitam que os adolescentes ingressem no mundo do trabalho antes da idade

adulta. Na família de negros, pela própria dificuldade de recursos econômicos, os pais não são

capazes de sustentar sozinhos toda a estrutura familiar necessitando da ajuda de todos os

membros considerados aptos para mantê-la. Dessa forma, há uma partilha de

responsabilidades entre o grupo familiar para manutenção e sobrevivência da família, que se

torna também mais um fator de socialização e de valorização de cada membro.

A partir dessa compreensão, concordamos com Lápide, Rodrigues e Ribeiro (2005) de

que os membros de uma família, na confluência com os valores sociais vigentes e sua

condição sócio-econômica pactuam entre si, os valores fundamentais para garantir a

preservação familiar.

Então, torna-se fundamental desconstruir o imaginário social de que os pobres, que são

em sua maioria negros, não são capazes de oferecer aos filhos afeto e proteção. O caráter

ideológico dessa idéia é elaborado a partir do pensamento hegemônico da classe dominante de

vincular e destinar estas famílias a uma suposta condição de irregularidade e infelicidade

(ARPINI, 2003; KALOUSTIAN, 2005).

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Tem que trabalhar e estudar

Estudo realizado por Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre indicadores

sociais da população negra, com dados da Pnad, mostra que a mulher negra começa a

trabalhar mais cedo e acaba por se aposentar mais tarde, em conseqüência do baixo poder

aquisitivo familiar, estas têm necessidade de manter-se por mais tempo na ativa (SALLES,

2008).

Segundo Paludo e Koller (2008), em virtude da carência em que vive, nas famílias de

baixa renda/negros, independente do arranjo familiar, o trabalho feminino remunerado se

intercala com o doméstico, caracterizando uma dupla jornada de trabalho que se faz

necessária para fortalecer o orçamento doméstico.

[...] Trabalho de doméstica, trabalho para ajudar minha família [...] tudo que fazia em casa faço no trabalho (Ogum-A).

Dada à precariedade do trabalho doméstico, desenvolvido geralmente por negros, estas

famílias, que não tem recursos financeiros suficientes para subsistência, buscam introduzir

precocemente os filhos no trabalho, e ao mesmo tempo, como uma contrapartida tenta garantir

a escolarização dos mesmos (BILAC, 1995).

[...] Ele briga, manda estudar, depois ele, vai para o trabalho (Oxossi-E).

[...] O que eu cobro mesmo é estudar, porque se não estudar, elas não tem nada na vida. Eu mesmo trabalho aí, mas sem muito recurso [recebe pouco pelo trabalho que desempenha em virtude da baixa escolaridade] (Ogum-B).

A família de indivíduos negros está sempre preocupada com o equilíbrio entre os

provedores e os consumidores do núcleo familiar, porque em virtude da baixa escolaridade,

esta família vive constantemente ameaçada, pelo baixo salário, desemprego ou outros riscos

inerentes à situação de pobreza, que induzem a solidariedade mecânica entre seus membros

para o alcance da sobrevivência do grupo familiar (BILAC, 1995).

Percebe-se que o sistema de subsistência das famílias estudadas é marcado por laços

de solidariedade mecânica, onde a força de trabalho de cada um dos membros é fundamental

no espaço familiar. Essa lógica parece ordenar os valores individuais e coletivos dentro do

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grupo, de modo que entendemos que este tipo de solidariedade é a forma de garantir a

existência e o desenvolvimento da estrutura familiar.

Maffesoli (1995, p.68) nos recorda de que a família possui uma força, “para agir sobre

aquilo que eles têm e podem, sobre o quotidiano doméstico, o próximo, todas as coisas a

partir das quais eles podem fazer da existência uma verdadeira arte”. Na arte de viver, a união

faz a força, que no caso da família de indivíduos negros, a força de trabalho é necessária para

sobrevivência do grupo familiar.

Ter trabalho é ter potência

Ter trabalho significa ter poder, ter a potência necessária para conduzir a si e ao outro

na vida, porque o trabalho é o meio mais aceitável e garantido para o suprimento das

“condições materiais de existência”. Portanto, quem não tem trabalho na concepção das

famílias estudadas, pode ser visto como alguém incompetente, irresponsável, sem a potência

necessária para poder sobreviver.

[...] eu acho que a pessoa deve ter mais competência e procurar trabalhar para poder sustentar os filhos, ter responsabilidade (Ogum-B).

A fala supracitada confirma a crise de identidade vivenciada pelos homens

trabalhadores pobres e negros, que em virtude de toda rede de exclusão em que estão imersos,

não conseguem manter sozinhos a casa e o sustento familiar. Tendo em vista a perda da

capacidade de provedor, estes se sentem fracassados, inferiores, incompetentes e vulneráveis

aos processos violentos (COSTA, 1989).

A competência trazida pelo sujeito de pesquisa é uma questão primordial para o

alcance da sobrevivência e se ancora no significado da potência apresentada por Maffesoli

(1998, p.90) como algo saudável e que alimenta a vitalidade humana, fortalecendo o ser

humano na luta pela sobrevivência. No uso de suas potencialidades ele supera problemas,

ultrapassa obstáculos e cria novas situações ao seu favor, por isso, este poder “pode e deve se

ocupar da gestão da vida, a potência é responsável pela sobrevivência”.

O trabalho é uma potência que produz o status de sobrevivência, de existir, de

contemplar a vida, pois oferece a possibilidade de sair do ócio, de não roubar, da vida digna,

e, sobretudo oportuniza o consumo não somente do bem material, mas também do simbólico;

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o que para o adolescente é extremamente importante, já que ao passo em que consome, sente-

se peça valorizada e importante para engrenagem da máquina da sociedade capitalista de

consolidar sonhos, o sonho de Ter e de poder Ser.

[...] acho melhor trabalhar que ficar em casa sem fazer nada ou às vezes até ir pela cabeça das colegas [refere-se à vizinhança] querendo influenciar para fazer coisas que eu sei que é errado [refere-se a roubar, consumir drogas, prostituir-se] (Ogum-A).

[...] porque às vezes eu quero comprar as coisas, meu pai não tem dinheiro, minha mãe também não tem dinheiro, aí eu recebendo meu dinheirinho é pouquinho, mas para o que eu quero comprar, dá né [...] quando eu quero comprar uma coisa, eu compro, não preciso pegar de ninguém (Ogum-A).

Ter trabalho digno e prazeroso

Como no estudo de Madureira (2002) as famílias observadas também demonstram que

ter trabalho é essencial para o processo de viver humano, no entanto, o tipo de trabalho a ser

realizado, deve proporcionar-lhes prazer e valorização.

[...] trabalho, mas nada certo, eu trabalhava assim em gráfica, mas faliu, fechou. Aí tinha que mexer em computador, eu parti para outra para trabalhar, aí como era mais moderna queria que eu entrasse direto, sabe? Eu pedi um teste prático [treinamento] e não consegui, aí não deu mais, a idade também não ajudou, apesar da experiência hoje eles não querem mais dar trabalho assim [a alguém de idade, só pela experiência, mas sem o conhecimento teórico]. Hoje eu trabalho assim de pedreiro (Ogum-B).

Para analisar essa narrativa, nos reportaremos ao começo da nossa análise sobre o

Quotidiano do Trabalho, onde apresentamos que para o adolescente negro, o trabalho que

ele realiza é inferiorizante e desqualificado tornando-se o motivo pelo qual ele precisaria

investir em si próprio, para conseguir um trabalho que considere satisfatório:

[...] deveria fazer uma coisa melhor, né? que eu tô estudando (Ogum-

A).

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Com a mesma linha de pensamento dos pais, o adolescente negro vê no estudo a única

possibilidade de romper com a barreira social.

Corroborando com Waldow (1995) quando diz que os pais ensinam aos filhos aquilo

que conseguiram aprender intra e intergeracionalmente na família, conjeturamos que por

conta da própria visão de mundo decorrente do que vivenciam no dia-a-dia e principalmente

pelo conhecimento advindo da educação dos pais, o adolescente negro também atribui o

déficit escolar às dificuldades encontradas para uma melhor inserção social.

Apesar de o negro ser considerado no imaginário popular como incompetente,

indolente e incapaz do ponto de vista intelectual, adequando-se somente ao trabalho braçal,

que não exige o uso do intelecto, as famílias do estudo mostram sua insatisfação com esse

tipo de trabalho e acreditam que a escolaridade possa lhes oferecer mobilidade social.

Apreendemos pelas narrativas dos sujeitos de pesquisa, que a inserção desvalorizada

no mundo do trabalho, os reporta a necessidade de qualificar-se e significar sua mão-de-obra,

pelo receio de perder sua condição de trabalhador, cuja conseqüência seria estar fora do

mercado de trabalho, perder a potência, a força os mantêm vivos aos olhos da sociedade e na

ótica familiar, como seres úteis.

Violência (racista) no quotidiano de trabalho

Segundo Carreteiro (1999) quando o trabalho é fruto de uma prática braçal e

repetitiva, o seu significado tanto para a sociedade como para aquele que o realiza, dá margem

a relações sociais de desrespeito, na qual o trabalhador, muitas vezes, é submetido a situações

de humilhação e desprezo.

O trabalho é um espaço social em que os indivíduos vivem e constrói seus

referenciais, procurando corresponder a demanda familiar e social de utilidade. Entretanto, o

trabalho realizado pelo adolescente negro, geralmente é o de baixa remuneração e valorização

social, o que favorece a relação marginal do adolescente com o mundo do trabalho

(ZALUAR,1994).

[...] meu primo trabalhava ali ó, ele tava ajudando a mãe dele, começou a trabalhar que ela [a dona do estabelecimento] chamou ele e ele foi. Depois aí sumiu alguma coisa dela, aí ela chamou ele de ladrão e ficou

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dizendo que ele era negro e que ele não ia trabalhar mais para ela não (Oxossi-D).

Quando questionado sobre o fato, o adolescente em questão nega a discriminação

sofrida e nos relata apenas a vivência de maus tratos:

[Você já foi vítima de discriminação?] Não. [E sua patroa lhe tratava de forma diferente?] Só falava alto só, falava alto comigo e com os outros [refere-se aos demais empregados]. [E com o freguês?] Com freguês ela falava baixo, falava calma. Agora com a gente já era braba. [Ouvi dizer que ela não gostava de negro? Você percebeu isso?] Não. Quem disse foi minha mãe para mim. Eu dava um pau danado e ela [a dona do estabelecimento em que trabalhava] nem ligava (Oxossi-E).

Podemos confirmar pelas narrativas acima que os adolescentes enfocados no estudo

concebem os maus-tratos como algo normal nas suas vidas, principalmente nas questões

relacionadas à discriminação, trata-se da naturalização da violência que já foi evidenciada por

muitos autores e que se apresenta também neste estudo (CAMARGO e BURALLI, 1988;

CAMARGO, ALVES e QUIRINO, 2005; VENTURINI, BAZON e ALVES, 2004).

É nesse sentido que se pode compreender a assertiva de Maciel (1997, p.33) quando

menciona que sendo o racismo uma condição subjetiva calcada nos limites do self, a sua

objetivação, se mostra inconsciente e.fora de controle, refletindo o quanto o racismo se

encontra cristalizado no pensar dos indivíduos. A ideologia do branqueamento, da democracia

racial e da inferioridade racial que preenchem o imaginário do próprio negro impedindo que

este perceba a prática discriminatória como tal, na verdade, se culpa pela inadequação.

Os acontecimentos relatados na subcategoria um Quotidiano de trabalho mostra a

profusão do viver dos adolescentes negros e suas famílias diante das dificuldades que surgem

em um quotidiano aparentemente fugaz, mas onde muitas coisas acontecem.

Percebemos pelas narrativas de famílias constituídas por negros, que a vida obriga o

adolescente a abdicar da vivência dos “prazeres” próprios da adolescência e ingressar no

mundo do trabalho, um mundo adulto que para ele se antecipa, por força do destino e em

nome de uma solidariedade mecânica que constitui princípio de sobrevivência familiar. Uma

família que se preocupa com o aqui e agora, que vive o presente da forma que dá para viver e

ao mesmo tempo carrega a esperança de dias melhores, sendo a escolaridade para eles, única

possibilidade de aquisição de trabalhos mais valorizados e melhor remunerados e, portanto de

inserção social mais prazerosa.

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Nesta perspectiva, podemos utilizar o mesmo raciocínio de SILVA (2006) ao

expressar o imaginário construído sobre o sentido que o trabalho deveria ter para o

trabalhador e que está mais ou menos expresso no esquema: esforço = sacrifício =

recompensa, que no caso destas famílias poderíamos expressar: esforço = sacrifício=

subsistência, pois para alcançar a recompensa necessitam do estudo.

O que os faz subsistir, resistir, enfrentar, continuar vivendo? Maffesoli (1984, p.73)

nos responde com a seguinte afirmativa: “a vida humilde e seus trabalhos simples só podem

ser vividos na medida em que existe uma força mágica, poética que os alimenta sem cessar. A

poética da vida quotidiana, as criações minúsculas e imperceptíveis permitem, de fato, a

permanência da sociabilidade.”

b) Violência e laços de socialidade familiar no quotidiano do adolescente negro

Com a referida categoria mostramos como é que no dia-a-dia da família de indivíduos

negros se processam as relações familiares, o que significa para os membros dessa família o

estar-junto, como também de que maneira agem e reagem frente às situações harmoniosas

e/ou conflitantes que se apresentam no quotidiano.

Sabendo do papel social da família na construção identitária dos indivíduos, que

engloba hábitos, comportamentos e saberes culturais, torna-se fundamental compreender

como o indivíduo negro, tece junto aos seus membros, as estratégias de socialização e

sobrevivência frente à violência.

Ao penetrar no quotidiano destas famílias percebemos que existe uma cultura de

convivência violenta, onde o bater e o apanhar são vistos como algo natural, e desse modo, se

fazem presentes nas interações familiares e sociais.

Contata-se também, que as relações familiares de indivíduos negros são baseadas na

autoridade, onde se ensina e se aprende através de atos violentos, existindo pouco o nenhum

espaço para o diálogo. No entanto, nesta mesma família encontramos algumas formas de

solidariedade aos envolvidos em situação de violência familiar, que podem ser expressas tanto

pelo apoio da família à vítima quanto pela proteção materna ao agressor.

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Bater e apanhar faz parte do quotidiano

A subcategoria Bater e apanhar faz parte do quotidiano emerge das falas da família

de indivíduos negros que mostram que a violência está naturalizada no seu quotidiano.

Conforme relata um dos adolescentes, o histórico de violência familiar vivido através das

agressões corporais dos pais é fato quotidiano, como eles têm “direito de bater”, são

obrigados a aceitá-la:

Ah, eu sempre apanhei. Se meu pai bater quando eu apronto assim [...], se meu pai me bater eu nem ligo. Ele me bate, daqui a pouco passa (Oxossi-D). Meu pai só bate quando eu faço alguma coisa errada, quando eu bato nos meus irmãos, bato em alguém na rua [...] quando eu apronto (Oxossi- H). E alguém lhe bate? Só meu pai e minha madrinha quando eu apronto. Acho que está batendo para educar. Resolve? Resolve, porque eu obedeço (Oxossi-H).

Se examinarmos a história, veremos que os indivíduos negros sempre estiveram

lidando com o sofrimento, “acostumaram-se” a ele. Na verdade, são sobreviventes de uma

situação de extermínio em que foram obrigados a suportar uma enorme carga de perversão e

crueldade. Hoje, de modo semelhante, o indivíduo negro continua vivendo no meio social e

familiar essa condição.

Os adolescentes negros aprendem, conforme relatado no estudo, a tolerar desde cedo à

violência, resistindo com “paciência” aos castigos corporais, às agressões, às hostilidades, aos

abusos familiares vivenciados quotidianamente que são aceitos, muitas vezes, como algo

normal, natural.

A tolerância à violência é transmitida pelas famílias dos indivíduos negros de geração

em geração e marca a sua existência, formação, modo de ser e sobreviver. Essa subjetividade

aparentemente minúscula e sem significado, induz uma convivência conflituosa dos

indivíduos com seus pares.

Os castigos corporais foram desde a época colonial, instrumentos coercitivos

utilizados, principalmente pelos jesuítas para o trato das crianças, a palmatória e o tronco

eram bastante utilizados para disciplinar aqueles que faltavam à escola. Na sociedade

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burguesa, também não foi diferente, o processo de escolarização empregara o castigo, com a

finalidade de cultivar a obediência da criança ao adulto (ÁRIES, 1981).

Este tipo de educação em que os castigos corporais eram incentivados, como forma de

educar, foi alcançada pelos pais dos adolescentes do estudo, conforme narrativas abaixo:

[meu pai fala que no tempo dele] ele já ficava na tampa da garrafa ajoelhado e no milho para poder saber as coisas, ser um homem de bem [...] no tempo dele quando não acertava a tabuada a professora lhe dava de palmatória (Ogum-A).

[no meu tempo] a educação era mais rígida, rígida como é que diz, mas as pessoas se dedicavam mais aos estudos. Hoje tem mais é brincadeira, [...] Antigamente a gente tomava bolo e tal para aprender, hoje já não tem sabatina, no meu tempo tinha sabatina, não podia perder de ano, se perdesse [...] acho hoje tudo mudado, eu mesmo não entendo mais nada hoje, porque é diferente. [...] (Ogum-B).

Assim, o “bater” para educar, disciplinar, corrigir o erro, foi historicamente assimilado

pelos indivíduos, se configurando como o padrão aceito pela sociedade pré-moderna para

mudar comportamentos considerados socialmente inadequados.

Entretanto, como podemos observar, nas famílias estudadas, “o bater” ainda é uma

característica marcante nas relações entre homens e mulheres, pais e filhos e entre os próprios

irmãos.

Homens batem nas mulheres

[..] quando chegava de noite, ele batia nela, batia, batia, batia mesmo, chegava dava murro (Ogum-A).

Teve uma vez que ele veio para me bater, as meninas eram pequenas, a irmã mais velha dele tava aqui em casa, [...] só vi ele vindo com um tamborete para dar na minha cabeça, foi Deus do céu que me levantou.

(Ogum-F)

Pais batem nos filhos

Mas você falou que suas irmãs apanhavam. Sim. Elas apanhavam em outras coisas porque eram respondonas, ele falava uma coisa e elas ficavam respondendo como se fosse qualquer pessoa [...] aí não pode né [..] pai e mãe, já sabe (Ogum-F).

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[...] Ela disse que ele batia nela, quando ela chegava em casa querendo quebrar as coisas, batia nela porque ele não era ela que estava comprando nada para ela estar querendo destruir as coisas, o que ele comprou foi muito caro, ele suou para comprar para ela chegar drogada e querer destruir as coisas que ele lutou para ter (Ogum-A).

Mulheres batem nos filhos

[...] Ela não batia de verdade, que é o que dói. Ela puxava minha orelha para ninguém ver [...] (Ogum-F). Eu bato assim né, só quando enche meu saco. Eu não pego no meio da rua [...] eu bato no banheiro, no quintal (Ogum-F). [E sua mãe lhe batia?] Batia. Quando ela lhe batia? Quando eu aprontava [risos]. [Aprontava o quê?] Bagunçava. [O que é bagunçar?] Quando eu batia em minha irmã, meu primo, ela ia e me batia. [Você batia neles? Por quê?] Porque eles me provocavam (Oxossi-E).

Irmãos batem nos irmãos

[...]eu queria que ela vestisse uma roupa no meu irmão e ela vestiu outra, aí eu peguei dei um murro nela, ela me bateu e eu dei um bocado de murro nela (Ogum-A).

[Você batia na irmã por quê?] Porque ela me provocava. [Como assim?] Fazia coisas que eu não gosto, aí eu batia (Oxossi 2-E).

A literatura mostra que só recentemente a família assimilou legitimamente, o papel

social de protetora dos seus membros, em virtude das políticas públicas vigentes. Data do

século XX, a adesão familiar às idéias de que a educação deve ser dissociada de castigos e

punições físicas; ao invés disso, os pais, para educar seus filhos devem se comportar de modo

a fortalecer a autonomia e independência dos mesmos, utilizando o diálogo como estratégias

para a negociação dos conflitos (BIASOLI-ALVES, 2002).

Ressalta-se, entretanto, que essas mudanças de valores não foram assimiladas por

todas as camadas sociais, porque, sobretudo, numa hierarquia de preocupações, para a família

de classe social baixa, que é o caso da família negra, em primeiro lugar vem uma questão

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crucial à sobrevivência, para depois as outras, por exemplo, a educação (DELFINO,

BIASOLI-ALVES, SAGIM, 2005).

Portanto, nas famílias estudadas, os pais, ainda utilizam “o bater” para educar os filhos

e lhes transmitir os valores que consideram importantes para a convivência familiar e social.

Contudo, é importante observar que embora “o bater” seja utilizado na relação entre

pais e filhos e entre irmãos; os filhos não batem nos pais, avós ou outros parentes

“importantes” do grupo familiar, demonstrando o respeito através da obediência: Ou seja, a

agressão física é aceita dentro de uma perspectiva hierárquica, onde o mais velho tem direito e

poder sobre os mais novos.

[Quais são as pessoas que você mais gosta?] Minha tia M, tia S, minha avó, minha madrinha e meu pai. Eles que eu mais obedeço (Oxossi-D).

Na família de indivíduos negros as pessoas mais velhas, principalmente as mulheres

tem um valor social e econômico forte, são consideradas arrimos de família, e por isso, atuam

como verdadeiros chefes de família e têm a mesma autoridade dos pais para “bater” e decidir

sobre a educação de seus filhos.

A naturalização e uso freqüente do “bater” como estratégia para estabelecer limites,

respeito, obediência nas relações familiares das famílias estudadas, faz com que elas tenham

dificuldade em utilizar outro método para dirimir os conflitos, como o uso do diálogo para

compartilhar e solucionar problemas, como se pode perceber através das narrativas abaixo:

[Sua mãe lhe escuta, conversa com você, quando faz algo que ela considera errado]. Me escuta [pausa] tem vezes, mas tem vezes que ela não quer nem saber e me bate (Oxossi-E).

[Você conversa com a professora quando tem problema?] Eu converso com ela [com a professora], às vezes as meninas conversam com ela [refere-se novamente a professora], mas não converso muito não (Oxossi-D). [Ele lhe dá conselho?] Não que ele sai para trabalhar. Quem me dá conselho é minha tia quem me fala as coisas para não ficar aprontando pela rua, para não andar com pessoas estranhas, que meu pai não quer (Oxossi-H).

Para eles, violência se enfrenta com violência; os atos violentos e a agressividade

traduzem o aprendizado intra e intergeracional de violência:

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[..] Até meus tios assim, alguns se falar alguma coisa comigo, me bater eu respondo. Se ele vier me bater eu falo me bata, pode me bater mais [que] eu continuo te respondendo (Oxossi-D).

[A professora] Me trata bem, mas de vez em quando me trata mal, mas quando ela me trata mal eu trato ela também mal. [Quando ela tá tratando mal?] Quando ela fica me gritando. [Ela fica lhe gritando por quê? Já aconteceu ela lhe gritar quando?] Foi um dia que eu levantei para beber água e ela me gritou me mandando sentar, porque eu não pedi a ela. Aí ela me gritou eu peguei abri a porta e sai da sala, bati a porta bem forte e sai (Oxossi-D).

Os adolescentes do estudo, na medida em que somente tendo experimentado a

violência como forma de sociabilidade, aprende a ser violento, carreando a violência consigo

e utilizando-a em todas as esferas da sua vida relacional: na família, na escola, no trabalho, na

rua, no lazer e/ou brincadeira.

Violência no quotidiano familiar

A subcategoria Violência no quotidiano familiar nos mostra que a violência

masculina contra mulher, muitas vezes é considerada natural e legitimada pela sociedade

como tal, ampliando o domínio e horizontes de comando masculinos em todas as esferas do

território físico, geográfico e simbólico social, fazendo com que o domicílio se apresente

como lócus de produção e reprodução da violência, onde todos que o coabitam, mesmo sem

laços de parentesco, devem obediência ao Homem-Senhor-Todo-Poderoso (MARCON,

LIMA e PIRES, 2004, CAMARGO e BURALLI, 1998).

Pesquisa realizada na Universidade Federal do Ceará por Adeodato (2005) avaliando

"Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros" mostra que a

violência contra a mulher é um problema social e de saúde pública, que independe de classe

social, raça/etnia, religião, idade e grau de escolaridade (CNS, 1997). Na atualidade, parece

ser irrelevante o status da mulher para localizá-la como vítima na discussão de violência

enquanto que o lócus principal não modificou, continuou a ser o familiar.

Esta pesquisa vem ratificar a de Amaral et al (2001) cujo resultado aponta que a

chance de a mulher ser agredida pelo pai de seus filhos, ex-marido, ou atual companheiro, é

muitas vezes maior do que a de sofrer alguma violência por estranhos. Como também de que

23% das mulheres no Brasil, estão sujeitas à violência doméstica; visto que em cada quatro

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minutos, uma mulher é agredida, sendo em 85,5% dos casos, situação de violência física,

cujos agressores são seus próprios parceiros.

Blay (2005) em "Direitos Humanos e Homicídio de Mulheres" mostra que a maioria

das mulheres vítimas de violência são jovens de 22 a 30 anos, assim como seus agressores.

Segundo Adeodato (2005), o perfil encontrado da mulher agredida que registrou

queixa na Delegacia da Mulher do Ceará de setembro de 2001 a janeiro de 2002 é de jovem,

casada, católica, que tem filhos, pouco tempo de estudo e baixa renda familiar. Em relação ao

agressor constatou que além de praticar violência conjugal, este também é violento com

outras pessoas (58%), inclusive com os filhos (50%) e de que a agressão tem correlação direta

com o consumo de álcool, já que dos 58 homens que apresentaram comportamento agressivo

com outras pessoas 42 (72%) ingeriam álcool, e dos 50 que agrediam os filhos, 39 (78%)

também consumiam álcool.

Neste estudo encontramos resultado semelhante aos estudos de Amaral (2001), pois

concluímos que adolescentes com as mesmas características são vítimas de violência conjugal

e sexual de companheiros ou familiares próximos (adultos jovens).

Adeodato (2005) confirma que o alcoolismo do parceiro tem sido apontado pelas

vítimas como um dos principais fatores desencadeantes de violências no âmbito familiar. E

que as agressões ocorrem geralmente nos finais de semana e à noite, momentos em que o

agressor está dentro de casa, dando às vítimas poucas possibilidades de fuga.

[...] Só acontecia esse negócio de briga quando ele bebia. No dia-a-dia de vocês como era? De segunda para sexta era bem, sábado e domingo era o problema (Ogum-C).

[...] eu já convivi com o fato de meu cunhado chegar lá (em casa)

querendo brigar como o meu pai, cheio de cachaça, ele chegava querendo bater em minha irmã, querendo bater na minha mãe, querendo bater em meu pai, querendo bater em todo mundo [...] (Ogum- A).

[...] Às vezes a gente tava dormindo, ele chegava bêbado e dava com cabo de vassoura acordando meu irmão e minha irmã batendo, principalmente em minha irmã mais velha. Ele chegava tarde da noite da rua batendo (Oxossi –G).

[...] Quando ele bebia alguém botava coisa na cabeça dele [...] Inventava coisa. (Ogum- C).

[...] aí qualquer coisa ela batia, bebia, aí sempre que ele bebia, ele era violento. Ele bebia e batia. (Oxossi-G).

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Os autores ressaltam a violência conjugal, como extremamente importante no contexto

das violências, já que correspondeu segundo o autor a 51,2% do total das mulheres

violentadas estudadas, e que urge, portanto, uma intervenção política específica.

Segundo Diniz et al (1999) dos casos de violência doméstica contra mulher, 40 a 80%

dos espancamentos ocorrem nos domicílios, sendo o marido ou amante, na maioria dos casos,

o responsável pela agressão.

Em outro estudo Diniz et al (2007) em Salvador–Ba investigando “mulheres

queimadas pelos maridos ou companheiros”, encontrou que do total das mulheres vítimas de

violência que foram entrevistadas, 80% pertenciam à raça negra, 48,6%, cor preta e 31,4%,

cor parda, possuíam entre 21 e 30 anos de idade (42,8%) e os principais agressores foram os

maridos/companheiros, ex-maridos/ex-companheiros, pai/mãe, totalizando 71,2% dos casos e

caracterizando a violência como familiar.

Estes dados numéricos são fundamentais para compreender o risco de adoecimento e

morte de mulheres jovens negras em virtude da cultura de violência, cultuada na convivência

em família como muitas vezes sucede, onde geralmente “os homens humilham e agridem; as

mulheres têm medo, vergonha e se sentem culpadas. Os homens agem, as mulheres sentem”,

de modo que os homens, nessa ordem social androcêntrica estabelecem os limites da sua

atuação e da atuação da mulher, transformando o relacionamento e a convivência familiar em

uma escola onde se exercita quotidianamente a violência para solucionar conflitos

(GREGORI, 1993, p.129; SAFFIOTI e ALMEIDA, 2003; DINIZ et al, 2007).

A violência familiar se manifesta de diversas formas e em todas as classes sociais,

entretanto, mais evidenciadas em classes empobrecidas, como no caso de famílias formadas

de indivíduos negros, de baixa escolaridade e como pouca noção de direito, de dignidade, de

valores.

Estando as causas da violência ligadas a uma série de fatores distintos para cada

família, no presente estudo, percebe-se que a maioria dos indivíduos que sofreram ou sofrem

violência ou viveram situações semelhantes, reproduzem as violências e imperceptivelmente

culpabilizam o outro pela violência.

Ao investigar o que levara uma das adolescentes a ser vítima de violência,

encontramos como resposta na ótica do pai, de que a mãe deveria saber o motivo, tendo em

vista ser mulher e saber o papel da mulher na sociedade:

[...] Só a mãe deve saber, acho que o temperamento, alguma coisa que ela dizia que ele podia não compreender e aí batia, coisas deles lá. Se acontecia alguma coisa lá entre eles né, ela é adolescente né, ainda não

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é equilibrada e aí dizia alguma coisa (que ele não gostava) que não ia fazer ... aí ele batia nela (Ogum- B).

Para o pai-homem, a adolescente apanhava como punição a um comportamento

inadequado, justificados pela dificuldade de cumprir as tarefas domésticas e conjugais de

maneira satisfatória, fato que atribui à adolescência, acrescentando que a ocorrência do

mesmo não deixa de estar condicionado a falta de irresponsabilidade e pouco envolvimento

com os afazeres que lhes compete como esposa.

A adolescente vítima de violência também atribui à causa da violência o não

cumprimento das tarefas caseiras de obrigação feminina por definição, mas que praticamente

a adolescente do estudo não gostava de realizar, e, em se recusando tornava-se vítima das

agressões do marido.

[...] acho também a briga é mais ainda porque ele vinha, eu vinha para casa de minha mãe (comer), eu não gostava de cozinhar. O problema era esse, queria que você cozinhasse? Era. Eu ia para casa de minha mãe almoçar e voltava para casa quando ele estava perto de chegar. Aí quando ele chegava não tinha o que ele comer? Tinha, mas ele não queria (Ogum- C).

Neste momento, percebemos o poder pátrio do marido perante a esposa, a idéia de

propriedade do homem sobre o comportamento da mulher conduz o pensar dos chefes de

família e lhes garante plenos poderes, para em se sentindo prejudicado com o matrimônio ou

nos aspectos que fazem parte dele, lançar mão dos castigos cabíveis para moralização,

manutenção do respeito e reforço da autoridade do homem-legítimo patriarca (CAMARGO e

BURALLI, 1998).

Outra situação em que o álcool aparece como fator desencadeante da violência é

quando o agressor embriagado utiliza desculpa pouco convincente ou justificativa que não

retratam a realidade para encobrir seu ato:

[...] quando ele bebia aí ele vinha e dizia assim: ô dona... eu peguei sua filha e bati, porque ela me azunhou, falando com mainha para ela acreditar na conversa dele (Ogum- A)

[...] todo mundo já sabe que quando ele bebe, sei lá, ele fica diferente assim, se transforma. Aí ele faz um monte de coisas e no outro dia não se lembra de nada e também quando você vai dizer a ele, ele diz que é mentira, aí alguma coisa que ele se lembra pode desculpa às pessoas e depois quando ele bebe ele faz a mesma coisa (Ogum-A).

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Por isso, Saffioti e Almeida (2003); Saffioti (1999), apontam que, na maioria dos

casos de violência conjugal é a mulher quem sofre as conseqüências físicas e emocionais mais

graves, já que este tipo de violência envolve diferenças biológicas e simbólicas entre homem e

mulher que estão diluídas no microssocial e, por conseguinte, no quotidiano, sendo

contributivas para aflorar o comportamento violento masculino, na medida em que cultua as

desigualdades de gênero, alimenta a auto-suficiência e supremacia masculina e a

subalternidade e dependência feminina.

[...] quando chegava de noite, ele batia nela, batia, batia, batia mesmo, chegava dava murro e o olho ficava roxão, quando ela ia lá em casa aí mainha falava (Ogum-A). [...] já no outro quartinho que eles foram morar, (eles brigaram) ele quebrou a porta, quebrou os pratos, tudo dentro de casa, jogou ela na parede, deu tanto murro nela, tanto tapa na cara dela, ela dizia: ai meu filho, meu filho (estava grávida) [...] (Ogum-A). [...] minha irmã estava com a boca inchadona e o olho também já tava roxo de pancada que ele tinha dado, aqui assim (aponta o local) e aí tava mais roxa ainda o lado inchado assim, tava inchadão, todo roxo de pancada que ele dava, chute (Ogum-A).

A violência contra a mulher se manifesta de várias formas, muitas vezes, as agressões

são vivenciadas pela mulher através de sentimentos de revolta, raiva, frustração e medo, e na

maioria das vezes não são compartilhadas de imediato com a família.

Aí quando o olho dela estava roxo ela, aí ela não pisava lá em casa porque ela tinha medo de contar, aí ele dizia a ela para não falar, ela ficava com medo de falar para meu pai, porque sabia que meu pai ia lá procurar briga [...](Ogum-A).

E mesmo com a presença ou ausência de marcas físicas, a violência influencia na

formação da personalidade e no futuro comportamento social da vítima, que muitas vezes

esconde a situação pelo sentimento de vergonha, utilizando as mais variadas desculpas para

evitar atritos ainda maiores na sua concepção.

[mesmo com a marca da pancada no rosto] ela dizia: não, não foi nada [...] eu bati sei lá o quê aqui no olho (Ogum-C).

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[...] quando o olho dela estava roxo, aí ela não pisava lá em casa porque ela tinha medo de contar, aí ele dizia a ela para não falar, ela ficava com medo de falar para meu pai, porque sabia que meu pai ia lá procurar briga, porque meu pai não ia gostar da filha dele chegar com o olho roxo (Ogum-A).

Quando a mulher apanha torna-se mero objeto nas mãos de seu agressor. A vítima

coisificada aprende a submeter-se à violência, e logo, incorpora como algo comum no seu

quotidiano.

[...] bateu, bateu, batia nela direto, batia, todo dia ela apanhava, todo dia ela apanhava [...](Ogum- A).

Concordo com Gomes, Filho (2004) quando afirma que sob vários pretextos, mães

batem nos filhos, os maridos batem em suas esposas e filhos, simplesmente batem, como algo

já incorporado à sua rotina do mando e do poder, batem muitas vezes sem compreender a

razão pela qual batem, sem discernir sobre a motivação para o ato, batem por reflexo, e, o

homem, automaticamente movidos pela força física, usam e abusam da violência contra os

demais.

Do mesmo modo mulheres e homens agredidos conhecem a violência na infância,

como vítimas e/ou testemunhas de abusos sofridos por suas mães e irmãos, mantendo o

silêncio nos seus lares, com a cumplicidade de outros membros da família, em decorrência do

medo, da insegurança e da relação de dependência.

[...] Brigar não, a gente discute né! [...] Agora discutir todo mundo discute, né? Qualquer casal discute. Pois é, a última [briga] que ele [o marido] me fez, peguei o saco dele e “rastei” [refere-se a ter puxado os órgãos genitais do companheiro], as meninas ficaram chorando [...], eu fiquei chorando (Ogum-F).

[...] ele já tentou até uma vez me esfaquear, por causa de ciúme, porque achava que eu estava com outra pessoa; meus filhos presenciaram, ele ia até no ponto para me bater, eu saía sem roupa de casa e eles presenciaram toda confusão quando o pai era vivo (Oxossi-G).

Embora haja mudanças em torno da família e diferentes modelos de organizações

familiares (famílias chefiadas por mulheres, família sem filhos, família composta pelo pai e

filhos, família recomposta), concordamos com Saffioti (1999, p.154) de que os privilégios ao

sexo masculino perduram, principalmente na relação conjugal, onde a mulher ainda é

considerada pelo homem como sua propriedade, objeto de posse de uma relação de poder

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requerida pela condição de macho, ou seja, assim reitera-se que a sociedade de ordem

patriarcal não conseguiu ser destituída ao longo dos tempos, possuindo “leis elaboradas por

homens para serem obedecidas por mulheres”.

Nessa perspectiva, a transgressão é sempre feminina, ademais segundo Gregori (1993)

a imagem da mulher foi definida historicamente como um ser para o outro e não um ser com o

outro. Na sua condição de subserviência, a mulher objeto com modéstia e silêncio, devia

manter um comportamento que correspondesse a sua inferioridade, daí porque sempre tentar

agradar o marido e obedecer-lhe em tudo, cumprindo bem as suas tarefas de esposa.

Quando também questionamos a família sobre o comportamento do pai frente aos

filhos, encontramos novamente o álcool presente.

[...] Você acha que ele gosta dos filhos? Gosta nada. Se (ele gostasse) dava de comer, cuidava (dos filhos). Ele só vem pegar eles (os filhos) bêbado, e só quer saber da menina, do outro não quer ver. Quer ficar com a menina mais a gente não deixa, aí se reta e começa o falatório na rua, ele só fica com ela se for por perto ou então que alguém siga (Ogum-A).

Ocorreu-nos estranhamento do pai ter preferências entre os filhos, e notamos que há

uma reação familiar no sentido de proteger os filhos do pai pelo medo do mesmo possa

agredi-los, principalmente por causa da bebida e história de violência.

Entre as conseqüências sociais do uso do álcool citadas pela OMS estão a embriaguez

em público, de caráter vexatório, os maus-tratos infantis, a violência juvenil e a conjugal, por

isso que os cuidados dispensados pela família às crianças e adolescentes no sentido de

protegê-los de constrangimentos decorrentes do álcool e da própria violência devem seguir o

protocolo legal e aconselhamentos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que

reforça a não exposição das crianças e adolescentes às situações de risco mesmo que estes

estejam com os pais, pois estes podem não ter condições de manter a integridade física,

psíquica e social da criança.

Pode–se dizer que neste estudo também ficou comprovado que os indivíduos que

vivenciam a violência durante anos de suas vidas na escola, no trabalho, na rua e

principalmente no seio de sua família, sendo rechaçados quando ao apresentar o chamado

comportamento anti-social, aprendem a viver com a punição como um instrumento bélico

necessário à socialização.

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[...] você tinha que ler todo o ABC, recordar letra a letra para poder saber. Era mais rígida! Como é que diz, mas as pessoas se dedicavam mais aos estudos. Hoje tem mais é brincadeira [...](Ogum-B).

Elas apanhavam em outras coisas porque eram respondonas, ele falava uma coisa e elas ficavam respondendo como se fosse qualquer pessoa (...) aí não pode né (...) pai e mãe já sabe. [tinham duas irmãs, que eram caixa de porrada. Por que não queriam obedecer ele, queriam passar por cima dele](Ogum-F).

Os resultados desse estudo sobre violência também corroboram e reforçam os dados

que já foram identificados em vários estudos de que “existe uma tendência maior para aqueles

que na infância conviveram em ambientes familiares violentos, reproduzirem este modelo em

seus próprios lares” (MARCONI, LIMA, PIRES, 2004, CAMARGO e BURALLI, 1998).

Embora não esteja exposto de modo transparente, outro ponto relevante é que os

próprios agressores conseguem perceber que houve avanços na maneira de educar os filhos,

mudanças na sociedade no que concerne aos direitos das crianças e dos adolescentes à

proteção e amparo legal às violências, como também ação dos movimentos feministas lutando

por direitos iguais e amplos no tocante às políticas públicas, sociais e de assistência às

famílias que enfrentam a violência.

As duas manifestações de violência, apresentadas nos casos do estudo, que

envolveram vítimas tanto de violência física quanto da sexual, foram pessoas da família quem

denunciaram a violência junto com a vítima, acreditando que os órgãos públicos competentes

pudessem resolver o problema, protegendo a vítima, aconselhando o agressor e impondo

autoridade de polícia frente ao mesmo.

Todavia, apesar de recorrerem à denúncia creditando às Delegacias de Polícia e

instituições civis a resolução do caso, nem sempre as iniciativas judiciais conseguem por si só

solucionarem todas as questões relativas à violência intrafamiliar, requerendo pela

complexidade do problema, apoio de outras instituições na área da saúde, a citar medicina,

enfermagem, assistência social para trabalhar aspectos de mudança de comportamento e

reeducação de famílias violentas.

Percebemos também que a violência, muitas vezes continua ocorrendo, mesmo

separando-se a vítima do real agressor, que no estudo em questão são o ex-companheiro para

violência física e o tio para violência sexual. No entanto, o retorno aos lares, ou seja, quando

as vítimas voltam para casa dos pais, o ciclo da violência mantém-se ativo, pois o lócus

preferencial para reprodução da violência é o ambiente doméstico, portanto, o agressor,

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continua fazendo prevalecer seu poder de macho – o pai, trazendo conseqüências nefastas

para a vítima. (FAGUNGES, 1999).

Nesse sentido, os castigos, as proibições, as prisões dentro dos lares aparecem como

situações de enfrentamento dos pais contra a violência sofrida pelas filhas na rua, mas ao

mesmo tempo se revelaram como condição à sua ocorrência:

[...] O que acha (...) que funciona para você melhorar? Não viajava e não saía para canto nenhum, não ia para praia, da escola para casa, ficar trancada dentro de casa (Oxossi-D). [...] eu era muito prisioneira em casa, aí eu achava que se eu saísse de casa eu ia ter mais liberdade, porque eu não tinha liberdade para sair, conversar como a gente quer, porque meu pai fala, minha mãe fala, querem que eu fique em casa o dia todo.[...] Me casei para eu ter liberdade, só que eu acho que não é nada disso. [Já] Minha prima nunca foi de namorar nem nada, nunca fez nada, nunca apanhou de namorado, porque ela já ficou presa de pai e madrasta (Ogum-C). [...] os filhos de hoje não tem ninguém preso [...] eu [sim] era muito vigiada, meu pai não deixava eu sair [...] eu era teimosa, mas quando ele dizia, com aquela pessoa não! Eu não ia. Se quisesse ir para algum lugar pedia (Ogum-F). [...] Porque ele não gostava que a gente saísse, porque ele tinha ciúmes da gente, não deixava conversar com ninguém, ciúme de questão de pai mesmo, não deixar solta [...] Era aquela questão de não querer que a gente tivesse amizade, mau influência, entendeu?! Eu obedecia. Ele dizia para não se misturar com gente que não presta (Oxossi-G).

A impotência diante da situação de violência vivenciada no seu dia-a-dia,

principalmente considerando o estigma da rua como lócus da marginalização e vice-versa, a

educação de meninos e meninas tem como foco retê-los nos lares, a fim de mantê-los dóceis,

compreensivos, obedientes, impedindo que exerçam sua liberdade de opção e decisão.

Sob o nosso ponto de vista os lares não devem aprisionar, nem contribuir para uma

visão deturpada entre liberdade e libertinagem, pois o regime carcerário dos lares somente

colabora para a formação de adultos violentos.

Observamos ainda, que o relacionamento conjugal conflitante motiva a mulher em

busca de uma saída da vivência de violência, porém, qualquer palavra da mulher que indique

uma ameaça de abandono do lar leva o companheiro a humilhá-la e coisificá-la,

transformando-a em objeto de seu domínio, prometendo-lhe retorno à casa dos pais:

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[...] aí teve um dia que ela disse que ia embora (para casa) ele (o marido) pegou as coisas dela levou lá para casa (para casa dos pais) e falou olha sua filha aí ó, como se ela fosse uma mala [..].esse negócio de você pegar a menina usar e depois você bota lá em casa, isso daí eu não vou aceitar não (Ogum-A).

Sem ter condições financeiras para auto-sustentação, a adolescente vítima de violência

é obrigada a seguir seu caminho de volta ao lar, mesmo sabendo que não estará protegida da

violência; pelo contrário os desentendimentos familiares podem aumentar, muitas vezes em

decorrência da perda da autoridade dos pais perante o agressor, que denigre sua imagem

perante a família e vias públicas, culminando na reprodução da violência.

As expressões de violência, leves ou intensas vão sendo suportadas pela vítima e sua

família até o limite da tomada de consciência dos prejuízos que as manifestações de violência

trazem consigo, como a indignação, a humilhação que a depender das características da

agressão são fatores que conduzem uma tomada de decisão em favor da denúncia

(VINCENTIN, 2004).

A motivação e a coragem para denunciar é algo que varia muito, de situação para

situação e, de pessoa para pessoa, no entanto, esta deve causar um constrangimento tal que a

vítima, familiares próximos ou até a vizinhança resolve delatar, como no caso abaixo, que a

própria mãe, não resistindo aos maus tratos que os filhos sofriam do pai resolve procurar a

justiça para impedir a situação de violência:

[...] teve uma vez que por causa disso [das surras que o pai dava nos seus filhos] minha mãe foi para o juizado, quer dizer assim...deu queixa dele (Oxossi-G).

. Já no caso da adolescente vítima de violência conjugal a exposição da situação de

violência em praça pública foi considerado irremediável, pois o problema da violência que

tinha sua face oculta começou a aparecer e tomar uma dimensão inexplorável para ela própria;

já que agora amigos, vizinhos entre outros tomavam conhecimento de sua situação, o que para

ela ensejava uma ação de denúncia.

[em praça pública de bairro, numa roda de amigos] fui pegar (minha filha) da mão da menina (que ele tinha dado para segurar), aí ele achou ruim, que eu tava desobedecendo e ele, aí, ele começou a me bater na frente de todo mundo. Aí eu achei desaforo, não porque quando agente brigava assim, agente brigava, ele vinha para casa e me batia escondido [...] fui na Delegacia e dei queixa (Ogum-C).

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tava na pracinha, a pracinha é um lugar aqui, é lá [aponta o local próximo ao domicílio], é bem pertinho. Ele brigou com ela e bateu, bateu [...], aí ela deu queixa dele e não quis mais [ele] (Ogum-A)

Percebe-se que o motivo da denúncia pode ou não estar diretamente ligado à agressão

em si, muitas vezes, o motivo real encontra-se encoberto pela situação de humilhação e

opressão vivenciada. Algo que era considerado como natural no domicílio e no seio familiar,

passa a ter outro sentido e ganhar força a partir do momento do incidente e por isso já

considerada uma transgressão precisa ser desvelada. Sem dúvida, estando escancarada diante

das pessoas, a violência não pode mais ser negada repercutindo em baixa-estima, reclusão e

exclusão da vítima.

Observamos que no segundo caso, nem mesmo a situação de aborto e seqüelas físicas

vivenciadas pela adolescente durante os episódios de agressão, que culminaram no

atendimento em serviços de saúde, fez com que a adolescente efetivasse realmente a denúncia

contra o agressor, somente ameaçava:

[...] ela foi perdeu o bebê porque ele deu uma pezada na barriga dela e ela começou a sangrar, aí ela estava toda machucada já. Foi para o hospital fazer aquele negócio [aborto] para tirar o bebê, porque já tava grande, (...) ela falou a médica e ela tirou lá um monte de sangue que estava descendo pela perna dela, estava descendo aí ela tirou tudo que ficou dentro da barriga e foi para lá para casa. [...] ele um dia ameaçou ela, mas não sei o que foi que ele falou que ela tomou raiva da cara dele, não quis mais ver.[...] ele ameaçou ela, não sei o que ele disse que ela foi e ficou com ele de novo.[deu roupa, deu um monte de coisas, ficou agradando ela, aí de pois [ele] começou de novo a bater nela, bater, bater, bater, ela já tava grávida, ele batia [...] e depois deu outro murro na boca, a boca ficou inchadona e roxa, de novo, até o dente dela parece que tinha partido aqui assim [mostra o local], a gengiva aqui ferida, já tava sentindo dor na parte de baixo. E isso aqui assim [refere-se ao queixo e mostra ao entrevistador] foi de tanta pancada [...] chega quando ela abre a boca dá um estralo, como se tivesse quebrado esse negócio aqui [aponta mandíbula], porque quando ela abre faz um estralo tão grande [...] aí ela disse que ia prestar queixa (Ogum-A).

Apesar da violência vivenciada pela adolescente ter sido relatada ao profissional de

saúde, não parece que tenha realizado nenhum registro, atitude interventiva no caso da

violência, nem encaminhamentos da vítima à Delegacia de Polícia, solucionando básica e

unicamente a situação do aborto.

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O mesmo acontece na situação abaixo em que ocorreu a seqüela corpórea decorrente

de maus-tratos sofridos na adolescência pelo pai, que encerrou na quase perda de uma

audição:

[...] meu pai batia mesmo, era de murro, de tapa, é tanto que hoje eu nem escuto direito, escuto bem pouco de um ouvido, devido um tapa que eu tomei, ele batia em todo canto, no ouvido, aqui assim [no pescoço] (Oxosssi-G).

A questão da violência ainda tem sido tratada na maioria dos casos de forma

inconclusiva, não se reconhecendo a magnitude real do problema, torna-se fundamental ao

profissional de saúde conhecer e compreender o ECA quando no atendimento de crianças e

adolescentes, conforme Lei Federal 8.069/1990 de julho de 1996, que discute sobre a

prioridade absoluta no atendimento de crianças e adolescentes com doenças e/ou agravos,

constituindo os postos de saúde, centros de saúde, hospitais e estratégias de saúde da família,

em espaços privilegiados para o atendimento em saúde e construção da cidadania a partir da

infância e adolescência, haja vista a gravidade do caso de violência e possibilidades de

recidivas (BRASIL, 1990)

Maffesoli (1987) trata a violência como necessária à sobrevivência e manutenção dos

laços se sociabilidade, considerando que ela não pode ser eliminada, uma vez que sempre irão

existir fortes, ricos e poderosos, em oposição essencialmente aos fracos, pobres e aqueles que

não detém o poder, de modo que jamais poderíamos viver sem exploração de qualquer tipo ou

natureza, ou seja, de forma realmente civilizada.

No entanto, dada sua potencialidade, as desigualdades vultuosas, as assimetrias que

carregam volumosas diferenças é que impedem que a violência exista em graus viáveis de

socialização e de acordo com o que necessita para o homem bem viver em sociedade.

Como diz o autor, os primitivos se davam, sabiamente, por mecanismos de

ritualização, que poderíamos compreender como uma atitude de astuta contemplação tribal

para diluição dos conflitos, como também conseguirem realizar pedidos e fortalecer os laços

entre os seres humanos. A função simbólica dos ritos humanos é religar os indivíduos, através

dos atos rituais, retomando assim, a ordem social.

No presente estudo, pudemos perceber que é possível estruturar constantemente a

vida em sociedade, principalmente se utilizarmos como estratégias o estar-junto. O trecho

abaixo retrata uma situação em que mudar de brincadeira foi uma estratégia para não-

violência e estar-junto, mesmo o irmão sendo um tanto quanto forte, poderoso, ele consegue

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diminuir as barreiras, os entraves, no sentido de buscar religar-se, e a forma encontrada para

evitar o conflito foi criar um novo ritual de brincadeira:

Brinco com ela [...]. Antigamente eu brigava mais eu parei.[brigava porque ela me provocava] fazia um bocado de coisa, se eu tivesse brincando em um lugar ela ia lá e terminava a brincadeira e começava a bagunçar. [E você aí batia nela?]. È . O que mudou que não bate mais nela? Eu já brinco com ela agora em paz. [O que mudou] A minha brincadeira.[ Mudou o que na brincadeira] Brinco de outra brincadeira, de bicicleta, de bola, ela brinca comigo também no lan house [casa de informática – jogos]. [E qual era a brincadeira que dava briga?] De bola, de boneco. Ela ia e bagunçava. Eu começava a briga, mas ela sempre terminava ganhando. [Porque ela ganhava?] Dava pena dela, toda vez eu acabava deixando ela me bater, eu ainda tenho pena dela. [Porque tem pena dela?] Porque ela é pequena e não agüenta um murro meu (Oxossi-E).

Pelas falas das famílias estudadas observamos que as relações familiares da família de

indivíduos negros apresentam não raras vezes a violência como mola propulsora de uma

cultura de violência.

O bater, o xingar, os abusos que permeiam as relações familiares como forma de

dirimir conflitos, de corrigir atos considerados inadequados, instrumento de educação, de

manifestação de cuidado e até de amor são uma forma de coibir a si próprio e ao outro da dor

e do sofrimento por ser negro.

O exemplo acima mostra que quando realmente se quer, seja indivíduo, família,

autoridades, profissionais de saúde, políticas públicas podem juntos agir mutuamente contra o

racismo, pois ele é um mal que corrói a vida da população negra e desalinha os passos

daqueles que vêm de longe em busca de equidade.

Apoio e proteção familiar

A subcategoria apoio e proteção familiar demonstra que nas situações consideradas

realmente violentas pelas famílias de indivíduos negros, como é o caso de um abuso sexual

cometido por um familiar, elas prestam apoio e solidariedade às vítimas.

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[Quando sua família soube que seu tio fez isso, como sua família reagiu?] Mal, todo mundo ficou contra ele. [Seu pai também?] Foi. Ninguém mais fala com ele, ninguém mais quer conta, todo mundo isolou ele (Oxossi-D).

E a mãe, na maioria das vezes, é quem protege o agressor:

[...] o policial mandou a intimação para ele. Aí ele não foi. A mãe disse que ele foi embora, que ele foi para um interior, mais ninguém sabia onde ele estava, mas ele não tinha ido para interior nenhum (Oxossi-A).

[...] depois que eu denunciei, ele fugiu e não voltou mais, minha tia disse que minha avó sabe onde ele tá, que ele foi para o interior (Oxossi-D).

A literatura mostra que a mãe, muitas vezes, é permissiva ao comportamento violento

do agressor, porque mesmo cientes da situação do abuso, por se sentirem ameaçadas e

receosas do desmoronamento familiar, acabam protegendo-os. A mãe tem medo de perder o

provedor da família no caso da vítima ser a própria filha e/ou tem vergonha da repercussão do

fato, portanto, acabam tornando a violência intrafamiliar velada, contribuindo para o

continuum da violência (PADOVANI e WILLIANS, 2002 apud SINCLAIR; BRASIL, 2004;

RIBEIRO e BORGES, 2005).

Portanto, observamos que a família dos indivíduos negros, enquanto instituição

formadora de sua identidade social, étnica e cultural não está conseguindo cumprir os papéis

de integração e valorização de seus membros, o de educar o indivíduo negro através do

diálogo e promover o resgate da autonomia, cumplicidade e respeito dos membros da unidade

familiar.

O quotidiano das famílias estudadas mostra o quão complexo é o processo educativo

para construção de imagens ativas e positivas; entendemos que isso se aos obstáculos e

descontinuidades que passam durante o processo de viver quotidiano, que as fazem utilizar a

violência como uma forma de subsistir.

c) O que está por trás da imagem? mundo imaginal do adolescente e sua família sobre ser negro.

Concordando com Silva (2006) de que “todo imaginário é real. Todo real é

imaginário. O homem só existe na realidade imaginal”, mostramos nesta categoria que o

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imaginário é tão importante quanto à imagem na vida dos indivíduos, principalmente na vida

dos adolescentes negros e sua família, nosso recorte específico.

O imaginário nos reporta para um mundo concreto, em que imagem e imaginário

podem coexistir, mas ao mesmo tempo um é oposição do outro, na medida em que, pela

imaginação, representação desse real, se pode distorcê-lo, idealizando-o, formatando-o

simbolicamente (SILVA, 2006).

O mesmo autor (p.2) conceitua o imaginário como:

[...] uma introjeção do real, a aceitação inconsciente, ou quase, de um modo de ser partilhado com outros, com um antes, um durante e um depois (no qual se pode interferir em maior ou menor grau). O imaginário é uma língua. O indivíduo entra nele pela compreensão e aceitação das suas regras; participa dele pelos atos de fala imaginal (vivências) e altera-o por ser também um agente imaginal (ator social) em situação.

Esse conceito de imaginário presta-se no presente estudo à compreensão de como os

adolescentes negros e sua família contaminados pela vivência histórico-quotidiana da

violência racista se percebem.

Corroborando com Maffessoli (1995) que em uma sociedade onde predomina o estilo

estético, os indivíduos se encarregam de contemplar a forma e faz da imagem uma diferença.

Uma imagem não só feita de traços, como a cor da pele e o biótipo enfim, que são certamente

os operadores básicos da diferença, mas também de elementos de sociabilidade, como o modo

de viver e estar no mundo, expressos no jeito de se vestir, falar, agir e lidar com o outro.

Podemos afirmar que o imaginário social construído sobre o negro e que se constitui

ainda na contemporaneidade elemento para descontinuidades na vida deste, a citar crise

identitária e cultural, continua bastante impregnado pelos princípios racistas derivados da

época da escravidão e de uma imagem inferiorizante e desprezível, recurso para exploração e

dominação dos mesmos na sociedade escravocrata que ainda permanece, porém de uma forma

velada.

Negação étnica

A subcategoria o Negação étnica revela ainda que de modo superficial, os sujeitos

desta pesquisa consideram que negros e brancos são iguais, visão que pode encontrar

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justificativa em um imaginário que não vê espaço para práticas racistas, uma vez que a

igualdade racial foi conferida com a abolição da escravatura e, portanto, o racismo é coisa do

passado.

[O que é discriminação para você?].Chamar o outro de negro, né? [Ser negro é ruim?] Não. É tudo a mesma coisa, negro e branco é tudo a mesma coisa (Oxossi-E).

O mito da democracia racial, do não-racismo impede que os negros reconheçam o

racismo e suas repercussões. O desejo de viver numa sociedade de iguais é maior que o de

reavivar um passado que buscam esquecer.

Este mito pertencente ao discurso de Freyre, Mário Andrade e Pierson difundiu-se no

imaginário social propagando a idéia de que a cor em uma sociedade multirracial de classes

não tem nenhuma importância, ainda mais porque a miscigenação já tinha “dado ao negro o

que queria”, reais chances de mobilidade e integração social (PINHO e SANSONE, 2008).

O imaginário construído com o mito da democracia racial reforça que o princípio

classificatório da cor “não fecha as portas para ninguém, não pesa quase nada nas

oportunidades sociais”. Esta ideologia arrasta o discurso de que a sociedade de classes é uma

sociedade onde a pessoa independente da cor pode transitar nas diversas camadas sociais.

Neste projeto de sociedade aberta se cristaliza o anti-racismo e é com este imaginário sedutor

que os negros são motivados a pensar que se todos são iguais, todos têm as mesmas

oportunidades de ascensão, chegar ao topo da pirâmide social é só uma questão de esforço

(PINHO e SANSONE, 2008).

Branqueamento

Outra subcategoria identificada que explica a negação do pertencimento do negro à

raça foi a do Branqueamento, na qual concebemos a partir das narrativas do adolescente

negro e sua família que existe uma forte tendência da população negra em negar seu

pertencimento étnico e ao mesmo tempo primar pelo ideal da brancura.

Recorremos a Guimarães (1999); Pinho e Sansone (2008) para entender o significado

do branqueamento na população negra e o que está por trás da fuga do negro à questão da

cor/raça. Os autores esclarecem que sendo o homem um ser social, somente faz sentido

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entendermos como processa seu imaginário sob a influência das características de cor/raça, a

partir das construções ideológicas e discursivas vividas no quotidiano e/ou no seu passado.

Podemos apontar como resíduos negativos do processo histórico excludente vivido

pelo negro e que até hoje permanecem no imaginário social, a tradição de que o corpo negro

agrega atributos inferiores, como por exemplo, lábios grossos, nariz esbugalhado, cabelos

crespos e cor preta. De modo que a aceitação da própria cor/raça pode ser muito difícil para os

negros como podemos identificar através das seguintes falas, correspondentes à pergunta Qual

a sua cor?:

Sou moreno [minha namorada] é gordinha, tem cabelo grande, é morena, da minha cor [é preto] (Oxossi 2-E).

[Qual a cor do seu ex-marido?] Moreno claro. [...] ele botou loiro no cabelo (Ogum-C).

Sou morena escura [...] eu acho que sou morena. Eu queria ser morena (Oxossi-D).

Sou morena [...] Eu queria ter cabelos longos, que eu acho bonito, assim batendo nas costas (Oxossi-H).

Para não fugir ao ideal social, um ideal que está prescrito em uma determinada forma,

a forma branca, o negro se autodenomina moreno, escamoteando a verdadeira identidade

étnica, que na sua concepção é inferior. Logo, ao imaginar, que se não estiver na forma

preconizada pode não ser admirado ou aceito socialmente, atraindo para si o desejo de agregar

a forma branca ao seu corpo.

Estando a “aparência física” atrelada ao modelo de beleza branca, o adolescente

direciona todas as suas forças para se aproximar da forma ideal, seja através do alisamento

dos cabelos, clareamento dos fios ou pelo uso de outras estratégias que não objetivam

simplesmente a mudança do visual, mas a adequação do corpo à padronização requerida

socialmente.

Resultado semelhante foi encontrado no estudo de Domingues (2002) onde os negros

também desejavam eliminar seus traços negróides a fim de se assemelhar ao branco - o fetiche

do branco, da brancura, preenchia o imaginário do negro, que manifestava o desejo de possuir

nariz afilado, cabelos lisos e longos, lábios finos e cútis clara, aspectos fenótipos que

representavam para eles, uma realização primária de seu sonho mais profundo que seria

penetrar totalmente no mundo e poderes do mundo estético branco.

Assim, sendo o ideal de beleza social a forma branca, os indivíduos negros estudados

manifestaram também inconscientemente o desejo de buscar no outro, um outro diferente

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(branco), a forma social que lhe distancia do ser negro e ao mesmo tempo permite sua “auto-

afirmação” e “inclusão” social.

O constante conflito vivido pelos adolescentes negros em relação a sua imagem e ao

imaginário social no qual estão imersos, obrigam-nos muitas vezes a negar sua identidade

negra como autodefesa psicológica e social à situação de violência (COSTA, 1983;

NASCIMENTO e NASCIMENTO, 2000).

Esconder seu verdadeiro ”eu” pode ser uma condição para serem aceitos, já que a

branquitude é o espelho que a sociedade lhes coloca para se identificar. Foi o ideal de

brancura “que, a ferro e fogo, cravou-se na consciência negra como sinônimo de pureza

artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica, etc. O belo, o bom, o justo e

o verdadeiro são brancos” (SOUSA, 1983, prefácio).

E assim segue “desconectado de sua identidade étnica” negando a si próprio e ao

outro:

[...] Feição não diz tudo [mas] preto eu não gosto. Eu não sou racista, mas preto eu não gosto. Gosto de qualquer pessoa preta, agora só que para namorar, aí eu não gosto não (Ogum-C).

O branqueamento foi um mecanismo de controle social utilizado logo após a abolição

da escravatura, pela classe dominante, que teve o objetivo de desconstruir a identidade e

cultura da população negra, através de um discurso de “democracia racial” que incentivava a

aglutinação das culturas negra e branca para criação do mestiço, um falso branco, ou o

denominado “branco social” (MACIEL, 1997; CARONE, 2002; SANSONE e PINHO, 2008).

Foi através do ideal de branqueamento, vertente ideológica poderosa, que a elite

conseguiu criar um imaginário social negro de submissão e inferioridade intencionado em

desmobilizar e até mesmo extinguir a população negra. Obedecendo às regras ideológicas do

branqueamento, quanto mais o indivíduo negro se distanciasse da sua pigmentação preta da

pele ou enfim quanto mais se aproximasse da pigmentação branca, “quase-branca”, era

classificado como um indivíduo superior na cadeia dos mestiços e “equivalente” ao branco.

Este “semibranco’ ou sub-branco era tratado de forma diferenciada do negro retinto”, uma vez

que este último por não conseguir atender aos requisitos imprescindíveis da raça ariana e da

urgente necessidade de limpeza de sangue, sucumbia ao menor ou nenhum potencial de

ascensão e mobilidade social (DOMINGUES, 2002, p.569).

O mestiço, branqueado social, na tentativa de adotar integralmente o estilo de vida do

branco, modifica sua maneira de estar e ver o mundo, aliás, faz a leitura de si e do mundo pela

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ótica do branco, por isso recusa tanto sua herança quanto sua identidade negra, como também,

evita o convívio social com o negro retinto, seres socialmente inferiores (BENTO, 2002;

DOMINGUES, 2002).

Domingues (2002) comenta que a busca por branqueamento era tão necessária, que a

família também se responsabilizava pelo controle das relações amorosas entre seus membros,

com intuito de impedir possíveis casamentos com negros. Assim, os pais regidos pelos

mandamentos do branqueamento, realizavam uma “triagem” dos namorados e futuros

cônjuges de filhos e filhas, para garantir o branqueamento familiar e conseqüentemente o

alcance de mobilidade social, que somente poderia ser consentida socialmente, à custa de uma

nova identidade, a mestiça.

O corpo mestiço enquanto objeto social adquire para o adolescente negro e sua família

dimensão significativa no desenvolvimento do seu autoconceito, auto-estima e auto-imagem.

Ou seja, ao incorporarem o branqueamento na sua imagem/imaginário produzem uma

distorção do seu self e projeção identitária se colocando também, a serviço da prática racista

(CHARON, 1989; OUTEIRAL, 1994; OSÓRIO 1992; DOMINGUES, 2002).

[O que acha dessa situação de discriminação?] Acho que ela tinha que ter uma punição [...] ser presa, porque ela é morena e fica fazendo isso, falando dele, chamando ele de preto (Oxossi-D).

De onde concluímos que a ideologia do branqueamento foi capaz de transformar o

negro, vítima do racismo, em seu reprodutor, fato que Chauí (1985, p.28) explica sob a

perspectiva da violência. Quando a autora define a violência como uma “ação que trata um ser

humano, não como sujeito, mas como coisa”, inclui o racismo como um tipo de violência, já

que o discriminado na prática racista é visto e concebido como “coisa” pelo agressor, e como

tal, inferior, insignificante e que portanto, pode ser explorado, maltratado, violentado. O

indivíduo branqueado, já não mais se considera negro (inferior) e utiliza, assim como um

branco (superior), a prática racista nas suas relações.

Percebe-se que ao falar da discriminação, o adolescente negro recomenda a punição do

agressor que também é negro, como repulsa ao comportamento que do seu ponto de vista,

jamais poderia ser apresentado por este grupo étnico. No entanto, entendemos, como Tilmas-

Ostyn (2001), que diante da violência (racista) vítimas e agressores (negros) alternam

posições; quem foi vítima da ação discriminatória no passado pode se tornar agressor no

futuro, reproduzindo a violência sofrida.

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Lopes (2005) nos lembra que a população negra está associada às piores condições de

existência humana, em decorrência da violência que sofreram e sofrem no quotidiano de suas

vidas, no entanto, esclarece que são poucas as pesquisas que trazem no seu escopo, a relação

entre o racismo e saúde da população negra, que abarca as questões de violência que atinge

prioritariamente esse grupo étnico, como a elevada mortalidade de negros por homicídios e

pela presença majoritária dos mesmos nas penitenciárias.

Através da narrativa de um dos adolescentes da pesquisa podemos perceber o quanto a

violência racista presente no quotidiano do negro constitui-se uma ameaça à própria vida e à

vida social:

[...] ele ficou triste, ficou cabisbaixo, porque ele disse que não fez nada disso [foi sido acusado pela patroa no ambiente de trabalho de ladrão, quando “algo” da mercearia em que trabalhava desapareceu, em seguida a patroa utilizou da prerrogativa em que fazia claramente a associação entre preto e ladrão, logo depois do incidente o demitiu]. Depois [do ocorrido] ele saiu para rua com um pau e disse que ia pegar ela e quebrar toda no pau [risos da entrevistada adolescente que conta-nos o fato]. [Ele disse que ia quebrar ela toda no pau foi?] Ele ficou muito irritado (Oxossi-D).

Entendemos ser o racismo ilustrado nessa narrativa, um tipo de violência que torna o

negro vulnerável, ou seja, exposto às várias situações de violência; uma vez que tal situação

de humilhação e constrangimento própria das práticas racistas, o reporta a uma condição de

inferioridade que o liga a uma imagem/imaginário negativo que foi construído socialmente e

que ainda é cultivado nas cenas quotidianas.

Diante da situação de violência racista vivenciada pelo adolescente negro da pesquisa,

o mesmo reage com comportamentos violentos, pois para ele violência se enfrenta com

violência, única forma que aprendeu para lidar com os conflitos.

Segundo Chauí (1985, p.28) a violência emerge quando há “conversão de uma

diferença e de assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação,

de exploração e de opressão, ou seja, a conversão dos diferentes em desiguais e a

desigualdade na relação entre superior e inferior”. Concordamos com a autora e

acrescentamos que a assimetria das relações está baseada no medo, o “superior” consegue

dominar o “inferior” por causa do medo.

Percebemos que a violência na população negra parece estar condicionada no caso do

homem agressor, ao medo de perder o que lhe resta de potência – sua masculinidade, medo de

não ser reconhecido, amado e desejado; já a vítima, que são geralmente mulheres, permite a

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agressão porque tem medo das repercussões do enfrentamento da situação, pois não tem a

mesma potência física masculina e não possuem prestígio social, então, elas têm medo de

serem desprezadas, rejeitadas, não aceitas e reintegradas socialmente.

Assim, os atos violentos eclodem toda vez que o outro representa uma ameaça ou

possibilidade de ruptura da potência de um eu que está fragilizado, desestruturado, seja por

conta da negação da identidade étnica, da baixa-estima ou qualquer outra situação que lhe

confira medo, medo de perder o seu “pequeno” poder, como também ocorre ao encontrar solo

fértil para sua envergadura como um eu impotente, ou incapaz de buscar a potência necessária

para enfrentar a situação de violência.

Racismo/Sexismo

Nessa perspectiva de Racismo/Sexismo é elevado o preço de ser “moreno”,

principalmente porque a negação étnica corresponde a um discurso tanto do imaginário

quanto do real, sendo esta realidade proveniente de um contexto de relações que capacita o ser

“moreno” para um determinado comportamento.

Nos estudos de SILVA (1987), os negros do Limoeiro, assim como estes adolescentes

negros tiveram dificuldade em aceitar sua identidade étnica, pois não se auto-identificaram de

imediato como negros, Com o linguajar próprio se diziam ”queimados”, mas, somente

consentiam ser tratados de “morenos”. Outrossim, a escolha da palavra moreno, ao invés de

preto ou pardo, traduzia a própria ambigüidade da palavra ou por sua irrefletida parcialidade,

o que sem dúvida, a denominação “morena” não conseguia esconder é a visão preconceituosa

que seu uso encerra, causando constrangimento tanto àquele que diz, como aquele que ouve.

Pode–se constatar que o emprego do “moreno” no discurso do negro, revela certo

estranhamento ou até reconhecimento de algo errado em o sê-lo.

O termo negro significa: “que recebe luz e não a reflete; preto. Escuro. Sombrio.

Denegrido, requeimado do tempo, do sol. Lutuoso, fúnebre. Que causa sombra; que traz

escuridão. Tenebroso. Tempestuoso. Indivíduo de raça negra; preto. Escravo. Homem que

trabalha muito. Escuridão, trevas (...)” ( BORBA, 1988, p.715).

Falamos então de um problema que não está somente na diferença em si, mas na

ênfase que lhe é dada, na acentuação da diferença que tem por objetivo inferiorizar e

sentenciar tudo e todo aquele que for destoante da forma branca.

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De certo é impossível imaginar o quanto a idéia de branqueamento refletido na

expressão “morena” poderia tingir sua pele ou a sua psiquê, reduzindo-o enormemente

enquanto pessoa, pela simples possibilidade de fazer eclodir em suas mentes uma carga

racista que encesta todo o entendimento da hesitação ou antagonismo racial declarado por

Nascimento e Nascimento (2000, p. 20), como “crenças e atos que negam a igualdade

fundamental de todos os seres humanos em função de diferenças percebidas de raça, cor ou

aparência”. O negro se sente “diferente” e é visto como diferente, motivo pelo qual

escamoteia sua cor, tendo em vista que socialmente esta diferença, está essencialmente, na sua

cor, conforme fala abaixo:

[...] Como lhe falei que ficavam dizendo que meu filho era negro, chamava ele de negro preto, os meninos ficavam chamando de meia–noite por causa da cor.Essa moça aqui da mercearia ficava dizendo que ele era bem preto, ficava chamando de negro, tudo que acontece aí ela diz que é ele, mesmo ele não estando no meio, ela só diz que é ele, porque ela já tem o racismo já com ele. As pessoas que a ouviam chamando ele de preto, tudo dela é assim, aquele nego, preto, não sei o quê? Pela forma de falar você tira. Uma forma assim de discriminação mesmo (Oxossi-G).

Perante o conflito racial vivido, fica muito difícil para os negros assumirem uma

identidade racial ligada às suas raízes étnicas, consequentemente, a maioria ou grande parte da

população negra se sente reprimida e insegura em se reconhecer como negra, assumindo a cor

“morena”. Pois, assumir ser preto ou pardo no Brasil significa enfrentar todo o aparato

histórico-social construído que o classifica em padrões éticos e estéticos desprezíveis, ligados

a uma imagem-imaginário de marginalização. A opção pela negação de sua verdadeira

identidade é uma forma de autodefesa psicológica e social, pois assumir-se negro implica agir

e pensar ininterruptamente contra as mais desveladas ou mesmo dissimuladas formas de

discriminação, o que lhes causaria bastante desgaste e sofrimento.

Diante disso, acrescenta-se que uma das barreiras para construção identitária dos

negros após a abolição, apontada por Souza (1983) e confirmada em Costa (1983, p. 2) foi a

“violência racista” a que o negro continuou a ser submetido constantemente pelo branco, haja

vista que “a violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa

tendência a destruir a identidade do sujeito negro”, questão reafirmada pelos padrões estéticos

que qualificam o branco como símbolo da perfeição.

As raças foram durante muito tempo categorias de posição social, onde o lugar do

negro era o de escravo e o do branco, o de senhor, dono do poder. Então, a divisão de classes

esteve polarizada e demarcada pela cor, definindo-se duas classes sociais, a de senhores e a de

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escravos. A estratégia de disposição das categorias sociais pelo quesito cor, restringia as

desigualdades entre brancos e negros apenas pelo plano econômico, sustentando a equivocada

argumentação com base na pobreza, um elemento aludido para não ascensão social do negro,

ao invés do racismo, ignorando-se ou pressupondo-se que atitudes de fragilidade,

vulnerabilidade e imperfeições estivessem ancoradas na questão da cor, cujo foco assentava à

qualidade dos indivíduos.

Assim, o racismo em seu prolongamento perpetuou a imagem de inferioridade,

submissão e coisificação do negro de maneira marcante em seu imaginário, exacerbando o

desejo de buscar no moreno, um ideal de beleza; e como esta não poderia ser obviamente

totalmente branca, restou-lhe o intermediário do processo do branqueamento – o moreno,

legítimo arquétipo de beleza que agrega os atributos favoráveis à vitalidade, a sensualidade, a

imagem perfeita das curvas do corpo e do porte da maculada beleza negra, reduzindo-se a

uma expressão estética imaginária e de uma potente encarnação para realização do prazer

carnal, capaz de torná-los objeto de desejo e alvo de práticas sexuais deliberadas.

Para os familiares o comportamento da adolescente, de cor “morena” com todos seus

arquétipos de beleza negra, motivava comportamentos de violência sexual por parte de

homens, por causa de seu modo de ser e se vestir, que desperta neles desejos sexuais:

[...] Ela ia para casa de minha avó de saia, deitava na rede de pernas abertas. Aí meu tio ficava olhando para as pernas dela. Ela dizia que estava de saia e o que é que tinha! E ele ficava abaixado assim oh! [coloca-se de joelhos] de olho nas pernas dela.

Em vista disso, pode-se entender porque a violência muitas vezes não é percebida

como uma transgressão, mas como comportamento que apenas responde ao desafio da

provocação erótica que proporciona a exibição do corpo negro, um corpo que pelo viés da

beleza negra pode ser violentado, já que sempre foi histórico-socialmente manipulado, em

virtude de sua robustez de valor mercantil e ao mesmo tempo usurpado para os prazeres da

carne, tendo em vista tanta feminilidade e masculinidade.

A tradição de que o corpo negro agrega atributos naturais favoráveis ao erotismo,

como vitalidade e sensualidade é a imagem atual prescrita no imaginário masculino e

feminino da nossa época, no entanto, esta iconografia não é originalmente nova, foi concebida

desde o período colonial para justificar a violência sexual praticada.

De modo que tanto os homens de senzalas como os seus senhores usufruiriam das

mulatas como mero objeto para sua satisfação sexual independente da resposta e disposição

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erótica da mulher, o que mostra que a mulher sucumbiu como objeto de exploração sexual

cumprindo sem cerimônia o seu papel de proporcionar prazer.

A reencarnação do homem/senhor violentador se repete na vida contemporânea,

gerando comportamentos violentos, de cunho instintivo, machista e derivado de posses e

poder, e ainda que toda a sociedade venha se mobilizando para investigar, orientar e enfrentar

a situação, já está bastante comprovado que os atos violentos fazem parte de um ciclo

intergeracional decorrentes de experiências de convívio familiar, tornando ainda mais difícil a

abordagem ao agressor e vítima, exigindo um trabalho multiprofissional e em rede para conter

a abrangência do fenômeno.

Embora Maffesoli (1987) não tenha se preocupado em definir rede, em O Tempo das

Tribos escreve em poucas linhas sobre o tema, demarcando sua concepção de rede como a de

trabalho grupal, conjunto, mas que se permita a essência.. Neste sentido aponta a proxemia,

que significava “abundância de efervescência”, algo que revela a intensa realidade (in-tensão),

que se organiza em torno de um eixo/espaço, que ao mesmo tempo liga as pessoas e as deixa

livres para suas escolhas, momento de ação-reflexão e tomada de decisão individual-grupal.

A rede, para Maffesoli (1987), pode ser compreendida como entrelaçamento social, ou

agregação social, na qual a circulação de informações serve para manutenção de um sistema,

ou para validá-lo para uma comunidade, através da atualização de dados que favoreçam a

proximidade entre as pessoas, tomada de decisões, resoluções de problemas,

compartilhamento de dificuldades, dúvidas, desejos e as fantasias, conduzindo ao que chama

viver cíclico, viver que une o "lugar" e o "nós", mesmo diante da complexidade do mundo

vivido.

Nesse estudo, algumas mulheres justificam os comportamentos sexuais violentos de

seus familiares (esposos, pais, tios irmãos) levando-se em consideração a provocação erótica

de parentes (filhas, sobrinhas) ao exibirem inadvertidamente seu corpo com poucos trajes e

vestes dentro e fora de seus lares, concluindo que agindo dessa forma aumentam o risco de

serem violentadas tanto no âmbito familiar quanto na rua.

Camargo e Buralli (1999) mostram que o uso da violência pelos pais para o controle

dos filhos são artifícios que foram concedidos ao longo da história social da criança para a

manutenção da ordem família-comunidade, sendo inclusive a própria disciplinarização, com

papéis educacionais coercitivos, primordiais para evitar o comportamento desviante da

criança e do adolescente da conduta e norma estabelecida socialmente. O motivo educacional

serve aos pais como direito, quando não obrigação de evitar transgressão social originárias de

crianças e adolescentes no tempo presente ou futuro.

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Observa-se diante disso, que infelizmente os pais exercem o papel de principais

disciplinadores dos adolescentes agindo muitas vezes de forma abusiva para conseguir

obediência.

Embora exista preocupação das mulheres com a questão do corpo e dos riscos de suas

filhas serem violentadas em virtude das poucas vestes, do corpo da mulher negra não poder

estar à mostra, a feminilidade e virilidade exacerbada da população negra, sempre foram

utilizados como disfarce para torná-las alvos de práticas sexuais deliberadas. Assim,

identificam que o uso de poucas vestes traz grande probabilidade das suas filhas adolescentes

serem violentadas, já que em tenra idade o seu corpo “moreno” no imaginário social,

principalmente masculino é tentador, sedutor, de curvas perfeitas, portanto, as tornam

vulneráveis as agressões.

No entanto, sendo a adolescência uma fase de extrema valorização do corpo, do direito

do adolescente sobre a exploração do próprio corpo; refletir sobre o modo como se sentem em

relação a si mesmos e os outros que os cercam, a auto-afirmação e auto-estima e sua relação

com o corpo, em detrimento da moda, possa ser um caminho para fortalecer aspectos de uma

convivência de respeito e reciprocidade entre adolescentes e adultos no que se refere a

sexualidade, considerando que o visual do adolescente pode construir e/ou estimular

representações negativas no imaginário do adulto como algo de natureza perversa, como o

estupro e outras formas de violência sexual.

Por causa da violência, parece que na adolescência seria de bom senso, autocontrole

de reações que revelem exibicionismo, principalmente com a parentela e amigos, evitando

também abordagens de confrontos libidinosos com estranhos ou familiares suspeitos,

entendendo que é na adolescência onde há uma maior necessidade de vigilância para

minimizar os riscos de ocorrência da violência.

[...] ela provocava, a vestimenta dela, sentar de pernas abertas entendeu? Ela senta de qualquer jeito, não tem uma coisa assim, não olha quem tá por perto, andava muito de toalha em casa [...] Ela vivia passando de toalha pela casa, ficava se exibindo passando de toalha chamando o estupro (Oxossi-G).

Porém, a imagem não é una, é múltipla e facetada, está presente nos gestos, nas

roupas, em todos os símbolos que utilizamos quotidianamente, sendo ela que nos apresenta ao

mundo. Então, para o adolescente estar de toalha não necessariamente lhe deixa diferente, é

natural, principalmente se presencia outros familiares com o mesmo costume de cruzar os

cômodos do domicílio de toalha ou vestes inapropriadas. É fundamental para que exista

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respeito e garantia de aplicabilidades de seus direitos, que todos no domicílio se comportem

de maneira semelhante e compreendam a imagem “passando de toalha pela casa”, com algo

negativo, caso contrário, os argumentos teoricamente colocados não vão provocar nenhuma

mudança, e o evento ativará a cascata da violência sexual. Trata-se, então, de romper as

barreiras de motivo educacional, de ambos os lados, todos da família evitando reprodução dos

comportamentos considerados pró-ativos de violência.

Se a sociedade não reconhecer que a adolescência é um período de transição onde se

fazem necessários momentos de transgressão, de ousadia, de tribalismo para demonstrar a

fuga da mesmice inerente ao processo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo até a

fase adulta, jamais conseguiremos ultrapassar as barreiras estabelecidas para comunicação

com os adolescentes, tais imagens não devem ser temidas, mas observadas, compreendidas,

decodificadas, justamente ensaiando escapes ao invés de rupturas, buscando possibilidades de

mudanças e reorganização de ícones, artefatos, e reajuste da própria moda em favor de uma

adolescência mais saudável.

Conforme a provocação do próprio Mafesolli (1987) a consciência de que a violência

não pode ser eliminada deveria gerar uma atitude de astuta negociação, com o intuito de

"amansá-la", socializá-la, ao invés de domesticá-la por meio de regras e códigos de conduta

rígidos que nada resolvem, o desafio é canalizá-la, organizá-la, integrá-la e combiná-la com

outras práticas sociais e simbólicas que dêem conta resgatar a harmonia.

Pensar na construção da identidade negra, de modo que consigam resistir a toda essa

onda de violência e a negatividade que os acompanha, requer mais do que mantê-los vivos,

seja no seu trabalho, na sua escola, e automaticamente oferecer-lhes o que resta como espaços

minúsculos nas políticas, espaços sociais, no mundo onde estão sempre mantidos sob

controle.

Esse processo de não reconhecimento social e inutilidade aos olhos da sociedade,

vivendo com medo de perder a sua condição de “trabalhador”, e mais, de experimentar pelos

trabalhos de segunda categoria ou mesmo ofícios inferiores e pouco qualificados, relações de

humilhação, submissão e menosprezo, fazem com que os adolescentes construam

subjetividades carentes de sentido (CARRETEIRO,1999).

Zaluar (1994) e Madeira (1997) esclarecendo sobre as perspectivas sociais do negro

nos mostram que para os adolescentes negros a escola é distante, no sentido da escolarização

ter pouca participação em suas vidas, como também das atividades escolares não se ater ao

seu real papel educacional. Seu universo de trabalho, como adolescentes remonta vidas

empobrecidas diante de trabalhos desvalorizados e mal-remunerados, estando livre de

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qualquer conforto, a situação culmina na ausência de expectativa de mudança e

enfraquecimento de seu papel como ator social.

Dentro desse panorama de fragilidade das vivências nas instituições, saúde, educação

e trabalho o adolescente negro possuem poucas esperanças de se inserirem dignamente no

mundo, porque é iludida pela própria sociedade que a situação é mutável, basta uma rede de

suporte social forte, para que façam parte em condições de igualdade em relação a tudo e

todos.

Na verdade, as dimensões ético-valorativa, sócio-histórica e consequentemente

político-econômica da identidade e estrutura social se afinam e contribuem para o que hoje

podemos denominar do estilo delinqüente do adolescente. Dizemos isso, considerando

ARPINI (2003), que parte da idéia de que ao ser excluído do espaço da escola, do trabalho, da

saúde, do lazer, dentre outros, está nesse momento sendo incluído em outro espaço social o da

marginalidade e delinqüência.

Como vimos à família desestruturada, as relações hierárquicas de poder na própria

família, onde os pais detêm o poder sobre os filhos; o processo educacional inadequado na

família e na escola com pouca ou nenhuma participação dos adolescentes nas tomadas de

decisões, escolhas e trajetórias a seguir, a discussão e entendimento de sexualidade no lócus

familiar tem sido determinantes na constituição do sujeito, sobretudo quando se trata de

adolescentes (ARPINI, 2003).

Por isso, embora passado bastante tempo, os negros ainda não conseguiram

reconstituir efetivamente a sexualidade em sua essência. O prazer, a sensualidade, a

dignidade, a afetuosidade, que se encerra, ou melhor, que se inicia nas práticas sexuais na

adolescência já não consegue sobreviver diante de um imaginário social que assinala mais

uma vez uma diferença estética inferiorizante entre negros e brancos trazida pelo estereótipo

do corpo da mulher negra e sua sensualidade algoz.

É indiscutível a extraordinária força do imaginário no real da vida humana, a que serve

de matriz constituinte da rede de convivência social, tanto as qualificando quanto a

destituindo de sentido. Dentro dessa lógica, podemos analisar que ao mascarar o real sentido

da exploração sexual do corpo negro e sua disposição erótica, as mulheres negras são

impedidas de exercer sua sexualidade de maneira plena, já que são vistas como aquelas

capazes de realizar os desejos mais ávidos e inimagináveis das pulsões sexuais masculinas

tornando-se assim mais vulneráveis aos abusos sexuais que às brancas.

O imaginário traz à tona o desprezível ao se referir à mulher negra, desqualificando a

sua imagem, marcando sua trajetória de vida como objetos sexuais, de tal modo que

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continuam sendo sempre comedidas, dóceis, destituídas de pudor, portanto, grandes vítimas

de exploração e assédio sexual.

Ressalta-se que mesmo tendo sofrido um processo de alienação de sua identidade

enquanto escrava, tratada como objeto/coisa ao invés de pessoa, ela não perdeu sua dignidade,

lutando com força pelo ideal de liberdade e identidade, resistindo para conformação

quilombola como uma saída ou estratégia do viver coletivo entre iguais, a exemplo da revolta

dos malês, na Bahia: - Luiza Mahim, no Quilombo dos Palmares, em Alagoas: Acotirene,

entre outras (BOLETIM n. 1, 1987).

Demarca-se também que na época o protagonismo das mulheres negras não era bem

aceito pelo movimento feminista emergente no país, já que este defendia e hasteava bandeiras

específicas de situações de mulheres não-negras. Os problemas como trabalhar fora, estudar

para conquistar autonomia, respeito dos maridos e companheiros, que sempre foram

expectativas das mulheres não-negras, não faziam parte das aspirações da mulher negra, já

que tinham histórias diferentes, sendo trabalhadora por excelência, o seu formato de família

sempre circular, de procedência africana que acolhe parentes consangüíneos e até por

benfeitoria agrega pessoas sem parentesco real e todos os outros ensinamentos de senzala.

Dito assim, a transposição da mulher negra da senzala para a periferia das cidades;

apenas aprofundou as crises do processo excludente afro-brasileiro, fazendo a mulher

brasileira acreditar que podiam exercer a cidadania e recuperar e fortalecer sua identidade de

mulher negra, recusar a ditadura dos padrões de beleza existentes, lutar pelo espaço das

mulheres negras no movimento feminista emergente para discutir questões de interesses do

negro, no entanto, logo elas perceberam que a sociedade capitalista que acabou com a

"escravidão", apenas as tirou das senzalas para jogá-las nos barracos, nas favelas, nos becos,

marginalizá-la.

Interessante que mesmo com todos os entraves enfrentados, as mulheres negras

conseguem driblar os problemas e fazem circular informações importantes pós-abolição,

através do Maria Mulher, mantendo um dos poderes mais simbólicos e salutares para

conseguir agregação, e manter vivos elementos da fortaleza da cultura negra.

Maria Mulher representou o poder da mulher negra de universalizar as informações

sobre o negro, divulgar acontecimentos de luta e resistência, apresentar escritos que mesmo

diante da dominação a que eram submetidas, promovessem esperança de um futuro diferente,

melhor, menos trágico.

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[...] resistência silenciosa, passividade, não significa consentimento. Deve-se atentar para a resistência embutida em seu aparente vazio...vazio de palavras carregado por um silêncio que grita em direção ao movimento, certamente de negros, que buscam uma organização de políticas com fins de melhoria da qualidade de vida de negras e de negros no país. A tentativa de discutir e até formar um grupo de mulheres negras que dessem continuidade a uma ação política voltada à Mulher Negra. Conjetura que a ação seria elaborada por homens e mulheres negros, dispostos a por fim às relações de discriminação de gênero, de raça e de classe em nossa sociedade (Modificado do Boletim n. 1, 1987).

O trecho acima nos faz refletir o modo ingênuo como a população negra e

principalmente da mulher negra acredita poder ganhar maior visibilidade e construir um novo

conceito de beleza negra na sociedade, como também de reverter a situação de vitimização a

que se encontram duplamente expostas por serem mulheres e negras, tendo que assumir para

si verdadeiramente um discurso contra-hegemônico anti-racial, como também a emergência

de novos sujeitos negros. Esta tarefa é árdua e se entendermos que evidentemente as

categorias, sexo, raça e classe são histórico socialmente subprodutos do discurso que legitima

práticas de dominação masculina racial e de classe, onde quem detém o poder é o homem,

rico e branco (SAFFIOTI, 1987; FIGUEIREDO, 2002).

Como observou Collins (2000; 2005) durante a escravidão, os negros não eram donos

dos seus corpos e nem da sua sexualidade, por isso, é exatamente nesse ponto que surge o

esforço do processo de tornar-se mulher negra, sendo algo mais bem explorado, não somente

teórico, mas também prático, de modo que a mulher negra possa exibir orgulhosamente seu

corpo politizado, valorizado, com vistas a resgatar sua auto-estima como negra, no sentido de

reinventar, reconstruir um corpo negro de fato. Sem dúvida, autodefinir-se como negro é o

primeiro passo. Por esse motivo, o negro não pode permitir a construção de sua identidade

pelo olhar do outro, a partir do olhar do outro, o equivale na verdade, desconstruir o

branqueamento e reconstruir uma nova imagem, com o compromisso de assumir sua própria

imagem.

O investimento do movimento negro em ter uma negra orgulhosa de si, tornou-se

importante sobretudo para afirmar estereótipos absolutos de uma beleza negra real. Assim, a

construção de um padrão de beleza libertos do anterior, inspirados em padrões estéticos

africanos, ganhou força na Bahia, no final da década de 70 com o surgimento de um bloco

carnavalesco composto de afrodescendentes o Ylê Aiyê visando responder às condições

adversas de beleza resultantes do racismo.

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A noção de beleza proposta em como advento a escolha da mulher negra que

representa a Deusa do Ébano, ou seja, àquela mais bonita dentre negras, na chamada “noite da

beleza negra”, cuja beleza contrapõe o padrão branco veiculado pela mídia em diversos

concursos, que seriam mulatas semi-nuas desfilando em carros alegóricos carnavalescos,

seguindo critérios de beleza vigentes - cintura, busto, quadril moldados na performance da

mulher ideal.

Por esse motivo, a beleza do Ylê, exibe corpos exuberantes e trajados em roupas

criativas, danças e penteados transados, onde tranças e alegorias é um conjunto de elementos

que auxiliam a indumentária da mulher negra esteticamente valorizada, evitando a exposição

dos corpos das mulheres negras, desmistificando que a beleza não está na nudez, mas nos

diversos atributos do negro e sua cultura.

O cabelo tem sido considerado o “feio da raça”, sendo um tema freqüente no cotidiano

das mulheres negras que se sentem inferiorizadas e gastam enormes quantias de seus salários

para obterem “cabelos bonitos” para agradar a si e aos outros (FIGUEREDO, 2002). A

manipulação do cabelo parece ser uma necessidade básica entre negros, e o estilo afro, vem

sendo o mais cotado para estabelecer a religação com a raça tornando-se popular entra as

mulheres, mas melhor aceitável pelas ativistas negras e militantes do movimento negro. Este

discurso e comportamento constituem do ponto de vista da militância negra, um importante

marcador da diferença entre brancos e negros, quer seja porque incomoda aos brancos, quer

pela autodefinição; ou até porque conseguem construir a tipicalidade do sujeito negro, aquilo

que lhe é notável, lhe é próprio (SANTOS, 2000; GOMES, 2006).

Dentre os fenótipos negros, o cabelo, segundo os próprios negros é mais desejado de

ser manipulado, entretanto, os métodos empregados nem sempre são estilos divergentes do

modelo de branqueamento. Para Pinho e Sansone (2008) a intervenção depende de diferentes

fatores como disponibilidade financeira, espaço que o negro ocupa, suas crenças e valores;

por exemplo, espera-se que os negros a depender do seu estilo de vida possam aderir aos

alisamentos, uso de produtos químicos para ativamento de cachos ou abusar dos mais

variados penteados com tranças.

Os cabelos se constituem preocupação dos pais, antes mesmo do nascimento de seus

filhos, certamente porque ainda permanecem em suas lembranças os traumas, as dificuldades,

a discriminação e o preconceito vivido na época da infância, da escola e na relação com os

outros, por conta do cabelo crespo, o que inclusive influencia no matrimônio de negros

(PINHO E SANSONE, 2008).

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Nesse sentido, o movimento negro brasileiro toma o cabelo natural como símbolo de

afirmação de identidade, nesta perspectiva o ato de alisar o cabelo na sociedade brasileira não

pode ser visto como um simples exercício de beleza, porque contraria a regra de afirmar

fenótipos negros, e acaba por fortalecer o branqueamento (PINHO E SANSONE, 2008). .

Para o autor precisamos estar bem atentos, principalmente em se tratando de jovens,

que o uso de um determinado tipo de cabelo pode estar associado aos movimentos de

resistência – a citar: black-power, punk e os estilos afros, como também relacionados com a

representação dos seus corpos, construção de um padrão de beleza e principalmente de sua

identidade.

Gonzaléz (1983) não só questiona o fato dos negros serem descritos representados

dessa forma na sociedade em geral, como também denuncia as representações submissas e

sexualizadas das mulheres negras na cultura brasileira, como as mães-prestas (mães-de-santo),

mulata e empregada doméstica que permaneceram exploradas desde o sistema patriarcal e

seguem até hoje na fase capitalista em que vivemos.

De onde o emprego doméstico não tinha relação de formalidade, nem caráter de

emprego porque frequentemente as famílias empregavam as trabalhadoras adotando o

discurso de que elas faziam parte da família, podiam ser consideradas crias da casa, ao invés

de serem consideradas somente como trabalhadoras, dessa forma se sentiam impedidas de

reivindicar seus direitos (COSTA, 2008).

Na literatura as pesquisas de Brookshaw, Jorge Amado, Monteiro Lobato sobre a

representação dos negros demonstravam através de figuras emblemáticas que os negros eram

dóceis e subservientes e as mulheres mestiças e mulatas eram demasiadamente sexualizadas.

Almeida (2004) reforça que no Livro Gabriela Cravo e Canela a construção da personagem

central resulta da mistura de ingenuidade/pureza e sensualidade/sexualidade, que no por vir

denunciaram a exploração sexual de que são vítimas as mulheres negras e mestiças no Brasil

(DIAS FILHO, 2002).

Giacomini (2006) procura demonstrar que a categoria mulata não é apenas racial pode

se transformar em uma categoria profissional, uma vez que a autora entende que a mulata não

somente predispõe de características fenotípicas para sê-la, que é nata, como a cor da pele e o

tipo de cabelo, como também pressupõe que precisam adquirir aquelas necessárias à

profissão, estabelecendo estreita relação entre a categoria racial mulata e a categoria

profissional prostituta.

No caso das mulatas percebe-se que é uma categoria interceptada pelo gênero, tendo

em vista os júbilos da cor e de outros fenótipos que as fazem importantes como “mulheres

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destinadas ao sexo apple”, vítimas do sexismo e do racismo. Já que há uma associação direta

entre a sexualidade e a mulata, principalmente porque as mulheres negras não nascem

mulatas, são despertadas para sexualidade na adolescência e afloram na fase adulta. De acordo

com Gilliam; Gilliam, (1995, p529) [...] incorporarão mais de uma representação na trajetória

[...] desde serem mulatas sexualizadas na juventude, as nutridoras, zeladoras e negras

desfeminizadas quando tiverem mais idade.

No texto de Corrêa (1996) a invenção da mulata, recrudesce da escala classificatória

de cor e seus nuances revelando a construção da categoria mulata, que perpassa pelas

representações de gênero. Gilliam; Gilliam (1995) esclarece que as mulatas sentiam-se

superiores aos pretos buscando distanciar-se das mulheres negras, assim tanto a mulata quanto

a negra são construídas relacionamente, um em oposição à outra, mostrando um destino

forjadamente eqüidistante.

Cadwell (2007) estudando a construção da subjetividade negra assinala que uma das

características marcantes na trajetória das mulheres negras entrevistadas no seu estudo é a

ausência absoluta de referenciais positivos de ser negro/negra durante a infância, motivo que

ou as encaminha a psicanálise ou a serem ativistas do movimento negro, demonstrando que o

processo de aceitação ou rejeição de si , refere-se, invariavelmente, a aceitação do corpo e das

características físicas.

Entretanto, conforme Degler (1976); os mulatos são diferentes, ele é um exemplo

contundente da ausência de preconceito racial, algumas vezes até serve de válvula de escape

inter-racial, considerando que o racismo é diferente entre homens e mulheres negros e ainda

que a concepção de raça é diferente para homens e mulheres. Por esse motivo, o debate em

torno do cabelo é o entrelaçamento entre as categorias de gênero e raça de onde se observa

segundo Gilliam; Giliam, (1995, p533) que “de todas as características, é o cabelo o que

marca a “raça” e o que mais significa para a mulher”.

Considerando este aspecto, as violências que atingem homens negros e mulheres

negras são diferentes, sobretudo os jovens negros que estão mais expostos à violência física

institucionalizada ou não, enquanto que as mulheres negras são mais vulneráveis a outros

tipos de violência, como àquelas que condicionam a aparência às oportunidades de trabalho, e

as adolescentes negras são vítimas das violências que se relacionam com as representações do

corpo, padrões de beleza hegemônicos e sexualidade.

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Autor do desenho: Anderson Santos Lima

“O que os fazem subsistir, resistir, enfrentar, continuar vivendo?”

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6 CONCLUSÃO

O estudo baseou-se nos relatos de duas famílias formadas de indivíduos negros que

vivenciaram violência familiar no seu quotidiano, analisamos as relações familiares e sociais

buscando entender a partir de seus discursos às concepções de violência, experimentação e

estratégias de enfrentamento.

Através da perspectiva teórico-metodológica do Interacionismo Simbólico e conceitos

mais significativos da Microssociologia do quotidiano procuramos nos ater ao seguinte

pressuposto: a experimentação da violência para o adolescente negro tem como um dos seus

determinantes o racismo, haja vista acreditarmos que o racismo influencia o processo de

construção da violência nas relações familiares e sociais de adolescentes negros.

Tendo em vista a complexidade do fenômeno, foi importante investir na entrevista

semi-estruturada, técnica que possibilitou em decorrência de sua flexibilidade, uma variedade

de descobertas e orientações constantes para a direção da pesquisa e alcance dos objetivos

propostos.

A naturalização, a banalização do ato violento, a sua repetição, nos faz pensar que o

racismo como uma forma de violência, também carrega consigo todas as mazelas embutidas

no processo de violência. A exposição repetida, a sua carga simbólica, deixa marcas

profundas e irreparáveis nas vítimas. O estresse sofrido produz um self alterado e portanto,

uma maior vulnerabilidade social.

Sabe-se que a própria vulnerabilidade dificulta romper o ciclo de uma ação violenta,

assim, hoje quem é vítima amanhã pode ser agressor, tendo em vista sua própria história,

quotidiano e cultura de violência.

Os laços de afetividade e proximidade que devem estar presentes em qualquer

composição familiar, como a solidariedade, a compreensão, o apoio são substituídos por uma

forma de organização e relacionamento defensivo.

Na população negra as relações familiares ainda estão distantes, há descrenças em

relação às suas potencialidades e sua identidade é frágil, vivem incertezas em relação aos

modos de ser e viver, e os arranjos ora encontrados não favorecem uma atitude de não-

violência.

Nesse estudo confirmamos que mesmo diante dos valores e modelos ideais vigentes,

as famílias pobres, em sua maioria formada pela população negra, divergem do modelo

tradicional de organização, pois necessita desenvolver estratégias para o suprimento

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econômico do grupo familiar e manutenção dos cuidados necessários a sua sobrevivência, de

modo que acabam mantendo em parte o modelo patriarcal, apresentando ainda o

monoparental, onde mulheres assumem comando de famílias e também se encontram as

famílias de parentelas extensas, o que nos lembra a tradição de senzalas.

A noção de família de indivíduos negros está bastante vinculada à questão de

confiança, assim, faz parte da família todos àqueles indivíduos que eticamente se dispõe a

ajuda mútua, cooperação, disposição para ligar-se, unir-se em torno de ideais e obrigações

morais, independente da genealogia.

A lógica da solidariedade impulsiona o desenvolvimento do grupo mesmo em um

contexto de carências e a presença e participação dos indivíduos para manutenção do grupo

não significa necessariamente a perda da individualidade de nenhum dos membros do grupo

familiar, sendo comum inclusive, o uso da violência para resolução de conflitos, já que a

negociação e as possibilidades de diálogo são quase inexistentes nas famílias estudadas.

Trouxemos à tona imagens da trajetória de adolescentes negros e seus familiares

apontando os caminhos tortuosos vividos por eles no seio da vida corrente, que por vezes são

obrigados a utilizarem a violência como uma forma de defesa para seus corpos, valores,

sentimentos, crenças, símbolos e rituais, que estão sendo degradados pouco a pouco pelo

branqueamento.

Pudemos observar que tanto a vítima quanto o agressor de violência são protegidos

pela família, no entanto, a sociedade através das redes de assistência às vítimas de violência e

respectivos agressores ainda estão despreparadas para atendê-los. Tem-se por um lado, as

famílias servem de ponto de apoio e solidariedade às vítimas, tentando re-inserí-las

positivamente no contexto social, a fim de que superarem o trauma. Mas, por outro, as mães,

ao serem permissivas com a fuga do agressor, podem estar ativando o ciclo da violência e

contribuindo para o desencadeamento de recidivas, expondo desse modo a vítima.

De acordo com alguns estudiosos de violência intrafamiliar o agressor deve ser

encarado como vítima de um padrão de relacionamento familiar disfuncional, isso porque no

ciclo da violência provavelmente em algum momento foi vítima, merecendo não ser julgado

nem condenado pelo seu comportamento, mas também ajudado.

Parece-nos que o entendimento de violência dos adolescentes negros e seus familiares

do estudo perpassam apenas pela barbárie, atos criminosos cruéis e tráfico de drogas que

presenciam no seu ambiente escolar e de moradia. Na realidade confundem o significado da

violência com as suas causas e repercussões, por isso, avaliam os castigos corporais, os

xingamentos, a violência psicológica e outras, como algo normal em suas vidas. O bater e o

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apanhar são modos de sociabilidade aceitos e praticados nas relações familiares e sociais

quotidianas dos indivíduos negros, assim, contribuindo para a perpetração da violência.

Percebemos que as famílias neste estudo necessitam colocar em perspectiva o lazer e o

estudo em prol do trabalho, base de sustentação de todo grupo familiar, devido às precárias

condições de vida. Todavia, o estudo continua sendo para eles a única alternativa de ascensão

social e conseqüentemente, um investimento que procuram manter na medida do possível

junto com o trabalho.

Constata-se também que o mito da democracia racial sobrevive nos dias atuais,

arrastando um discurso de sociedade de classes, onde inexiste o princípio classificatório por

cor. Assim, todos os negros e brancos, podem ascender socialmente independente da sua cor,

confirmando a ideologia de que o negro é pobre porque se trata de um ser humano preguiçoso.

Entretanto, mostramos o mundo imaginal do ser negro, retirando dos discursos de cada

sujeito o que sabem, pensam e acreditam ter valor no seu quotidiano, suas estórias e a história

da tradição negra, que demonstra não-linearidade de atos e fatos, mas, comportamentos

provocadores, sedutores, de luta e de força, que dizem e ao mesmo tempo não conseguem

dizer através das imagens reveladas todo o universo simbólico do ser negro, principalmente

considerando o seu referencial de mundo através do corpo.

Numa sociedade multirracial é importante lembrar que o corpo marca e recria gestos e

culturas, portanto, sem entender o significado do corpo para o negro e da influência do

racismo, do sexismo, da identidade negra, não poderemos compreender a repercussão da

violência que os aflige.

O corpo carrega uma expressão estética e sócio-cultural, por isso, os corpos

esculpidos das morenas e mulatas subsistem com valores e escolhas morais e interacionais

repletas de discriminação, advindas de um imaginário que as faz objeto sexual, prostitutas,

empregadas domésticas, ou seja, pessoas sem valor dentro e fora do cenário da sexualidade, e

como tantas outras negras, são tratadas como seres inferiores, fato que infelizmente aceitam

como algo natural em suas vidas.

Permitimo-nos dizer pelos dados epidemiológicos e qualitativos que a população negra

vive nas piores condições de existência, considerando a violência racista a que estão expostos,

tendo em vista que abarca aspectos de negação étnica, branqueamento e os mais variados

tipos de exclusão.

As famílias de indivíduos negros vivem um quotidiano de violências, que lhes forçam

a manter-se nesse lugar, percebendo seu grupo étnico como uma referência negativa, motivo

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para desviar-se para o impiedoso branqueamento, a fim de galgar um “lugar ao sol”, ou seja,

conseguir a mobilidade social tão sonhada.

Enfim, o Movimento negro nos mostra que ainda é possível resistir, restabelecer a

cultura negra, fortalecer principalmente na escola a identidade negra e insistir em políticas

afirmativas que visem igualdade inter-racial.

De acordo com o estudo realizado acreditamos que estas famílias precisam ser

trabalhadas para que possam se perceber no ciclo da violência racista e de outras violências.

Em se percebendo, reconheçam a importância da participação de todos no contexto, não se

culpando mutuamente, mas, buscando melhorar a comunicação, refletindo e se comportando

de modo que não incluam a violência nas suas vidas.

Na ocasião de dificuldades devem buscar ajuda dos profissionais de saúde, nos

serviços, recorrer aos Conselhos Tutelares, Vara da Infância e da Juventude, Delegacias da

Criança e do Adolescente e outros órgãos responsáveis e a toda rede de acolhimento e

intervenção referenciada para os casos de violência, a fim de que de uma forma sistêmica,

cada qual faça sua parte, sobretudo utilizando o sistema de referência e contra-referência para

o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Justamente nesse ponto urge esforço da enfermagem, por ser uma profissão que se

preocupa com o cuidado integral, trabalhar junto às instituições de saúde, nos Programas de

Saúde da Família, Ambulatórios e Hospitais, o cuidado à população negra considerando suas

peculiaridades e necessidades de saúde, otimizando a assistência a esse grupo populacional,

considerando o racismo e a violência para o planejamento e implementação dos cuidados.

A enfermagem tem que estar preparada para cuidar de adolescentes, principalmente

porque são indivíduos, que não desejam simplesmente à cura no processo saúde-doença, mas

um bem–estar que representa algo total e maior; serem tratados com dignidade, como também

partilhar e interagir nos cuidados para alcançar um viver saudável.

Nesta perspectiva a enfermagem deve procurar valorizar a compreensão - a disposição

e a abertura para novas possibilidades, que acrescentarão no ser, saber e fazer da enfermagem,

e, para tanto, compreender o quotidiano de violência de adolescentes e seus familiares como

uma forma de não estabelecer verdades, mas poder desmistificar concepções, conhecer modos

de pensar, perceber e agir dos indivíduos diante de situações reais e potenciais de saúde, não

deixando de enfocar a violência e o racismo, entendendo que somente assim poderemos

oferecer um cuidado individualizado, através de um quotidiano que transpareça a essência do

viver dos indivíduos e que isso importe realmente no planejamento dos cuidados de

enfermagem.

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Ao realizar este exercício reflexivo de questionar como o cuidado de enfermagem

acontece no mundo quotidiano dos adolescentes negros, torna-se fundamental o

desenvolvimento de um arcabouço teórico-prático da enfermagem pautado em conhecimentos

concretos, que valorizem a ética e o estético presente na vida destes adolescentes,

preservando sentimentos e atuando de forma solidária e alicerçada no exercício da cidadania.

O enfermeiro precisa relacionar-se intensamente, e estar junto, fazendo parte do

mundo dos indivíduos e seus familiares no processo saúde-doença, com intuito de obter apoio

e compreensão dos usuários para um planejamento eficaz dos seus cuidados.

Por isso, o quotidiano do cuidado de enfermagem é desafio para qualidade da

assistência prestada aos adolescentes negros e seus familiares nas instituições de saúde, já que

através dele é possível repensar nossas práticas profissionais e melhor assistir na situação de

violência.

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APÊNDICE A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) para participar, como voluntário, em uma pesquisa. Após ser

esclarecido(a) sobre as informações a seguir, no caso de aceitar fazer parte do estudo, assine

ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra minha, que sou o

pesquisador responsável pela pesquisa. Em caso de recusa em participar da pesquisa você não

será penalizado(a) de nenhuma forma. Em caso de dúvida você pode procurar o Comitê de

Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira/UFBA situado no Ambulatório

Magalhães Neto para qualquer esclarecimento.

INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:

Título do Projeto: A violência no quotidiano de adolescentes negros

Pesquisador responsável: Lucimeire Santos Carvalho; Contato: (71) 3374-3204; 9902-6925.

Venho, através desta pesquisa, compreender o cotidiano de adolescentes negros que

experienciam a violência no âmbito familiar, na cidade de Salvador-Bahia, a fim de que seja

possível a partir dos resultados possa contribuir para melhor atendimento de indivíduos em

situação de violência. A sua participação é muito importante, se sinta à vontade para

responder as perguntas que lhe serão feitas, através de um roteiro de entrevista sobre a

temática. O que me for dito será sigiloso e confidencial, portanto, garanto que você não será

identificado de nenhuma maneira durante todo o processo da pesquisa, desde o momento

inicial dessa conversa até a divulgação dos resultados da pesquisa. Você tem direito de

desistir de participar da pesquisa mesmo depois de termos iniciado a entrevista, não sendo

prejudicado, nem penalizado no tratamento, assistência, cuidado e acompanhamento ou em

outras situações.

Nome e Assinatura do pesquisador _______________________________________ CONSENTIMENTO DA PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO SUJEITO DE PESQUISA

Eu, _______________________, RG/ CPF/, abaixo assinado, concordo em participar do

estudo __________________________ , como sujeito de pesquisa. Fui devidamente

informado e esclarecido pelo pesquisador sobre a pesquisa, os procedimentos nela envolvidos,

assim como os possíveis riscos e benefícios decorrentes de minha participação. Foi-me

garantido que posso retirar meu consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a

qualquer penalidade ou interrupção de meu acompanhamento/assistência/tratamento.

Local e data

Nome e Assinatura do sujeito ou responsável:

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APÊNDICE B

ROTEIRO DE ENTREVISTA

1. Fale-me sobre o seu dia-a-dia?

2. Sempre foi assim? O que mudou? O que lembra da infância que percebe que tem relação

com o seu dia-a-dia hoje?

3. Conhece alguém que já esteve ou está em situação de violência?

4. O que é violência para você?

5. O que acha da violência?

6. O que acha que leva a pessoa a violentar outra?

7. Já sofreu algum tipo de violência? Conte-me como foi? O que acha que motivou alguém

lhe violentar?

8. Algum familiar já esteve ou está em situação de violência? Conte-me?

9. Se você fosse vítima de violência o que faria para enfrentar o problema?

10. Você já praticou algum ato violento? E o que lhe motivou?

11. O que aconselha (ria) às pessoas vítimas de violência? Como devem enfrentar o

problema?

12. Como foi ou é sua relação com seus pais?

13. Como avalia essa educação?

14. O que é racismo para você?

15. Qual a sua cor?

16. Você já presenciou ou percebeu algum tipo de situação em que esteve presente a

discriminação contra o negro? Fale-me sobre isso.

17. Você já se sentiu discriminado (a)? Por quê? Como?

18. Já teve ou tem namorado? Como ele é?

19. Se fosse casar, que tipo de homem escolheria? Casaria com um negro? Por quê?

20. Algo mais que queira falar sobre violência e racismo?

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APÊNDICE C

FORMULÁRIO

Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares

Data de coleta de dados: ____/____/____ Local de coleta de dados: Iniciais do pesquisador:______________

1 2 3 DEAM

Liberdade DERCA

I - Dados da ocorrência:

1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7

Número da ocorrência: Natureza:

1

2

3

4 5

Violência

Violência sexual

Violência psicológica

Negligência Outra

Hora do fato:_____: _____

Data: ____/____/____ ______________________

Dia da semana:

1 2

3 4

5 6

Domingo Segunda

Terça Quarta

Quinta Sexta

7 Sábado

Local:_______________________

Bairro: _____________________

DATACV01 LCOLV01

PESQV01

NOCV01 NATV01 HORAV01 DATAV01 DIAV01 LOCALV01 TLCLV01

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APÊNDICE C

FORMULÁRIO

Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares

II - Dados da vítima:

2.1 2.2 2.3 2.4

2.5 2.6 2.7 2.8

Data de nascimento: ____/____/____

Tem mãe 1 2 Sim Não

Tem pai 1 2 Sim Não

Sexo 1 2 Masculino Feminino

Idade: _________anos

Raça/Cor

1 2

3 4

5 6

Branco Pardo

Preto Amarelo

Não consta Outro _________

Situação conjugal

1 2

4 5

Solteiro Casado 3 Viúvo

Divorciado União livre

Escolaridade

1 2

3

5

4

6

Nunca foi à escola 10 grau incompleto

20 grau incompleto

Universidade

10 grau completo

20 grau completo

VDTNAV01 VFLIMV01 VFLIPV01 VSEXOV01 VIDADEV01 VCORV01 AESCOLAV01 ACV01

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APÊNDICE C

FORMULÁRIO

Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares

III - Dados do agressor:

3.1

3.2 3.3 3.4

3.5 3.6 3.7 3.8

Data de nascimento: ____/____/____

Tem mãe

1 2

Tem pai 1 2

Sexo 1 2

Idade: ________anos.

Raça/cor

1 2

3 4

5 6

Escolaridade

1

3

5

2

4

6

Situação conjugal

1

4

2 3

5

Sim Não

Sim Não

Masculino Feminino

Branco Pardo

Preto Amarelo

Não consta Outro________

Solteiro Casado Viúvo

Divorcia União livre

Nunca foi à escola 10 grau completo

20 grau completo Universidade

10 grau incompleto

20 grau incompleto

VDTNAV01 VFLIMV01 VFLIPV01 VSEXOV01 VIDADEV01 VCORV01 AESCOLAV01 ACV01

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APÊNDICE C

FORMULÁRIO

IV - Histórico

Histórico: __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

VDTNAV01 HISTV01:_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Violência sofrida e praticada por adolescentes negros e seus familiares

Formulário foi adaptado do Projeto: “Violência na população negra: tensões e sociabilidade” coordenado pela professora Dra. Climene Laura de Camargo

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APÊNDICE D

ENTREVISTA INDIVIDUAL E GRELHA DE ANÁLISE

Entrevista individual Grelha de análise

Família Ogum. Entrevista.A

Fale-me do seu dia-dia, o que faz? Saio de manhã umas 7:30h,chego em casa 1:30h da tarde, trabalho de doméstica, tenho 16 anos (pausa prolongada), trabalho para ajudar minha família, tudo que fazia em casa faço no trabalho, não acho nada diferente e acho melhor trabalhar do que ficar em casa sem fazer nada ou às vezes até ir pelas cabeças das colegas querendo influenciar para fazer coisas que eu sei que é errado. Comece a falar...(risos), diga(...) o que você faz no dia-a-dia, como é seu dia-dia. Eu trabalho, saio de casa umas 7:30h, chego em casa 1:00h, descanso, 4:30h saio ou 4:00h, depende do horário que a escola dos meninos começa a liberar a criança, aí eu vou pego, levo para casa, dou banho, dou mingau a ele, boto ele para dormir e 6:30h eu tô liberada para ir para escola. O que é mesmo que você faz? Você trabalha de quê? Doméstica. Nesse seu trabalho, né você sai de manhã, vai trabalhar, volta meio-dia, depois você descansa, é isso? Retorna ao trabalho, de noite vai estudar. O seu dia-a-dia nesse ritmo, tem algo, traz algo diferente, percebe algo diferente ou todo dia você faz a mesma coisa? Não, todos os dias eu faço a mesma coisa (risos).Todos os dias você faz a mesma coisa.É. todos os dias. E na escola como é sua vida na escola, como é seu dia-a-dia na escola? O que é a escola para você? Escola é uma coisa importante né,

Quotidiano de trabalho repetição Sair do ócio Não desviar seu comportamento Quotidiano de trabalho Tipo de trabalho Estudo Repetição

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que ajuda a gente [parou de falar...] Ajuda a quê?A conseguir uma coisa melhor, um trabalho. E porque você foi trabalhar? Porque eu tava precisando, porque às vezes eu quero comprar as coisas, minha mãe não tem dinheiro, aí eu recebendo meu dinheirinho é pouquinho, mas para o que eu quero comprar, dá né. É melhor que ficar em casa sem fazer nada, eu acho. Em relação a sua escola, você conhece alguém que já esteve em uma situação de violência? Conheço. Conhece? Uma menina que, ela foi (pausa demorada), ela saiu com a colega dela aí a colega dela pegou e chamou ela para fumar maconha, aí ela foi, diz que não queria, que o pai dela brigava, falando que ela não podia fazer isso, que ela não tinha porque fazer isso, porque o pai dela dava dinheiro a ela, tudo que ela pedia que o pai dela dava. Aí ela falou assim: se você não gostar você não precisa pagar não, meu marido tem. Aí ela falou assim então tá, que ela ia fumar, mas ela só ia querer aquele dia, não ia querer mais. Aí ela disse que fumou e aí depois ela disse que ficou gostando ficou bem viciada mesmo! Porque ficou um tempão fumando, até para escola ela levava maconha, como o diretor descobriu, viu que ela estava entrando para o banheiro para fumar maconha, o diretor foi e transferiu ela para outra escola, chegou na outra escola e foi a mesma coisa, ficou mudando de uma escola para outra, ela parou lá na escola de novo, só que ela parou, aí a mãe dela foi e colocou num negócio para recuperar as drogas. Uma clínica? Sim. Uma clínica de recuperação? Foi. Aí ela foi conheceu um colega lá, o colega foi e fugiu com ela, aí ela voltou para casa, pediu desculpas ao pai, aí o pai dela pegou e aceitou ela de volta dentro de casa, ela diz que agora não está mais fumando, saiu dessa vida, que agora ela quer melhorar a vida dela. E como o pai dela aceitou essa questão da droga? Ela disse que batia nela, quando ela chegava

Quotidiano Escolar Quotidiano trabalho Poder consumir Sair do ócio Quotidiano Escolar Violência para ela é estar no mundo das drogas Influência para situações de risco Adolescente e Drogas Quotidiano Escolar Escola não consegue intervir na situação de violência Tentativa de sair do mundo das drogas Retorno ao lar

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em casa querendo quebrar as coisas, batia nela porque ele não era ela que estava comprando nada para ela estar querendo destruir as coisas, o que ele comprou foi muito caro, ele suou para comprar para ela chegar drogada e querer destruir as coisas que ele lutou para ter. E como você avalia essa atitude do pai dela? Eu acho que ele está certo porque ela foi errada porque ela chegava em casa querendo destruir as coisas e o pai dela tá certo porque como ele trabalhou para conseguir aquelas coisas para depois ela chegar e querer destruir o que pode servir até para ela, porque ele possa sair depois, porque ele é separado da mulher, ele sair e for morar com outra esposa, pode deixar tudo para ela, e ela tá destruindo as coisas que um dia pode ser até ser dela. Ah! Ela é filha de pai e mãe separados. É. A mãe dela faleceu. E você achou assim que atitude dele em relação a bater foi uma atitude que você avalia como algo que ele precisava realmente fazer? Precisava porque primeiro antes o pai dela teve uma conversa com a mãe dela e falou que achava melhor botar ela numa clínica para poder ela se recuperar. A mãe foi fez um esforço e colocou. Depois ela foi e quando voltou ela mesma não está mais fumando, porque ele sabe que quando ela fuma, ela chega em casa querendo quebrar as coisas, e ela não está mais chegando desse jeito, aí ele acha que ela parou de fumar. Mas, eu não sei né porque ela pode estar falando uma coisa para gente e não ser assim, às vezes ela diz que parou, outra vez ela diz que às vezes quando vê assim sente vontade de fumar de novo, mas ela não fuma porque ela sabe o que é cair na tentação. Ah! Sim. O que é que você acha da violência? O que é violência para você? Ah! A violência é muito triste, pelo menos eu já vivi um pouco porque minha irmã, meu pai, minha irmã, o marido dela, chegava batendo nele e ele também não ia ficar esperando ele bater né, ele reagia, aí eles dois saiam sangrando às vezes, aí era obrigado eu chamar a polícia

Violência Agressão física Repercussão das drogas Pai tem direito de bater Violenta para educar Pátrio poder Vício da droga Experimentação da violência através do outro

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aí ele me ameaçava dizendo que ia mandar um cara me pegar na escola para matar. O policial até um dia chegou lá batendo nele mesmo, ele chegou à cara do policial e disse que ia botar um cara para me pegar na escola, o policial disse, tomou meu nome todo e disse que se acontecesse qualquer coisa comigo, que ele ia no inferno mas ia procurar ele, porque ele disse que como ele jurou na cara dele, que ele tinha que tomar uma atitude né, se por acaso ele tivesse dito para ele que ele que tinha falado isso comigo ele também não ia acreditar muito, mas como ele chegou na cara dele e disse aí ele acreditou. Fale o que lembrar do dia-dia, não tem importância se repetir. Saio de casa 7:30, vou para o trabalho chego 1:30, descanso, 4:30 saiu de novo, vou buscar o menino na escola, quando é 6:30 volto para casa, vou para escola, fico um pouco cansada, de tanto subir e descer escada, e, eu gosto do trabalho, que eu acho, eu mesmo acho, que eu deveria ter, deveria fazer uma coisa melhor né?, que eu tô estudando. Mas, eu não consegui uma coisa melhor, eu tô nesse serviço por enquanto, porque eu quero ajudar meu pai, minha mãe; minha mãe não tem emprego fixo entendeu, nem meu pai. E, às vezes também eu quero comprar uma coisa, meu pai não tem dinheiro, minha mãe também não tem, e eu com esse dinheirinho eu vou guardando e quando eu quero comprar uma coisa, eu compro, não preciso pegar de ninguém.Você faz que tipo de trabalho? Que você realiza? Doméstica. Então assim, nesse seu dia-a-dia, principalmente na escola você já vivenciou ou já viu alguém que vivencia uma situação de violência?Já. Minha colega, que saia com uma colega para passear, chegava lá um dia ela pegou e chamou ela para fumar maconha, aí ela foi e quando chegou lá ela disse que não ia fumar, porque a mãe dela não deixava, nem o pai dela também; ela não tinha porque ficar fumando maconha, disse que o que o pai dela dava a ela era suficiente

Violência x Violência Ameaça sofrida Ter que tomar uma atitude para não perder autoridade Quotidiano do trabalho

Gosta do trabalho é importante Acha que devia ter, foi ensinada pela família que é preciso ajudar.

Estudo para ascensão social Trabalha para ajudar a família Independência financeira Tipo de trabalho Quotidiano Escolar Influência negativa

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e tudo que ela pedia ele dava. Aí ela ficou (insistindo) menina, só um pouquinho, se você não quiser você não paga, só paga se você quiser. Se você quiser gostar e tomar claro que eu não vou ficar pagando, mas se você não gostar não paga, esse é de graça meu marido que me deu. Aí ela falou assim, não, não, não quero não, ô rapaz, experimente, aí ela foi e fumou. Aí depois ela ficou viciada, aí chegava em casa quebrando tudo.O pai dela brigava com ela, batia, e também a mãe dela depois conversou bastante com ela só que ela não queria ouvir conselho da mãe dela. A mãe dela foi e colocou ela no centro de recuperação. Aí ela fugiu com um colega que era de lá e que ela já conhecia; aí voltou para a casa dos pais dela de novo, ficou lá aí ela parou um pouquinho, que eu acho que ela não fuma mais, porque ela disse que não está fazendo mais nada disso. Aí ela levava até para escola, fumava dentro do banheiro, o diretor descobriu transferiu ela para outra escola, depois as outras escolas também transferiu ela pra outra escola, tudo uma empurrando para cima da outra escola, aí agora ela está estudando de noite, na minha sala e ela disse que não quer mais conta com drogas, porque ela sabia que o que ela estava fazendo não era certo e que agora que ela parou, ela está aprendendo a escutar o pai dela.Você falou que o pai dela batia nela. E o que você acha disso? Eu acho que às vezes ele está certo porque como é que ela chega em casa querendo quebrar as coisas que não foi ela que comprou, não foi ela que suou, o pai dela que deu, e pode até servir para ela porque o pai dela é separado, pode sair de casa para ir morar com a mulher dele e aí deixar tudo para ela, então. Se ela está destruindo uma coisa que pode servir até para ela, ele ta certo. Então, assim...você, você nessa situação de violência, acha que o pai dela foi certo? E o que você acha da violência mesmo?Ah! A violência é terrível que eu já convivi também com o fato de meu

Uso de drogas na escola A escola não sabe como intervir na situação Não quer ter responsabilidade pelo fato Experimentação da violência através de outro familiar Poder do pai não pode ser destituído

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cunhado chegar lá (em casa) querendo brigar como o meu pai, cheio de cachaça, ele chegava querendo bater em minha irmã, querendo bater na minha mãe, querendo bater em meu pai, querendo bater em todo mundo, chegava até brigar com meu pai, porque meu pai via ele dando tapa em minha irmã, dando murro e não ia deixar, né, uma pessoa que só tem um filho com a filha dele chegar e já espancar assim, por que ele não bate, ele não ia deixar ninguém bater. Aí ele chegava queria jogar copo, faca, jogando um bocado de coisa, querendo destruir a porta, querendo meter o pé na porta. Como tudo começou? Começou que ele começou a namorar com minha irmã escondido, aí depois quando meu pai foi e descobriu, aí ele veio e pediu para namorar na porta. Meu pai deixou. Aí depois ele tirou a honra dela, aí ele contou para meu pai. Meu pai também não falou nada, só disse que ele assumisse...mas ele já chegou dizendo assim: se o senhor não quiser que ela fique em casa pode deixar que eu boto ela lá em casa, eu sou homem e tenho coragem de assumir, boto ela dentro de uma casa. Aí ela foi morar com ele, meu pai falou: não. Não, pode deixar ela aqui e continuar namorando, sabe!? Aí ele, não, eu vou levar ela, vou morar com ela e fazer dela uma mulher agora. Aí foram morar lá num quartinho pertinho de lá de casa e todo mundo conhecia o ponto do quartinho, aí quando chegava lá de noite ele ia trabalhar, aí ele mandava ela ir para lá para casa aí ela ficava lá, quando chegava de noite, ele batia nela, batia, batia, batia mesmo, chegava dava murro e o olho ficava roxão, quando ela ia lá em casa aí mainha falava. Aí quando o olho dela estava roxo ela, aí ela não pisava lá em casa porque ela tinha medo de contar, aí ele dizia a ela para não falar, ela ficava com medo de falar para meu pai, porque sabia que meu pai ia lá procurar briga, porque meu pai não ia gostar da filha dele chegar com o olho roxo, aí né, ela dizia: não, não foi nada

Alcoolismo e violência Violência física Não aceitação da violência Poder do pai não pode ser destituído Violência contra toda família Motivo da violência Concepção de mulher como objeto Posse sobre a mulher Violência Agressão física Medo Esconde que sofre violência

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[...] eu bati não sei lá o que aqui no olho, aí ele um dia ele chegou em casa , quando ele bebia aí ele vinha e dizia assim: ô dona... eu peguei sua filha e bati, porque ela me azunhou, falando com mainha para ela acreditar na conversa dele. Só que todo mundo já sabia que quando ele bebe, sei lá, ele fica diferente assim, se transforma. Aí ele faz um monte de coisas e no outro dia não se lembra de nada e também quando você vai dizer a ele, ele diz que é mentira, aí alguma coisa que ele se lembra pede desculpa as pessoas e depois quando ele bebe ele faz a mesma coisa, aí pronto, aí bateu, bateu, batia nela direto, todo dia ela apanhava, todo dia ela apanhava, aí teve um dia que ela disse que ia embora, ele pegou arrumou as coisas dela levou lá para casa e falou olha sua filha aí ó, como se fosse uma mala. Aí meu pai disse: tudo bem, pode deixar ela aí. Aí ele deixou. Depois aí ele chamava ela, se encontrava com ela escondido de novo, aí demorou um pouquinho assim, aí ele veio de novo pedindo para morar junto, aí morou, batia nela de novo. Aí um dia né, depois no outro quartinho que ele foi morar, depois da outra pessoa, ele quebrou a porta, quebrou os pratos, tudo dentro de casa, jogou ela na parede, deu tanto murro nela, tanto tapa na cara dela, ela disse por que meu filho, por que meu filho(...), avistou o primo de 11 anos e começou a gritar, ele fechou a porta e batendo nela, ela gritando o menino porque ela tinha visto que tava lá. Aí ele foi (o menino) e chamou meu pai, quando a gente chegou lá, ele quebrou a porta, botou a porta para fora, que eu não sei como ele conseguiu quebrar aquela porta, porque a porta era resistente mesmo, mais ele deu um chute que quebrou a porta, quebrou fogão, quebrou tudo, tudo ele quebrou. Aí foi, minha irmã estava com a boca inchadona e o olho também já tava roxo de pancada que ele tinha dado, aqui assim (aponta o local) e aí tava mais roxa ainda o lado inchado assim, tava inchadão, todo roxo de pancada que ele

Justifica ato violento Alcoolismo e violência Ciclo da violência Violência agressão física Trata como objeto Ciclo da violência Repercussões físicas da violência Violência Ameaça Ciclo da violência

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dava, chute. Aí ela pegou arrumou as coisas dela e foi lá para casa só que ela já estava grávida da menina, aí ela foi perdeu o bebê porque ele deu uma pezada na barriga dela e ela começou a sangrar, aí ela estava toda machucada já. Foi para o hospital fazer aquele negócio. É, aquele negócio (...) fez um aborto para tirar o bebê, porque já tava grande já, só que ele deu um monte de pancada na barriga dela e a barriga ficou toda dolorida, ela falou a médica e ela tirou lá um monte de sangue estava descendo pela perna dela, estava descendo aí ela tirou tudo que ficou dentro da barriga foi para lá para casa. Aí ele um dia ameaçou ela, mas não sei o que foi que ele falou que ela tomou raiva da cara dele, não quis mais ver. Aí ele ameaçou ela, não sei o que ele ameaçou ela aí ela foi e ficou com ele de novo, aí já foram morar longe, aí ele falou assim vamos na minha casa, aí ela foi que ele já estava em outro lugar. Toda vez que ele fazia as coisas ele já ia procurar outro quartinho para morar. Aí ele foi morar longe. Longe assim (quer dizer), porque ele morava numa rua perto, já era outra rua que é um pouco distante. Ele falou assim: bora lá na minha casa, aí ela foi, não sei o que ele disse lá, aí no outro dia deu dez horas da noite, ela não chegou, deu onze, deu meia noite, cadê essa menina? Perguntou meu pai. Aí meu pai falou assim, aí tinha uma vizinha lá que minha mãe olhava sempre o filho dela. Você sabe onde é que ele mora? Aí ela falou assim. Sei. Mora lá perto de minha casa. Aí meu pai chegou lá, meu pai bateu na porta. Aí ele: o que é? Que ele já sabia que era meu pai. Aí meu pai [refere-se a filha] tá aí, aí ele falou assim: tá e ela não vai voltar mais não, ela só vai voltar para pegar as coisas dela e ele mandou ela se esconder. Ela também não disse nada. Aí depois aí ele pegou, aí disse a meu pai, falou assim: deixe eu entrar para a gente conversar que meu pai queria que ele agora assumisse ela de verdade, só que ela tinha engravidado de novo e é essa menina aí (que você viu).

Retorno a casa dos pais em virtude da violência sofrida pelo ex-marido Aborto Foi ao serviço de saúde por causa do aborto Assistência de saúde negligência caso de violência Sofre ameaça do agressor Ciclo da violência Tenta diálogo com o agressor

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Aí meu pai, aí eles começaram a conversar que ele estava pensando que meu pai estava armado, alguma coisa assim, com faca... não tô com nada não! Não tô armado, pode abrir o portão que agente vai conversar, porque esse negócio de você pegar a menina usar e depois você bota lá em casa, isso daí eu não vou aceitar não, você agora vai assumir ela de vez. Aí ele pode deixar que eu assumo, ela só vai lá pegar as coisas dela e nisso pegou deu calça, deu roupa, deu um monte de coisas a ela, ficou agradando ela, aí depois quando foi com 3 semanas, um mês que diga, com um mês começou de novo a bater nela, bater, bater, bater, ela já tava grávida, batia...e depois deu outro murro na boca dela, a boca ficou inchadona e roxa, de novo, até o dente dela tá, parece que tinha partido aqui assim, a gengiva daqui, já tava sentindo dor na parte de baixo. E isso aqui assim foi de tanta pancada....chega quando ela abre a boca assim dá um estralo, assim como se tivesse quebrado esse negócio aqui aponta mandíbula). Foi a mandíbula dela, devia ter quebrado, porque quando ela abre faz um estralo tão grande, aí ele pegou, deu um bocado de porrada na boca dela, aí ela disse que ia prestar queixa. Aí pronto, prestou ela deu queixa na delegacia, o policial mandou a intimação para ele. Aí ele não foi. A mãe de disse que ele foi embora, que ele foi para um interior, mais ninguém sabia onde ele estava, mas ele não tinha ido para interior nenhum. Aí só correndo, correndo, aí ele não compareceu em nenhuma, aí depois ele ficou um bom tempo até todo mundo ter esquecido, aí ele veio, aí ficou querendo enganar ela, ficar de novo, aí ela pegou e não quis, aí ela tava no canto encostada conversando com a menina aí meu primo tava na pracinha, a pracinha é um lugar aqui, é lá, é bem pertinho. Ele brigou com ela e bateu, bateu, aí ela deu queixa dele e não quis mais. Ele já foi preso antes de namorar ela. Sabe por quê? Não sei

Tenta diálogo com o agressor Pai também demonstra posse da vítima Reconciliação com a vítima Ciclo da violência Violência Agressão física Repercussão da violência Denúncia Proteção familiar ao agressor Fuga do agressor

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direito não, acho que fez um roubo e disse ao pai que ganhou na loteria,e o pai acreditou, deu dinheiro ao pai, a todo mundo que era amigo dele, mais depois a polícia queria o dinheiro de volta e foi atrás do pai dele para devolver, prendeu ele e o pai dele pediu até empréstimo para dar dinheiro o dinheiro que ele tinha dado a ele. E quando sua irmã conheceu ele, ele fazia isso? Não, ele não fazia mais não. Você acha que ele gosta dos filhos? Gosta nada, se não dava de comer, cuidava. Ele só vem pegar eles bêbado, e só quer saber da menina, do outro não quer ver. Quer ficar com a menina mais agente não deixa, aí se reta e começa o falatório na rua, ele só fica com ela se for por perto ou então que alguém siga. Até hoje ele tem ciúme dela, até ela arranjou no shopping alguém que ia ficar com ela fazer futuro, quando ele soube ameaçou o rapaz, daí ele saiu fora. Se ela arranjar outro ele persegue até terminar. Ele não cuida não sempre foi assim e continua fazendo a mesma coisa com outras mulheres. E ele já está com alguém? Não sei. Como é sua relação com seu pai? É boa, só acho ruim que meu pai acha que tudo tem que ser do jeito dele, fala que no tempo dele quando não acertava a tabuada a professora lhe dava de palmatória e no outro dia ele já tinha aprendido tudo, até a professora se admirava como ele aprendeu tudo rápido (risos). Ele passava o dia todo estudando até saber tudo de có. Aí ele acha que agente tem que aprender de qualquer jeito, ele diz que antigamente funcionava. Porque acha que seu pai faz isso? Para a pessoa ser alguém na vida.Ele fala que ele já ficava na tampa da garrafa ajoelhado, no milho para poder saber as coisas, ser um homem de bem. E sua mãe como é sua relação com sua mãe? Boa, mãe estudou pouco, aí ela não liga muito não, ela cobra mais não é igual ao pai. Qual sua cor? Sou preta. Se tivesse que casar com que homem se casaria? Homem honesto, de caráter e que me dê as coisas, casa, o que comer.

Motivo da denúncia O agressor já foi preso por roubo Alcoolismo e violência Família protege os filhos do pai por medo de que os filhos sofram algum tipo de violência Agressor persegue a vítima Espécie de dominação Relacionamento familiar Imposição Educação no tempo do pai Foi educado no regime autoritário Estudo Mobilidade social Foi educado no regime autoritário Pouco estudo, pouca cobrança. Cor preta

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Pode ser preto? Pode, porque os bonitinhos são muito tiradinhos, tiram onda com nossa cara, prefiro o feinho sabe, mas que goste de mim, porque o pretinho tem fidelidade, não ficar com os outros que só querem ficar sem responsabilidade. Família Ogum. Entrevista B Fale-me do seu dia-a-dia? Olhe eu vou falar logo do que aconteceu, já que aconteceu né. Minha filha, tem que se comportar em casa, pra falar a verdade, ela tava estudando, aí ficou grávida, foi conviver com ele e não deu certo, aí se não dá certo com ele é obrigado voltar para casa. Aí ela retornou para casa uma vez, duas vezes (...), não quero ele aqui, é de minha porta para lá, vê os filhos é direito dele, mas de minha porta para lá. E o senhor estudou? Estudei até a 5ª. série, depois tive que tocar a vida para frente. Sempre acompanhei na escola me preocupava com os estudos delas, participava de reuniões que as professoras chamavam, participava até de palestra. Antigamente a gente tomava bolo e tal para aprender, hoje já não tem sabatina, no meu tempo tinha sabatina, não podia perder de ano, se perdesse (...) eu mesmo nunca perdi de ano quando estudava. Antigamente tinha ABC, hoje em dia não tem, hoje eu não vejo colégio assim, não sei não, lá (no interior onde morava – escola em Capim grosso) você tinha que ler todo o ABC, recordar letra a letra para poder saber. Era mais rígida, rígida como é que diz, mas as pessoas se dedicavam mais aos estudos. Hoje tem mais é brincadeira, tem mais é...acho hoje tudo mudado, eu mesmo não entendo mais nada hoje, porque é diferente. Eu não sei lhe dizer assim porque todo estudo depende das pessoas que está lá dentro, então, aquele que acompanha o dia-a-dia. Como conheceu sua esposa? Não me lembro mais não, eu conheci ela aqui em Salvador. E como foi? Também

Concepção de homem provedor Provavelmente já foi vítima de discriminação durante relacionamentos amorosos Privar da liberdade para manter autoridade Quotidiano Escolar Educação Regime disciplinar autoritário Para aprender necessita sistemas disciplinares coercitivos Educação autoritária ? Mudança de paradigma na Escola Pós-modernismo

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não me lembro não. Como é sua relação com ela? Pra mim é muito boa, ela me respeita, eu respeito ela, não tenho como melhorar, mas a gente está vivendo a vida aí devagarzinho. O sr. faz o quê? Eu trabalho, mas nada certo, eu trabalhava assim em gráfica, mas faliu, fechou, aí tinha que mexer em computador aí eu parti para outra para trabalhar, aí como era mais moderna queria que eu entrasse direto, sabe! eu pedi um teste prático [treinamento] e não consegui, aí não deu mais, a idade também não ajudou, apesar da experiência hoje eles não querem mais dar trabalho assim [a alguém de idade, só pela experiência, mas sem o conhecimento teórico]. Hoje eu trabalho assim [...] de pedreiro, eu trabalho quando me chama para construir. Hoje mesmo eu estou esperando o rapaz que ficou de vir me pegar para eu ir. Já ouviu falar de violência? Já ouvi falar, já vi caso de espancamento por não conseguir conviver. Porque será que ocorre o espancamento? Não sei. O pensamento de cada um, o temperamento. Não sei. Só a mãe deve saber, acho que o temperamento, alguma coisa que ela dizia que ele podia não compreender e aí batia, coisas deles lá. Se acontecia alguma coisa lá entre eles né, ela é adolescente né, ainda não é equilibrada ainda e aí dizia alguma coisa que não ia fazer aí ele batia nela. Só ela para poder falar disso. Sabe o que é discriminação? Sei, discriminação é julgar algumas pessoas, né; discriminação que eu acho é isso aí, desfazer das pessoas por qualquer coisa. Já vi, mas não conheço, já vi. Vi assim, falando, vi passando, olhando assim, não sei se tava certo ou errado, mais não parei. Alguém de sua família já foi vítima de discriminação? Nunca percebi não, se aconteceu, ninguém me contou. Sobre a violência o que aconselharia nos casos de violência? Eu acho que a pessoa deve se comportar e tentar construir um futuro, porque o futuro é uma coisa muito importante na vida e se a pessoa não se comportar não é nada na

Não sabe educar de outra forma Quotidiano do trabalho Trabalho desqualificado atribui a pouca escolaridade Tipo de trabalho Não concebe os maus-tratos da filha com o marido como violência O homem tem direito de bater na mulher Motivo da violência Conceito de discriminação Distante da sua realidade Mostra desinteresse

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vida. E o seu ex-genro? Até o momento nunca me desobedeceu pega os filhos vai dar um passeio ali perto e volta, se ele faz alguma coisa que eu não vi, faz na minha ausência, não na minha presença. Qual aconselhamento dá a sua filha que já foi vítima de violência? O que eu cobro mesmo é estudar, porque se não estudar, elas não tem nada na vida. Eu mesmo trabalho aí, mas sem muito recurso. O que é violência para o sr.? A violência é um negócio que você encontra em qualquer lugar hoje em dia. Para mim foi um negócio triste na minha vida, nem pensava que ela fosse ficar com uma pessoa dessa, e... eu não podia fazer mais nada, porque agente conhece as pessoas; um jovem que não tem futuro, você vê aí ó que só que saber de namorar e tal, mas não tem futuro nenhum, arranjou um quarto para viverem juntos em aluguel. Eu acho que não sei não, eu acho que a pessoa deve ter mais competência e procurar a trabalhar para poder sustentar os filhos, ter responsabilidade. Para mim foi melhor, porque não podia ver ela toda roxa de marca dele, porque acontecia, porque tava lá na mão dele. Para ela eu acho que melhorou muito, apesar dela não estar estudando, porque agora fica em casa tomando de conta dos filhos. A outra filha, a mais nova é ajuizada, já passou ela dois anos, não tem namorado. Eu até concordava que ela tivesse outra relação que fosse assumir a responsabilidade sabendo que ela tem 2 filhos e assumir, eu já vários casos assim. Assumir a responsabilidade, manter uma família de tudo, assim realmente pensando assim eles não são nada meu, mas eu considero como filhos. Tivesse assim, capacidade, responsabilidade, sabe? Aí eu concordava. Família Ogum. Entrevista C Fale-me sobre o seu dia-a-dia? Como é seu dia-dia? Lava roupas, arruma casa, menos comida. Todo dia faço a mesma coisa, faço a rotina de todos os dias, não

Deposita no futuro o a esperança de mudança Tem que estudar para ser alguém na vida Significado da violência Ter trabalho é fundamental para sobrevivência Priva de liberdade para manter a autoridade

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tem nada diferente, sempre a mesma rotina. O que seu pai lhe fala sobre o que aconteceu, dá conselhos? Me dá conselho nenhum! Tudo é escola. Tudo o quê? Silêncio. Me fala como ele lhe trata? Xingando (risos). Me fale como é isso? Ele se reta, se aborrece. Se aborrece com quê? Não sei. Você não sabe com que ele se aborrece? Silêncio. Porque você acha que ele lhe trata assim? Silêncio. Não tem nem idéia? Porque eu parei de estudar, tive filhos, acho que é por causa disso. Você teve muitos namorados? Tive 1 só. Só 1 na porta, mas já teve outros namorados? Como é namorar? Escondido. Porque namorava escondido? (risos), porque meu pai não deixava. Seu pai não deixava namorar? Não Aí você namorava escondido. É. É bom? É. Como eram esses namorados? Você gostava deles? Eu enjoava deles. E como era isso? Ah! Não lembro mais de nenhum namorado, só de um que era segurança, só ele que eu fiquei 3 dias. Não gostou dele não? Silêncio. Ele lhe tratava bem? Tratava. Seu último namorado foi seu marido? Não foi o primeiro. Ah! Foi o primeiro e você gostava dele? Gostava. Quantos anos ele tem? 24 anos. Mais você ainda gosta dele? Silêncio. Quando eu me separei ele tinha 23 anos, acho que ele hoje tem 24. Como foi que você o conheceu? Lá mesmo (refere-se ao local em que mora). Morava perto? Numa rua depois. Preciso que fale um pouco de sua relação com ele. Como começou seu relacionamento? Namorava escondido [...] não saía não, namorava escondido depois voltava para casa. E como ele era com você quando vocês namoravam escondido? Era bom comigo não me maltratava não, não fazia nada comigo, gostava falava em casar até hoje fala, mas eu não [...] acredito. Ele é seu marido como foram morar juntos? Só acontecia esse negócio de briga quando ele bebia. No dia-a-dia de vocês como era? De segunda para sexta era bem,

Repetição Tem que estudar para ser alguém na vida Violência Motivo da violência Parece que ainda gosta do marido pois permanece em silêncio Relato de não-violência durante o namoro

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sábado e domingo era o problema. Ele ia trabalhar de manhã e só vinha de noite, ele trabalha como cabeleireiro, que acho também a briga mais ainda porque ele vinha, eu vinha para casa de minha mãe, aí eu não gostava de cozinhar. O problema era esse, queria que você cozinhasse? Era. Eu ia para casa de minha mãe almoçar e voltava para casa quando ele estava perto de chegar. Aí quando ele chegava não tinha o que ele comer? Tinha, mas ele não queria. Como é que começava a briga? Assim quando ele vinha todos os dias para a casa da minha mãe ele sempre vinha me pegar aqui. Ele vinha lhe pegar na casa de sua mãe? Me fale como tudo começou? Porque eu ia para casa de minha mãe. Só porque você ia para casa de sua mãe? Quando ele bebia alguém botava coisa na cabeça dele.Quem conversava com ele? Os irmãos. Ah, ele tem irmão aqui? Tem, mora aqui. Os irmãos deles não sabem que você vai para casa de sua mãe? Inventava coisa, inventaram agora para ele dizendo que eu estava ficando com um menino que é a fim da minha prima. Ele conversa muito comigo aí o irmão dele falou a ele que eu estava ficando com esse menino. Ela também é a fim do menino. E porque não estão namorando? Porque ela tem marido. E seu marido, então acredita nos outros? Sim. Ele é ciumento? Sim. Porque acha isso? Pelo que ele fazia, importava deu sair, só que eu não tinha nada o que fazer lá (em sua casa), ficava olhando para as paredes. E porque você se separou? Porque eu tava grávida dele só que eu não sabia, nem ele sabia, aí ele tava conversando na roda de amigos, aí depois ele pegou minha menina da minha mão e deu a outra menina, ela tava pequena nem tinha a idade desse menino aqui (6 meses), aí eu fui pegar da mão da menina, aí ele achou ruim, que eu tava desobedecendo e ele, aí, ele começou a me bater na frente de todo mundo. Aí eu achei desaforo, não porque quando agente brigava assim, agente brigava, ele

Álcool como causa da violência Fim de semana: violência Motivo da violência Motivo da violência Cultura de que a mulher deve servir ao Homem: Lavar, passar, cozinhar Álcool Família do agressor contra a vítima Família do agressor contra a vítima Motivo da denúncia

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vinha para casa e me batia escondido, antes ele já tentou me bater muitas vezes, mas não bateu, ele tentava. Quando foi a primeira vez que ele lhe bateu? A primeira vez eu tava namorando ele, eu tinha 13 anos a gente separou e ele viajou, aí depois ele voltou de novo aí a gente ficou junto de novo eu fui porque eu achava que não tinha condições de assumir essa responsabilidade. Qual? Não poder sair, não ter liberdade para sair com quem a gente quer sair, então achei que era muita responsabilidade. E porque quis morar com ele se não tinha responsabilidade? Porque eu era muito prisioneira em casa, aí eu achava que se eu saísse de casa eu ia ter mais liberdade, porque eu não tinha liberdade para sair, conversar como agente quer, porque meu pai fala, minha mãe fala, querem que eu fique em casa o dia todo. Eles estão certos ou errados? Não, eles tão errados, porque como é que prende uma pessoa dentro de casa. Me casei para eu ter liberdade, só que eu acho que não é nada disso. Quem lhe prendia? Meu pai. Minha prima nunca foi de namorar nem nada, nunca fez nada, nunca apanhou de namorado, porque ela já ficou presa de pai e madrasta. Por quê? Não sei por que eu não vivo com eles para saber. Mas minha outra prima também ficou presa porque pegou o marido da tia. Foi assim a tia dela pediu para mãe dela para ir para casa dela trabalhar no mercadinho que eles tinham, aí a mãe dela confiou e deixou, aí o marido dela vinha buscar e vinha trazer, aí ela foi ficando com ele e engravidou, ele depois pagou para tirar, aí hoje graças a Deus se libertou disso. Mas, a tia dela pegou ele com ela na casa dela. Você acha que ela queria fazer isso? Ela queria porque quando a mãe dela prendeu ela na casa da madrasta ela pegou e fugiu de casa e deu no que deu. Ele [marido da tia] também agredia ela, batia nela também, ela vinha cheia de hematoma. E você acha que seu ex-marido ainda gosta de você? Acho que não. Ele ainda diz que gosta, né. Corre

Violência sofrida desde o namoro Não tinha liberdade em casa Ciclo da violência Casamento como Fuga da Violência, no entanto, prossegue a violência Traição matrimonial Perda da liberdade engravidou do tio

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atrás, faz isso, faz aquilo, mas só que depois disso tudo e não é agora que vai dar certo. Ele vem dá as coisas das meninas fica me perguntando se lamentando. Já se separaram quantas vezes? Várias vezes. Já perdeu algum filho? Perdi um, eu tomei remédio. Porque tomou remédio? Eu não queria filhos, mas depois eu me separei dele aí eu peguei e tirei. Ainda quer ter filhos? Eu não, já tenho dois. E porque tirou o primeiro? Era para ter evitado, mas a gente se separou... aí tirei. Se fosse casar hoje, casaria com quem? Depende [...] agente não conhece ninguém vai ter que escolher assim e esses homens que agente acha que, não agravando a todos, mas a gente dizer que quer esse e tal é difícil. Acha seu ex-marido bonito? Eu achei. Que cor ele é? Moreno claro. Acho que ele botou loiro no cabelo. Que tipo de homem escolheria? Feição não diz tudo. Casaria com alguém negro? Preto em não gosto. Eu não sou racista, mas preto eu não gosto, e eu não pretendo mais casar não. E só para um namorinho, um relacionamento? Também não. Gosto de qualquer pessoa preta, agora só que para namorar aí eu não gosto não. Que qualidades um homem precisaria ter para você? Não maltratar, respeito, que goste de mim de verdade . E assim fisicamente que cor de pele? Moreno claro. O que aconselharia às pessoas vítimas de violência? Não gosto de conselhos. Família Ogum. Entrevista D Fale-me sobre seu dia-a-dia. Como é seu dia-a-dia? Meu dia-a-dia é bom. Eu moro perto da minha avó, minha avó aqui e minha avó de lá [moram na mesma travessa], fico mais aqui e mais lá. Moro perto de meu avô que eu não gosto muito dele. Por quê? Porque ele é muito chato. Moro perto de minha tia, ela mora lá em cima e meus outros parentes moram no interior – Conceição de Almeida. Uns

Violência Agressão física Praticou abortos diante da separação do marido Branqueamento Branqueamento Negação da cor Cor moreno claro Não está acostumada a diálogos, ouvir conselhos Quotidiano Parentes: avó, tios, primos, moram no mesmo domicílio ou na vizinhança

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moram em Feira de Santana. Então você é do interior? Não. E sua mãe? Não, minha mãe é daqui. Quais seus parentes de lá? Meus parentes de lá, são tios, primos. Aqui é a casa do pai de meu pai [se refere ao local da entrevista] e lá onde eu tava é a casa da mãe de minha mãe. O que é que você faz todo dia? Conte-me? Ah! eu brinco, jogo bola, estudo e só. Só? Olho meu irmão. Você olha seu irmão? É. E minha outra irmã. Quantos anos têm seu irmão? 5. E sua irmã? 13. Você toma conta de sua irmã e seu irmão? É, porque ele me obedece por que. Obedece? Consegue que eles sigam o que orienta direitinho? É, porque [pausa] painho já conversou com eles que tem que obedecer. Eu já sai na mão com ela. Por que fez isso? Porque eu queria que ela vestisse uma roupa no meu irmão e ela vestiu outra, aí eu peguei dei um murro nela, ela me bateu e eu dei um bocado de murro nela. Então foi por causa de uma roupa? Foi. É eu não gosto de bater em ninguém porque não sou pai de ninguém, mas quando me bate eu não consigo ficar quieta. Ela que começou? Ela começou a briga? Assim, ela começou e você revidou, é isso? Você acha que tá certo bater? Não. Porque você acha que está errado? Porque eu não sou mãe, nem pai dela. E ela não é minha mãe também. Além disso, o que mais que você faz? O que mais faz parte do seu dia, o que você se lembra? Silêncio. Como é sua vida na escola? Bem, brinco na escola e filo aula. Porque é que você fila aula? Eu, às vezes não gosto de assistir aula de português, já briguei com a professora. Porque você brigou com a professora? Ela fica querendo...a pessoa não pode nem botar o pé na cadeira assim que ela fica falando. Ela reclama com você? Por que você acha que ela faz isso? Não sei. Ah, ela disse que isso tá errado, se tá certo ou errado eu não sei, eu faço mesmo, não quero nem saber eu pirraço. Você faz para pirraçar ela? É. Mas será que ela fica pirraçada? Não.

Poder Transferência de poder Forma de Educação Desobediência motiva violência Os pais têm direito de bater Ciclo de violência/reproduz o que aprende Os pais têm direito de bater Quotidiano Escolar Quotidiano Escolar

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Quem fica pirraçada é eu. Porque é que você sai pirraçada disso tudo? Porque lá ela pode fazer o que ela quiser, agente não. Ela pode reprovar agente (se refere aos colegas de sala também), ela pode abaixar a nota. Então, você aí, acha que lá você acaba saindo perdendo nessa situação. E na escola você já viu algum caso de alguém que já foi vítima de violência? Lá tinha uma menina lá que já foi vítima eu acho? O que é violência para você? Estupro. Estupro?É só o estupro? Não. Tem dar facada, matar. Que é mais você sabe algo mais que identifique como violência? Não. O que você acha da violência? Que tá errado. Que tá errado? Por quê? Silêncio. Alguma colega sua já lhe falou sobre essa questão da violência e tal, que viveram algum tipo de violência? Não. E em casa? Você já notou se alguém já foi vítima de violência? Nunca. Nunca viu ninguém falar sobre violência? Não. E você? Eu já. Você já foi vítima né? Como foi isso? Como tudo começou? Eu estava em casa lavando os pratos, aí chegou, o, o, o (gaguejou), o primo de minha mãe, me chamando, me chamando, porque antes minha avó guardava a água lá, porque ia fazer comida...aí ele chegou para pegar água, aí mandou eu baixar a roupa, mandou eu pegar água né, aí eu peguei quando eu peguei o portão tava aberto aí ele entrou e ficou lá na cadeira, aí eu peguei e disse aqui a água e aí ele foi e me pegou e botou a água no chão e me levou para o quarto, e me pegou e me levou pra o quarto (repete), e abaixou minha roupa e meu pai chegou. Ele é o que seu? Ele é meu tio. Ele sempre freqüenta sua casa? Não só quando minha mãe era viva, aí ele ia lá de vez em quando. Quantos anos ele tem? Ele tem uns 39 anos. E porque ele se aproximou de você, você sabe porque? Não sei, ele abaixou minha roupa. E depois? Meu pai chegou. Seu pai chegou e disse o que a ele? Nada. Meu pai olhou para ele, me

Professor tem autoridade Significado da violência Mantém silêncio ao falar da violência sofrida Violência Como ocorreu o fato Agressor parente da vítima

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puxou e chamou minha avó. Aí meu pai me levou para lá para delegacia e ele pegou e fugiu. Aí deram dinheiro para ele, para ele fugir e ele não voltou mais. Porque é que você acha que uma pessoa age assim com a outra? Silêncio. Como é seu pai? Como é sua relação com seu pai? Como é ele, você e suas irmãs no dia-a-dia ? Bem. Ele briga, manda estudar, depois ele, vai para o trabalho, tem dias que ele trabalha até de noite. Então você vê pouco seu pai? Só de manhã e de noite. E seu pai ele lhe bate? Só quando eu apronto assim. Apronta o quê? Eu bato nos outros às vezes, filo aula muito, bato nos outros. Quando eu filo aula ele vem para cá me bater. Porque ele quer lhe bater? Não sei. Ainda não entendi porque você fila aula? Silêncio. Não gosta da escola não? Não. Por quê? O que na escola lhe incomoda? Nada. Agente chega no horário certo, a diretora já deu um horário, elas (as professoras) chegam fora do horário, aí elas chegam e vai para sala de aula. Agente chega em um horário e ela chega em outro. A disciplina é só para vocês, é isso? Você fala isso com ela, você reclama? As meninas dizem, eu também digo, mas ela nem liga. Como é que ela lhe trata? Me trata bem, mas de vez em quando me trata mal, mais quando ela me trata mal eu trato ela também mal. Quando ela tá lhe tratando mal? Quando ela fica me gritando. Ela fica lhe gritando por quê? Já aconteceu ela lhe gritar quando? Foi um dia que eu levantei para beber água e ela me gritou me mandando sentar, porque eu não pedi a ela. Aí ela me gritou eu peguei abri a porta e sai da sala, bati a porta bem forte e saí. E no outro dia quando você retornou para aula com essa mesma professora, como foi? Ah, eu entrei, sentei, abri meu livro e assisti à aula. Tudo ficou como se nada tivesse acontecido. Para você foi assim, como se nada tivesse acontecido? Ficou algo no ar, chegaram a conversar sobre isso? Não. Você conversa com a

Denúncia Apoio familiar ao agressor Apoio familiar ao agressor Estudo como forma de ascensão social Quotidiano Escolar/Violência Violência/Obriga estudar de forma violenta Quotidiano Escolar Enfrenta a violência com violência Enfrenta a violência com violência

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professora quando tem algum problema? Eu converso com ela, às vezes as meninas conversam com ela, mas não converso muito não. Por quê? Não gosta de conversar? Não. Não se sente apoiada? Não. De quem você mais gosta? Quais são as pessoas que você mais gosta? Minha tia M, tia S, minha avó, minha madrinha e meu pai. Eles que eu mais obedeço. Quem você gosta você obedece? Até meus tios assim, alguns se falar alguma coisa comigo, me bater, eu respondo. Se ele vier me bater eu falo me bata, pode me bater mais eu continuo te respondendo. Porque você faz isso? Porque eu não gosto deles. Por quê? Não gosto. Quando sua família soube que seu tio fez isso, como sua família reagiu? Mal, todo mundo ficou contra ele. Acreditou em você? Acreditou. Seu pai também? Foi. Ninguém mais fala com ele, ninguém mais quer conta, todo mundo isolou ele. Você acha que foi certo com ele isso? Pelo que ele fez merecia. O que foi mesmo que ele fez? Abaixou minha roupa. E algo mais? Não, porque meu pai chegou. Nada mais? Silêncio. Então assim, quem foi que pensou em denunciar? Meu pai e minha tia. Quando chegou na delegacia, o que disse? Eu disse o mesmo que lhe contei aqui, disse até que ele me ameaçou me matar se eu contasse. Ele lhe dizia o quê? Se eu contasse a minha família que ele ia me matar. Eu tinha medo dele querer me matar. Aí, depois que eu denunciei, ele fugiu e não voltou mais, minha tinha disse que minha avó sabe onde ele tá, que ele foi para o interior. Ele só fez me ameaçar. Quer dizer se você contasse a seu pai ele ia lhe matar, mas não falou que ia fazer nada com seu pai, irmã, nem ninguém? Não. E você teve medo quando ele lhe ameaçou, o que sentiu? Eu tive medo. Mas, assim, ele já tinha tentado outras vezes fazer isso? Não. Quer dizer, ele só fez aquela vez? Foi, ele assim [...] dizia que eu era bonita, duas vezes ele disse

Não consegue dialogar para resolver os conflitos Obedece quem gosta Enfrenta a violência com violência Apoio familiar à vítima Apoio familiar à vítima Denúncia Sofre ameaça do agressor para não denunciar Apoio familiar ao agressor Medo do agressor Fuga do agressor após denúncia Medo do agressor

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que eu era bonita, só duas vezes. O que é que você acha que deveria acontecer com essas pessoas que fazem isso com as outras? O que ele merece. O que ele merece? Ficar isolado [risos]. O que você aconselharia? Se você fosse dizer alguma coisa a ele hoje o que diria? Silêncio. Eu queria saber que cor você é? Eu acho que sou morena? Que cor? Eu queria ser morena [é preta]. Se você fosse me dizer o que você tem de melhor? Olhe para você mesmo e me diga, o que eu tenho de melhor? Nada. Assim de especial? Nada. Nada de bom. Você acha que você não tem nada de bom? Não. Ah! Se você não tem nada de bom deve ter de ruim? O que tem de ruim? Não, eu não tenho nada de bom, nem de ruim. Assim, eu não sei falar. Vou dar um exemplo. Eu sou gordinha, as pessoas acham gordinho feio. De ruim que eu tenho é as verrugas só, tentei tirar mais o médico não tava lá para atender. Me fale mais sobre você? Diga o que você tem de bom? Nada. De importante? Nada. Como nada? Nada de importante, nada de bom? Eu não gosto de falar não. Tá com vergonha de mim? Não, eu que não gosto. Vou sair curiosa sem saber isso? Silêncio. Tem namorado? Não. Ela não quer me de contar, tá me escondendo a parte melhor? Abra o Jogo, tem namorado? Não tem, então tá bom. Então se você fosse namorar alguém? Não tem nem um ficantezinho, um pegante então, você bonita desse jeito, não tem? [balança a cabeça em sinal afirmativo de quem tem namorado] Ele é bonito? É, não ele não fica muito aqui não, ele trabalha. Meu pai sabe, minha tia sabe que eu tenho namorado, ele mora lá na outra rua. Quantos anos ele tem? 16. Com é que ele é me fale, assim, fisicamente? Eu tô com vergonha. Ah, não fique eu preciso saber. A cor dele? Ah, é igual a mim. Ele é que cor então? Ah! Não sei, da sua cor. Qual a sua cor? Moreno escura. Então já notei tudo, ele tem os olhos pretos e é moreno escuro.

Sedução O agressor merece distanciamento da sociedade na opinião da vítima Branqueamento Dificuldade de enxergar em si qualidades Não consegue ver nada de bom em si/ imagem e imaginário negativo de si. Vergonha de falar de si, de suas qualidades Mantém-se em silêncio

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Você acha ele bonito? Não. Você casaria com ele? Não, ah não. Por quê? Porque não. Não acha um partidão ele estuda e trabalha e você não quer ele? Não tem alguma coisa nele que ela não aprova? Não, porque eu já vou terminar com ele já. Ele fez alguma coisa que você não gostou? Ele passou dos limites? Tá bom você não quer me contar, tá certo. Vamos voltar um pouquinho para o seu dia-a-dia, tá, então assim, o que é que você faz na casa de sua avó, o que você faz na casa da outra avó? Eu fico ajudando minha avó e tudo. Você faz o que para ajudar ela? Quando ela está lavando os pratos, eu arrumo a casa, quando ela lava os pratos eu arrumo a casa, quando eu chego e não tenho o que fazer, eu ajudo ela, ajudo ela a lavar a roupa. Então de alguma forma você está sempre colaborando. E na casa de seu pai? Na casa de meu pai, eu arrumo a casa, lavo os pratos e arrumo meus irmãos para ir para o colégio. Eu queria saber o seguinte, você já soube de alguém na sua família, na sua vizinhança ou na sua escola que tenha sofrido discriminação? Ah, meu primo. Conte-me como foi? Meu primo trabalhava ali ó, naquela mercearia (aponta o local), ele tava ajudando a mãe dele, começou a trabalhar na mercearia, que ela chamou ele para trabalhar com ela (a dona) e ele foi, depois aí sumiu alguma coisa dela, aí ela chamou ele de ladrão e ficou dizendo que ele era negro e que ele não ia trabalhar mais para ela não. Foi mesmo? E sua tia deu queixa? Ele disse a minha tia, porque minha tia não viu ela chamar, só quem viu foi ele e os meninos, aí ela disse que ia esperar ela chamar de novo para ir lá (tomar providência). Ele acabou perdendo o emprego dele, porque ela não quis mais que ele trabalhasse para ela. Ela tinha prova que ele tinha feito isso? Não ela saiu logo dizendo isso. E como foi que ele ficou? Ele ficou triste, ficou cabisbaixo, porque ele disse que não fez nada disso, depois ele saiu para

Não diz que é preta Branqueamento Cor moreno escura Ajuda a família com tarefas domésticas e cuida dos irmãos menores. Cuida dos irmãos Discriminação racial no trabalho Discriminação como motivo para

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rua com um pau e disse que ia pegar ela e quebrar toda no pau (risos). Ele tem quantos anos? Ele tem 11. Ele disse que ia quebrar ela toda no pau foi? Ele ficou muito irritado. O que acha dessa situação de discriminação? Acho que ela tinha que ter uma punição [...] ser presa, porque ela é morena e fica fazendo isso, falando dele, chamando ele de preto. Em outra situação, ou assim alguém de sua família ou outras pessoas que você tenha reparado que passou por esse tipo de discriminação? Não. Você só lembra dela. E você? Não. Nunca percebeu ninguém lhe discriminando? Não. Nem na escola, na vizinhança? Não. Outra coisa que eu queria era que você falasse da sua família, eu quero saber mais de você, de seu dia-a-dia. Eu jogo futebol. Como é jogar futebol para você? Em que posição você joga? Ás vezes eu agarro e às vezes eu jogo, sou zagueira. O que significa o futebol para você? Eu gosto [...] eu queria ser uma jogadora. Igual a Marta? Risos. jogador tem de bom que faz você querer ser uma jogadora? Driblar, fazer as coisas direito, né. E na sua vida, você gosta de fazer tudo direito? Não (risos) eu sou bagunceira, às vezes eu bagunço. Como é essa bagunça? Eu saio bagunçando tudo, tirando tudo do lugar, porque ó eu tenho o meu guarda-roupa, os outros vai lá chega e mexe, pega as coisas e não bota no lugar, aí isso me dá raiva, quando eu tenho uma coisa que os outros pegam e não bota no lugar. Quem pega e tira do lugar? Meus parentes mesmo. Minha prima pega, eu tenho guarda-roupa lá que tem roupa, roupa aqui [na casa da avó] e roupa lá em casa, às vezes eu durmo aqui, ou lá em casa, ou na casa de minha outra avó, aí ela fica mexendo nas minhas coisas, quando eu vou procurar alguma coisa, não acho. Por que ela fica mexendo em suas coisas? Porque eu dei ousadia para mexer. E agora você se aborrece? É porque ela pede uma coisa, quando eu digo que não ela quer pegar, fica teimando, aí eu pego e xingo, aí ela

desemprego Repercussões da discriminação na vítima/Enfrenta quem lhe violenta com violência. Negro não pode discriminar negro. Então, branco pode? Quotidiano/Brincadeira Possibilidade de reconhecimento, de fazer as coisas direito, diferente. Desordem/Ordem

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ainda vem em cima de mim para me bater. Xingar para você é violência? Não. Não é não? Não. Xingar é o quê? Silêncio. Xingar é xingar. O que é mesmo violência? Às vezes tem gente que diz que xingar é violência. Mas, eu quero saber para você. Para mim eu acho que não. Xingando ela você está fazendo algo certo ou errado? Uma coisa errada. E no caso dela, que está mexendo em suas coisas é errado? Mesmo assim, eu acho que está errado. Mas, quem quer as coisas tem que comprar né, ficar toda hora pedindo aos outros também é ruim. Também eu nunca peço nada a ela e ela fica pedindo as coisas para mim. Seu pai lhe dá tudo, tudo o que precisa? Não, não tenho um computador, no dia que minha mãe ia me dar ela faleceu. Como foi, me conte? Foi um dia em que ela viajou, quando foi no outro dia eu passei de ano, aí ela pegou me prometeu um computador e quando ela voltou de viagem ela foi direto para o hospital, ela já tava doente um problema que ela tinha desde criança, minha avó nunca levou ela no médico que ela falou, aí ela morreu. E como era a relação de sua mãe com seu pai? Bem. Nunca brigaram. Seu pai alguma vez já bateu em sua mãe? Não. E sua mãe já brigou, já gritou com seu pai? Já. Brigava às vezes quando eu ia para casa de meu pai, ô do pai de meu pai, o meu avô vivia pedindo dinheiro a meu pai, aí ela falava para não dá, aí ele dava, aí mainha ficava discutindo com ele. Ele queria dinheiro para quê? Não sei. Ele trabalha, mas queria fazer um negócio lá para ele, meu pai não tava lá na casa dele, mas meu pai toda semana dava umas coisas a ele. Seu avô é sozinho? Não, minha avó é viva, mas só que quem pedia dinheiro era ela. Como é que começa a briga? Meu pai ficava calado, aí também não fazia o que ela queria, depois fica tudo numa boa. E quando abusava muito o pai batia? Quem batia mais era minha mãe. Vocês mereciam? Não, eu vinha jogar bola. E ela não queria que você jogasse bola?

Violência Conflito quotidiano Significado da violência Xingamento está naturalizado Sentimento pela morte da mãe Ciclo de Violência

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Não, porque quando eu jogava bola, era campeonato e às vezes eu filava aula para jogar e ela não gostava. E sua irmã apanhava, já apanhou? Já apanhou. Você lembra, por quê? Dela não lembro não, só lembro de mim. E seu irmão menor? Não lembro. Quem mais apanhou dos três? Eu quem mais apanhei. Por que você apanhava assim? Porque eu botei meu irmão na geladeira. E porque você precisou botar o irmão dentro da geladeira? Porque eu fiquei com raiva que ele nasceu, eu queria ser filha única, aí eu tava com raiva dele e aí eu botei ele na geladeira. Você já não tinha uma irmã? Foi eu tinha uma irmã, aí depois veio ele e também ele era perturbado, eu tinha que acordar todos os dias para ficar fazendo as coisas para ele, fazer mingau. Deixe-me entender, sua mãe era viva quando você o botou na geladeira? Era. Minha mãe estava numa festa com meu pai e deixou a gente em casa, aí eu esperei ela sair e coloquei ele dentro da geladeira e fechei a porta, aí quando ela voltou que viu, começou a me bater. Sua irmã quando você fez isso tava dormindo? Não, estava na sala assistindo TV e não viu eu colocando ele na geladeira não. E quando seus pais chegaram o que fizeram mesmo? Meu pai me bateu, mas depois passou. Eu tô notando que você não liga para tomar porrada não? Você acha normal tomar porrada? Ah, eu sempre apanhei. Se meu pai bater quando eu apronto assim, se meu pai me bater eu nem ligo. Ele me bate, daqui a pouco passa. Você na verdade não gosta de apanhar? Gosta? Pelo jeito que você ta me falando você não gosta? Silêncio. Quando a gente faz alguma coisa errada o que os pais devem fazer para a gente fazer a coisa certa? Botar de castigo. Acho que é melhor castigo. Que tipo de castigo você acha que funciona, assim, serviria para você? Não viajava e não saía para canto nenhum, não ia para praia, da escola para casa, ficar trancada dentro de casa. Você acha que ia resolver? Sim. Quer falar

Violência física/ Agressor mãe(já falecida) Motivo da violência Filava aula para jogar O jogo dava a ela a vivência do prazer no aqui e agora, presenteismo. Diferente da aula que era uma perspectiva de futuro. E que futuro? Banalização Naturalização da violência Assumia a responsabilidade dos pais em relação ao irmão o que gerava a violência Bater Bater Pais têm direito de bater

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de mais alguma coisa que você lembre e que agente não conversou? Não, é só isso. Na delegacia que a gente foi tinha um registro lá de estupro para Michele, tem escrito na denúncia estupro. Porque será? Meu pai que disse isso. Foi lá e disse. E o que realmente aconteceu? Ele baixou a minha roupa. E ele lhe tocou? Silêncio. Seu pai viu isso? Silêncio. E foi estupro? Não, mas é como se tivesse sido. Entendo, pela forma como ele chegou e fez, então você considerou o que ele fez estupro. Ele tava perto de você, tirou sua roupa, tirou a roupa dele, o que sentiu? Tive muito medo. Eu chamei meu pai, tive vontade de gritar, quando eu ia gritar ele tapou minha boca, aí meu pai chegou. Você acha que ele ia lhe estuprar? Acho. Uma pessoa que passa por isso, como ela deve enfrentar? Pedir ajuda. Como? Quem pode ajudar? As pessoas, meus parentes. Como acha que eles podem lhe ajudar? O que eles fazem, eles lhe ajudam? Minha tia, minha avó, meu pai, tudo conversa comigo, me dá conselho, fala sobre isso. Pergunta sobre isso? Não. O que eles lhe falam, o que lhe aconselham? Para quando os outros me chamar eu não ir num lugar estranho que eu não conheço a pessoa, num lugar distante, diferente. Eles ficam imaginando que alguém possa fazer algo, possa fazer a mesma coisa? O que mais as pessoas lhe aconselham? Nada mais. Você se acha criança, adolescente, adulta o quê? Adolescente. Pensa em ter um namoradinho, sua vida, sua família? Balança a cabeça em sinal afirmativo. Quer ter filhos? Não. Não gosta de criança, Não? Se eu tivesse filho queria ter uma menina. Porque queria ter uma menina? Para ficar penteando os cabelos, arrumando. Sinto que você queria uma companheira, e sua irmã? Não gosto da minha irmã não. Por quê? A gente não se dá, ela implica com os outros. Ela implica com Você? Por quê? Com todo

Medo Apoio familiar à vítima Como enfrentar a violência Apoio familiar à vítima Apoio familiar à vítima

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mundo que ela fez que você não gostou? Toda vez que eu estou brincando ela chega querendo brincar, aí começa a confusão. Ela chega querendo brincar e dá confusão? Como assim? Por exemplo, eu estou brincando de bola. Aí ela chegou querendo brincar, quando ela chega começa o problema, porque eu fico agarrando aí quando eu erro ela fica me xingando, falando um bocado de coisa, dá uma raiva, dá vontade de dar um murro na boca. Você já reparou que tudo que fala fica nervosa, com raiva, quer bater? É. Você já parou para pensar sobre isso? Porque você faz assim? Não sei. Porque eu não gosto, porque quando é alguma coisa que eu não gosto. E quando é que você fica nervosa assim? Quando as pessoas ficam me dizendo coisa. Que coisa? Isso. Você não agüenta ouvir nada? Agüento, mas só se ficar me pirraçando. Então, quando alguém te pirraça você age dessa forma? É. Quando você bate você sente o quê? Me sinto mal, eu bato mais me sinto mal, se me provocar eu bato. E se provocar você se sente mal, mas bate de novo, é assim? É. Porque você sente essa vontade, essa necessidade de bater? Não sei. Não sabe? Por exemplo, eu tô jogando bola, eu tô brincando, aí eu tomo gol, aí ela (a irmã) fica me xingando, falando um bocado de coisa. Se eu brinco com as meninas lá, as meninas nunca falam nada, porque é erro da pessoa que tem que ficar marcando, nunca fala nada, agora ela, acha de falar. Aí quando ela fala você não gosta, porque ninguém falou e ela foi a primeira a falar? Então ela não pode falar nada de você? Não, porque se ela tá com raiva porque ela não agarra [não faz melhor que eu]. E você acha que ela fica com raiva? É, porque sempre quando eu tô lá, os outros vai logo me chamando para jogar. Quando ela chega ninguém chama. Ela parece que tem raiva de mim [competição]. Acha que ela tem raiva de você? Como chegou a essa conclusão? Porque eu

Quotidiano/Brincadeira Quotidiano/Brincadeira Motivo da violência Não sabe dialogar para resolver conflitos Bater/Não sabe dialogar Quotidiano Lazer/Brincadeira

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sinto isso. Alguma coisa ela faz para você sentir isso? O que ela faz? Dentro de casa acontece alguma coisa que você associa essa raiva? Pode ser qualquer jogo, qualquer coisa que se eu tiver, se ela tiver sempre dá problema, confusão. Com ela dá problema? E seu irmão? Eu brigo também com ele. Porque, o que ele faz? Nada, também é pirracento ele. O que é ser pirracento? Os dois são pirracentos. O que fazem que você acha isso? A pessoa fica falando e faz errado, faz, faz, faz, até irritar a pessoa. Quando eles fazem alguma coisa errada seu pai briga com eles ou com você? Briga comigo. Por quê? Porque eu fico olhando eles. É? E sua mãe e seu pai gostam mais de quem? Minha mãe de mim e meu pai de meu irmão pequeno e da outra [refere-se à irmã]. Não gosta muito de você não, Por quê? Porque eu não conto nada para ele. Ele aí fica achando que você está escondendo algo? É às vezes eu escondo. O que você esconde? Silêncio. Não conta tudo para ele? Não confia nele? Confiar eu confio, mas eu não gosto de contar tudo a ele. Ele conversa muito com você? Senta para conversar? Conversa sim. Mesmo assim você não conta, conta? Só uma parte. Por quê? Silêncio. Acha que ele não vai poder lhe ajudar? Ele conversa muito com você? Não, não é isso. Tem coisas que não é para ele saber. O que por exemplo? Silêncio. Acha que o conselho dele não serve? Às vezes é bom, às vezes não. Quando é bom o conselho do pai, você sabe? Acho que quando ele fala que não é para se envolver com estranho, não é para pegar carona de ninguém, chegar em casa antes de ficar de noite [...]. E em que situação não se deve ouvir o pai? Quando eu quero sair eu saio. Ele diz que não é para você sair, é isso? Ele quer que eu fique o dia todo em casa. E não saia para canto nenhum? Não ele quer que eu saia, mas que avise. Ele quer que você fale onde vai, né? É. Você acha que o sair dele é pouco? Não, mas eu

Não tem diálogo na família

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sempre fico na rua, eu gosto de ficar na rua assim mais. Gosta de rua? Por quê? Por que não gosta, não quer ficar em casa? Nada. Desde que mainha era viva a gente ficava na rua, também jogando bola, se divertia, ficava com minhas colegas. Isso é bom para você? Eu gosto. Ele entende isso, que é bom para você? Mesmo assim ele acha que eu tenho que ficar em casa. E você ficando em casa faz o quê? Quando eu fico em casa eu arrumo e tal, boto um DVD e fico assistindo até meus irmãos chegarem da escola. Seus irmãos estudam que turno? À tarde. Meu irmão vai para creche e minha irmã arruma as coisas dela, eu arrumo, as minhas e às vezes eu arrumo a de meu irmão ou minha irmã arruma. Então o trabalho é dividido? E ela tem namorado? Não. E já aconteceu alguma situação com ela de violência? Não. Só você mesmo? Silêncio. E hoje que você já passou por isso, o que mudou? Silêncio. Quanto tempo tem? Aconteceu [pausa prolongada], foi [pausa prolongada] ano passado. Tem mais de 1 ano? Acho que sim. Foi em que época? Quantos anos tinha? Tinha 13 anos. Faço aniversário em 17 de abril. Quando você experienciou essa situação de violência há 1 ano atrás, foi difícil e agora? Já superou? Já. O que é superar para você? Não falar mais disso, não toco mais no assunto. Seu pai toca no assunto? De vez em quando. Você não toca mais no assunto porque esqueceu? Esqueci. Esqueceu? Silêncio. Na escola você tem visto alguma situação de violência? Não. Nunca percebi. Na escola você não vivenciou a violência? Não. vivenciou na sua casa, não foi? Sim. Família Oxossi. Entrevista E Fale-me sobre seu dia-a-dia. Como é seu dia-a-dia? Estudo muito, ajudo a minha avó, empino arraia. Como você

Apoio familiar à vítima Quotidiano/Brincadeira/Lazer/Rua Casa refúgio da violência. /concepção dos pais. No entanto, a violência sofrida pela adolescente foi em casa por um familiar. Sofrimento ao falar do fato Silêncio Forma de enfrentamento. Não falar mais do assunto.

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ajuda sua mãe e sua avó, varrendo a casa, lavo os pratos. Mora aonde? Moro aqui mesmo com minha avó, minha mãe mora com meu padrasto já tem 4 anos, já. Meu pai faleceu tem 1 ano e alguns meses. E sua mãe já era separada de seu pai? Era. E você gostava de seu pai? Gostava (pausa) ainda gosto. É? É. E como é seu dia-dia na escola? Estudo muito. E é comportado? Sou. Como é que sua professora fala com você na escola? Ela fala assim – se enquadre viu [fala o próprio nome]. Porque ela fala isso? O que você apronta? Nada. Conte-me direito essa história? Eu não apronto não. Ela fala assim aí Deus daí-me paciência [risos]. Quando eu brigo assim muito, eu fico lá pintando, chutando tudo. Você gosta da sua escola? Gosto. Você tem quantos anos que estuda nessa escola? 2 anos. E a professora gosta de você? Balança a cabeça em sinal afirmativo. Como ela lhe trata? Bem. E em relação assim aos seus coleguinhas já soube algum caso de violência? Já. O nome dele é R. Como foi essa história com Rodrigo? Rapaz eu vi lá dizer que ele ficava lá, o cara ficou atrás dele para pegar ele e dá tiro nele, mas ele fugiu e o cara não pegou ele. Ele fugiu? Fugiu. Porque? Foi a polícia que atirou? Não, não foi não, foram os outros caras. Que foi, foi briga? Não, não foi briga não, foi rincha. Foi rincha? Teve alguma discussão? Não. Alguém foi procurar ele na escola. E você como ficou? Eu me escondi. Escondeu-se? Eu e um bocado de aluno. A professora ficou desesperada lá na escola. Como ela ficou que você percebeu que ela tava desesperada? Ela tava assim: uai meu Deus e um bocado de coisa assim: ela estava com medo. E você teve medo? Tive. Você estava sozinho? Não, eu e meu primo. Esse daí que tá aí em baixo. Vocês se esconderam na própria escola? Foi lá. E você ouviu os tiros? Não dentro da escola não teve tiro, mas eles ameaçaram,

Quotidiano Estudo/Lazer Quotidiano Escolar Violência na Escola

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eu fiquei no pânico. E o que é que você acha da violência? Que tem que melhorar essa S que aqui tá demais. Tá demais? O tráfico. Se você vê é tiro que rola aqui, aqui na praça às vezes. Você já viu? Já. O que é tráfico para você? Drogas. Eles vão e passa um para o outro. Alguém já falou de drogas para você? Não, eu que já vi. Alguém já lhe ofereceu? Não. Se lhe oferecer? Não quero de jeito nenhum essa vida. Já viu algum colega falar dessa vida? Não. E como sabe? Imagina que seja algo como? Algo ruim. Por quê? Quem lhe fala isso? Minha mãe né me dá conselho, minha avó, meu padrasto. O que acha dessa violência toda? Não sei. Não sabe? Não. Você já sofreu discriminação? Não. O que é discriminação para você? Sabe o que é? Sei. Chamar o outro de negro, né? Ser negro é ruim? Não, é tudo a mesma coisa, negro e branco é tudo a mesma coisa. Você acha ser negro ruim? Não. E sua namoradinha? Têm quantas? Só uma. Ela é bonita? É. O nome dela é Valéria. E Valéria é como? Ela é gordinha, tem cabelo grande. Que cor ela é? É morena. De que cor? Da minha cor assim. Da sua cor? Que cor você é? Moreno. O que você mais gosta nela? Tem um bocado de coisas que eu gosto nela (risos). Que legal! O que mais? Tenho até vergonha de falar. Não tenha vergonha, fale. Gosto de beijar ela, gosto de fazer tudo com ela. O que você faz com ela? Beijo ela só, só isso, converso com ela, saio para algum lugar. Você gosta dela? Gosto. Você acha que ela gosta de você? Acho. Você casaria com ela? Não. Por quê? Ainda é cedo para casar. Quando sua mãe se separou de seu pai você lembra? Lembro. Notava algo diferente na relação dos dois? Não. Eles brigavam? Não. Nunca brigaram? Não, só discutia só. E você ouvia a discussão? Ouvia alguma coisinha assim, mas eu não escutava não. Como é que você ficava quando eles brigavam? Eu não gostava não. E ela

Medo Violência na rua onde mora Apoio familiar na prevenção de situações de risco/marginalização Mito da democracia racial Negação étnica Branqueamento Cor morena

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brigava muito? Foi. E aí ela se separou? Foi. O que você achou disso. Ruim para mim. Você queria que ela tivesse ainda casada com seu pai? Queria. Mesmo ela brigando com seu pai? Balança a cabeça em sinal afirmativo. Por quê? Porque eu gostava deles dois juntos, dele eu gostava, dela ainda gosto. Gosta de seu padrasto? Gosto. Como era seu pai, sua mãe e você? Era bem, feliz assim ôxe, era bom eles dois juntos, iam para praia, para o parque. E hoje? Vou também. Quem me leva é meu padrasto e minha mãe? Então o que mudou? Silêncio. Seu pai já bateu em sua mãe? Nunca. Ele lhe batia? Nunca. E sua mãe? Batia. Como ela lhe batia? Quando eu aprontava [risos]. Aprontava o quê? Bagunçava. O que é bagunçar? Quando eu batia em minha irmã, ela ia e me batia. Você batia na irmã por quê? Porque ela me provocava. Como assim? Fazia coisas que eu não gosto, aí eu batia. Você acha certo? Não. E por quê? Porque dava raiva. Sentia raiva batia e depois? Me Arrependia. E fazia o quê? Pedia desculpas. Sei! E assim que seu pai morreu como você ficou? Triste. Ainda tô triste. Ainda tá triste? Tô, fico sentido pela morte dele. Eu soube que você queria se jogar da laje é por causa disso? [pausa prolongada] Porque minha mãe me bateu, aí me deu raiva, aí eu fui e pulei da laje. Sua mãe lhe bateu por quê? Por nada. Eu brincando assim com os outros, dizem tanta coisa aí ela vai e acredita, aí ela vai e me bate também. Quem inventou coisa ela foi e lhe bateu? Foi os meninos daí de trás. Inventaram o quê? Dizendo que eu tava xingando a mãe dele e ele, aí ela veio e me bateu eu fui e fiquei com raiva e pulei da laje. Ela não lhe perguntou o que houve antes de lhe bater? Não. Já foi logo lhe batendo? Foi. Sua mãe lhe escuta, conversa com você faz algo que ela considera errado? Me escuta [pausa] tem vezes, mas tem vezes que ela não quer nem saber e me bate. Quando você

Violência familiar Violência Agressão física Motivo da violência Pouco diálogo familiar Os pais têm direito de bater Não sabe dialogar/Bate

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acha que apanhou sem merecer? Silêncio. Acha que sua mãe tá certa ou errada quando lhe bate? Acho que tá certa. Por quê? para eu me corrigir, tem vezes que eu faço errado, tem vezes que não. Será que não tinha outra forma? Acho que tinha ficar de castigo. O castigo seria uma boa forma? Acho. Que castigo serviria para você? Não deixar eu jogar futebol. Quando você apanha você fica como? Muito triste. Tem irmão? Tenho irmã. Gosta dela? Gosto. Como é sua relação com ela? Brinco com ela. E vocês brigam? Não. Antigamente eu brigava mais eu parei. E antigamente vocês brigavam por quê? Porque ela me provocava. E ela lhe provocava como? O que ela fazia? Um bocado de coisa, se eu tivesse brincando em um lugar ela ia lá e terminava a brincadeira e começava a bagunçar. Ah. Sim! Ela começa a bagunça? É ela começava a bagunçar. E você aí batia nela? È . O que mudou que não bate mais nela? Eu já brinco com ela agora em paz. O que mudou em você? Mudou algo? A minha brincadeira. Mudou a minha brincadeira. Mudou o que na brincadeira? Brinco de outra brincadeira, de bicicleta, de bola, ela brinca comigo também na lan house [casa de informática – jogos]. E qual era a brincadeira que dava briga? De bola, de boneco. Ela ia e bagunçava. Eu começava a briga, mas ela sempre terminava ganhando. Porque ela ganhava? Dava pena dela, toda vez ela acabava eu deixando ela me bater, eu ainda tenho pena dela. Porque tem pena dela? Porque ela é pequena e não agüenta um murro meu. Você é galo de briga? Eu não. Isso não leva ninguém à frente. Realmente magoa. Em relação à discriminação, eu acho que as pessoas precisam pensar porque às vezes não percebem que acontece com elas. Você já foi vítima de discriminação? Não. O que acontece com a pessoa que faz isso com a outra, o que acha que a pessoa merecia? Ser presa. Por quê? Porque

Mudou a brincadeira para evitar conflitos Reconhece que fisicamente é mais forte

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chama o outro de preto. Você trabalha? Já trabalhei 2 meses. Fazendo o quê? Cortando carne nessa mercearia ali. E você gostava? Era bom? Era. Eles pediam carne aí eu cortava e pesava. Cortava? Você não tinha medo de se machucar não? Não. Quanto ganhava? R$ 15,00 por mês. Fazia o que com o dinheiro? Comprava as coisas, ajudava minha mãe. E se lhe chamasse para trabalhar de novo? Não, é muito ruim, é muito pau [trabalho]. Como assim? Tinha que limpar lá, ficar lá até 11 horas da noite e para fazer o dever era ruim. O dono chegava lá e mandava deixar tudo limpo e na ordem. E o dono como lhe tratava? Bem. Ele era tranqüilo. Mas sua esposa que não era. Ela era como? Era muito ignorante, falava alto com os outros, com todo mundo. Sem ela eu ia trabalhar, mas com ela não. Que cor é ela? Branca. E sua patroa lhe tratava de forma diferente? Só falava alto só, falava alto comigo e com os outros [refere-se aos outros empregados]. E com o freguês? Com freguês ela falava baixo, falava calma. Agora com a gente já era braba. Ouvi dizer que ela não gosta de negro? Você percebeu isso? Não. Quem disse foi minha mãe para mim. Eu dava um pau danado e ela [a dona do estabelecimento em que trabalhava] nem ligava. Sua mãe disse isso e considera que foi verdade? É, se minha mãe disse. E na escola já viu alguém falar em discriminação? Não. E na rua? Não. O que é violência para você? Briga, um bocado de coisa. Que coisa? Tiro, briga. Para mim a briga é a pior violência? Por quê? Porque causa morte, um bocado de morte.O que você tem de importante? Minha vida. E o que mais? Minha mãe, minha avó, minhas tias, irmã, minha família. E em você? Meu coração, minhas pernas. Porque suas pernas são importantes para você? Porque eu ando, sem elas eu não posso andar. O que acha da sua cor? Eu gosto. E o que você não gosta em você? O que eu não gosto é minha

Quotidiano de trabalho Trabalha para ajudar a família O trabalho é muito ruim [desgastante fisicamente, não sobra energia para estudar] Quotidiano de trabalho Relata maus tratos no trabalho Nega discriminação sofrida Significado da violência O que lhe importa

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raiva que eu sinto por dentro. Fale um pouco dessa raiva que você sente? Quando alguém me bate na rua, inventa coisas eu fico com raiva da pessoa, e não falo mais com a pessoa. Evita falar? Porque eu vou brigar com ela, aí eu evito logo falar. Família Ogum. Entrevista F Vamos fazer a entrevista. Fale um pouco do seu dia a dia, da sua história. Pode falar...No dia-a dia da semana né? Eu lavo roupa, só não gosto de passar. Eu lavo, cozinho. Fico dentro de casa mesmo, com as meninas, tomando conta dos netos, faço a comida dele [neto], pois a mãe não faz, que fica deitada. Ai eu levanto e faço logo né (a comida do neto). Então você acorda, toma conta dos netos, arruma a casa, o que mais? Lava roupa, cozinhar...E sua vida sempre você foi assim? Toda vida. E você nova, jovem, o que você fazia? Eu brincava um pouquinho, mas não muito, ia para o colégio. Primeiro eu ia para a roça, trabalhava com a enxada. Eu ia pra enxada, e quando dava meio dia, ia para a escola correndo. Eu não aprendi quase nada, pois me dedicava mais ao trabalho do que ao estudo. Você trabalhava na roça para ajudar...? Eu trabalhava...eu pegava aquelas tarefas de terra, limpava, eu e mais minhas irmãs. Quantos irmãos você têm? 3 irmãs, 4 comigo. Todos estudaram? Estudaram, só mesmo que não aprendeu nada fui eu. Eu larguei o estudo, vim trabalhar em Salvador de babá com 16 anos, vim tomar conta de um menino. O pai da menina era muito amigo da minha mãe e de meu pai, entendeu? Aí meus pais deixaram de vir me ver. Como era a sua relação com a sua patroa? Era boa. Ela conversava comigo...O que ela dizia [a patroa]? Ela dizia sobre prato, rótulo, Você têm que fazer isso e aquilo. Você trabalhava e mandava fazer outras coisas para ela,

Não sabe dialogar para resolver conflitos Quotidiano de trabalho Realiza tarefas domésticas Família extensa Repetição? Tinha que estudar e por isso brincava pouco. Quotidiano de trabalho Primeiro trabalhar, depois estudar, depois brincar. Difícil ter que trabalhar e estudar Quotidiano de trabalho Adolescente Não estuda mais. Só trabalha. Quotidiano de trabalho

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não é isso? É...E quando você veio para cá logo...você conhecia seu marido? Não. Como você conheceu seu marido? Ele era de lá mesmo, mas eu nunca tinha visto. Aí eu comecei a namorar com ele aqui. Eu vim conhecer ele aqui. O pai e a mãe dele eu já conhecia, pois eu ia para as festas na casa dele. Mas eu não lembrava dele. Aí quando eu conheci ele aqui, ele gostou de mim e eu gostei dele... O que você gostou mais dele quando começou a namorar com ele? Por que eu achava que ele era uma pessoa boa para viver com ele... e eu tô com ele até hoje. O que você achava mais bonito nele? Ele não era bonito...era magro. Eu acho que ele é mais bonito hoje. Mas o que lhe atraiu nele? Quais as características? Ah não sei...eu gostei dele. Você casaria com ele de novo? Casava né..., se tô com ele até hoje. Tivemos uma vida difícil e tô casada com ele até hoje... Me conte a sua vida difícil? Vida difícil assim...para eu cuidar de mim...Por quê? Por que eu facilitei...eu não tomei muito remédio para “evitar”..ai eu tive essa daí [se referindo a filha mais velha]...e com menos de 1 ano a outra [se referindo a filha mais nova].Ai eu fiquei mais dentro de casa por isso. A partir daí a senhora ficou mais dentro de casa? Até hoje fico dentro de casa. Eu não gosto de farra, de festa...Quando dá a noite, tô logo no meu canto. A senhora não gosta? Ou o marido também não gostava? Ele gostava. Quando ele gostava, eu gostava. Mas depois sem dinheiro, ele não gosta mais. E quando a gente tem filho, a gente não faz mais nada da vida. Faz, mas é mais difícil. Eu mesmo era sozinha aqui, não tenho ninguém, só tem eu. Ninguém ficava com ela para eu ir no mercado. Ele ia de manhã cedo trabalhar no Píer. Ele que trazia as coisas para dentro de casa. Eu não podia trancar ela e deixá-la dentro de casa. Se eu subisse com ela, eu não fazia as coisas. Ai eu preferia não ir para lugar nenhum. Se ele chegar em casa, e não

Falta de planejamento familiar Sente falta da presença da família

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lhe ver? Qual a reação dele? Ele não fala nada não. Quer dizer, ele nunca chegou em casa e eu não estava. Eu posso viajar, sair para médico, fazer cartão. Eu posso resolver...antigamente eu ia na rua fazer um cartão, ai eu fui resolver...fiquei um tempão na fila do banco, porque tive que pegar papel, ir para a fila, tirar dinheiro...aí pronto! Mas toda vida ele lhe encontrou dentro de casa. E a senhora não sai mais de casa desde que teve filho? Hum hum...para comprar algo coisa assim..eu saio...E a senhora trabalha? Já trabalhou? Já trabalhei...Tomei conta de menino... Mas depois nunca mais voltou? Sempre ficou em casa... Ai eu olhava...eu lutei muito entendeu? Na época em que meu marido ficou desempregado, não achava nada para fazer ...aí ficou difícil né...eu tinha que manter a casa...pagar a luz, comida, bujão, roupa... E assim...como é a educação que vocês tiveram? Na verdade você, que você teve na sua época de infância, adolescência...Como era sua educação? Eu nunca apanhei de meu pai. Eu sempre procurava meu lugar. Quando eu via que ia fazer alguma coisa que ele não ia gostar, eu não fazia. Se quisesse ir para um lugar, eu pedia. Se eu quisesse sair com minha tia, ele deixava. Mas se eu pedisse para sair com a outra tia, ele não deixava. Mas por quê? Por que ele não gostava dessa tia, e da outra ele gostava mais, por que ela era madrinha de minha irmã. E também né tinha muito tempo que conhecia ela. Então era uma coisa que ele não gostava? É, ele não gostava. Eu era teimosa, mas quando ele dizia, com aquela pessoa não....eu não ia. A gente pedia a mãe para sair, mas ia com a tia. Não apanhei não, tomei puxa de orelha...sabe puxão de orelha? E com suas irmãs? Seu pai brigava? Tem duas, minha filha, que era caixa de porrada. Porque não queria obedecer ele, queria passar por cima dele. Aí ele não deixava. O que elas faziam que passava por cima dele? Assim [...] queriam sair

Só trabalhou quando o marido se desempregou/Provedor desempregado Obediência ao pai/ e hoje obediente ao marido?Relação de poder Obediência ao pai Os pais têm direito de bater Naturalização da violência

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para uma festa, uma reza...A gente só saia para reza. Tempo de reza no interior é tempo de namoro...[risos] Aí era tempo de reza...o povo rezava muito na casa dos outros. Aí a gente ia com essa mulher que rezava, que gostava de rezar, que era parente de minha mãe. Tinha vez que mãe ia com a gente. Se saísse com essa mulher só, meu pai não gostava. Mas você falou que suas irmãs apanhavam? Sim. Elas apanhavam em outras coisas porque eram respondonas, ele falava uma coisa e elas ficavam respondendo como se fosse qualquer pessoa...ai não pode né...pai e mãe já sabe. Por que o certo para mim, até hoje, ela vive saindo lá no interior [...] mas quando, para mim, pai fala. Os filhos de hoje não tem ninguém preso. Ela fazia cara feia para pai, ne quem não gostasse pela raiva, não deveria fazer...E sua mãe? Como era sua mãe? Minha mãe também. Nunca me bateu. Brincava com a gente. Ela não batia de verdade, que é o que dói. Ela puxava minha orelha para ninguém ver...Mas em relação a isso...você acha que sua mãe tava certa em dar esses tapinhas? É melhor apanhar de seu pai e um puxão de orelha de sua mãe do que apanhar dos outros da rua. Então você acha que sua educação foi boa? É minha vida foi essa...eu sai de casa, namorei um pouquinho..., namorei mesmo. Meu marido me chamou para morar com ele. Ele gosta de mim, me respeita. Qual a sua cor? Sou morena, né? E a de seu marido? Ele é moreno claro [...] mais alvo que eu. Você conhece algum caso ou de rua, ou de suas andadas de alguém que já foi discriminado? Discriminação...?Discriminação! Quando a gente tem uma pessoa que por conta de alguma coisa, ela é julgada e inferiorizada. Por exemplo, uma pessoa que é negra, então por ela ser preta, as pessoas acham que ela é suja...Nunca conheceu ninguém que passou por essa situação? Que você lembre? Que você se recorde? Ah...Não..., Então na sua infância e na sua adolescência você não

Relação de poder Violência a partir da transgressão da ordem. Proibição do namoro Relacionamento familiar Relação de poder Violência a partir da transgressão da ordem. Mãe batia escondido Cor morena Ele moreno claro

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viveu isso? Não...Eu era muito vigiada...meu pai não deixava eu sair...E em relação à questão da violência? O que você já viveu durante sua infância, adolescência e a sua vida? O que é para você violência? Eu acho errado...Você acha errado? Eu acho. Mas eu nunca briguei com ninguém. Nunca brigou, mas nunca viu ninguém brigar com ninguém não? Já vi né. Já viu? Já viu as pessoas brigarem como? Você acha que isso é violência? Eu acho...Por que você acha que as pessoas brigam com as outras? Quer dizer eu acho muitoooo, mas eu não dou bola entendeu? Aí, eles vem na minha porta, mas eu digo que não é comigo. Você acha que vou dar bola a uma pessoa? Aí ela vai ficar todo dia daquele jeito, ali entendeu? E tem uma pessoa na sua rua que gosta disso? É aqui na minha rua tem. Por que é que você acha que essas pessoas brigam com as outras? Porque não gosta. E por quê? Você tem alguma idéia? Porque não quer ver ninguém em paz. Quando você educa seus filhos, você bate neles? Eu batia né, mas agora não bato mais não...Quando achou que tinha que bater? Essa aí até pouco tempo apanhava. [risos] Por que ela é respondona...eu faço as coisas para o filho dela e para ela, e ela não me agradece...e ela fica xingando...e quando eu acho que dá para mim...eu Ohhh [gesto com as mãos de bater]. Ela chega, ela não faz o mingau do menino [neto]. A outra acorda doida [neta] para comer. Aí pronto, eu tenho que levantar. Ficar deitada para ver menino chorando, com fome. Ai eu levanto faço mingau, mamadeira. Na verdade você bate...aí eu digo: se ela tivesse morando comigo, se tivesse morando na casa dela...como é que ela ia fazer? Você fica preocupada? É porque ela não tem aquela coisa de acordar e fazer logo as coisas dos meninos, entendeu? E ela não faz não. Mas ela entende, entendeu? Aí eu falo muito com ela. Por que se quando eu tive meus filhos, eu tomei conta. Você acha

Define discriminação Atribui o adjetivo sujo ao negro quando define Nega cor Não tinha liberdade A vizinhança sabe da violência que sofre sua filha, mesmo assim ela finge que não liga Violência Física Mãe bate nos filhos Motivo da violência

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que teria outra forma de fazer, que não fosse bater? Mas eu bato assim né, só quando enche meu saco. Eu não pego ela no meio da rua...eu bato no banheiro, no quintal...E com a sua preocupação em relação a educação, a escola? O que você pensa sobre a educação delas? A mais nova é mais tranqüila que ela. Tranqüila em que sentido? Não dá a dor de cabeça que esta dá. Qual dor de cabeça que ela tá dando? Ela ainda me responde, minha filha. Tudo faz cara feia. Eu não gosto de ver o menino chorando, ela não faz nada. Você criou as duas da mesma forma? Não tem diferença não! tem uma que dá mais trabalho que a outra. Mas como são as orientações? O que é que você mais fala? Isso que tô lhe dizendo...para ter mais cuidado. Então a sua preocupação é com...pra ter mais cuidado com o menino mesmo, sabe? Preparar o mingau...Quem tá de fora pensa que ela tá cuidando. Ela dá banho, lava roupa. Mas o menino fica chorando, ao invés de ela dar mama a ele. E a época de namoro delas? Como foi? A mais nova arrumou um namorado aí...que sou só foi esse, mas não deu certo não... Por que não deu certo? Sei não, ele namorou com outra menina, ela não gostou. Aí ela terminou com ele. Ele pediu para voltar. Só sei que hoje ele tá noivo, ela demorou demais. E a outra filha? Como foi? Foi uma comédiaaaaaaa! Ela não falou não? Sim. Mas quero que a senhora me conte. Conte-me como tudo começou... Começaram a namorar dentro de casa. Aí pediu ao pai. Quando eu vim saber, ele já tinha pedido. Ele namorava ela, mas aconteceu algo que não acontece com as outras meninas? Namorava escondido...Tudo bem. Mas quero saber como foi esse namoro escondido. Mas nessa idade da adolescência, as pessoas fazem isso sobre o namoro. O que a senhora conversava com ela sobre namoro? Ela era pequena, e eu achava que ela não tava, mas ela já tava namorando...Aí a gente viu que ela nova

Assume as responsabilidades da filha Motivo para bater/Violência física Mãe bate nos filhos/ Violência física A mãe tenta orientar as filhas sobre a vida

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pra ele...E ela foi teimando, teimando. Aí ele pediu para o pai pensar para deixar o namoro, mas no mesmo dia que ele pediu ao pai dela, eles já estavam na porta e o pai não gostou. Depois eles foram morar juntos. O pai disse que ela tava nova, que era para ela estudar.. Ela filava aula para vê-lo. Quando estudava com a irmã, ela ia certinho, mas quando perdeu de ano, aí ela só ia por acompanhamento mesmo. Ela saía de casa pronta para ir para o colégio, mas não assumia que filava as aulas. A irmã continuou e ela ficou sem estudar. Depois ela foi morar com ele? Foi, aí começou e ele não deixou ela ir ao colégio. Mas ele [o marido] não deixou ela estudar, só deixava ela dentro de casa. Aí ela já não ia mais ao colégio...E ela ficou sempre dentro de casa depois que foi morar com ele? Ela fica mais aqui, quando ele trabalhava, dizendo ela que tinha medo de ficar dentro de casa, onde ela morava. E como era filha, não ia dizer: vai se embora. E quando ele chegava, levava ela para casa. Na casa dele, eu ia lá, mas não via nada. O tumulto era aqui na minha porta. Seu marido se aborrecia? Na porta dele ele não queria...É até hoje, se ele chega em casa e não vê a filha...Mas assim, apesar disso tudo que ela presenciou... Depois que denunciou mudou alguma coisa na vida dela? Pelo menos deixou de bater né? Ela tava com a menina pequenininha, pegou a menina daqui, ele tava bebendo, ele foi ali no vizinho, lá começaram, ai ele deu a menina a uma moça, mas ela não viu a quem ele deu a menina e pensou que ele tinha dado a qualquer pessoa. Ai ela foi ver a quem ele tinha dado. Ai quando foi abrir o portão que ia entrando, ele bateu nela. Ai ela deu queixa. Foi ela quem deu a queixa? Ela foi, mas ela é de menor, só podia ir comigo ou com o pai. Aí no outro dia eu fui. Mas a iniciativa da queixa foi dela? Foi, como ela registrou disseram para vir com alguma tia, mãe ou pai. E ele não foi a nenhuma audiência? Nenhuma. E o que

Mesmo com duas filhas adolescentes os pais não conversavam sobre namoro com suas filhas Estudo O marido proibia a esposa de estudar, tinha que fazer as tarefas domésticas Perda da liberdade Mudança da vítima e do agressor depois da Denúncia Alcoolismo e violência Motivo da denúncia

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aconteceu que ele não foi a nenhuma audiência? Não sei.né!Ele simplesmente não foi. A gente ia e não via ele né...E depois da queixa......ele melhorou bastante! E ele sempre vem ver os filhos? Vemmm! Abraça, beija...Dá as coisas...e depois sempre chega com mais coisa...Com relação aos filhos, ele nunca bateu? Aqui não, eles sempre tão com a gente! Desde pequenininhos? Que vieram para cá, quando teve a separação, a menina tava de 4 meses...Então sua neta cresceu aqui? Ela cresceu tanto na barriga como aqui com a gente. Por isso que tenho amor a eles. Nunca moraram os três numa casa; ele, ela e a menina não. Quando ela veio para cá, a menina tava na barriga. [Os avós praticamente criam] É, então ela achou que não tava pouco...e encheu a barriga de novo [engravidou] com o menino. Ela tava já aqui, quando engravidou do menino. Agora ela não quer mais? Não já teve um casal e acabou! É muito nova, tem 17 anos, agora eu acho que com um tempo ela vai criando uma certa maturidade...Com 15 anos engravidou da menina, com 16 engravidou do menino...Ele era mais velho né? E muito!...O problema todo era quando a briga era aqui, ai era quando o pai entrava numa briga doida. Agora que reclamou, aí eu acho que ele vai aos poucos também né, talvez [...] Ele tem alguma expectativa de melhora para o futuro? Trabalha como pedreiro e não estuda não. Quando ela conheceu ele, ele tava estudando...Hoje tem que estudar, né [...] A mãe dele eu não conheço até hoje, já vieram aqui tudo, menos a mãe. Então não quer uma aproximação com a família. Mas ele tem mãe, pai, tudo? Têm... Conheço o pai dele...Ela é mãe solteira...O Pai dela morre de dar conselho a ela...Mas um dia ela...Ela vai ver que tá muito sentida...é por que não fez um planejamento, não se preveniu, não se organizou...Ela viu o que a teimosia dá [...]agora ela vai tomar juízo. Depois que foi denunciado este caso,

Decisão de dar queixa foi da vítima Fuga do agresssor após a denúncia Comportamento do agressor melhora depois da denúncia Solidariedade Netos criados pelos avós Reconhece a imaturidade da adolescente que é própria da faixa etária Violência na porta de casa Melhora após a denúncia

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como a senhora se sentiu? Eu senti que aliviou mais a barra para mim, não chamando a atenção das pessoas. Eu morro de vergonha, entendeu. A vizinha fica falando coisa [...] eu falo, mas ela acha que tô falando com ela. Eu tô na minha casa! Eu não posso sair daqui, porque ela [vizinha fofoqueira] tá ali. E a vizinha viu né! Nem tem como esconder. Ele chegava aí no meu da rua, todo mundo via...Mas você acha que ele ainda gosta dela? Eu acho que gosta e ela também dele, mas ela tá levando. Mas ela não vai dizer. É o medo dela, entendeu? Ela veio morar com a gente com os 2 filhos. Ela perdeu um filho lá com ele. Como foi que ela perdeu esse bebê? Sei lá! Com choque [...] tomou um choque...hum...fazer o quê!...Ninguém aqui tá à toa. Eu aqui vou lavar minha roupa, vou lavar meus pratos. Vou fazer alguma coisa dentro de casa...Mas na família dele, ele vivencia algum tipo de violência? Não que eu tenha visto. Não sei por que não conheço. Nunca sentei com a mãe dele para conversar, se eu vê-la na rua nem conheço a mulher. Só se me mostrar! Por que ele fica assim agressivo? Quem sabe? É por que ele gosta...? É! Eu nunca bati em ninguém. Não vale a pena. E a senhora nunca brigou com o seu marido? Brigar não, a gente discute né! Mas...Essa questão da violência...Só teve uma vez! Que se eu deixasse taria até hoje. A mulher faz o homem e o homem faz a mulher. Teve uma vez que ele veio para me bater, as meninas eram pequenas, a irmã mais velha dele tava aqui em casa, só vi ele vindo com um tamborete para dar na minha cabeça, foi Deus do céu que me levantou, ai eu tive a idéia, ninguém me falou (agarrou o “saco” dele). Eu ia morrer? Foi a última vez. Ele nunca mais levantou a mão para mim. Aí chamei a irmã dele. A irmã dele gostava de mim, e conversou... Ele tinha jogado a comida todo no quintal ai eu falei um negócio lá, mas não ofendeu ele e nem ele me ofendeu. Na primeira vez que ele veio

Famílias distantes Melhora de vida após denúncia do agressor, principalmente por causa da vizinhança Mãe não relata história de aborto da filha

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para me bater, eu fiz isso. O que as filhas lembram disso? Eu fiquei chorando e ela foi chamar a tia. No outro dia ele disse que não ia mais fazer isso. A única violência que teve aqui dentro de casa foi só essa. Agora discutir e [...] discutir todo mundo discute né? Qualquer casal discute. Pois é, a última que ele fez, peguei o saco dele e “rastei”. As meninas ficaram chorando, eu fiquei chorando...A comida que ele jogou fora...a gente não ia comer do lixo...O que você acha que deveria ser feito nestes casos em que o homem agride a mulher? Como a gente pode ajudar para enfrentar esse problema? Como você pode ajudar sua filha a enfrentar esse problema? Eu não sei! Ela tem que fazer alguma coisa, se ela não fizer...Você acha que depende dela? Tudo depende da gente. Ele tentou e não achou uma chance! Conte-me de bom! O que de bom você consegue passar para seus filhos de educação? De valores? Que ela deve estudar de novo, que vá para suas aulas, deve correr atrás porque o que acontecer com essas crianças, eu e o pai dela que vai...né responder! Eu quero para ela é juízo, essas coisas né! Família Oxossi. Entrevista G No dia-a-dia faço serviços domésticos, lavo, cozinho, arrumo, é... é isso aí lavar passar cozinhar. Sempre foi assim? Sempre foi assim. Na verdade eu trabalhava, mas no momento eu estou desempregada? Algo mudou no seu dia-dia? E de sua infância para cá? Não. Não mudou nada. Tem lembrança de sua infância? Era tranqüila, obediente, sempre fui obediente. Não deu trabalho aos pais? Não. A mãe não precisava chamar atenção? Não, sempre fui uma pessoa tranqüila. Conhece alguém que já esteve numa situação de violência? Como assim? Criança ou adulto? Qualquer pessoa que já teve conhecimento. Meu pai batia muito na

Violência intergeracional Experimentando a violência através do outro Violência se enfrenta com violência Estudo Quotidiano

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gente, batia muito em meu irmão e minha irmã mais velha. Por quê? Porque ele não gostava que agente saísse, porque ele tinha ciúmes da gente, não deixava conversar com ninguém, ciúme de questão de pai mesmo, não deixar solta, aí qualquer coisa ela batia, bebia, aí sempre que ele bebia, ele era violento. Ele bebia e batia. Tinha mais alguma coisa envolvida junto com a bebida que fazia ele bater? Não era só a bebida mesmo. O que você acha que leva uma pessoa a violentar outra? [silêncio]. O que motivava seu pai a bater em vocês? A ser violento? [silêncio] Você já sofreu algum tipo de violência? Não. Nem de seu pai? Ele batia em seus irmãos e não lhe batia? Ah! Sim, no caso assim, bater ele batia em mim muito não, batia menos em mim, batia mais nos meus irmãos. Porque ele batia menos em você? Era aquela questão de não querer que agente tivesse amizade, mau influência, entendeu?! Eu obedecia. Ele dizia para não se misturar com gente que não presta. Hoje em dia, até agradeço a ele, não de bater, mas de tirar agente disso, da má influência. Eu agradeço muito, tanto eu como minhas irmãs. Se não fosse ele você acha que estaria numa situação pior? Não, não é nem isso, porque na verdade como eu estava falando que eu não pensava nunca em se misturar com gente que não presta. Como no caso de minha sobrinha que os pais não querem que ela namore, mas ela acha que deve fazer as coisas que o pai não quer entendeu? Nesse caso assim. E eu já pensava diferente, eu já pensava melhor. Como é a situação de violência familiar que a adolescente passou, como você vê, a família vê? Olhe nesse caso aí já fiquei mais por fora. No caso da violência que ela teve o problema dela é que ela provocava, a vestimenta dela, sentar de pernas abertas entendeu? Ela senta de qualquer jeito, não tem uma coisa assim, não olha quem tá por perto, andava muito de toalha em casa. Ela vivia passando de toalha pela casa, ficava se exibindo

Violência Agressão física Perda da liberdade Autoridade/Poder Alcoolismo e violência Silêncio Bater Motivo da violência Naturalização da violência Rebeldia

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passando de toalha chamando o estupro. O pai reclamava. O que mais? Só isso mesmo. Se você fosse vítima de violência o que você faria para enfrentar o problema? Denunciar. Porque você acha importante denunciar? Porque eu não posso enfrentar o problema sozinha, porque de repente, a pessoa é agressiva entendeu, aí somente a polícia para resolver, eu já me sentia mais segura. Você acha que a justiça devia fazer o que? A justiça está para resolver o problema. O que você espera da justiça? Acho que eles têm que resolver. Agora ela só resolveria também se desse chance também. Não pode ficar calada, ficar ali sofrendo, sofrendo e calada. Tem que em algum momento delatar? É. Como é sua relação com seus pais? Bem. Minha relação é boa, mas meu pai eu já tinha mais medo de me abrir né, era melhor com a minha mãe, meu pai é ignorante, já, não senta para dar apoio, aí eu nunca tive uma relação aberta com ele. Como você avalia a educação de seus pais hoje? Na sua vida? Como eu falei, eu acho ótimo. Serviu para quê? Para educar, para que eu não viesse a ser uma pessoa errada, me envolver no mundo das drogas, dos vícios. O que é racismo para você? É uma mistura de negro com branco. Porque tem muita gente que é racista. Eu acho que é isso. Você acha que muita gente tem racismo, por quê? Como lhe falei que ficavam dizendo que meu filho era negro, chamava ele de negro preto, os meninos ficavam chamando de meia–noite por causa da cor. Essa moça aqui da mercearia ficava dizendo que ele era bem preto, ficava chamando de negro, tudo que acontece aí ela diz que é ele, mesmo ele não estando no meio, ela só diz que é ele, porque ela já tem o racismo já com ele. As pessoas que a ouviam chamando ele de preto, tudo dela é assim, aquele nego, preto, não sei o quê? Pela forma de falar você tira. Uma forma assim de discriminação mesmo. Eu não sei se é porque ela não

Motivo da violência comportamento da Adolescente Importante denunciar A violência é caso de polícia Importante denunciar Relacionamento familiar Aceita passivamente a educação dos pais e o Bater Percepção da discriminação racial

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gosta dele, entendeu. Você já se sentiu discriminada alguma vez? Não. Já presenciou alguém sendo discriminado, com exceção de seu filho? Não. Como é sua relação com seu marido atual? Bem tranqüila, de vez em quando agente discute, coisa de casal mesmo, mas nunca teve violência, discussão de boca mesmo, nunca veio para cima de mim me bater. E com o ex-marido (falecido)? Agente brigava muito, ele já tentou até uma vez me esfaquear, por causa de ciúme, porque achava que eu estava com outra pessoa; meus filhos presenciaram, ele ia até no ponto para me bater, eu saía sem roupa de casa e eles presenciaram toda confusão quando o pai era vivo. Quando bebia era pior ainda. Agora só uma vez que ele fez isso. E você denunciou? Não. Porque no outro dia eu vim embora para casa de mainha e a gente se separou, aí não teve mais confusão. No dia que ele fez isso eu me separei logo. Em um dia aconteceu, no outro dia já não fiquei mais. Se você fosse se casar hoje, você se casaria com um negro? Casaria. Porque não tem nada a ver de racismo. Eu casaria tanto como negro como com um branco. Acho que não deve existir racismo. Eu sou contra o racismo. Eu acho que é tudo a mesma coisa, ninguém é melhor do que ninguém, a pessoa por fora é branca, mas por dentro pode ser pior que a gente, às vezes por fora é bonito, por dentro já tem coração ruim, entendeu. Se você fosse falar algo sobre violência o que diria para mim? Deveria ter uma maneira de evitar. Sabe como evitar? Acho que não tem, fica difícil, viu... Como vocês enfrentam os casos de violência e racismo na família? O que fazer? Eu mesmo deixava passar, dava conselho para evitar um meio de falar alguma coisa, de evitar a violência. Como você faz para evitar? Como orienta seu filho? Que não deve fazer violência com ninguém , mesmo se ele tiver sofrido, não chegar ao ponto de violentar outra pessoa. Porque o que eu não quero para ele eu não quero para ninguém, então eu

Violência é só bater Violência agressão física Motivo da violência Alcoolismo e violência Importante denunciar, mas não denuncia Discurso contra o racismo Ser branco por fora Ser bonito como o branco, mas pode não ter outras qualidades. No entanto resiste o discurso do branco bonito.

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evito assim, passando para ele que tem que evitar. E em relação à sua sobrinha que foi vitima de violência quais conselhos dá para ela? Olhe, tanto conselho que se dá a ela, mas aquela cabecinha dela...ontem mesmo saiu para dormir na casa da outra avó e nem falou a mainha onde ia dormir. Mainha botou ela para dentro, mas ela disse que ia ficar aí fora, aí ficou, mainha disse que ia fechar a porta, mas não fechou, ela demorou um pouquinho é na frente, depois foi dormir na casa da outra avó e ninguém vem aqui saber o porque dela estar indo dormir lá, porque se alguma pessoa chegar em minha casa para dormir seja lá quem for que não de costume, vou esperar a pessoa dizer porque veio dormir, eu não aceitava assim sem satisfação. No caso se ela foi dormir ela tinha que vir saber o porquê dela tá indo dormir lá. Porque elas sabem que o pai não quer que eles (os filhos) durmam mais na sua casa, para evitar falatório na rua, já que elas não tem mais mãe, para não dizerem de que ele tá pegando as filhas e pediu que as meninas ficassem na casa da avó. Aí ela sai daqui não diz onde é que está, fica difícil evitar a violência, de repente ela diz que vai dormir lá e vai para outro lugar, como é que agente vai saber? E o tio que provocou a violência sexual? Sumiu, ninguém ouve mais notícia dele não. Um dia desse ela tava querendo viajar para lá, aí meu irmão conversou com ela, ainda bateu nela por isso, mesmo assim queria ir para o mesmo local onde o tio tá, dá risada. Será que ela tem noção. Acha que não vai mais acontecer? Eu não sei se ela acha isso não, viu, porque do jeito que ela vem vindo. Acha que depois da violência ela mudou o comportamento? Não, ela continua fazendo as mesmas coisas, se não estiver pior do que o que era. Pior como? Gosta de ficar solta, quer ficar solta, agente chama para conversa, chama para dar conselho, mas ela quer ficar assim, a vontade, diz que ninguém manda

Não enfrenta violência com violência Preocupação com a vizinhança Somente vê a violência das ruas Fuga do agressor

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nela, não respeita nem mais o pai, é assim! Você acha que esse tipo de comportamento tem algo a ver com a violência que ela sofreu? Não. A revolta dela é que o pai não quer aceitar ela namorar, quer que estude e ela quer namorar, quando aceitou, disse que não queria mais...ia namorar escondido. Acho que esse comportamento dela é que a deixa nesse ciclo de violência. Eu queria saber alguma coisa sobre sua infância? Relação com pais, irmãos? Oh! Até estudar meu pai, ele não queria deixar agente estudar. Na escola dava livro ele lascava, não queria deixar agente estudar, agente estudava por causa de mainha, chegou até o tempo das pessoas na rua dizerem que ele queria a gente para ele, agente ficava com medo disso, com medo de tudo. Ele prendia muito agente, a questão de prender eu até aceito, entendeu. Você acha que está certo seu pai prender vocês em casa? Não. Porque prendendo ou não, quando tem que acontecer acontece. Não deixar muito solto, mas prender também eu não acho certo; prendendo ou não quando solta é pior. Fica curioso com o que vai ter do outro lado; quer ver. E em relação à escola? Eles (sobrinhos) faltam muito a escola, e quem falta mais é a mais velha , que falta aula para jogar bola, os outros faltam, mas não muito. E em relação aos seus filhos você bate? Bater eu bato, mas não deixo marcas, bato nele quando ele merece. Quando ele merece? Quando responde e quando procura briga na rua também. Como você bate nele? De cinto. E como não deixa marcas? Risos. Deixo aquela marca de cinto, mas não é de ferir. O que você acha que no futuro uma criança que está apanhando da mãe e do pai pode fazer com os filhos? Tem uns que quando apanha que quando o filho nasce cresce aí vai fazer à mesma coisa que já sofreu.. Só que eu não concordo. E como é que você faz para que isso não aconteça? Não pode ser como o pai de minha sobrinha que bate nela como ele apanhava do pai dele.

Comportamento depois da violência Estudar Motivo da violência Estudar Perda da liberdade Perda da liberdade Bater Naturalização da violência

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Como ele apanhava? De murro. Ele não sabe conversar? Ele conversa, mas a menina é muito cínica, a pessoa cansa. Não é certo como ele bate, mas é por causa dela mesmo, ela provoca esse tipo de situação. Ele bate nela de murro porque quando era criança ele apanhava de murro. É mesmo? O pai dele sangrava a boca dele, o nariz. Por quê? No caso ele desobedecia. Jogava bola na rua, ia para praia vender e deixava a mercadoria em um lugar e ia brincar, era ovo de codorna, aí ele perdia, porque deixava à toa para jogar bola, aí quando chegava em casa sem a mercadoria, o pai batia. Ele tinha que idade quando isso aconteceu? 16 para 17 anos. Ele ia só para praia vender, chegava lá encontrava gente jogando bola, aí pronto, deixava a mercadoria e ia brincar, chegava em casa sem a mercadoria e sem o dinheiro, aí apanhava. Então, na realidade você não concorda que faça a mesma coisa? È como eu tô dizendo violência, ele ser violentado e querer fazer com o filho o que já passou. Então, por que bate em seu filho? Você não acha que ele pode fazer a mesma coisa com os filhos dele. Mas, nem sempre, por exemplo, minha irmã mais velha foi quem mais apanhou de meu pai e ela não trisca a mão nos filhos dela. Meu pai sangrava ela toda, deixava rosto inchado, hoje em dia, ela não trisca as mãos nos filhos. Como ela faz para educar? Bota de castigo, eles obedecem ela, não são meninos de ficarem na rua, ficam mais dentro de casa. Hoje em dia minha irmã é cristã, enfrentou meu pai, porque ele batia nela, todo mundo aqui em casa é católico, até por isso ele batia. Lembra mais coisas da infância? Às vezes agente tava dormindo, ele chegava bêbado e dava com cabo de vassoura acordando meu irmão e minha irmã batendo, principalmente em minha irmã mais velha. Ele chegava tarde da noite da rua batendo. Agente apanhava, não tanto quanto eles apanhavam. Batia para não namorar mesmo. O pessoal da rua falava

Violência intergeracional Violência intergeracional Violência intergeracional Motivo da violência

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as coisas aí ele já chegava batendo, às vezes tava todo mundo dormindo e acordava assustado ele batendo. Isso acontecia mais quando? Finais de semana. Quando chegava no sábado mesmo eu já ficava como medo, eu já ficava assustada quando ele ia beber. E sua mãe? Ficava do mesmo jeito? Ele batia nela? Não. E ela batia em vocês? Risos. Batia bem pouco, só uma cinturãozada assim mesmo. Agora meu pai batia mesmo, era de murro, de tapa, é tanto que hoje eu nem escuto direito, escuto bem pouco de um ouvido de um tapa que eu tomei, ele batia em todo canto, no ouvido, aqui assim [no pescoço], teve uma vez que por causa disso minha mãe foi para o ajuizado, quer dizer assim...deu queixa dele. Ele melhorou? Ele melhorou porque ele parou de bater na agente, aí agente acabou crescendo e ele não bateu mais. Ela [a mãe] deu queixa dele e ficou dentro de casa, todo mundo dizia que ele ia matar ela, mesmo assim, ela tomou coragem e foi. O que aconteceu que fez com que ela tomasse a decisão de denunciar? Nada, ela botou isso na cabeça tomou coragem e foi. Família Oxossi. Entrevista H Como é o seu dia-dia? Eu fico assim, brincando na rua, meu pai reclama, aí minha avó fala, aí ele me bate, meu pai não deixa eu ficar na rua. Meu pai não gosta que eu saia. Só quando minha mãe era viva que eu ficava na rua. Você conhece alguém em situação de violência? Minha irmã já brigou com uma menina, por causa de uma tesoura da menina escondido, ela foi bater na menina, aí a menina foi pegar a faca para ela, aí a menina falou que ia furar ela porque ela pegou a tesoura. Como foi a violência com sua irmã? Ela tava na escada, aí minha avó mandou ela pegar água, aí meu tio chegou lá e disse para ela lhe dar água, ela disse pegue aí na geladeira, aí ele levou ela para o quarto,

Violência Agressão física Alcoolismo e violência Mãe agressora Repercussão da violência Sequelas Denúncia Mudança de comportamento do agressor Quotidiano

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jogou ela no colchão no chão e fez ousadia com ela. Aí meu pai chegou e levou ela para o médico. Como ela ficou depois disso? Bem.Sua relação com o pai e irmãos? Ah! Com a minha irmã eu brigo muito, porque eu mando meu irmão que tá na rua entrar, aí ele não me obedece por causa dela que diz vá e deixa ele na rua. Aí começa a briga. Vocês brigam por qualquer coisa? Não. Brigo mais por causa do meu irmão. O que é violência para você? Briga, tiro, para mim é violência. O que de violência você presencia? Só isso. E a violência que sua irmã sofreu por que aconteceu? Porque ela dava muita ousadia a ele [o tio]. Como assim? Ela ia para casa de minha avó de saia, deitava na rede de pernas abertas. Aí meu tio ficava olhando para as pernas dela. Ela dizia que estava de saia e o que é que tinha! E ele ficava abaixado assim oh! [coloca-se de joelhos] de olho nas pernas dela. Todo mundo ficava aconselhando ela e ela teimava em ficar com as pernas abertas. Você acha que foi por isso? Foi. Será que ele a paquerava? Humhum. Ele já paquerou você? Não. Você já sofreu algum tipo de violência? Não. Mas, meu pai me bate depois me dá carão., ele não gosta que eu brigue como minha irmã, mas ela fica me batendo, aí eu bato nela também. Ele quer que agente se una, mas ela não quer, qualquer coisa ela vem para cá me bater. Como avalia a educação de seu pai? Acho boa. Ele lhe dá conselho? Não, que ele sai para trabalhar. Quem me dá conselho é minha tia quem me fala as coisas para não ficar aprontando pela rua, para não andar com pessoas estranhas, que meu pai não quer. Minha irmã não quer obedecer meu pai, não quer obedecer ninguém, aí eu a deixei de mão...até meu pai não está falando com ela, quer dizer meu pai tá falando, mas ela não está falando com meu pai. Meu pai não quer minha irmã na lan house, porque um dia eu fui e vi filme de pornografia, por isso meu pai não quer que eu vá mais para lan house. E na

Bater amigos Violência sexual Significado da violência Causa da violência Agressor junto a vítima Comportamento da vítima Comportamento do agressor Bater Conselhos

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escola? Bem, eu falo com a pró, eu não grito, quês as meninas de lá gritam. A professora usa peruca, as meninas ficam chamando ela de peruca, eu não chamo, porque se meu pai soubesse ia me bater, era uma semana sem sair de casa de castigo.Aí como eu não faço isso, fico só com duas colegas do colégio, as meninas ficam me chamando de roçona, porque fico para cima e para baixo com as meninas que eu gosto de ficar, tá na hora do recreio as meninas ficam mais eu sentada lá na merenda.Alguma vez já foi vítima de discriminação racial? Não. De algum colega? Só um que toda vez que ele me via, puxava meu cabelo, aí eu dizia que ia falar para pró, aí ele dizia, “sua lá ela”. Aí minha tia foi na escola resolver, aí ele disse que não fez nada. O que é racismo para você? Quando alguém que é branco chama alguém de preta, minha avó diz que é racismo. Porque a menina dali é branca fica chamando agente de negro, preto. Todo mundo fala se os outros lhe chama de preto não ligue não que fica lhe discriminando porque você é morena. Qual a sua cor? Sou morena[...] Eu queria ter cabelos longos, que eu acho bonito, assim batendo nas costas. O que você acha que levam umas pessoas baterem nas outras? A violência. O que você acha da violência? Perigoso, pois aqui um dia desse teve briga, uma mulher quebrou uma garrafa e furou um menino, ela jogou a garrafa no chão aí cortou o menino, quando for procurar briga tem que procurar longe das crianças, aliás, nem perto das crianças nem longe, tem que parar é com a violência. Aqui é muito violento, todo sábado, todo domingo os caras passam aí querendo matar um. O que acha que contribui para esse tipo de violência? A polícia. Por quê? Essa semana os cara estava ali bebendo, nem estavam armados, a polícia já chegou mandando encostar batendo nos caras. Já praticou algum ato violento? Na rua não, agora em casa com minha irmã já. Só bato em alguém da rua se vir para cá

Branqueamento Cor morena Branqueamento Cor morena Tem que parar com a violência

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me bater. Meu pai fala que quando bater na rua é para voltar para casa e explicar primeiro antes que os outros venham e invente coisas. Na sua família já presenciou cenas de violência? Não. Só quando minha avó batia em meu tio quando ele cheirava pó. Ela pegou um pau para bater nele e ele saiu xingando ela. E alguém lhe bate? Não. Só meu pai e minha madrinha quando eu apronto. Porque bater não vai adiantar nada, no outro dia a pessoa está fazendo a mesma coisa. Acho que está batendo para educar. Resolve? Resolve, porque eu obedeço. Quando eu faço alguma coisa errada eu falo a meu pai e ele diz por que você fez se sabia que era errado. Ele conversa com você? Conversa. Meu pai só bate quando eu faço alguma coisa errada, bato nos meus irmãos, bato em alguém na rua, quando eu apronto. Qual a sua cor? Preta, parda, branca, amarela, você é que cor? Morena. O que é ser morena para você? Eu sou morena, se eu fosse preta eu era mais escura.E você queria ser preta? Eu queria ser de qualquer cor. Você acha que quem é preto é discriminado? É, porque as pessoas falam humhum, olhe para ali a cor daquele homem, feião, pretão. Ali no bar a mulher chama os outros de nego, preto, feio. Se você fosse vítima de violência o que faria para enfrentar a situação? Chamava a polícia. Acha que a polícia resolve? Resolve. Porque eu não procurei briga, eles que vieram para cá me bater, aí como eu não gosto de briga, eu pego e chamo a polícia para resolver.

Violência nos finais de semana A polícia é violenta Não enfrentar violência com violência Bater Violência Bater para educar Pai tem o direito de bater Branqueamento Discriminação racial Violência é coisa de polícia

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ANEXO