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Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democraciaé uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Territó-rio e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade. Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha Escola de Serviço Social, sala 33 22290-240 Rio de Janeiro, RJ

EQUIPE EDITORIALBarbara Szaniecki Giuseppe CoccoBruno Cava Sindia SantosCristina Ribas

DESIGN: Cristina RibasREVISÃO: Sindia SantosCOLABORADORES: Aukai Leisner e Susana Caló

CONSELHO EDITORIALRio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Alexandre do Nascimento, Alexandre Mendes, Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Cristiano Fagundes, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Fabricio Toledo, Gerardo Silva, Henrique Antoun, Leonora Corsini, Marcelo Castaneda, Mariana Medeiros, Pedro Mendes, Rodrigo Bertame, Rodrigo Guerón, Silvio Pedrosa, Talita Tibola, Tatiana Roque e Vladimir Santafé.

Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa Maria, Homero Santiago – São Paulo, Hugo Albuquerque – São Paulo, Jean Tible – São Paulo, Márcio Taschetto – Passo Fundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa – Curitiba, Natacha Rena – Belo Horizonte, Paulo Henrique de Almeida – Salvador, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Renata Gomes – São Paulo, Rita Veloso – Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus e Simone Parrela Tostes – Belo Horizonte.

Outras cidades: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça, Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Espanha, Matteo Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega Camacho – Bolívia, Raul Sanchez – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália, Santiago Arcos – Chile, Thierry Badouin – França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França.

Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e DemocraciaUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro: UFRJ, n. 41 – set-dez 2013

QuadrimestralIrregular (2002/2007) ISSN – 1415-86041. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura – Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação. LABTeC/ESS.

CDD 302.23306.2

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Apresentação 7Bruno Cava

EditorialEspirais pelo deserto com Mandela 11

UnivErsidadE nômadE•Nem Xenios, nem São Francisco de Assis. O milagre pertence aos pobres 17Fabrício Toledo de Souza•Ubuntu,ocomumeasaçõesafirmativas 29Alexandre do Nascimento•Cidades insurgentes 37Ricardo Gomes•AfavordeAlthusser.Notassobreaevolução dopensamentodoúltimoAlthusser 51Antonio Negri•Biopolíticasespaciaisgentrificadoras e as resistências estéticas biopotentes 71Natacha Rena, Paula Berquó e Fernanda Chagas

dossiê dEvir mEnor (org.: sUsana Caló)•Devirmenor,espaço,territórioeemancipaçãosocial.PerspectivasapartirdaIbero-América 91Susana Caló•DevirAutónomoeImprevisto: Pornovosespaçosdeliberdade 95Susana Caló•O sul também (não) existe. AarquiteturaficcionaldaAméricaLatina 103Eduardo Pellejero•ODevir-MundodasPráticasMenores 121Anne Querrien•Dionora. Para uma Arquitetura Menor 133Patricio del Real•Arquitetura,FeitiçoeTerritório.Matériaeimpulso delibertaçãonaobrabaianadeLinaBoBardi 145Godofredo Pereira

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•AberturaTrilogiadaTerra 153Paulo Tavares•ACidadeMultiforme:OcasodoIndoamericano 171Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones•Algumas Considerações acerca daPráticadoMapeamentoColetivo 185Iconoclasistas

navEgaçõEs•Odesejodomotoristadeônibus: esquizofreniaeparanoiasituadas 195Jésio Zamboni e Maria Elizabeth Barros de Barros•Proliferaroásis:porumahistóriapolitizada dodesejoedacontingência 213Pedro Demenech•Sobreasmanifestaçõesdejunhoesuasmáscaras 223Javier Alejandro Lifschitz

artE, mídia E CUltUra•Omodoartísticoderevolução:dagentrificaçãoàocupação 241Martha Rosler

EConomia E sUbjEtividadE: o aCElEraCionismo do ponto dE vista do marxismo•Apresentação 265Bruno Cava•ManifestoAcelerar:porumapolíticaaceleracionista 269Alex Williams e Nick Srnicek •Sobreoaceleracionismo 281Steven Shaviro•Oantiprometeísmoentreneoliberaisecatastrofistas 293Alberto Toscano•Umacríticahackeraomanifestoaceleracionista 299McKenzie Wark

rEsEnha•Vintecentavos:alutacontraoaumento. (deElenaJudensnaider,LucianaPiazzonePabloOrtellado) 310Por Bruno Cava

rEsUmos 315

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Apresentação

Bruno Cava

A seção Universidade Nômade deste número reforça o dossiê do ante-rior, “A potência dos pobres”, publicado na edição 40. Queremos continuar pen-sando as lutas e nas lutas, estimulado pela franja de produção de subjetividades – e não do ponto de vista do poder, isto é, objetivista e redutor das subjetividades a sujeitos fixados e identitários. Isto significa que os modos de subjetivação do pobre, do do negro, da mulher, do imigrante e de todos os resistentes-criadores que fazem a vida da cidade acontecer são assumidos como fragmentos de cons-tituição para a ação política. São fragmentos abertos e em permanente mutação e diferenciação interna, o que exige da pesquisa um constante relacionamento para se entender a realidade. Uma copesquisa.

Falar em políticas do comum significa, antes de tudo, reconhecer a exis-tência de organização, pensamento e antagonismo nesses fragmentos. Tais ele-mentos podem ser copesquisados e, então, reconfigurados como um sistema-rede, que esteja calcado nas formas de autoprodução contínua dos sujeitos e, também, no conflito urbano que invariavelmente terminam por provocar, ao resistir aos nivelamentos do poder e seus modelos majoritários. A reconfiguração das esferas de autonomia e produção, aliás, ocorre na medida em que o comum se adensa, com a multiplicação de encontros, na auto-organização própria das resistências da metrópole. É aí que a copesquisa pode aliar-se com uma cuidadosa cartografia dos focos de criatividade e resistência, mapeando um comum em formação, que é simultaneamente produtivo e conflitivo. Organizar as lutas numa política do comum, dentro desta metodologia da imanência, implica em primeiro lugar estar nelas, relacionar-se com elas – para favorecer a composição dos bons encontros, tecendo um mosaico de fragmentos, propiciando-lhes com isso interferências pro-dutivas, transições fecundas, sinergias inesperadas.

Isto difere, evidentemente, da concepção de uma cidade pensada e cons-truída desde cima. Quer dizer, da maneira como um poder constituído verticali-zado pretende pensá-la e construí-la, na transcendência própria das várias moda-lidades de soberania sobre a metrópole. Seja por meio da Cidade-Plano, em que uma suposta razão técnica desinteressada seria competente para determinar o que seja melhor para os viventes, esgotando o teor político dissensual no consenso de especialistas – sob a estrela-guia da razão pública ou do mercado (a diferença é

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de forma). Seja por meio da Cidade-Crise, em que uma (forjada) emergência de segurança pública, econômica ou caos urbano determinasse as medidas inadiáveis e necessárias de um poder central, de quem se demanda a decisão para manter a situação sob controle. Nada disso diz respeito às políticas do comum, atreladas na realidade ao pensamento e ação imanentes que o comum da metrópole potencia.

É aqui que o dossiê Devir menor, organizado por Susana Caló especial-mente para este número da revista, dá uma contribuição de relevo. Devir menor, vale desde já adiantar, não equivale a dizer “pequeno”, “marginal” ou “subalter-no”. Trata-se, na esteira da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, de um modo de pensar e agir que não está baseado num eixo de dominação, com iden-tidades e sujeitos perfeitamente acomodados na ordem existente do capitalismo hoje. Tomemos o exemplo da favela. Não se trata apenas de repensar a favela a partir da própria favela, e não dalgum Plano superior, que preferisse substituí-la por conjuntos habitacionais públicos (visão publicista) ou por condomínios fecha-dos e bairros supervalorizados (visão privatista). Não se trata simplesmente disso, o que meramente criaria um novo sujeito, – a “favela” – passando por cima de vá-rias modulações e estraficações, em constante atrito e disputa, por dentro da pró-pria favela, e entre favelas distintas. O caso é, com efeito, compreender da favela como um fragmento vivo de pensamento e ação, que permita repensar (e lutar) não somente a favela, mas a cidade como um todo em transformação – a política do comum, neste caso, é afetada por um devir-favela. Não é que a cidade tenha de virar uma favela, o que seria novamente cair na lógica de sujeitos e identidades. Mas, sim, mas que o fragmento vivo da favela qualifique transversalmente, com poder de contágio e interferência, a política da cidade.

Este raciocínio pode ser estendido a outros exemplos. Os camelôs já contêm em sua própria forma de vida, um pensamento e uma ação implicados que, fragmentariamente, podem reconfigurar o trabalho metropolitano. O devir--camelô transforma a ocupação do espaço público e sua tecnologia de valorização capitalista, mais do que simplesmente caracteriza o que o camelô faz. E assim por diante: o devir-negro não serve apenas para pensar o negro, mas destruir a sociedade racista; o devir-mulher igualmente não recria melhor a mulher, mas o próprio homem, desconfingura o patriarcado.

Tudo isso, uma recomposição da cidade a partir dos devires menores, não significa o fim da arquitetura, mas a sua reinvenção dentro de uma ecologia radical de vivência do urbano, como escreve a organizadora do dossiê, Susana Caló: “um entendimento menor das práticas do espaço abre possibilidades para a emergência de formas de viver e de habitar mais democráticas”.

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Na última seção, chamada Economia e subjetividade, este número apre-senta quatro textos ao redor do aceleracionismo marxista. Em maio do ano passa-do, foi publicado o Manifesto Aceleracionista, por Nick Srnicek e Alex Williams. Com ânimo de polêmica, incendiou principalmente as redes e blogues com um debate sobre grandes modelos econômico-políticos. O manifesto critica especial-mente as concepções neoliberais, para quem a aceleração do fluxo de capital é um bem em si, e as neomalthusianas, para quem é preciso frear o capital evitando a catástrofe.

O desdobramento dessa discussão, que em dezembro passado rendeu um simpósio em Berlim organizado por Matteo Pasquinelli, nos permite retomar a crítica da economia política, na acepção marxista do termo, para discutir tópicos relevantes como a relação entre meio ambiente e luta de classe, (de)crescimento e desenvolvimento. Em síntese, o aceleracionismo segue às últimas consequências uma sugestão de Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo. Se o capitalismo se realizou historicamente como um motor de contínua desterritorialização, a fim de subme-ter os processos biopolíticos à axiomática do capital, nesse processo existe uma tendência de esquizofrenia intrínseca. É que o capital não pode acomodar em seu funcionamento a desterritorialização descontrolada, na medida em que precisa canalizar e acumular a produtividade, cada vez maior, dos fluxos produtivos. Ao mesmo tempo em que necessita do desejo para continuar abrindo mercados, – isto é, para drenar a riqueza extravasante da produção de subjetividade em campos sempre novos, diferenciados; – o capitalismo tem de manter o desejo sob controle, colonizando as subjetividades para que não formem um comum autônomo. Este, por sua vez, poderia assumir politicamente o processo, dispensando o parasitismo do capital.

Por um lado, isto implica a necessidade de o capital providenciar uma contínua sofisticação dos mecanismos de controle, por exemplo, com as tecnolo-gias do pós-fordismo (financeirização, flexibilização, autoempreendedorismo, ca-pitalismo 2.0 de redes ), ou então os dispositivos da sociedade de controle (Gilles Deleuze). Por outro lado, contudo, significa também a latência de uma esquizofre-nia que pode conduzir a relação social do capital ao colapso, se a multiplicidade puder organizar-se politicamente, e conferir autonomia a instituições que hoje o capital condiciona e domina. É possível libertar, de dentro dessas institucionalida-des, novas instituições, ou instituições do comum (Antonio Negri).

O aceleracionismo, portanto, é a aposta que a aceleração do processo desterritorializante engendra as condições sociais e econômicas que precipitam também seu o colapso. Esta precipitação tem a velocidade com que o comum

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possa se auto-organizar nas bacias do trabalho vivo, e nas redes de produção de experiências de autonomia – se tornando assim cada vez menos controláveis e exploráveis, cada vez mais ricas em sua autovalorização. Em vez de algum deter-minismo de que a catástrofe seja inevitável, ou que o capitalismo seja inevitável – isto implica organizar as lutas e elaborar uma política do comum sem passar pelo decrescimento econômico, a “política da lentidão” ou alguma supostamente correta regulação do processo do capital segundo propósitos humanistas.

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Editorial: Espirais pelo deserto com Mandela

Nelson Mandela morreu e os chacais da ordem já começaram a enterrar os ossos. O líder negro promoveu campanhas de desobediência civil, contestou diretamente o estado racista e, numa conjuntura de sufocamento político, chegou a pegar em armas. E por isso foi perseguido, execrado, torturado, encarcerado por 27 anos. Mas não é esse o Mandela incensado pelos grandes meios de comunica-ção quando de sua morte. Preferem o Mandela conciliador, aquele que teria supe-rado velhos rancores e promovido a igualdade racial sobre as bases perfeitamente pacificadas do capitalismo, como se o seu objetivo maior fosse realizar a igual-dade de todos perante a Lei. Dessa maneira, preferem um cadáver de Mandela, o Mandela das belas almas que, no máximo, buscam perfumar-se com o cheiro de engajamento. Preferem negar-lhe a história, silenciar a boca atrevida, fechando-a às lutas de hoje, – preferem isso a reconhecer o caráter constituinte de uma vida plena de conflito, irresignação, imaginação e ações diretas.

O Tata Madiba, – o Mandela dos negros, pobres, militantes e todos aque-les que lutam pela democracia racial real, – esse será preciso recordar por outras vias, nas revoltas, levantes, nas multidões mobilizadas num novo ciclo global de lutas. Daqui por diante, cada gesto deve ser a reafirmação de propósito de libertar Mandela – agora das unidades de pacificação do pensamento, que ainda insistem em matá-lo de novo e de novo.

Não estamos distantes das lutas de Mandela. O Brasil também é um tipo de República Voortrekker. Sempre fomos racistas. O mito do bandeirante forjou nestas terras tanto o projeto colonial de conquista e submissão das raças bárbaras, quanto a farsa do “mestiço”, segundo o que cabe ao mestiço erguer o braço arma-do pelo poder contra os insurgentes, e realizar em seu nome as maiores “malda-des” civilizatórias. Os bandeirantes eram engrossados pela figura do mameluco paulista – o valente desbravador dos sertões sem fim, caçador de índios e destrui-dor de quilombos, glorificado pelo cronicário nacionalista.

Segundo Darcy Ribeiro (1995), a “subraça” dos mamelucos exerceu um papel primordial na protounificação da nação. Fabricada no ventre das índias pela violência sexual branca, ela vinha ao mundo irremediavelmente amaldiçoada. A maldição advinha de uma dupla rejeição: dos pais europeus, por serem filhos de

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índia; dos índios, por terem pai branco. Aos mestiços mamelucos, o poder colo-nial concedia a chance de redenção pela via da violência civilizatória: empunhan-do a bandeira da Coroa, levantando armas em nome do projeto de dominação branca, os mamelucos poderiam purgar-se do “mal de origem”. Eram dotados, assim, de carta branca para oprimir as “raças inferiores”, recebendo como con-trapartida o reconhecimento e a inclusão, embora subalternos, na ordem social da colônia. Desse modo, a miscigenação era reapropriada pelo poder colonial. Criava-se a zona intermédia das “subraças”, cujo direito de existência e orgulho próprio tinham de ser forjados sobre a superioridade e a violência civilizatória contra as “raças inferiores” (os índios, ditos “negros da terra”). Assim funcionou, já no século XV, a primeira versão das forças policiais no Brasil.

De fato, a miscigenação, embora incontornável para povoar o continente e torná-lo economicamente viável, foi desde a colônia encarada como uma grande ameaça à sociedade escravocrata. Foi objeto de grandes preocupações por parte das forças da metrópole e, segundo uma gama de estratégias e tecnologias de poder, sucessivamente refuncionalizada. Isto se realizou mediante a modulação do racismo. Em vez de um racismo “tudo ou nada”, na formação da sociedade brasileira o racismo criou escalas detalhadas e hierarquias complexas, lançando mão de todo um gradiente entre as elites brancas e o escravo. Essa modulação não só serviu para melhor controlar os fluxos e estriamentos decorrentes da mis-cigenação1, como também foi usada para impedir a dissolução da desigualdade racial, plantando-a no núcleo do que se entende por “social”. Dessa especificada da colonização brasileira, se pode entender a existência de uma figura como a do capataz, o negro menos negro, o “mestiço” que põe a crueldade a serviço dos senhores brancos para frustrar o direito de fuga, a recusa ao trabalho e o quilom-bismo. A figura do “capataz”, na história do Brasil, reaparecerá insistentemente, desde funções mais subalternas exercidas no controle social de favelas, até altos cargos da República. Um fenômeno que não deixa de provocar perplexidade até hoje. Em tempos de rolezinhos e mobilizações de periferias e favelas, se veem autoridades, policiais, seguranças privados reprimindo, – não sem infame orgulho próprio, de vez em quando com furor assassino, – os próprios negros com quem compartilham da condição.

1 Vale retomar o debate transversal sobre miscigenação e democracia, publicado na Revista Global n.º 10, p. 6-12. Disponível em <http://issuu.com/globalbrasil/docs/global_10>. Ver, também, o artigo A potência da hibridação – a creolização e Édouard Glissant, por Leonora Corsini, a esta revista em seu número 25-26. Disponível em: http://tinyurl.com/l35n4dn>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2014.

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Tudo isso entra em disputa e se torna instável, quando outra miscige-nação – aquela acelerada pelas lutas, pela produção do comum – reconfigura o cenário do conflito de classe no Brasil. Nas ruas, as pessoas experimentam um tempo de densidade poucas vezes igualável, um tempo aberto à inovação demo-crática. As estruturas e mediações racistas são ameaçadas por uma democracia afirmada para além da velha representação. Como noutros momentos críticos, o poder constituído precisa fechar a história. Apaziguar as narrativas de luta e neu-tralizar os devires. E não é só a direita a temer a multidão. Formou-se no país uma “esquerda antiprotesto”. Alternando entre esquerdologia e direitologia, dedica-se de maneira orquestrada a enterrar os Mandelas – anônimos, menores (e nem por isso pequenos ou pouco significativos, muito pelo contrário...) – que povoam o levante da multidão.

Nesse objetivo, os representantes da “esquerda antiprotesto” reativam toda a parafernália de origem colonial de que é feito o estado bandeirante brasilei-ro. E não perdem o sono por isso. Põem os mamelucos pra trabalhar, substituindo a sua própria impotência em fazer multidão pela chancela de um poder racista, que agora os protege. Invocando genéricos apelos a um governo at last para o povo, essa esquerda se apresenta, ela própria, como partido da ordem2, – e parece querer assim ser reconhecida. Assim, sem qualquer vergonha. Seus argumentos, elevados ao histriônico por uma rede mercenária de sites e blogueiros, não soam apenas como palavras. São também ameaças – e será prudente, para todos os fins de estratégia e tática, que as recebamos dessa maneira. É preciso prontidão ante o tremor da vara que, se por um lado sinaliza o medo, por outro anseia por firmar--se descendo na carne alheia – em geral, do mais vulnerável: o manifestante, o camelô, a favela, o sem teto, o pobre.

A Copa do Mundo se acerca de corações e mentes, um pouco antes das eleições para presidente, governador, senador e deputado. O tempo contrai e ganha em espessura, na medida da proliferação de protestos, catracaços, rolezinhos, bem como da formação de outras redes e lugares de auto-organização e autonomia. Enquanto isso, o partido da ordem cerra fileiras, nomeia o inimigo público, caça a contingência, persegue as dissidências. Querem uma Copa da repressão, em vez da Copa dos direitos que as manifestações prefiguram. Precisam instituir-se como Uno, – largo consenso entre esquerdas e direitas, chamado “ordem” – na unidade coagida pelo estado, ao redor da estabilidade econômica e do futuro da nação, seu progresso e prosperidade propagandeados, assim como da moral e “orgulho de ser

2 Ver, a esse respeito, o editorial do número anterior, “O PT se tornou um partido da ordem e pela ordem?”

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brasileiro”. Porém, a terra prometida não chega. No Rio, os serviços continuam péssimos: nalguns bairros, a água falta por semanas, a luz vacila, o atendimento médico “público” ou “privado” escasseia, o transporte “individual” ou “coletivo” (o trânsito, os trens, os ônibus) é um moinho de gastar gente, a mobilidade urbana como um todo é uma quimera, a situação da moradia (supervalorizações, remo-ções, despejos) um colapso.

Onde está o legado da Copa? Não apenas nos bolsos dos patrocinadores, empreiteiros, grande mídia corporativa, cartolas do futebol e da FIFA, faturando bilhões e bilhões nas costas do dinheiro usurpado de todos nós. Está, sobretudo, no reforço de um estado racista, cego para a democracia, e que vem extremando a sua vontade de ordem numa pacificação cuja paz não passa de guerra institu-cionalizada de consciência tranquila. Vê-se aí o legado que o poder constituído ambiciona: a erradicação do dissenso e das alternativas constituintes, um poder tolerante somente de discordâncias de mentirinha e falsos Mandelas.

Outro Mandela que importa, Huey P. Newton, escreveu que “o deserto não é um círculo, mas uma espiral. Quando passamos por ele, nada será como antes.” PhD com uma tese sobre a repressão do movimento nos Estados Unidos, o militante dos Panteras Negras nunca parou de agir e organizar. Com a sereni-dade de quem continua a se expor ao medo porque sabe que, só assim, se podem atravessar desertos.

Referências

CORSINI, Leonora. “A potência da hibridação – a creolização e Édouard Glissant”. In Revista Lugar Comum, n. 22-23, Rio de Janeiro, Universidade Nômade, p. 211-221.NEWTON, Huey P. I am we, or revolutionary suicide. Disponível em: <http://www.nathanielturner.com/revolutionarysuicide.htm> RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. UNIVERSIDADE NÔMADE (debate coletivo). “Debate sobre mestiçagem”. In Re-vista Global Brasil, n. 10, Rio de Janeiro, Universidade Nômade, dezembro de 2010, p. 6-10. Disponível em <http://issuu.com/globalbrasil/docs/global_10>

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Universidade nômade

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LUGARCOMUMNº41,pp.17-

Nem Xenios, nem São Francisco de Assis. O milagre pertence aos pobres

Fabrício Toledo de Souza

“Os gregos são estúpidos. Eles colocaram arame farpado em seu sol”3.

O ano de 2013 foi terrível para os imigrantes e para os refugiados. O mundo tem sua pior crise humanitária das últimas décadas graças aos conflitos na Síria (e à crise nos países vizinhos para onde os sírios fugiram) e convivemos ain-da com os antigos conflitos que continuam a expulsar gente de suas terras, como a interminável guerra no Congo Democrático. Para os imigrantes que fogem da miséria e das consequências das crises ambientais e econômicas, a situação é igualmente grave. Os homens e mulheres que se dispuseram a procurar proteção em outros países foram vítimas de morte por afogamento, fome ou sede, foram vítimas de assassinatos, sequestros, estupros, extorsões ou trabalho degradante.

Somente na primeira quinzena de outubro de 2013, cerca de 400 imigran-tes morreram no Mediterrâneo, tentando chegar à pequena ilha de Lampedusa, rota incerta e insegura para o paraíso europeu. Em menos de 10 dias, foram dois incidentes, que vitimaram principalmente mulheres e crianças. No primeiro, 366 imigrantes morreram, depois que o barco lotado com mais de 500 pessoas foi tomado pelo fogo. No segundo, dias depois, 34 cadáveres foram encontrados no mar, e 200 pessoas foram recolhidas com segurança.

As autoridades italianas responderam aos incidentes: mandaram à prisão o suposto responsável pelo “tráfico” dos imigrantes. O jovem tunisiano foi apon-tado ainda como autor do incêndio que provocou o desastre. Quanto ao segundo incidente, diante da comoção pública, o governo italiano decidiu dar cidadania aos mortos e liberou ajuda financeira para os serviços de acolhimento a refugia-dos. Em relação aos sobreviventes, a comoção pública não os livrará do rigor da lei, o que significa, na prática, em detenção deportação e imposição de pesadas multas.

3 Frase de um imigrante argelino preso em um centro de detenção na Grécia. In “Imigrantes detidos na Grécia relatam abusos em ‘Nova guantánamo’”. Le Monde, 26/08/2013.

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18 NEMXENIOS,NEMSãOFRANCISCODEASSIS.OMILAGREPERTENCEAOSPOBRES

O que se descobriu depois é que a trágica rota pelo Mediterrâneo inclui uma prévia passagem pelo inferno: antes de conseguir embarcar, os imigrantes haviam sofrido terríveis violências na mão de milícias e atravessadores. O nau-frágio e as mortes no mar fizeram da tragédia a oportunidade para que os sobrevi-ventes contassem os horrores pelos quais passaram até chegarem ao mar. Na mão das quadrilhas fazem funcionar as rotas de imigração, eles foram submetidos a torturas, humilhações e violência sexual. Garotas foram seguidamente estupradas por vários homens, e aqueles que não tinham bens suficientes para entregar aos milicianos foram espancados.

Ainda que alguns poucos vilões paguem pelo mal que fizeram, é sobre as costas dos próprios imigrantes que pesam as restrições físicas e legais cria-das pelos países europeus. Não era preciso esperar que as conclamações do Papa Francisco para se convencer de que o Mediterrâneo se tornou um enorme ce-mitério justamente por causa das políticas terrivelmente restritivas da Europa. A propósito, seria mais apropriado, em vez de cemitério, dizer que o Mediterrâneo transformou-se em uma grande “vala comum”, seguindo assim a tradição dos ge-nocídios monumentais. Enfim, a vergonha de ser um homem atravessa os tempos, os mares e os desertos.

Não é ilógico ou irracional, contudo, que o governo italiano tenha con-cedido cidadania aos imigrantes que morreram na travessia do Mediterrâneo. Afi-nal não há vítima mais inocente do que uma vítima morta. Aos que sobrevivem, resta a Lei, que pode significar a detenção e posterior deportação. Reconhecer os mortos preserva o sentimento de repulsa aos imigrantes, sem grandes riscos para a consciência e sem maiores danos políticos. O fato, porém, é que este procedi-mento, por vezes disfarçado sob eufemismos ou sob o discurso humanitário – a vida sempre diminuída a uma abstração – é a declaração de guerra aos pobres. Só isso pode explicar que em pleno século XXI pessoas ainda tenham que passar por sofrimentos tão terríveis.

As mortes no Mediterrâneo não foram, contudo, capazes de amedrontar outros imigrantes, que continuaram se arriscando na travessia. No dia seguinte ao último naufrágio, diversas operações interceptaram mais de mil imigrantes no mesmo local. E tudo indica que as tentativas e as tragédias devem continuar, so-bretudo com a atual crise na Síria, somando ainda mais cadáveres aos milhares já sepultados sob as águas do Mediterrâneo. Somente em 2013, foram 900 mortos. Nos últimos 25 anos, foram cerca de 20 mil, segundo cálculos da Organização Mundial de Imigração. Ainda em 2013, 10 haitianos se afogaram nas Bahamas, quando o cargueiro em que se encontravam virou no mar. Cerca de 100 outros

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imigrantes haitianos foram resgatados e tudo indica que tentavam chegar na Amé-rica do Norte.

Se o cálculo de mortos leva também em conta os que pereceram em fron-teiras secas, o cenário é de terror. O que dizer então sobre a lenta e terrível morte de 87 pessoas no deserto do Níger, em outubro de 2013? Desamparados no meio de deserto depois que os dois caminhões que lhe serviam de transporte quebra-ram, os 87 imigrantes morreram de sede e fome, embaixo de um sol escaldante. Sete homens, 32 mulheres e 48 crianças foram encontrados em um raio de 20 quilômetros, em pequenos grupos, sob árvores ou debaixo do sol. Crianças com as mães ou crianças sozinhas. Foram necessárias sete horas para encontrar todos os corpos. O terror absoluto.

No Saara, em duas décadas, morreram cerca de mil e quinhentas pes soas. E há ainda os 5 mil mortos na fronteira entre México e Estados Unidos nos últi-mos 15 anos, aos quais se juntam dezenas de milhares de desaparecidos. Somente em 2010, 11 mil imigrantes foram sequestrados enquanto tentavam chegar aos Estados Unidos.

Para os refugiados, a despeito das regras internacionais que determinam aos Estados que deem a proteção necessária, a situação é igualmente dramática. Homens, mulheres e crianças fogem dos bombardeios na Síria, dos estupros e do recrutamento forçado no Congo Democrático, dos tiros em Mali, explosões no Afeganistão, Paquistão, República Centro Africana etc. Somente da Síria saíram mais de 2 milhões de pessoas e calcula-se que em 2014 serão 4 milhões. Quanto ao Congo, apesar da nova missão da ONU, a primeira com “permissão especial para adotar qualquer medida necessária”4, não há qualquer expectativa de paz duradoura.

Para aqueles que conseguiram fugir, é difícil dizer que tiveram sorte. É comum que os países vizinhos impeçam a entrada dos refugiados ou os devolvam ao lugar de origem. Um número significativo de sírios está sendo barrado na Jor-

4 Depois de sucessivos ataques de grupos rebeldes principalmente na região leste do país, o Conselho de Segurança da ONU criou, em março deste ano, uma “brigada de intervenção”, com autorização para “neutralizar” grupos armados, impedir ataques a populares e usar “todos os meios necessários” para neutralizar grupos rebeldes como o M23 (Movimento 23 de março) – que havia tomado a cidade de Goma, em Kivu Norte – o FDLR (Forças Democráticas para Libertação de Ruanda) e o LRA (Exército de Resistência do Senhor), e ao menos outros quatro grupos rebeldes locais e internacionais que operam especialmente no leste do país. Na prática, isso significa que o Departamento de Missões da Paz da ONU criou uma estrutura que permite ofensivas militares mais robustas no âmbito de uma missão de paz convencional, sem ferir a legislação e os princípios das Nações Unidas.

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dânia (destino de 500 mil destes refugiados) e muitos deles estão sendo detidos no Egito (onde já vivem cerca de 125 mil). Entidades internacionais de direitos hu-manos, como Human Rights Watch e Anistia Internacional denunciaram, no final de 2013, o tratamento que os sírios recebem em alguns países. Importante lembrar que o conflito na Síria já é considerado o pior desastre humanitário das últimas décadas: um terço da população já deixou suas casas. Dentre os dois milhões de refugiados, há uma grande proporção de crianças, que fugiram de uma guerra que já deixou 115 mil mortos.

Até novembro de 2013, cerca de 300 sírios estavam detidos no Egito, depois que 1.500 deles foram abordados quanto tentavam migrar para a Europa em barcos. A falta de segurança – inclusive econômica – e a crescente xenofobia no Egito é o principal incentivo para que os refugiados busquem proteção em outros países. As autoridades egípcias querem processar os refugiados sírios sob acusação de imigração ilegal, mas a maior preocupação das entidades de prote-ção a direitos humanos é a condição a que estão submetidos os refugiados: os alojamentos da delegacia onde eles estão detidos é tão apertado que as pessoas estão acomodadas umas sobre as outras ou mesmo em pé, dividindo um único banheiro e um só chuveiro. A fim de evitar a detenção indefinida, alguns dos refugiados concordaram em assinar declarações comprometendo-se a deixar o país por conta própria.

A violência contra os sírios tende a piorar. Forças militares egípcias che-garam a disparar contra um barco que transportava entre 170 a 200 sírios e pales-tinos que vivem na Síria, matando duas pessoas. Pouco depois deste incidente, um barco com sírios afundou, matando 12 pessoas e deixando muitos desaparecidos, principalmente idosos e crianças.

Na Bulgária, as autoridades vão gastar cinco milhões de euros para a construção de um muro de mais de 30 quilometros na fronteira com a Turquia, onde, a propósito, chegam muitos dos refugiados sírios. Eles temem que o número de refugiados ultrapasse os atuais 6 mil e alcance a marca de 10 ou 20 mil nos próximos meses. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) anunciou uma nota conclamando os governos da Bulgária, da Grécia, da Turquia e do Chipre que investiguem denúncias de devolução ilegal de sírios para o país de origem.

A crise síria, a crise dos refugiados e a crise financeira fizeram da Grécia uma brecha para a entrada de refugiados e imigrantes na Europa e isso afetou duramente a política de reconhecimento de refugiados. Dos 10 mil pedidos de re-fúgio feitos entre 2007 e 2011, apenas pouco mais de 1.200 conseguiram o status.

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Enquanto aguarda a decisão ao seu pedido, o solicitante pode ficar detido por um ano. Para os imigrantes, a detenção pode se estender até 18 meses.

Mesmo tendo sido condenada onze vezes pelo Tribunal Europeu de Di-reitos Humanos por causa das condições em que estão detidos os imigrantes, a Grécia mantém uma política abertamente violenta contra eles, incluindo situação degradante de detenção e “caçada” para captura dos imigrantes. A última acusa-ção contra o país, em agosto de 2013, se deve ao fato de que a polícia lançou uma caçada para capturar os imigrantes que escaparam do centro de detenção próximo a Amygdaleza. Os imigrantes fugiram do centro depois de uma rebelião, que se iniciou quando os 1.200 imigrantes souberam que sua detenção se estenderia para além dos 12 meses previstos.

No centro de detenção, protegido por cercas e arame farpado, os imigran-tes compartilham dormitórios (70 a 80 pessoas em cada um) e podem caminhar apenas duas vezes por dia. O chuveiro está disponível 90 minutos por dia e há um número considerável de pessoas sofrendo com transtornos psíquicos, que se agra-vam com as condições da detenção. Nas palavras de um africano que vive atrás das grades, o centro é “uma nova Guantánamo”5.

Há cerca de mil imigrantes neste centro – que, na realidade, é um acam-pamento militar – e a maioria foi detida em meados de 2012, quando o governo grego lançou a operação “Zeus Xenios”, o deus da hospitalidade que habitou a vida dos heróis de Ilíada e Odisseia. O representante da Anistia Internacional, que esteve no centro junto com outras entidades de direitos humanos e também com o Comissário de Direitos Humanos do Conselho Europeu, ficou surpreso: “mal podíamos acreditar que ainda estávamos na Europa”. Um argelino, talvez menos envergonhado de sua condição humana, denunciou o triste destino da política europeia: “os gregos são estúpidos. Eles colocaram arame farpado em seu sol”.

A política restritiva e repressiva da Grécia não é, contudo, uma exceção; ao contrário, segue a tendência que parece geral em todo o norte do mundo, com variações e diferentes modulações. Em Londres, por exemplo, as autoridades que-rem obrigar os médicos e os bancos a denunciar os imigrantes indocumentados. O objetivo da nova lei é, de acordo com Theresa May, uma conservadora que assumiu o Ministério do Interior, “criar um entorno realmente hostil para os imi-grantes ilegais”6.

5 Imigrantes detidos na Grécia relatam abusos em ‘nova Guantánamo”, Le Monde, 26/08/2013.

6 Londres obligará a médicos y banqueros a delatar a los imigrantes ‘sin papeles’. Legalcity, 28/10/2013.

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Para conseguir isso, as autoridades pretendem formar um exército de de-latores, formado por médicos, banqueiros e sacerdotes, de forma a dificultar a vida dos imigrantes, excluindo-os da possibilidade de acesso aos serviços médicos, serviços bancários ou a um matrimonio que possa, enfim, legalizar sua situação no país. O efeito destas medidas restritivas, segundo creem as organizações humani-tárias que trabalham no país, é a precarização cada vez maior dos imigrantes, que terão que pagar ainda mais por habitações insalubres, sofrerão com agravamento das enfermidades e aceitarão qualquer tipo de trabalho para conseguir ainda me-nos dinheiro. Ninguém parece realmente crer que eles irão embora.

A outra dimensão da nova lei é facilitar a deportação, diminuindo a defe-sa dos imigrantes. Se antes havia 17 hipóteses para apelação contra a ordem de de-portação, a nova lei prevê somente quatro, todas elas dentro da nova perspectiva de “deportar primeiro, apelar depois”. Se o imigrante não corre risco de um dano irreversível, ele deve ser devolvido. Esta é a política oficial da deportação. Carta-zes espalhados pelos subúrbios de Londres incluem frases como “vá para casa ou arrisque-se a ser detido”. É nos subúrbios da cidade que são feitas operações de identificação de imigrantes indocumentados, incluindo divulgação de mensagens pelo twitter com fotografias de suspeitos7.

Indivíduos de “pele escura” são os principais alvos dos agentes de imi-gração, que abordam os “suspeitos” nas estações de metro e trem. Apesar das rea-ções críticas, algumas bastante duras, comparando as ações do governo britânico com as práticas nazistas, David Cameron, Primeiro Ministro do Reino Unido, anunciou que as alterações nas leis de imigração – com mais restrições aos bene-fícios sociais e serviços de saúde – são prioridade de seu governo.

Notícias sobre discriminação contra imigrantes podem ser encontradas em toda a parte da Europa. Na França, o célebre caso de Leonarda Dibrani, uma estudante de 15 anos, de origem cigana, deportada com a família para o Kosovo, é somente um exemplo. Dibrani foi detida em uma excursão escolar, diante dos colegas de classe. O caso ganhou publicidade, dividiu o governo do presidente socialista François Hollande e fez as autoridades recuarem um pouco. Dibrani não aceitou retornar à França sem a família, que já vivia no país há quase cinco anos, teve três pedidos de asilo recusados e esperava poucos meses para conseguir a residência legal.

Não é apenas a retórica contra a imigração, contra os imigrantes e refu-giados que assusta. Realmente assustador é que a retórica está acompanhada de

7 Campanha contra imigração sem documentos gera acusações de racismo no Reino Unido, O Público, 02/08/2013.

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legislações mais duras, policiamento mais rigoroso, arbitrariedade e violência. Assustador é também a indiferença em relação às mortes e aos mortos. Sabemos, contudo, que a gestão capitalista dos pobres se traduz, de um lado, em restrições, controles de fluxos, precarização a vida, mas, no limite, significa também tortura, escravidão, morte, guerra ou genocídio. Ou tudo junto.

Se o glorioso Xenios parece definitivamente sepultado em algum humil-de cemitério europeu ou talvez afogado no Mediterrâneo, a novidade pode ser a ressurreição de São Francisco de Assis, o santo dos pobres. O Papa Francisco – que adotou o nome em referência e homenagem ao Santo – esteve em Lampe-dusa, onde rezou pelos mortos e denunciou a indiferença “em relação àqueles que fogem da escravatura e da fome para encontrar a liberdade e encontram a morte”. O Papa Francisco – o primeiro jesuíta e o primeiro sul-americano a tornar-se Papa – mais de uma vez criticou a indiferença com os pobres; mas ele parece ter ido um pouco além da tradicional retórica católica quando afirmou que não era mais possível “confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”8.

Polêmicas a parte, o Papa nos interessa como um pretexto para falar so-bre os imigrantes e refugiados no Brasil. Sua visita em julho de 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude, foi acompanhada de importantes acontecimentos no Rio de Janeiro. O primeiro, é que a Jornada Mundial da Juventude permitiu a entrada no Brasil de muitos estrangeiros que normalmente não conseguiriam o visto. Dentre eles, um número significativo de pessoas perseguidas em seus países, justamente por motivos religiosos, como é o caso de alguns paquistaneses cristãos que foram duramente perseguidos por grupos muçulmanos, extremamen-te violentos.

A Jornada facilitou a concessão de visto a africanos de vários países, incluindo República Democrática do Congo, Serra Leoa, Benin, Togo, que nor-malmente enfrentam grandes dificuldades nas embaixadas brasileiras. O pequeno “milagre” que a visita do Papa realizou não foi apenas ajudar os perseguidos a chegar ao Brasil, mas dar visibilidade à política seletiva das embaixadas brasilei-ras na emissão dos vistos. Diante da gravidade da crise na Síria, da violência no Congo ou da perseguição religiosa no Paquistão, as embaixadas mantêm enormes obstáculos e exigências, inviabilizando a concessão do visto. O problema virou tema de debate no Comitê Nacional para os Refugiados, que acabou editando uma Resolução (Resolução Normativa 17) com o objetivo de facilitar o visto para

8 Leonardo Boff. “O Papa Francisco e a economia política da exclusão”, publicado em 12/12/2013, disponível em http://leonardoboff.wordpress.com/2013/12/12/o-papa-francisco-e-a-economia-politica-da-exclusao/ (último acesso em 15/12/2013).

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os sírios. Ainda que a Resolução por ora facilite apenas a fuga dos sírios – um relevante avanço diante do contexto – foi possível colocar em evidência um dos principais obstáculos para a chegada de refugiados no Brasil.

O outro “milagre” que a visita de Papa Francisco realizou é ainda mais interessante: o aumento repentino do número de solicitantes de refúgio no Rio de Janeiro durante a Jornada (e nos meses imediatamente antecedente e subsequen-te) foi compensando pela oferta de doações e outras formas de ajuda, inclusive de lugar para dormir e viver. Em vez de disputar vagas nos abrigos da prefeitura – sempre lotados, precários e insalubres – os solicitantes de refúgio receberam ajuda de pessoas sensibilizadas com as palavras do Papa. Muitos católicos – e não católicos – acolheram os peregrinos estrangeiros durante a Jornada e estenderam a hospitalidade aos perseguidos.

Há muitas belas histórias a serem contadas sobre isso – desde a histó-ria dos evangélicos que ofereceram acolhimento a paquistaneses católicos, até a história do garoto cego que dá aulas de português a uma família de iranianos. A solidariedade dos brasileiros, neste caso, não parece motivada apenas pela iden-tificação religiosa ou pela compaixão piedosa. É a solidariedade criativa dos po-bres, que estão sempre inventando suas próprias redes e práticas de cuidado. As redes de cuidado, colaboração e cooperação são, de fato, a única solução que existe para eles, uma vez que não há qualquer política pública, em qualquer nível ou esfera da administração, que possa verdadeiramente receber este nome. Ao contrário, aos imigrantes e refugiados a vida é ainda mais precária que a dos po-bres nascidos no país. Basta ver a situação absolutamente precária e degradante em que vivem os haitianos que chegaram ao Acre, os bolivianos que trabalham nas oficinas de roupas em São Paulo, os angolanos e congoleses que disputam as calçadas na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, dentre tantos outros. Não é raro encontrar inclusive refugiados vivendo em situação de rua ou dependendo da compaixão alheia para sobreviver.

Os milagres do Papa Francisco, como se vê, não têm nada de sobrenatu-ral. Novamente, é criatividade e a luta dos pobres – incluindo o êxodo na forma da fuga e da migração – que produzem as mudanças materiais (e imateriais), in-clusive no discurso do Vaticano. Se agora a imigração – e os imigrantes e os re-fugiados – surge como um tema relevante para o governo brasileiro, isso se deve, sobretudo, à resistência oferecida pelos pobres contra as mais diversas formas de opressão e exploração.

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A chegada dos haitianos, em 2010, é apenas o prenúncio do que deve acontecer no futuro próximo9. De um lado, a crise econômica nos países do norte colabora com a demanda crescente no Brasil pela chamada “mão de obra qualifi-cada”. Composta por trabalhadores estrangeiros com alto nível de formação que perderam o emprego ou renda, a chegada da mão de obra qualificada acompanha a transferência de grandes investimentos do capital estrangeiro para o Brasil. De outro lado, a emergência econômica do Brasil tem atraído cada vez mais a “mão de obra não qualificada”, composta por imigrantes de países atravessados por lon-gas e graves crises sociais: os haitianos, mas também outros fluxos ainda maiores e antigos, como os bolivianos e chineses, ou outros menores, como os senegale-ses, paquistaneses, bengalis etc

O governo brasileiro responde a isso positivamente: depois de regularizar a situação de cerca de 9 mil haitianos, através de uma solução jurídica baseada em “razões humanitárias”, um acordo entre o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) e o CNIG (Conselho Nacional de Imigração) permitiu a concessão de vistos de permanência para cerca de 600 senegaleses que vivem na região sul do país. No final de 2013, foi noticiado o início da regularização de mais de quatro mil estrangeiros – proveniente de países pobres, principalmente da África – que chegaram ao Brasil recentemente10.

Ainda em 2013, o Ministério da Justiça nomeou um grupo de especialis-tas que terá como tarefa propor uma nova lei de imigração que seja coerente com a Constituição de 1988 e que supere definitivamente o caráter autoritário e nacio-nalista do atual Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80). Mais do que uma mudança legislativa, o governo pretende inaugurar uma política migratória no Brasil. Para conseguir subsídios para esta política – mas também legitimidade – o Ministério da Justiça formalizou um convênio com a OIM (Organização Internacional de Mi-

9 Há notícias que falam em 20 mil haitianos no Brasil e 40 novos imigrantes entrando no Acre diariamente. Estas mesmas notícias falam da violência que eles sofrem no percurso. (“Rota é dominada por coiotes”, O tempo, 18/11/2013, disponível em http://www.otempo.com.br/rota-dominaa-por-coiotes-1.747698, último acesso em 15/12/2013). Outras notícias dizem que apesar das medidas para facilitar o visto para os haitianos na embaixada brasileira, a corrupção impossibilita esta via, obrigando-os a usar o serviço dos “coiotes” (“Continúa el éxodo sostenido de haitianos que atraviesan Perú caminho a Brasil”, El Diário, 16/11/2013, disponível em http://diario.mx/Internacional/2013-11-14/continua-el-exodo-sostenido-de-haitianos-que-atraviesan-peru-camino-a-brasil/, último acesso em 15/12/2013).

10 A regularização de estrangeiros ocorre no momento em que se assiste ao brusco aumento do número de solicitantes de refúgio: de 2010 a 2012, o número de pessoas pedindo refúgio aumentou 254%. Em 2013 o aumento deve ser ainda maior.

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gração) para a realização de uma Conferência nacional – precedida por conferên-cias regionais e conferências livres e virtuais – prevista para acontecer em maio de 2014. Um dos aspectos mais interessantes desta iniciativa é que a conferência, além de representantes do governo e de ONG´s, deverá contar obrigatoriamente com a participação dos imigrantes e refugiados.

O ano de 2014 promete ainda mais: no ano em que a Declaração de Car-tagena (1984) completará 30 anos11, o Brasil será sede de um importante encontro regional sobre proteção a vítimas de grave e generalizada violação de direitos humanos: Cartagena + 30. A expectativa é que o governo brasileiro apresente propostas de ampliação da proteção aos refugiados e também defenda a extensão de proteção às pessoas obrigadas a se deslocar por razões humanitárias, econô-micas, sociais, ambientais e por outros motivos que não aqueles elencados na Lei de refúgio.

A despeito das boas novas e das perspectivas otimistas, a verdade é que a criação de uma política realmente justa e decente para os refugiados e imigrantes dependerá não apenas de boa vontade, se não de grandes batalhas dentro do go-verno. Na realidade, o tema é duramente disputado entre o Itamarati, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (ligado ao Gabinete da Presidência), o Ministério do Trabalho e o Ministério da Justiça, cada um deles com sua própria posição frente à chegada de imigrantes e refugiados. O consenso mínimo que tem permitido avanços na regularização dos imigrantes e refugiados – consenso no qual, con-vém reconhecer, a posição do Ministério da Justiça, representada pelo Secretário

11 A Declaração de Cartagena sobre Refugiados é resultado do encontro entre os governos e especialistas da Guatemala, Belize, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, além de Mé-xico, Panamá, Colômbia e Venezuela, realizado em 1984 na cidade de Cartagena das Índias, na Colômbia. É um marco para a proteção de refugiados e outros deslocados forçados na América Latina e Caribe. Considerada inovadora, a Declaração recomenda que os países da região reco-nheçam como refugiadas, além das situações previstas na Declaração de 1951 e seu Protocolo de 1967, pessoas que deixaram seu país porque sua vida, segurança ou liberdade foram amea-çadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça de direitos humanos e outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública. Desde que foi adotada, a Declaração de Cartagena passou por dois balanços comemorativos, em San Jose (Costa Rica, 1994) e Cidade do México (México, 2004). Ambos resultaram em propostas que serviram de modelo para os instrumentos jurídicos de diversos países da região. Ainda sob a inspiração de Cartagena, o Brasil promoveu em 2010 um encontro internacional de países da região que resultou na “Declaração de Brasília Sobre a Proteção de Refugiados e Apátridas no Continente Americano”. A lei brasileira adotou a definição ampliada de refugiado, incluindo no inciso III, do artigo 1º da Lei 9.474/97, a proteção às vítimas de grave e generali-zada violação de direitos humanos.

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Nacional de Justiça, é sempre mais avançada em termos de garantias e direitos – parece assentado sobre a perspectiva do trabalho, ou melhor, da regularização da mão de obra estrangeira.

É neste ponto que toda a condição vulnerável dos imigrantes e refugia-dos aparece mais nítida e pode ser ainda mais acentuada. Dentro do esforço para garantir a regularização da mão de obra qualificada, é preciso garantir também a proteção à mão de obra não qualificada, isto é, a grande massa de trabalhadores pobres que irá se disputar os trabalhos mais duros, insalubres, perigosos e mal remunerados. Esta “mão de obra” inclui não apenas os imigrantes que viajaram especificamente atrás de trabalho, mas todos aqueles que dependem do trabalho para sobreviver, incluindo os homens e mulheres que conseguiram o status de re-fugiados. Não se trata, evidentemente, de recusar a regularização e fazer objeções a todas as boas iniciativas. É preciso, no entanto, ter sensibilidade para os fatos e tendências; e há motivos de sobra para nos fazer crer que o desenvolvimento do país – o Brasil Maior – está baseado na superexploração dos pobres.

Quanto aos imigrantes e refugiados que irão disputar trabalho no Brasil, é preciso lembrar que a ratificação da “Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família” ainda aguarda ratifica-ção. Aprovada em 18 de dezembro de 1990, depois de uma década de debates no âmbito da ONU, a convenção entrou em vigor em 2003. E embora o Plano Nacio-nal de Direitos Humanos, de 1996, comprometesse o país com a ratificação, até hoje o Brasil segue como o único país do Mercosul a não integrar o instrumento. Dentre as grandes convenções das Nações Unidas, esta é a única não ratificada pelo país.

Migrar em busca de trabalho ou mesmo em busca de segurança e prote-ção, tanto no Brasil como em qualquer outro país “desenvolvido” ou “emergente”, significa estar sujeito a antigas e novas formas de exploração. Enquanto a Anistia Internacional denunciava exploração dos trabalhadores estrangeiros (principal-mente do Nepal e Bangladesh) no Qatar – país que sediará a Copa Mundial de Futebol em 2022 – bolivianos, peruanos, paraguaios e chineses trabalham como escravos em São Paulo, haitianos são explorados em Minas Gerais, Mato Grosso e outras partes do Brasil. E os trabalhadores pobres do Brasil são explorados em todo o canto do país, inclusive sob a mira das armas da Força Nacional12.

A chegada dos imigrantes e refugiados é a chance para que o Brasil afir-me seu compromisso com os trabalhadores – e especialmente com as trabalhado-ras – pobres, através da garantia e ampliação de direitos, mas também por meio da

12 Como ocorreu com os trabalhadores de Belo Monte.

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justa distribuição das riquezas e oportunidades. O desenvolvimento econômico só pode ser considerado desenvolvimento quando investe na mobilização e transfor-mação das subjetividades, ou seja, quando investe na expansão do trabalho vivo, ampliando o poder criativo e inventivo daqueles que compõem as cidades. É o investimento no caráter heterogêneo, criativo e potente das minorias – enquanto subjetividades – que pode salvar o Brasil do seu triste destino: o desenvolvimento baseado na exploração dos mais frágeis, nas práticas de colonização, e, no limite, do uso arbitrário e injusto da violência.

É justamente a afirmação da potência dos pobres, a mobilização produ-tiva destas subjetividades que vieram para compor uma nova rede que pode nos dar uma alternativa de desenvolvimento. Neste sentido, o desenvolvimento não é o Brasil sem pobreza, mas é justamente a afirmação dos pobres como potência. É somente a mobilização produtiva dos pobres – incluindo os imigrantes e refugia-dos – que permitirá o profundo, justo e real desenvolvimento do país. Como diz Antonio Negri, a “pobreza não é déficit de ser”; ao contrário, o pobre é um “ser-aí, vivo e efetivo, que se apresenta como índice de associação, de cooperação e de construção”. E inclusive de construção do ser, porque o ser pode ser construído, rompendo a repetição monótona do tempo. A pobreza tem, portanto, a enorme força de ser trabalho vivo13.

Referências

Textos da net

BOFF, Leonardo. O Papa Francisco e a economia política da exclusão. Blog Leono-ardoBOFF, publicado em 12 de dezembro de 2013. Disponível:< http://leonardoboff.wordpress.com/2013/12/12/o-papa-francisco-e-a-economia-politica-da-exclusao/>. Acesso: 15 de dezembro de 2013.NEGRI, Antonio. Entrevista de Antonio Negri ao Jornal La Nación. Centro de estu-do Claudio Ulpiano, 09 de janeiro de 2014. Disponível: <http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=6479>. Acesso: 17 de janeiro de 2014.

Fabrício Toledo de Souza é advogado, trabalha no setor de atendimento a refugia-dos e solicitantes de refúgio em uma ONG na cidade do Rio de Janeiro, doutorando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e integrante da Rede Univer-sidade Nômade (Rio de Janeiro).

13 Entrevista de Antonio Negri ao Jornal La Nación. Disponível em: http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=6479 Acesso em: 15 dez. 2013

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Ubuntu,ocomumeasaçõesafirmativas

Alexandre do Nascimento

Aprendizado de uma visita imaginária

Quando estive na África do Sul visitei uma comunidade de etnia Zulu. Lá conheci pessoas, assisti a uma apresentação de danças e pude presenciar alguns costumes, o principal deles era o de fazer as coisas coletivas sempre da forma mais simples e em grupo, nunca uma pessoa só, como quando, no almoço, usei as mãos para levar os alimentos à boca, sentado no chão junto a outras pessoas em volta de um belo tecido colorido onde foram postas as comidas. Tudo muito alegre, solidário, suave e lindo. Já quase na hora de voltar para o hotel onde eu estava hospedado, como havia naquela comunidade muitas crianças e elas gosta-vam de futebol, propus a elas uma brincadeira para eu me despedir, uma corrida em que a criança que chegasse primeiro ganharia uma bola como prêmio. Elas imediatamente toparam. Então organizei as linhas de partida e a chegada. Todas as crianças se posicionaram na linha de partida e o combinado era que quando eu desse o sinal elas começariam a correr e direção à linha de chegada. Com tudo pronto, dei a partida e as crianças iniciaram a corrida. Curiosamente para mim, elas correram juntas e chegaram juntas na linha de chegada. Como achei aquilo diferente, eu lhes perguntei por que fizeram isso, ou seja, por que saíram, corre-ram e chegaram juntas. Uma delas me respondeu: É Ubuntu, senhor, somos cada uma e cada um de nós porque nos fazemos e fazemos tudo juntos. O senhor não percebeu que tudo que fizemos hoje, fizemos juntos?Meus olhos transbordaram de emoção. Nunca uma experiência me afetou tão fortemente. Ubuntu, ternura e constituição comum do comum. Pretinhosidade.

Ubuntu, palavra existente nos idiomas sul-africanos zulu e xhosa que significa “humanidade para todos”, é a denominação uma espécie de “Filosofia do Nós” 14, de uma ética coletiva cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida, a natureza, o divino e as outras pessoas de forma comunitária. A preocupação com o outro, a solidariedade, a partilha e a vida em comunidade são princípios funda-

14 A filosofia baseada na categoria do “nós”, concepção de si mesmo como membro integrante de um todo social, para se referir às tradições africanas, foi desenvolvida pelo filósofo Tshiamalenga Ntumba.

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mentais da ética Ubuntu. Segundo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz e arce-bispo sul-africano, “Ubuntu é a essência de ser uma pessoa”, “significa que somos pessoas através de outras pessoas”, “que não podemos ser plenamente humanos sozinhos”, “que somos feitos para a interdependência”. Praticar Ubuntu é “estar aberto e disponível aos outros” e “ter consciência de que faz parte de algo maior e que é tão diminuída quanto seus semelhantes que são diminuídos ou humilha-dos, torturados ou oprimidos” (idem). A pessoa ou instituição que pratica Ubuntu reconhece que existe por que outras pessoas existem. Reconhece, portanto, que existem formas singulares de expressão de humanidade, e que as singularidades, como tais, têm igual valor.

Antonio Negri15 denomina como Comum a forma democrática que pode assumir a multidão, que é, segundo ele, a denominação de uma multiplicidade de singularidades. Ubuntu é o Comum, uma relação social de interdependência, que tem a igualdade como princípio material. No conceito de Comum, como na filosofia Ubuntu, a igualdade é condição. Portanto, não há constituição do Comum sem aberturas às singularidades, reconhecimento material de sua importância e potencialização de suas capacidades criativas. Uma política de constituição do Comum é a afirmaçãoda ética Ubuntu, através da afirmação da igualdade contra o privilégio, da multiplicidade contra a uniformidade, do respeito contra o precon-ceito, da inclusão contra a exclusão e da criação de meios que assegurem para os muitos de uma coletividade a “humanidade” e, objetivamente, acesso aos direitos definidos como “humanos”.

No Brasil, onde preconceitos, discriminações e desigualdades raciais ainda são questões e desafios que enfrentamos cotidianamente, a ética e a for-ma Ubuntu pode muito contribuir, principalmente no debate sobre políticas de promoção de igualdade racial e o seu significado para essa sociedade. Em 1995, em resposta à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que acontecida em 20 de novembro, o Estado Brasileiro, chefiado pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, foi levado a admitir que as relações raciais no Brasil são historicamente desfavoráveis à população ne-gra por causa do racismo e, em consequência disso, foi também levado a assumir compromissos com a promoção da igualdade racial. Um Grupo de Trabalho foi constituído, seminários foram realizados, diagnósticos, análises e planos foram

15 Conferência Inaugural do II Seminário Internacional Capitalismo Cognitivo – Economia do Conhecimento e a Constituição do Comum. 24 e 25 de outubro de 2005, Rio de Janeiro. Organizado pela Rede Universidade Nômade e pela Rede de Informações para o Terceiro Setor (RITS).

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elaborados, mas apenas a partir de setembro de 2001, foram tomadas as primei-ras medidas, muito tímidas, como o Programa Diversidade na Universidade, do Ministério da Educação, que aprofundou uma experiência da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O programa consistia em financiar cursos pré-vestibulares para negros, com o discurso de que seria uma forma de inclui-los no ensino supe-rior, como se a ausência de negros nas universidades fosse apenas uma questão de preparo ou de qualidade do ensino médio público e não também de procedimentos excludentes das instituições de ensino superior, como era o vestibular.

As políticas de ação afirmativa para promoção da igualdade racial co-meçaram, de fato, a se materializar no governo posterior. Foi o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quem deu mais abertura às propostas da militância negra. É fato, contudo, que tal abertura foi, também, fruto de lutas que levaram o Es-tado Brasileiro, face aos debates e pressões políticas antes, durante e após a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, e os candidatos à presidência da república no processo eleitoral de 2002, entre eles Lula, a assumirem compromissos mais ousados.

De fato, a experiência histórica da população negra no Brasil é, por um lado, a de ser vítima de uma cultura racializada que estabeleceu uma hierarquia em que africanos, afrodescendentes, suas características físicas (cor da pelo e ca-belo, por exemplo) e determinadas práticas culturais (religião, música, estéticas e outros devires de matrizes africanas) são considerados feias, inferiores, demo-níacas e até mesmo dispensáveis. É o que denota, entre vários exemplos que po-demos citar, a frase: “povo de alma portuguesa, sangue índio e herança africana” (grifo meu – alma é essência, já herança é algo que pode ser negado), utilizada na chamada do programa Globo Repórter que foi ao ar em 20/11/1995. É o que denota, também, o editorial do jornal Folha de São Paulo, de 05/06/2012, um dia após a entrega da Carta-Manifesto aos Presidentes da Câmara de Deputados e do Senado, organizada por ativistas favoráveis à aprovação do Projeto de Lei que estabelece cotas para negros nas instituições federais de ensino superior, técnico e tecnológico: “a Lei de Cotas, ao tornar obrigatória a reserva de vagas para ne-gros e indígenas nas instituições federais de ensino superior, ameaça a educação universitária”(grifo meu); e, da mesma forma, o editorial do jornal O Estado de São Paulo, de 07/09/2013, ao posicionar-se contra a proposta de cotas na pós-gra-duação, em alusão a medida tomada pelo curso de antropologia social do Museu Nacional, da UFRJ, que estabeleceu reserva de duas vagas para indígenas e 20% das vagas para negros, colocou que:

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se a ênfase no mérito for abrandada ou relativizada em nome da ‘justiça social’, a pós-graduação perderá eficiência. Os mecanismos de avaliação dos mestrados e doutorados implantados nos últimos 16 anos perderão sentido. A qualidade da pesquisa científica estará em risco.

Os porta-vozes do Brasil não desistem, insistem em manter o status quo, que tem no racismo o seu mais importante pilar de sustentação. O racismo está intimamente relacionado com a produção e a perpetuação da desigualdade e da pobreza, é determinante na formação dos extratos mais desfavorecidos das classes sociais e uma verdadeira barreira que os negros e as negras enfrentam cotidiana-mente; compromete qualquer projeto societário que se pretende democrático e, portanto, torna a declaração formal de que somos iguais, uma mera hipocrisia. O preconceito e a discriminação raciais, sobretudo de cor, ainda produzem constran-gimentos, violências, barreiras e desigualdades raciais, e continuam determinando comportamentos e atitudes. Assim, omite-se oficialmente que muitas das inova-ções culturais, estéticas e técnicas foram produzidas desde matrizes e perspectivas africanas. Omite-se também que foi o trabalho de negros africanos e afrodescen-dentes, durante o escravismo e após a sua abolição formal, que construiu e sig-nificou diversas das nossas instituições, costumes e marcas culturais. Em grande medida, o que temos de elementos característicos da cultura brasileira advém de produções negras. Infelizmente, ao contrário dos discursos de alguns intelectuais que ainda sustentam o mito da democracia racial, a sociedade brasileira é, de fato, racializada.

Estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA (CER-QUEIRA; MOURA, 2013; JUNIOR; LIMA, 2013), mostram isso, ao apresenta-rem dados que afirmam que os negros são mais vulneráveis à violência, inclusive Estatal, principalmente através das ações das instituições de “segurança pública”. Nas chamadas “jornadas de junho”, que na verdade vão de junho a outubro de 2013 (CAVA, 2013), principalmente no Rio de Janeiro, a sociedade pôde ver e experimentar um pouco da truculência racista que ainda faz parte do modus ope-randi da polícia militar. O uso excessivo, durante as manifestações, de bombas de gás(lacrimogêneo e de “efeito moral”), spray de pimenta, balas de borracha, pri-sões com base em provas forjadas e testemunhos falsos mostraram para a socieda-de em geral um pouco das práticas de desrespeito aos direitos por parte da corpo-ração, que em territórios mais pobres, age, cotidianas, com muito mais violencia. Aqui cabe lembrar o que foi dito a jornalistas, em 23/10/2007, pelo secretário de segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame: “tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro na Coreia é outra” (Coreia é nome de uma favela situada no bairro

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de Senador Camará, periferia pobre e de maioria negra da cidade do Rio de Janei-ro, quando Copacabana é um bairro de classe média abastada). Ou o que foi dito no telejornal RJ-TV 1a Edição, em 18/06/2013, pelo ex-policial militar e consultor de segurança púbica da Rede Globo, Rodrigo Pimentel: “fuzil deve ser utilizado em guerra, “em operações policiais em comunidades e favelas”, não é uma arma para se utilizar em área urbana” (grifo meu). Nessa mesma linha, estão também algumas ações e políticas em execução no Rio de Janeiro, sobretudo aquelas que favorecem os “megaeventos esportivos” de 2014 e 2016: o Programa de Acele-ração do Crescimento (PAC), as remoções, as ações criminosas da polícia militar nas suas incursões em favelas, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a Re-solução 013 da Secretaria Estadual de Segurança Pública (que concede à polícia a prerrogativa de proibir “eventos” em suas áreas de policiamento – leia-se bailes funk, nos quais a polícia já coloca em prática tal resolução, principalmente nas chamadas “comunidades pacificadas”). Os fatos recentes mais expressivos foram o assassinato de 10 pessoas na Favela da Maré em uma “operação” do Batalhão de Operações Especiais – BOPE (aquele cujo grito de guerra diz que missão dos seus agentes é “entrar pela favela e deixar corpos no chão”, embora a PM diga que trata de um canto proibido), a morte do pedreiro Amarildo de Souza, na Fa-vela da Rocinha, por policiais da UPP e a prisão e condenação do morador de rua, negro, Rafael Braga Vieira, preso no dia 20 de junho de 2013 ao sair de uma loja abandonada no centro do Rio com uma garrafa de água sanitária, um Pinho Sol e uma vassoura. Todos negros e pobres. Tais fatos ganharam destaque, contudo sãoapenas algumas dentre muitas outras violações e crimes praticados quase que cotidianamente pela polícia militar, no Estado do Rio de Janeiro e em outras uni-dades da Federação.

Por outro lado, a experiência de negros e negras no Brasil é, também, de produção de alternativas e lutas contra o racismo e pela afirmação de valores e identidades negras. Expressivos movimentos sociais negros se constituíram ao longo da nossa história. Por movimentos sociais negros podemos entender o con-junto das lutas e atividades desenvolvidas inicialmente por escravizados e, a partir da abolição formal do escravismo, por ativistas, intelectuais e organizações políti-cas e culturais em prol da emancipação e da produção e concretização de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais para negros e negras, e o conjunto de medidas para a superação de preconceitos, discriminações e intolerâncias ra-ciais. Na história e na sociedade brasileira, foram e são dos negros e das negras, as lutas mais vigorosas por emancipação e, não por acaso, as lutas mais duramente reprimidas pelas elites escravagistas e beneficiárias do racismo. São essas lutas

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que produziram uma série de questionamentos, algumas conquistas e, nos últimos anos, colocaram em pauta propostas de políticas específicas para enfrentar o racis-mo, a discriminação e a desigualdade racial, as ditas Ações Afirmativas.

Considerando que, historicamente, as inovações democráticas nas rela-ções sociais antes de serem técnicas são políticas, ou seja, produzidas pelos que lutam por emancipação, reconhecimento e humanidade, podemos dizer que as próprias lutas são ações afirmativas, práticas políticas e culturais de afirmação de identidade e direitos. Como políticas públicas e institucionais, as ações afirmati-vas efetivam-se através de intervenções nas instituições com o objetivo promover a diversidade e a igualdade. São políticas de reconhecimento de identidades, prá-ticas culturais e suas dimensões produtivas, de recomposição social e racial das instituições e, pois, de constituição do Comum.

As ações afirmativas inserem-se numa perspectiva Ubuntu.Esse é o sen-tido das proposições feitas por ativistas do movimento social negro ao longo da história, algumas já institucionalizadas, como as Leis Federais 10.639/2003 (que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira e afri-cana e uma nova forma de conceber a Educação das Relações Étnico-Raciais), 12.288/2010 (que institui o Estatuto da Igualdade Racial) e 12.711/2012 (que ins-titui cotas nas universidades e institutos federais de ensino técnico e tecnológico), e as cotas raciais em vigor em diversas universidades estaduais e em concursos públicos. Diferentemente do que afirmam osdiscursos meramente moralistas, al-guns que mostram preocupação com a racialização da sociedade e outros que colocam as políticas de cotas em oposição à valorização da mestiçagem, as ações afirmativas para promoção da igualdade racial em vigor em algumas instituições, sobretudo as cotas para negros, não produziu conflitos raciais. Ao contrário, e apesar das resistências, o que observamos nas instituições que passaram a adotar essas políticas é o reconhecimento material da mestiçagem, uma diversificação não apenas racial, mas também de preocupações, olhares, projetos e produções, que aos poucos passam a considerar e respeitar as diversas formas de expressão de humanidade, questões e demandas, algo que o racismo impede que aconteça.

Porém, numa perspectiva Ubuntu, é preciso muito mais. A educação das relações étnico-raciais proposta pela Lei 10.639/2003 e pelas Diretrizes Curri-culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, por exemplo, ainda necessita de uma política curricular e de formação de professores adequada. A escola, com a sua triste prática de homogeneização e reprodução de desigualdades, precisa ter acesso para se tornar lugar de movimentos, encontros, produção de singu-

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laridades, cooperações produtivas e trabalho vivo. Para democratizar a escola é preciso a criação de processos que visem modificar o imaginário pedagógico e o currículo, modelados com base em concepções eurocentristas que pretendem um ser humano universal e negam aquilo que, numa perspectiva Ubuntu, podería-mos ser: uma multiplicidade de singularidades em relação simétrica, respeitosa, produtiva, “sem degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura” (GLISSANT, 2005).

É um desafio imenso, numa sociedade cujas instituições foram fundadas e erguidas sobre o racismo. Pois, do ponto de vista do movimento social negro, o projeto que está por trás das suas proposições de ações afirmativas é o do fim de violências e assimetrias raciais, é a produção de uma nova cultura e de novas rela-ções raciais (não depreciativas de nenhum grupo étnico-racial e não racializada), condição fundamental para que um dia possamos chamar a sociedade brasileira e suas instituições de democráticas.

Referências

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SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas. Rio de Ja-neiro: Quartet, 2003.GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

Textos da net

NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo. www.abdias.com.br/movimento_negro/ qui-lombismo.htm.

Alexandre do Nascimento é professor da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro e Integrante da Rede Universidade Nômade – http://www.alexandre-nascimento.net

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Cidades insurgentes

Ricardo Gomes

Há pelo menos duas formas: a cidade, o Estado. Não estão separados, mas funcionam de maneiras distintas. A cidade não existe cidade sozinha, o que ela faz é criar uma horizontalidade comunicativa com outras cidades, uma produção de fluxos que passam por outros pontos, um circuito de circuitos. O Estado cria com estes circuitos diferentes relações e velocidades, capturas e liberdades relativas, que viabilizam seu próprio funcionamento. Uma forma atravessa a outra. Há na cidade uma preparação daquilo que só o Estado pode implementar, o capitalismo é obra do estado, de sua forma e efetivação (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Apesar de falar em formas e efetuações, cabe lembrar que é possível fazer uma história destas formas, não se trata de uma simples adaptação a formas prontas desde sempre. Hoje, o Estado se apresenta como regulador do capitalismo e ofere-ce uma transparência específica para o processo de reprodução do capital, ou seja, oferece a organização contemporânea que permite a esta reprodução ultrapassar os Estados nacionais, formando novos conglomerados e organizações internacio-nais descentralizadas e podemos dizer imperiais, mas ainda assim precisam de um poder que corrija as imperfeições sociais que atrapalhariam o bom funcionamento do mercado. As dinâmicas e relações das cidades também foram alteradas.

Seguindo o rastro de um circuito aberto que preza pela inclusão das di-versas formas de produzir vida, poderemos acessar a diversificação da nova ci-dade, a máquina-cidade. A cidade hoje é um funcionamento em rede. As locali-zações e fronteiras são cada vez menos importantes na apreensão de um possível significado que diga onde estamos, ‘Paris Texas’ ou Rio de Janeiro, ou mesmo quem somos, cariocas, baianos, alemães…

Toda cidade é modulação e repetição do mercado capitalista mundial, o que nos livra de uma completa homogeneização é a relação necessária entre mer-cado interno e mercado externo, o local que uma cidade específica ocupa dentro do mercado mundial, e, sobretudo, as dinâmicas potentes do trabalho vivo, as formas de cooperação entre as singularidades insurgentes que viabilizam as lutas das multidões.

Território descentralizado, empresa subjetiva, núcleo desregionalizado, o processo de atualização permanente e imanente do capitalismo nos deixou um espaço que guarda poucas relações com a antiga cidade. O que era uma região que

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atualizava todo seu entorno cultural, agora passa a fazer parte de uma liberação controlada de fluxos que recortam suas relações geográficas, ao mesmo tempo em que lhe impõe uma horizontalidade sem fronteiras e uma abertura nas relações com uma grande quantidade de outras cidades. Este processo que se vale de uma população plural para criar pontes internas e manter relações comerciais com ou-tros tantos núcleos descentralizados, ou seja, outras tantas cidades. Nesse sentido, na hora de compor políticas públicas ou de pensar a racionalidade que vigora na sua cidade, a metrópole de outro país pode ser muito mais importante do que a região metropolitana onde você mora. Mas nesta mesma cidade, aparece um con-junto infindo de pequenos e fundamentais investimentos sociais que antagonizam com violência e criatividade contra a nova realidade produtiva e suas máquinas de cooptação. Esse conjunto se vale das novas características da cidade para sua melhor atuação. Podemos citar a perda do dualismo centro-periferia que tende para uma maior importância real da produção da periferia como forma de produ-ção subjetiva conflitante. Uma maior disseminação de redes de solidariedades que criam e distribuem saberes e uma cooperação que permite a renovação legítima, popular e múltipla destes saberes. Enfim, a cidade hoje se apresenta como espaço de luta, onde a produção subjetiva, que é majoritária, ao mesmo tempo em que apresenta modalidades renovadas de invenção de sujeitos, reforça e dissemina formas de controle cada vez mais minuciosas.

Por vivermos já há algum tempo o chamado pós-fordismo (COCCO, 2012), podemos ver mais claramente os avanços e retrocessos dentro deste pa-radigma. Como um bom exemplo da complexidade pós-fordista podemos falar do forte incentivo que o governo federal desenvolveu para a compra de carros. Este exemplo é complexo por que ao mesmo tempo em que recorre a um produto característico de outro momento histórico, outro modo de vida, ele efetua meios pós-fordistas para sua disseminação e produção, ou seja, se vale das modulações subjetivas e comunicativas para a venda, e das flexibilizações no emprego para o aumento da produtividade. O que indica que nesta nova cidade existe a convivên-cia entre meio disciplinares e meios de controles, tratemos melhor disso.

Vamos deixar esclarecer a distinção entre cidade atual e cidades de pro-dução fordista. Como o nome já diz, o Fordismo é uma organização da produção a partir da disciplina desenvolvida numa fábrica de carro, a Ford. Esta disciplina era também uma política econômica, pois fomentou o pagamento de salários para os funcionários, viabilizando a compra dos primeiros carros populares. Se na fá-brica o trabalhador era alienado, separado do produto, despedaçado do processo de trabalho, fora da fábrica ele recebia uma demanda social exterior. Um bom

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39Ricardo Gomes

trabalhador necessariamente tem um carro, é um sinal de status e faz a econo-mia crescer, o desejo majoritário do método. Acompanhamos aqui o desdobrar de uma política que passa inalterada por diversos governos, sempre recebendo a dose correta de moralismo para que continue funcionado (a velha ideia de que ‘o trabalho enobrece o homem’, ‘ser um homem de sucesso’ etc). Desta época temos uma organização das cidades que, entre outras coisas, leva em conta a entrada maciça de carros e a necessidade de tornar possível sua mobilidade. Abrimos um parêntese aqui para lembrar que foi justamente a questão da mobilidade urbana a responsável pela massificação das manifestações de junho. É fundamental afirmar que o transporte urbano no Rio de Janeiro não funciona mal16, ele funciona exata-mente como deve, travando as mobilizações dos pobres e sua tentativa constante de composição política e estética. Os transportes coletivos ajustam-deformam os corpos e as multiplicidades em formas sociais subservientes e paralisadas.

Hoje, compondo com a política de mobilização das cidades, o que temos é uma rede estendida por pontos singulares, que se comunicação e criam diversos tipos de relações e organizações sociais. Como exemplo disso, podemos citar o processo de migração. Ele transformou o mundo, o ‘terceiro mundo’ está no meio do ‘primeiro mundo’ (idem).

Mais do que um espaço organizado por diversas formas de disciplinas, o que temos hoje nas cidades é uma organização complexa, mas autorreferente, onde o social já é o próprio investimento do mercado, pois se trata da coordenação da uma ‘população flutuante’, para usar o termo foucaultiano. O que deixa claro quenas cidades háestados imperiais (as imposições da FIFA), capitalismo mafioso (a relação entre estado e milícia), indústrias criativas (a política implementada pela secretaria municipal de cultura), dinâmicas de escravidão (hiperprecariza-ção do trabalho) e vários pequenos grupos que fogem por todos os lados, numa complexidade de modelos e forças livres que fazem vibrar um tecido nervoso e pujante, cheio de possibilidades.

A afirmação desta nova organização produtiva é conquista, invenção, captura e luta. Nessa ordem. Tentaremos demonstrar como chegamos a esta ima-gem da nova organização trabalhista e social da cidade e como, em última análise, ela nos mostra o desdobramento de uma práxis ontológica17.

16 Disponível em: <http://www.quadradodosloucos.com.br/3796/o-sistema-de-transporte-e-mais-violento-do-que-a-policia/> Acesso em: 10 dez. 2013

17 Disponível em: <http://uninomade.net/tenda/ocupacoes-sao-usinas-produtivas/> Acesso em: 10 dez. 2013.

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Começaremos pensando as mudanças nas políticas estatais. Como deixa claro Foucault, em O Nascimento da Biopolítica, o pensamento sobre a gestão de políticas sociais (o que ele chama de ‘refundação social’) foi implementado-como resposta à revolução de 1917. O pensamento político que faz este arranjo é o neoliberalismo. Trata-se de uma forma de governo que abarca toda a socie-dade em sua espessura biológica e subjetiva – produtiva, portanto –, modulando e regulando, curando e formalizando condutas. A população é vista como fonte constante de capital. Mais uma vez não se trata de enxergar o trabalho sob o ponto de vista da produção, agora ele é visto como renda, ou seja, reprodução hiperabs-trata e interminável de capital. O trabalhador não é visto como força alienada, ele recebe uma positividade, mas esta positividade só existe submetida à constante criação de renda. O trabalhador é possibilidade de capital, por que é possibilidade de salário, de circulação, abastecimento e recriação da economia, mas para ser “possibilidade”, ele se formaliza na dualidade máquina-competência, esta é toda positividade que ele ganha. Ele é capaz de exercer certas atividades e não só de desempenhar um trabalho repetitivo. Estas atividades são atividades imateriais, são elas que dão valor aos produtos, materiais ou não. Temos, portanto, uma nova formação dos meios produtivos e reprodutivos. O homem desejado e formulado pelo capitalismo não é mais o mesmo, e isso é sinal de que o próprio capitalismo não é mais o mesmo. O trabalhador agora gera o produto e cria seu valor imaterial, por isso tem de ser constantemente regulado, limitado. O trabalho é decomposto em capital e renda e é analisado a partir deles. Por isso, as formalizações sociais, a organização do trabalho e da produção, são forjadas a partir desse princípio ima-nente gerador de um modelo universal de sujeitos livres para reproduzir capital.

Várias são as potências descentralizadas que tentam se valer desta nova configuração social para inventar outras formas de sociabilidade. Essas potências de luta e invenção sabem que o novo momento não é de nostalgia, ele é sinal de conquistas anteriores que permitiram uma maior flexibilização das disciplinas. Mas sabem também, e muitas vezes sentem na pele, as tentativas de controlar as relações singulares e sua produção excedente que foge dos limites impostos e visa destruir a separação entre produção e consumo, entre produção e autogestão. Além do modo de organização dos transportes coletivos, outro exemplo desta violenta tentativa de controle é o uso da polícia como forma de guerra constante para inibir o desdobramento da cooperação entre as diversas multiplicidades que produzem o urbano. Um exemplo óbvio disso são as UPPs, mas falaremos espe-cificamente dela um pouco mais a frente. Agora, retomando Foucault, lembramos que uma das características do neoliberalismo é criação de uma aparente dicoto-

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mia entre as políticas sociais e as políticas econômicas. Uma não deve interferir na outra, mas isso somente na medida em que uma é submetida à outra, e nós já imaginamos quem serve a quem. No neoliberalismo, ainda segundo Foucault, as políticas sociais são vistas como necessárias para a manutenção do jogo econô-mico. Cabe ao Estado impedir que esse jogo seja interrompido, é preciso que, por exemplo, projetos sociais forneçam uma renda mínima para os participantes que não conseguem conquistar esta renda por eles mesmos, ou seja, é a política social que serve ao bom funcionamento da economia18. Não há nenhum interesse em destruir as causas da pobreza, ao contrário, ela é útil, já que se tratará sempre de um jogo desigual, de um ‘governo das desigualdades’, onde a pobreza ocupará um espaço fundamental, cito Foucault:

(...) uma verdadeira politica social devia ser tal que, sem tocar em nada do jogo econômico e deixando, por conseguinte, a sociedade se desenvolver como uma sociedade empresarial, instaurar-se-ia um certo número de mecanismos de intervenção para assistir os que deles necessitam naquele momento, e somente naquele momento em que deles necessitam (FOUCAULT, 2008, p. 285).

As diversas dinâmicas das UPPs: militarização e controle cultural das co-munidades, disseminação de uma racionalidade do governo do outro, onde todos são possíveis policiais, reprodutores ou condutores de modulações submissas, e por fim, o incentivo à entrada na economia pela relação com o poder público e in-ciativa privada que tem como objetivo repetir formalizações do capitalismo – de-monstram como elas se enquadram a esta política social que se submete à política econômica (sem deixar de, quando necessário, fazer o jogo do ‘capitalismo ma-fioso’, que geralmente aparece neste espaços pelas mãos de um agente do Estado). Além disso, lembremos que o projeto das UPPs está ligado aos megaeventos que ocorreram no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro, o caminho escolhido para fazer as UPPs é justamente o caminho que deve ser assegurado para os megaeven-tos. Portanto, mesmo a política de segurança está submetida à política econômica, trata-se de um projeto cujo objetivo é um tipo de lucro no mercado internacional,

18 É importante ressaltar que nem todos os projetos sociais de transferência de renda tem a mesma dinâmica, o próprio Foucault faz essa distinção no mesmo livro. Acredito que o Bolsa Família tem alguns aspectos que permitem pensaralguma outra forma de executar os projetos sociais. Aponto como exemplo desta diferença a quase total falta de condicionalidades para receber o benefício, porém paramos por aqui, pois este texto não é o lugar mais adequado para esta discussão, que toma seus devidos desdobramentos no artigo Para além da queda I.

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a saber, demonstrar que a cidade pode realizar tais eventos e receber os capitais que deles derivam, ou melhor, ser sede da troca dos capitais entre grupos de poder.

Visualizamos uma parte considerável deste embate que acontece nas ci-dades, principalmente sob um enfoque das ações do poder. Falaremos agora sobre exemplos concretos e radicais onde a cooperação própria da nova dinâmica das ci-dades foi fundamental para o bom desenvolvimento de uma luta pela geração livre do urbano. Porém, para melhor desenvolver o conflito em que estamos inseridos e seus exemplos concretos, devemos atentar para o fato de que entre movimentos, que podemos chamar de macroscópico e microscópico, existe uma diferença que não diz respeito só ao tamanho, mas, sobretudo, a forma de expandir ou perse-verar, de tornar-se ou preservar, de partir ou permanecer. No macroscópico as formas ou coisas (neste momento as duas se equivalem), permanecem, só mudam com uma decomposição final. A identidade e a unidade se sobressaem. Por exem-plo, uma cadeira, um corpo, um carro, o legislativo. Por outro lado, existe um movimento de proliferação na física, chamado de “Turbulência”, onde partículas quando estão em certo material são agitadas pelo acaso. Uma partícula que num dado momento faz parte de um material específico, como uma pasta de dente, em outro momento faz parte de uma relação absolutamente nova e já compõe outro material. Este material eesta partícula são perpassados por variações aleatórias de velocidades infinitas. Este movimento foi descoberto a partir da insuficiência da mecânica newtoniana em responder a dinâmica complexa e aberta da realidade, sem cair no circulo vicioso do determinismo.

Ora, essa descoberta da física nos lança numa série de questões que po-dem ser desdobradas no pensamento político. Sem fazer dela metáfora, buscamos compreender toda a realidade contida nesta explicação, entendendo que essa te-oria física consegue apontar certo movimento do real para além das partículas.

Não se trata de metáfora por que pelas ruas do Brasil vemos um pro-cesso imanente e absolutamente descentralizado que perpassa e compõe diversas organizações majoritárias. Estes micros processos aleatórios de resistência e luta se extendem por todos os lados, causando uma série de novas relações e possi-bilitando novas efetivações políticas, se esquivando e produzindo rachaduras na superfície do poder. Ou alguém esperava pela popularidade do grito “não vai ter copa”? Ou alguém imagina que a visibilidade dos protestos no Brasil não é sinal também de um aumento de contingencia ao redor dos acontecimentos, mesmo sem estar no local? Essa forma de proliferação aleatória é alimentada pelo que podemos chamar de “turbulência das lutas”.

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Mesmo que não possamos cravar um início – já que é legítimo entender várias experiências e conflitos anteriores como acúmulo para tudo o que ocorreu –, podemos dizer que a partir de junho o processo se intensificou (intensificação e origem não são as mesmas coisas) e deu um salto, mudou o espaço-tempo de todos. Tivemos o aumento de velocidade do tempo para as experiências e fases políticas desenvolvidas pela multidão constituinte. Ao mesmo tempo os espaços foram tomados e da mesma forma passaram por experiências violentas de lutas, controles, invenções autónomas etc. Também não há por que pensar que vai ter-minar; o carnaval logo chegará e o que não falta é rua para nos surprender.

Além da alteração no tempo-espaço o que nos chama atenção é a disse-minação das revoltas, sua multiplicidade interna e sua forma de contágio e agluti-namento. Ninguém mais se cala. Podemos dizer que não há volta no “Movimento de Turbulência”, pois no meio do camino das partículas fica o acaso. Imaginando que a partícula tente retornar ao seu suposto local de origem, ela passará mais uma vez pela “Turbulência” e assim será necesariamente acessada mais uma vez pelo acaso e cumprirá seu percurso desviante. Portanto, podemos dizer que não há mais como fazer voltar o consenso violento dos grandes eventos, a paz armada para os pobres, o controle das modulações subjetivas pelo capital, enfim, todo aquele arranjo já não é mais viável na forma que existia antes de junho.

Todos que têm ido para as ruas e que têm sido afetados por esta intensifi-cação política-inventiva não estão mais nos lugares esperados, ou melhor, houve uma violenta perda dos fundamentos, saímos concretamente de uma política que era alicerçada pela violência metafísca do mesmo e de sua imposição. Os partidos ficaram nus em todo seu dirigismo patológico, os sindicatos perderam a pouca legitimidade que ainda tinham e os jovens das favelas nos dão lições em todas as manifestações. Não se trata de romantismo, nem de eleger um novo ‘bom selva-gem’, ao contrário, trata-se de perceber como a selvageria construtiva, que conju-ga desejo destrutivo, solidariedade e devir minoritário, se efetiva constantemente nas manifestações criando brechas reais.

Outro efeito desta intensificação são as ocupações e assembleias popu-lares em várias partes da cidade. As ocupações populares do Movimento Sem Teto e as lutas contra as remoções datam de um momento anterior e se configu-ram como alguns dos processos de lutas materiais mais importantes dos últimos tempos, criando o desejo pela produção de mais direitos concretos na cidade. As ocupações que aconteceram a partir de 2011 funcionam de outra maneira, ainda que em vários momentos os desejos consigam se comunicar e caminhar juntos. Ocupações artísticas, Ocupa Rio, Ocupa Alemão (que é um pouco mais recente,

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mas parece participar do mesmo princípio imanente dos outros ocupas) e o Ocupa Câmara são, os que ainda restam, práticas políticas que, seguindo um certo hori-zonte teórico-político do pós 1968, afirmam uma imbricação necessária entre o que se diz e o que é feito, organização e desejo se entrelaçam concretamente. Nes-tes movimentos, ressurge uma ética comprometida com uma sociabilidade políti-ca, experimental e múltipla. Trata-se de vivênciar radicalmente o que é proposto e, no mesmo movimento, abrir esta proposição para o maior número possível de singularidades, afirmando o desejo de outra organização social. É neste sentido que um dos participantes do Ocupa Câmara diz que as ocupações são ‘verdadeiras usinas de produção’.

As ocupações são produções que fogem e fazem a máquina capitalista ruir, por produzirem outra urbanidade, outra forma de atuação e de ‘uso’ da cida-de. As ocupações produzem aulas, debates, assembleias constituintes e se apre-sentam como a possibilidade concreta de superação das assembleias legislativas e câmaras municipais com suas políticas representativas que não representam nin-guém além dos interesses dos próprios políticos profissionais. Acredito que estas outras formas que surgem e são experimentadas nas ocupações só são possíveis pela nova configuração social que temos hoje. A troca horizontal como solo fun-damental de vivência e criação de relações forjadas entre as modulações demo-cráticas das ruas e das redes.

Outro exemplo multitudinário de ocupar e produzir o urbano são as as-sembleias populares. Diferente das ocupações, as assembleias têm o desejo de gestar novas formas sociais a médio e longo prazo, sem requerer dos participan-tes uma vivência tão radical quanto os ocupas. Ao mesmo tempo participam de diversas formas de criação e desdobramento das manifestações. As assembleias também se propõem a compor paustas concretas que às vezes aparecem dissemi-nadas pelas manifestações. Muitas assembleias populares nasceram das ruas, do movimento dos manifestantes tentando articular maneiras concretas de efetuar os desejos revolucionários. É importante lembrarmo-nos das lutas e ocupações an-teriores a junho, tanto o Ocupa Rio quanto a ocupação do sem-teto, porque assim criamos uma imagem mais adequada e extensa da força que a rua vem mostrando, ou seja, esse processo de luta que explodiu em junho é sinal de um acúmulo de outras tantas lutas e invenções autônomas, múltiplas e multiplicadoras.

Uma coisa fundamental para ser lembrada sobre as ocupações e assem-bleias é que elas realizam uma luta contra algo que perpassa todo o nosso campo social. Talvez nenhuma outra organização pudesse enfrentar isso tão bem. Falo do facismo. Deleuze e Guattari nos dizem que uma das características funda-

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mentais da força do facismo é sua forma molecular: (...) o facismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e soltam de um ponto a outro, em interação, antes de ressoarem todos juntos (...) (DELEUZE E GUATTARI, 1996). Vemos que há certa semelhança entre as formas do facismo e as formas desta nova organização popular. Por se desdobrar antes no molecular, o fascismo deve ser combatido na microfísica das relações, e justamente aí agem tanto as ocupações quanto as assembleias, devido às características que já informamos. Por isso, são, sobretudo, estas novas organizações que devem combater o fascismo. Isso de forma nenhuma as livra de reproduzirem o fascismo, ao contrário, elas estão mais próximas edevem ter ainda mais cuidados. Porém, sem paranoia, produ-zindo, e participando dos agenciamentos coletivos de enunciações insurgentes.

Outro exemplo de composição política (monstruosa) na e da cidade que não pode ser esquecido é a junção que ocorreu entre os Black Blocs e os professo-res. O que acompanhamos na Cinelândia e no seu entorno não foi só um massacre contra os professores e a população que lhes apoia, articulado entre os poderes constituídos, a mídia da elite econômica e cultural e a complacência de quem só reage de maneira subserviente. Acompanhamos a feitura de uma linha frágil traçando e ligando grupos que durante um bom tempo estavam distantes, para dizer o mínimo. Quando as greves dos profissionais de educação começaram, boa parte destes grupos se posicionou contra os Black Blocs, repetindo o já envelhe-cido julgamento e a condenação da mídia tradicional. Era por volta do dia 15 de outubro, ocasião em que estava marcada uma grande manifestação em apoio aos professores que acabavam de ser expulsos violentamente da câmara municipal pela polícia militar, quando sai uma nota do o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE/RJ) declarando apoio aos Black Blocs e lhes dando boas vindas.

Esta linha de dispersão frágil, porém, cortante, é uma espécie de ‘linha de fuga’. Fuga ativa, pura permanência em um processo de resistência e inven-ção. Resistência porque já não se locomove mais através de antigas categorias e instituições apropriadas pelo poder. Invenção porque dentro das condições ma-teriais sabe compor novos corpos que forçam outras temporalidades. Nesta ética experimental que constitui a formação das multiplicidades cooperantes chega um momento de conjunção em que aquilo que é destrutivo para a continuidade cons-tituinte é combatido, confrontado. Não é posto para fora porque não há um fora (no sentido de exclusão) em relação à qual as multiplicidades se posicionam, mas há uma estratégia de não uso de elementos que visam enfraquecer a potência das multiplicidades. Sem dúvida alguma os arcaicos ‘aparelhos de captura’ vão con-

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tinuar funcionando, a força repressiva da polícia militar, as instituições da demo-cracia representativa, e mesmo os sindicatos, vão tentar desestabilizar o desenvol-vimento das multiplicidades. Chamamos a atenção para a atuação dos sindicatos porque é mais fácil dizer que 1968 não aconteceu, difícil mesmo é ter em mente que o Partido Comunista francês e boa parte dos sindicatos, por exemplo, foram responsáveis por não ter acontecido como poderia.

A dispersão é visível e a cada dia, mais confirmada por diversas par-tes. Vemos como exemplo fundamental disso o posicionamento público de vários professores apoiando os praticantes e adotando a tática Black Bloc. Portanto, o início e desenvolvimento deste encontro monstruoso, e de tantos outros, é o sinal mais evidente de que uma ‘linha de fuga’ faz fugir todo aquele sistema do qual se foge. Os professores saem dos seus postos hierarquizados, dentro ou fora dos sindicatos, e aceitam dialogar diretamente com quem está nas ruas lhe apoiando, e este diálogo não se dá só sobre a manifestação, mas desde já sobre uma possível outra educação. Houve contaminação e a tática Black Bloc em sua forma e força, ou seja, afeto que é imediatamente coletivo e político, se tornou peça fundamental desta outra educação. A tática Black Bloc, que era vista, mesmo entre os ma-nifestantes, como uma negatividade necessária agora consegue expor toda sua positividade produtiva e excede o puro confronto para participar da criação de um possível radicalmente novo, uma educação revolucionária a partir do encontro nas ruas. Eis o que pode gerar os encontros entre ‘linhas de fuga’.

Dias depois desta ‘junção’, e do massacre que se seguiu, houve conflitos com a policía, em São Paulo, quando dois jovens foram assassinados. Um dos jovens foi morto com um tiro no peito dado por um PM. Ele disse ter disparado por engano. Canais de televisão se apressaram em legitimar a ação, em dizer que houve um erro individual do PM, que a arma disparou sem querer, e, quando a po-pulação foi para as ruas protestar, os canais logo voltaram a falar de vândalismo. Boa parte da população também exerceu sua vontade de punir e destruir o outro, processo comum neste país, fomentado pelo racismo e por uma elite que não abre mão de seu poder de sentenciar qual morte deve ou não ser levada em conside-ração. Claro que uma parte desta população está jogada no meio de um processo capitalista violento de exploração e imposição de modos de vida, sofrendo tam-bém vários tipos de violências cotidianas, o que ajuda na formação dos desejos sujeitados e propicia a disseminação de um ódio destrutivo em relação a qualquer alteridade, mesmo aquela que está ao lado. E o governo de São Paulo, que é a pos-sibilidade constante de efetivação de novos Carandirus, é peça integrante desta máquina de poder. Está máquina articula da polícia militar à indiginação seletiva

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de uma classe média e classe alta cada vez mais reacionária, passando pelo funda-mental trabalho de modulação das subjetividades feito pela mídia. Esta máquina de morte se espalha e se alimenta pelo Estado.

Mas a população foi para as ruas, se ‘fantasiou’ de Black Bloc e enfren-tou o capital, parou a cidade. Enfrentou a mídia, não aceitando as imposições da criminalização que dizia que vida de pobre não vale nada, já que violência é o trânsito parado, ou o prédio ‘vandalizado’. Travou a máquina, ainda que rápida-mente. Em Minas Gerais, na mesma noite, houve confronto numa desocupação de 100 famílias na região metropolitana de Belo Horizonte. No Rio de Janeiro, a PM também havia matado um jovem no Complexo da Maré e a população protestou nas ruas. Podemos ainda citar recentemente, ‘Rio Pardo, em Rondônia, centenas de camponeses, pequenos madeireiros e comerciantes se rebelaram contra repres-são, incendiaram posto policial e viaturas, expulsaram a Força Nacional do povo-ado. Camponeses foram agredidos e presos e um agente da Força Nacional mor-reu durante o confronto. No Norte de Minas Gerais, camponeses organizados pela Liga dos Camponeses bloquearam rodovias exigindo terra, água, se posicionando contra ameaças de despejo, entre outras demandas. A Sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma-Agrária (Incra) foi ocupada em Recife. Revoltas po-pulares em Tapauá-AM e em Oriximiná, no Pará incendiaram casa de prefeito, a prefeitura, prédios e carros oficiais.

Enfim, os desejos fazem emergir, proliferar e potencializar os diversos gritos e revoltas. Isso é sempre diverso, expande, clama, reclama como uma le-gião sem sujeito definido. Força sem identidade, a própria ação do desejo insur-gente (de)formando grupos que são atravessados por diversas lutas minoritárias, como ocupações comandadas por mulheres, luta pela permanêcia dos quilombo-las e suas outras formas de sociabilidade e produção, e outros tantos exemplos que demonstram os outros mundos que estão em jogo nestas revoltas. Tudo isso certa-mente não teria o mesmo impacto social se não estivéssemos inventando formas de apoio, aberturas e visibilidades para estes gritos, se não houvesse o fortalecimento de uma cooperação entre as diversas lutas alimentadas por uma urbanidade, como já dissemos, horizontal e interligada, um circuito que possibilita a criação da arti-culação e a resistência em rede, ou seja, cidades contra o Estado?

Cabe lembrar que isso não é suficiente, não garante vida nenhuma, mas abre uma possibilidade para um melhor desdobramento destas revoltas e destas resistências, o que é fundamental e que antes não havia.

Mas voltando a proliferação e a Turbulência, lembramos que elas agem na formação de um bloco real de saída. O que sai passa por um processo de mobi-

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lização das diferenças, e o que possibilita a continuidade da fuga é a indecidibili-dade diferenciante. O momento em que um jovem não é mais apenas um morador da favela revoltado nem é mais um aluno desinteressado, ele passa a fazer parte de uma espécie de matilha que inventa seu lugar de atuação política na cidade, um lugar que antes não havia, o lugar foi alterado não menos que o jovem. Ele se vale de uma tática, a transforma e assim vai gerando outras formas de aglutinações múltiplas. O devir-educação dos Black Blocs e professores é uma educação real e revolucionária, que efetivamente aconteceu e deu margem para a criação do Black Prof, e tudo já é outro, o devir não precisa se institucionalizar para demonstrar sua realidade. É a proliferação aleatória da favela como forma de luta, resistência, esta é a verdadeira potência da favelização, potência de uma multiplicidade rebelde, de um agenciamento que excede o presente, é desde sempre uma virtualidade de outros possíveis. A luta é para a efetivação destes possíveis desviantes.

Estamos fazendo este percurso árduo, mas fundamental, entre uma recu-sa total ao estado de coisas atuais e a criação coletiva de possíveis impensados, e isso não nos deixa alternativa senão nos lançarmos nesta experimentação tem-poral onde a única perda será da imposição do presente. Experimentação onde a produção do eterno acena mais uma vez.

O que virá não deixará de ter em alguma medida a participação criativa da multidão, trata-se então, de fazer com que esta participação seja a mais potente e imanente possível, produto da e para a multidão. Proliferação pela turbulência das lutas no lugar das casualidades dos aparelhos representativos, devir revolucionário no lugar da revolução como finalidade inalterada, disseminação da revolta efetiva e legítima. Viva a revolta popular das favelas e todas as minorias em luta!!!!

Afirmando isto podemos voltar e reencontrar em toda sua potência a hi-pótese que tínhamos lançado no início do texto: o excesso de produção se trans-forma em práxis ontológica, pois produzir uma nova temporalidade é produzir diferença, é criar um tempo outro fora dos eixos e das possibilidades dadas, pro-duzir além do controle dos fluxos é, enfim, produzir ser.

Referências

COCCO, Giusseppe. Trabalho e cidadania: produção de direitos na crise do capitalis-mo global. 3. ed. (ampliada). São Paulo: Editora Cortez, 2012.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, v. 5, 1997. ___. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, v. 3, 1996.

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FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica – Curso dado no College de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Textos da internet

CAVA, Bruno. O sistema de transporte é mais violento que a polícia. Quadrado dos doucos. 11 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.quadradodosloucos.com.br/3796/o-sistema-de-transporte-e-mais-violento-do-que-a-policia/> Acesso em: 10 dez. 2013.GOMES, Ricardo. Para além da queda I. Pegar o sol com a maõ. 24 de agosto de 2013. Disponível em: <http://pegarosolcomamao.wordpress.com/2013/08/25/para--alem-da-queda-i/>. Acesso: 13 jan.2014.MODENESI, Rodrigo. Ocupações são usinas produtivas. UniNomade, 8 de outubro de 2013. Disponível em: <http://uninomade.net/tenda/ocupacoes-sao-usinas-produti-vas/>. Acesso em: 10 dez. 2013.REDAÇÃO. Casa de prefeito e prefeitura incendiadas. A nova democracia, ano XII, n. 121, 2ª quinzena de novembro de 2013. Disponível em: Jornal A Nova Democracia <http://www.anovademocracia.com.br/no-121/5058-casa-de-prefeito-e-prefeitura--incendiadas>. Acesso em: 10 dez. 2013.REDAÇÃO. Professores mantêm greve, convocam novo ato e declaram apoio aos Black Blocs. Brasil de Fato, 10 de outurbro de 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/26240>. Acesso em: 10 dez. 2013.

Ricardo Gomes edita o blog “Pegar o sol com a mão” (http://pegarosolcomamao.wordpress.com), milita no coletivo Das Lutas e na Assembleia Largo, uma assembleia popular e horizontal que se reúne todas as terças no Largo do São Francisco, Rio de Janeiro. Colabora com a Universidade Nômade. Participou do OcupaRio e participa ativamente das manifesta-ções de rua que se iniciaram em junho de 2013.

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LUGARCOMUMNº41,pp.51-

AfavordeAlthusser.NotassobreaevoluçãodopensamentodoúltimoAlthusser19

Antonio Negri20

“Algo se perdeu”

Quando Althusser, abrindo sua intervenção no colóquio de Il Manifesto em Veneza em 1977, parte da constatação de que “Algo se perdeu”, ele não pensa (na verdade exclui) que esta ruptura possa referir-se categórica e unicamente à análise da multiplicação dos efeitos perversos do estalinismo sobre o movimento operário internacional a partir dos anos 1930. O desvio estalinista é evidente, trágico e considerável: em 1986, Althusser definiria o estalinismo como a forma “encontrada” (“não premeditada”) pelo imperialismo para explorar as populações no interior do mundo socialista. A tensão que conduziria em 1986 a este acer-to de contas já está presente em sua intervenção de 1977 (ALTHUSSER, 1992, p. 217). Mas é precisamente por isso que não podemos atribuir a “crise atual” e a “ruptura” pura e simplesmente ao estalinismo. O problema das crises recorrentes do movimento operário é muito mais profundo: está na própria natureza desse movimento, que é “feito” de lutas e contradições. O problema não é a crise, mas a ruptura, isto é, o fato de que esta crise não produz efeitos construtivos, mas destru-tivos. Além da denúncia do estalinismo, portanto, a análise teórica deve ater-se ao processo de formação do pensamento comunista, à função criativa, construtiva, da crise com que ele sofre.

Para discutir esta questão, examinemos alguns pontos essenciais do discurso de Marx – neste caso, a teoria da mais-valia e da exploração e, em segundo lugar, a teoria do Estado e da relação dialética entre luta econômica e luta política. No primeiro caso – nos diz Althusser – Marx construiu uma teoria essencialmente “quantitativa” da mais-valia, deduzindo daí consequências polí-ticas totalmente impróprias à compreensão e à crítica da exploração, da função da ideologia, da complexidade do processo de submissão da sociedade ao capi-talismo. No segundo caso, a teoria de Marx e, com maior razão, a de Lênin, são

19 Texto originalmente publicado sob o título Pour Althusser. Notes sur l’évolution de la pensée du dernier Althusser em Futur Antérieur, Editions L’Harmattan, 1993, pp.73-96.

20 Traduzido por Pedro Eduardo Zini Davoglio.

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claramente insuficientes – e, certamente, não no sentido que os eurocomunistas e outros como Bobbio disseram a seu tempo, afirmando sua impossibilidade de passar dos elementos da crítica do Estado burguês à construção do Estado da socialdemocracia; ao contrário, diz Althusser, a crise do ensinamento de Marx e de Lênin a respeito do Estado deve-se ao fato de que a crítica radical do Estado burguês não está acompanhada de uma perspectiva de reconstrução do poder na prática das massas, nem de uma crítica preventiva dos desvios da ditadura do proletariado, e tampouco de uma hipótese criativa sobre as práticas constituintes de massa que se desenvolvem entre a destruição do Estado e a construção de uma nova ordem social. Sobre esses pontos, nos clássicos do marxismo, a crítica permanece aberta.

Não obstante, mesmo em momentos como esse, a crise é útil ao conceito. Uma concepção quantitativa da exploração permite reunir massas consideráveis na luta revolucionária a propósito do salário. Uma concepção destrutiva do Estado permite acentuar o processo insurrecional. Mas não atualmente. Atualmente “algo está erado” ou, dito de outro modo, a possibilidade de utilizar positivamente a cri-se está descartada. Por quê? Porque um elemento diferente, aleatório, um “fora”, um “detrás”, “algo inesperado”, interveio maciçamente. A filosofia marxista da prática social não pode fazer nada além de sofrer esta irrupção do real na esfera do conceito. Porque, a partir desse momento, ela deve renovar seus instrumentos para contribuir novamente com a luta.

Mas o que é esse elemento novo, aleatório e, portanto, muito real, que rompe a continuidade da prática filosófica? No momento, somos incapazes de nominá-lo: sabemos somente que o sentido da crise foi invertido: embora antes estivessea serviço da revolução, no presente torna-se negação de sua possibili-dade. Como? Por quê? O filósofo não pode tomar o lugar do real: o real fala e o filósofo interpreta o real ao interpretar as práticas. Por que, então, a inversão do sentido da crise? A esse questionamento radical, Althusser não fornece, no momento, resposta alguma. Serápor razões de oportunidade política? Porque a resposta só pode nascer no seio de um movimento operário organizado? Não, em 1997 já estava amadurecida em Althusser a consciência da incapacidade dos diferentes partidos comunistas de responderem a esta questão. Seu escrito, pu-blicado em Le Monde em 1978, a propósito da política do Partido Comunista Francês (PCF) e de sua incapacidade estrutural de se abrir à crítica do real, já é implicitamente claro. E Althusser não nutre ilusões a respeito do movimento esquerdista: há muito tempo já não é um movimento subversivo e radicalmente inovador, desde o instante preciso em que deixou de ter a força e uma ideologia

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suficientemente articulada para resistir à chantagem das corporações operárias organizadas pelo PCF, no curso dos anos que se seguiram imediatamente a 1968. Depois disso, já era muito tarde.

É, assim, em uma situação de vazio da prática, e,portanto da teoria, que a questão de saber o que se perdeu deve ser abordada. A resposta à ruptura e a definição do elemento aleatório que a produziu constituem, assim, o fio condutor de um novo questionamento filosófico levado ao extremo. Uma última nota a pro-pósito desta radicalidade extrema do questionamento: o pensamento de Althusser revela aqui, novamente, sua natureza essencial de pensamento sintomal, de aná-lise intempestiva, que se desenvolve através de saltos qualitativos. Descontinui-dade e intempestividade são a alma da prática teórica, como a crise é a chave da dinâmica real. Se no momento falta uma resposta substancial à questão proposta, a metodologia, entretanto, está preparada para a radicalidade do processo real – e, portanto, teórico. Como Althusser está próximo de Benjamin!

A solidão de Maquiavel

O fato de que a crise compromete a realidade da revolução mundial não exclui a necessidade da prática teórica. A crise continua sendo o pressuposto do pen-samento crítico, a fim de que ele possa tornar-se novamente o motor do movimento revolucionário. Mas “algo se perdeu”: não apenas no real, mas também em nós, na filosofia, enquanto atividade que desempenhamos e organizamos, entre prática e conceito. É na solidão que podemos agora continuar produzindo teoria e projeto da prática. A partir de 1978, Althusser retoma, repetindo, reelaborando análises e con-ceitos, seu trabalho sobre Maquiavel. Maquiavel, o político e o filósofo, o sempre solitário. Num primeiro momento, Maquiavel aparece a Althusser sob o disfarce do político; mais tarde, a análise tenderá cada vez mais a colocar em primeiro plano o aspecto filosófico. A partir destereinicio da pesquisa, há uma conferência em 1978 no Institut d’Éstudes Politiques, “A solidão de Maquiavel”. O princípio que sustenta a análise é a descoberta de um paradoxo: “Pensar o novo na ausência de todas as condições”. Aqui está Maquiavel. Sua escolha política é escolha de campo; é uma singularidade intempestiva, um pensamento do poder que devém enigma, na medi-da em que falha em resolver praticamente os problemas postos pela sua participação na vida política de um país. Retomando a análise tradicional do pensamento de Maquiavel (que remonta a De Sanctis e a Gramsci), Althusser apresenta-o como um pensador ante litteram da unidade italiana, como o teórico de um Estado unitário, novo, livre dos entraves feudais que caracterizaram as velhas estruturas do poder principesco ou republicano: um Estado capaz de durar, de crescer.

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Mas isso não é o essencial. Com efeito, depois de ter recuperado a inter-pretação tradicional de Maquiavel, Althusser a inverte: não é tanto o projeto que revela o caráter radical expressado pelo pensamento de Maquiavel quando ele encara a impossibilidade de realizar o projeto, o pensamento do novo, consequen-temente, na ausência de todas as condições da renovação. Ou melhor, na ausência de todas as condições de possibilidade: o desejo de um Estado unitário e de um Príncipe novo está ontologicamente presente nas massas e o processo constituti-vo da imaginação revolucionária e da prática de acumulação organizativa estão bastante ativos no pensamento. Mas tudo isso não afeta as condições históricas efetivas, não abre o processo constituinte para além das dificuldades que a situa-ção internacional impõe à Itália do Renascimento tardio. O pensamento científico de Maquiavel, inervado por uma potência constitutiva sem igual, é então aqui, obrigado a definir-se na separação,– mas a separação e a solidão constituem o máximo de radicalidade queo pensamento oferece ao caráter aleatório do devir, da historicidade, em um horizonte completamente a-teleológico.

Assim, não é a figura do “leão” que caracteriza o pensamento de Maquia-vel, seu culto realista da força, mas a da “raposa”, o escândalo que representa a simulação da revolução na ausência de todas as suas condições e a provocação que consiste em expressar ininterruptamente uma verdade revolucionária que é inaceitável nas condições dadas. A “raposa” é a verdade proibida e forçada. Ou, dito de outra maneira, a violação da impossibilidade e, ao mesmo tempo, a in-cessante redefinição teórica do possível. Na ruptura da continuidade histórica, a solidão devém, então, intempestividade criadora. O quadro estrutural da análise teórica althusseriana precedente é completamente invertido: a teoria não indica mais as convergências e as consequências de modo estrutural e sistemático, ela indica, ao contrário, as rupturas e os paradoxos, os vazios e os centros da crise. A leitura de Maquiavel começa a apresentar seu distanciamento em face da interpre-tação canônica de Gramsci, da qual ela partiu: isto significa que, daí em diante, Gramsci e Maquiavel não são mais apresentados enquanto fundadores de partido, mas como descobridores da hipótese do caráter aleatório, da relação intempestiva entre a radicalidade do projeto de libertação e a ausência, o vazio de condições. Na parte inédita da conferência de 1978, Althusser evoca as “surpresas” e os “en-contros impossíveis” que o aprofundamento desta leitura de Maquiavel poderia permitir. Trata-se de construir a imagem de um Maquiavel filósofo, “o maior de todos os tempos”, que antecipa e prefigura Spinoza e Heidegger, Freud e Derrida, aos quais virão muito rapidamente somar-se Nietzsche e Deleuze.

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Por quê? Porque aqui, pela primeira vez na história do pensamento revo-lucionário, a historicidade é descrita enquanto ponto de vista constitutivo, pleno do desespero da derrota e vazio de toda prefiguração que não seja somente dese-jo, a universalidade de um desejo aleatório. Algum tempo mais tarde, durante a redação de “O amanhã dura muito tempo”, Althusser retorna a Maquiavel. Esse texto, bem como outro sobre Spinoza, não são publicados na Autobiografia. Al-thusser o destina a um “pequeno livro” separado, consagrado a esses autores (AL-THUSSER, 1992). Ali, nessas paginas inéditas, a tomada de distância em face da interpretação gramsciana de Maquiavel, anteriormente anunciada, se realiza ple-namente. As “surpresas” e os “encontros impossíveis” se concretizam. O afasta-mento das “utopias infantis” de Gramsci é total. De outro modo, o pensamento da “raposa” assume uma consistência nova: “ser raposa” – enquanto condição para devir “leão” – significa dali em diante ocupar-se da potência do corpo, dos corpos, da multidão, mais que do poder e da “política”. O “poder” e a “política” aparecem como privados de todas as determinações que não sejam aquelas da violência e, consequentemente, como o oposto de uma potência que reside no povo, no social, nas articulações microfísicas dos corpos e das resistências.

A referência a Foucault e a Deleuze, porém, é desenvolvida sobre um terreno ontologicamente diferente: Althusser não se interessa unicamente pela in-tempestividade e a descontinuidade da potência social, ou pela microfísica e a di-fusão rizomática das resistências, ele procura revelar esta multiplicidade enquanto signo de uma multidão de trajetórias ontológicas, de subjetividades fundadas so-bre a estabilidade de uma tendência comunista. A intempestividade maquiavelia-na, o vazio das condições segundo as quais se mede o desejo, a ausência de de-terminações positivas, tudo aquilo que ontem repousou sobre a irreversibilidade da definição ontológica do desejo, repousa hoje sobre a definição do comunismo como realidade que não se pode suprimir. Maquiavel comunista? Certamente não. E, no entanto, Maquiavel, pensador de uma prática que funda o desejo de potência sobre a plenitude de uma ontologia positiva e sobre o nada das condições históri-cas. É evidente que a problematização da crise atual encontra aqui, em sua base, a necessidade de uma redefinição do comunismo enquanto horizonte irreversível da ação humana e da prática teórica.

Margens, interstícios

O que significa, então, desenvolver uma prática revolucionária “na au-sência de todas as possibilidades”? O que significa pensar o novo no vazio de toda condição? Significa, em primeiro lugar, inverter o ponto de vista tradicional

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da filosofia, dito de outro modo, a presunção de pensar o real (ibidem). A recusa althusseriana da epistemologia não é aqui senão a retomada e a confirmação de uma atitude que está na base da “prática teórica”. E, no entanto, essa recusa da epistemologia e de todas as teorias idealistas do conhecimento aprofundou-se e abasteceu-se de uma nova intensidade, porque o que é necessário no momento é “pensar com o corpo”. O problema não é, então, simplesmente o de recusar o idealismo, mas também toda forma de materialismo que não assume um ponto de vista rigorosamente nominalista e, sobretudo, a corporeidade da adesão ao “ver-dadeiro” como “index et sigillum sui”.

Em segundo lugar, então, assumir a responsabilidade de pensar o novo sobre o vazio de todas as condições significa pensar com o corpo. É, pois, afirmar uma prática teórica em que “corpus et mens” são uma só e mesma coisa, um es-cudo imediato contra toda prática especulativa. É entre Maquiavel e Spinoza que se afirma a “via real” do materialismo, essa via que Marx também percorrerá. De Maquiavel, de sua concepção do político, de sua consideração radical do caráter factual e aleatório de toda conjuntura, já se tratou. Agora, é Spinoza quem nos permitirá avançar21, não somente em razão de sua desmistificação da teologia (que o faz criador da moderna teoria da ideologia), não somente em virtude de sua retomada, sob a forma de uma refundação, do nominalismo (que retira assim da epistemologia toda pretensão de fazer parte da filosofia), mas, sobretudo, por sua teoria do corpo e do mundo imediatamente vivido que ele propriamente elaborou. Nas obras anteriores de Althusser, Spinoza aparecia, sobretudo como o funda-dor de um horizonte materialista estruturalista, como o principal intérprete da teoria do “processo sem sujeito”. Aqui a interpretação de Spinoza é aprofundada e o anti-humanismo de Althusser, modelado sobre o pensamento de Spinoza, se fortalece e se dinamiza, uma vez que na teoria do corpo em Spinoza, Althusser encontra esta unidade ligada ao projeto do corpo e da alma, esta potência sem condições, esta antecipação formidável de uma libido positiva que nos conduz a uma abordagem do mundo na qual a relação entre singularidade e universalidade se dá no interior da prática teórica.

Para apoiar seu ponto de vista, Althusser oferece uma ampla discussão do “conhecimento de terceiro gênero” em Spinoza. Esta interpretação é muito prova-velmente discutível do ponto de vista da filologia spinozana e, em todo caso, não esclarece plenamente este conceito bastante misterioso. Ela lança, contudo, uma luz sobre o conceito althusseriano de “pensar através do corpo”: um pensar que, na

21 Ver o manuscrito Spinoza, preparado no interior do trabalho para a Autobiografia, 1986 (datilografado, Arquivos IMEC).

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apreensão do real, estende ao máximo a potência da subjetividade no horizonte de uma universalidade nominal e,não obstante, fundamentalmente real, que constrói, portanto, sempre um limite em que o ser real e concreto e o não-ser abstrato se encontram, em uma proximidade e uma distância constantemente reconstruídas. Está em ação aqui, uma vez mais, a “metodologia da raposa”: no conhecimento de terceiro gênero “spinozano” em Althusser, o amor spinozano devém prática, e a inteligência de Deus (intellectualis Dei) devém deslocamento liminar do desejo, universalidade que aprendemos na prática e que realizamos na tendência.

Mas voltemos ao real, isto é, a Marx. Como fazer coincidir esta nova lei-tura da dinâmica abstrato-concreto com a análise teórica do projeto revolucioná-rio? O que dizer sobre a relação descrita por Marx (e resgatada pelo Althusser de Ler o capital e, sobretudo por aquele de Aparelhos Ideológicos de Estado (A.I.E.)) entre singularidade do trabalho vivo e dominação abstrata do Capital e do Estado? Essa relação, considerada em outros momentos na sua interação, já não pode mais ser tida como tal: “Agora as coisas mudaram bastante”. O que houve realmente? Houve que a ideologia estendeu massivamente sua dominação sobre todo o real. O real se confunde em grande parte com a ideologia. Se os AIE engendravam o poder e o singularizavam mecanicamente através de diversas instituições, hoje em dia esse poder funda-se no todo do processo social. O mundo, diríamos nós, está subsumido ao capital. Althusser, sem estender-se demais, segue nesse ponto o pensamento de seu aluno e amigo, Michel Foucault. Mas, como para Foucault, esta ampliação pós-moderna do poder dos AIE, esta sobredeterminação ulterior da dominação que a sua unificação provoca não se passa sem resistência. Resis-tência do corpo, resistência dos corpos. Mas onde e como verificá-la no interior de uma lógica de total subsunção da sociedade ao capital? Onde, no interior de um tecido em que toda alternativa geral faliu (“o socialismo é uma merda”)? É ao corpo, ao que é imediatamente vivido, que o pensamento deve dirigir-se, de modo totalmente spinozano: lá onde os corpos se organizam nos interstícios do poder capitalista nos quais vivem (como fora durante a acumulação capitalista originária) relações de comunidade, lá onde a resistência produz zonas em que “não reinam as relações de mercado”22. Novamente é o tecido ontológico do co-munismoque se opõe, resiste, reconstrói, contra a totalidade da dominação.

O comunismo, hoje, não se apresenta como projeto, mas como resistên-cia, contrapoder, singularidade, que está no coração do sistema (“ilhas de co-munismo”, “interstícios”, interpretações singulares do “clinamen” epicurista

22 L. Althusser, L’avenir dure longtemps, cit., p. 217-218. Mas ver outras indicações sobre os mesmos temas nas páginas que seguem este artigo.

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emanando de grupos resistentes) ou ainda na “margem” do sistema: ali onde o totalitarismo da subsunção capitalista do social ainda não se realizou. Deve-se confiar, contra o Estado, contra o capital, contra os partidos, nos movimentos de massa, na forma criativa de sua expressão (coordenações isentas de dominação hierárquica) – só eles são capazes de suscitar a libertação, de unificar as resistên-cias insulares e as potências marginalizadas contra a lógica do poder. Afastamos--nos novamente de Gramsci e dos vícios de “terceiro internacionalista” de sua teoria: o “pessimismo da razão” e o “otimismo da vontade”, Althusser nos diz, não têm qualquer utilidade para quem age nesse terreno: o voluntarismo, deci-didamente, não compensa. Ao contrário, é o otimismo da razão enquanto inteli-gência da resistência necessária, isto é, deste antagonismo inevitável que operará a renovação nesta “Holzweg der Holzweg”, a partir deste “caminho de caminhos que não conduzem a lugar algum” e que, entretanto, nos obstinamos a percorrer, sem programa, “tomando o trem em marcha”, sem cessar de nos aventurarmos no território do ser desconhecido.

O “Kehre” althusseriano

Trata-se de um momento do último Althusser, à beira da crise vital que o conduzirá a um relativo isolamento, no qual se realizará um giro decisivo do seu pensamento. Como em todo “Kehre” filosófico, os elementos de continuidade e os elementos inovadores se entrelaçam, mas os segundos conquistam a hegemo-nia. A continuidade do pensamento de Althusser se verificatambém nessa mu-dança, particularmente quando examinamos sua metodologia: ele continua, com efeito, a desenvolver uma leitura sintomal23 do real (dos textos e dos acontecimen-tos) ou dito de outra maneira, uma leitura que não exalta tanto os elementos que constituem logicamente o conceito ou o acontecimento, mas os que desorganizam e debilitam sua ordem. Aplicado a Marx em Ler O capital, o “método sintomal” estende-se, porém – e é nisso que consiste a novidade da pesquisa – à análise da crise do marxismo, da catástrofe do socialismo real e, sobretudo, da coerência do poder capitalista que é reafirmado na passagem à subsunção real da sociedade ao capital, entendida como totalidade do controle ideológico.

A inovação é muito importante. Para resumir seu significado, é suficiente destacar aqui que a própria definição de materialismo transformou-se: da ênfase na crítica das “relações de produção”, a atenção é deslocada para os processos

23 J.M. Vincent, La lecture symptomale chez Althusser, intervenção no colóquio da Universi-dade Paris VIII-Saint-Denis, sobre Althusser, novembro de 1991 (publicado nesta coletânea).

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constitutivos de novas “forças produtivas”, o que tem consequências determinan-tes: em primeiro lugar uma consideração aberta (e que definitivamente deixou de ser estrutural, hermenêutica), das relações existentes entre “forças produtivas” e “relações de produção”; em segundo lugar, uma insistênciacada vez mais fortenos fatores subjetivos do desenvolvimento histórico, considerados segundo uma ló-gica “esquizo” de fragmentação dos processos objetivos; em terceiro lugar, uma acentuação da consideração do “aleatório”, do “fortuito”, do acontecimental que – consequentemente – são entrevistos como possibilidade aberta à intervenção constitutiva da subjetividade. Inútil destacar, um pouco cruelmente, que Althusser perdeu muito tempo e talvez tenha perdido algumas ocasiões históricas decisivas, antes de aceitar o que Rancière (aluno sempre amado, segundo o testemunho da Autobiografia)24 lhe propôs desde o início dos anos 1960.

Melhor seria insistir sobre a profundidade dessa passagem que vai de uma concepção metodológica e hermenêutica de uma teoria fragmentada (a “lei-tura sintomal”) a uma concepção ontológica da crise como chave de leitura do processo histórico e da potência como motor de transformação do real. Potência, como “o político” maquiaveliano, como a “potentia” spinozana, como a “Wille zur Macht” nietzcheana. Não é mais questão, porém, de luta de classes na teoria. Nem de prática teórica na ideologia. Ou melhor, ainda encontramos tudo isso, mas encontramos, sobretudo, a procura por uma subjetividade aberta que busca elabo-rar simultaneamente teoria e luta, a saber, um conceito de prática no qual resolver a filosofia. A filosofia enquanto “Kampfplatz”, está reconhecida no presente.

Convém nos determos ainda um momento sobre a importância dessa passagem, para insistir sobre o fato de que não se trata de um salto na noite, de uma escolha arbitrária. As continuidades são tão importantes quanto as desconti-nuidades, mesmo que o novo domine o quadro metodológico. Com efeito, além do método, mas com consequências determinantes sobre o método, a transfor-mação conceitual funda-se sobre o aprofundamento contínuo da temática dita dos AIE. A esse propósito, Althusser considera sua contribuição à teoria mar-xista como fundamental. Com efeito, a relação “estrutura-superestrutura” é aqui definitivamente interrompida. Mas a unidade do marco reconquistado não será suficientemente estabelecida enquanto nele não estiver fixada a consolidação de uma nova situa ção histórica. Na sua terminologia, na inteligência de um proces-so do qual seguem monstruosos desenvolvimentos, Althusser dá aqui a sua defi-

24 L. Althusser, L’avenir dure longtemps, op. cit., p.226 e seguintes. Cf. J. Rancière, Sur la théorie de l’ideologie. La politique d’Althusser, in “L’homme et la société”, n. 27, Editions Anthropos, 1973.

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nição do “pós-moderno” como a expansão contínua e a contiguidade totalitária sempre mais intensa do funcionamento dos AIE. Sobre a continuidade e sobre a contiguidade efetua-se, então, um salto qualitativo. E se a antiga definição dos AIE permitia definir a luta de classes na teoria, agora a luta de classes, isto é, a luta política pela democracia, pela expressão da potência da multitudo, deve ser orientada para fazer frente ao novo adversário, neste enraizamento real que é o equivalente de sua potência ideológica. O chamado à subjetividade não é então um escamoteio: é, ao contrário, a identificação do terreno necessário para uma réplica antagonista à restruturação capitalista. É evidente que o discurso, em per-feita coerência com a definição althusseriana da nova subjetividade, poderia ser aplicado à natureza nova das forças produtivas, sobre os caracteres imateriais, abstratos, cooperativos do trabalho social. É aí, com efeito, que a nova subjetivi-dade se forma, e é aí que ela tem possibilidade de recolocar o desejo revolucio-nário. Mas Althusser não se detém senão de modo episódico sobre este aspecto sócio-político do discurso25.

É aqui, por fim, que compreendemos o sentido deste “algo se perdeu” de onde partiu toda a crise do pensamento althusseriano. Está perdida, com efeito, a possibilidade de lutar face a face (de frente), porque o capitalismo nivelou o terreno da relação entre Estado e sociedade ao ponto de confundir um e outro (este é outro ponto em que a referência a Gramsci não é mais possível), porque o Estado tornou-se, consequentemente, um ponto privado de conteúdo e apenas a sociedade apresenta-se ao mesmo tempo como terreno absolutamente reabsor-vido no poder e totalmente disponível à explosão do aleatório, porque a partir de agora a exploração, mais do que atravessar as linhas de divisão entre as classes, insinua avançar sobre as consciências e as dimensões subjetivas de todos os atores sociais de modo que falar de “transição” socialista não faz mais sentido. A crítica deste último conceito nos permite, talvez melhor do que qualquer outro ponto, esclarecer a continuidade e a diferença do pensamento de Althusser na “Kehre”. Na crítica do conceito de “transição” socialista resume-se, com efeito, a recusa de toda perspectiva teleológica que é própria ao pensamento althusseriano desde o início de sua aventura filosófica; e, de outro lado, e este é um elemento novo no pensamento de Althusser, surge aqui uma concepção da “passagem a outra coisa”, isto é, o processo revolucionário como passagem aleatória – totalmente imprevista, mas muito real – ao comunismo. A “tabula rasa”, que a prática teórica impõe contra toda teleologia residual é o equivalente adequado da nova situação

25 É, sobretudo no Postface à l’interview Navarro, op. cit., que Althusser introduz o conceito de “sociedade de comunicação”.

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de dominação social totalitária da ideologia à qual o desenvolvimento capitalista nos força. Aqui está perdida a última possibilidade do socialismo: apenas o comu-nismo é real. Aí está o conteúdo da “Kehre” na prática teórica de Althusser.

O materialismo aleatório

Duas grandes tradições se opõem na história do pensamento filosófico constituindo o “Kampfplatz” que é a filosofia. Mas essas duas tradições antago-nistas não são aquelas do idealismo e do materialismo. Trata-se, de um lado, da tradição do “materialismo aleatório” e, de outro,de todo o resto. Há formas de materialismo, como aquelas que o stalinismo santificou, que constituem de pleno direito um elemento da tradição “bendita” do pensamento filosófico, isto é, da tradição que justifica o poder e exalta o Estado. Em oposição, é das filosofias idealistas ou espiritualistas que se alimentou a tradição “maldita” do pensamento filosófico, aquela que se instaura sobre a potência e sabe expressar a crítica prática do poder e da ideologia. As duas tradições, a do materialismo aleatório e a da jus-tificação idealista do poder não cessaram de opor-se ao longo de toda história do pensamento ocidental – frequentemente de maneira hipócrita, mistificada.

Althusser reconhece aqui que ele próprio também cedeu, em sua primeira experiência de filósofo marxista, a um desvio idealista (“o teoricismo”) com o objetivo de combater, no interior do movimento operário oficial, a calamidade do pensamento socialista que era representada pelo “diamat” (Dialektische Ma-terialismus). Mas desde então os tempos mudaram: essas estratégias teóricas não servem mais para nada. Em todo caso, a partir de Maquiavel torna-se explícita esta longa tradição que desde Epicuro se tem nutrido da heresia e da luta. É sobre essa base que o confronto ideológico, na filosofia e nas ciências humanas, conti-nua aberto.

Em Maquiavel, o materialismo aleatório funda-se sobre a modernida-de; em Spinoza, o materialismo aleatório se explicita como ponto de vista do conjunto sobre a natureza, sobre o homem e sobre a história. A destruição de todo horizonte teleológico, isto é, a afirmação positiva de uma lógica do aconte-cimento, é uma característica fundamental do materialismo aleatório. Esta lógica aparece em Maquiavel, quando a concepção do acontecimento e da historicidade se dá de acordo com o esquema “se... então...”. A causalidade está submetida ao caráter aleatório da superfície: em Spinoza, a causalidade se realiza totalmente na superfície, toda necessidade interna é suprimida, toda finalidade ignorada, pela simples razão de que somente o efeito qualifica a causa. Mas deixemos Althusser

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nos dizer, sem intermediário, o que é o materialismo aleatório e em que consistem suas principais características26.

Se formos além das metáforas democritianas e epicurianas e se pensar-mos em uma metafísica do vazio, dos átomos e do “clinamen”, o sentido da prá-tica filosófica na modernidade (inspirado, no entanto, nessas metáforas) define-se – nos diz Althusser – através da mais radical crítica da dialética, do humanismo e do historicismo. A filosofia materialista – e aquela que Marx pode inspirar depois de sua própria obra ser submetida à crítica – organiza-se, então, como prática teórica que, no campo de batalha entre ideologias, representado pela filosofia, sustenta e impõe um ponto de vista antidialético, anti-humanista, anti-historicista. A dialética é, com efeito, nada além de uma figura do idealismo e o historicismo nada além de um disfarce do relativismo. Quanto ao humanismo, ele é produto da cultura burguesa enquanto tal, e por contadisso deve ser destruído. Ao combater seus adversários, o materialismo aleatório nos oferece a história enquanto histori-cidade concreta, nos propõe novamente o próprio homem, não mais como sujeito da história, mas, ao contrário, como sujeito na história.

Em primeiro lugar, então, o materialismo aleatório é um materialismo “totalmente nu”, algo que não é mais concebido somente “em última instância”, mas enquanto horizonte da presença, algo que existe sempre, qualquer que seja a ordem ou o deslocamento dos dominantes estruturais. Em segundo lugar, o ma-terialismo aleatório apresenta-se como afirmação da historicidade, “Geschichte” contra “História”, a saber, “res gestae” contra “historia rerum gestarum”. É aqui, em terceiro lugar, que se abre completamente o quadro: o homem na história, enquanto sujeito na história, sobre esta abertura sem finalidade nem necessidade, mas simplesmente disponível a todo aleatório e a todos os acontecimentos, cons-truindo sobre esse terreno práticas adequadas. Propor, pois, em filosofia, “posi-ções” (“Teses”); percorrer, na prática, caminhos, caminhos que voltam a se abrir sem cessar, tendências que se bifurcam continuamente... Tudo está determinado no materialismo aleatório, mas determinado “após o acontecimento”.

Chegamos assim a uma formidável definição filosófica, que nos leva de volta ao início, à explicação da relação entre crise, conteúdo ontológico comunista e indeterminismo absoluto da superfície. No materialismo aleatório, “toda deter-minação em ato mostra-se como variável aleatória de uma tendência invariante

26 L. Althusser, Intervista Navarro, op. cit.; Postface, cit.; Thèses de juin, cit; Sur le materialisme aléatoire (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).

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existente”27. Esta afirmação althusseriana torna-se perfeitamente compreensível se a determinação em ato for conhecida como prática teórica, isto é, como posição de tese, a variável aleatória como o ato histórico da afirmação na liberdade aberta da superfície, e a “invariante” tendencial como o conteúdo ontológico comunista que alimenta a liberdade dos sujeitos na história. É no interior deste emaranhado teórico que nós podemos reafirmar o primado da filosofia e da política, uma vez que tenhamos deste modo, em nome do materialismo aleatório, de seus métodos, de suas aberturas, operado uma revisão “dolorosa” da dialética, do conceito de me-diação, da perspectiva da transição, e,portanto, da concepção de socialismo (“tan-tos conceitos bastardos e nocivos”); e é no interior de nossa opção, completamente antiteleológica e aleatória, que poderemos dar conta da importância do movimento ideológico e político das massas, intersticial e/ou marginal. Liberemo-nos dos mi-tos, de toda concepção linear da transição, aferremo-nos ao primado da existência – que é o primado do comunismo, porque ele existe enquanto prática. Este cami-nho da prática teórica é possível se compreendermos que a ruptura da continuidade do processo revolucionário verifica-se em torno de um fato fundamental: o deslo-camento da luta de classes, deslocamento definitivo, fora da economia e da política em direção à ideologia. É na luta de classes na ideologia que a luta de classes em geral, a luta contra a exploração, vai se decidir. O “giro linguístico” que a filosofia nos propõe com Wittgenstein e depois de Wittgenstein (e que os filósofos france-ses, salvo, particularmente, Derrida e Deleuze, não compreenderam) é um giro histórico: ele manifesta a passagem dos vetores dominantes da estrutura produtiva da produção material à produção imaterial – é aqui que se deve lutar. Aqui, como fez Marx, existe a possibilidade de levar as margens ao centro28.

A potência do negativo

No desenvolvimento da teoria do materialismo aleatório, Althusser vai, entretanto, além das intuições esparsas anteriores sobre a função das “margens” e dos “interstícios” na organização do ser real. Ele tenta, assim, definir uma perspec-tiva geral de libertação, ou melhor, as condições de uma prática adequada. Pouco a pouco sua atenção se concentra sobre um tema que o estudo de Maquiavel já havia sugerido e que se torna aqui cada vez mais central: a potência do negativo, a saber, o lugar e a dimensão que o negativo, o vazio, assume na atual fenome-

27 Thèses de juin 1986, op. cit. Nesse escrito, a seguir, podemos acompanhar o desenvolvimento do raciocínio de Althusser.

28 Podemos seguir novamente as Thèses de juin e o Postface Navarro.

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nologia do ser real e as determinações práticas que ele enseja. A totalização pós--moderna do poder elimina, com efeito, conforme vimos, toda possibilidade da dialética. Consequentemente, a plenitude do poder reduz-se a pura negatividade, exaltada, simples superestrutura do vazio. A realização da ideologia como único terreno da racionalidade econômica, social e política, concentra em si a totalidade da insignificância e conduz toda experiência de resistência à irracionalidade.

Esta é a situação na qual nos encontramos e na qual o materialismo ale-atório faz suasexperimentações: uma situação em que a prática teórica, a resis-tência, a potência, não podem se exprimir a não ser no umbral do ser, nos limites do vazio. Já não é mais na margem, no interstício, mas na extremidade de uma totalidade vazia, no limite, que a prática teórica deve encarregar-se de construir o terreno da transformação. Como na grande mística, todo contato e, ainda mais, todo compromisso com o mundo, com o poder, são aqui definitivamente abolidos. Com a dialética, a mediação, o socialismo, a própria linguagem deve afastar-se da tentação de reproduzir o real. Esta mística da transformação e sua nova linguagem serão materialistas e aleatórias. Como resolver, no entanto, o paradoxo de uma percepção do vazio que inverte a insignificância e que se expressa de forma ma-terialista e prática? Como pôr em ação um pensamento da prática, resolutamente materialista, tendo esta negatividade como fundamento? Como reconstruir nela o valor da luta de classes? Como, praticamente, a potência pode surgir da negativi-dade? A resposta a essas questões, a propósito da qual Althusser filosofa (nos anos 1980, aqueles da maior recessão do pensamento e da prática revolucionários) só pode ser teórica29. No plano da teoria, procuraremos defini-la no tópico seguinte. Mas há, neste Althusser, uma tensão extrema para dar à série de questões que formulamos uma resposta que seja também prática ou, no mínimo, alguma indi-cação. A este respeito, recorrendo a um exemplo único e privilegiado, ele estuda a teologia da libertação sul-americana30. É precisamente nesta teologia que se en-contra a aplicação prática de certas hipóteses teóricas que entram na perspectiva da potência do negativo.

Em que consistem, no exemplo desenvolvido, tais hipóteses prático-te-óricas? Elas se concentram em torno de alguns pontos, que convém resumir. Na teologia da libertação, Althusser vê, sobretudo, um materialismo puro, um mate-rialismo “totalmente nu” que se articula em torno de certos verbos (comer, beber, vestir-se) que são próprios tanto ao marxismo quanto à linguagem do “Juízo uni-

29 L. Althusser, Théses de juin 1986, op. cit., Thèse II.

30 L. Althusser, Sur la théologie de la libération. Suite à um entretien avec le P. Breton, 28 de março de 1985 (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).

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versal”: um materialismo de origem cristã, uma prática materialista de ascendên-cia religiosa, mais do que uma teologia materialista (esta última, como foi o caso do materialismo dialético, suscita enquanto conceito a mesma impressão cômica que temos quando se ouve falar dos “logaritmos amarelos”). Isso no que concerne aos conteúdos. Em segundo lugar, a hipótese prática articula-se em torno de uma definição da pobreza como sujeito que revela a urgência da ação. “O choque da miséria sem nome é o primum movens desta teologia. Os teólogos da libertação chegaram ao mais urgente. O Cristo chegou ao mais urgente”. Isto no que concer-ne ao sujeito, e, na perspectiva de Althusser, isto é, uma posição não metafísica, ou melhor, pós-metafísica, já que pós-burguesa, à margem da conotação meta-física do sujeito dada pelo racionalismo burguês. O novo sujeito é definido, ao contrário, a partir do lugar irracional de suas necessidades e de sua prática. No que concerne ao método, enfim, a prática desse povo de pobres define-se não mais no quadro de uma teoria da redenção, mas justamente em uma perspectiva prática de libertação – uma prática crítica, concreta, revolucionária.

É aqui, sublinha Althusser, que a prática pode novamente exprimir-se – no interior de novas condições de aplicação – como posição e desenvolvimento do “vazio de uma enorme distância tomada” frente a toda concepção idólatra – contra a idolatria do dinheiro ou contra a superstição de um Deus fundador e garante da ordem social. O vazio: ou dito tal como aparece em outros textos desse último Althusser31, “o vazio infinito de uma distância tomada” em face de todas as con-cepções dialéticas, sempre idealistas; um sentimento de vazio que tem todas as características da percepção negativa e mística do ser (as referências de Althusser vão de Eckhart a Silesius, de Nietzsche a Heidegger) – mas uma “tomada de dis-tância” que, justamente em seu caráter extremo, revela-se novamente o lugar de um máximo de possibilidades, o lugar da potência. Não é por acaso que Althusser discute aqui, de um lado, os filões da interpretação cristã (agostiniana, franciscana) do conceito aristotélico de potência como possibilidade perspectiva, criadora, e de outro lado, as posições vitalistas que, criticando asperamente o positivismo, destro-em o europel do cientificismo e descrevem o horizonte da necessidade através das imagens do caos e do acontecimento. É aqui, portanto, que o materialismo aleató-rio é explicado a partir de outro ponto de vista, não mais simplesmente enquanto posição de uma alternativa teórica, mas como posição prática de uma totalidade invertida, enquanto extrema tensão de uma distância e de uma pobreza que são, não apenas no paradoxo, mas também no ser real, a única fonte de ação potente.

31 L. Althusser, Conversation avec le P. Breton, 7 de junho de 1985 (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).

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Maquiavel filósofo ou o lançamento do Ser

Feuerbach escreveu que toda filosofia nova se anunciaria através de uma palavra nova: para ele era a noção de homem, para Althusser a palavra nova é “sorte” [aléa]. Neste ponto, a dimensão filosófica de Maquiavel pode ser expos-ta32. Uma dimensão filosófica que cria a política nova, que a organiza de maneira geral como figura do ser. A “sorte”, pois, uma “sorte” que “nenhum lance de da-dos” jamais conseguirá abolir (“um lance de dados jamais abolirá o azar”) (sic). Mallarmé, com seu lance de dados, podia ainda pensar que ele determinava o ser: tratava-se de uma operação dialética. Apesar da dialética, o lance de dados não determina o ser a não ser descobrindo-o como ser negativo, como vazio. Não é a determinação que está em primeiro plano nesse jogo, mas o simples “lança-mento dos dados”: “o lançamento” é uma “sorte” – a determinação é aleatória, não dialética, e se o “lançamento” determina o ser, ele o determina unicamente enquanto vazio de predeterminação, de finalidade, de fixação. A determinação é a indeterminação: “‘lançamento’ próximo do lançamento do ser de Heidegger ou a abertura do vazio”. No interior desse vazio abrem-se as infinitas possibili-dades da intervenção desconstrutiva da fixação do real, da ideologia dominante e,simultaneamente, asinumeráveis possibilidades da prática revolucionária tal como esta tem sido definida desde Epicuro até a “revolução permanente” e o maoísmo. A filosofia é sempre, pura e simplesmente, política. O materialismo dia-lético, bem como todas as outras formas bastardas do materialismo, não pode ser superado até que se leve até o fim a definição da filosofia enquanto “Kampfplatz”, como terreno no qual se jogam os diversos caracteres aleatórios das posições. Mas a única posição verdadeiramente filosófica é aquela que assume o lançamento do Ser, o “lançar-se” no ser, enquanto exclusiva. O filósofo do materialismo aleatório é similar a certos heróis do Oeste americano que sobem no trem em marcha e se deixam conduzir até onde o trem lhes leve. Esse herói filosófico não tem nada a ver com o materialista que burocraticamente consulta o horário e decide o destino de seu trem. O filósofo do materialismo aleatório é um novo agitador IWW33, que porta a revolução onde quer que lhe conduza o trem do ser. Se regressarmos, de modo maquiaveliano ou marxiano, da metáfora à imagem filosófica, poderemos descrever o real não mais como uma verticalidade que conduz de um em cima

32 L. Althusser, Machiavel philosophe, 11 de julho de 1986 (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).

33 IWW: Industrial Workers of the World [Trabalhadores Industriais do Mundo] ou “Wobblies”, militantes sindicalistas revolucionários dos Estados Unidos que, no início do século, viajavam “clandestinamente” nos trens.

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para um embaixo, de um cume a uma base, do Estado e do centro capitalista à sociedade e aos circuitos da produção, mas como uma superfície cujo centro to-mamos, uma circunferência compacta e,finalmente, as margens que se estendem para além dos limites dessa mesma circunferência. Nele concentram-se o Estado, os partidos políticos, os fabricantes ideológicos do ser: ora, ele perdeu toda a sua consistência, é um buraco vazio que só a ideologia suscita. Se analisarmos a circunferência em torno do centro vazio, se nos revelará a existência dessa socie-dade pós-moderna que a unificação contínua e contigua dos AIE produziu. Esse círculo é o todo: o todo da dialética, o triunfo da filosofia hegeliana do espírito objetivo – a realização absoluta do espírito, o “fim da história”, como Kojève bem compreendeu. A história é aqui resolvida na administração, a realização eficaz da obra dos AIE mostra-se como ordem, regularidade, espessura insignificante do real. Enfim, encontramos o terceiro espaço, o espaço além do real, o espaço que se abre ali onde o todo burocrático mostra seu limite: “além deste limite os bilhetes não têm mais valor”, como disse Queneau a propósito do metrô parisien-se. Trata-se da margem, o único lugar vital, porque constituído de “lançamentos do Ser”. Esta margem repousa sobre o círculo da totalidade e infiltra nele atra-vés dos interstícios de resistências e das ilhas de comunismo. Mas, sobretudo, a partir desta margem, abrem-se os movimentos livres de reconstrução cultural para além da exploração e da opressão política, momentos de existência coletiva comunista. A filosofia retorna ao povo, constrói novos sujeitos e estende-se agres-sivamente contra o vazio do centro e de seu círculo, vazio o primeiro, ideológico o segundo, ambos não-essênciais. Este é, pois, o ensinamento de Maquiavel, o filósofo,– e é aí que se recompõem desta maneira todos os fios que haviam sido tecidos na última etapa do pensamento de Althusser em torno da imagem de uma refundação do político que encontrou em Maquiavel seu filósofo. Na sociedade do pós-moderno, que a ação dos AIE construiu enquanto sociedade compactada ideologicamente, já não há espaço sequer para a ficção da dialética. Tal é a ruptura que temos experimentado e suportado, tal é a ruptura que o movimento socialista é organicamente incapaz de superar. Mas esta sociedade pós-moderna, compacta e ideologicamente organizada, esta sociedade do fim da história, é vazia, insigni-ficante e totalmente negativa. O totalitarismo que a sustenta e a representa é frágil. O aleatório é a característica ontológica desta estrutura. Além desses limites, nas suas fronteiras, somente lá, se desenvolve uma ontologia nova, da resistência e da potência. No interior dessas margens, a inversão completa da totalidade central é produzida, ou melhor, constrói-se como redescoberta contínua do aleatório das es-truturas do poder, da vacuidade do centro. No terreno da ideologia, daí em diante

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completamente afirmada, que resume em si as dimensões do ser, desenvolve-se a resistência, a busca do comunismo. Assim conclui-se o ensinamento de Althusser: ele porta em suas consequências extremas os princípios críticos a partir dos quais transformou-se a análise do pensamento de Marx nos anos 1960 e abre a pers-pectiva de um prolongamento desta análise na sociedade capitalista da subsunção real – em que a luta contra a ideologia é também uma luta contra a exploração na produção. Não será fácil enterrar esta intuição de futuro, da luta comunista por vir.

Esta contribuição não teria sido possível sem a ajuda fraternal de Yann Moulier-Boutang, autor de Louis Althusser. Une biographie, volume I, Grasset, Paris, 1992, e sem a colaboração dos arquivos IMEC onde está o conjunto dos escritos de Louis Althusser. A Yann Moulier-Boutang e a Oliver Corpet, diretor do IMEC, meu vivo reconhecimento.

Referências

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___. Sur la théologie de la libération. Suite à um entretien avec le P. Breton, 28 de março de 1985 (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).___. Sur le materialisme aléatoire (folhas manuscritas, Arquivos IMEC).___. Spinoza. Trabalhos preparatórios para Autobiografia, 1986 (datilografado, Ar-quivos IMEC). Em português: L. ALTHUSSER. Espinosa, em A Corrente Subterrâ-nea do Materialismo do Encontro, Revista Crítica Marxista, n. 20, 2005, pp. 15-18.___. Thèses de juin 1986 (folhas datilografadas, Arquivos IMEC).VINCENT, Jean-Marie. La lecture symptomale chez Althusser. In. Sur Althusser pas-sages. Futur antérieur. Paris: Editions L’Harmattan, 1993.RANCIÈRE, Jacques. Sur la théorie de l’ideologie. La politique d’Althusser, in “L’homme et la société”, n. 27, Editions Anthropos, 1973. Em português: J. Ranciè-re, Sobre a teoria da ideologia, A política de Althusser, Porto, Portucalense Editora, 1971.

Antônio Negri, militante anticapitalista e filósofo materialista. Mundialmente famo-so por ter escrito os polêmicos Império eMultidão com Michael Hardt, é um dos mais destaca-dos estudiosos contemporâneos de Spinoza e de sua estirpe maldita do materialismo.

TradutorPedro Eduardo Zini Davoglio, bacharel em direito pela UFSC e mestran-

do em direito político e econômico pela U.P. Mackenzie. Bolsista CAPES/ProSup. email: [email protected].

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LUGARCOMUMNº41,pp.71-

Biopolíticasespaciaisgentrificadoraseas resistências estéticas biopotentes

Natacha RenaPaula Berquó Fernanda Chagas

Império e biopolítica: a lógica cultural do capitalismo cognitivo

Observa-se que, na ponta dos processos de segregação social em áreas urbanas de interesse do mercado, vem sendo utilizado o discurso da revitalização ou requalificação espacial, que, na prática, representa uma política que visa à substituição do público que frequenta, habita e utiliza determinadas regiões por outros públicos, de classes mais abastadas.

Nos grandes centros urbanos, a construção de equipamentos culturais como Museus, Bibliotecas, Óperas e Teatros tem sido determinante para o início desse processo de enobrecimento ou, também denominado, gentrificação. Neste artigo, busca-se mostrar como estas relações biopolíticas vêm sendo estabelecidas em algumas cidades.

Atualmente, o capitalismo apresenta-se como capitalismo global (orga-nizado em redes), cognitivo (o conhecimento se destina à produção de mais co-nhecimento) e financeiro (as finanças constituem a base de governança). Nesse capitalismo contemporâneo, são as cidades, e não mais as fábricas, os espaços da produção. Estabelece-se também uma nova relação de produção, na qual o trabalho imaterial é ligado à produção de subjetividade e de novas formas de vida. Na economia contemporânea, a dimensão cultural e cognitiva da produção ganha maior importância e o valor de um produto passa a ser determinado não só pelos custos de produção, mas também por uma série de valores subjetivos agregados a ele. Nessa nova relação entre capital e subjetividade, é o consumo das formas de vida, mais do que de bens materiais, que sustenta a promessa de uma vida feliz. Para Pelbart (2011), essa captura do desejo coletivo contribui para a manutenção das relações de poder na contemporaneidade.

Ao capitalismo global, cognitivo e financeiro corresponde uma estrutu-ra de poder pós-moderna, desterritorializada e descentralizada denominada por Hardt e Negri (2001) de Império. O Império, segundo os autores, não estabelece

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um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. Ele é um aparelho de descentralização e desterritorialização que incorpora gradual-mente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão, incluindo as nossas vidas e os nossos desejos. Dessa forma, o capital Imperial administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando bipolíticas e reguladoras.

A partir da leitura da obra de Hardt e Negri, Pelbart (ibidem) afirma que o Império, ao contrário do imperialismo, não obedece a fronteiras em vários sen-tidos. Ele engloba o espaço, domina o tempo ao se apresentar como eterno e defi-nitivo, e penetra na subjetividade das populações. Se os Estados-Nação visavam ao domínio sobre um território e à reprodução de riquezas, essa nova ordem é uni-versal e visa à produção e reprodução da própria vida. Se antes o poder soberano era mantido sobre uma sociedade disciplinar, o novo sistema exerce o biopoder sobre uma sociedade de controle.

Segundo Pelbart (ibidem), o biopoder está ligado com a mudança funda-mental na relação entre poder e vida34. Na concepção de Foucault, o biopoder se interessa pela vida, pela produção, reprodução, controle e ordenamento de forças. A ele competem duas estratégias principais: a disciplina (que adestra o corpo e dociliza o indivíduo para otimizar suas forças) e a biopolítica35 (que entende o homem enquanto espécie e tenta gerir sua vida coletivamente). Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de maneira integral, a partir da captura pelo poder, do próprio desejo do que dela se quer e se espera, e assim o conceito de biopoder se expande para o conceito de biopolítica. A ampliação desta acepção de biopolítica por Hardt e Negri situa o conceito como algo que acontece plenamente na socie-dade de controle, na qual o poder subsume toda a sociedade, suas relações sociais e penetra nas consciências e corpos. Sendo assim, as subjetividades da sociedade civil são absorvidas no Estado.

Mas a consequência disso é a explosão dos elementos previamente coor-denados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes; os pontos indi-viduais são singularizados em mil platôs (HARDT; NEGRI, 2001). Isso significa que o poder desterritorializante que subsume toda sociedade ao capital, ao invés

34 Enquanto o poder soberano detinha o direito sobre a morte de seus súditos, o biopoder interessa-se justamente pela vida, sendo a morte o escape a qualquer poder. Enquanto o poder soberano faz morrer e deixa viver, o biopoder faz viver e deixa morrer (PELBART, 2011).

35 Termo lançado por Foucault, em meados dos anos 1970, se referindo ao momento em que a vida das populações e a gestão desses processos são tomadas pelo poder como objeto político.

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de unificar tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade e singularização não domesticáveis. Na inversão de sentido do termo biopolítica, esta deixa de ser o poder sobre a vida, e passa a ser o poder da vida (PELBART, 2011), ou o que poderíamos chamar também de biopotência.

É essa perspectiva mais otimista sobre a biopolítica que abre espaço para a discussão da potência biopolítica da multidão, ou a biopotência da multidão, pois, acredita-se que paralelamente ou mesmo dentro deste sistema flexível do capitalismo contemporâneo, é possível resistir positivamente, ativando processos que fogem à lógica da captura das máquinas biopolíticas de subjetivação. Enxer-ga-se no poder político da multidão (corpo biopolítico coletivo, heterogêneo, mul-tidirecional) uma biopotência que produz e é produzida pelas fontes de energia e valor capitalizadas pelo Império. E é justamente por meio da multidão, com a for-ça virtual de seus corpos, mentes e desejos coletivos, que acredita-se ser possível resistir e escapar a essa nova ordem Imperial. Diante do poder virtual inerente à multidão, vislumbram-se novas possibilidades de subverter o Império e superá-lo, tirando partido do caldo biopolítico e das subjetividades coletivas. A multidão, enquanto organização biopolítica, é o que pode construir uma resistência positiva, criativa e inovadora, produzindo e sendo gerada pelo desejo do comum.

Retomaremos mais adiante, na terceira parte deste artigo, essas táticas de resistências multitudinárias aos processos gentrificadores de expropriação do co-mum, agenciados pelo urbanismo neoliberal contemporâneo, quando trataremos de eventos que ocupam criativamente as ruas de Belo Horizonte desde 2011. Faz-se a seguir um parêntese para detalhar melhor os processos gentrificadores que utilizam a cultura como vetor do discurso em defesa da melhoria do espaço público.

Gentrificação: quando a cultura é a principal força biopolítica da construção de territórios elitizados

A produção do espaço urbano, que incorpora estratégias de um urbanis-mo majoritário, tem grande impacto na configuração da paisagem urbana, na dis-tribuição socioespacial da população e dos serviços e pode desencadear processos de gentrificação.

O termo gentrificação provém da palavra inglesa gentry, originalmente usada para designar a pequena nobreza ou os proprietários de terra, e refere-se ao fenômeno de deslocamento da população original de uma área urbana em prol da posterior ocupação desta por outro setor populacional, de classe econômica geralmente mais alta, com apreensão e vivência da cidade, normalmente diversas daquelas dos habitantes originários.

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Na sociedade capitalista, a acumulação de capital é a força que motiva todas as ações. Assim, o desenvolvimento urbano e a urbanização, inseridos nessa sociedade, estão intimamente ligados à economia capitalista e são manifestação espacial direta do processo de acumulação de capital. Nesse contexto, a cidade deixa de ser apenas uma das partes no processo de acumulação e torna-se um espaço organizado para o investimento capitalista (MENDES, 2010).

Na sociedade capitalista, o desenvolvimento urbano acontece de forma desigual. A desigualdade cria as condições para que futuros investimento sejam feitos nas áreas subdesenvolvidas, dando origem a ciclos de investimento-desin-vestimento (SMITH, 1982). Os investimentos favoráveis à reprodução do capital implicam no abandono das classes mais pobres, especialmente nas áreas mais carentes. A necessidade de melhorar a imagem da cidade e torná-la mais atrati-va para o mercado internacional causa frequentemente a expulsão de habitantes de renda baixa das áreas centrais. Esses ficam condenados a uma marginalidade sócio-espacial, que tem relação direta com a manutenção da reprodução social das classes dominantes (MENDES, 2010).

A partir dos anos 1990 percebe-se que, em geral, os processos de gentrifi-cação evoluíram de renovações arquitetônicas e urbanísticas pontuais e esporádi-cas para uma estratégia urbana municipal aliada ao setor privado. A partir dessa fase, a gentrificação passaria a integrar políticas urbanas que visam a colocar anti-gos centros em evidência no competitivo mercado global. Na contemporaneidade, a gentrificação não acontece apenas como um fenômeno local e promovido por agentes isolados, mas também como um processo global, sistematizado, ligado ao Estado e com a intenção explícita de gentrificar a cidade por meio de uma renova-ção urbana de dimensão classista (SMITH, 2006).

Neste contexto de urbanismo majoritário neoliberal não é difícil perceber como a cultura, transformada em produto e apropriada pelo mercado, tem sido usada como uma arma política capaz de produzir consensos em torno do espetácu-lo urbano. Harvey (1993) já lembrava-nos deste papel fundamental da cultura ci-tando o exemplo da cidade de Baltimore, nos Estados Unidos, para mostrar como a partir da década de 1970 o espetáculo urbano foi apropriado por forças distintas daquelas da década anterior. Segundo o autor, nos anos 1960 o espetáculo urbano norte-americano constituía-se de movimentos de oposição de massa, com mani-festações pelos direitos civis, eventos contraculturais, levantes nas cidades etc., refletindo o descontentamento com os planos modernistas de renovação urbana. Mas, para um grupo de políticos e líderes de negócios, essas manifestações amea-çavam o centro da cidade, que contava com muitos prédios de escritórios e praças.

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Esse grupo procurou então reunir a cidade por meio da construção de um símbolo que pudesse trazer a ideia de comunidade e diminuir a insatisfação dos cidadãos. Foi assim que surgiu a Baltimore City Fair, uma grande feira que pretendia cele-brar a identidade étnica da cidade. Em pouco tempo, a feira tornou-se cada vez mais comercial, sendo responsável pela atração regular de milhares de visitantes ao centro da cidade. Logo, novos empreendimentos surgiram ao redor, como cen-tro de convenções e hotéis, concretizando a “comercialização institucionalizada de um espetáculo” (HARVEY, 1993).

Observa-se nesse exemplo a captura, pelo poder, dos movimentos cul-turais de questionamento e a sua transformação, através de uma estratégia niti-damente biopolítica, em espetáculo acrítico, cujo objetivo seria o de camuflar o dissenso e os conflitos presentes na cidade. No entanto este espetáculo urbano, bem como muitos outros, produzidos e aplaudidos até hoje, não solucionam pro-blemas básicos do meio urbano, como a desigualdade social, a falta de habitação e a especulação imobiliária.

A estratégia de estímulo à economia por meio da construção de equipa-mentos culturais e atividades puramente turísticas faz parte do processo de mu-seificação das cidades. Em detrimento do papel educativo e social que podem ter, museus e centros culturais passam a configurar um verdadeiro cenário urbano. A recuperação do patrimônio histórico-arquitetônico também faz parte dessa estra-tégia, que visa à construção de uma imagem da cidade. A nova imagem urbana tem função tripla: serve aos interesses publicitários da cidade espetáculo, esconde a pobreza que existe fora dela e desperta o orgulho dos cidadãos, facilitando a criação de um consenso em torno dessas obras. Na cidade produzida como ce-nário, o patrimônio é transformado em produto de consumo e seu valor de uso é transformado exclusivamente em valor econômico. O impacto para os cidadãos também é grande, uma vez que a implantação desses equipamentos frequente-mente provoca gentrificação. Para os que podem desfrutar desses cenários, des-vinculados dos residentes e usuários, resta apenas a teatralização da vida pública (LIMA, 2004).

Conforme visto anteriormente, no contexto capitalista atual, a cultura adquire grande importância em termos políticos e mercadológicos, relacionando--se intimamente com a construção das cidades espetaculares. Por representarem verdadeiras âncoras desse processo, projetos ditos “culturais” são cada vez mais valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacifica-doras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento ao turismo global conforma-se enquanto prioridade, em detrimento do atendi-

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mento às reais necessidades das comunidades locais. Isso aponta para mais um movimento de captura cognitiva por parte do sistema neoliberal, no qual a lógica cultural é expropriada e transformada, nesse caso, em recurso para o aumento do valor da terra nas cidades.

Assim, agentes públicos e privados, aproveitando-se biopoliticamente da conotação, geralmente positiva, que os projetos culturais possuem, bem como dos incentivos fiscais relacionados a tais iniciativas, promovem verdadeiras transfor-mações do cenário urbano, justificadas com base em um intuito “cultural”.Tais transformações abarcam principalmente áreas centrais das cidades, de forma a expulsar a população de baixa renda e implantar, em seu lugar, equipamentos que funcionem como motores da nova indústria cultural.

Cultura e expropriação do comum pela lógica desenvolvimentista da indústria cultural

A cultura e o surgimento exponencial dos equipamentos culturais em re-giões “degradadas” das cidades revelam um modo de agir do estado-capital, que propositalmente deixa áreas urbanas centrais estratégicas se deteriorarem, para depois lançarem projetos que, segundo campanhas publicitárias, vão promover a “revitalização” daquele território, tornando-o nobre, limpo e vivo. Por meio de legislações, projetos integrados e parcerias público-privadas, esta requalificação urbana atinge o ciclo da gentrificação que engloba desde o processo de degrada-ção até a valorização máxima da área.

Para Suely Rolnik e Felix Guatarri, o conceito de cultura é um conceito reacionário e serve para padronizar atividades de forma a torná-las autônomas dentro da lógica dos mercados de poder e econômico. Estes modos de produção criativos denominados cultura na sociedade contemporânea caracterizam modos de produção capitalistas através de modos de subjetivação formando um sistema de equivalência. Para os autores, o capital se ocupa da sujeição econômica e a cultura, da sujeição subjetiva (GUATTARI; ROLNIK, 2011). Neste sentido, a cultura de massa produz indivíduos normalizados segundo sistemas de valores e de submissão, ou seja, produz uma máquina de produção da subjetividade e faz com que a cultura exerça um papel fundamental neste processo biopolítico, que tenta controlar desejos e imaginários sociais.

Neste sentido bipolítico de controle majoritário do território urbano, a questão da cultura se expande e invade as políticas urbanas de “revitalização” urbana. Essa importância crescente faz com que as questões culturais adquiram grande valor no mercado. Enquanto reflexo desse processo, pode-se citar a cres-

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cente relevância com que vem sendo tratado o termo indústria criativa, princi-palmente a partir da década de 1990. Indústria criativa define-se enquanto um conjunto de atividades econômicas relacionadas à produção de informação e de conhecimento – tais como publicidade, arquitetura, artes, design, moda, cinema, música, rádio e televisão. Esse conjunto de atividades estabelece fortes relações econômicas com os setores de turismo, esportes, museus, galerias e patrimônio e adquire, assim, grande relevância no planejamento urbano enquanto suposto mo-tor de desenvolvimento e de inserção das “cidades criativas” no cenário geopo-lítico global. Isso exemplifica a nova lógica produtiva contemporânea, na qual a cultura tem seus laços cada vez mais estreitados com o mercado e constitui-se en-quanto ponto central em torno do qual o sistema capitalista cognitivo parece girar.

Segundo Szaniecki e Silva (2010), o termo indústrias criativas esconde-ria, por meio de uma pretensa ideia de inovação, o objetivo latente de expansão da linha de montagem industrial para além da fábrica, abarcando toda a extensão da cidade. Segundo a autora, os museus representariam para o capitalismo cognitivo o que a locomotiva representou para capitalismo industrial, ou seja, constituiriam o seu motor de funcionamento. Assim, tais equipamentos seriam responsáveis por difundir ideias, comportamentos, símbolos e linguagens que fomentariam o sistema, em um movimento que alia produção cultural e consumo. A conformação das cidades criativas a partir desse novo modelo industrial exemplifica a crescente incursão da economia no âmbito cultural, quase a ponto de causar diluição de ambas as esferas em algo único.

Nas indústrias criativas destaca-se a frequente presença de parcerias pú-blico-privadas, o que aponta para a inclusão de tais atividades no circuito merca-dológico do sistema dominado pelo estado-empresa neoliberal. A crítica, cunhada por Szaniecki a esse respeito, provém do fato de que muitas vezes, no âmbito das indústrias culturais financiadas por entes privados, a questão econômica passa a ser primordial, a cidade transformando-se em verdadeiro campo empresarial e tendo as suas questões sociais relegadas para segundo plano. Assim, esse modelo de produção e circulação criativo-cultural desenvolvimentista poderia desenca-dear pelo menos dois reflexos principais na conformação urbana: por um lado, a concentração de equipamentos em áreas nobres da cidade – direcionados à popu-lação apta a consumir os seus produtos, e por outro, um processo de gentrificação de áreas populares nos quais estes se inserem.

Não pretendemos, aqui, esgotar o discurso a respeito dos equipamentos culturais a partir de um parâmetro dualista no qual tais instituições apareçam de maneira totalmente e irreversivelmente negativa, mas sim promover um ques-

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tionamento crítico – que não se restrinja apenas aos aspectos turísticos, como normalmente é feito – a respeito da sua real eficácia no contexto social brasileiro. Uma das questões que pretendemos levantar é, até que ponto a política cultural brasileira poderia se dar de maneira mais conectada com o contexto social das co-munidades locais e menos a partir de uma lógica mercadológica externa, que res-ponda a termos estritamente econômicos? Se no caso europeu a situação de maior igualdade social permite que as iniciativas de grandes equipamentos culturais não gerem resultados tão catastróficos de gentrificação e consequente “apagamento” de práticas culturais locais, a forte disparidade econômica brasileira faz com que seja necessário pensarmos em outras e mais eficientes políticas de fomento à cul-tura, mais adaptadas ao contexto socioeconômico específico do Brasil.

Táticas de resistência criativa biopotentes da multidão como alternativa ao planejamento urbano gentrificador majoritário

Retomemos aqui a análise do pensamento de Pelbart levantada no início deste artigo a respeito da biopotência. Segundo ele, tal processo poderia ser en-tendido através do seguinte raciocínio, “ao poder sobre a vida responde a potência da vida.” A biopotência representaria, assim, um contraponto radical a esse po-der de captura capitalista, uma verdadeira reviravolta que se insinua no extremo oposto da linha, no qual a vida “revela, no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável.” Um dos motivos pelos quais isso se torna possível, segundo Pelbart (2011), é o fato que a força-inventiva da qual o capitalismo se apropria, não emana do capital, mas prescinde dele. O núcleo central em torno do qual gira todo o sistema representa, assim, justamente o que se tem de humanamente mais próprio, a força do pensamento e da criação. E essa força não só não deriva do capital, como existe antes e independentemente dele. Sendo assim, a resistência encontra-se na própria vida, e ao mesmo tempo no núcleo exato de dominação da mesma. Segundo Pelbart “a vida aparece agora como um reservatório inesgotável de sentido, (...) como um germe de direções que extrapolam, e muito, as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos” (PELBART, 2007).

Assim, surgem novas possibilidades de resistência, que devem ser pen-sadas, segundo o autor, a partir do reconhecimento de toda essa potência de vida, disseminada por toda parte. Cada indivíduo representaria um grau de potência es-pecífico, relacionado a sua capacidade de afetar-se e de ser afetado. A constituição de uma grupalidade abarcaria, portanto, todas essas singularidades, a partir de uma “variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão.”

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(PELBART, 2008). A potência de tal plano de composição, se pensada a partir das ideias de Deleuze, residiria justamente na sua capacidade de reunir com consistên-cia elementos díspares, em um movimento nômade, de variação contínua.

Estas ideias cunhadas por Pelbart aproximam-se do conceito de Negri e Hardt de multidão o qual, contrariamente à noção de “povo”, homogênea e transcendental, baseia-se na reunião de múltiplas singularidades e caracteriza-se por seu caráter imanente. Se vista na perspectiva do corpo, a multidão não só conforma-se enquanto reunião de corpos, mas, segundo Negri, todo corpo se-ria uma multidão. Nela os corpos se entrecruzam, se mestiçam, hibridizam-se e transformam-se, “cruzando multidão com multidão”.

Acreditamos que a biopotência, realizada a partir do princípio da multi-dão, possa dar-nos valiosas pistas a respeito das possibilidades de resistência aos processos biopolíticos do mundo globalizado. Na busca por alternativas ao pla-nejamento urbano que possam gerar processos de resistência positiva às pressões do Estado neoliberal e do mercado imobiliário, entendemos que um caminho pos-sível é o da experimentação. Não pretendemos, portanto, apresentar uma solução única, fechada e completa. Pelo contrário, serão defendidas aqui táticas enquanto possibilidade de ação em diversas escalas e meios.

A partir do reconhecimento de múltiplos grupos, agentes e forças, inte-ressados em construir a resistência criativa biopotente, apontamos a criação de redes de movimentos e ações como um princípio-guia para a elaboração de táticas de resistência. A multiplicidade desierarquizada (da multidão e das redes) corres-ponde a uma forma de organização rizomática36. A potência de tal sistema não reside em seus pontos, mas em suas linhas, ou seja, em seu movimento constante e superficial, e nas múltiplas conexões que dele resultam. Faz-se multidão não necessariamente a partir de muitos corpos, mas a partir de corpos múltiplos, que se interconectam em um movimento horizontal e contínuo de resistência. Movimen-

36 O conceito de rizoma será apresentado brevemente, de acordo com Deleuze e Guattari (2001). Segundo os autores, o rizoma é um sistema que nega o individual, a unidade, o dualis-mo. O rizoma se opõe à árvore-raiz por rejeitar uma estrutura principal. No rizoma “o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma rela-ção com o uno como sujeito ou como objeto” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 23). O rizoma não é feito de pontos e localizações, mas sim de linhas que ligam pontos quaisquer; linhas que são dimensões construídas, desmontáveis, modificáveis, reversíveis. Um rizoma não começa e nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e…e…e…”. Há nesta conjunção força suficiente para desenraizar o verbo ser (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 48).

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tos multitudinários consistem, assim, em singularidades ativas e interligadas que, a partir de sua capacidade criativa, fazem frente ao domínio do Império global a par-tir dos próprios sistemas – também rizomáticos – por ele utilizados para sujeitá-las.

O conceito de multiplicidades desierarquizadas amplia a compreensão sobre a resistência em redes. As redes sociais (virtuais ou presenciais) são, do ponto de vista das ciências humanas, uma “comunidade de sentido, na qual os indivíduos, sujeitos/atores ou agentes sociais são considerados como os nós da rede, ligados entre si pelos seus laços de afinidade” (SCHERER-WARREN, 2012, p. 128). Na contemporaneidade, as redes transformam as regras do jogo político-social bem como a atuação de movimentos e atores, uma vez que per-mitem formas de articulação e comunicação alternativas aos meios tradicionais.

As redes sociais acontecem de forma complementar nas esferas virtual e presencial. Enquanto as redes virtuais são mais abrangentes e ágeis, as presenciais possibilitam trocas mais intensas e discussões mais profundas (SCHERER-WAR-REN, 2012). A dimensão presencial leva a uma prática política que necessita de lugares da cidade para acontecer (reuniões, assembleias, eventos etc.), mas que muitas vezes são controlados ou negados à população.

Como os canais institucionalizados de participação são controlados e do-minados pelo Estado neoliberal, há que se buscar e ativar novos caminhos para uma produção mais autônoma e biopotente do espaço. Torna-se necessário criar um movimento de resistência que esteja ao mesmo tempo dentro e contra o sis-tema que produz (e que controla) o espaço urbano, por meio de ações táticas37.

Exemplos de tais movimentos são as ações de resistência que eclodem de maneira exponencial em Belo Horizonte nos últimos anos. Em 2009 surge na cidade, em resposta ao decreto número 13.863/2010 sancionado pelo prefeito Márcio Lacerda, o movimento “Praia da Estação”. O decreto limitava a realização de eventos na Praça da Estação, área na região central da cidade que apresenta qualidades cívicas para receber eventos de grande porte: é plana e permite aglo-meração de um grande número de pessoas. Esta medida polêmica deu continui-dade às políticas urbanas de cunho nitidamente mercadológico, emplacadas pelo prefeito desde o início de seu primeiro mandato.

37 Com base na distinção que Certeau (2012) faz entre estratégia e tática, entende-se que a postura tática, determinada pela astúcia de utilizar as falhas na vigilância do poder e por seu caráter criativo e plural, constitui um meio de fortalecer os mais fracos, ou seja, a vida como re-sistência pode ser ativada a partir de táticas de microurbanismo político. Acredita-se que ações artísticas e culturais podem, a partir de agenciamentos táticos, criar potencializar movimentos multitudinários ativando processos de apropriação crítica e efetiva dos territórios.

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O decreto referente à Praça da Estação foi o estopim de um processo de resistência ao mandato, que tornava cada vez mais explícito o monopólio de questões privadas nas decisões políticas concernantes ao planejamento da cidade. Tal medida foi motivada pelo suposto distúrbio ao Museu de Artes e Ofícios, localizado na Praça, por encontros religiosos. O Museu, que apresenta uma ar-quitetura de restauro impecável, é parte de uma entidade sem fins lucrativos, com título de utilidade pública federal, vinculada a uma das maiores empreiteiras do país. Frente ao decreto surgiu na Praça um movimento periódico de ocupação que questiona, de forma inusitada, as restrições de utilização daquela. A “Praia da Estação” vem reunindo, desde então, banhistas manifestantes que, carregando suas toalhas, cadeiras de praia, barracas, bicicletas e cachorros, ocupam a praça nas manhãs de sábado sob as águas de um caminhão pipa. Acontecimento espon-tâneo, a Praia tornou-se o principal foco de resistência à Prefeitura e também uma fonte inesgotável de ataque contra as suas políticas higienistas (RENA, 2013). A Praia provou possível experimentar o asfalto enquanto mar e o espaço público, controlado por interesses privados, não como lugar instituído, mas enquanto palco de afetos e trocas instituintes. A partir disso foi possível vislumbrar, por meio da experiência, o devir comum dos territórios públicos e, se não plantou-se semente, desencadeou-se rizoma, que como erva-daninha fez surgir inúmeras multidões criativas na cidade a partir de então.

Crédito da imagem: Priscila Musa / Praia da Estação em BH, 2013.

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Exemplo disso é o “Fora Lacerda”, movimento independente e suprapar-tidário que surgiu, dentro da Praia, com o intuito de reunir pessoas insatisfeitas com a atuação elitista do prefeito Márcio Lacerda em Belo Horizonte. O movi-mento foi responsável por gerar um verdadeiro ambiente estético de resistência na cidade, em torno do qual criou-se uma nova multidão. A cor laranja, símbolo do movimento, invadiu as redes sociais, presenciais e virtuais, impregnando as camisetas e as fotos de crítica e indignação. Esses procedimentos simbólicos fa-zem surgir na cidade uma nova potência que, por ser afetiva, escapa à mídia e às agências de publicidade, tornando-se a forma comunicativa da multidão. As pessoas aderem a ela com prazer. E foi assim que, desde então, o movimento gay, representantes de partidos políticos, de sindicatos e outros agentes culturais da cidade coloriram-se, de laranja, em torno de um comum.

O caráter essencialmente estético dos movimentos passa a ser uma das principais características da resistência que vêm se formando na cidade desde a Praia. O próprio carnaval belo-horizontino, que adquire grande força a partir de 2010, torna-se reconhecido nacionalmente por seu caráter estético-político. A desobediência é característica fundamental desse movimento, por meio do qual a multidão ocupa, ao som de marchinhas carnavalescas com alto teor crítico, ruas e praças, experienciando de outra maneira a cidade, inventando novos modos de percorrê-la e, por que não, de reconstruí-la.

Em junho de 2013, quando as manifestações eclodiam em todo o Brasil, a estética revolucionária já pairava no imaginário dos habitantes da cidade, que ocuparam o espaço público com seus corpos e reinvindicações, hibridizando-se momentaneamente em um corpo múltiplo e desorganizado, não abarcável por qualquer sistema organizacional que tentasse se impôr. Um corpo também sim-bólico e imaterial, que se manifestava por meio de cartazes e bandeiras, cantos e cores. O amarelo das camisas dos membros do COPAC (Comitê Popular dos Atingidos pela Copa) e o laranja antineoliberalista dos indignados com a gestão pública municipal dissolveram-se em meio às inúmeras outras cores que consti-tuíam, de forma dinâmica, a diversidade inquieta da cidade.

Logo após a primeira grande manifestação, criou-se, a partir deste corpo polifônico, uma Assembleia Popular Horizontal e, por meio desta, decidiu-se ocu-par a Câmara Municipal de Belo Horizonte. A ocupação, motivada pela exigência popular de abertura das planilhas orçamentárias que controlam o financiamento do transporte público, teve início de maneira inusitada. Como resposta à tentativa de repressão policial os manifestantes desenharam, com tinta vermelha, corações nas paredes, nos rostos e nos fardos policiais, dotando os mesmos de novas significa-

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ções. Táticas de desconstrução poética ganham aos poucos potência e apontam para novas formas de resistir, impulsionando guerrilhas estéticas que culminam na rea-lização daquilo que se chamou “A Ocupação” cultural, em sete de julho deste ano.

A Ocupação surge inicialmente enquanto trabalho conclusivo da disciplina Cartografias Críticas, coordenada pela professora Natacha Rena na Escola de Arqui-tetura da Universidade Federal de Minas Gerais. O objeto de estudo dessa disciplina era, na ocasião, o território subjacente ao Viaduto Santa Teresa, situado na região central da cidade de Belo Horizonte. A área foi escolhida como objeto pelo fato de estar em meio a um processo de “revitalização” forçado, conduzido pela Fundação Municipal de Cultura e supostamente financiado por recursos do Programa de Ace-leração do Desenvolvimento (PAC). O projeto consistia na requalificação da área e na sua transformação no “Corredor Cultural da Praça da Estação”, por meio de um projeto arquitetônico e urbanístico que previa, dentre outras ações, a incorporação de diversos equipamentos de cunho turístico à área. Pretendia-se, em linhas gerais, transformar a região, de caráter popular, em atração turística.

O baixio do Viaduto Santa Teresa apresenta-se, no entanto, enquanto ponto extremamente relevante para a articulação dos movimentos culturais belo--horizontinos. A área reúne, em seu entorno, mais de 20 equipamentos ligados à cultura, além de abrigar manifestações políticas e diversas ocupações urbanas de caráter efêmero e periódico. O Duelo de Mc’s, que ocorre há cinco anos debaixo do viaduto, aglomera integrantes de diversos grupos minoritários da cidade. As dis-putas musicais carregam mensagens altamente críticas, muitas vezes de denúncia, que revelam as dificuldades cotidianas sofridas pelos grupos marginalizados que frequentam e habitam a área. Nestas ocasiões, a Prefeitura não fornece qualquer tipo de suporte (como limpeza no local e banheiros químicos), o que contribui para o fortalecimento da imagem pretensamente degradada área, usada posteriormente pelo poder público para legitimar, frente à população, a sua intervenção “revita-lizadora”, exatamente dentro da lógica gentrificadora apontada por Neil Smith no início deste artigo. Porém, mesmo diante de tantas dificuldades, o duelo resiste. Espaço da diversidade, ele talvez represente, hoje, o exemplo mais radical de re-sistência da cidade. Ao reforçar seu caráter democrático, em muito contribuiu para que a área do baixio Santa Tereza passasse a ser reconhecida pelos belo-horizon-tinos enquanto local de grande importância política. Não por acaso a Assembleia Horizontal Popular, bem como os Grupos Temáticos (GTs) que surgiram a partir da mesma, elegeram-no enquanto espaço para a realização de suas reuniões.

O iminente risco de que essa região passasse pela revitalização tão so-nhada pelo mercado imobiliário e hoteleiro, que resultaria na expulsão de seus

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moradores e na desarticulação dos movimentos multitudinários que ali se encon-tram, motivou os alunos da disciplina a constuirem uma cartografia que mapeasse potencialidades e formas de usos criativos que ocorrem no local. Cartografou-se, assim, o trajeto e as estórias dos vendedores ambulantes, os percursos dos mo-radores de rua, os pixos e os grafites e os movimentos culturais locais. Por meio desse trabalho ativo com a comunidade, chegou-se à conclusão coletiva de que a instauração forçosa de um novo caráter ao lugar não só o destituiria de suas qua-lidades específicas como o tornaria altamente vazio, de vida e de sentido. Surgiu a ideia, então, de envolver a comunidade, os artistas, os arquitetos e todos os interessados na realização de um evento cultural debaixo do viaduto, que não só evidenciasse o corredor cultural que já existia ali, mas demonstrasse que este, se destituído de suas características, perderia em muito a sua potência. O plano era promover formas criativas e inusitadas de vivenciar a área, ampliando a apropria-ção espontânea cotidiana para um ato simbólico periódico de ocupação cultural mensal. Pretendia-se com isso apontar para outras possibilidades de experiência do espaço, que evidenciassem suas potências latentes, estimulando formas de co-esão horizontal-territorial baseadas nos princípios do comum.

A partir de conversas com os realizadores do Duelo de Mcs e com in-tegrantes do GT de Arte e Cultura, a ideia gerada na disciplina ganhou força. A Ocupação passou a envolver outros atores e pautas e foi adiada para o dia em que se planejava desocupar a Câmara. Foi assim que, no primeiro domingo de julho, fez-se a primeira Ocupação artística e cultural do baixio do Viaduto Santa Teresa, reunindo diversos atores culturais e políticos em torno do objetivo comum de questionar a forma de construção e apropriação do espaço público na cidade.

Pneus velhos foram pendurados na estrutura do viaduto gerando “balan-ços”, nos quais as pessoas podiam experimentar, de forma lúdica, outra forma de conviver no local. Produziu-se e distribuiu-se fanzines que, ao ilustrar o cotidiano dos moradores de rua da área, tornaram visíves estórias muitas vezes ocultas da cidade que aqueles corpos nômades carregam. Fez-se, também, um “banquete comunitário”, por meio do qual foi possível compartilhar, em uma grande mesa montada sob o viaduto, fazeres e prazeres relacionados ao ato de comer. Domes-ticidades desdobrando-se no espaço público, e a cidade passa a ser, mesmo que momentaneamente, atravessada pela ideia do comum. Era esse o sentido que pa-recia nortear os acontecimentos que desenrolavam-se ali. As superfícies também foram ocupadas. Oficinas de grafite promovidas por artistas locais envolviam in-teressados em táticas de estampar-se nos muros da cidade. Projeções imprimiam

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na fachada da sede do teatro Espanca vídeos e imagens enquanto, no mesmo local, acontecia uma aula pública com o tema “Criar é resistir”.

O palco utilizado pelos Mc’s para o duelo semanal foi ocupado por ban-das independentes da cidade que, sem cachê nem produção, construíram colabo-rativamente a trilha sonora do evento. E é em meio à confluência de sons assim gerada que manifestantes vindos em cortejo desde a Câmara – então desocupada – chegam para misturar-se ao coro heterogêneo e festivo que ocupava o Viaduto. A ação performática do corpo no espaço apontava para formas ativas e intensas de ocupação espacial, fazendo frente ao caráter cenográfico e contemplativo que o projeto do Corredor Cultural poderia implantar ali.

Se a ação do corpo foi importante por possibilitar trocas presenciais e uma relação espacial intensa entre os ocupantes e o Viaduto, a divulgação em redes sociais como o facebook foi importante por aumentar exponencialmente a abrangência do evento, com chamadas à população de forte apelo imagético. Enquanto plataforma de troca, o território digital passou a fazer parte do movi-mento como possibilitador e potencializador de ação, conectando múltiplas redes em torno da causa e reunindo, em tempo real, fotos e vídeos do que acontecia no local: redes e ruas conectadas em uma potência ubíqua.

A Ocupação teve o grande êxito de juntar forças e mostrar que é possível resistir com criatividade a políticas urbanas de cunho puramente mercadológio. Sob o slogan “o corredor cultural ja existe”, pairava a ideia de uma nova cidade, mais habitável e democrática, construída a partir das necessidades e desejos da população e não somente das dinâmicas segregatórias do mercado imobiliário.

Após essa primeira experiência, “A ocupação” tornou-se um ato artístico-po-lítico de ocorrência mensal. Em sua segunda edição, que aconteceu também no via-duto, o evento repetiu, de maneira diversa, atos simbólicos e políticos que suscitavam a emergência de um sentimento crítico a respeito da ocupação dos espaços da cidade. O ato direcionou-se, novamente, ao questionamento do projeto Corredor Cultural da Praça a Estação. Após todo esse movimento, o projeto arquitetônico encomendado pela Fundação Municipal de Cultura para a área foi descartado e os rumos da mesma encontram-se, atualmente, em processo de reformulação por parte do governo, que renomeou o local como Zona Cultural, abandonando o termo “corredor”.

A terceira Ocupação aconteceu no mesmo local, mas teve como tema o movimento Tarifa Zero, que surgiu a partir das discussões do GT de Mobilidade, já apontando que a partir daí haveria um movimento orgânico de atuação entre os GTs da APH e a Ocupação. Também com forte caráter estético, a terceira Ocupa-ção agrega símbolos surgidos na Praia tais como as cadeiras de praia e a própria

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piscina, usada enquanto anteparo para os que pulavam sobre uma catraca colo-cada no local. O valor simbólico deste ato fazia com que a ocupação, de caráter fortemente lúdico e performático, adquirisse grande potência política. Da mesma forma, grupos ligados ao movimento e ao GT de Comunicação se envolveram numa empreitada estética, iniciada anteriormente no GT de Mobilidade, e criaram uma grande campanha rosa e amarela. Agora, adesivos, camisetas e diversos íco-nes de comunicação surgem por toda parte, e assim como o laranja da praia, agora o amarelo-rosa é a cor Tarifa Zero da cidade. Mais uma vez este ambiente estético biopotente gerado nitidamente se utiliza das campanhas publicitárias instituídas pelo capital como captura do desejo. Assim, num movimento multitudinário, co-laborativo e em rede, estratégias de comunicação altamente estéticas se difundem pela cidade, redes sociais, audiências públicas e festas culturais.

A quarta Ocupação ocorreu na Vila Dias, localizada no bairro Santa Tere-za, alvo iminente de um grande processo de reconfiguração urbana em trâmite na Prefeitura, a Operação Urbana Consorciada Nova BH. Em meio às atividades ar-tísticas realizadas durante o ato, foi promovida uma aula pública, na qual especia-listas falaram sobre os riscos que a Operação Urbana trará para população. Tal pro-jeto ocasionará, além da desapropriação dos moradores da Vila, a transformação do bairro, de forte caráter boêmio e tradicionalmente ocupado por casas, em uma densa aglomeração de grandes construções. A Ocupação, realizada em colaboração com o movimento Salve Santê, procurou apontar possíveis caminhos de resistência da população frente a tal medida. Mais uma vez, a disciplina Cartografias Críticas que já vinha desenvolvendo um trabalho em conjunto com a comunidade da Vila Dias, realizou atividades colaborativas com moradores e artistas locais. Além de cartografias, foi feito um plantio de mudas frutíferas junto ao muro que vem sendo erguido pela construtora PHV para fechar o terreno de 85mil m2 que supostamente abrigaria o megaempreendimento “Complexo Andradas”. O desenho inicial deste empreendimento previa, além da construção da maior torre da América Latina, a transformação de grande parte da Vila Dias em um grande gramado, o que causou enorme descontentamento na comunidade. O plantio de árvores envolveu crianças da Vila e grafiteiros, que pixaram os nomes destas crianças junto às mudas, como ato simbólico de pertencimento. Além destas atividades, inúmeros shows, espetá-culos teatrais e manifestações políticas e culturais aconteceram na Rua Conselhei-ro Rocha, ameaçada por um projeto gentrificador de alargamento.

Para fechar a cartografia dos movimentos multitudinários estéticopolí-ticos – iniciados principalmente durante as manifestações de junho –, surgiu em Belo Horizonte, no fim do mês de outubro, uma nova ocupação. Um grupo for-

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mado em grande parte por artistas e produtores culturais ocupou, em um ato per-formático, um casarão tombado pelo patrimônio histórico e cultural, abandonado desde a década de 1980. O edifício de propriedade do Estado, localizado na região leste da cidade, foi nomeado pelos seus novos ocupantes Espaço Comum Luiz Estrela e tornou-se, desde então, um espaço cultural auto-gestionado e aberto, no qual acontecem oficinas, shows, performances, debates e muitas outras ativi-dades oferecidas gratuitamente à comunidade local. É importante ressaltar que Luiz Estrela era um morador de rua ligado à causa gay, que foi morto em 2013 de forma brutal numa ação da polícia. Sob o seu nome, que carrega forte valor simbólico, a ocupação desse espaço traz à luz importantes pautas de discussão, tais como a questão do patrimônio e do instrumento de tombamento, da privati-zação dos imóveis públicos, da luta antimanicomial, da democratização da arte e do território e do descaso do governo frente aos edifícios abandonados. O Espaço Comum tornou-se, assim, em seu ainda curto tempo de vida, um espaço político de confluência e esperança. O ato é mais uma linha de fuga, que juntamente com a “Praia” e “A ocupação” atravessam o imaginário da população trazendo à tona ou-tras possibilidades de vida na cidade. É a multidão em rede que, através de táticas estéticas, atua na essência política e, interferindo na própria máquina reguladora do capitalismo cognitivo, ataca-o de maneira profunda e, dificilmente reversível.

Referências

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Textos da net

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Natacha Rena é professora do curso de arquitetura da UFMG e do NPGAU – Nú-cleo de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Lidera o Grupo de Pesquisa INDISCIPLI-NAR (www.indisciplinar.com).

Paula Berquó é mestranda em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Ge-rais. Integrante do Grupo de Pesquisa INDISCIPLINAR da Escola de Arquitetura da UFMG, cujas ações são focadas na produção contemporânea do espaço urbano, principalmente no eixo de pesquisa que se refere a novas práticas culturais e biopolítica da multidão.

Fernanda Chagas é Arquiteta graduada pela Escola de Arquitetura da UFMG.

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dossiê devir menor (org.: susana Caló)

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Devirmenor,espaço,territórioeemancipaçãosocial.PerspectivasapartirdaIbero-América

Susana Caló

Apresentação

Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação Social. Perspectivas a partir da Ibero-América é uma investigação que tem como objectivo interrogar a dimensão espacial das formas e práticas de emancipação social na contempora-neidade. Inicialmente formulado no âmbito de um pensamento ético-político da literatura na filosofia política de Deleuze e Guattari na obra sobre Kafka e retoma-do no volume II de Capitalismo e Esquizofrenia, o conceito de devir menor serve de ponto de partida ao projecto, e refere-se ao processo pelo qual se criam aber-turas à variação num contexto determinado por uma língua dominante, segunda a ideia de que subjacente a uma língua unitária está uma operação de poder que se impõe sobre uma multiplicidade política. Mais concretamente, refere-se a uma prática de contra-investimento, exercida sobre as estruturas de poder por forma a abrir espaços para a vida e para a heterogeneidade.

Tendo no horizonte a crescente mercantilização da cidade e do território que cada vez mais se afirma como uma tendência dominante, com consequências diretas sobre as formas de vida, procuramos traçar alternativas a este modelo e examinar processos de resistência como são, entre outros, a toma de terras na Argentina, as lutas dos sem-terra no Brasil, ou também as ocupações do espaço público que têm ocorrido agora com grande visibilidade no Sul da Europa.

O conjunto de contribuições aqui reunido foca principalmente três di-mensões:

■ a ficção do território enquanto disputa sobre identidade; ■ a questão da terra enquanto luta por direitos a outras formas de produção

e modos de existência; ■ e a questão do habitar na luta pela politização colectiva da cidade e do

urbano.

Produção - Editora E-papers
Revisão
Bruno, sugiro inserir uma nota em todos os textos que estão com palavras em português de Portugal, ou no início do Dossiê, informando ao leitor da particularidade desses textos. Para que não pensem que sejam erros de revisão.
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Da mesma forma, e reconhecendo a transversalidade destas problemáti-cas, esta investigação confere particular atenção à articulação entre campos pro-fissionais e disciplinares (urbanismo e arquitectura) e práticas espaciais desenvol-vidas por movimentos sociais no âmbito de processos de autonomização cívica e emancipação social.

Finalmente, o próprio contexto geográfico em que este projecto se insere assume contornos que exigem problematização. É preciso ter em atenção que a Ibero-América enquanto constructo projecta sobre um amplo e diverso território uma ideia de unidade que remete a um passado colonial. Numa primeira instância esta aproximação entre a América Latina e a Península Ibérica não pode, portan-to, ser entendida sem a consciência de uma história colonial e de uma modela-ção identitária que resulta na ofuscação da divergência e da diversidade existente no espaço deste território. Contudo, mais do que uma limitação, aqui a Ibero--América é uma possibilidade de trabalho. E ao contrário da unidade investida no constructo, o resultado que se procura não é uma mostra unitária, mas uma multiplicidade e heterogeneidade de práticas espaciais e concepções de território que emergem deste espaço e das quais é possível tirar partido. Assim, centrarmo--nos aqui nas possibilidades de abertura a outras experiências e práticas de eman-cipação, procurando estabelecer ligações e cruzamentos entre diversas noções de território e de prática, de vida e de relações socioespaciais.

Por último, a pergunta que quisemos colocar foi de que modo um en-tendimento menor das práticas do espaço abre possibilidades para a emergência de formas de viver e de habitar mais democráticas. Como conclusão, ressalva-se um entendimento ético-político do menor, isto é, que segue o imperativo de uma prática, que diz respeito a uma tensão e articulação produtiva entre movimentos sociais e instituições, com vista à consagração em direito a outros modos de orga-nização, outros modos de produção, outros territórios e modos de vida.

Deste modo, iniciamos este dossier com a exploração cuidada do concei-to de devir menor avançado por Deleuze e Guattari, e o seu desenvolvimento por relação com a axiomática do capital na forma do problema do minoritário. Neste texto, intitulado Devir Autónomo e Imprevisto: Por novos espaços de liberdade, proponho reavaliar o conceito na medida de uma prática de resistência que articu-la uma micropolítica e uma macropolítica, alertando para os perigos de confundir o menor com o pequeno, o independente ou o marginal. Trabalha-se a ideia de que a luta pelos espaços da existência é uma luta pela vida, e que defender o direito ao território é também defender o direito à participação na invenção de um mundo.

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Prosseguimos com O Sul também não existe. A arquitectura ficcional da América Latina de Eduardo Pellejero, em que o autor explora uma série de casos da literatura do último século – ficções coloniais e nacionalistas modernas e, em contraste, formas “menores” de ficção e “desincorporação literária” – para desenvolver uma ideia de literatura que se opõe a narrativas hegemónicas e às identificações imaginárias que modelam o território permitindo-nos compreender o seu potencial de resistência.

O terceiro ensaio, Devir-Mundo das Práticas Menores é de Anne Quer-rien que a partir da ideia da escola enquanto lugar de articulação da heterogeneidade do território procura expandir o pensamento das práticas espaciais críticas com vista a uma abertura à participação e autogestão do espaço.

A reflexão seguinte, desenvolvida por Patricio del Real, com o título Dio-nora. Para Uma arquitectura menor, contrasta a ideia de território ou meta-ge-ografia ibero-americana com a multiplicidade social e cultural que corresponde a esse território. Em alternativa, encetando também uma crítica ao fascínio pelo informal, sugere que se foque a atenção não sobre a escala do território, mas sobre a escala da cidade, por forma a pensar as condições para um processo de menori-zação da prática da arquitectura.

Nesta sequência, a contribuição de Godofredo Pereira Feitiço, Arquitectu-ra e Território, sugere a desconexão contemporânea entre a profissão de arquitec-tura e a necessidade de uma política espacial crítica. Partindo da influência que os “anos entre os brancos” tiveram sobre o posicionamento político da obra de Lina Bo Bardi, assim como a proximidade desta com a conceptualização de uma ecolo-gia radical desenvolvida por Félix Guattari, procura pensar a importância “feiticis-ta” de certos objectos enquanto elementos transversais que dão corpo uma relação entre território e existência, enquanto lugar de transformação e luta política.

Ainda sobre a problemática da emancipação social no Brasil, a contri-buição de Paulo Tavares, Abertura – Trilogia da Terra é um projecto vídeo de investigação sobre os desdobramentos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no Brasil no período designado de “Abertura”. A partir de um conjunto de entrevistas e dos registos das viagens de Félix Guattari ao Brasil, documentada em Micropolítica: cartografias do desejo, o autor mostra como a questão do direito à terra estava no centro das lutas políticas e sociais, à escala urbana, agrária e territorial.

Prosseguimos com o Colectivo Situaciones que nos traz uma reflexão pro-duzida com outros colectivos no Taller Hacer Ciudade. Cidade Multiforme: o caso do Indoamericano analisa a ocupação do parque indoamericano em Buenos Aires

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por emigrantes, em dezembro de 2010, que desaguou em violência, terminando com a sua evacuação. Na análise do processo, os autores identificam uma compli-cada trama económica e governamental de micro-gestão territorial e especulação imobiliária conjugada com problemas de emigração, racismo e nacionalismo.

Ainda no âmbito de projectos de trabalho colectivo e militante, em Algu-mas Considerações a cerca da Prática do Mapeamento Colectivo, o coletivo Ico-noclasistas parte de uma crítica ao uso hegemónico da representação cartográfica para mostrar através da sua extensa experiência como os mesmos recursos podem ser usados de um modo contra-hegemónico. Os autores desenvolvem um método de cartografia participativa, com vista à produção de novas subjectividades e ter-ritorialidades.

As contribuições aqui reunidas para formar especialmente este dossiê foram desenvolvidas durante o ano de 2012.

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LUGARCOMUMNº41,pp.95-

DevirAutónomoeImprevisto: Pornovosespaçosdeliberdade

Susana Caló

É a variação contínua que constituiu o devir minoritário de todo o mundo, por oposição ao Fato majoritário de Ninguém. O devir minoritário como figura universal da consciência é denominado

de autonomia. Sem dúvida que não é utilizando uma língua menor como dialecto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos

revolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria, conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir específico,

autónomo, imprevisto.38

As línguas menores não existem em si: existem apenas em relação a uma língua maior e são igualmente investimentos dessa língua para

que ela se torne, ela mesma, menor. 39

deleuze e guattari, Mille Plateaus

Quando em Mille Plateaus Deleuze e Guattari se referem ao projecto de devir menor enquanto constituição de uma prática revolucionária com o potencial de evadir a axiomática do capital é para o investir de uma dimensão política que merece ser explorada, para além do campo da literatura em que foi inicialmente formulado40. É neste movimento que se podem especular linhas de pensamento sobre a questão da relação entre espaço, política e emancipação a partir dos con-ceitos de devir menor e minoria. Neste âmbito, há duas ideias chave: primeiro, a virtude de questionar o critério epistemológico que define maiorias e minorias e, segundo, a qualificação de uma prática que toma lugar no seio do maior para o menorizar. A primeira e a segunda complementam-se na definição de uma prática orientada para a abertura de espaços de conexão à experiência múltipla do mundo,

38 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus, trad. Brian Massumi. London: Continuum, 1987, p. 118.

39 Ibid., p. 116.

40 Isto não quer dizer que no domínio literário devir menor não tenha um cunho político – pelo contrário, a enunciação da capacidade ética-estética-política da literatura é central ao projecto crítico-clínico de Deleuze e Guattari.

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ou a criação de condições de possibilidade para outras formas de pensamento e de vida. Contudo, é importante notar que, como bem nota Maurizio Lazzarato41, o conceito de devir menor traduz o período das lutas da década de 1960, num ambiente em que se procurava encontrar linhas de fuga através de formações minoritárias à rigidez política dos grandes ajuntamentos sociais, institucionais e partidários. Ora, hoje em dia, passa-se um pouco a situação contrária. Ao passo que o modelo neoliberal se afirma duplamente, quer a um nível micropolítico, na captura da produção de subjectividade, quer a um nível macro-político, nas for-mas de estado e instituições ao seu serviço, tanto movimentos sociais como parti-dos, manifestam uma dificuldade de expressão e articulação que consiga conectar estes dois planos. É neste sentido que vale a pena reavaliar a questão do menor. Importa distingui-lo claramente de uma apologia do marginal, do pequeno, ou do não-institucional. É nessa medida que vamos enfatizar essa implicação mútua, em que a política é sempre uma micro e uma macro-política, pois parece-nos que se hoje o conceito é válido é porque convoca a necessidade de procurar formas de articulação e de formalização entre estas.

I.

Formulado no âmbito de um pensamento político da literatura através do estudo da obra de Kafka42, o conceito de devir menor refere-se ao processo pelo qual, num contexto dominado por uma língua hegemónica, se criam espaços e passagens para a variação e multiplicidade que não é reflectida nas formas de re-presentação dominantes. Segundo a ideia de que “a unidade da língua revela uma manobra política” e que as línguas hegemónicas reforçam a homogeneização, a identidade e as “constantes de expressão ou conteúdo”, de acordo com um regime de representação, devir menor deve ser entendido como um tratamento da língua maior cujo propósito é de arrancar a língua às relações de poder que a aprisionam, para a re-conectar com a variação e heterogeneidade que caracteriza a experiência do mundo. Neste sentido, o menor ou o maior não dizem respeito a duas línguas, mas a diferentes tratamentos ou usos de uma língua. O que importa reter é que o maior determina o padrão ou a regra a partir da qual todos os outros usos são avaliados: implementa normas e leis, imanentes tanto ao conteúdo como à forma,

41 Entrevista não publicada, realizada a maio de 2013, Londres.

42 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975.

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que regulamentam não só as práticas discursivas, mas também comportamentos, formas de falar, de fazer e de pensar.

Parece-me então que face a esta homogeneização, o tratamento menor da língua encontra a sua mais alta justificação na premissa de que esta deve ser devolvida à multiplicidade do mundo para salvaguardar condições de possibilida-de de enunciação e de formulação de novos problemas. Ou seja, a introdução de novos objectos de luta no espaço político.

Se retomarmos o ponto de vista de Deleuze e Guattari, a literatura menor implica uma capacidade de afectar a língua maior com um grau relevante de des-territorialização que provoca uma série de deslocamentos e renegociações que a confrontam com o seu próprio limite. No caso de Kafka este efeito deve-se a des-locamentos contextuais (em Metaformose, por exemplo) que produzem situações cuja natureza convoca simultaneamente a renegociação de estruturas familiares, económicas, burocráticas ou jurídicas. Este aspecto entende-se bem se seguirmos a proposta sugerida em Mille Plateaus de que a pragmática é a política da língua, isto é, que a língua não existe em si mesma, mas depende de factores externos a si própria ou pré-condições que permitem, ou não, a sua efectuação, em determina-do campo social ou contexto, e em dado momento no tempo.

Ora, esta confrontação da língua com os seus limites expõe a rede de ele-mentos da qual a efectuação de um enunciado depende, deste modo entendendo--se melhor a língua como um sistema dinâmico com quebras e transições, na fronteira de micro e macro-lutas que reflectem modulações de poder, num certo momento do tempo e revelam o contexto de relações de poder segundo as quais se a expressão é distribuída.

Se continuarmos a extrapolar o sentido político do enquadramento da língua nessa dinâmica de relações, então percebemos que, assim como o fecha-mento da língua sobre si própria neutraliza a sua potência política revolucionária (porque ofusca a sua dimensão colectiva e social), de igual forma o encerramento do escritor sobre si próprio anula a potência política da criação literária. Como tal, na perspectiva do menor, Deleuze e Guattari defendem que o verdadeiro escritor é aquele que força sobre si próprio uma potência de desubjectivação da experiência ou uma elevação ao impessoal, como condição necessária para a articulação com a experiência colectiva (e singular) do mundo, assim como de uma ligação do in-dividual ao social. Neste sentido, a noção de agenciamento colectivo de enuncia-ção, também introduzida no livro dedicado a Kafka, é central para compreender o que se entende por literatura menor. O escritor não escreve sobre as coisas, nem

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no lugar delas, mas escreve com o mundo ou em conjugação com o mundo – é, no fundo, essa a condição política da literatura.

Trata-se de defender que o fazer de uma língua não é uma coisa indi-vidual, mas diz respeito a um processo de criação colectiva, assim como a um processo de constituição de um colectivo. É também a esse respeito que Deleuze e Guattari propõem que a literatura menor inventa condições de possibilidade de um povo por vir, povo esse que está em falta.43 Todavia, é fundamental entender que este povo não se refere a um grupo particular ou ideal, mas convoca a questão da política do por-vir, sinónimo de outras formas de vida, outros valores e outros modos de pensamento para os quais as condições de possibilidade de aconteci-mento têm de ser produzidas. No domínio da língua ou da expressão, isso implica garantir que a enunciação e a formulação de novos problemas sejam informadas por essa multiplicidade, e sensíveis à formalização de novos problemas. É esse movimento de devir que forja articulações entre vários regimes de poder, e que força o menor sobre o maior, que deve ser relevado (enquanto uma prática).

II.

Partindo destas considerações e tendo no horizonte a crescente mercanti-lização da cidade e do território que cada vez mais se afirma como uma tendência dominante com consequências directas sobre os modos de vida, tentarei agora sugerir a forma como a ideia de devir menor pode informar um pensamento e prática contra-hegemónicas do espaço e do território. Neste âmbito, a hegemonia diz respeito ao processo global em que a urbanização hoje promove a expansão do capital, estruturando tanto a cidade como o território de maneiras que geram não só exclusão social e discriminação, mas inevitavelmente resultam na afirmação de certas formas de relação com o espaço que acarretam como consequência o estrangulamento de muitas outras. E, com efeito, os aspectos anteriormente men-cionados – desterritorialização da língua maior; elevação ao impessoal; conexão do individual ao social; agenciamento colectivo de enunciação – revelam-se di-mensões importantes para pensar práticas espaciais e sociais comprometidas.

Mas há ainda dois aspectos que resultam da reflexão prévia e que deve-mos notar: o reconhecimento de que as formas de poder operam a diversos níveis, desde a produção de subjectividade aos modos de relação social; e a necessida-de de inventar modos de articulação entre a dimensões subjectivas, movimentos

43 Esta articulação entre um tratamento menor e a noção de um povo por vir é melhor feita em Cinéma 2: L’Image-temps (1985), Critique et Clinique (1993) e Qu’est-ce que la philosophie? (1991) por relação com o conceito de fabulação.

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sociais, formas de representação e instituições. É claro que a política não pode ser reduzida à dimensão maior das representações ou das instituições, pois passa também pelas formas de vida e processos de produção de subjectividade, quer seja pelo “modo como falamos” como por “aquilo que pode ser dito”. Ou seja, a política é algo que se faz e se pratica, atravessando tanto o tecido do individual como do social. Esta tomada de consciência é importante, pois a partir do momen-to em que a vida é tomada como objecto de poder, nela reside também uma força estratégica que pode ser canalizada para a resistência. Como disse Deleuze, “não é uma questão de nos preocuparmos ou de esperar pelo melhor, mas de encontrar novas armas”.

É evidente que os domínios materiais e espaciais são atravessados por relações de poder (de formas implícitas e explícitas) e necessariamente emitem regulamentações sobre os modos de relação social, valores e formas de vida. Por isso, o espaço não é, nem deve ser entendido, como um simples contentor pacífico e neutral das relações sociais, mas sim como um elemento activo, com o potencial de participar, tanto a um nível molecular, como molar, da singularização e reno-vação dos modos de relação social e cultural. Como explicou Guattari, a produção de subjectividade depende de uma série de factores polifónicos, espaciais e mate-riais, discursivos e não discursivos, significantes e assignificantes.

Assumindo como ponto de partida que as práticas de emancipação to-mam lugar nos espaços que habitamos e são tanto produtoras de espaço como contingentes ao espaço, deveríamos ser capazes de operar uma análise dos lugares que habitamos, não só para identificar modos de organização rígidos e hegemó-nicos, mas também para os reformar. Estaríamos próximos do trabalho de crítica e análise institucional de Guattari e Jean Oury no espaço da clínica La Borde44, onde se pode dizer que a estratégia era a de menorizar o espaço institucional enquanto modo de singularização e autonomização da diferença, e resolver um impasse entre uma horizontalidade e uma verticalidade puras de poder, ou entre processos topo-base e base-topo.

Nesta lógica, a questão que nos deveria orientar para pensar ideias de emancipação articuladas por práticas espaciais seria: de que modo é que estas podem gerar formas de habitar e de relação com o território que exponenciem processos de singularização e autonomização cívica? Teríamos de pensar uma

44 A primeira vez que tentei analisar as implicações sociais e políticas do trabalho desenvolvido na análise e crítica institucional foi através do estudo do caso da clínica La Borde em “Félix Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção da subjectividade para além do humano.”, em (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiro e Fbaup, 2011.

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economia do espaço e do território orientada para a emergência de concepções de liberdade, de igualdade e de justiça, capazes de constituir uma oposição crítica a critérios epistemológicos maiores.

Embora seja certamente possível definir certas minorias segundo um cri-tério quantitativo45, esta definição é tão errada quanto confundir a proposta do menor com a afirmação de espaços pequenos ou independentes, desligados da sociedade e tentativamente separados da realidade, em ruptura com as instituições e as estruturas de poder existentes. Não se trata de evitar qualquer tipo ou forma de identidade ou de representação – dessa forma anulando estrategizações formais chaves à prática política. Pelo contrário, como sublinha Guattari, o menor deve mobilizar uma prática de articulação:

a conclusão deste tipo de transformações dependerá essencialmente da capaci-dade que tenham os agenciamentos criados para articular essas transformações com as lutas políticas e sociais. Se não se produzir essa articulação: nenhuma mutação de desejo, nenhuma luta por espaços de liberdade logrará dar lugar a transformações sociais e económicas a grande escala.” “Fugas moleculares e movimentos não seriam nada se não voltassem às organizações molares para recombinar os seus segmentos, a sua distribuição binária dos sexos, das classes e dos partidos.”46

Inevitavelmente as lutas de emancipação social ocorrem às mais diver-sas escalas e nos mais diversos contextos, produzindo formas de identidade, de associação e de representação que se tornam a dado momento necessariamente maiores (desde o grupo ao partido). Mas por isso mesmo é necessário identificar modos de interacção do menor com o maior, que possam substituir a simples opo-sição (improdutiva) entre espaços “menores” vs “maiores”, “marginal” vs “insti-tucional”, “formal” vs “informal”.

45 Como Deleuze e Guattari explicam: “Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias.” A Thousand Plateaus, p. 321. “Minoria e maioria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica a determinação de uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. (…) A maioria assume um estado de poder e de dominação e não ao contrário (…) Certamente as minorias são estados que podem ser definidos objectivamente, estados de língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas também como germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis e de desterritorializações da média ou da maioria.” A Thousand Plateaus, p. 116-117.

46 Ibid., p. 239

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101Susana Caló

Neste âmbito, as práticas espaciais que se debruçam sobre as relações de trabalho, sobre o colectivo enquanto modo de criação, sobre protocolos de ocupação de espaços ou sobre as políticas do território e as suas determinações legais, são particularmente relevantes para imaginar possíveis práticas espaciais que intervenham no âmbito de diferentes relações de poder. E por isso é crucial prestar atenção também a modelos participativos promotores de outras formas de relação social que potenciem estas articulações.

Por outro lado, ao passo que é preciso não confundir metodologias par-ticipativas com ausência de arquitectura, é crucial ter presente o que sugere o arquitecto Teddy Cruz ao defender que “uma comunidade não será livre enquanto não for capaz de resolver criativamente as suas necessidades de habitação, de for-mas de sustentabilidade socioeconômica, as suas próprias concepções de espaço público, e os modos de relação com o território: no fundo a sua cultura cívica”.47

III.

“Devir-minoritário é um caso político, e apela a todo um trabalho de potência, uma micropolítica activa. É o contrário da macropolítica, e até da História, onde se trata de saber, sobretudo, como se vai conquistar ou obter uma maio-ria. Como dizia Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para não acabar fascista. Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir é um bloco de coexistência.” 48

Uma prática menor começa por reconhecer que o pensar do espaço e do território é um problema que diz respeito a todos. Tal como a invenção de uma língua diz respeito a um colectivo, e não apenas a um indivíduo ou a um regime de representação que se impõe de cima, também o espaço diz respeito a uma comuni-dade, em prolongamento com a construção da sua autonomia cívica. Só perspecti-vando as lutas em torno ao território enquanto lutas pela vida e enquanto sintomas destes agenciamentos colectivos é que podemos fazer passar a política pelo espaço, isto é, concebendo-o como território de existência. Deste modo, a politização do

47 Cf.: excelente discussão on-line, em particular, os comentários de Teddy Cruz aqui “Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy and the Collective’s Imagination, http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg04012.html. (Acedido em julho de 2012).

48 A Thousand Plateaus, p. 322.

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102 DEVIRAUTóNOMOEIMPREVISTO

espaço não termina no espaço, mas prossegue apontando uma direcção para fora dele, indicando sempre a sua posição num regime transversal de relações de forças, que prefigura a sua capacidade de intervenção e afectação a diferentes níveis. Sem dúvida, a medida de afectação mútua é a medida política do espaço.

Por fim, reconhecer que a política se faz e se pratica nos espaços da exis-tência como uma luta pela vida, implica reconhecer e defender que o direito ao espaço é também o direito à participação na invenção de um mundo. Uma parti-cipação que depende da construção de articulações produtivas entre uma micro e uma macropolítica.

Referências

CALÓ, Susana. Félix Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção da subjectividade para além do humano. In (dis)locations, ed. Gabriela Vaz Pinheiro e Fbaup, 2011.CRUZ, Teddy. Re: [-empyre-] Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy and the Collective’s Imagination. Disponível em: http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg04012.html. Acesso em: jul. 2012.DELEUZE, Gilles. Critique et clinique, Les éditions de Minuit. Paris, 1993. (coll. “Paradoxe”)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka: Pour une littératuremineure. Paris: Mi-nuit, 1975.___. Qu’est-ce que la philosophie? Les éditions de Minuit (coll. “Critique”), Paris, 1991.___. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus, trad. Brian Massumi. London: Continuum, 1987.

Susana Caló escreve neste momento o doutoramento no Centre for Research in Modern European Philosophy (CRMEP), em Londres, com uma tese sobre a política da lingua-gem a partir de Gilles Deleuze e de Félix Guattari em que aborda as relações entre linguagem, semiótica e emancipação.

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LUGARCOMUMNº41,pp.103-

O sul também (não) existe. A arquitetura ficcionaldaAméricaLatina

Eduardo Pellejero49

Que classe de ser histórico é o que chamamos de América? Não é uma região geográfica, nem um passado, nem,quiçá, um presente. É

uma ideia, uma invenção do espírito europeu.

octavio paz, O labirinto da solidão

mas aqui embaixo, abaixo, a fome disponível

recorre ao fruto amargo do que outros decidem

enquanto o tempo passa e passam as paradas

e fazem-se outras coisas que o Norte não proíbe.

Com a sua esperança dura o Sul também existe.

mario benedetti, O sul também existe

Entre outras tantas aventuras intelectuais, o século XIX reservava à Eu-ropa o cansaço da cultura e a tristeza da carne, contaminando os sonhos dos seus poetas com fantasias de evasão.50 A ilusão de uma vida simples, sem as contra-dições que dilaceravam as cidades modernas, levaria alguns a fazerem-se ao mar

49 Traduzido do espanhol por Susana Guerra.

50 “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres. / Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres / D’être parmi l’écume inconnue et les cieux! / Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux / Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe / O nuits! ni la clarté déserte de ma lampe / Sur le vide papier que la blancheur défend / Et ni la jeune femme allaitant son enfant. / Je partirai! Steamer balançant ta mâture, / Lève l’ancre pour une exotique nature! / Un Ennui, désolé par les cruels espoirs, / Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs! / Et, peut-être, les mâts, invitant les orages / Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages / Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots... / Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!!” (Mallarmé, “Brise marine”, 1887)

120

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104 OSULTAMBéM(NãO)EXISTE

(muitas vezes para desaparecer), mas, sobretudo, levantaria no vazio da literatura da época a utopia de um mundo virgem, de um mundo onde tudo ainda estava por ver, por nomear e por fazer.51

Essa utopia finissecular não era nova. A América nascera de uma fantasia similar.52 A imaginação europeia projetara durante séculos a imagem de um paraí-so terrenal sobre os despojos da conquista, sobrepondo uma topografia intelectual e fantástica ao território real, perpetuando a ficção de um mundo novo, puro, sem falhas. Os mares do sul não eram neste contexto um simples tropo literário, eram assunto de Estado.

Signo do valor atribuído a esta ficção pelo poder são as numerosas dis-posições coloniais através das quais Espanha pretendeu proibir, a partir do sécu-lo XVI, a publicação e importação de qualquer material romanesco na colónia. Visando fundamentalmente o controlo ideológico do novo mundo, a metrópole tentava deste modo impor limites à imaginação americana.53 Os inquisidores com-

51 As mesmas contradições que inspiravam d fantasias, por outra parte, davam lugar na mesma época a outra utopia, esta vez imanente e materialista, que afirmava que o mundo estava por ver, pensar e fazer em todas partes e a todo o momento.

52 Sobre a fundação ficcional da América, cf. TODOROV. Fictions et vérités. L’Homme, v. 29, n. 111, Paris, 1989, p. 7-33; “A América é uma utopia, isto é, é o momento no qual o espírito europeu se universaliza, se desprende das suas particularidades históricas e se concebe como uma ideia universal que, quase milagrosamente, encarna e afiança-se numa terra e num tempo preciso: o porvir. Na América a cultura europeia concebe-se como unidade superior” (PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 71); “Com a descoberta da América, o “Novo Mundo”, o Ocidente converte-se em terra verdadeira de promissão. (…) A chave mais importante deste ocidente será o ouro. A ideia de “El Dorado” (uma lenda índia que chegou aos ouvidos dos espanhóis no século XVI), deu asas à fantasia e à cobiça dos europeus. O Ocidente passará a ser – a partir das expedições dos conquistadores do século XVI até à “quimera do ouro” californiana na época posterior a 1848 –, o ponto cardeal dos caçadores de tesouros. (…) Mas o Ocidente converte-se em terra promisionis também em sentido político. Durante séculos, a América constituirá a meta de inúmeros emigrantes que, abandonando as estreitas e opressivas condições europeias, procuravam no “dourado Ocidente” liberdade individual, independência e riqueza, ou – como os padres peregrinos, os quáqueres e muitos outros grupos – queriam tornar realidade, com a fundação de novas comunidades, uma ordem social ideal” (cf. RICHTER, Dieter. El sur. Historia de un punto cardinal. Un recorrido cultural a través del arte, la literatura y la religión. Tradução espanhola de María Condor. Ma-drid: Ediciones Siruela, 2011, p. 30).

53 Para uma visão mais apurada da questão da ficção na América colonial, cf. Antonio Antelo. Literatura y sociedad en la América Española del siglo XVI: Notas para su estudio. In: Thesaurus, tomo XXVIII, n. 2, 1973; cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales. Tradução espanhola de José Leandro Urbina e Ángela Pérez. Bogotá: FCE, 2004, p. 27.

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105Eduardo Pellejero

preendiam muito bem que a proliferação não regrada das imagens e dos discursos à qual dá lugar a ficção literária constituía uma ameaça (real) para a fundação (ficcional) do novo mundo.54

Espanha procurava assegurar o monopólio da força assegurando o mo-nopólio da ficção. Com o argumento (platónico) de que os romances eram dis-paratados e absurdos (isto é, mentirosos), com o argumento de que podiam ser prejudiciais para a saúde espiritual dos cidadãos, durante 300 anos os americanos foram privados do direito à sua leitura, ou, melhor, foram forçados a lê-los de contrabando, de tal modo que o primeiro romance que se publicou sob essa figura na América hispânica só apareceu depois da independência55.

Trezentos anos é muito tempo. Há costumes que se enraízam. Quero di-zer que depois de viverem tantos anos envolvidas numa ficção, as nações nas-centes necessitariam da ficção para viver. O sul, que até então fora uma projeção fantasmática do norte, um espaço onde as topografias reais e imaginárias se en-contravam indissoluvelmente ligadas, arriscava a desagregar-se enquanto lugar simbólico a golpes de realidade (guerras civis, conflitos fronteiriços, fluxos mi-gratórios etc.). Libertada finalmente do controlo espanhol, era hora da imaginação americana dar consistência a um território que aparecia dividido e depredado. E, numa época em que a experiência religiosa (e as suas fábulas associadas) definha-va enquanto fundamento do vínculo social, a literatura haveria de responder a essa necessidade espiritual e política, assumindo a tarefa de produzir o sucedâneo de uma experiência partilhada, de uma memória comum.

Poetas e políticos confluiriam nesta empresa. Assim, por exemplo, em 1847, o futuro presidente da Argentina, Bartolomé Mitre, introduzia no prólogo do seu romance Soledad, uma espécie de manifesto com o qual pretendia suscitar

54 Espanha aspirava controlar totalmente a vida nas colónias americanas, e pretendia portanto deter também o monopólio da ficção. É difícil de compreender, contudo, que tenha tentado submeter a literatura a uma forma tão sistemática de censura. O certo é que se o poder pretende, por um lado, enclausurar ou expulsar a ficção (pensem na expulsão dos poetas da república pla-tónica, que inaugura esta história de exílios que se estende tristemente até aos nossos dias), por outro lado, o poder também procura apropriar-se da potência da ficção para os seus próprios fins (lembrem também, neste sentido, que na República, Platão funda a divisão do trabalho numa ficção ou num mito: o da implantação do ouro, da prata, do bronze e do ferro nas almas dos homens). A associação imediata, claro, é 1984, de George Orwell: “Quem domina o presente, domina o passado. Quem domina o passado, domina o futuro”. Cf. LLOSA, Mario Vargas. La verdad de las mentiras. Buenos Aires: Alfaguara, 2002, p. 15-16.

55 Trata-se do romance de José Joaquín Fernández de Lizardi, El periquillo sarniento, publicado no México, em 1816.

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a produção de romances que fizessem as vezes de cimento para a nova nação. No espírito de Schiller, considerando que a revolução política só era possível a partir de uma reforma cultural56, Mitre estava convencido de que os romances de qualidade promoveriam o desenvolvimento do país; os romances ensinariam a população sobre a sua história incipiente, sobre os seus costumes apenas formula-dos, sobre ideias e sentimentos políticos e sociais, oferecendo uma representação sensível da sua transformação em curso, do seu devir histórico imediato57.

Resultado de invasões violentas e de divisões forçadas, de pactos desi-guais e alianças improváveis, as novas nações careciam de qualquer tipo de coe-são. As identificações imaginárias que a literatura era capaz de suscitar apareciam portanto como uma alternativa efetiva. Nesse sentido, intelectuais e governantes alentaram a fabricação de ficções compensatórias para preencher um mundo cheio de vazios.58

Exemplo: Em Amalia59 (1844), de José Mármol, Eduardo Belgrano (por-tenho) é ferido quando tenta fugir de Buenos Aires para somar-se à resistência ao governo de Rosas; Daniel Bello salva-o e oferece-lhe refúgio na casa da sua prima tucumana, Amalia. A paixão entre Eduardo e Amalia inflama a paixão política,

56 A interpretação que Mitre faz de Schiller pode ser posta em causa, mas certamente Mitre afeta a sua influência, chegando a utilizar, no Prólogo, as categorias de homem moral e homem fisiológico.

57 “É por isso que gostaríamos que o romance criasse raízes no solo virgem de América. O povo ignora a sua história, os seus costumes apenas formulados não foram filosoficamente estudados, e as ideias e sentimentos modificados pelo modo de ser político e social não foram apresentadas sob formas vivas e animadas copiadas da sociedades na qual vivemos. O romance popularizaria a nossa história apelando aos acontecimentos da conquista, da época colonial, e das memórias da guerra da independência. Como Cooper no seu Puritano e o espía, pintaria os costumes originais e desconhecidos dos diversos povos deste continente, que tanto se prestam a ser poetizados, e dariam a conhecer as nossas sociedades tão profundamente agitadas pela des-graça, com tantos vícios e tantas grandes virtudes, representando-as no momento da sua trans-formação, quando a crisálida se transforma em brilhante borboleta. Tudo isto faria o romance, e é a única forma sob a qual podem apresentar-se estes diversos quadros tão cheios de ricas cores e movimento.” (MITRE, Bartolomé. Soledad. Buenos Aires: Tor, 1952).

58 Deste modo, na América Latina, os romances, do mesmo modo que as constituições e os códigos civis, vinham legislar sobre os costumes modernos. A literatura fornecia uma espécie de “código” civilizador, que tinha por objeto erradicar a barbárie, e de uma forma tão certa como os códigos civis promulgados muitas vezes pelos mesmos autores; cf. RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina: Literatura y Política en el siglo XIX. México: FCE, 1989.

59 MARMOL, José. Amalia. Madrid: Cátedra, 2000.

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e leva os primos a fingir-se partidários do regime para secretamente lutar contra Rosas. Na véspera da inevitável fuga de Buenos Aires, Eduardo e Amalia casam, mas morrem na tentativa às mãos das tropas de Rosas, fechando um pacto que já não poderá ser desfeito. Na prosa de Mármol, a história de amor funciona ao mes-mo tempo como impulso para uma nova ordem política; projeta, num contexto de divisão social e na ausência de um poder legítimo (tal é a perspectiva de Mármol), o tipo de cópula entre a capital e as províncias, capaz de estabelecer uma família pública de direito.

O caso de Amalia é representativo de um gênero que conheceu uma tra-dição prolífica, cujo objeto era conciliar as diferenças entre etnias, classes e re-giões, postulando os antigos inimigos como futuros aliados. Romance erótico/político, onde a metáfora do matrimónio (conquistado com grandes esforços) ou da união de fato (minada por todo o tipo de condicionamentos materiais, sociais e culturais), se desdobra como metonímia de consolidação nacional.60 Os aman-tes desejam-se apaixonadamente ao mesmo tempo que desejam o nascimento de uma nova ordem política, uma ordem capaz de tornar possível a sua união; cada obstáculo que os amantes encontram intensifica o amor – o das personagens e o dos leitores –, pelo surgimento de uma nação onde a paixão possa ser consuma-da61. A ficção literária é politicamente fundacional: não implica diretamente uma organização nova do social, mas dá lugar a um novo agenciamento coletivo de enunciação, que apela aos leitores presos nos mesmos impasses que narra para o tornarem seu. Palavra impessoal à espera de um corpo (político) que lhe dê voz, a ficção fundacional pressupõe um sujeito paradoxal, que coloca em causa (e redefine) as distinções entre o público e o privado, o individual e o coletivo, o particular e o universal.

Balzac dizia que “o romance é a história privada das nações”, mas o que acontece na América é demasiado; os termos invertem-se: as biografias familiares da literatura são as que dão lugar à história nacional. Não há separação entre o na-cionalismo épico e a sensibilidade íntima; os romances da época fornecem alego-rias nacionais (Fredric Jameson), articulando num nível simbólico comunidades

60 Enquanto, por exemplo, na França, os romances de Balzac expunham as tensões e as bre-chas da família burguesa, os latino-americanos tentavam reparar essas fissuras, com a vontade de projetar histórias idealizadas que apontavam, ora ao passado (enquanto espaço legitimador), ora ao futuro (enquanto meta nacional).

61 Cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales, pp. 41-65.

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imaginadas (Benedict Anderson)62. Enquanto na Europa os escritores exploram as falhas da sociedade burguesa e projetam a fantasia de um novo começo nos mares do sul, na América os escritores tentam balizar a imaginação desse território em ebulição à imagem e semelhança dos estados do norte. E, enquanto a literatura europeia reconhece na crítica a sua autêntica forma de intervenção, a literatura americana da época parece definir-se politicamente por uma função substitutiva: oferece um horizonte de sentido (sobre um território fragmentado), preenche va-zios (identitários), cobre distâncias (étnicas, sociais, políticas). Sem nenhum fun-damento moral, filosófico ou religioso, os romances fundacionais são ficções que se fazem passar por verdade, criando um espaço – ilusoriamente estável – para novas formas de aliança política.

Identificar-se na leitura com a paixão dos amantes para consumar o seu desejo, era já assumir um programa político. Por exemplo, o da eliminação das diferenças sociais, étnicas ou culturais, numa sociedade dada, isto é, o da pro-dução de uma identidade cívica nacional capaz de se impor sobre essas formas conflituosas de identidade tradicional.63 Evidentemente, estes programas políticos nem sempre pressupunham a igualdade e, do mesmo modo que os romances, im-plicavam a subordinação de uma parte à outra – da mulher ao homem, do índio ao mestiço, do campo à cidade etc.

O certo é que a fundação da América Hispânica é em boa medida um exercício de fabulação.64 Um singular exercício de fabulação, que tem o homem americano apenas por sujeito dos enunciados (nos enunciados assistimos, de fato,

62 JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism. Social Text, n. 15, 1986.

63 Não se trata apenas de uma forma arcaica de funcionamento. A literatura, o cinema, a televi-são, conheceram sempre e continuam a conhecer um valor substitutivo similar, sempre mais ou menos polarizado pelas apostas do poder. Também não se trata de um fenómeno meramente lo-cal, uma deformação terceiro-mundista da arte (atribuível, por exemplo, ao hipotético populis-mo latino-americano). Nos Estados Unidos, por exemplo, Robert Burgoyne retoma o tema das ficções dominantes enquanto imagens de consenso social e o seu papel central na construção de uma identidade nacional por parte do cinema norte-americano do tipo The birth of a nation. Fabulação nacionalista que opera “de cima” (isto é, propiciada ou dirigida pelos poderes insti-tuídos), e para a qual o cinema clássico teria constituído uma mediação fundamental, criando uma imagem da sociedade imediatamente acessível a todas as classes.

64 Borges seria um dos primeiros a assinalar a impostura dos mitos da fundação (Fundação mítica de Buenos Aires), reconhecendo (criticamente) a superioridade da potência política da poesia sobre o espírito das leis. Cf. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Barcelona: Emecé Editores, 1989.

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à sua criação como personagem de uma história sem memória), mas do ponto de vista do sujeito da enunciação pressupõe o homem europeu (inclusive se cruzou o Atlântico, se se amancebou, se leva já nas suas veias sangue novo). É neste senti-do que temos que entender o problema levantado por Octavio Paz em El laberinto de la soledad (1950): a América é uma ideia, invenção do espírito europeu, mas enquanto ser autónomo, a América vê-se confrontada com essa ideia e é capaz de opor-lhe uma resistência imprevisível.65

A América é uma complexa trama ficcional reconjugada pela evolução da própria literatura americana. O novo mundo não é tão novo assim. Começo que já é uma repetição, ocupa de fato um espaço duplamente fictício: um forneci-do pela tradição europeia e reelaborado pelos escritores americanos, que tentam reinventar-se a si próprios e à América num movimento sem fim.66

Assim, a fundação mítica ou ficção originária, que se postulava de forma dogmática, passa a ser lida com diversos graus de ceticismo. E a literatura, corre-lativamente, deixa de aspirar à totalização imaginária da realidade para passar a assinalar as suas brechas, os seus desajustamentos, as suas possibilidades desaper-cebidas; passa a compreender-se e a expressar-se como divergência fundamental, como desvio, como dispersão. Assim, em Rayuela (1963), Cortázar escreve: “Se o volume ou o tom da obra podem levar a crer que o autor tentou uma summa, apressar-se a assinalar que está ante a tentativa contrária, a de uma subtração”.67

Os grandes romances contemporâneos re-escrevem ou des-escrevem as ficções fundacionais latino-americanas. Opõem formas de desincorporação lite-rária às identificações imaginárias forjadas durante o século XIX (e não só), isto é, colocam em causa, segundo um deslocamento estratégico da perspectiva, essa política ficcional que não logrou reconciliar as classes em luta, nem aproximar o campo à cidade, nem unir os pais europeus com as mães da terra (ou que só logrou essa reconciliação subordinando, silenciando ou eliminando um dos termos).

Então, como assinala Doris Sommer, os amores fundacionais próprios dos romances do século XIX revelam a sua intrínseca violência, e as mentiras pie-dosas aparecem como estratégias para controlar conflitos raciais, regionais e eco-nómicos que ameaçavam o desenvolvimento das novas nações (na sua evolução burguesa e capitalista, claro). Esses romances aparecem como parte do projeto da

65 Cf. MADRID, Lelia. La fundación mitológica de América Latina. Madrid: Espiral Hispano Americana, 1989, p. 8.

66 Cf. ECHEVERRÍA, Roberto González. Alejo Carpentier: The pilgrim at Home. New York: Cornell University Press, 1977, p. 28.

67 CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Sudamericana, 1983.

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burguesia para conquistar (para assegurar) a hegemonia desta cultura que se en-contrava em estado de formação (uma cultura que, idealmente, seria uma cultura acolhedora, que ligaria as esferas pública e privada, dando lugar a todos, desde que todos soubessem qual o seu lugar).

Sommer propõe como exemplo deste último tipo de ficções La muerte de Artemio Cruz (1964), de Carlos Fuentes. Entre batalhas, Artemio e Regina lem-bram a conversa amorosa do seu primeiro encontro, sentados na praia, contem-plando as suas imagens refletidas na água. Uma lembrança dourada para encobrir a cena original da violação (que foi o que efetivamente tivera lugar). Fuentes escreve: “essa ficção... inventada por ela para que ele se sentisse limpo, inocente, seguro do seu amor... essa bela mentira... Não era verdade. Ele não entrara na sua aldeia, como em tantas outras, procurando a primeira mulher que passasse desprevenida pela rua. Não era verdade que aquela rapariga de 18 anos tinha sido subida à força num cavalo e violada em silêncio no dormitório comum dos oficiais, longe do mar.”68

De alguma forma, os escritores, antes alentados a preencher os vazios de uma história que contribuía para legitimar o nascimento de uma nação e im-pulsionar essa história no sentido de um futuro ideal, procuram dizer agora o não dito nas ficções fundacionais, tentam reintroduzir a contingência no passado, destruindo as estruturas imaginárias e materiais sobre as quais assenta o presente, propiciando a resistência e a abertura de novos espaços de possível.

Exemplo: Em El siglo de las luces69 (1962), de Alejo Carpentier, três adolescentes – Sofía e Carlos, irmãos, e Esteban, o seu primo – perdem o pai e o tio, ficando sozinhos numa enorme casa da Cuba colonial, até que um dia chega um estranho visitante – Víctor Hugues, comerciante e partidário dos novos ideais políticos do século XVIII – que abre a casa ao mundo e à época, implicando--os nos movimentos revolucionários. Mas as ideias de liberdade, fraternidade e igualdade – e a declaração universal dos direitos do homem, enquanto ficção fun-dacional ou constituinte –, são colocadas em questão numa história difícil para as personagens, revelando a traição da revolução francesa aos levantamentos dos negros do Caribe. Sofía, que se apaixona por Víctor e pelas suas ideias (e se en-trega a ambos), acaba por se desenganar: Víctor, o mesmo que trouxera à América o decreto da abolição da escravidão, acaba comprometido num falido intento de

68 FUENTES, Carlos. La muerte de Artemio Cruz. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1967. Cf. SOMMER, Doris. Ficciones fundacionales, p. 45.

69 CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Barcelona: Seix Barral, 1985.

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genocídio da população negra.70 Ou seja, o romance, longe de fundar alguma coi-sa, des-funda uma narrativa hegemónica na qual se espera (ainda) que venham a alinhar-se as nações latino-americanas.71

Exemplo: Em Conversación en La Catedral (1969), de Mario Vargas Llosa, Santiago e Ambrosio mantêm uma conversa num bar chamado La Cate-dral, durante a ditadura do general Odría, da qual resulta uma exploração profun-da das razões da corrupção e da desídia dos dirigentes, assim como da resignação e da impotência dos peruanos. Isto é, Vargas Llosa não nos oferece (mais) uma ficção fundacional para o Peru, mas, pelo contrário, aplica-se à destruição (à des-construção) de um estado de coisas insustentável, que as ficções fundacionais pretendem passar por alto. De fato, o romance de Vargas Llosa começa assim: “Da porta de La Crónica, Santiago olha para a avenida Tacna, sem amor: carros, edifícios desiguais e descoloridos, esqueletos de anúncios luminosos na névoa, o meio-dia cinzento. Em que momento se tinha lixado o Perú?”72. A pergunta não tem resposta, ou, melhor, não tem apenas uma resposta. Cada resposta (cada história) levanta novas questões, cada questão dá lugar a novas histórias, e assim. Não há verdade fundacional, apenas ficções que na tentativa de articular o sentido do presente redeterminam (ou simplesmente apagam) o passado.73

Exemplo: Em Yo, el supremo74 (1974), Augusto Roa Bastos reconstrói, utilizando indiferenciadamente elementos históricos e fictícios, a biografia política de José Gaspar Rodríguez de Francia (também conhecido como Doutor Francia,

70 No fim, procurando expiar a culpa ou conquistar a redenção, Sofia viaja para Madrid, onde se faz matar (corajosamente, desesperadamente) num levantamento popular contra Napoleão.

71 A proximidade de Carpentier à Revolução Cubana (1959) e a data de publicação de El siglo de las luces (1962), podem transmitir a ideia de que Carpentier escreve o seu livro na senda da revolução e que a sua crítica da narrativa da revolução francesa é solidária deste acontecimento, mas a verdade é que Carpentier declarou ter terminado de escrever o livro em 1958.

72 LLOSA, Mario Vargas. Conversación en La Catedral. Buenos Aires: Sudamericana – Planeta, 1981.

73 Nesse sentido, Vargas Llosa não se limita conduzir a sua genealogia até o momento da con-quista, mas reconhece, nos próprios “povos originários” (concretamente, nos Incas), o mesmo mecanismo mistificador de ficcionalização total da realidade. (Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras, pp. 25-28) Historicamente fiel ou não, a proposição de Vargas Llosa é um principio de interpretação: qualquer ficção fundacional é a apropriação violenta de uma ficção anterior, não sendo possível, por um exercício de regressão, dar com nenhuma palavra verda-deira (o mito é um mito, dirá Jean-Luc Nancy); logo, não há comunidade originária, apenas ficções da comunidade.

74 BASTOS, Augusto Roa. Yo, el Supremo. Buenos Aires: Sudamericana, 1985.

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Karaí Guazú, e “el Supremo”), ditador do Paraguai durante 26 anos (1814-1840). A biografia estrutura-se sob a forma de uma espécie de discurso ditado, estrategi-camente pontuado pelos comentários (sediciosos) do seu secretário pessoal, multi-plicando as vozes de tal modo que a ficção mística sobre a qual se fundava o poder de Francia aparece atravessada de contradições, de inconsistências e de mentiras. O ditador dita, mas o secretário adenda, omite, repete, e em geral faz gaguejar o discurso. O escritor empreende um trabalho de segunda mão, não funda nada, não pre-escreve nada com a sua escrita, simplesmente re-escreve uma versão anterior. Sobre a literatura já não repousa nada (não pode), mas no seu movimento desregra-do a escrita pode fazer tremer (e em última instância derruir) qualquer construção (cultural, social ou política) que assente sobre bases ficcionais.

Exemplo: Em Respiração Artificial75 (1980), Ricardo Piglia trama, a par-tir de fragmentos de cartas, monólogos, diálogos e documentos, um romance que, contra o monopólio narrativo que tendem a impor as ficções estatais, procura res-taurar a polifonia de vozes silenciadas pela ditadura. Renzi (um dos protagonistas) recebe os papéis (até então em posse do seu tio, Marcelo Maggi) de um dos seus antepassados, Enrique Osório, dando origem à descoberta de uma história não oficial, de uma história dos derrotados, ou, melhor, de uma memória sem história. A sua reconstrução tem por resultado uma versão sem pretensões de instituciona-lização, que nas margens de um país das margens, torna possível (vivível) a desin-corporação das personagens (e dos leitores) em relação aos horizontes instituídos de sentido. Renzi compreende com Tardewski (e nós compreendemos com ele) que o grande mérito de um escritor não é a fundação do comum, mas a capaci-dade de ouvir a sua própria época, de ouvir e fazer ouvir o murmúrio silenciado pela história oficial, de trazer à luz a palavra dos esquecidos, mesmo se se trata da palavra da derrota, da claudicação ou do desespero. A sociedade é para Piglia uma trama de relatos, um conjunto de histórias que circulam entre as pessoas, pelo que traçar o mapa ficcional da sociedade constitui a tarefa mais importante do escritor, remetendo as ficções hegemónicas a uma região específica do plano, e assinalando os lugares onde algo é dito e não é ouvido, algo é pensado e não é considerado, algo é feito e não é visto.76

Exemplo: Em Zama (1956) de Antonio Di Benedetto, o romance funda-cional é invertido através de uma paródia do romance histórico. A estrutura de Zama é aparentemente simples: o protagonista narra, na primeira pessoa, 10 anos

75 PIGLIA, Ricardo. Respiración artificial. Buenos Aires: Sudamericana, 1988.

76 “Que estrutura têm essas forças fictícias?”: talvez este seja o centro da reflexão política de qualquer escritor” (Ricardo Piglia, Crítica y ficción, Buenos Aires, Seix Barral, 2000; p. 43)

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da sua vida; anos cruciais, nos quais o protagonista experimenta os sintomas da sua decadência física e moral (é, portanto, a história de um perdedor, com o qual muda já o sujeito da história em relação ao sujeito heróico das ficções fundacio-nais). Por outro lado, Di Benedetto não repete as velhas crónicas familiares do romance burguês do século XIX, nem divide a realidade em nações, não pretende ser a summa de nenhuma classe ou território, mas, pelo contrário, multiplica as histórias, as alegorias e as metáforas, anulando a ilusão biográfica e historicista. Essa fragmentariedade, que contamina o livro, dispõe, aí onde as ficções funda-cionais pressupunham a identidade, a continuidade e a coerência no desenvolvi-mento, a heterogeneidade, as diferenças, os acidentes, os acontecimentos mais in-significantes ou mais refratários ao sentido77. Consideremos a passagem a seguir, onde esta espécie de contra-história aparece de forma ímpar. Zama está a cruzar ingloriamente a selva paraguaia quando dá com uma estranha tribo, que caminha pelas veredas abertas no mato, guiada por crianças que levam os adultos pela mão. Zama diz:

“Cegos. Todos os adultos eram cegos. As crianças não. (...) Eram vítimas da ferocidade de uma tribo mataguaya. Tinham-nos cegado com facas ao rubro. (...) Não viam e tinham eliminado deles o olhar dos outros. (...) Quando a tribo se habituou a viver sem olhos foi mais feliz. Cada um podia estar só consigo próprio. Não existiam a vergonha, a censura, a culpa; não eram necessários os castigos. Acudiam uns aos outros para atos de necessidade coletiva, de interesse comum: caçar um animal, reparar o telhado duma cabana. O homem procurava a mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para se isolarem mais, alguns batiam nos ouvidos até partir os ossos. Mas quando os filhos alcançaram certa idade, os cegos compreenderam que os filhos podiam ver. Então foram pe-netrados pelo desassossego. Não conseguiam estar em si mesmo. Abandonaram as cabanas e internaram-se nos bosques, nas pradarias, nas montanhas... Algo os perseguia. Era o olhar das crianças, que ia com eles, e por isso não conse-guiam deter-se em parte nenhuma”78.

Na sua austeridade e o seu laconismo, Zama não representa a condição profunda da América, não é mais uma imagem da nossa fragilidade e da nossa contingência (mesmo que isso possa ser reconfortante). Se o romance de Di Be-nedetto evita qualquer exaltação patriótica, se recusa qualquer tentação de his-toricismo ou de cor local, não o faz em nome de nenhuma nova identificação. A

77 Cf. SAER, Juan José. Prólogo. In: DI BENEDETTO, Antonio. Zama. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2000.

78 DI BENEDETTO, Antonio. Zama. p. 171-172.

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agonia do seu protagonista, o seu inevitável declínio, é apenas metonímia da deso-rientação e da falta de sentido (histórico) do tempo no qual Di Benedetto escreve a sua história. E nesse sentido Saer tem razão: Zama propõe-nos, não uma evasão do presente, mas um trabalho (necessariamente paciente) sobre a sua irresolução e a sua problematicidade, sendo o afastamento metafórico em direção ao passado apenas um mecanismo para a sua irrealização. Na sua leitura desconhecemo-nos enquanto sujeitos de uma história que acreditávamos ser nossa, estranhamo-nos de nós próprios, isto é, colocamos em causa os fundamentos da nossa identidade e os alicerces das construções imaginárias às quais a nossa identidade se encontra associada (simplesmente, já não nos sentimos parte).

Poderíamos multiplicar os exemplos indefinidamente. As obras de Felis-berto Hernández, Haroldo Conti, José Donoso, Alfredo Bryce Echenique, Manuel Puig, José Revueltas, Ernesto Sabato, Osvaldo Soriano, Juan José Saer, Roberto Bolaño, e boa parte da literatura da americana hispânica permitem uma leitura deste tipo, e compreendem uma relação problemática, difícil, irresoluta, com as fábulas fundacionais que demarcam o território ficcional no qual se movem.

Durante séculos, o norte impôs ao sul a sua espada e a sua pena. Cavou, no vazio da sua própria dispersão, um lugar ficcional a partir do qual pretendia afirmar-se apesar de todas as suas diferenças, das suas falhas e contradições. O sul era uma miragem: a ilusão mínima necessária para manter as coisas a funcio-anr (outro mundo é possível, mas do outro lado do mundo, elusivo, inatingível, proibido).

Os poetas, os loucos e os desesperados procuraram-no de diversas for-mas, e de diversas formas o encontraram, mas não como paraíso perdido nem como território virgem (nem, certamente, como terra da liberdade).

“Com a sua fome disponível (...) e a sua esperança dura”79, o sul insinua--se nas margens das línguas e do imaginário que chegaram do norte, mas não existe, pelo menos não como lugar de identificação.

Se o sul é alguma coisa, é uma diferença, ou, melhor, a promessa (sempre diferida) de uma diferença. A diferença, sempre conflituosa, entre a representação que a Europa fazia de nós, a representação que os fundadores das nações ameri-canas faziam de nós, e as representações que nós próprios fazemos de nós. Uma diferença que a literatura frequenta de forma clandestina. Uma diferença na qual não se joga destino nenhum, mas em virtude da qual resiste aquilo que mantém

79 BENEDETTI, Mario. El sur también existe. In: Preguntas al azar. Buenos Aires: Sudamericana, 2000.

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viva a imaginação daquilo que ainda não somos, daquilo que ainda não dissemos nem sonhámos, daquilo que apenas nos atrevemos a pensar.

Entre as fábulas da sua origem e uma origem sempre por fabular80, entre as identificações imaginárias que dão forma ao horizonte da sua história e as de-sincorporações estéticas que relançam continuamente o devir da sua consciência, o sul debate-se por esta diferença sem modelo, isto é, pela utopia desrazoável de uma liberdade sem determinação.

É, claro, um sonho de loucos, de desesperados e de poetas. Que outra coisa podem ser os mares do sul? Que mais?

Crédito da imagem: “Alejandro Thornton, America, 2010.

Post-scriptum sobre as condições de possibilidade de uma política da literatura

Se falamos da inscrição da literatura nos corpos individuais, ou se assi-nalamos a possibilidade de uma desincorporação a respeito dos corpos coletivos

80 Os produtos da ficção são particulares e arbitrários, mas a faculdade de produzir ficções é universal e necessária.

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através da escrita; se constatamos, de forma geral, um devir-menor das poéticas latino-americanas de cujos efeitos políticos ainda não tirámos todas as conse-quências, devemos pressupor que a ficção e a realidade se tocam em algum lugar, sobrepõem-se ou, melhor, entram numa zona de indiscernibilidade.

Mais geralmente, a possibilidade de uma relação efetiva entre estética e política remete a um plano comum, a uma ordem imanente cuja lógica tem sido diversamente abordada pelo pensamento contemporâneo, nomeadamente na ten-tativa de pensar as formas de intervenção da criação artística. Remeter a questão a uma estética primeira (Rancière) ou a um plano de imanência (Deleuze) são al-gumas das formas contemporâneas de dar conta dessa condição de possibilidade, cuja determinação é uma exigência para qualquer filosofia que pretenda inscrever a arte no contexto de uma pragmática alargada.

Tomemos o caso de Gilles Deleuze. Na ideia de que a literatura é ou pode chegar a ser algo mais que uma sublimação dos nossos desejos falidos, na ideia de que a literatura é um objeto entre outros objetos, máquina entre máquinas, e que o escritor “emite corpos reais”81, Deleuze desenvolve uma ontologia da expressão. Esta ontologia conhece diferentes formas na sua obra, mas ganha uma consis-tência ímpar através do conceito de agenciamento de desejo, enquanto unidade de análise que articula estrategicamente uma série de elementos heterogéneos (discursos, instituições, arquiteturas, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas etc.). Alternativa conceptual ao sujeito e à estrutura, o agenciamento de desejo permite a Deleuze refundar uma teoria da expressão eliminando qualquer traço representativo. Relacionando os fluxos semióticos com os fluxos extra-semióticos e as práticas extra-discursivas, para além das relações de significante a significado, de representante a representa-do, o agenciamento é uma relação de implicação recíproca entre a forma do con-teúdo (regime de corpos ou maquínico) e a forma da expressão (regime de signos ou de enunciação). Neste sentido, assinala Deleuze, qualquer agenciamento tem duas caras:

“Não há agenciamento maquínico que não seja agenciamento social de desejo, não há agenciamento social de desejo que não seja agenciamento coletivo de enunciação (...) E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação num processo que não permite que nenhum sujeito seja atribuído, mas que permite por isso mesmo marcar com maior ênfase a natureza e a função dos enunciados, uma vez que estes não existem senão como engrenagens de um agenciamento semelhante

81 Deleuze. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 183.

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(não como efeitos, nem como produtos). (...) A enunciação precede o enunciado, não em função de um sujeito que o produziria, mas em função de um agencia-mento que converte a enunciação na sua primeira engrenagem, junto com as outras engrenagens que vão tomando o seu lugar paralelamente”82.

Noutras palavras, os corpos e os enunciados, as palavras e as coisas, são parte de um mesmo regime de expressão, de uma mesma configuração do desejo (sempre aberta, por outra parte, a novas configurações, na medida em que qual-quer agenciamento compreende pontas de desterritorialização, linhas de fuga por onde se desarticula e se metamorfoseia). É a partir dessa ontologia que, retoman-do a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político, Deleuze restitui toda a sua potência à literatura. A máquina de projetar da escrita não é se-parável do movimento da política: subjetiva, a escrita remete à subjetividade dos grupos onde começa a fazer sentido como expressão, onde deixa de ser um mero devaneio da imaginação para passar a formar parte de um agenciamento coletivo de enunciação (“a força de projeção de imagens é inseparavelmente política, eró-tica e artística”83). A literatura é uma engrenagem (a) mais, uma formação suple-mentar, lado a lado com os equipamentos do saber e do poder, as configurações da subjetividade e as canalizações do desejo que dão consistência a uma sociedade; e, nessa mesma medida, concorre na articulação (sempre inconclusa) do comum.

Mais perto de nós, Jacques Rancière propõe que arte e política não são duas realidades separadas cuja relação estaria em causa, mas duas formas de par-tilha do sensível dependentes de uma estética primeira: espécie de a priori histó-rico que determina regimes específicos de identificação (do público e do privado, do individual e do coletivo, da arte e do trabalho etc.)84. Deste ponto de vista, a política compreende uma estética, na medida em que estabelece montagens de espaços, sequências de tempo, formas de visibilidade, modos de enunciação que constituem o real da comunidade política. Ao mesmo tempo, a arte compreende uma política pela distância que guarda a respeito dessas funções, pelo tipo de tem-po e de espaço que estabelece, pela forma em que divide esse tempo e povoa esse espaço. O que liga a prática da arte à questão do comum, o laço entre estética e política, é a constituição, ao mesmo tempo material e simbólica, de um determina-do espaço-tempo (no qual se redistribuem as relações entre os corpos, as imagens,

82 GUATTARI, Deleuze. Kafka: Pour une litterature mineur. Paris: Minuit, 1975, p. 147-152.

83 GUATTARI, Deleuze. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993, p. 148.

84 Cf. RANCIÈRE. A partilha do sensível: estética e política. Tradução portuguesa de Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 15-26.

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as funções etc.), produzindo certa ambiguidade em relação às formas ordinárias da experiência sensível (o próprio da arte, segundo Rancière, consiste em praticar novas formas de articulação dessa experiência).

“A relação entre estética e política é a relação entre a estética da política e a política da estética, isto é, a forma em que as práticas e as formas de visibilidade da arte intervêm na partilha do sensível e na sua reconfiguração, no qual recor-tam espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o particular. A estética tem a sua política própria que não coincide com a estética da política senão na forma do compromisso precário. Não há arte sem uma determinada partilha do sensí-vel que a liga a uma determinada forma de política (a estética é essa partilha). A tensão das duas políticas ameaça o regime estético da arte, mas é ao mesmo tempo aquilo que o faz funcionar.”85

A literatura pode momentaneamente colaborar na conformação política de um corpo social, mas a escrita – no seu regime estético, isto é, tal como a pra-ticamos, a lemos e a pensamos hoje – tende a produzir uma desincorporação em relação às identificações imaginárias disponíveis, tende a interromper as coorde-nadas normais da experiência sensorial e, a partir desta, a percepção ordinária da partilha do sensível (e as suas coordenadas políticas). Qualquer política da poética contemporânea não pode ser para Rancière senão uma política do dissenso (com o risco de anular-se como poética), e não pelas intenções que projetamos sobre a literatura, mas pela forma na qual – nos nossos dias – vemos, fazemos e pensamos a arte.

As tentativas de pensar as relações entre estética e política não se limi-tam aos dois casos que mencionámos (nem esses casos desconhecem problemas de ordem teórica e prática). Como dizia Blanchot, a resposta autêntica é sempre a vida da pergunta, e esta é uma pergunta que nos inquieta e nos inquietará quiçá por muito tempo. Nem toda a obra redefine a arte, da mesma forma que nem todo o nascimento recria o mundo, mas late nestes dois acontecimentos seminais a esperança de um outro mundo possível, de um outro homem, do devir (menor) da consciência.

85 RANCIÈRE. Sobre políticas estéticas. Tradução espanhola de Manuel Arranz. Barcelona: Servei de Publicacions de la Universitat Autónoma de Barcelona, 2005, p. 33; cf. p. 51: “O regime estético da arte implica uma determinada política, uma determinada reconfiguração da partilha do sensível. Essa política divide-se originalmente ela própria, como tentei mostrar, nas políticas alternativas do devir-mundo da arte e da reserva da forma artística rebelde, deixando em aberto que os opostos possam recompor-se de diversos modos para constituir as formas e as metamorfoses da arte crítica”.

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Referências

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Textos de revistas e periódicos

L’Homme, Paris, 1989, v. 29, n. 111, p. 7-33; cf. PAZ, Octavio Paz. El laberinto de la soledad. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1998.JAMESON, Frederic. Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism. Social Text, n. 15, 1986.

Eduardo Pellejero é argentino de nascimento, português por adopção, residente no Brasil, apátrida por convicção. Actualmente é professor de Estética Filosófica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde desenvolve uma investigação no domínio da Filosofia (política) da Arte. Publicou Deleuze y la redefinición de la filosofía (México: Jitanjáfora, 2006) e A postulação da realidade (Lisboa: Vendaval, 2009).

Tradutora Susana Guerra é graduada em História pelo Instituto Superior de Ciências do Tra-

balho e da Empresa (Lisboa-Portugal, 2004), mestre em Estudos Asiáticos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto-Portugal, 2007), doutora em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2012). Professora do Departamento de História da Universi-dade Federal do Rio Grande do Norte.

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ODevir-MundodasPráticasMenores

Anne Querrien

São numerosos os jovens arquitectos que se põem hoje a questão de in-ventar novas práticas que os levem a contornar uma encomenda que se tornou hipotética, através da valorização de uma procura latente, ligada às necessidades das populações. As encomendas de arquitectura por parte das construtoras imobi-liárias ou das instituições públicas, a pretexto de dar resposta às necessidades de alojamento, traduziu-se em programas de especulação financeira, que estão em parte na origem da crise actual. Construir ou projectar nestas condições torna-se insustentável, no sentido de não ecologicamente duradouro. Os arquitectos vêem--se cada vez mais rapidamente confrontados com a necessidade de inflectirem as suas práticas. A arquitectura participativa dos anos do passado, que se contentava com fazer modificar na margem os programas estabelecidos pelas autoridades, não conduz a novos programas; limita-se ao comentário das instituições domi-nantes, baseia-se nos seus programas para se desenvolver, não abre novos campos de práticas.

Até mesmo quando se trata de alojar a população, esses programas são os de uma casta que associa “grandes arquitectos” e altos funcionários na repetição das mesmas atitudes paternalistas em resposta aos problemas sociais. O desenvolvimento industrial permitiu na Europa o desenvolvimento de cen-tros de cidade, destinados ao comércio e à cultura, testemunhos de uma certa qualidade arquitectural. Na América Latina, as periferias abandonadas por esta forma de organização são ainda mais vastas. De um lado e de outro do Atlân-tico, o saber arquitectural, formado nas escolas e nas agências de arquitectura, distribui o espaço da vida quotidiana ou torna-se uma referência para as peque-nas empresas e a autoconstrução. Os “grandes arquitectos” definem os espaços monumentais destinados às práticas do poder, quer se trate de os valorizar em termos espectaculares ou de os associar às necessidades fundamentais de edu-cação e de saúde.

A juventude da democracia nos países ibero-americanos conduziu a prá-ticas menos hierárquicas. Foi assim que, em Barcelona, a escola de arquitectura pôde propor por altura da preparação dos Jogos Olímpicos que se aproveitasse a acumulação de desenhos de praças públicas e de fantasias utópicas, realizados nos anos anteriores a partir do projecto de embelezar a cidade e de a tornar aces-

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sível a todos os cidadãos. Do mesmo modo, no Brasil o programa de urbanização das favelas rompeu provisoriamente com as formas habituais de expropriação, e comprometeu-se com um trabalho colectivo do espaço que permitia restituí-lo à população, ainda que a propriedade efectiva continuasse a ser posta em causa86. Mas, nos dois casos, a boa vontade não resistiu perante a avidez consentida pela organização de eventos internacionais, como as conferências do Fórum em Barce-lona ou a organização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A arquitectura é de novo subordinada à realização de projectos espectaculares efémeros. Os jogos das crianças ou os itinerários quotidianos são ignorados em beneficio da circulação dos turistas.

E, entretanto, independentemente do brio com que o arquitecto participe na governação urbana, o fluxo crescente dos estudantes de arquitectura dificil-mente encontra lugar nos quadros canónicos da profissão. Dirão alguns que isso se deve ao facto de serem demasiado numerosos. Mas a experiência mostra que se tratou antes de não terem sabido redefinir o seu espaço, potencialmente alargado pelo seu número. Nem toda a gente pode vir a ser o “grande arquitecto” em di-recção ao qual a encomenda pública flui abundantemente para melhor se repetir. É necessário inventar outras práticas, encontrar outros comanditários, instaurar outras ligações com os utilizadores finais que são os moradores e os visitantes. Com o devir-menor da arquitectura aparece o carácter plural daqueles a quem ela se destina, carácter plural no tempo da frequentação, nos desempenhos esperados das construções. Este devir-menor pode tomar forma de múltiplas maneiras. Aqui abordarei o caso do Atelier d’architecture autogerée87, e a sua experiências de organização da transição ecológica em bairros pobres e periféricos de Paris. Po-derá esta prática situada intervir como referência num contexto ibero-americano, transatlântico e do Sul?

Construir o programa

Foi no início da década de 1970 que se descobriu em França que, à força de se disporem a obedecer à encomenda a fim de poderem construir e ganhar mais88, os arquitectos podiam tornar-se cúmplices de operações absurdas, quan-do não nocivas. Foi assim que se viram obrigados pelo Ministério da Educação

86 Cf. BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris: L’Harmattan, 2011.

87 http://www.urban-tactics.org

88 Revista Recherches, Architecture, programmation et psychiatrie, 1967.

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Nacional [francês] a fabricar estabelecimentos de ensino secundário industriali-zados, que não tinham a possibilidade de beneficiar de centros de documentação ou outros equipamentos adjacentes. Do mesmo modo, alguns deles julgaram-se obrigados a fabricar hospitais psiquiátricos que se tornaram inúteis depois da rá-pida difusão dos medicamentos psicotrópicos e da emergência da hospitalização domiciliária. As concepções administrativas pareciam em atraso sobre o perfil profissional das práticas, ao mesmo tempo que as reivindicações sindicais das profissões se exprimiam em termos de necessidades tradicionais. Era, portanto, necessário intervir sobre o dispositivo da enunciação das necessidades, incluindo no colectivo membros do conjunto dos pessoais implicados e representantes dos utilizadores. O arquitecto já não era o decorador encarregado do “embrulho” de um programa definido e calibrado quantitativamente para o adaptar a um certo lugar. Tornava-se o agente gráfico e escritural, ao mesmo tempo que o animador de um colectivo, chamado a definir o projecto com ele: sem dúvida, num processo que tal, o arquitecto não ocupa uma posição igual à dos outros actores, porque possui um saber gráfico que permite representar o espaço, oferecer ao grupo um espelho do seu pensamento, e desempenha assim um papel maiêutico essencial. Mas está, também ele, numa situação de aprendizagem, de descoberta das ne-cessidades do grupo e do local preciso que o ocupa. Deixa de poder dispor de respostas antecipadas para tudo89.

A escola primária e o estabelecimento de ensino secundário são pro-gramas arquitecturais comuns à França e ao mundo ibero-americano. Inácio de Loyola foi o primeiro a imaginar que, graças a dispositivos espaciais concretos, Deus poderia dirigir-se em particular a cada ser humano. As igrejas da Idade Mé-dia dirigiam-se a grupos sociais hierarquizados, que retransmitiam, cada um à sua maneira, a palavra divina90. Os Exercícios Espirituais propõem ao homem de espírito cultivado a forma mais desterritorializada desse dispositivo espacial: o crente, imaginando intensamente as cenas da vida de Cristo, escolhendo cuida-dosamente todos os detalhes, poderá chegar a desterritorializar-se o bastante para se tornar lugar da eleição de Deus, entrar num diálogo directo consigo mesmo na presença do Senhor, e descobrir a solução dos problemas éticos ou práticos que o apoquentam. A prática mostrou que nem sequer os mais próximos de Loyola conseguiam pensar em Cristo com a intensidade e a liberdade suficientes para

89 GUATTARI, Félix. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube, La Tour d’Aygues, 2011.

90 PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions de Minuit, 1967.

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acederem a um tal grau de desterritorialização. Os companheiros de Inácio viram--se por isso reduzidos a mandar fabricar livros que transformassem em quadros as cenas da vida de Cristo e a organizar um ensino moral a seu propósito. Enquanto, até então, só a leitura e o canto eram ensinados na igreja, a escrita passou a ser do-ravante o utensílio privilegiado das escolas cristãs. A escrita que dá conta do que se observou, do que se aprendeu, mas que eventualmente abre também à prática da liberdade. Os jesuítas enviados em missão para todos os continentes recente-mente descobertos têm de enviar todos os meses uma carta a Inácio, dando-lhe conta do que descobriram e dos problemas que são levados a pôr-se. Encorajados assim à curiosidade perante novas civilizações do mundo, estabelecem-se nelas e tornam-se seus dignitários. A escola de bairro ou de aldeia é a pedra sobre a qual se constrói o novo edifício espiritual. Difunde-se nas terras recentemente con-quistadas tão rapidamente como nos campos da Europa, e enfrenta nelas resistên-cias iguais ou superiores. A igreja barroca e o colégio dos jesuítas são programas arquitecturais omnipresentes na América Latina.

Em França, a Revolução, trazendo consigo uma constituição escrita e a soberania popular, conferiu à escola um novo papel: forjar o povo que ainda au-sente, fundir num mesmo conjunto o centro e as periferias. A escola torna-se um lugar central de cada comuna, uma marca explicitamente assinalada, deixando de se albergar em edifícios arrendados, ou recuperados, inadequados à sua função de representação da República e de formação de cada um dos seus membros. E contudo, a escola republicana instala-se nos dispositivos espaciais e pedagógicos concebidos pela escola cristã. Na sala de aula, as carteiras dos alunos são coloca-das diante do mestre que se instala no plano superior do estrado, com um crucifixo ou o busto da República atrás dele – ou atrás dela, quando a escolarização passa a abranger igualmente as raparigas, cerca de um século mais tarde, na generalidade dos casos. Mas a reunião de um grupo de crianças dá lugar a numerosas outras relações, geralmente ignoradas pelo olhar do mestre, ou percepcionadas como dificuldades. Ora, é ao longo destes vectores horizontais, destes agrupamentos parciais, que vai organizar-se a aprendizagem através dos ricochetes do discurso do mestre, da formação mútua ou do treino nos expedientes improvisados. As crianças aplicam-se de modo a fazerem com que as mensagens passem ou a detê--las; a sua presença activa é precisamente a condição de uma pedagogia eficaz. Certas pedagogias diferentes aperceberam-se de que assim era e esforçaram-se por desenvolver cenários alternativos, muitas vezes baseados no funcionamento do grupo da turma em entidades mais pequenas. A sala de aula torna-se facilmente um espaço cheio de entraves e de ruído. Tal é a origem do sonho de instalações

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mais amplas e mais diversificadas. Ao que se opõem as condições do financia-mento, uma vez que as programações centrais só podem sobreviver da reprodução das mesmas células de base. O olhar lateral dos alunos entre eles e em direcção ao mundo prolonga-se então voltando-se para os seus pais, ou para o meio no qual se enraíza a escola. Ao ligar-se ao seu meio, a escola descobre a possibilidade de novas contribuições, de novos intercâmbios. É a própria escola que acaba por se ver assim revisitada. Deixa de ser o lugar onde as crianças são postas de lado enquanto os pais trabalham, mas torna-se um lugar de aprendizagem para todos, um núcleo de formação para a aldeia e para o bairro. Entretanto, o seu invólucro arquitectural evolui, alarga-se, passa a ter aberturas que deixam passar a luz e o olhar, desenvolve-se a comunicação entre o interior e o exterior, e o programa transforma-se à imagem de um centro de desenvolvimento comunitário local91.

Daqui resulta uma imposição maior e homogénea: a escola torna-se um lugar de articulação e de prolongamento dos elementos heterogéneos presentes no território, na aldeia ou no bairro: um lugar de cruzamento e de expressão da multiplicidade dos devires-menores com que pode deparar. É articulando-se com estes devires-menores, com as práticas singulares das crianças ou dos adultos presentes no meio circundante que a escola poderá transformar o seu contexto em meio educativo.

A arquitectura escolar pode assumir então diversas configurações, fun-ção das trajectórias que vêm atravessá-la. A escola deixa de corresponder a um modelo que se aplicaria não importa onde para obter resultados mais rápidos e menos caros. O seu programa é produzido localmente, utilizando todas as contri-buições de séculos de experiência escolar, mas afastando-se dessa tradição a fim de permitir aos devires-menores que nele se cruzam não sendo capturados pela hierarquia que até hoje os conduziu à exclusão. Nesta situação, os arquitectos são responsáveis pela cartografia dos desejos e pelo fornecimento à comunidade das informações indispensáveis à possibilidade de escolher.

91 Anne Querrien, L’école mutuelle, une pédagogie trop efficace?, Les empêcheurs de penser en rond, Paris, 2004; Julien Pallota, L´école mutuelle, au-delà de Foucault, Bibliothèque de philosophie sociale et politique, Paris, 2012.

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Crédito da imagem: “Le 56 rue Saint Blaise, un salon de jardin près d’un grand ensemble © AAA (www.urban-tactics.org).

A construção ecológica de lugares urbanos

São raras as operações arquitecturais académicas que partem de uma imersão na quotidianidade para a construção de uma proposta pública e comum a um conjunto de moradores. A crítica arquitectural corresponde na maior parte dos casos a projectos de renovação: estes são, depois, apreciados pelos moradores em função das mudanças a que os submetem, e, de um modo geral, recusados. Numa cidade em vias de desenvolvimento, o valor monetário dos bens destruídos não pode ser suficiente para reaver o valor de uso equivalente – para já não falarmos das relações desfeitas pela mudança de local. Os promotores públicos e privados apoiam-se no fraco número dos participantes para passarem por cima destes as-pectos. Asseguram-se da desmoralização dos moradores.

Para evitar esta espiral depressiva no quartier La Chapelle prometido a uma renovação completa, os fundadores do Atelier d’architecture autogerée, Constantin Petcou e Doina Petrescu, imaginaram a ideia de desenvolver num ter-reno vago, que a SNCF92 deixara desocupado, uma investigação-acção sobre a ini-

92 Ou Société nationale des chemins de fer – companhia nacional dos caminhos de ferro franceses (N.d.T.).

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ciação dos moradores na ecologia e no desenvolvimento durável93. Criou-se, entre paletes de transporte de mercadorias, um grande jardim hors-sol (“fora do solo”) a ser partilhado em comum; crianças e adultos tinham a possibilidade de plantar ali o que quisessem, aprendendo a respeitar-se uns aos outros. O desenho do jardim, as suas regras de funcionamento, a animação quotidiana, que seria rapidamente continuada por moradoras e moradores, conseguiram construir um corpo comum. Projecções de filmes, oficinas de bricolage, apresentações de trabalhos de artistas de toda a Europa partilhando a mesma problemática, permitiram soldar uma co-munidade multicultural, empenhada no trabalho de construção comum através do desenho generoso dos espaços. Quando a renovação começou, foi possível nego-ciar uma continuação do jardim partilhado pelos moradores com a municipalidade de Paris. A acção fez com que emergissem no bairro alguns líderes, sobretudo mulheres, e uma preocupação com os jardins que a municipalidade retomou por sua conta no programa da renovação.

A acção foi de tal modo exemplar que Paris-Habitat, a principal organi-zação de alojamento social da Ville de Paris, propôs ao Atelier de Arquitectura Autogerida fazer cultivar por meio da sua metodologia uma faixa de terreno árido entre dois prédios, precisamente diante do maior complexo de habitação social de Paris, a ser objecto de renovação próxima. A terra pedregosa do número 56 da rue Saint Blaise encontrou-se em breve coberta de plantações, ao mesmo tempo que se desenvolveram diversas actividades colectivas para os moradores do bairro. Ao contrário das intervenções artísticas que tinham tentado pontualmente despertar a consciência cívica dos moradores, “o 56” transformou-se numa instalação du-radoura, num pequeno espaço de demonstração das técnicas ecológicas em Paris: fossas secas, painéis solares, utilização das águas da chuva. Uma instalação fora do solo (hors-sol) pode funcionar de maneira autónoma sem ligação às grandes redes: prova da possibilidade de numerosas outras instalações posteriores. Em ter-mos muito concretos, os princípios de base da ecologia são instaurados numa ins-talação aberta: um “salão de verdura” num bairro popular. Com efeito, “o 56” não é simplesmente uma montra técnica da ecologia urbana: é um local de debates, sob o nome de Laboratório de Urbanismo Participativo (Laboratoire d’urbanisme participatif) que reflecte em termos abertos e públicos sobre as experiências de construção ecológica ou de Land Art na Europa. Também aí a gestão do local é progressivamente confiada a uma associação de moradores-jardineiros, principal-

93 Multitudes, n. 20, Constantin Petcou e Doina Petrescu, Au rez de chaussé de la ville, Amsterdam, Paris, 2005, e idem, n. 31, DP e CP (orgs.), Une micropolitique de la ville: l’agir urbain, Amsterdam, Paris, Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 2007.

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mente jardineiras, que se encarrega da animação do terreno enquanto os arquitec-tos se retiram parcialmente para desenvolverem o seu projecto noutros espaços94.

Alguns representantes eleitos de Colombes, uma cidade da periferia no-roeste de Paris, foram convidados a visitar o 56 por um morador-jardineiro. Con-venceram o maire da comuna a retomar o projecto de uma formação dos morado-res em conversão ecológica no quadro de um projecto intitulado R-Urban95. Três domínios de trabalho começam a ser explorados nos terrenos deixados por cul-tivar: agricultura urbana com os moradores das habitações sociais vizinhas; uma galeria de fabrico, exposição e venda de objectos produzidos a partir de materiais reciclados; um habitat cooperativo autogerido. Há também aqui um processo as-sociativo de produção de ideias a partir dos moradores, confrontados com anima-dores de investigações nestes domínios, chegados de todas as partes do mundo. Colombes torna-se o núcleo de uma exploração de referências e de práticas que garantem um futuro apesar da crise. Na arquitectura passam a participar a agri-cultura, a economia, a sociologia, a escultura, a land art, num novo processo de fabricação do quotidiano.

Um diálogo a abrir com o Sul

A arquitectura autogerida é solicitada a integrar-se no modelo dominante como um seu enésimo caso, através de numerosas formas de reconhecimento in-ternacional, prémios, artigos pedidos… Mas a força de ruptura de uma proposta semelhante, hoje confinada a espaços dedicados à economia social e solidária, é ampliada e reencaminhada pelo projecto artístico e político de Doina Petrescu e Constantin Petcou, visando criticar no plano dos actos tanto o capitalismo como o “socialismo real” que ambos viveram durante a sua juventude na Roménia. Trata--se, para começar, de abrir espaços de liberdade, de criar um comum vivo, antes de dar resposta aos novos imperativos da arquitectura ecológica. Em França, este projecto é um projecto singular – apesar de fazer escola, no sentido em que nu-merosos estagiários chegam para participar nele, e, sobretudo, apesar de, quando os terrenos envolvidos logram alargar-se, não estarmos ainda perante uma prática colectiva que transborde os quadros sucessivos que o viram nascer.

O interesse por esta experiência vem actualmente sobretudo do Norte, de investigadores e artistas que tentam também uma crítica através da land art ou da instalação de dispositivos ecológicos. Estas conexões são facilitadas pe-

94 http://www.urbantactics.org/projectsf/passage%2056/passage56html.html

95 http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rurban.html

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los financiamentos europeus96, enquanto as cooperações com o Sul são apoiadas sobretudo quando envolvem instituições já muito reconhecidas. Esta cooperação europeia acarreta uma funcionalização da proposta, permitida também pelo ca-rácter relativamente homogéneo da população a que se dirige: as classes médias pobres das periferias urbanas, que descobrem assim novos meios para a sua busca de responsabilidade social.

O dinamismo das regiões do Sul é sustentado, em contrapartida, pela mestiçagem ds populações, a fusão das vagas sucessivas de imigrantes (coloni-zadores portugueses e espanhóis, escravos negros, operários agrícolas e traba-lhadores fabris europeus, judeus fugindo ao anti-semitismo, árabes fugindo ao islamismo, e outros grupos). Fazendo do lugar alternativo (l’ailleurs) marcado pela presença índia, ainda que fortemente exterminada, o crisol dos seus novos sonhos, os povos da América Latina lançaram os alicerces de novas construções culturais97. Como pode fazer arquitectura esta civilização em fuga e, depois, em reconstrução? Fez já a uma música que desenvolve as suas linhas de fuga, dos ritmos africanos às elaborações contemporâneas, passando pelas melodias espa-nholas98. Entre as igrejas barrocas, o modernismo arquitectural e a floresta, que será possível tecer? O espaço das favelas é, no essencial, um espaço de habitat, privado; mas, nesse espaço, a rua é muito frequentada e muitas vezes ocupada; a decoração apodera-se dos muros, multiplicam-se as iniciativas teatrais. Precisa-se um renascimento, que os poderes municipais se apressam, de resto, a enquadrar em renovações urbanas que, há 20 anos, seriam inconcebíveis, como aconteceu no caso de Medellin99.

As culturas do Sul alimentam uma relação com o outro a que os escrito-res e artistas brasileiros, na esteira de Oswald de Andrade, chamaram antropófaga, consistindo em se apropriar do que o outro tem de melhor, em assimilá-lo a fim de se transformarem. Acolher a arquitectura europeia tal como esta é deixa de ser recomendável nesta nova produção. E para tanto é já necessário escapar aos pro-gramas monumentais e aos modelos. Trata-se de desenvolver no espaço público pequenas intervenções no limite da arte contemporânea, da performance e da ar-quitectura, de fabricar uma arquitectura da rua, que se desenvolva nos interstícios da cidade, e que não se autorize senão da sua própria iniciativa – uma arquitectura

96 Rhyzom, Cultural Practices Within and Across, AAA, Paris, 2010.

97 Multitudes, n. 35, Amérique Latine, Amsterdam, Paris, 2009.

98 Michel Plisson, Le tango, du noir au blanc, Actes Sud, Aix en Provence, 2004.

99 http://www.pavillon-arsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243

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que poderíamos dizer autogerida, mais centrada na ecologia e na formação dos habitantes.

Enquanto o Sul ofereceu durante muito tempo a imagem do sofrimento humano, pontuada por alguns focos de resistência que a atenuavam, a sua potên-cia recente em termos de desenvolvimento económico revela nele uma diversida-de infinita e a capacidade de estabelecer o diálogo entre os saberes, de deslocar as linhas. A este apelo as experiências do Norte respondem por meio da crítica da pretensão das disciplinas à hegemonia e a profusão das experimentações. Mas a proliferação é impedida pelas vontades de controle e pelas crispações repetitivas que persistem. A convergência das emergências100 prepara-se lentamente, numa dispersão completa das suas manifestações. Assistimos a uma nova crioulização do mundo, a uma hibridação, que reemerge a partir do Sul e prepara o advento do mundo-todo (tout-monde)101 cantado por Edouard Glissant102.

Referências

BERENSTEIN-JACQUES, Paola. Les favelas de Rio. Un enjeu culturel. Paris: L’Harmattan, 2011.GLISSANT, Edouard. Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.GUATTARI, Felix. Máquina Kafka. São Paulo: N-1 Edições, 2011. ___. Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles. Éditions de l’Aube, La Tour d’Aygues, 2011. PALLOTA, Julien. L´école mutuelle, au-delà de Foucault. Paris: Bibliothèque de phi-losophie sociale et politique, 2012.PANOFSKY, Erwin. Architecture gothique et pensée scolastique. Paris: Editions de Minuit, 1967.QUERRIEN, Anne. L’école mutuelle, une pédagogie trop efficace? Les empêcheurs de penser en rond. Paris, 2004.

100 SANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud. Etudes rurales, n. 187, Ecoles des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.

101 Termo que condensa e reitera a ideia de uma “mundialidade” (mondialité) alternativa proposta por Glissant (N.d.T.).

102 GLISSANT, Edouard. Traité du tout-monde. Poétique. Paris: Gallimard, 2011.

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131Anne Querrien

Artigo de revista

PETCOU, Constantin; PETRESCU, Doina. Au rez de chaussé de la ville. Multitudes, Amsterdam, Paris, n. 20, 2005.___. Une micropolitique de la ville: l’agir urbain. Multitudes, Amsterdam, Parisn, n. 31, DP e CP (orgs.), Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 200ASANTOS, Boaventura de Sousa. Épistémologies du Sud, Etudes rurales, n. 187, Eco-les des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.

Textos da internet

Atelier d’architecture autogeree. Urbantatics. Disponível em: <http://www.urbantac-tics.org/>. Acesso em: 12 dez. 2013.___. Le 56 / Eco-interstice. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/passage%2056/passage56html.html>. Acesso em: 13 dez. 2013.___. R-URBAN – participative strategy for development, practices and networks of local resilience. Disponível em: <http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rur-ban.html>. Acesso em: 28 dez. 2014. Pavillon de L´Arsenal. Medelìn, Urbanismo Social. Disponível em: <http://www.pa-villonarsenal.com/expositions/thema_modele.php?id_exposition=243>. Acesso em: 28 dez. 2014.

Anne Querrien é socióloga e urbanista. No maio de 68 militou no Movimento de 22 de março, depois trabalhou no Cerfi com Félix Guattari. Dirige a redação do journal Les Anna-les de la Recherche Urbaine. É membro dos comités de redação da Multitudes et da Chimères e participa de diversas associações como a AITEC e a CLCV.

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LUGARCOMUMNº41,pp.133-

Dionora. Para uma Arquitetura Menor

Patricio del Real

Não deve surpreender-nos que num mundo assim, onde os mais belos jovens tinham sido reproduzidos nus e num tamanho gigantesco,

por todos os lados, se desencadeasse uma virulenta febre de ninfomarmáticos e ninfomarmóreas.

reinaldo arenas

Dionora domina o terraço do seu edifício. Há muito já que se mudou para a açoteia de uma antiga construção de Habana Vieja: “Fui a primeira moradora”, diz com uma voz forte e segura, “deste ‘palácio’, antes da Revolução” – em Ha-vana, todas as casas velhas se transformam em palácios. Ostentando uma atitude senhorial, conta como “alargou ao terraço” o seu espaço “depois de a moradora se ter ido embora do país”. Defensora das conquistas da Revolução, admite tam-bém os seus malogros, mas adverte-me que não pense que o estado ruinoso do edifício se deve à negligência, que não vá dizer “lá fora” que o que aqui se vê é sinal de um fracasso colectivo. Dionora é combativa; vive há muito tempo já uma batalha quotidiana: litígios com os vizinhos devidos às infiltrações constan-tes; negociações no mercado negro enquanto procura materiais para prosseguir a sua expansão permanente sobre as açoteias de Havana. Dionora combate para conservar o seu pequeno estado matriarcal. Embora defendida por um sistema legal e ético, Dionora luta contra uma cidade colonial que está a ser objecto de saneamento e posta ao serviço do turismo internacional desde que foi declarada pela UNESCO, em 1982, Património da Humanidade. As recentes transformações do Estado cubano, a legalização da propriedade privada em finais de 2010, com o objectivo da inserção do espaço urbano num mercado imobiliário nascente, geram novos conflitos para aqueles que, como os construtores de barbacoas103, vivem intensamente o património histórico da nação cubana; por detrás das pressões do

103 As barbacoas – por vezes consideradas como “favelas interiores” – são plataformas ou tablados construídos aproveitando os “pés direitos” muito altos de velhas casas, cujo resultado é subdividir e reordenar os espaços interiores, fornecendo alojamento a um grande número de elementos da população de Cuba. (N.d.T.).

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mercado internacional perfila-se a geografia económica nacional e consolida-se a imagem do “cubano” através de uma arquitectura colonial consumida por turistas.

No Rio de Janeiro, a batalha pela cidade assumiu dimensões olímpicas. Recentemente, o presidente do Comité Olímpico Internacional, Jacques Rogge, reclamou a “urbanização” das favelas do Rio. Rogge declarou que um grande in-vestimento em infra-estruturas seria qualquer coisa de “fantástico”104. Por detrás da soma delirante, calculada em mais de cinco mil milhões de dólares, de um pro-jecto fantasista, esconde-se o ditame de urbanizar – ou seja, de produzir um sujei-to urbano. Os recentes projectos de arquitectura e urbanismo no Rio revelam uma cidade sequestrada pelo Olimpo, na qual os mecanismos internacionais são usa-dos para expulsar (“relocalizar”, na boa gíria burocrática) sujeitos incivilizados em operações menos espectaculares do que as recentes incursões paramilitares em favelas transformadas, através da imprensa e da televisão, em baluartes do tráfico internacional de drogas. Os construtores de favelas já não têm apenas de combater quotidianamente situações e organismos locais; hoje, é-lhes necessário ainda in-serirem-se em circuitos internacionais e defenderem, através de organismos como a Organização dos Estados Americanos, reivindicações locais, não esquecendo que tais instituições possuem os seus próprios mecanismos de ofuscação105. A situação relocalizou as favelas do Rio, uma vez que o olhar internacional as des-locou para o sector dos desportos. A visão das favelas, apresentada nas páginas internacionais e de desporto, produz uma ofuscação populista entre espectáculos de violência real e violência ritualizada. Este modo de apresentar a questão, que tenta conter e localizar o problema como sendo o da existência de focos de inten-sidade urbana malsã, faz-nos esquecer que é o sujeito urbano, que Rogge deseja, que materializa o tráfico de drogas, e que as supostas redes internacionais têm a sua contrapartida nos consórcios internacionais das empresas farmacêuticas que possibilitam os escândalos olímpicos do doping.

“You don’t need these”, dizia Encarnación num inglês refinado aos agen-tes da polícia da cidade de Nova Iorque; “não faço mal a ninguém”, continuava, entregando-lhes as algemas que, deslizando, lhe tinham caído das mãos pequenas. Há mais de 10 anos que Encarnación vende tamales a um dólar em Harlem, a

104 http://www.portal2014.org.br/en/news/6917/PRESIDENT+OF+THE+IOC+SLUMS+URBANIZATION+BEFORE+2016+RIO+OLYMPICS.html (Consultado em dezembro de 2011).

105 Por exemplo, é impossível encontrar a referência a estes conflitos na página web da OEA, organismo que pretende defender tanto os direitos privados como humanos. Ver: http://www.cidh.oas.org e http://www.usatoday.com/sports/olympics/2011-02-23-rio-de-janeiro-slums-hu-mans-rights-2016-Olympics_N.htm

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135Patricio del Real

trabalhadores, a estudantes, ao autor deste texto, a menos de um quarteirão de dis-tância de um McDonalds, onde se fala espanhol. Encarnación vivia no Estado de Guerrero, no México, “com um telhado de folhas de palma e paredes de adobe”, e, como muitos, veio para os Estados Unidos para melhorar a vida dos que fica-ram no seu país106. Encarnación também melhorou Harlem; a sua pequena banca móvel (um carrinho de supermercado) à boca da estação de metro, junto a um pequeno parque, acabou por desenvolver ao longo de muitos anos uma pequena zona comercial efémera, onde, dependendo do dia e do tempo, se podem encontrar fruta, flores, bijutaria e até mesmo artigos de segunda mão. Esta forma de pressão sobre o uso correcto e oficial da cidade provocou a acção policial directamente sofrida por Encarnación, mais como um aviso destinado a lembrar quem realmente manda do que da efectividade de um poder que tem de negociar com uma econo-mia estratificada e, assim, usar múltiplas estratégias de cooptação. As acções ur-banizadoras da polícia de Nova Iorque não são tão espectaculares como as do Rio – as detenções efectuadas pela polícia da cidade são, em geral, bastante silenciosos. Menos violenta ainda é a política oficial de beneficiação estética da cidade (Arts in the Parks Program), que instala, temporária mas ruidosamente, esculturas nos par-ques da cidade, urbanizando assim uma cidade já urbana e que, em certas ocasiões, se sobre-urbaniza. As ovelhas de bronze do escultor Peter Woytuk, que disputam agora com Encarnación o pequeno parque, não serão, sem dúvida, detidas107.

Em Havana, Rio de Janeiro e Nova Iorque, nestas três cidades tão diferen-tes, como em tantas outras, entretecem-se relações de poder no espaço urbano que desdobram um leque de desejos locais e internacionais, sob uma globalização que mobiliza e põe a produzir todos os estratos sociais e económicos. Pequenas acções, como vender um tamal a um dólar, mobilizam estratégias que revelam mercados paralelos em Nova Iorque (evitemos andar por aí a dizer que o mercado negro só existe no Terceiro Mundo), que, como em Havana ou no Rio, melhoram um certo número de vidas. O desejo de uma vida melhor transformou-se num imaginário colectivo que, nas suas pulsações globais, transcende qualquer geografia. As in-filtrações contra que Dionora batalha na sua açoteia, manifestam um mundo de fendas através do qual a informação se globaliza e se democratiza. Este uso intenso do espaço urbano revela uma cidade conectada, articulada em redes internacio-

106 Sobre a sua história, ver: http://www.nypress.com/article-20390-the-tamalera.html

107 Ver http://www.nycgovparks.org/art Estas esculturas são efémeras, o que significa que não são permanentes; no momento em que escrevo este ensaio, encontram-se no parque duas ove-lhas de bronze, Sheep Pair, do escultor Peter Woytuk. Ver http://www.woytuk.com/archives/gallery/the-new-york-sculptures/

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nais, tanto legais como alheias à realidade oficial, activadas por um sujeito local que navega essas intensidades segundo os seus desejos e necessidades, produzindo múltiplas cidades dentro e fora dela. A cidade é uma zona de contacto intenso e expansivo onde o desejo encontra a sua forma. Surge aqui uma clara contradição, porque a intensificação dos contactos e a expansão das redes manifestam uma he-terogeneidade que fragmenta a totalidade implícita na ideia de cidade. É, portanto, necessário falar, não de cidade, mas de cidades. Esta necessidade de falar no plural, assinalada há já algum tempo por Michel de Certeau, entre outros, e de romper com a ideologia da universalidade na qual se esconde ainda a táctica de reduzir “o outro”, continua a ser um obstáculo para os que tentam articular meta-geografias, como a que a noção de Ibero-América supõe. Esta noção, e a relação histórico--cultural iniciada pela colonização espanhola e portuguesa a que a noção implicita-mente se refere, articula um território possível de diferença e resistência, mas que se dilui com Encarnación, que articula outra comunidade, que não é só aquela que vive nos Estados Unidos, mas a que vive nos fluxos migratórios de uma força de trabalho “liberalizada”. Inserir trabalhadores deslocados no quadro de geografias culturais particularistas parece ser um acto comprometedor, uma vez que os nige-rianos na Península Ibérica, que não participam dos benefícios culturais de uma ideologia ibero-americanista, por exemplo, sofrem do mesmo modo que os equa-torianos que hipoteticamente poderão mobilizar uma suposta cultura comum como se fosse uma carta de chamada. A mobilização do termo e da ideia de uma comuni-dade ibero-americana pode ser um acto de reivindicação, mas a ideia esconde uma consagração implícita de valores e tradições que reclamam unidade de espírito e transformam a história e a cultura em essências, por mais que as fragmentemos em pluralidades. A noção de Ibero-América depende da ideia de território; esta con-vergência entre espírito e território manifesta-se hoje como sintoma do retraimento e alargamento do Estado frente ao mercado internacional. Deve ter-se presente que o imaginário luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, que serviu para exaltar as bondades do colonialismo e da ditadura num momento de debilidade de-mocrática no chamado Terceiro Mundo, serve como advertência perante qualquer meta-geografia que insista em articular oposições e exclusões. Creio ser hoje mais importante falar de uma rede de cidades do que de territórios, uma vez que a cres-cente urbanização agenciada actualmente pela expansão do mercado internacional reclama de nós novos imaginários geográficos. A chamada comunidade transna-cional ibero-americana exerce as suas próprias exclusões, e se há alguma coisa que da globalização devamos recuperar, é precisamente a sua força de inclusão. Assim, devemos menorizar a Ibero-América.

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Hoje, ranchos como os de Caracas108, que antes não figuravam nos ma-pas, são cadastrados e incorporados na cidade; no Rio de Janeiro, pode fazer-se um circuito turístico pelas favelas; as barriadas de Lima integram-se plenamente no mercado imobiliário, de acordo com o ideário do economista peruano Hernando de Soto. As acções de uma “linguagem imperial” de “urbanização” passaram ultima-mente a tomar por objecto lugares anteriormente inexistentes, excluídos ou demo-nizados. A cidade é rearticulada hoje enquanto corpo orgânico, quer dizer, como um total diferenciado, não desprovido de conflitos, mas necessariamente funcional sob a globalização. Esta rearticulação, ainda em processo, manifesta-se a diferentes es-calas. Em Bogotá, Caracas e Rio, os bairros pobres de Santo Domingo, San Agustín e Alemão respectivamente, foram incorporadas no tecido urbano através de elegan-tes funiculares, e, em certos círculos de arquitectura da Ibero-América, encontramos um interesse pontual e renovado pelos processos ditos informais, que dão origem a favelas, ranchos, villas miserias, barbacoas, barriadas, tapancos, chabolas, pue-blos jóvenes, shanty towns, slums, bidonvilles etc. Estabelecem-se assim momentos de contacto, de fascínio e de desejos, entre o marginal e a arquitectura.

A constante luta dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro esforçando--se por melhorarem as suas vidas é uma fonte de admiração e estupefacção para arquitectos que propõem intervenções críticas e para ateliers de escolas de arqui-tectura que tentam introduzir novos temas, com o objectivo de promoveram a re-novação de uma disciplina já comprometida com o poder e de uma profissão cega por uma espectacularização sob a tutela dos starquitects. Das condições extremas – extremadas pela intensidade daqueles que as vivem e pela distância daqueles que não a sofrem –, os arquitectos recuperam um agenciamento inventivo do presente e do agora, executado por sujeitos marginais investidos de uma certa inocência e de uma criatividade intensa. O desdobrar-se de estratégias construtivas ad hoc, deste bricolage material e produtivo, solicita o interesse e a admiração, e mobiliza um estranho humanismo que reclama a nossa compaixão e a nossa inveja, reve-lando a profunda transformação conceptual que os ranchos sofreram. Se antes as villas miserias eram cancros a ser extirpados, são hoje imaginados como padrões urbanos alternativos, construções sociais de onde emergem propostas vernacula-res de um “lugar” possível contraposto ao espaço abstracto da cidade moderna. Hoje os processos de construção das barbacoas revelam novos procedimentos de projecto para uma arquitectura sobrecarregada pela tecnologia e reduzida à sub-

108 Um rancho, na Venezuela, é uma construção improvisada, utilizando materiais usados e pobres, como as que encontramos nos chamados “bairros de lata”. Este tipo de construção proliferou em Caracas, sobretudo a partir da década de 1960 (N.d.T.).

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jectividade do seu autor. Nestes espaços marginais, alguns descobrem um proces-so de construção de comunidade enquanto acto social reivindicativo e processo de projecto de resistência; aos dois níveis, social e pessoal, surge aqui como que uma alternativa aos discursos hegemónicos da globalização. A sedução em causa não é nova, possui uma já longa tradição, que, desde o século XIX, tenta reintegrar uma tradição enraizada nas forças descontextualizantes da modernização: trata-se da luta que encontramos em Dionora, quando, armada com baldes de cimento e pequenas vigas de ferro, madeiras e pás, menoriza a subjectividade de género do “construtor”, que a própria linguagem prefigura como sujeito masculino. Como já observou a crítica Eve Kosofsky Sedgwick, dos Estados Unidos, a recuperação do não-oficial liberta um fluxo de desejos escondidos. As incursões paramilitares nas favelas do Rio revelam os complexos combates de género de um lugar já al-tamente politizado. As intervenções dos arquitectos nos ranchos desarticularão os desejos de masculinidade da arquitectura?

A dualidade persistente entre tradição e modernidade foi forjada na ar-quitectura por um modernismo que desejava ser a linguagem oficial do moderno. Os bairros degradados não podem ser reduzidos a sonhos românticos, a espaços vernaculares de sociabilidade pré-capitalista, numa tentativa visando reproduzir lugares de resistência ao mercado internacional; também não podem ser reduzi-dos a espaços de um capitalismo selvagem dominados e espectacularizados pela violência; não são lugares de resistência ou espaços de violência, mas constituem âmbitos nos quais descobrimos resistências e violências; por outras palavras, são lugares reais e actuais, não imagens para deleite ou horror de um consumidor afectuoso ou hostil, embora nos dois casos igualmente distante. Neste sentido, qualquer tentativa de articular uma relação entre uma urbanidade intensa de emer-gência e uma arquitectura emergente na Ibero-América requer a identificação de um momento de inflexão histórica. A valorização de espaços produzidos à mar-gem, ainda que sempre ligados ao mercado, à cidade, à arquitectura, marca a nossa particularidade histórica. Trata-se de uma postura sintomática de um mundo heterogéneo, e também de uma mudança cultural, em que já não vemos, nas suas vastas extensões urbanas, o “atraso da nação”, como se dizia nos anos 1950 a propósito dos ranchos de Caracas, mas o seu futuro. A capitalização da cidade tornou-se extensiva; mas se se valoriza a experiência vivida pelos residentes dos bairros pobres, se se valorizam os processos de construção, o uso dos materiais que aponta para uma criatividade do sujeito marginal, devemos perguntar tam-bém onde terminam os contornos desta valorização. A coincidência dos valores de mercado e dos valores produzidos nos ranchos está ainda em gestação. As

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narrativas anteriores, que descreviam a injustiça social no interior de um quadro nacional de cidadania, são hoje reformuladas no quadro da economia, duplicando--se a todos os níveis, da gestão dos recursos naturais (ecologia) à correcta admi-nistração do doméstico (oeconomia) e do pessoal.

É importante, por isso, perguntar que valores hoje aqui descobrem os arquitectos. A obra persistente de Jorge Mario Jáuregui – insistindo durante 15 anos sobre as favelas do Rio através do Programa Favela-Bairro – obteve res-sonância e constituiu-se como modelo para a Ibero-América. Trata-se, contudo, de um trabalho que causa também desorientação, uma vez que, sem menosprezo da magnífica e necessária obra realizada, depende da figura do arquitecto como profissional-especialista que reconcilia os desejos dos moradores dos bairros com o poder. A capitalização da arquitectura social, embora não completamente con-solidada, efectuou-se já na Sétima Bienal de Veneza sob o título Less Aestethics, More Ethics – Menos estética, mais ética, e, mais recentemente, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, com a exposição Small Scale, Big Change. O que estou a tentar articular aqui são os limites tanto do fascínio que hoje exerce sobre os arquitectos a necessidade sofrida pelos construtores de tapancos109, como os limites de um olhar que responde a uma pergunta tautológica, uma vez que, nesse fascínio e nesse olhar, os arquitectos ou se descobrem a si próprios, ou se descobrem arquitectos “menores”, e deparamos aqui com um impasse. A pergunta é unidireccional – de quem olha quem – tentando abrir assim um espaço teórico. Porque aquilo que importa, se quisermos continuar a reclamar benefícios das bar-racas, não é vermos como os construtores de pueblos jóvenes110 são arquitectos em ponto pequeno, mas como as suas acções menorizam a arquitectura. É fácil des-cobrir arquitectura nas shanty towns111, mas é mais difícil descobrir shanty towns na arquitectura. Proponho que retomemos o processo de capitalização efectuado em Veneza, no sentido em que o limite da valorização das favelas – quer dizer, o que não se trata de valorizar nas favelas – deve ser precisamente a estética que exibem. Daí que, em Veneza, se tenha insistido mais na ética, a fim de prevenir o colapso da arquitectura sob os seus próprios valores estéticos.

109 O tapanco designa originalmente, no México, um piso que se constrói sob o telhado, por cima do tecto ou falso tecto das outras divisões (N.d.T.).

110 Designação peruana de aglomerações de construções precárias, que surgem na periferia das cidades, e cuja população é composta quase integralmente por negros, índios e ex-camponeses mestizos (N.d.T.).

111 Bairro precário e muitas vezes clandestino, como o “bairro de lata”, o bidonville, os pueblos jóvenes, a favela, a barriada etc. (N.d.T.).

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As recentes e magníficas arquitecturas de Bogotá e de Medellín – como, por exemplo, a Biblioteca España de Giancarlo Mazzanti, na segunda destas ci-dades – abrem um diálogo complexo que mobiliza os contrastes: uma clara esté-tica arquitectónica de elite sobrepõe-se à estética convulsa do slum112 de Medel-lín. Articula-se assim uma arquitectura cívica de elevado valor, tanto financeiro como estético. Em Santiago do Chile, Alejandro Aravena, com o concurso das soluções de construção “elemental”, integra estratégias de crescimento gradual, incorporando assim uma temporalidade presente nos bidonvilles e estratégias de construção elaboradas durante a década de 1950, por exemplo, no Norte de África sob o regime colonial francês. Mas o que importa é perguntar se as estratégias e os discursos fluem nas duas direcções: quer dizer, se podemos descobrir na ar-quitectura de Aravena ou de Mazzanti essa informalidade que hoje exerce tanto fascínio; descobrir os ranchos nas Torres Siamesas do Campus San Joaquín da Pontificia Universidad Católica do Chile; se podemos descobrir as viilas miserias num dos bastiões do poder na Ibero-América; se a estética da emergência apa-rece na arquitectura ibero-americana emergente – uma arquitectura que começa a transbordar do seu limite geográfico, não como curiosidade do momento, mas como arquitectura menor.

Crédito da imagem: Dionora, fotografia de Patricio del Real.

As incursões de arquitectos nas barbacoas menorizaram a arquitectura. A polivalência material, a utilização de diversos materiais tradicionalmente pre-cários, como o tijolo e a madeira; a revalorização dos processos de construção informais ou primitivos, como o adobe – como na Escuela de Artes Visuales de Oaxaca, no México, de Mauricio Rocha –, revelam as atitudes da arquitectura

112 Ver a N.d.T. anterior (N.d.T.).

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emergente. A preferência por estratégias informais é condicionada por uma ten-dência já bem estabelecida para a experimentação material em arquitectura. As-sim, a articulação material não é necessariamente uma menorização da arquitectu-ra. Talvez seja, portanto, mais produtivo tornarmos a insistir no campo da estética, uma vez que a estética de elite resiste a incorporar a emergência. Se examinarmos a produção arquitectónica que se contém na casa unifamiliar da Ibero-América, descobriremos que nada nela emerge. A casa unifamiliar revela-se como o gran-de baluarte de uma classe social tradicionalista hoje protegida por um cuidado e sufocante minimalismo estético. As múltiplas versões daquilo a que podemos chamar “a gaiola” de vidro, cimento ou madeira – muitas vezes desvirtuada por combinações de materiais ou geometrias decorativas postiças – exprimem o tédio, a leviandade intelectual e a ausência de valores comunitários dos seus proprietá-rios. Estes cubículos da versão estética oficial, espaços de abstracção minimalista, são máquinas de fuga potenciadas pelos arquitectos – pois, quem desejará viver num estado de constante fragmentação como o das barriadas? Mas são também espaços de poder, onde se reproduzem os valores de uma sociedade desigual e tradicionalista no pior sentido da palavra, como é o caso com o ainda muito vin-cado paternalismo da região. O elitismo que circula com insistência nas revistas de arquitectura e a compartimentação das construções informais no interior de uma emergência que não vê a sua contribuição estética, não fazem mais do que confirmar que a região continua a ser a mais desigual do mundo. Após as repetidas incursões no mundo da informalidade, a arquitectura na Ibero-América não foi capaz de articular um projecto coerente de arquitectura menor. E se a incursão nas favelas radica somente na capitalização de uma economia de valores imobiliário e humanitário, reduz-se consequentemente a valorização e o efeito saudável que aquelas podem ter sobre uma arquitectura que depende ainda da estética do poder.

Mas a resposta não está nem nos proprietários, defensores dos seus pró-prios interesses, nem nos arquitectos, porque ao fim e ao cabo o simples construir já é suficientemente difícil: o problema radica na ausência da crítica da arquitectu-ra – mas que arquitecto ou proprietário deseja que a sua obra e o seu investimen-to financeiro e estético seja desvirtuado por subtilezas intelectuais que, embora também difíceis de construir, a poucos interessam? Não devemos esquecer que só o meritório merece ser criticado, pois o que interessa é a crítica produtiva, a crítica que trabalha. Como tantas outras casas difundidas por revistas ibero--americanas, a elegante Casa Poli dos arquitectos Pezo von Ellrichshausen (PvE), instaura, numa falésia da costa chilena, a convergência de uma casa de férias com um centro cultural, que, como um cubo caído do céu, tenta fazer esquecer o

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preço ecológico que estas arquitecturas implicam – não só devido aos processos de construção que alteram o ambiente, mas também, e em primeiro lugar, pela contaminação abstracta que a sua capitalização estética exerce sobre o quadro natural. A estética da paisagem, tão elegantemente elaborada pela equipa chileno--argentina de arquitectos através das elegantes vistas sobre o Oceano Pacífico que perfuram o cubo, articula uma manipulação visual que insiste na definição artístico-estética da palavra paisagem – uma definição que esquece por força a sua relação com um terreno que o camponês trabalhou arduamente, sem contempla-ção, mas com a sua própria naturalidade estética. O império do visual desdobra-se na imagem, produzindo uma arquitectura facilmente capturada pelas revistas. A estética do camponês já foi capturada pelo romantismo no século XIX, e hoje, na Ibero-América, resiste a esta nova forma de incorporação.

A partir da convergência entre o visual e o terreno, do confronto entre a paisagem e o camponês, da união entre o olhar do autor e a mão da sua antítese, do contraste máximo entre a obra na falésia dos arquitectos PvE e a açoteia de Diono-ra, podemos elaborar uma tentativa de arquitectura menor. Devemos começar por recusar qualquer tentativa de definir as favelas como arquitectura, uma vez que essa incorporação discursiva esconde a hierarquia operacional de valores estéti-cos ainda bem instalada na arquitectura, e desarticula qualquer tentativa possível de elaborar uma arquitectura menor, uma vez quer, se seguirmos Deleuze, ela só poderá ser a prática menor no interior de uma linguagem maior. Se considerarmos a produção construtiva por volume da cidade ibero-americana, veremos que são os arquitectos que produzem a menor quantidade de estruturas e de espaço cons-truído da cidade, enquanto são os construtores dos bairros que produzem a maior parte. Assim, a operacionalidade da arquitectura como linguagem a menorizar radica principalmente em acções críticas sobre os seus valores estéticos – quer di-zer, na sua relação com o poder, ou, como diriam os modernistas brasileiros, com a bão tradição, com essa tradição que delineia os contornos da boa sociedade. Se os arquitectos podem aprender alguma coisa com os construtores de favelas é o modo como estas permanecem frágeis, sem que isso seja fraqueza: a fragilidade construtiva que faz da favela uma obra em surgimento constante é qualquer coisa que os arquitectos começam já a incorporar, ainda que de modo insuficiente. Es-tando em construção permanente, as barriadas exibem as suas contradições à flor da pele e revelam uma construção estética colectiva, uma montagem expressiva sem autor a que a arquitectura resiste. O caminho a percorrer é difícil, uma vez que a ideologia do estilo unitário e representativo da mão do “arquitecto” como criador singular e autoritário está tão enraizada que um artefacto tão complexo

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como um edifício, um artefacto que requer uma equipa de pessoas e profissionais, precisa ainda de ser identificado e reduzido a um único arquitecto. Objectar-se-á que, sem esta força homogeneizadora e controladora o resultado seria uma vaga desordenada de kitsch numa sinfonia sem tom nem harmonia. Talvez, mas temos de nos dar conta de que, por detrás de tais argumentos contra a dissonância e a he-terogeneidade, se esconde a produção de simples objectos de consumo imediato, de uma arquitectura capitalizada pelo mercado e não por arquitectos.

Patricio del Real realizou o doutoramento em História da Arquitectura e Teoria na Universidade de Columbia em Nova Iorque e o mestrado em Arquitectura pela Universidade de Harvard. É coeditor da antologia Latin American Modern Architectures: Ambiguous Terri-tories, publicado pela Routledge, 2012, e actualmente trabalha no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.

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LUGARCOMUMNº41,pp.145-

Arquitetura,FeitiçoeTerritório.Matéria e impulso de libertação na obrabaianadeLinaBoBardi

Godofredo Pereira

1 – Lina Bo Bardi

A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular (1959) representa, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois elementos centrais: por um lado, o interesse por arte popular que traz já desde Itália, pelo outro, uma preo-cupação com a realidade política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O programa original propunha-se articular a ideia de “Civilização Brasileira” através de um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia” e “Europa e Península Ibérica”. Seria uma espécie de viagem à história do país através da sua arte quoti-diana. Para Lina, a palavra “civilização” indicava “o aspecto prático da cultura, a vida do homem em todos os instantes”, e a exposição devia tornar visível a “procu-ra desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser ‘demitidos’, que reclamam o seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de beleza conseguida com o rigor que somente a presen-ça constante de uma realidade pode dar. Matéria prima: o lixo”.113

A partir de Lina Bo Bardi, este texto aborda um problema central para a arquitectura, nomeadamente, o do seu estatuto enquanto objecto, assim como as relações que estabelece com os objectos pelos quais é ocupada e habitada. Não é, contudo, a natureza filosófica deste problema que aqui interessa, mas sim a liga-ção entre o objecto e um território que lhe dá sentido. Identificando uma certa con-tinuidade entre objectos e territórios, explora-se aqui o modo como o debate em torno à natureza dos objectos não se resume a estes, mas reflecte uma constante disputa em torno a diferentes concepções de território. Desde território entendido como espaço sob a jurisdição do estado nação, parte de uma organização social produtiva baseada na privilégio da propriedade privada sobre todos os demais di-reitos, até ao território entendido na sua dimensão existencial, agenciamento de elementos heterogéneos que dão consistência aos modos de vida. Em ambos os casos, quer por revelarem as condições de produção que os constituíram, quer por

113 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oficial, 2008, 158.

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revelarem os afectos, hábitos ou práticas que os materializaram, os objectos fun-cionam como um arquivo de conflitos e debates territoriais. Ora, precisamente esta capacidade de ver nos objectos as lutas e circunstâncias daqueles que os produzi-ram, marca toda a obra de Lina, desde o seu interesse por máscaras, talismãs e ex--votos até ao desenho da “Cachoeira do Pai Xangô” para o centro da Bahia (1986), às exposições sobre a cultura do Nordeste. Estes objectos “carregados” são centrais na arquitectura de Lina, pois participam de um modo de projectar que privilegia a concepção de territórios a que chamarei de existenciais, por tratarem, como indica Olívia de Oliveira, matérias subtis, ao mesmo tempo naturais e míticas.114

Este mesmo termo, “territórios existenciais”, é também usado pelo filóso-fo/psicanalista Félix Guattari, em Lês Trois Ecologies, para se referir aos espaços afectivos criados por contextos e experiências de pertença. Mas a sua diversidade encontra-se em perigo de desaparecimento face à homogeneização das subjec-tividades promovida pelo capitalismo neoliberal. Pode dizer-se que da mesma forma que os países “desenvolvidos” são os principais poluidores ambientais, são também os principais poluidores existenciais, o que se manifesta na crescente “ossificação” de comportamentos, imaginários e formas de “territorialização” que os caracteriza.115 Olhando para Lina através de Guattari, podemos sugerir que o recurso a “objectos carregados” se insere na tentativa de capturar a expressão de diferentes modos de viver e habitar o mundo.

Claro que o seu interesse por objectos advém também de privilegiar a questão do habitar, afinal a grande preocupação da arquitectura moderna. Desde cedo preocupada com os problemas do quotidiano – vejam-se os textos escritos ainda em Itália, sobre a Disposição dos Ambientes Internos116 e sobre O aquá-rio na Casa117 – Lina não reduz o habitar apenas a um problema funcional, mas entende-o enquanto prática existencial. Podemos ver, por exemplo, como as casas Valéria Cirell (1958) e Chame-Chame (1958), valorizam a expressão dos mate-riais acima da pureza da forma e da organização espacial. Mas não se trata aqui de qualquer romantismo da expressão ou da natureza, mas de uma busca da simplici-dade que se conquista na relação da obra com as práticas de vida e os seus rituais. De qualquer forma, se numa fase inicial este discurso emerge ainda preso aos estudos decorativos da casa, ganha toda outra radicalidade nos seus escritos sobre

114 OLIVEIRA, Olivia de. Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barcelona: Gustavo Gili, 2006.

115 Cf. GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.

116 BARDI, Lina Bo. Sistemazione degli interni. Domus, 198, 1944.

117 BARDI, Lina Bo. L’Acquario In Casa. Lo Stile, 10, 1941, p. 24-25.

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o Nordeste entre 1959-63. É aí, em proximidade com uma “estética da fome” de Glauber Rocha, que Lina aborda as profundas relações entre emancipação social e produção artística popular: “Em Pernambuco, no Triângulo Mineiro, no Ceará, no polígono da Seca, se encontrava um fermento, uma violência, uma coisa cultu-ral no sentido histórico verdadeiro de um País, que era o conhecer da sua própria personalidade”.118 Recorde-se que nos anos 1960 no interior nordestino, a maioria da população vivia abaixo do limiar da pobreza, devido não só à escassez de re-cursos ditada por um clima de semi-aridez, mas principalmente pela exploração social operacionalizada pelas oligarquias agrárias. É esta violência e miséria que anima o ressurgimento em 55 das Ligas Camponesas, associações de camponeses em luta por uma reforma agrária, ou no cinema o surgimento de um novo movi-mento, a “estética da fome” de Glauber Rocha, a partir da qual se reposiciona a importância das práticas quotidianas dessa população esquecida. E é devido a este contacto com o sertão e as suas transformações político-culturais, que para Lina Bo Bardi a arte popular deixa de ser simplesmente algo que confere profundidade e realidade à arquitectura, e se refere cada vez mais concretamente às condições brutas da existência. E progressivamente também a arquitectura de Lina começa a participar activamente na emancipação desse território quotidiano e não-erudito, como forma de resistência à hegemonia cultural colonial.

2 – Feiticismo e Colonialismo

De acordo com o antropólogo William Pietz na sua série de ensaios sobre The Problem of the Fetish, o termo “fetiche” tem origem nos territórios inter--culturais da África Ocidental nos séculos XXVI e XXVII como resultado do encontro entre mundos culturais radicalmente heterogéneos. Segundo Pietz, “esta situação nova começou com a formação de espaços habitados interculturais ao longo da costa da África Ocidental (especialmente ao longo da Costa da Mina) cuja função era traduzir e valorizar objectos entre sistemas sociais radicalmen-te diferentes (...) estes espaços, que existiram durante vários séculos, existiam num triângulo de sistemas sociais composto por feudalismo Cristão, linhagens Africanas e capitalismo mercante”119. Emergindo da descrição das falsas crenças do outro, o termo migra posteriormente para a Europa com os escritos de Char-les de Brosses, lentamente adquirindo o seu uso mais familiar com as obras de Feuer bach, Marx e Freud. Mas para Pietz a relevância do termo fetiche ou mais

118 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, 153.

119 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. I. Res, n. 9 (1985): 6.

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adequadamente feitiço não reside na sua capacidade de descrever mecanismos culturais reais (a natureza de uma específica crença), mas sim na capacidade de evidenciar a natureza de certos encontros, na medida em que refere a uma histó-ria de conflitos em torno à correcta valorização (afectiva, cultural, comercial) de determinados objectos. Referindo-se ao entendimento dos europeus, Pietz dirá que “no discurso sobre feitiços, esta impressão da propensão do primitivo para personificar objectos técnicos – ou para os considerar veículos de causalidade sobrenatural – é conjugada com a percepção mercantil que os não-Europeus atri-buem valores falsos aos objectos materiais”120. Uma posição semelhante é desen-volvida por Bruno Latour em The Cult of the Factish Gods, argumentando que a declaração de feiticismo surge sempre enquanto acusação sobre as falsas crenças do outro. Acresce que tal acusação sobre a crença dos outros servirá para funda-mentar uma acção “pedagógica” de correcta valorização, tornando evidente como os princípios argumentativos que subentendem designações de primitivismo ou superstição, substanciam também um processo de apropriação de um território material. Surgindo sempre em relação a empreendimentos coloniais, a história do feitiço é por isso a história da constituição de culturas de fronteira, por relação com o desenvolvimento de sistemas mercantes, ou do nascimento do projecto capitalista.

Assim, reconhecer o “feitiço” como um local de conflito, implica que se entenda o objecto como uma questão material, que atrai na mesma medida em que divide. E é precisamente neste ponto onde o “feitiço” se torna político, já que o seu real poder deriva do fato de revelar uma disputa e por conseguinte uma diferença. Além disso, o “feitiço” – tal como os “objectos carregados” de Lina Bo Bardi – revelando diferenças, torna-se por isso mesmo um objecto de fronteira a partir do qual, ou sobre o qual, essas diferenças serão supostamente resolvidas (gestos iconoclastas, vandalismo etc.)121

3 – Territórios de Fronteira

Digamos que Lina desenha os seus edifícios de uma forma feiticista, de-vido não só ao seu interesse pelas práticas populares, mas também devido ao estatuto instável dos vários objectos com que ocupava os seus edifícios, assim como pela relação pessoal que estabelecia com eles. Em Lina vemos o redescobrir

120 PIETZ, William. The Problem of the Fetish. II, The Origin of the Fetish. Res, n. 13 (1987): 42.

121 Cf. TAUSSIG, Michael. Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford, Calif: Stanford University Press, 1999.

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de todos estes objectos “outros”, carregados de vidas e de costumes, de histórias. Neste sentido um dos debates que para a arquitecta se tornou central foi precisa-mente a questão do folclore, contra o qual lutava pela ideia de arte popular. Para Lina a arte popular e artesanato designam formas de produção directamente liga-das às condições de produção (económicas, geográficas, climáticas e culturais) e não poderiam ser entendidas como formas inferiores, isso sim fazia o folclore designação reservada às “artes menores”. Além disso, se através do processo pe-dagógico colonial/capitalista os objectos são por um lado forçados a categorias discretas do saber, e por outro transformados em mercadoria de formato turís-tico – em ambos os casos desconectados das forças territoriais que os modelam –, uma outra pedagogia era necessária, mais próxima de Gilberto Freyre, para libertar as forças que “carregam” esses mesmos objectos e mobilizá-las enquanto forças políticas. Assim, como afirmava Lina “O balanço da civilização brasileira ‘popular’ é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do Folclore, sempre paternalistamente amparado pela cultura elevada, é o balanço ‘visto do outro lado’, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é o habitante das ‘Vilas’, é o negro e o índio, é uma massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir.”122 Claramente aqui se vê o quanto foi importante a influência de António Gramsci e a sua defesa da importância de uma força colectiva nacional-popular como prática contra-hegemónica. De facto, para Lina a aprendizagem com a arte popular seria o elemento chave que deveria informar o processo de industrialização e modernização brasileiro, ou seja, uma aprendizagem desprovida de romantismo mas entendida como oportunidade para a constituição de um novo território, construído a partir da cultura existente. As-sim, longe de se reduzir a um discurso da pequena escala, Lina aproveitava as energias de um Brasil em construção que na altura re-imaginava os limites do possível. Neste sentido a afirmação de Lina que Brasília era “um belo começo para uma nação é paradigmática”.

Os seus projectos para a Bahia são testemunho de como para Lina foi importante a influência do Candomblé, das tradições afro-americanas, e em parti-cular desses objectos que os portugueses, através do comércio de escravos, trou-xeram de um continente ao outro. Não por acaso, a Costa da Mina onde o antropó-logo William Pietz localiza o início da história desses objectos-feitiço, é contígua à costa dos Escravos, onde se encontra hoje o Benin, e de onde veio a maioria da população Afro-descendente para a Bahia. Procurando valorizar a história local,

122 Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oficial, 2008, 210.

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um dos mais notórios projectos que Lina desenha na Bahia é a recuperação de um antigo edifício colonial para ser transformado na Casa do Benin, onde estaria em exposição o arquivo do antropólogo Pierre Verger sobre as relações culturais entre Brasil e África. Deste modo, promover uma concepção existencial do território tal como o faz Lina, implica portanto, a possibilidade de praticar a coexistência de “mundivisões” heterogêneas. A luta pelo reconhecimento de alternativas às práti-cas epistemológicas da modernidade, contra o “eliminativismo” da tecnociência sobre outras formas de conhecimento123, é central para poder defender o direito a diferentes visões do mundo e outras formas de produção.124 Convém notar, apesar de tudo, que não se trata aqui da defesa das culturas indígenas ou tradicionais como que constituíssem uma alternativa, mas reconhecer com Arturo Escobar, que as soluções devem ser buscadas a partir do meio: “a noção de colonialidade assinala dois processos paralelos: a supressão sistemática pela modernidade do-minante de culturas e conhecimentos subordinados (o encobrimento do outro); e a necessária emergência, a partir desse próprio encontro, de conhecimentos par-ticulares formatados por essa experiência e que têm pelo menos o potencial de se tornarem lugares para a articulação de projectos alternativos”125.

4 – Devir-território

O fazer do território não pode ser objecto de conhecimento especializado, pois não há como especializar o direito à expressão e à existência. A territoriali-zação é um processo colectivo que agencia pessoas, mas também espaços, arte-factos, instituições, materiais, narrativas, modos de estar etc. E por isso mesmo a luta por diferentes concepções de território é, por isso, também a luta pelo direito a existir e por diferentes visões do mundo. Recordando o projecto para a recupera-ção do centro histórico da Bahia (1986), em que o objecto de recuperação não fo-ram as arquitecturas consideradas historicamente relevantes mas sim a “alma” da cidade, vemos como esta concepção territorializante é central para Lina. Quando Lina recupera não só as praças, ruas e miradouros, mas também a economia infor-mal, que tem lugar nas ladeiras, nas associações recreativas e nas lojas ilegais, ou

123 No que respeita à coexistência entre as práticas científicas e outras formas de produção de conhecimento, convém referir o importante trabalho que Isabelle Stengers tem vindo a desen-volver. Isabelle Stengers, Cosmopolitics II, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2011.

124 Cf. SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing Social Emancipation. London: Verso, 2006.

125 ESCOBAR, Arturo. Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. London: Duke University Press, 2008, p. 12.

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quando desenha bancos de rua, uma fonte e até um comboio de recreio, percebe--se que a Bahia que tinha em mente não era a de um museu histórico, mas a da sua vida local. Tentando dinamizar as formas de comércio e expressão popular, torna-se evidente que orientando a prática da arquitectura para uma atenção aos modos de vida dos seus habitantes, se abre a possibilidade para que outras subjec-tividades e formas de praticar o espaço possam também ter lugar. Se a arquitectura e as práticas espaciais intervêm num território que é existencial, então este tem de necessariamente ser também entendido enquanto colectivo.

Devir-menor não é que não um processo de territorialização que opera a partir das margens dos discursos dominantes, que se alimenta das condições geradas, forçosamente, pelo habitar de zonas de fronteira. Daí a sua proximidade ao feitiço, a esses objetos naturalmente fronteiriços, em si mesmos arquivos de constantes encontros. Mas é também o assinalar de uma possibilidade, constitu-tiva de imaginar vidas possíveis. E aqui a obra de Lina é exemplo maior de uma imaginação constante e lutadora. Exemplo de que é possível fazer arquitetura com as pessoas, com os seus mitos, as suas práticas e as suas lutas. Sempre aten-ta ao quotidiano na sua dimensão mais alargada, Lina defendia uma arquitetura enquanto processo, não abdicando das conquistas da modernidade, mas retirando daí ilações que lhe são menos reconhecidas: que viver e habitar são demasia-damente importantes para serem de exclusiva responsabilidade dos arquitetos, promovendo o realizar da arquitetura, enquanto construção coletiva do território, como uma luta por direitos e por justiça.

Referências

GUATTARI, Félix. Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.ESCOBAR, Arturo. Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. Lon-don: Duke University Press, 2008.LATOUR, Bruno. On the Modern Cult of the Factish Gods. Durham: Duke University Press, 2010.OLIVEIRA, Olivia de. Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barce-lona: Gustavo Gili, 2006.PIETZ, William. The Problem of Fetish I. RES – Anthropology and Esthetics, 1985, n. 9: 5-17. ___. The Problem of Fetish II. The Origin of Fetish. RES – Anthropology and Esthe-tics, 1987, n. 13: 23-45.

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___. The Problem of Fetish IIIa. Bosman’s Guinea and the Enlightenment Theory of Fetishism. RES – Anthropology and Esthetics, 1988, n. 16: 105-123. SANTOS, Boaventura Sousa. Another Production Is Possible. Reinventing Social Emancipation. London: Verso, 2006.STENGERS, Isabelle. Cosmopolitics II. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011.TAUSSIG, Michael. Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Ca-lifornia: Stanford University Press, 1999.

Godofredo Pereira é arquiteto formado no Porto. Realizou o mestrado na Bartlett School of Architecture e é actualmente doutorando no Centre for Research Architecture na Gol-dsmiths, University of London. A sua investigação “Feiticismo Territorial” debruça-se sobre o papel da tecnociência na reconfiguração de conflitos políticos e epistemológicos em torno ao território. É professor de História e Teoria no MArch Urban Design na Bartlett School of Archi-tecture. É editor do livro Objetos Selvagens/Savage Objects (INCM, maio 2012) e organizador de vários seminários entre os quais se destacam Objectos, Práticas e Territórios (Capital Euro-peia da Cultura, Guimarãoes 2012) e Devil’s Advocate (Forensic Architecture, Londres, 2013).

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LUGARCOMUMNº41,pp.153-

Abertura Trilogia da Terra

Paulo Tavares

Entre 1979 até o ano de sua morte em 1992, Félix Guattari viajou sete vezes ao Brasil. Também esteve na Palestina, Polônia, México, Japão. “Talvez seja isso que estou buscando com tanta viagem nos últimos tempos” – disse durante uma de suas visitas ao país –, “será que existe um povo desterritorializado que atravessa esses sistemas de re-territorialização capitalística?”126 O Brasil passava por uma transformação radical nos anos 1980. Deixava para trás 20 anos de ditadura militar em direção à abertura política. 1979 foi o ano da anistia e o início do retorno ao multipartidarismo. Em 1982 ocorrem as primeiras eleições diretas para governos regionais. Dois anos depois uma ampla campanha pelas eleições diretas à presidên-cia da república mobilizaria o país inteiro. Mas apenas em 1989, meses depois da promulgação da nova Constituição de 1988, é que a população iria às urnas para eleger o presidente pela primeira vez desde o Golpe Militar de 31 de março de 1964.

Além das transformações macro-políticas no aparelho estatal que sus-tentava o regime, o Brasil dos anos 1980 foi marcado por um intenso processo de formação de agenciamentos micro-políticos e abertura de novos espaços de contestação nos mais diversos setores da sociedade. Uma vez que os canais tra-dicionais da esquerda como sindicatos, diretórios estudantis, ligas camponesas, associações profissionais etc. haviam sido suprimidos ou esvaziados pela brutal repressão imposta pelo governo militar, durante a década de 1970 houve um re-fluxo da dissidência em direção à espaços menos formais de representação e or-ganização popular. Grupos “minoritários” e diferentes movimentos sociais, com distintas agendas e formas de atuação, começam paulatinamente aparecer na cena pública, engendrando a formação de novos sujeitos políticos e a articulação de subjetividades resistentes à lógica autoritária que era cultivada pelo regime. Na década de 1980, estes espaços e sujeitos e subjetividades vieram à tona como uma potência transformadora que então parecia incontornável. Foi justamente esta di-mensão menor das convulsões na realidade política do Brasil, ou melhor – e para ser mais preciso –, foi esta concatenação do processo de re-estruturação político-

126 GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. São Paulo: Editora Vozes, p. 375

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-jurídica do aparelho de Estado e a intensificação de processos micro-políticos de re-democratização que mobilizou as paixões e viagens de Guattari pelo país du-rante este período. “O que me parece importante no Brasil” – ele declarou durante um debate promovido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 1982 na cidade de São Paulo – “é que não vai ser depois de um grande movimento de emancipação das minorias, das sensibilidades, que vai se colocar o problema de uma organiza-ção que possa fazer face às questões políticas e sociais em grande escala, pois isto já está sendo colocado ao mesmo tempo”127.

Estes e outros registros da viagem de 1982 foram transcritos e compila-dos por Suely Rolnik no livro Micropolítica: cartografias do desejo, publicado no Brasil quatro anos mais tarde128. Entre agosto e setembro daquele ano, acom-panhado por Rolnik, Guattari deambulou por cinco regiões do país, seguindo um intenso calendário de encontros, conferências, entrevistas, mesas redondas e con-versas formais e informais com diversos grupos, movimentos, organizações e in-divíduos que, conforme escreve Rolnik, “institucionalizados ou não, constituíam naquele momento subjetividades dissidentes”129.

Este talvez seja o único registro das sete viagens que Félix Guattari fez ao Brasil durante os últimos 14 anos de sua vida que Suely Rolnik menciona na introdução de Micropolíticas. Observado com olhos contemporâneos, o livro converteu-se em um documento histórico, não apenas porque as falas de Guattari, capturadas no fluxo das conversas e encontros, prestam testemunho da sua verve criativa e engajamento político, mas também porque percorrendo a cartografia de Micropolíticas é possível acessar o exato momento de abertura para um mo-vimento de transformação histórica que parecia se anunciar. Isto é, para além do processo formal de ‘Abertura’, percebe-se que, naquele momento, e a despeito do ‘fim da esquerda’ e do ‘fim da história’ que alguns projetavam com a derrocada final do bloco comunista e consolidação da hegemonia geopolítica do Império Norte Americano, era possível imaginar outros espaços que não se alinhavam com a ordem neoliberal que estava sendo implementada. O Brasil dos anos 1980 parecia incubar aquilo que Félix Guattari chamava de “Revolução Molecular”130.

Como se sabe, este momento de abertura, que marcou não apenas o Brasil mas grande parte dos países da América Latina que foram comandados por regi-

127 Micropolíticas, p. 195.

128 Micropolíticas foi recentemente traduzido para o ingles sob o título de Molecular Revolution in Brasil, MIT 2008.

129 Micropolíticas, pg. 16

130 GUATTARI, Félix. La révolution moléculaire. Fontenay-sous-Bois: Recherches, 1977.

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mes autoritários durante a Guerra Fria, logo se fechou no longo pesadelo neolibe-ral. Apenas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 é que houve uma reação à este “fechamento”, quando vários países do continente passaram novamente por grandes convulsões políticas que redirecionaram as regras do jogo à esquerda. É por isso que, no prefácio à nova edição Brasileira publicada em 2007, Suely Rolnik escreve que Micropolíticas “ganhou uma dimensão de registros de pistas para uma genealogia do presente”, e não apenas do momento presente em con-texto Latino Americano, mas em escala mundo, uma vez que hoje, por toda parte do globo, o projeto neoliberal dá sinais de completo esgotamento, principalmente nos centros do capital financeiro do Ocidente, no lugar mesmo onde foi elaborado.

Passados cerca de 30 anos desde sua publicação original e, fundamental-mente, após o Brasil ter vivenciado as “jornadas de junho” de 2013, a situação mu-dou de maneira radical. No atual contexto, a releitura deste registro histórico talvez seja ainda mais relevante, pois carrega consigo uma memória viva que pode lançar novas bases para se pensar o presente político. Sem nostalgia, rumo às novas “aber-turas” escancaradas pela multidão que veio para ocupar as ruas de nossas cidades.

O projeto Abertura (trilogia da terra) – um vídeo instalação que parte da leitura dos registros da viagem de Guattari em 1982 para pensar os desdobramen-tos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no Brasil. Observados desde o ponto de vista espacial, os agenciamentos micro-políticos articulados du-rante os anos 1980 são mapeados em três escalas – urbana, agrária e territorial –, cada uma delas marcada pelo surgimento de formas de “re-des-territorialização dissidentes”. Assim como Guattari o fizera, durante o mês de abril de 2012, junto com o arquiteto André Dalbó, membro do coletivo de arquitetos Grupo Risco131, e o advogado Anderson Santos, integrante da Rede Nacional de Advogados Po-pulares, viajei de sul à norte do Brasil para realizar uma série de conversas com personagens que foram ativos durante o processo de abertura política. Tomando como inspiração o registro-colagem elaborado por Suely Rolnik em Micropolíti-cas, trechos destas conversas seguem transcritas abaixo, organizadas de acordo com o diagrama escalar que formata o projeto.

Em escala urbana, conversamos com Ermínia Maricato, uma das prin-cipais protagonistas do movimento de “reforma urbana” durante o processo de re-democratização. Em escala agrária, a conversa foi com Darci Frigo, advogado que desde os anos 1980 trabalha com a defesa dos direitos humanos de campo-neses envolvidos em conflitos pela terra. Por fim, fizemos uma conversa com o jurista Carlos Marés, uma autoridade em direitos territoriais indígenas e ator

131 http://www.gruporisco.org

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central no processo de elaboração da nova constituição Brasileira de 1988 que, pela primeira vez, reconhece por lei que os povos indígenas gozam de direitos de autonomia sobre seus territórios originários. Observadas em conjunto, esta tri-logia revela que no centro da ‘revolução molecular’ do Brasil encontrava-se a abertura de um antigo nó colonial – a terra – nó górdio que até hoje, a despeito das promessas lançadas nos anos 1980, continua sendo a base de sustentação de um sistema excludente e desigual.

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TERRA: ESCALA: URBANA

Ermínia Maricato: No início dos anos 1960, nós tivemos no Brasil uma mobi-lização da sociedade em torno de propostas de reforma. A principal delas era a reforma agrária. Por que é que eu digo que é a principal? Era a principal não só do ponto de vista do travamento do desenvolvimento econômico e social do país, mas também porque era a que tinha maior apoio da população, de organizações sindicais e sociais. E nós tivemos o início da proposta de reforma urbana, que foi articulada em 1963 num encontro de arquitetos na cidade de Petrópolis, no hotel Quitandinha.

A reforma urbana significava o quê, em 1964?Era principalmente a questão da distribuição de terra urbana. É preciso

entender a conjuntura: nós estávamos numa época de avanços, de libertação na América Latina, não é? E muitos arquitetos estavam voltando de Cuba, de onde trouxeram essa ideia de que é preciso expropriar a terra, libertar a terra de um jogo de privatização. A terra sempre foi no Brasil, e na América Latina como um todo, mas no Brasil parece que é uma característica muito forte, o nó que permeia as re-lações de poder político, econômico e social. Todos esses movimentos que preten-diam reformas profundas no país deram num beco sem saída na Revolução de 64.

Devido à urbanização e industrialização acelerada da década anterior, no início dos anos 1960 o Brasil passava por um forte processo migratório cam-po-cidade, levando ao inchamento das periferias, extrema carência habitacional e falta de infra-estruturas adequadas para acomodar a população migrante. Os arquitetos então começaram a debater e elaborar temas e propostas que visavam orientar as políticas públicas para o que ficou conhecido como “Reforma Urba-na”, isto é, uma série de diretrizes que propunham contornar a precária situação de moradia da classe trabalhadora nos centros urbanos, alterando o balanço da concentração de terra nas cidades. O ponto alto desta articulação foi marcado pelo Seminário de Habitação e Reforma Urbana – SHRU, organizado pelo Insti-tutos dos Arquitetos do Brasil (IAB) em julho de 1963, no Hotel Quitandinha no Rio de Janeiro, e dias depois na sede do IAB de São Paulo.

A proposta de Reforma Urbana fazia parte de amplo espectro de trans-formações estruturais da sociedade brasileira que ganhavam força com o go-verno trabalhista de João Goulart. Conhecidas como “reformas de base”, estas medidas reuniam um conjunto de iniciativas no setor financeiro, fiscal, adminis-

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trativo, urbano e, principalmente, a questão da reforma agrária. Em larga me-dida, a deposição de Goulart pelo Golpe Militar de 1964 foi uma resposta para bloquear este processo de mudança da estrutura política e territorial que estava em curso no Brasil.

EM: Depois da cassação e da prisão dos arquitetos, passa um certo tempo e surge o que eu chamo de uma nova escola de urbanismo no Brasil. É uma ‘corrente’ que vai-se associar aos movimentos sociais, que vai desvendar a cidade real, que vai tirar esse véu, essa invisibilidade e mostrar o tamanho daquela cidade ilegal. Essa escola de urbanismo recupera muito da reforma pré-64. Eu particularmente entrei nesse movimento de retomar a proposta de reforma urbana a partir de um convite da Comissão Pastoral da Terra132, em 1979, que dizia “olhe, nós estamos sendo procurados por movimentos urbanos e nós não temos essa capacidade de lidar com o rural e o urbano, nós achamos que é necessário uma esfera dos movi-mentos urbanos”.

Com o violento processo de urbanização dos anos 1960 e 1970 a cidade se torna um grande palco político de reivindicaçãoEM: A cidade começa a apresentar movimentos novos no Brasil. Na luta contra a ditadura nós tivemos algumas vitórias, nós tivemos o crescimento dos movi-mentos populares, o crescimento dos movimentos sindicais, a criação da CUT133, a saída dos partidos que estavam clandestinos para a legalidade, a criação do PT. Havia a pastoral operária atuando nas periferias, movimentos de bairro etc. Nós tí-nhamos também os movimentos sociais avançando muito. E nós tivemos a eleição de gestões municipais de um novo tipo, que começa a implementar, com a ajuda dessa nova escola de urbanismo, políticas que incorporavam a participação social e incorporavam o que chamávamos de ‘inversão das prioridades’, isto é, tentar resolver esta cidade invisível, dar cidadania para quem não tem. As prefeituras

132 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu durante o Encontro Pastoral da Amazônia, organizado pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) na cidade de Goiânia em junho de 1975. A CPT teve um papel fundamental na luta pela distribuição da terra e melhoria das condições de vida dos camponeses durante a ditadura militar, e tornou-se um dos principais espaços articuladores da abertura política.

133 A Central Única dos Trabalhadores (CUT), entidade que reúne os sindicatos e associações trabalhistas no Brasil, foi fundada em 1983 durante o 1º CONCLAT – Congresso Nacional da Classe Trabalhadora, que foi realizado na cidade de São Bernardo do Campo, região industrial da cidade de São Paulo, palco central da luta operária na década de 1970/1980.

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agiam de uma forma nova, na contramão do que vinha da Europa, da Barcelona Olímpica, dessa coisa da arquitetura espetacular, do urbanismo do espetáculo... do fim da esquerda, não é?

Quando eu assumi a Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (em São Paulo), a secretaria era virada para a cidade legal, ela tinha um bracinho lá que tratava das emergências, mas as emergências estavam cada vez mais fre-quentes, não dava para enxergar mais aquilo como emergência. Nós fizemos uma reversão dentro da secretaria. O que era um apêndice voltado para as pessoas que ficavam sem casa com as enchentes, com os incêndios nas favelas, com as áreas de risco que desmoronavam, com aquele crescimento impressionante de favelas, isso se tornou o eixo da ação. Era necessário que a gente tratasse a exceção como regra. Essa era a nossa dificuldade, aliás, essa é a dificuldade até hoje.

Eu queria conversar sobre essa ideia de participação. Durante a Abertura, há uma demanda por novos espaços organizacionais, uma espécie de micropolí-tica dos novos movimentos sindicais, as pastorais, os movimentos de bairro, e de luta por terra no campo e na cidade. Novos fóruns estão surgindo, novas maneiras de participação popular, novos espaços políticos. E de repente a participação entra no centro do discurso da virada neoliberal.

O consenso de Washington é fechado em 1989. Aí é formalizada a receita neoliberal. Durante os anos 1980, não vamos nos esquecer, há uma dificuldade em ter recursos para investir, o sistema de financiamento da habitação, o sistema de financiamento do saneamento, toda a política que era ligada aos transportes urbanos (o governo federal durante a ditadura teve uma empresa nacional voltada à política de transporte urbana, coisa que nós não temos novamente até hoje) etc. – tudo isso recua. Inicia-se uma marola que depois se transformou num tsunami que nos afogou literalmente. E é interessante que a esquerda foi crescendo no campo institucional e caindo no campo da mobilização social. Eu acho que o fim do ciclo implica nisso.

No meu artigo eu escrevi ‘nunca fomos tão participativos’134. Lembro em uma mesa em Vancouver, no Canadá, durante um fórum urbano mundial, a diretora do Banco Mundial fez um discurso emocionado a favor da participação da ação social na esfera pública. Então há um período de ascensão da esquerda, porque o capitalismo tem uma lógica que é de uma inteligência impressionante,

134 Ermínia Maricato, Nunca fomos tão participativos, disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774

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ele abre espaço para a esquerda no campo institucional, muita liderança sindical e popular entra nesse espaço, se elege ou se emprega nas administrações públicas, nos gabinetes de políticos e realmente existe um declínio da capacidade ofensiva e do poder de ação que os movimentos sociais tinham. E foi com a chegada do PT no poder federal que esse ciclo se completa.

A institucionalização se completa, e a situação realmente ganha uma qua-lidade nova. Mas as políticas não estão melhorando em vários aspectos. Algumas estão, sem dúvida. Eu acho que tirar 13 milhões de pessoas do nível de indigência não é pouca coisa. Mas na área que eu conheço bem, a política urbana, nós es-tamos caminhando para uma regressão fortíssima. O centro dessa regressão está relacionado com a terra. Desde 1963, quando surgiu a reforma urbana, nós não mudamos o chão. Nós tivemos muito avanço institucional, nós ganhamos uma constituição que fala das cidades, nós ganhamos o Estatuto da Cidade 13 anos depois, que era o que os juristas queriam para regular a constituição e para se po-der aplicar a função social da propriedade... mas que nós não estamos aplicando. Nós não mudamos o chão, a base, a raiz do que é a política urbana, que é uso e ocupação do solo.

Você sempre volta para a questão da terra...

Sempre. É a base… mas com a globalização este nó que era central no perí-odo colonial, imperial, republicano, ganha uma nova qualidade. Hoje você vê países comprando terras na África de maneira brutal... o fato é que a terra adquire novos aspectos, ela continua sendo um nó, mas é um nó diferente, no campo e na cidade.

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161Paulo Tavares

TERRA : ESCALA : AGRÁRIA

Darci Frigo: O capital se territorializou. A terra, as commodities, agora a pro-dução de bio-massa... são elementos centrais para a reprodução do capital. Na década de 1980 as pessoas diziam “o campo está ficando para trás, um lugar do passado”. Que nada! Hoje o campo é o centro da disputa do capital. A cidade é onde as pessoas estão, mas a disputa está no campo.

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162 ABERTURATRILOGIADATERRA

Como você se envolveu nesta disputa?

Eu sou filho de camponeses, vivi a década de 1970 no campo. Em 1975 entrei num Seminário para fazer os estudos do primeiro grau, e segui nessa traje-tória religiosa. Em 1982 eu encontro a Teologia da Libertação, quando estava aqui no norte do Paraná, e nós começamos a ter acesso a algumas bibliografias que eram críticas em relação à própria Igreja. O livro mais importante que eu li nesse período foi “Caminhando se abre caminho” de Arturo Paoli, um padre italiano que estava aqui no Brasil. É um livro muito denso, muito crítico em relação à própria Igreja. Este livro despertou um outro sentido em relação à proposta para a vida religiosa e o futuro que ela poderia ter.

O segundo momento desse processo aconteceu em 1984. Eu vim para Curitiba iniciar os estudos em filosofia, ainda na vida religiosa, e descobri que tinha um centro de direitos humanos sendo fundado por um grupo de Pastoral Universitária da Universidade Estadual de Ponta Grossa que estava ligado à Te-ologia da Libertação. Esse grupo se colocou como desafio formar um centro de defesa dos direitos humanos para enfrentar os problemas ainda ligados à ditadura militar, mas também outros problemas que estavam acontecendo na sociedade. Ainda ano de 1984, chega um abaixo-assinado no centro de direitos humanos em favor do Leonardo Boff, que estava sendo submetido a um silêncio obsequioso pela congregação da doutrina da fé, conduzida pelo Papa anterior, o Ratzinger.

Um frei, que inclusive é meu parente, dizia: “o problema é que existem umas freiras e uns padres que se descaracterizaram completamente, não tem mais nem a identidade religiosa, viraram comunista, estão muito envolvidos com os movimentos sociais, então tem os excessos”. Este era o discurso para descaracte-rizar o propósito da Teologia da Libertação.

Neste ano eu fiz minha primeira missão relacionada com o tema de terra e essas questões de direitos humanos. Havia uma ameaça de despejo dos sem--terra que estavam ocupando o Cavernoso. Eu nem sabia da existência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Havia a ameaça de despejo deste grupo destas terras e me falaram: “o exército quer despejar os sem-terra e você tem que ir lá falar com o Bispo de Guarapuava e dizer para o ele falar para o general para não mandar as tropas tirarem os sem-terra de lá.”

Um dos setores que sofreram maior repressão após o Golpe de 1964 foram as ligas camponeses que haviam se formado na década de 1950, principal-mente no Nordeste do país, que então viviam um momento de intensa mobiliza-ção política pela redistribuição da terra. Lideranças foram presas, assassinadas

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ou levadas ao exílio, e grande parte do movimento foi desarticulado. A questão agrária voltaria com toda força durante o processo de abertura nos anos 1980. Uma das principais organizações neste processo foi a Comissão Pastoral da Ter-ra, um braço da Igreja Católica que atuava junto aos camponeses sem-terra por justiça social no campo. O envolvimento de padres, bispos, freis, freiras e ativis-tas ligados à igreja em lutas sociais teve como pano de fundo uma re-articulação radical do discurso e prática da Igreja Católica na America Latina nos anos 1960 e 1970 através da Teologia da Libertação, uma vertente de teologia (po-lítica) critica que nasceu da necessidade de aproximar a leitura do evangelho à realidade desigual que permeava todo o continente, e direcionar a ação pastoral para a transformação desta realidade. O termo foi originalmente cunhado pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez no livro A teologia da Libertação, publicado em 1978, e contou com outros expoentes como Jon Sobrino em El Salvador, Juan Luis Segundo do Uruguai e, no Brasil, o frei Leonardo Boff. Na confluência da re--articulação do ativismo da ala progressista da Igreja Católica e o ressurgimento das organizações camponesas é que vai surgir o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil, o MST, fundado oficialmente em 1984.

O MST inicia-se com formas táticas de ocupação: não havia o direito à terra, portanto você vai lá ocupar até que esse direito seja implementado. Como você enxerga a dimensão política desta prática?

O aspecto político e ético foi sendo construído no processo de inserção nos debates da própria Teologia da Libertação, com a ideia de que os pobres ti-nham direitos e que os pobres precisariam lutar por esses direitos, e portanto era preciso fazer ações para conquistar estes direitos porque não bastava esperar o Estado. Havia uma situação insustentável do ponto de vista ético que era a distri-buição da terra. A ocupação de terra vinha como uma resposta a um direito legíti-mo que os trabalhadores tinham de acessar à terra. E o argumento era esse, de que era insuportável que metade da terra agrícola do Brasil estivesse na mão de 1% da população. A ideia de que a gestão desse patrimônio que devia ser coletivo, par-tilhado, era fundamental e nunca foi posta em dúvida em relação a esse processo.

Do ponto de vista legal, nós começamos a trabalhar o aspecto do reco-nhecimento desse direito a partir do que se colocava como uma dívida que devia ser resgatada pelas populações negras, indígenas, camponesas que historicamente nunca tiveram esse direito. A Constituição de 1988 consagrou o princípio da fun-ção social da terra, e essa função social sempre foi colocada como uma questão

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importante, não é só o direito de propriedade, é o direito de acessar a terra, uma possibilidade de você ter um outro futuro.

Há uma relação muito diferente entre a terra e a territorialidade do latifún-dio, agora do agronegócio, com a relação terra-territorialidade do pequeno agricultor, do camponês. Como você vê essa diferença, e como você interpre-ta essa organização espacial e territorial dentro do MST?

Na Comissão Pastoral da Terra havia um debate – eu me inseri na comissão pastoral da terra em 1986 –, sobre terra de trabalho e terra de negócio. A terra de trabalho era a terra do camponês, do indígena, do quilombola, do poceiro, terra legí-tima pelo uso que você faz dela. A terra do agronegócio é uma terra para você tirar lucro. Como dizia uma das criadoras do conceito do agroecologia, a Ana Primavesi, o agronegócio trata a terra como um cadáver, mata a terra, trata a terra como um objeto puro e simples. Já os camponeses e as populações tradicionais, indígenas ou quilombolas, tratam a terra numa outra perspectiva, mais espiritual, mais cultural.

Eu aprendi esse processo na convivência com as pessoas que viviam es-pecialmente no Nordeste e no Norte do país. Porque para nós no Sul, apesar de termos participado dos movimentos em torno da Teologia da Libertação, a forma-tação da nossa cultura é baseada no paradigma que separa a terra como apenas objeto de produção, um projeto econômico. Só com o tempo e com a relação com esses outros grupos e vendo outras formas de você cultivar a terra, e especialmen-te a relação com a floresta, é que a gente foi mudando a visão.

No livro As monoculturas da mente135, Vandana Shiva faz uma leitura de como o cristianismo vai sedimentar todo o processo de colonização segundo o qual a Natureza é inimiga de todos esses que se colocam contra o progresso, e como isso legitimou uma grande violência contra certas populações em todo o mundo. A Natureza aparece como aquilo que você limpa porque a terra limpa é o lugar do cultivo. Do ponto de vista mais ligado a Teologia da Libertação, o debate sobre a “ética do cuidado” que o Leonardo Boff e outros teólogos vão captar a partir do modo de viver das comunidades indígenas teve um impacto importante. Essa troca de experiências, de “in-culturação”, foi muito importante para toda uma geração de militantes.

135 SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente. São Paulo: Gaia, 2003.

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165Paulo Tavares

TERRA : ESCALA : TERRITÓRIO

Carlos Marés: Quando eu estudava Direito nos anos 1960, a questão da antropo-logia era uma questão que se discutia. O Brasil começava a pensar que era latino--americano. E quando a gente começa a discutir a questão latino-americana, os índios começaram a aparecer. Embora o movimento de esquerda não tinha tanta consciência da questão indígena, as questões de antropologia apareciam como teoria.

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Quando saí do Brasil para o exílio no Chile fui conviver com um ambien-te latino-americano muito mais caracterizado. E embora as esquerdas latino-ame-ricanas não fossem marcadamente indígenas, isso aparecia no Chile, e também aparecia no Peru, na Bolívia. E quando você entra por essa via, todos os processos históricos da América Latina sempre esbarram por alguma coisa indígena. Por exemplo, qual é o grande movimento de independência no Peru? Não é a chegada do movimento pelas tropas de San Martín, pelo Sul, e do Simon Bolívar, pelo Norte. O grande momento foi o movimento indígena que começa em 1870. A revolução mexicana de 1910 é uma revolução que nasce de um índio, que é o Za-pata. E toda a questão do Zapata se alçar numa revolução é uma questão territorial, indígena-camponesa. O Zapata é o guardador dos documentos que legitimam a propriedade da comunidade. Outro grande marco é a revolução boliviana, de 1952. Diz que foram os mineiros. Bom, os mineiros são índios. Mais de 70% dos minei-ros são índios, eu acho que chega bem perto de 100%. E os camponeses juntos. Ora, os camponeses também são índios. Portanto, são os índios que se rebelam em 1952 e fazem uma revolução. As recentes marchas dos mineiros na Bolívia, elas são marchas de índios... Por que é que isso não é explícito? Você começa a dar-se conta que na América Latina há essa exclusão, essa invisibilidade dos índios.

Na minha volta do exílio no final de 1979 havia já uma ebulição de um movimento indígena já estava a começar a existir, formada principalmente por al-guns índios intelectualizados que começavam a estruturar uma organização pan-in-dígena desde as cidades. Essa organização se chamou União das Nações Indígenas (UNI). Tinha um nome pretensioso, aliás muito pretensioso, porque era um grupo pequeno de índios intelectualizados, cuja relação com as suas etnias não era uma relação muito simples porque eles não eram propriamente os líderes tradicionais. Pois bem, eu me vinculei a eles trazido pelos antropólogos, e como não tinha muita gente no direito que trabalhasse essa questão, ao contrário, não tinha ninguém, eu praticamente fui levado a trabalhar com o movimento indígena por contingências.

Durante a década de 1970, ignorando a existência das populações e ter-ritórios indígenas, o regime militar implementou um violento projeto de coloni-zação na Amazônia. Pretendia-se sobrepor toda a bacia do Rio Amazonas com uma matriz urbana de proporções continentais, formada por uma série de encla-ves extrativistas, interligados por linhas expressas de comunicação e transporte. Nas margens dos corredores rodoviários, o governo promoveu programas de re--assentamento dos camponeses desterrados pelas fronteira da soja e do latifúndio pecuário com o intuito de ‘absorver’ os efeitos políticos dos conflitos de terra que

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se davam em outras partes do país, principalmente no Nordeste e no Sul. “Uma terra sem gente para uma gente sem-terra”, foi como o General Garrastazu Mé-dice descreveu a Amazônia em 1970.

No final dos anos 1980, o processo de desmatamento desencadeado por este “desenho territorial” estava totalmente fora do controle. A floresta então tornou-se num espaço por onde se reuniram vozes dissidentes à lógica destrutiva gestada durante a ditadura. Dois momentos foram especialmente marcantes nes-te período: a luta dos seringueiros no território do Acre, extremo oeste da Amazô-nia, e o surgimento das organizações indígenas que lutavam pela defesa de seus territórios. Um dos resultados mais expressivos deste processo ficou registrado na nova Constituição Brasileira de 1988, que legitima e garante o direito dos povos indígenas à autonomia cultural e territorial.

Como foi a discussão em torno da questão indígena no momento da Consti-tuição de 1988?

A participação dos indígenas na Constituição foi muito grande, foi muito forte. Os indígenas se organizaram para isso. Claro que quando a gente fala nos indígenas brasileiros é preciso ter em conta que são 220 povos. Desses 220, uma boa parte não tem sequer ideia de que existe estado nacional, não tem ideia. Então, está vivendo a sua vida e está muito bem. Então quando dizemos que os movi-mentos indígenas se mobilizaram, foram alguns povos, os mais próximos, mas alguns muito poderosos, como os Kaiapó, por exemplo. Os Kaiapó tiveram uma presença na Constituinte muito forte. Seria muito difícil nós termos um artigo 231 na Constituição se não houvesse a presença indígena.

O artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 estabelece que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tra-dições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”.

A Constituição de 1988 abre uma ideia de autonomia territorial para os ín-dios impensável no dia anterior.

As constituições é que constituem um Estado Nação. O Estado Nação nasce com as constituições. Portanto, a ideia é que só quando estivesse um rom-pimento na constituição é que o Estado Nação estaria modificado. A convenção

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169136, que é anterior à Constituição, diz que existem pequenos ou grandes gru-pos dentro das nações que devem ser respeitados como grupos diferenciados. A Constituição de 1988 assume muito claramente essa posição, dizendo que esses povos têm o direito a continuar a existir como povos, os seus direitos são direitos da sua organização social, da sua cultura etc., tudo isso ligado por um território. A constituição brasileira é a primeira, mas não é a única. Praticamente todas as cons-tituições latino-americanas desta época seguem essa linha. Há um rompimento, a Constituição Brasileira de 1988 rompe com uma tradição... Por isso é que se diz “neo-constitucionalismo sul-americano”.

Isto é uma ruptura, mas é também um problema. Porque todos esses di-reitos estão ligados a um território, são direitos territoriais. Então se você não consegue localizar esses direitos dentro de um território determinado você exclui a possibilidade de eles serem exercidos. A questão territorial é uma questão, diga-mos assim, prevalente na definição de um povo. A gente discutia coisas como se é possível existir povo sem território? Claro que é possível, olhem para os ciganos, por exemplo... Pois bem, sendo as coisas como são, com a Constituição de 1988 alguns povos começaram a retomar a busca pelo seu território. Mas que território? Onde é que está? Então recomeçam a retomar a busca pela sua identidade cultural, antes de mais nada. E a partir da identidade cultural, qualquer lote de terra, qual-quer pedacinho de terra passa a ser o território.

Pois quem está fora do território, não teria estas garantias jurídicas. Esta é uma interpretação rasa, porque a interpretação mais complexa seria agir segundo a necessidade de se restituir esses territórios, reconstituí-los, reorganizá-los. É um processo de organização territorial. Não é pegar o mapa como está hoje. Entre-tanto, todas as decisões são nesse sentido, de consolidar o mapa como está hoje.

O pensamento mais conservador não consegue admitir a ideia de haver território indígenas dentro de um Estado-nação...

Porque o Estado tem que restringir o seu próprio controle sobre uma parte do território...

Tem que restringir o controlo porque tem que restringir o controlo sobre aquele povo. Lá é outra história, lá não podem dizer como é que vocês casam, não pode dizer como é o contrato o casamento. Aliás, não diz numa favela, quanto

136 Aprovada em 1989, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, oficialmente chamada de Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, é o primeiro instrumento legal internacional que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais à suas terras originárias.

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169Paulo Tavares

mais num território indígena. Enfim, lá o Estado não pode impor o contrato. Em alguns lugares do Brasil a sociedade hegemônica não é a sociedade capitalista branca. Por exemplo: no Alto Rio Negro a maioria da população é indígena. Uma cidadezinha chamada Araweté não tem nenhum branco e falam-se sete línguas di-ferentes. O que é Araweté? É nação brasileira? Não, é território brasileiro apenas porque está marcado no mapa. E não estou falando de um Portugal, é um território imenso. Estou falando de Portugal, Espanha e um pedaço da França juntos.

Um grande território que não é um território hegemônico.

Referências

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópo-lis: Vozes, 1986.GUATTARI, Felix. La révolution moléculaire, Fontenay-sous-Bois: Recherches, 1977. ___. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1987.GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 1978.PAOLI, Arturo. Caminhando se abre o caminho. Trad. Guido Piccoli. São Paulo: Ed. Loyola, 1979.SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da bio-tecnologia. São Paulo: Gaia, 2003.

Textos da internet

MARICATO, Ermínia. Nunca fomos tão participativos. Disponível em:<http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3774>. Acesso em: 12 dez. 2013.

Paulo Tavares é um arquitecto e urbanista formado no Brasil. Lecionou na Univer-sidade London Metropolitan, no Laboratório de Culturas Visuais/ Mestrado em Teoria de Arte Contemporânea – Goldsmiths, e desde 2008 lecciona no programa de Mestrado no Centro para Investigação em Arquitetura – Goldsmiths. No Brasil, paralelamente às suas actividades como investigador/arquitecto, Tavares esteve envolvido com muitas práticas autónomas dos meios de comunicação desde o final dos anos 1990. Como resultado a sua prática combina a análise arquitectónica, cartografias baseadas em meios de comunicação e escrita como modalidades interconectadas de leitura espacial/condições ecológicas.

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LUGARCOMUMNº41,pp.171-

ACidadeMultiforme: OcasodoIndoamericano137

Atelier Hacer-CiudadColectivo Situaciones138

Em dezembro de 2010, teve lugar uma ocupação maciça e em princí-pio inesperada do Parque Indoamericano, na Zona Sul de Buenos Aires. O Indo-americano é um dos rostos menos visitados da cidade. Talvez porque nele não se reflecte nenhuma das mensagens retóricas que ambicionam captar o espírito de uma cidade que oficialmente se apresenta como aberta ao turismo, santuário da cultura, meca do cosmopolitismo, cadinho de raças, além de sede de amabilidade cívica e laboratório de criatividade política. Encontramos neste fragmento cru da vida urbana chaves para a compreensão do que existe, e do que poderia existir. O presente e os seus possíveis. Os episódios violentos que marcaram a desocu-pação do Parque Indoamericano conjugam num só movimento a procura de terra e habitação ao mesmo tempo que a dinâmica da valorização imobiliária; a acção directa das massas ao mesmo tempo que operações “punteriles”139; o racismo que

137 O texto que se segue é a versão ligeiramente modificada de algumas páginas que compõem Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad, investigação levada a cabo pela oficina Hacer-Ciudad, que funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa autogerida por grupos e colectivos múltiplos e diversos). Fazemos parte da oficina pessoas que participam ou participaram numa ou em várias experiências de investigação e acção colectivas (Colectivo Situaciones, Simbiosis Cultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos, cadeiras universitárias alternativas etc.). Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad foi editado por Retazos / Tinta Limón, Buenos Aires, dezembro de 2011.

138 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira

139 Adjectivo formado a partir de puntero. “Os punteros são militantes do Partido Justicialista colocados como intermediários entre os recursos federais, provinciais e municipais dentro do bairro (cestas básicas, consultas medicas, vagas em escolas), além de serem os responsáveis pela elaboração das listas de beneficiários dos planos de assistência. Sua capacidade de mo-bilização da comunidade (para actividades politicas peronistas, como comícios) é o que faz com que tenham maior ou menor acesso aos recursos governamentais” – cf. CARDOZO, Fer-nanda Soares. Protestar não é delito. A criminalização dos movimentos sociais na Argentina contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, 2008. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15316/000677668.pdf?sequence=1. O pun-

184

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172 ACIDADEMULTIFORME

atravessa transversalmente o social, as instituições governamentais e os estereóti-pos mediáticos, ao mesmo tempo que um reflorescimento da sacrossanta naciona-lidade argentina vinculada à defesa da propriedade privada; a violência criminal, civil e policial, ao mesmo tempo que momentos agónicos da vida colectiva e comunitária; o estatuto do espaço público e a ressignificação da figura do vizinho (“vecino”).

Bem-vindos à selva urbana!

À cidade dos planos infinitos. Pseudo-ambiente vivo, saturado de infor-mação. Cidade-drama dos processos do comum e da guerra civil dos modos de vida. Bem-vindos, pois, à agitação urbana do constante jogo de encerramento e abertura, de ligação e desligação. Cidade espelho – às vezes fiel / quase sem-pre distorcido – das fórmulas de produção de valor. Cidade biopolítica, enquanto objecto de mecanismos de apropriação do valor social, enquanto espaço de resis-tências aos mecanismos de controle, enquanto território dinâmico de novas per-cepções e modos de conhecer. Cidade produtiva, fábrica das formas de vida que nela se misturam, se distinguem e se entretecem. Cidade-arca de memórias, de sentidos e de conflitos. Bem-vindos à própria fábrica da cidade, à fábrica social.

O Indoamericano como problema

Quando falamos do fragmento não nos referimos à parte qualquer parte de um todo anterior explodido: falamos de uma situação concreta e problemática cuja força de realidade nos violenta. Que nos arrasta no processo da sua evolução. Que nos afasta de qualquer abstracção. O fragmento é sempre índice expressivo desta vida urbana.

O fragmento não seria, assim, um estilhaço arbitrário. O fragmento é um problema essencial captado na sua evolução. Interrogá-lo, penetrá-lo, supõe um confronto com o concreto em mutação. O fragmento é uma dobra. Que explica, se desdobrado. Que dissimula as suas implicações, se o deixarmos envolto no seu véu. Contém uma marca cifrada da época e uma potência discordante. Desvelar o fragmento afecta a perspectiva, descobre latências e possíveis.

O fragmento é um todo concreto cujos filamentos tocam outras situações. Do racismo às economias informais; das dinâmicas de ocupação da terra às dinâ-micas da migração; das técnicas biopolíticas dos Estados à propaganda política;

terismo designa assim um sistema de clientelas e caciquismo que procura manter a base popular sob o controle de uma hierarquia político-partidária (N.d.T.).

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173Atelier Hacer-Ciudad e Colectivo Situaciones

da codificação mediática à urbana; das formas submersas de trabalho e de sobre-exploração à precarização do direito à habitação.

O fragmento histórico contém as chaves da compreensão de mutações colectivas maiores. O fragmento é ao mesmo tempo universal (fala de alguma coisa que se manifesta em muitas outras situações) e caso concreto (sucede como episódio fechado, contextualizado, e mantém sob uma aparência extremamente empírica uma incógnita urgente).

Do mesmo modo que a investigação do caso promove a investigação política sub-representativa140, o pensamento do fragmento conduz-nos, na com-panhia de Walter Benjamin, a um tratamento diferente do universal. O universal concreto é uma porção de realidade da qual se pode dizer: “está tudo aí”. E remete sempre para uma práxis, que não precisa de ser remetida para uma tota-lidade abstracta. Para o fetiche de uma totalidade complexa com as suas media-ções infinitas. Pelo contrário, Benjamin expõe as suas razões a favor da unidade imediata (monádica) da situação sem necessidade de recorrer a qualquer ciência abstracta.

O fragmento é mundanidade. Convite a desenvolver práticas de mundo.O fragmento pode abrir, portanto, uma sequência de politização: gosto

pelo episódio (caso); militância de investigação; problematização expressiva (o problema da escrita, ou do discurso das imagens). Fazer cidade. É o que procu-ramos e o que se nos impõe. Porque a cidade supõe e aspira desde sempre a uma teoria política, a um jogo que afirma os usos comuns e as suas mutações por meio de uma gestualidade inevitavelmente política. E o gesto político, o convite à es-crita tem sempre por ponto de partida a afirmação da igualdade de potência dos socialmente desiguais.

Como necessidade persistente de cartografias para nos apropriarmos da cidade como riqueza comum. De uma temporalidade comum. Um ano do In-doamericano sobrepõe-se aos 10 anos de 2001141. As perguntas acumulam-se e

140 “Sub-representativo” possui aqui duas acepções convergentes: a presença de factos e da-dos como potência para dissolver o espaço da representação estatal e mediática (na medida em que a verdade e a justiça avançam juntas, a investigação supõe uma ética contra a criminalidade do poder) e, ao mesmo tempo, recurso ao “poder do falso”, uma vez que a ficção nos ajuda a compreender as camadas mais profundas do que podemos assumir como verdade.

141 Ao completar-se uma década da crise que mudou o país para sempre, a nossa perspectiva não é a da recordação. 2001 não é um ano, mas um princípio activo, uma chave para pensar esta década. 2001, para nós, é quase um método, uma maneira de olhar as coisas vendo-as em movimento. Neste sentido, a crise torna-se premissa, na multiplicidade das suas significações: instabilidade e criação, preocupação e incerteza, abertura e alteração do calendário… Tanto

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174 ACIDADEMULTIFORME

dilaceram-se retrospectivamente. São estas feridas que nos aproximam de uma enunciação comum. Contra a língua neoliberal que separa minuciosamente e por etiquetas cada um dos estereótipos e as perguntas que não devem misturar-se. O que nós procuramos é tornar um texto um convite esclarecido sobre o sistema de fronteiras, que atravesse guetos urbanos, zonas políticas e temas privados. Não é nada fácil. Mas persistimos.

(Re)tomando o indoamericano

Tomamos o Indoamericano como fragmento, caso e situação.Uma célula mínima de realidade observada que equilibra com o seu pró-

prio peso o resto da cidade. O Indoamericano não é um facto excepcional, excepto na medida em que permite apreciar uma complexidade de níveis e dinâmicas que hoje convergem nisso a que chamamos (fazer) cidade. A cidade tem mil planos. Impossível vê-los todos ao mesmo tempo. A opacidade do Indoamericano surge do encontro entre muitos e muitos destes planos. Não tentamos explicar o Indo-americano a partir de uma análise abstracta e totalizadora da cidade, mas, pelo contrário, propomo-nos pensar melhor a cidade referindo-a imediatamente a essas singularidades, e às tendências e lutas sociais que a constituem. Que singularida-des são essas?

Primeiras hipóteses / O Indoamericano como condensação de problemas / Nova gestão governamental / Racismo micropolítico / Nova lógica de ocupação: expectativas económicas e organização não-tradicional

A ocupação do Parque Indoamericano reúne uma quantidade de proble-mas nos quais se joga boa parte do posterior triunfo eleitoral do candidato da di-reita a “intendente” (presidente do município), Mauricio Macri, na cidade. Esses dias violentos puseram em evidência a brutalidade das acções do mercado, as reacções racistas e a violência social contida. Não se trata de dizer que o Indoa-mericano seja tão diferente de outras coisas que costumam passar-se na cidade, e noutras cidades, mas é uma situação privilegiada, devido às camadas de questões que condensa em vista de pensarmos e agirmos na conjuntura da cidade.

Há nesta relação, entre o que aconteceu no Indoamericano e o triunfo de Macri, uma subtil trama micropolítica que poderíamos reconstruir tomando como ponto de partida o pôr em série dos acontecimentos desses dias com as imagens

quando é visível, como quando, como nos tempos de agora, corre como uma corrente subterrâ-nea numa sociedade “normal” ou num país “a sério”.

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difundidas depois pelo macrismo – que vão da transparência obscena dos factos de dezembro de 2010 à estratégia de comunicação e de gestão governamental, es-tratégia mascarada de um estilo anti-político ingénuo, que explicita um conteúdo racista indisfarçado.

A eficácia da operação consiste num deslocamento da significação do público (não por acaso, o Indoamericano é um parque público maioritariamente usado por migrantes); na visibilização e na gestão de formas (tão odiosas como efectivas) de produção de cidade; num deslizar dos modos de construção política capaz de dar conta da face micropolítica reaccionária sobre a macropolítica do governo nacional, cujos enunciados inclusivos e pós-liberais são objecto de uma suspensão pelos lemas e divisas do governo da cidade (“é bom estar aqui”, “seja bem-vindo”) que transmitem ao nível do imaginário colectivo uma cumplicidade com a exclusão da ameaça. A ocupação do Indoamericano, ao contrário do que se disse na altura, revela menos a ausência do Estado como o facto de, na gestão territorial, o próprio Estado (no seu funcionamento mafioso) ser parte do pro-blema. Mas também o mercado intervém na ocupação, uma vez que se trata de um fenómeno que não pode considerar-se à margem do contexto das práticas de especulação imobiliária.

Pensar a dinâmica própria da ocupação requer uma investigação que deve desprender-se de múltiplos imaginários, por exemplo, o da tradição de ocupações comunitariamente organizadas. Com efeito, as ocupações pertencem a uma forma de luta popular promovida e desenvolvida por formas políticas e organizativas que, partindo das necessidades, desenvolveram experiências sociais comunitárias. Todavia, tanto na ocupação do Indoamericano, como em todas as outras ocupa-ções que houve na mesma altura, não podemos situar as coordenadas dessa tradi-ção: a ausência de enunciados e uma narrativa sobre o que acontecia, a dificuldade de encontrar interlocutores, e o transbordar da violência tão difícil de interpretar, sugerem-nos que se trata de outro tipo de situação emoldurada num contexto em alta do ciclo económico, em que a renda financeira se orienta em geral para a terra e para a construção de habitação.

A título de hipótese, portanto, deparamos com dois eixos: uma racionali-dade económica em posta em causa e uma fraqueza por parte dos actores sociais para introduzirem outras dinâmicas alternativas ou comunitárias. Os cálculos do Indoamericano, verdadeiro concentrado dos cálculos urbanos, obrigam-nos a desprendermo-nos das representações mais simples e habituais através das quais se procuram explicar as dinâmicas da cidade.

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Crédito da imagem: Fotografias de Sub.Coop, 19 de dezembro de 2012. Cortesia Sub.Coop.

A cidade espontânea? / Ocupações promíscuas / Cálculos / Especulação imobiliária e reivindicação democrática

No fazer cidade, há sempre qualquer coisa de espontâneo. As cidades são tramas complexas que não podem explicar-se somente através do planeamento (de urbanistas, de governos, de organizações sociais) nem do livre arbítrio das suas pulsões vitais. Nas ocupações manifesta-se um estranho paradoxo: a consta-tação de uma organização e, ao mesmo tempo, a sua ausência.

A espontaneidade não significa a ausência de inteligência e organização, mas, de uma maneira ou de outra a convergência – em tensão e harmonia – de racionalidades e planos diferentes de acção. Deste modo, podemos pensar a si-multaneidade da organização punteril (dos líderes de bairro)142, nessa negociação política que inclui habitualmente cálculos especulativos de mercado, com pro-cessos menos evidentes, ligados a solidariedades entre os ocupantes, à vontade de alojamento e de terra que, talvez, se afirmasse antes de outro modo, através de outro tipo de organizações, confluindo hoje numa dinâmica, que adquire um tom promíscuo característico das misturas: autoritarismo e oportunismo a par de mo-

142 Ver a N.d.T. anterior. (N.d.T.)

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mentos de solidariedade e vontade de uma vida melhor. As ocupações são tanto momentos de manipulação ao serviço de negócios e de criação artificial de climas políticos, como dinâmicas de reapropriação de espaços urbanos anteriormente capturados como espaços privados ou públicos para usos precisos. Quando são ocupados, esses espaços readquirem um carácter comum. Mas, nesse território, que torna a ser comum, desenvolvem-se esses traços de promiscuidade que assi-nalámos, onde funcionam conjuntamente lógicas mafiosas mais visíveis e outras ligadas ao querer-viver, menos evidentes.

O paradoxo destes modos de fazer cidade consiste em canalizar os im-pulsos populares e as reivindicações democráticas de terra e alojamento, através de esquemas políticos tão autoritários como rebeldes, dando lugar a excessos mui-to difíceis de organizar (para os militantes) e de representar (para os políticos).

Na província de Buenos Aires sempre houve ocupações. Não se trata de um fenómeno extraordinário ou de outro planeta. Na realidade, a ocupação de terras é um modo de fazer cidade, e foi assim que se constituiu grande parte da conurbação. Mas os meios de comunicação tratam a capital federal como um ter-ritório privilegiado, onde essas coisas não acontecem. A mensagem em torno das ocupações do Indoamericano foi clara: na capital, protege-se a propriedade, e os usurpadores, na sua maioria estrangeiros, são os que a põem em perigo…

O problema real é, sobretudo, o do apinhamento. E também a subida do preço dos arrendamentos, que deriva do primeiro problema. Os ‘punteros’143 avisam quando começa a entrever-se a possibilidade de uma ocupação, e os inte-ressados preparam-se para agir. Entre estes incluem-se desde os ‘pibes’ (meninos) apostados na revenda de lotes aos que necessitam de terreno onde possam fazer um lugar para viverem; desde os que aproveitam a ocasião para comprar lotes as-sim que se inicia a ocupação, aos que vêem nela uma oportunidade de adquirirem mais casas para revender ou arrendar.

Os novos bairros compõem-se em geral de paraguaios, bolivianos e perua-nos, que são os que têm mais filhos e estão sempre dispostos a entrar em acção. Já em Lugano144 se tinham dado ocupações de terras… Algumas. E a reacção racista foi sempre muito forte. Foi o caso da Villa 20. mas eram ocupações pequenas, comparadas com a do Indoamericano. Nalgumas delas, houve até certo apoio do consulado boliviano, através do fornecimento de colchões às famílias bolivianas ocupantes. Mas a ocupação do Indoamericano foi diferente. Pela escala, sobre-tudo, e também por ter escapado ao controle. Houve um acordo entre o governo

143 Ver a N.d.T. inicial. (N.d.T.)

144 Ou Villa Lugano, uma das grandes circunscrições urbanas de Buenos Aires (N.d.T.)

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da cidade e o do país para recensear os ocupantes e dar-lhes dinheiro (calculo que três mil pesos pelo menos, e há quem fale em oito mil, e quem fale em cinco mil…) para os fazer abandonar a ocupação. Os ‘punteros’ sabem onde é possível fazer ocupações, onde há terras que se podem ocupar. Sabem também quando há alguma oportunidade de ocupação temporária, que não poderá ser mantida, mas pode render alguma massa (como neste caso). O ‘puntero’ averigua, tem os seus ajudantes e aparece nos bairros encorajando as pessoas à ocupação. Aconselha sobre a melhor maneira de agir, sobre a maneira de proceder à ocupação com rapidez. Sabe de quem são os terrenos, está sempre bem informado, e disposto a negociar e a tentar obter algum benefício… e se for possível ficar com os terrenos, tanto melhor. Mas no Indoamericano as coisas não puderam ser controladas. De um modo geral, as ocupações tendem a transbordar a organização, mas no Indoa-mericano, tratou-se de uma ocupação a uma escala formidável.

Racismo / Classificação: Vizinhos versus Okupas / Inquérito e recenseamento em tempo real

Se até ao momento imagens como as do Indoamericano têm sido difun-didas e lidas como as de uma “guerra de pobres contra pobres”, devemos admitir que a intervenção astuciosa do governo municipal de Macri facilitou uma nova operação hegemónica sobre a cidade. A guerra deixaria de ser entre pobres, pas-sando a ser entre usurpadores e vizinhos. Aos vizinhos cabe defender o Parque Indoamericano e a Plaza Francia. A equivalência é evidente: o corte não é de clas-se nem étnico-nacional. O problema não é a imigração, mas sim o descontrolo.

Qual é o objecto desta guerra entre caos e controlo? A riqueza da cidade e o espaço público (hospitais, escolas, parques ameaçados pelos imigrantes). As coisas orientam-se assim de tal maneira que a reacção dos vizinhos de Soldati/Lu-gano, avalizada por boa parte da cidade e das suas instituições, parece consagrar um direito ao racismo145, até ao momento só reconhecido pelo Estado a certas partes e classes da cidade.

145 Tal como costumamos interrogar-nos sobre a lei que dita que acatemos a lei, a obrigação de obedecer, interrogamo-nos também sobre o direito que garante a posse de direitos, o direito a ter direitos. De onde vem esse direito natural, condição primeira da igualdade? Quem reco-nhece e quem garante o direito a ser-se sujeito de direitos, a ser-se cidadão, a ser-se humano? Pensamos o racismo como a máscara que dissimula e, ao mesmo tempo, explica as desigual-dades subjacentes à plena igualdade promulgada pelos regimes liberais. Mas o racismo não se limita a encobrir e a revelar paradoxalmente, mas produz também muitas outras desigualdades. Desigualdades – se há lugar para estabelecer esta distinção – não de facto, mas de direito. O

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“Em bairros como Lugano I e II, há desde sempre resistências contrárias à construção de habitação para a gente das villas146. A experiência da se ir às com-pras ao supermercado Coto é suficiente. Vêem-se como são recebidas as ‘tarjetas sociales’ (senhas de compras), e como se observa o consumo dos paraguaios e bolivianos. Sobretudo da Villa 20. Que enchem as salitas, as escolas públicas, o supermercado Jumbo, os parques durante os fins de semana. Os espaços públicos são lugares de mistura, de encontros, de preconceitos. A escalada da animalização vai de formas mais atenuadas, como ‘negros’, a ‘villeros’ e, termo depreciativo entre todos, a ‘bolivianos’”.

Esta mutação de imaginários é estranha. Até certo ponto, os bolivianos são valorizados segundo uma imagem do trabalhador dócil. Alegoria da migração boa, que se faz a partir de baixo, regenerando valores como o trabalho, o estudo e a família. Mas, em contacto com a “villa”, espaço de uma selvajaria insondável, o boliviano vai-se confundindo com o villero, o negro, o narco.

O governo municipal de Macri dirigia-se em tempo real aos vizinhos em suas casas, perguntando-lhes o que queriam eles que o município fizesse. O bairro aprovou que Macri declarasse que, se havia problemas de alojamento, os argentinos deviam ser prioritariamente atendidos. Agora, a guarda está no bairro, a sua simples presença mudou o estado de coisas. Os guardas garantem a segu-rança durante a noite. Sobretudo nos quarteirões mais violentos onde se começa a vender paco147. Circulam permanentemente, de carro ou a pé. A guarda ocupa o lugar de uma autoridade pública armada para travar essa violência desenfreada.

Redefinição reaccionária da figura do migrante / Discurso de Evo / Imigração descontrolada / Macri e os representantes comunitários

De facto, durante a ocupação do Parque Indoamericano o discurso da imigração usurpadora foi ampliado até ao insuportável. Por um lado, o discur-so dos vizinhos que entraram em acção contra os ocupantes. Por outro lado, as próprias organizações imigrantes e o próprio governo de Evo Morales assumi-

direito ao racismo opera através de uma dialéctica negativa que consiste na auto-atribuição que um grupo se faz do direito a negar direitos. O direito ao racismo deita por terra a pretensa uni-versalidade liberal. Os meus direitos, segundo dita o manual, acabam onde começam os direitos do outro. Os seus direitos, diz o bom vecino porteño [o bom morador, ou vizinho, de Buenos Aires (N.d.T)] aos ocupantes do Parque Indoamericano, acabam aqui.

146 O termo villas, ou villas miseria designa, na Argentina, os bairros de lata ou zonas ocupadas pela construção de alojamentos precários. (N.d.T.)

147 Pasta de cocaína. (N.d.T.)

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ram que as comunidades estrangeiras não deviam comprometer a sua imagem em semelhante tipo de acções. Por parte do Estado nacional, a mobilização da guarda limita-se a confirmar o novo mapa das fronteiras nacionais, que se des-multiplicam no interior de bairros e villas da Zona Sul. A proliferação de um discurso abertamente racista, com a plena cumplicidade dos meios de comuni-cação de massa levou o discurso presidencial a referir-se a uma migração boa e trabalhadora. Raiando o extremo, o discurso de Macri, dirigente máximo da cidade, referia-se à imigração descontrolada, identificando as ocupações com o narcotráfico e a delinquência em geral.

A TV titula: ‘vecinos’ versus ‘okupas’, mostra imagens de confrontos na ausência das forças policiais. Por quê esta ausência? As imagens eram de uma tolerância inédita perante a violência crua. Havia imagens da Polícia Federal es-pancando as pessoas com violência. Da [força policial] Metropolitana, não era surpreendente (os seus efectivos ocupavam-se da repressão dos ‘cartoneros’148), mas supunha-se que a Federal estava proibida de usar a violência e de reprimir. Os confrontos prolongaram-se horas a fio. Tanta impunidade corrobora uma ca-pacidade de violência, de cuja possibilidade já suspeitávamos, por parte dos vizi-nhos. No Facebook, nas redes argentinas – de vizinhos do bairro – e nas redes de bolivianos dizia-se a mesma coisa: eram poucos os indignados com a violência, e havia uma maioria que se opunha à ocupação como maneira fácil e irrespon-sável de apropriação de terrenos para construção de alojamentos, bens que aos locais custam muito trabalho. Incluem-se aqui membros da comunidade bolivia-na, envergonhados de serem associados aos ocupantes. Na realidade, o Parque Indoamericano não era um lugar utilizado pelas famílias do bairro. Era quase inteiramente ocupado por migrantes.

No Indoamericano, houve de tudo, mas insistiu-se sobretudo na presença dos bolivianos. São os bolivianos que ficam até ao fim. Os bolivianos tornam-se mais visíveis porque se mantêm na parcela que ocupam; não se movem, para que não lhes roubem o lugar. Os bolivianos são fáceis de expulsar, os ‘pibes’ tiram--lhes os terrenos e, a seguir, vendem-nas (lhas). Os paraguaios, em contrapartida, organizam-se com rapidez; estão preparados para se defenderem e ocupam o terri-tório colectivamente. Os bolivianos agiam cada um por sua conta, isolados ou em família, mas não se agrupavam num colectivo. Muitas vezes são ‘pibes’ recém--chegados para trabalhar numa oficina. As organizações bolivianas preocupam-se muito com a sua imagem e condenam tudo o que possa entrar em conflito com os

148 Os cartoneros dedicam-se à recolecção e recuperação de lixos e resíduos. (N.d.T.)

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valores considerados dominantes na cidade. E durante esses dias, condenavam a ocupação, para salvaguardar a imagem dos bolivianos…

Mas, além disso, há, entre os bolivianos, uma ruptura profunda do comu-nitário; competição, isolamento… enfim, um individualismo bastante exacerba-do. Nestas situações de ocupação observa-se uma mistura muito estranha. Uma mistura de assembleia, de espontaneidade e de organização. E não é raro que, em resultado dessa dinâmica, se dêem actos de racismo, às vezes com origem nos próprios filhos dos bolivianos. Nestas ocupações, falta que os bolivianos actuem com mais força, com mais organização colectiva. Falta uma afirmação mais deci-dida, como acontece noutros casos ou nalgumas movimentações em que se mani-festam modos de afirmação mais claros…

No bairro Samoré organizaram-se ‘bandereadas’ (ruas Escalada e Delle-piane) convocadas pela palavra de ordem: ‘Traz a tua bandeira argentina para de-fender o bairro’. E em vários autocarros que passavam pelo bairro Samoré (o 36, o 50, o 114 etc.), todos os passageiros bolivianos eram obrigados a sair. Quando os vizinhos cortaram a circulação em Dellepiane, o 36 teve de desviar-se uns 10 quarteirões para evitar que fossem espancados os bolivianos que iam no autocar-ro. No 50, foram os próprios passageiros que não deixaram entrar no autocarro uma boliviana.

Organização do excesso, condução das reivindicações / Oportunismo e disponibilidade / A construção do caso social como forma de negociação

O tipo de organização que protagoniza as ocupações já não é a que identi-ficamos com outros ciclos de lutas, que se desenvolviam a partir de características comunitárias (promovidas por grupos militantes e por uma cultura política autó-noma). Até ao momento, este tipo de lutas não gerou um discurso político próprio. Esta confluência de “punterismo”, aspirações e oportunismos não possui nem as formas herdadas de consistência, nem os valores anteriores. Sabemos o que este tipo de lutas não é. Mas talvez o urgente seja sabermos o que de facto pode, o que de facto é. Quando dizemos oportunismo, fazemo-lo despojando esta noção das suas conotações morais. Em contrapartida, falamos da disponibilidade, por parte dos que participam nestas movimentações, para se darem rapidamente conta de uma possibilidade que se abre de obterem um pedaço de terra, uma casa, um projecto. A decisão rápida de participar numa acção colectiva pode acabar mal, mas pode também mudar a vida de alguém da manhã para a noite. Da confluência que descrevemos entre organização “punteril” e cálculo de mercado resulta uma

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organização rápida e flexível, na qual coabitam os poderes políticos e dinâmicas compensatórias mais subtis, em que as expectativas das pessoas desempenham um papel central.

Num contexto em que há riquezas para repartir, este tipo de acções con-segue estabelecer negociações rápidas com as esferas oficiais, preocupadas com a pacificação do conflito, abrindo-se sem perda de tempo a negociação entre as partes. Neste esquema, as pessoas referem menos a sua situação a um cenário de luta e organização colectiva e mais a uma situação pessoal ou familiar. E na perspectiva das instâncias oficiais, trata-se menos de lidar tomando como referên-cia elementos políticos orgânicos e representativos do que de estabelecer casos particulares. Daí o recurso o recenseamento como primeira e principal operação organizadora da negociação.

A sequência estabelece-se, portanto, a partir da constituição (ocasional) de uma forte capacidade de acção colectiva, que opera por meio do excesso e da apropriação directa com o propósito de abrir uma instância de negociação. Uma vez aberta a negociação, a capacidade de acção transforma-se em reivindicação ou caso, susceptível de enquadramento enquanto caso social. Nesta segunda fase, é fundamental a participação de um funcionalismo – sobretudo a nível dos muni-cípios – com uma sensibilidade e uma experiência resultantes da participação nas militâncias dos movimentos sociais.

“Finalmente, e como que num fio mais ténue de interesse, surge a inter-rogação sobre o que se passou com os ocupantes e sobre o porquê de terem sido recenseados? Como funciona o sistema das pulseiras de controle nos acampa-mentos rodeados pela guarda? As pessoas obtiveram resposta ao seu problema de alojamento? Denúncias recentes apontaram o facto de não se ter avançado na descoberta dos responsáveis pelos três homicídios que tiveram lugar nos dias dos acontecimentos, enquanto há processos contra os protagonistas sociais da ocupa-ção. Depois tudo se foi silenciando. Não houve mais notícias. Para a maioria, os factos caíram no esquecimento.

No segundo ou terceiro dia da ocupação, aparecem as famílias que vêm comprar lotes aos ‘pibes’. ‘Pibes’ que muitas vezes ocupam lotes por conta dos ‘punteros’. É todo um mercado que se monta no local. No Indoamericano, havia de tudo. Pessoas que vendiam e pessoas que precisavam de alojamento.

O que é interessante nas ocupações, e o que realmente motiva a mobiliza-ção de todos, é o momento em que chega o Estado ou as empresas com a sua ofer-ta de serviços, fazendo com que as pessoas se unam para recusar a instalação dos contadores destinados a assegurar depois a cobrança desses serviços, como a luz.

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É justo ocupar. Porque o direito à habitação está ameaçado. Não há uma relação necessária entre ocupar uma casa e comprar… Mas, de um modo geral, este discurso não intervém na ocupação; não se faz ouvir, por exemplo, um discur-so contra a propriedade privada, ou de crítica à circunstância de ter de se comprar para se ter acesso ao alojamento”.

Cidade multiforme: excesso, mercado e planeamento

À margem de planos. Não se vive sem criar espaço. Não se vive sem destruir espaço. Os modos de vida que a cidade produz, a cidade que resulta dos modos de vida, entrelaçam-se, tecem alianças ou combatem-se mutuamente. O mercado joga o seu jogo, limita e potencia essas formas de viver segundo as des-cubra como mais ou menos funcionais nos termos da sua lógica. A cidade excede o cálculo com o qual mantém uma relação de estranheza familiar. Dar para rece-ber. Gerir. Se a cidade é um entretecido, fazer cidade é a maneira como se concen-tram e se disseminam os percursos dos corpos, as apropriações, as fixações e as mobilidades dos que nela estamos, dos que chegam e dos que partem. Há cidades que urbanizam a injustiça: que segmentam territórios, que se espacializem em vista da exploração e da distribuição dos corpos, das suas vidas e das suas mor-tes. Nelas ensaiam-se também outros modos de vida, há lutas (as mais diversas) visando produzir situações de justiça urbana. Situações que alteram, reinventam o espaço-tempo, que reorganizam o sentido de uma vida metropolitana, com os seus anonimatos e as suas dores.

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Créditos: Coletivo Situaciones.

Colectivo Situaciones tem vários anos de experiência compartilhada. Uma forma produtiva de trabalho tem sido a co-investigação ou investigação militante: um modo de fazer alianças para pensar, discutir e problematizar o que entendem por uma vida política. Nessa li-nha, foram decisivos uma série de encontros e trabalhos, como parte do movimento de piquete, de direitos humanos, de camponeses, e de gestão comunitária da educação. A partir da estrutura de uma editora própria, a Tinta Limón Ediciones, propõem-se a editar e propagar estas discus-sões assim como outras relacionadas com a filosofia e a dimensão latino-americana própria do pensamento, exigido pela questão da emancipação. Actualmente encontram-se envolvidos em diversas iniciativas ligadas à investigação, à edição e ao debate colectivo que procuram, de acordo com as necessidades da época, construir um espaço enquanto comum.

A oficina do Atelier Hacer-Ciudad, funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa autogerida por grupos e coletivos múltiplos e diversos). Fazemos parte da oficina pessoas que participam ou participaram numa ou em várias experiências de investigação e ação cole-tivas (Coletivo Situaciones, Simbiosis Cultural, Observatorio Metropolitano, Raíces al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos, cadeiras universitárias alternativas etc.).

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LUGARCOMUMNº41,pp.185-

Algumas Considerações acerca da PráticadoMapeamentoColetivo

Iconoclasistas149

Vivemos com uma noção de território herdada da modernidade incompleta e do seu legado de conceitos puros, muitas vezes

praticamente intangíveis, atravessando os séculos. É o uso do território, e não o território em si mesmo, que constitui o objeto da

análise social. Trata-se de uma forma impura, de um híbrido, de uma noção que, por conseguinte, requer uma revisão histórica constante. O que tem de permanente é o fato de ser o nosso quadro de vida. O

seu entendimento é, pois, fundamental para afastarmos o risco da alienação, o risco da perda de sentido da existência individual ou

coletiva, o risco da renúncia ao futuro.

milton santos, O Retorno do Território.

Desde tempos passados que a produção de cartografias foi um dos prin-cipais instrumentos que o poder dominante utilizou para a apropriação utilitária dos territórios – o que inclui não só uma forma de ordenamento territorial, mas também a demarcação de fronteiras para assinalar as novas ocupações e planificar as estratégias de invasão, de saque e de apropriação do comum. Desta maneira, os mapeamentos que habitualmente circulam são o resultado do olhar que o po-der dominante recria sobre o território, produzindo representações hegemónicas funcionais nos termos do desenvolvimento do modelo capitalista, descodificando o território de maneira racional para enumerar e caracterizar os recursos naturais, as suas características populacionais e o tipo de produção mais eficaz para trans-formar em capital a força de trabalho e os recursos. Este olhar científico sobre o território, os bens comuns, e aqueles que o habitamos é completado através de outras técnicas que perscrutam o corpo social, como a videovigilância, as técnicas biométricas de identificação e as fórmulas estatísticas que interpretam situações e oferecem a informação que permite a execução de mecanismos biopolíticos orien-tados para organizar, dominar e disciplinar os que habitam um território.

149 Traduzido do espanhol por Miguel Serras Pereira.

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186 ALGUMASCONSIDERAçõESACERCADAPRáTICADOMAPEAMENTOCOLETIVO

Chamamos “mapeamento colectivo” à apropriação da técnica de mapea-mento a desenvolver em oficinas com a participação de estudantes, organizações de moradores, movimentos sociais, artistas, comunicadores, e de qualquer um de nós que se senta interpelado a pensar colectivamente o seu território. Em muitos lugares da nossa América Latina, a esta técnica chama-se “mapeamento partici-pativo”, denominação que não nos satisfaz completamente, porque consideramos que o “participativo” implica a reunião a qualquer coisa de pré-existente, ao passo que os mapeamentos colectivos se engendram durante o espaço de criação coope-rativa e são representações originais e particulares. Outros conceitos associados a esta modalidade de trabalho são: cartografia social / crítica / contra-cartografia / descartografia etc. – denominações, todas elas, que têm a sua justificação própria e que apresentam diferenças válidas e interessantes.

Desde o ano de 2008, organizamos oficinas de mapeamento colectivo (talleres de mapeo colectivo, TMC) juntamente com organizações políticas, mo-vimentos sociais e colectivos culturais, impulsionando um trabalho cooperativo em mapas e planos cartográficos a partir da concepção e da libertação de uma sé-rie de ferramentas que através da socialização de saberes não especializados e de experiências quotidianas dos participantes permitem compartilhar conhecimentos em vista da viabilização crítica das problemáticas mais prementes do território, identificando responsáveis, conexões e consequências. Este olhar amplia-se no processo de rememoração e sinalização de experiências e espaços de organização e de transformação, visando tecer redes de solidariedades e de afinidades. A partir do trabalho colectivo é construído um panorama complexo sobre o território, que permite distinguir prioridades e recursos quando chega o momento de se projecta-rem práticas transformadoras que em seguida adoptam diversos cursos de acção.

Os TMC potenciam a elaboração de narrativas colectivas críticas nas quais a reflexão a partir de um mapa permite articular processos de territoriali-zação. Os mapas funcionam como ferramentas que geram instâncias de trabalho colectivo e devem permitir a elaboração articulada de programas e narrativas que contestam e impugnam os estabelecidos a partir de diversas instâncias hegemó-nicas (não só políticas, sociais e institucionais, mas também as correspondentes à opinião pública e aos meios de comunicação de massa, bem como as associadas ao nível das crenças, decretos e formas do senso comum).

Assim, o mapeamento colectivo é um modo de elaboração e de criação que subverte o lugar de enunciação desafiando as narrativas dominantes sobre os territórios para transformar a invisibilidade de saberes, situações e comunidades em narrativas colectivas críticas. Quando falamos de território, estamos a aludir

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não só ao espaço que nos serve de suporte, mas também ao corpo social e às sub-jectividades rebeldes. Um dos desafios de trabalhar com mapas é a possibilidade de abrir um espaço de discussão e de criação que não se feche sobre si mesmo, mas que se posicione como um ponto de partida disponível para ser retomado por outros, um dispositivo apropriado que construa conhecimento, potenciando a organização e a elaboração de alternativas emancipatórias.

Não há requisitos nem condições exigidos para a participação nas ofici-nas, porque todos temos a capacidade de nos elevarmos acima do nosso território, operando um sobrevoo que, a partir da memória, nos permita reflectir e sinalizar diversas temáticas. Deste modo, a criação crítica activa-se a partir da conversa e da narrativa de experiências, conhecimentos e pareceres, potenciando a escuta, aguçando os sentidos e focando o trabalho sobre uma plataforma comum. Nas oficinas aprofundam-se as diferentes formas de compreender e sinalizar o espaço, pondo à disposição dos participantes vários tipos de linguagem – como símbolos, gráficos e ícones – que estimulam a criação de colagens, frases, desenhos, instru-ções, ao mesmo tempo que tudo isso favorece o desenvolvimento de modalidades de produção várias, que não obstruem a diversidade de olhares culturais, sociais e políticos dos participantes na oficina, mas que antes permitem a construção de um horizonte colectivo a partir do qual pensar e agir visando o bem comum.

Para o mapeamento colectivo poderão ser retomadas representações he-gemónicas (como um mapa cadastral com fronteiras pré-desenhadas), uma vez que será depois subvertidas no processo de socialização dos saberes, potenciando a visibilização dos diversos olhares que operam sobre o espaço. Se se dispuser de tempo para tanto, os mapas poderão também ser desenhados à mão jogando com as fronteiras e as formas; mas é importante esclarecer que o retomar de um mapa oficial é uma questão chave, por exemplo, em situações de reterritorialização empreendidas com comunidades de origem, nas quais a necessidade de sinalizar com exactidão a partir das fronteiras oficiais se torna premente no momento de usar essa informação como parte de uma exigência de reconhecimento territorial apresentada ao Estado nacional (o caso arquetípico é o processo que arrancou no começo dos anos 1990 no Brasil).

As oficinas integram uma instância de ‘pôr em comum’ que se torna fun-damental no momento de expor narrativas de grupo, de relevar diferenças e de constituir horizontes de abordagem e de compreensão. Todos tomam a palavra num processo de socialização e de identificação do comum em vista de um agir articu-lado. Assim, os TMC configuram-se como espaços de formação de comunidades temporais que permitem a elaboração de estratégias e de práticas orientadas para o

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conhecimento colectivo e a transformação social. As oficinas, tanto no seu processo de construção como no que se refere aos resultados, funcionam em primeira instân-cia como dinamizadores lúdicos que depois se autonomizam a partir da autogestão de desejos e de necessidades dos grupos, a fim de recriarem um protagonismo de desafio que se visibiliza na heterogeneidade das vozes colectivas participantes.

O mapeamento colectivo é uma ferramenta lúdico-política e não está isento de ambiguidades. É preciso ter em conta que o conhecimento crítico que surge das oficinas, se cair em mãos erradas, pode ser utilizado para vulnerabili-zar os direitos dos participantes. Por isso, se se decidir construir uma ferramenta comunicacional a partir do mapeamento e dar-lhe difusão pública, a informação incluída deverá ser objecto de um consenso prévio. Os mapas são criados a partir da multiplicidade dos participantes e devem adquirir a forma e os objectivos dos seus criadores, circulando a partir das necessidades, das narrativas e das inquieta-ções das comunidades, organizações e movimentos participantes.

Outro aspecto a considerar é que os mapas mostram um instantâneo do momento em que se realizaram e não repõem na sua completude uma realidade sempre problemática e complexa, mas transmitem antes uma determinada con-cepção colectiva sobre um território sempre dinâmico e em permanente mudança, onde as fronteiras (reais e simbólicas) adquirem um carácter relacional e fluido e são continuamente alteradas pela activação de corpos e subjectividades. Por isso, a elaboração de mapas deve fazer parte de um processo maior, constituir uma estratégia mais num processo de organização colectiva, ser um ‘meio para’ a re-flexão, a socialização de saberes e de práticas, o impulso à participação colectiva, o trabalho com subjectividades diversas, a disputa em espaços hegemónicos, entre outras possibilidades.

Em 2011, integrámos nos TMC o traçado de uma série de suportes grá-ficos que nos permitiram alargar o olhar a outros estratos que não correspondem exclusivamente ao espacial-geográfico. Chamamos-lhes “dispositivos múltiplos” (DM) porque consistem em mecanismos de reflexão e criação colectivas cuja con-cepção e maquetagem variam, e que vamos adaptando, modificando e aperfeiço-ando de acordo com as diversas modalidades do território e as preocupações de trabalho dos participantes na oficina. Alguns deles são:

■ Linhas de tempo e rugosidades: permitem a identificação e o relevar de factos significativos, personagens chave, políticas públicas e sublevações; através da utilização de símbolos, alegorias e signos que ilustram e acom-panham as precisões elucidativas. As rugosidades são trabalhadas na se-quência de um processo de construção de mapas críticos e de linhas de

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tempo, através de uma transparência que permite relevar colectivamente vínculos entre umas e outros, visibilizando conjunções, transformações e embates entre planos temporais (históricos) e espaciais (geográficos).

■ Representações discursivas: construção de planos hegemónicos associa-dos ao discurso dos meio de comunicação de massa, da publicidade e de ‘o que se diz na rua’, quer dizer, o nível do senso comum que impregna o social e se exprime nessas frases e comentários naturalizados.

■ Constelações: colocação de transparentes sobre as cartografias ou os dispositivos múltiplos para assinalar as resistências e os processos de transformação e de mudança através da utilização de cartões coloridos com diversas formas. O que potencia a criação de ‘imaginários’ onde adquirem protagonismo as diversas subjectividades permitindo pensar os símbolos e os protagonistas da nossa história assumidos pelas identida-des rebeldes.

■ Deriva urbana com instruções: realização de percursos em pequenos gru-pos e intervenção durante o trajecto: Mapeamento em movimento (mar-cando lugares, situações, experiências, momentos etc., segundo um eixo temático) e fotografias panorâmicas (capturando paisagens urbanas que complexifiquem e articulem diversas problemáticas associadas).

■ A cidade e os sentidos: intervenção individual sobre um mapa, identifi-cando as zonas ou os lugares de trânsito quotidiano pela cidade e pondo em jogo a memória afectiva que afina os sentidos de modo a intervir através de ícones no que se escuta, sente, cheira, vivencia ou percebe; identificando lugares, instituições, momentos; o que de significativo dá prazer ou causa mal-estar.

■ Paisagens reveladoras: criação de uma colagem fotográfica em vista da construção de panoramas urbanos que ponham em evidência uma varieda-de de problemáticas complexas e associadas. Intervenção posterior sobre a imagem através da inscrição de detalhes que situam, ampliam ou refe-renciam a paisagem detectando responsáveis, causas, a situação actual etc.

■ Corpo/Disciplina, imposição e controle: sinalização operada sobre fi-guras humanas visando identificar o modelo e o impacto dos discursos, situação e instituições hegemónicas; considerando os dispositivos urba-nos de controle (câmaras, radares), as instituições disciplinares (trabalho, hospital, escola), a violência (polícia, segurança privada), as imposições sociais, as frases publicitárias, as enfermidades físicas, a incorporação de novas tecnologias como próteses de identidade ou de personalidade etc.

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A utilização de DM facilita e potencia o exercício de revelação colectiva focado sobre diversas temáticas e problemáticas referidas a um território particu-lar. A configuração destes dispositivos surge muitas vezes do improviso que se promove no espaço da oficina e que activa a experimentação de recursos a partir das particularidades subjectivas dos participantes. Estes mecanismos geram um sistema de socialização da informação e das experiências sustentado por uma co-municação dialógica que estimula a participação e põe em cena um olhar crítico e alerta sobre o acontecer naturalizado.

O mapa não é o território

Alfred Korzybsky (aristocrata polaco e fundador da semântica geral) cunhou a frase que figura como título deste texto a partir da sua experiência como oficial na Primeira Grande Guerra, na ocasião em que dirigiu uma ofensiva desas-trosa durante a qual os soldados que comandava acabaram por cair numa vala que não aparecia no mapa. Gregory Bateson (antropólogo e linguista norte-america-no) completou esta frase com a precisão “e o nome não é a coisa nomeada”. O que os dois autores tentavam exprimir é a impossibilidade de objectivar as dimensões significativas e afectivas dos espaços e das representações linguísticas.

O vínculo com o território consolida-se a partir de processos de inter-pretação, de sensação e de experiências próprias. Os mapas não são o território porque lhes escapa a subjectividade dos processos territoriais, as representações simbólicas e os imaginários que se lhes referem, e a mutabilidade permanente e a mudança a que estão expostos. Somos nós, as pessoas, que realmente criamos e transformamos os territórios, e não há uma mimese entre a materialidade espacial dos mapas e a percepção imaginária sobre o território, porque este é uma constru-ção colectiva, moldado a partir das formas subjectivas do habitar, do transitar, do perceber, do criar e do transformar.

Entendemos que as sociedades actuais são marcadas por uma precariza-ção da existência que penetra a vida em múltiplos aspectos: atravessando a con-figuração urbana como um farol de vigilância, quebrando os laços sociais através da retórica do medo, minando os direitos sociais mais básicos nas instituições pú-blicas, tornando no imaginário colectivo carne a violência simbólica, degradando a experiência do comum e obturando as formas perceptivas no abismo da ansieda-de. É por isso que através das oficinas de mapeamento colectivo e de dispositivos múltiplos procuramos recriar colectivamente panoramas complexos que aprofun-dem os olhares críticos e potenciem subjectividades alertadas e emancipatórias, imprescindíveis para a protecção dos bens comuns contra o saque e a depredação,

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para a luta contra os processos de colonização e privatização do público, e para a constituição de novos mundos.

Sabemos que partimos de um limite ao trabalhar com mapas, uma vez que estamos a tentar recortar um olhar sobre realidades que não são estáticas, mas se encontram em permanente mudança. É por isso que adicionamos aos planos cartográficos a concepção de dispositivos múltiplos que sinalizem fluxos, proces-sos, conexões, planos subjectivos, plataformas corporais etc., incluindo modos de expressão e de representação populares, simbólicos, e de forte presença ima-ginativa. Estas ferramentas não produzem transformações por si mesmas, mas articulam-se num processo de organização e de prática colectiva complexo e pro-fundo que é potenciado a partir do trabalho cooperativo nestes suportes gráficos.

Trabalhamos a partir do território para potenciar os laços de solidarie-dade e de acção comum. Às experiências das oficinas somam-se as derivas im-pensadas adquiridas pelos recursos, metodologias e dinâmicas socializados, que são retomados pelos participantes promovendo formas de autogestão em espaços próprios. As oficinas estimulam a criação de novas territorialidades, recriam es-paços vividos críticos, desvelando sentidos impostos e paisagens hegemónicas, que estimulam a intervenção e o protagonismo na mudança. Assim, os processos de territorialização intervêm no espaço e no tempo, alteram as imagens naturali-zadas, contestam a conformidade da interiorização das narrativas hegemónicas, e trabalham a partir do passado como forma de potenciar uma memória colectiva que recuse o discurso oficial.

Iconoclasistas é um duo formado em 2006 por Pablo Ares (artista, animador de filme, cartoonista e designer gráfico) e Julia Risler (professora e investigadora da Universidade de Buenos Aires/UBA). Seus trabalhos combinam o trabalho arte gráfica, oficinas criativas e pesquisa colaborativa. Todas as produções são difundidas na web por meio de licenças creative commons, para promover a socialização e estimular a sua apropriação e uso de derivado. Publi-caram recursos gráficos e visuais que abordam vários problemas sociais, que foram impressos e distribuídos em jornais e revistas de todo o mundo. Desde o ano de 2008, começaram a rea-lizar oficinas de mapeamento coletivo com o objectivo de potenciar a comunicação, o tecido de solidariedade e de redes de afinidade, e impulsionar práticas colaborativas de resistência e transformação. A sua prática estende-se e através de uma rede dinâmica de afinidade e solida-riedade construída a partir da partilha e realização de oficinas na América Latina e na Europa. Neste enredo político e emocional foram surgindo exposições itinerantes, novos recursos lúdi-cos e a participação em encontros com organizações culturais e movimentos sociais. Em 2013, eles publicaram o livro Manual de mapeamento coletivo. Recursos cartográficos críticos para processos territoriais de criação colaborativa, onde sistematizaram metodologias, recursos e dinâmicas para a organização de workshops. http://www.iconoclasistas.net

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LUGARCOMUMNº41,pp.195-

Odesejodomotoristadeônibus:esquizofrenia e paranoia situadas

Jésio ZamboniMaria Elizabeth Barros de Barros

Donde partimos: primeira marcha em terminal

Podemos dizer, com Yves Clot, a partir de Espinosa (1677/1983), que “ninguém conhece, de antemão os afetos e os conceitos de que é capaz. Trata-se de uma questão de experimentação bem longa” (CLOT, 2008/2010). Em nosso método – trajeto, percurso – de pesquisa, procuramos assumir essa proposição em sua radicalidade. Tratamos de criar meios para uma experimentação, que se compõe como uma paisagem, de maneira a fazer a experiência durar e consistir. Diante de pesquisas cujos métodos estão bastante estruturados, antecipando o per-curso, exceto o que se pretende descobrir dentro de um pequeno leque de alterna-tivas preestabelecidas, visando mais poder de previsão, propomo-nos assumir o risco, costumeiramente evitado, de não saber onde vai dar exatamente a pesquisa em suas possibilidades. Trata-se de criar condições para a invenção de focos de possíveis na produção de conhecimento para além dos já reconhecidos.

Assumimos riscos e não poucos. Muitas vezes, vimo-nos diante do fra-casso nesses trajetos. Mas eis aí, exatamente, o que buscávamos: inexatidões para não conjurar a vida em seus processos criativos, construtivos, inesperados. Enca-rar a possibilidade de fracasso, o desmanchar dos sentidos estabelecidos na ati-vidade, e desmantelar as finalidades consideradas últimas, encarando suas emer-gências situadas na história, torna-se um princípio ético, estético e político a nos provocar vertigens na construção do caminho.

Esse princípio vertiginoso convoca-nos à política, ou seja, à lida com os dispositivos de pesquisa, que inventamos usar junto com os motoristas de ônibus coletivo urbano da Grande Vitória (GV-ES), como construídos no campo social, compostos de forças diversas em conflito, de relações de poder entre essas forças, implicando sujeições e resistências, mortificações e criações. Em sua dimensão es-tética, o dispositivo de pesquisa assume-se como máquina, produzida e produtora, invento e invenção, lançada em movimentos de criação diante dos quais pode-se colocar como constrangimento ou como meio, numa experimentação sem garan-

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tias últimas. Exatamente por não haver um baluarte como modelo a priori a apoiar o método, um caminho verdadeiro a assegurar nosso empreendimento e dar-lhe a ilusão de uma referência inquestionável, é que se trata, também e antes de tudo, de ética na pesquisa. A ética, aqui, não é a tentativa de seguir a regra moral, mas o pro-cesso de produção da norma, visando tornar-lhe meio em vez de coação.

Propomos, nessa linha de nosso trabalho, percorrer o itinerário da pes-quisa, o método. Mas, não primaremos por apresentar justificações, nem apa-relhos autorizados, coisas que, em geral, se encontra nos trabalhos de pesquisa acadêmicos. Vamos relatar algo do percurso real, com seus desvios, recuos, impasses, fugas, buscando promover um diálogo com os possíveis passageiros que embarquem na malha viária que compomos em pesquisa. Primando pelo percurso real, procura-se sustentar os dilemas, controvérsias e conflitos com os quais nos deparamos, pela invenção de saídas, ao construirmos problemas para prosseguir nossa viagem.

A abordagem do desenvolvimento da nossa atividade de pesquisa – buscando quebrar o impasse dicotômico entre abordagem objetiva ou subjeti-va – torna-se possível por meios indiretos. “Aceitando reconhecer a fragilidade intrínseca de qualquer tentativa de abordar diretamente o real da atividade deve--se, pois, prestar uma atenção minuciosa à maneira de alcançar tal objetivo por “meios deslocados”” (CLOT, 2008/2010, grifo do autor). Essa formulação, que consideramos em nosso trabalho acerca da atividade do motorista, vale obvia-mente também para a atividade de pesquisa. Desse modo, inventamos “meios deslocados” para abordar tais desenvolvimentos. Não se trata de um relato que possa corresponder ao realizado da pesquisa, mas de abordar os dilemas, tra-zendo à cena os problemas com o quais nos deparamos em trechos diversos do trabalho. Desse modo, discutiremos conceitos e problemas que, direta ou indi-retamente, perpassavam as conversas com motoristas, além de abordar os dis-positivos que fomos inventando durante o processo de pesquisa – nunca a partir do nada, mas rejeitando a tentativa de mera aplicação exata de dispositivos dos quais dispomos.

Dispersões a princípios: segunda marcha em ruas

Propomos desenvolver uma conversa entre duas caixas de ferramentas clínicas distintas, a clínica da atividade e a esquizoanálise. A clínica da ativida-de vem sendo desenvolvida desde os anos 1990, especialmente por Yves Clot (1999/2006a; 2008/2010), junto com diversos outros pesquisadores na França e em outros países, como o Brasil, no sentido de ampliar o poder de agir dos tra-

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balhadores. A esquizoanálise é uma experimentação, feita por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972-1973/2010), de análise do desejo no campo social, referindo--se, especialmente, aos grupos minoritários e visando transformações sociais. A esquizoanálise e a clínica da atividade vêm se desenvolvendo de modo bastante expressivo no Brasil, encontrando aqui terreno fértil para seus desdobramentos e usos variados.

Desenvolver uma clínica esquizoanalítica da atividade entre os motoris-tas de ônibus, pelas análises que já acontecem de vários modos entre eles, como criação de possibilidades e sustentação dos paradoxos no trabalho, torna-se nosso trajeto de pesquisa na medida em que nos encontramos com os motoristas por en-trecruzamentos e velocidades vários. Mas este modo de formular nosso trabalho não se encontra desde o início pré-arranjado. Os encontros, em seus modos de conversação próprios, incitam à escrita de pequenos paradoxos que se presenti-ficam nas conversas e que são as vias percorridas pelos motoristas no seu fazer cotidiano. Estes paradoxos possibilitam desenvolver as situações produzidas pelo trabalho de transporte coletivo urbano e trazidas à baila no contato entre motoris-tas e pesquisadores. Não buscam ser o retrato fiel do que os motoristas entendem do seu próprio trabalho, são interpretações oscilantes que se produzem pelos en-contros, que se colocam no meio da conversa, deslocando-se pela conversação. Entre um polo mediocrizante de busca da verdade do que dizem e vivem e um pólo afirmador da invenção cotidiana pela atividade de trabalho, conversamos. Trata-se da maquinação dos meios de fazer pesquisa, de operar intervenções, de inventar saídas aos impasses do cotidiano de trabalho.

Os motoristas se dispõem a conversações por várias vias. As conversas quase sempre são propostas por eles acontecerem em seus próprios locais de tra-balho, seja nas salas dos rodoviários nos terminais de ônibus, seja em algum can-to do próprio terminal onde se desenrolam conversas entre pequenos bandos de motoristas, seja no próprio ônibus durante uma viagem qualquer. Algumas vezes, entretanto, a conversa acontece em casa do motorista, casa do pesquisador, con-sultório psicológico, universidade pública, local de outro trabalho do motorista. Mas, primordialmente, os convites são para que o clínico habite com eles os locais de trabalho do motorista de ônibus. Isto nos indica que para conhecer o traba-lho do motorista é fundamental estar junto – apesar da organização do trabalho predominantemente demarcar o motorista como funcionando essencialmente em relação à máquina mecânica e ao trânsito com suas regras a seguir, em detrimento de outras dimensões relacionais. Ao nos dispormos às conversações por essas ma-neiras, não é caso tão somente de seguirmos indicações da psicologia do trabalho

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situada, que convoca o pesquisador a estar no ambiente do trabalho em questão, mas de, principalmente, atender a uma convocação dos trabalhadores em questão.

Cabe pontuar que nosso trabalho se desenvolve no sentido, para o qual aponta Clot (1999/2006a) com a clínica da atividade, de uma pesquisa ação – pro-posta por Kurt Lewin –, em que o pesquisador é considerado como um elemento de estruturação do campo social em pesquisa, não podendo sustentar-se uma posi-ção de neutralidade em relação ao objeto de estudo. Preferimos, ainda, desenvol-ver tal posição, a partir da análise institucional, em que se situa a esquizoanálise, como uma pesquisa-intervenção. Trata-se assim de não tomar essa estruturação do campo – em que o pesquisador não pode ser considerado como um elemento transcendente, cujas interferências deveriam poder ser neutralizadas – fora da his-tória, do plano das relações coletivas em construção pelas instituições. As forças sociais que constituem o meio analítico extrapolam seus limites e percorrem o corpo coletivo. Em pesquisa intervenção, o caso é perturbar a separação, que ain-da assedia a pesquisa ação, entre política e pesquisa (ROCHA; AGUIAR, 2003).

A antiga proposta lewiniana vem sendo ressignificada à luz do pensa-mento institucionalista: trata-se, agora, não de uma metodologia com justificati-vas epistemológicas, e sim de um dispositivo de intervenção no qual se afirme o ato político que toda investigação constitui. Isso porque na pesquisa-intervenção acentua-se todo o tempo o vínculo entre a gênese teórica e a gênese social dos conceitos, o que é negado implícita ou explicitamente nas versões positivistas “tecnológicas” de pesquisa. E se é certo que também surgem novos modelos, ou paradigmas, com base na pesquisa-ação, é certo também que estes se distanciam cada vez mais dos “neutralismos” e “artificialismos”. Passando pela inspiração da clínica e da antropologia, aproximam-se, isto sim, dos movimentos políticos: o pesquisador torna-se, nessa perspectiva, um dispositivo que tenta dar voz ao acontecimento político, ao experimento social. (RODRIGUES; SOUZA, 1991)

Em clínica da atividade, a pesquisa-ação desenvolve-se pela invenção de dispositivos clínicos, de maneira que a dimensão política não seja escamoteada e a perspectiva de intervenção se acentue. A transformação dos meios de trabalho com o protagonismo dos trabalhadores, associada à construção de uma “outra psicologia do trabalho”, é o projeto em que se engajam os clínicos da atividade junto com outros trabalhadores. Desse modo, Clot (1999/2006a) acaba por indicar um desenvolvimento radical da pesquisa-ação; que aqui buscamos formular como pesquisa-intervenção, a partir do horizonte que desenhamos junto com os clínicos da atividade e com os trabalhadores com quem nos encontramos.

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[...] para mim, o objetivo do conhecimento científico é como um mecanismo para o desenvolvimento da ação, agimos para transformar a situação. Mais especificamente, nós estudamos como a ação se desenvolve, esse é um verdadei-ro problema científico, que nós desenvolvemos com a abordagem vigotskiana sobre o estudo do desenvolvimento; a ação é objeto científico e é a ação que transforma a situação, com os operadores, os trabalhadores. A pesquisa é um meio para transformar, não é a pesquisa-ação. Nessa situação nós temos os instrumentos para desenvolver a capacidade de agir dos operadores. (CLOT, 2006b).

Sendo assim, a pesquisa se constrói junto com os motoristas, em seus movimentos de luta social pelo próprio trabalho. Aqui, então, cabe destacar um problema experimentado pelos motoristas em sua atividade própria de trabalho e que atravessou nossos encontros e conversas constituindo um problema próprio à nossa pesquisa intervenção. Vimo-nos em meio aos incômodos dos motoristas diante dos gravadores de áudio e vídeo levados para registrar as conversas com o pesquisador e decidimos, em quase todas as conversas com motoristas, abandonar estes recursos. Na organização do trabalho de transporte coletivo urbano, essas documentações têm funcionando hegemônicamente em sistemas de vigilância, como registro de histórico individual, para punições. O dispositivo da pesquisa torna-se um meio indireto de se viver e transformar a experiência problemática.

Nossas intervenções, constituindo-se por paradoxos que tratávamos de espalhar entre os diversos motoristas com quem conversávamos dispersivamente, sem nunca encontrarmo-nos todos numa mesma reunião, surgiram das conversa-ções que os motoristas já engajam no cotidiano laboral. Ao evocarem situações de trabalho para discutirmos, formulavam em algum enunciado curto, intenso, rápido e rasteiro, as complexas problemáticas que se configuravam como focos de produção da atividade. Isso nos inspirou a construir de modo indireto as for-mulações paradoxais que os motoristas enunciavam em situação dialógica, mas que estávamos impossibilitados de registrar, seja por gravação de áudio, vídeo ou mesmo transcrição simultânea.

Experienciávamos, assim, conversas em bandos ocasionais e fragmen-tários, a convite dos motoristas, que dispunham a pesquisa num ritmo aberto às variações do meio. Os motoristas participam, portanto, da construção das próprias disposições clínicas, do dispositivo da pesquisa. Conversar em muitos, em grupos abertos em que outros pudessem chegar junto e partir quando precisassem, forjou--se como dispositivo para a pesquisa que se construía junto com os motoristas. Assim, tínhamos conversas em que motoristas iam e vinham, podendo voltar ou

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não, prosseguindo as conversas ou não, habitando a pesquisa como passageiros que são, mas também conduzindo-as como seu motor.

Nossas conversas com motoristas acabam por nunca conter a atividade de motorista como se ela fosse isolável de outras atividades em outros meios de produção da existência coletiva, tais como a família, a turma do futebol, os ami-gos, a vizinhança, a igreja. As conversações promovem esses cruzamentos que se marcam em cenas de um movimento vertiginoso, os paradoxos do motor. O motor não é apenas mecânico, nem na mecânica das máquinas metálicas nem na das relações sociais; não é apenas o ônibus automóvel em seu arranjo metálico e plástico – aqui é preciso quebrar nosso modo de pensar a máquina em oposição à vida e, mais ainda, ao humano (GUATTARI, 1993/2003). O motor cruza a cidade, produzindo circulação, por agenciamentos diversos, entre motorista e ônibus e passageiros e trânsito e ruas e... e... e...

Nesse sentido, em clínica da atividade, se é sempre levado, no limite, a considerações éticas, estéticas e políticas a partir da análise da atividade produtiva em meios de trabalho situados. Em nossa atividade de pesquisa, também somos levados a questionamentos que atravessam as situações sem lhes perder a referên-cia. Trata-se de possibilitar expandir-lhes o alcance de problematização por uma linha abstrata, que atravessa diversos casos variantes por um problema comum, mas que nem por isso perde sua consistência e concretude próprias. É por aí que se produz algo que nos possibilita conversar, entre os problemas de controle, vigi-lância e punição no trabalho do motorista e os problemas com os dispositivos de registro no trabalho do pesquisador.

Em nosso trajeto de pesquisa, as interferências dos motoristas nos modos e dispositivos de pesquisa são cruciais e são tomadas por nós como índices de consistência da produção do conhecimento. Uma pesquisa que queira se mostrar inabalável diante dos imprevistos – e pensamos, por isso, a mais frágil e quebra-diça – e como mera aplicação de passos predefinidos não produz conhecimento, apenas procura reconhecer a partir de um conjunto de problemas já colocados um estado de coisas como evidências. É pela perspectiva da produção – cria-ção, invenção – que nosso trabalho de pesquisa tramita. A pesquisa é um traçado de encaminhamentos, de caminhos que nos conduzem até aqui se desfazendo e de caminhos desviantes a esses traçados que se desmancham. Caminhos, rotas, itinerários, antes que projeto: trajeto. O caminho se traça na vida, antes que se desenhem projetos de transporte, de itinerários de ônibus, em meio ao que se faz é o que nos interessa.

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Paradoxo dos nomes riscados: para poder frear no caminho

Hoje eu tive medo. Tive medo de saberem meu nome. Saberem meu nome não porque... É que saber meu nome é um meio eficaz de impedir os cru-zamentos entre situações que se vive, entre problemas que se entretecem com-pondo toda essa vida. É justo ali, onde se escreve meu nome, que se cruzam os problemas familiares, minhas relações com os amigos, com os companheiros de trabalho, com os passageiros, com os conhecidos. E ali onde não se localiza o meu nome é cruzamento. Mas apaga isso daí, seja onde for, seja em seu caderno de en-trevistador, seja nos arquivos de advertência da empresa. Pois aí vai durar muito tempo, ou ainda antes, impedir que algo dure no que faço. Risca, apaga. Porque essa memória é de esquecer, esse nome é passagem, meio, não dá para estacionar aí, é preciso correr, seguir, desviar, cumprir o trajeto afirmando o movimento. Mas, olha, apaga mesmo o meu nome daí...

Desejo no motor: esquizofrenia e paranoia situadas

Experimentamos no processo de pesquisa clínico da atividade do moto-rista de ônibus do transporte coletivo urbano da GV-ES, o paradoxo dos nomes riscados. Esse paradoxo se constitui como analisador que se configura nos grava-dores de áudio, nas câmeras de vídeo, nos cadernos de anotações de depoimentos, desde a situação de pesquisa. Esse analisador remete também imediatamente às câmeras de vídeo instaladas nos ônibus e terminais de ônibus, aos fiscais secretos – que assediam os motoristas em seu trabalho como vigilantes invisíveis alojando a suspeita no coração do motor –, ao sistema de reclamações do passageiro con-sumidor de transporte atrelado ao registro dos incidentes justificando punições extraoficiais por parte da empresa. Mas, por entre essas duas atividades como campos de práticas dispersas, como se expressa no paradoxo, cruzam-se as múlti-plas linhas que se percorrem e cruzam vida afora.

Deleuze e Guattari (1972-1973/2010) formulam – pela esquizoanálise, que aborda a produção desejante no campo social a partir da experiência da lou-cura no contexto do capitalismo – que o desejo oscila entre dois polos, como num imã, entre graus de intensidade, antes que como oposição. Há no desejo um polo esquizofrênico, fragmentário, passeante, flexível, arrastando em si as mais diversas forças e matérias, e um polo paranoico, integrador, atento, discriminador, remetendo a si a função da circulação numa totalidade como circuito fechado. Es-ses polos não se confundem com as entidades psicológicas diagnósticas, a esqui-zofrenia e a paranoia, como estruturas ou estados de um indivíduo. São antes estas categorias diagnósticas que excluem o processo esquizofrênico e paranóico da

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produção social ao encerrá-lo em indivíduos, tentando apaziguar nossos eus, ra-cionalizados e neurotizados, da discrepância, do absurdo, do irracional, da contra-dição. Cabe afirmar o processo esquizofrênico-paranóico no desejo em circulação no campo social, na produção desejante de modos de vida. Com os motoristas, essa polaridade do desejo se constrói por um meio coletivo próprio, de tal modo que o desejo do motorista entre processos paranóicos e esquizofrênicos passa por múltiplos graus de intensidade na produção do transporte coletivo, considerando seus impasses e possibilidades de saídas.

O polo esquizofrênico em meio aos motoristas funciona por um certo modo de tratar o trabalho de maneira fragmentária. Incitados a conversar sobre a sua atividade de motorista, são sempre situações, pedaços de trabalho, parcialidades que entram em cena e ganham imagem, movimento e corpo. Fragmentos que se entrecortam uns aos outros, trazendo à baila e fazendo circular elementos e forças que não cabem no trabalho definido de uma vez por todas pela organização. Os pequenos fragmentos de situações se misturam nas conversas, formando um amál-gama de perspectivas que desenham um percurso coletivo de intensidades variadas.

São sempre pequenos grupos, em constante variação, um entra e sai de gente na conversa. A assepsia da clínica não se sustenta de modo algum, nem com todos os esforços pautados num ideal de gabinete. Eles sempre propõem a conversa em espaço circulante, propício a encontro com outros motoristas, outras pessoas, outras situações. Em meio às conversas, sempre chegam outras histórias, outros pedaços de vida no trabalho, que passam com os motoristas que se vão, mas que desse modo podem circular ali, pois nos marcam ao compartilhar conos-co alguma situação, algum pedaço de experiência rico em sensações, imagens, ideias, palavras.

Sempre pequenas formações grupais instáveis. Um motorista aproxima--se de nosso pequeno grupo, de dois ou três em conversa, traz uma situação a um, a outro, ou a todos, e acabamos por discutir aquela situação que se faz problema comum. O motorista que pega um ônibus para começar o dia de trabalho ou para terminá-lo conversa com o motorista do ônibus em que viaja agora como passa-geiro. O motorista, além de ser “um primeiro passageiro” (ZAMBONI; BAR-ROS, 2012b), é também o último passageiro. Nos escassos tempos de descanso entre viagens, sempre a conversa com um bando que se forma ali, sem planejar, sem encontro marcado, mas sempre em vias de acontecer. Encontro que se esvai à medida que urge circular, encontro que paradoxalmente se intensifica por se abrir a essa urgência de algo inesperado no próprio ordinário do trabalho. Um passageiro que pede informação, uma conversa com o fiscal. Esses encontros não

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exigem uma forma grupo, mas um processo grupal, uma disposição coletiva, an-tes que o estabelecimento de um conjunto definido (BARROS, 2007; CÉSAR, 2008; CÉSAR; ZAMBONI, 2008). Os motoristas também são passageiros em suas conversas e encontros uns com os outros. Por isso podem sustentar esse plano de potência do encontro, de afirmação da amizade como laço mais abstrato possível, mais concreto possível, situado na transversal.

Noutro polo, o processo paranóico da atividade do motorista de ônibus. A hegemônica tecnologia da vigilância, que vai do fiscal secreto, que fiscaliza sem ser fiscal profissional ou sem função explícita de trabalho, constante no séc. XX, ao fiscal obsceno das câmeras dentro do ônibus direcionadas ao motorista, ao trocador e à rua em constante gravação da sua atividade, despontando já nos co-meços do séc. XXI. Contudo, a máquina de controle não funciona apenas pelas tecnologias de videogravação acopladas ao ônibus e aos outros espaços de traba-lho do motorista – terminais, empresas, vias.

Os passageiros ligam para reclamar da atividade dos motoristas e promo-vem-se advertências pelas irregularidades no trabalho. Realiza-se todo um pro-cesso em modelo jurídico de apuração dos fatos em função da reclamação. Não, não é isto – dizem os motoristas. O inquérito não tem sentido de averiguação. Ele funciona como um chamado à atenção individual, um esporro gerencial visando à reprodução das normas, por conta da falha no ideal de não reclamação. Nisso, mesmo os colegas de trabalho por vezes se denunciam entre si, uma vez que as normatizações se (re)produzem e pela atividade do motorista, insistindo como bloqueio a ser rompido no próprio plano de produção do transporte. É, então, a partir da própria atividade que se podem produzir outras normatizações e valores coletivos de produção do transporte na cidade. Tal perspectiva visa à invenção de saídas ao impasse paranóico.

Por fim, registram-se nos arquivos da empresa toda e qualquer reclama-ção feita ao motorista. E é isso que fica, é isso que marca a história oficial do motorista na empresa. Monta-se um sistema de memória de todos os erros de cada motorista individualmente. Esse sistema organiza cada ação da empresa em relação ao funcionário, num procedimento aberto às diversas variáveis e condi-ções que a organização do trabalho enfrente: ausência ou excesso de funcionários, privilégios a conceder, estratégias de instauração de subordinação dos focos de autonomia dos trabalhadores. As punições extraoficiais, bem como favorecimen-tos individuais, são justificadas pelas empresas por meio das reclamações de pas-sageiros. Produz-se assim um ordenamento do desejo pela organização, pautado no controle aberto.

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Não é à toa que um dos motoristas com quem conversamos assinala, ao nos contar a história de como salvou com um pulo o jovem que queria saltar em suicídio, que “esse fato se encontra registrado nos arquivos da administradora da terceira ponte” (informação oral). Eis aí um desvio no sentido de registro, a afirmação de uma outra modalidade de arquivo, que não guarde as reclamações transcendentes às situações de trabalho, mas os acontecimentos que compõem a atividade do motorista para além do prescrito. Entre os motoristas, essa ou-tra memória se faz pelo conhecimento mútuo bastante impressionante entre eles. Trata-se de um meio profissional em que os trabalhadores desenvolvem, rápida e intensamente, um saber acerca dos colegas de trabalho em função da convivência dispersiva numa malha viária de relações profissionais.

Não há, portanto, uma paranoia nem uma esquizofrenia essenciais como substância individual aos sujeitos. Os processos esquizofrênico-paranóicos não nascem nos indivíduos – em suas mentes ou cérebros isolados do meio produtivo. São funcionamentos e circulações desejantes no campo social, oscilações que se passam nas relações. Há processos que se desenrolam e se afirmam em linhas móveis e tensionantes entre essas polaridades. Não há dicotomia, binarismo, nem maniqueísmo, a priori. Não é um ou outro: é um e outro em conflito, em tensão problemática. Paranoia e esquizofrenia no trabalho do motorista de ônibus coleti-vo urbano constituem o desejo deste trabalhador em passagens.

O desejo do motorista de ônibus é a produção de uma máquina, de meios de funcionar, de modos de existência coletivos. É fazer correr o fluxo abstrato que percorre o campo social funcionando em circulação, pela atividade do motoris-ta, num meio próprio, situado, singularizante. Esse signo de uma multiplicidade de passagens e passageiros, esse primeiro a cruzar a cidade, o motorista, arrasta consigo diversas matérias procedentes da produção social heterogenética. Dese-jo do motorista é circulação de circulação, produção de produção. Não se trata de um sujeito que deseja um objeto, instâncias mutuamente excludentes entre si (DELEUZE, 1994-1995/2001). O que está em questão na atividade do motorista é como se produzem certos modos de circulação, jeitos de produzir e pôr a fun-cionar a vida em transporte, maneiras de desejar no que se agencia com outras matérias e forças, produzindo incessantemente mundos diversos como possibili-dades de existência.

Esse desejo em circuito fechado sobre si mesmo circula, também, na atividade do motorista de ônibus coletivo urbano, como um desejo paranóico que produz e põe a funcionar um sistema de perseguição, suspeita, vigilância, produzindo eus, individualidades, em função da defesa e do medo, seja o eu in-

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divíduo trabalhador, seja o eu indivíduo categoria profissional. Pinto (2001) e Caiafa (2002) destacam esses aspectos de suspeitas e vigilâncias como críticos na produção de subjetividade entre os motoristas de ônibus. Em nossas conversas, a relutância acerca da gravação de áudio, o medo constante da identificação, a sus-peita ininterrupta sobre com quem está se falando, a recusa imediata à produção de vídeo como dispositivo de análise da atividade, são cenas em que pungem essa disposição paranóica do desejo do motorista.

Com o fiscal secreto, a vigilância sobre si e sobre os outros, desperta diante dos sinais de suspeita, variando continuamente em função de uma análise dos riscos de desvio para realizar o que há a ser feito no trabalho, assumindo o perigo de ser flagrado. Com o fiscal obsceno incorporado na câmera de vídeo, esta vigilância sobre si e sobre os outros, ganha uma materialidade ininterrupta, próxima do invariável e do controle total. Com o fiscal secreto, poder-se dizer que a paranoia mais “na cabeça” do motorista, cabendo a ele avaliar e fazer a gestão dos riscos no cotidiano de trabalho. Por sua vez, com as câmeras de vigilância no interior do ônibus, poder-se-ia argumentar que a subjetividade do meio é investida diretamente pelas estratégias de controle, que não se limitam mais à subjetividade pessoalizada no trabalhador. As tecnologias disciplinares desenvolvem-se assim como tecnologias de controle. “O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem” (DELEUZE, 1993/1997).

Contudo, “não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições” (DELEUZE, 1990/1992). De qualquer modo, a atividade do motorista de ônibus só pode prosseguir inventando meios de escapar nessas novas situações, encaran-do o ressentido desejo de dominar em suas mutações. É nas situações de trabalho, as mais parciais e fragmentárias possíveis, que se enfrentam os problemas mais abstratos, mais longínquos, mais transversais. Essa é a maneira de transformar o trabalho, por desvirtuação da separação entre local e global (GUATTARI; ROL-NIK, 1986/2008), ao enfrentar as questões mais ínfimas do trabalho como estra-tégias de poder na produção de subjetividade pelo coração da atividade produti-va. Trata-se de saber que os problemas da sociedade de controle, do capitalismo mundial integrado, das crises econômicas e políticas, do subdesenvolvimento e da fome, constituem nossos problemas familiares, de amizade, de amor, de ódio: nossos primeiros e principais problemas.

Numa conversa com certo número variável de motoristas em um terminal de ônibus, peço para poder gravar o áudio de nossas conversas. Um deles reluta

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em consentir, mas aceita. Após cinco minutos de gravação, em que ele já fala bas-tante do trabalho, se dispondo a “falar a verdade” sobre o trabalho, a se abrir fran-camente para a conversa, pede para desligar o gravador – o que faço prontamente. Começo então a anotar em um caderno trechos de falas de nossa conversa. Anoto os nomes dos motoristas com quem converso. O motorista logo pede que risque o nome dele dali – o que faço prontamente, mais uma vez. Desisto do caderno, portanto, e fico na conversa. Ao final, o motorista ainda me pede mais uma vez que apague o nome dele do caderno, mesmo riscado.

Cabe marcar – e se configura como uma questão crucial no jogo da po-laridade desejante entre paranoia e esquizofrenia na atividade do motorista de ônibus coletivo urbano – que não se trata de uma disjunção exclusiva, de um ma-niqueísmo trabalhista, em que o foco do problema seria encontrar os trapaceiros delatores e vangloriar os bons colegas. Para além das individualizações que se afiguram aos nossos olhos e sentidos, há um processo de produção desses modos pessoais e coletivos de conduta no trabalho. São os próprios encontros e conver-sas fragmentárias e fortuitas que criam condições de emergência das conflitivas do trabalho pelas figuras do fiscal secreto, ele também fragmentário – pode ser qualquer um; pode pegar qualquer coisa que se fale, qualquer gesto – e fortuito – aparece quando menos se espera, onde se distrai. Sendo assim, pode-se dizer que os bandos fragmentários e dispersivos de motoristas em conversações constituem um modo de luta e resistência pelo desenvolvimento da própria atividade de traba-lho diante das estratégias de poder na organização do trabalho baseada na gestão por vigilância e controle.

O funcionamento paranóico no trabalho, desse modo, precisa sempre ser remetido aos modos de produção do transporte coletivo entre os motoristas e seus parceiros de trabalho. Não é primeiramente intrassubjetivo, nem intersub-jetivo. Esse funcionamento se apresenta em paradoxos que permeiam os modos de produzir o transporte coletivo urbano, compondo-os por meio de problemas que situam séries de impasses e saídas no corpo social situado, num ponto de interferência pela atividade de trabalho. Tal ponto é a possibilidade de se inventar micropolíticas capazes de desmontar os impasses paranóicos.

Há uma oscilação contínua entre a postura de conversa aberta e o medo de ser identificado, punido, controlado. Produz-se algo de comum, uma zona de conversa, um plano transpessoal, para além de qualquer sujeito e objeto em ques-tão, quanto mais as situações em fragmentos movem-se por contornos provisórios para tratar das questões que atravessam o trabalho. A referência ao eu se esvai cada vez mais na conversa, trazendo à tona situações que nos envolvem, nos pu-

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xam, nos imantam, com suas possibilidades e impossibilidades, com os afetos em jogo na produção social.

Esse tensionamento coloca em movimento na conversa os impasses da atividade, como uma possibilidade de encontrar recursos para escavar um buraco nesse chão duro em que se cai de cara a cada vez que se ousa sonhar e desejar no trabalho. As conversações são um meio artificial – inventado, e nem por isso menos real – de se encarar os impasses e bloqueios vividos socialmente, para o quais não há espaço livre de relações de poder. Trata-se, antes, de inventar outros jogos de poder por outros modos de viver, mais potentes. Para isso, se é pego e puxado de volta pelos sistemas de controle da produção desejante, dos processos de trabalho: é preciso, a cada vez, lidar com os impasses.

Na conversa, desenham-se outras situações que se fazem a partir de ma-térias e forças do trabalho do motorista: o vídeo, a identificação, a denúncia, o companheirismo, a confiança. Não se trata, contudo, de uma situação clínica pro-tegida, um pequeno paraíso para onde se pode transferir as questões do campo social e encará-las podendo sair ileso. O transcendente, que a clínica tem hegemô-nicamente arranjado, é uma ilusão das mais medíocres e inúteis para a lida com as questões do campo social visando criar outros agenciamentos de desejo. A con-versação não se configura como um espaço clínico protegido das forças sociais: ela é inteiramente atravessada por questões políticas e éticas. O transcendente é o polo de miséria do desejo, é seu remetimento à falta. Mas, primeiro, o desejo é afirmação, agenciamento, produção, funcionamento, circulação.

O que deseja o trabalhador que trabalha na passagem, se não a própria construção de passagens? Passagens que enfrentam seus impasses, seus bloqueios, por desvios, por vezes como impedimento da produção, por outras vezes como questões que atravessam o corpo social e lhe alcança por fazer-se meio, passagem. Esse trabalhador é instigante, porque não há um sequer que se encontre que não afirme o desejo de ser motorista a seu modo, e em meios intensamente obstaculi-zados, refreados. É toda produção de relações na passagem que se contem suces-sivamente no embarque e desembarque, na informação solicitada, na questão a solucionar. Não seria aí exatamente cada respiro do trabalho do motorista? Cada inspiração e expiração, cada entrada de novos ventos, novos fluxos, carregados de possibilidades, de gentes? De onde se produziria o sentido do trabalho do moto-rista, a não ser na produção da passagem, figurando como passageiro?

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Afinais: marcha à ré ou contorno para outras viagens

E que saídas os motoristas puderam inventar por meio das conversações? Quais os efeitos de intervenção que se pode acompanhar nesses passeios que fize-mos com os motoristas acerca das situações de trabalho que vivem? Como se sus-tentou o paradoxo dos nomes riscados pelas voltas que fizemos? Primeiramente, cabe considerar que a saída da situação só é possível pela própria situação, pela experimentação que tensiona os modos como se vivencia um problema. Dessa maneira, os modos de desmontar os impasses relativos às conversações, os en-traves e bloqueios ao estabelecimento de diálogos e controvérsias, pode se fazer pela própria conversação. Serão, então, múltiplas as vias a inventar, pela própria luta cotidiana do trabalho.

A conversação não é um meio para obter uma representação do trabalho, meramente. Clot (2008/2010) afirma que a atividade dialógica funciona em reve-zamento com o ofício do trabalhador em questão. Sendo meio de transformação da atividade de trabalho, conversar funciona por alternâncias com a atividade de trabalho, como atividade principal, atividade problemática. A dicotomia entre meios e fins é assim desmontada sucessivas vezes pela própria atividade analítica da atividade. Isso não por uma equivalência da conversação com a atividade do motorista, mas por intercessões, atravessamentos mútuos, deslocamentos funcio-nais. É assim que junto com os motoristas vamos desenvolvendo as conversações, lidando com os impasses que se apresentam em função das formações de poder organizacionais. Abordar os entraves às conversações pela própria atividade dia-lógica em dispositivo clínico visa, sobretudo, desenvolver o que já acontece nos meios de trabalho: a invenção incessante de paradoxos e problematizações, bem como de suas múltiplas saídas, para seguir a construção dos percursos de trabalho.

Eu penso que, no dia a dia do trabalho normal, o que nós fazemos (os métodos da autoconfrontação e da autoconfrontação cruzada) se passa sem parar. A clínica da atividade visa a restaurar o ambiente do trabalho normal. A clínica da atividade não é outra coisa senão a reabilitação da função ordinária do trabalho. Nós repetimos e sistematizamos a vida ordinária. E para mim, isso é muito, muito importante. Trata-se de redescobrir ou de reencontrar o recurso interno do meio profissional considerado. (CLOT, 2006b).

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Maria Elizabeth Barros de Barros é psicóloga. Mestrado em Psicologia Escolar pela Universidade Gama Filho (1980). Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e pós-doutorado em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz (2001). E-mail: [email protected]

Jésio Zamboni é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestre em Psicologia Institucional (UFES), linha de pesquisa: Clínica e Subje-tividade. Doutorando em Educação (UFES). E-mail: [email protected]

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LUGARCOMUMNº41,pp.213-

Proliferaroásis:porumahistóriapolitizada do desejo e da contingência

Pedro Demenech

Introdução

Nestes tempos de crise, a resistência e a solidariedade são necessárias, mas a solidariedade é mais importante.

alex tsipras, líder do grupo parlamentar grego Syriza, nodiaseguinteàseleiçõeslegislativasde2012.

Diante dos acontecimentos recentes que ocorrem no Brasil, é possível pensar quais as cargas semânticas e os sentidos referentes às manifestações acio-nadas, de um lado, pelo aumento das tarifas de ônibus em diversas cidades brasi-leiras e, por outro, pela truculência policial que visa dispersar os movimentos, a partir do uso excessivo da força bruta amparada por um Estado que aparentemente governa a favor do povo.

Uma breve pesquisa pela internet demonstra a imensidade de reportagens sobre o assunto. Lendo-as, o que se pode averiguar é que com o aumento das passagens em São Paulo, os protestos organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) – criado em 2005 – e outras entidades populares serviram para, de algu-ma forma, catalisar insatisfações latentes nas diversascomposições da sociedade brasileira.

Negando-se a fazer uma conclusão ou qualquer análise definitiva dos acontecimentos, a única certeza evidente é a de que as manifestações desencadea-ram uma pletora de forças e discursos (políticos, culturais e sociais) que são apro-priados tanto pelo governo da presidenta Dilma Rousseff (Partido dos Trabalha-dores) e pela oposição, como no governo estadual de Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia Brasileira), por exemplo. Da mesma forma, os movimentos que compõe a massa e o bojo das manifestações levantam as mais variadas ban-deiras (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, neonazistas, discursos nacio-nalistas “apolitizados”, militantes de diversos partidos políticos), que chocam e combinam entre si ideias e corpos numa polifonia difusa e indeterminada.

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O movimento se apresenta em formas diversas150, sem uma identidade ou modelo no quais os grupos participantes possam se basear. Se, a princípio, isso acarreta uma experiência positiva, aonde as decisões são tomadas diante de um tipo de contingência que surge no calor dos acontecimentos, por outro é preocupante as polarizações advindas desses fatos. Há uma, em especial, que mais chama a atenção: o cerceamento às manifestações partidárias, que agregam a massa de protestantes – por exemplo, queima de bandeiras, expulsão de grupos partidários. Isso enfraquece o movimento politicamente, esgota a possibilidade de haver várias vozes, de proliferar as diferenças. Tanto mais, está em jogo o direito a liberdade de expressão no âmbito de uma esfera pública (ou talvez, de diversas esferas públicas).

Uma vez que a rua se tornou, recentemente, palco para uma redefinição das práticas e vozes políticas, cabe pensar formas de explicar esses movimentos, sem, no entanto, engolfar suas propostas e enquadrar os acontecimentos em mol-des prontos.

Enquanto que no dia 12 de junho de 2013, em Paris, França, o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, recriminando o movimento alegou que “É intolerável a ação de baderneiros e vândalos destruindo o patrimônio público (...)”, o prefeito da capital São Paulo, Fernando Haddad (também em Paris), do Partido dos Trabalhadores, fez criticas ao movimento. Num primeiro momento, repreendendo os atos de depredação do patrimônio público, dizendo que os ma-nifestantes não haviam votado nele eram os participantes da manifestação: “Nós temos compromisso com a liberdade de expressão. Aqueles que perderam podem se manifestar”, e advertiu que “Os métodos não são aprovados pela sociedade. Essa liberdade está sendo usada em prejuízo da população”. E, ao ser interpela-do por jornalistas, a respeito das lideranças do movimento, Haddad alegou não as conhecer: “São pessoas inconformadas com o Estado democrático de Direito. Não conheço as lideranças. Desconheço a origem”. Dias após o estopim das ma-nifestações, dois ex-presidentes, de nossa recente história, deram suas opiniões a respeito.

150 Um jornalista, na manifestação do dia 20 de junho de 2013, observou o seguinte fato: “Ou-tra vez a manifestação teve de tudo: protestos contra a Copa, a PEC 37 e o deputado Feliciano. Jovens de classe média eram majoritários. Havia skatistas, punks e estudantes de ensino médio, misturados a anarquistas e gente que aparentava ser neonazista”. AZENHA, Luiz Carlos. Vio-mundo. Na Paulista: Defensores da “democracia sem partidos” atacam militantes de esquerda e queimam bandeiras vermelhas.

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Fernando Henrique Cardoso, do mesmo partido de Geraldo Alckmin, alegou ser um erro qualificar os manifestantes de baderneiros:

Os governantes e as lideranças do país precisam atuar entendendo o porquê desses acontecimentos nas ruas. Desqualificá-los como ação de baderneiros é grave erro. Dizer que são violentos nada resolve. Justificar a repressão é inútil: não encontra apoio no sentimento da sociedade. As razões se encontram na ca-restia, na má qualidade dos serviços públicos, na corrupção, no desencanto da juventude frente ao futuro (Acesse Piauí).

Em tom similar, Luiz Inácio Lula da Silva disse:

Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações da sociedade civil porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em mo-vimentação em busca de novas conquistas. Não existe problema que não tenha solução. A única certeza é que o movimento social e as reivindicações não são coisa de polícia, mas sim de mesa de negociação (Ibidem).

Diante de todo o alarde que está acontecendo, a fala da presidenta Dilma Rousseff, do dia 18 de junho de 2013, ressoa como uma polifonia do que foi dito, anteriormente, pelos dois ex-presidentes. Criticando os atos de depredação do patrimônio público e contra as pessoas, disse de forma enfática que “O Brasil hoje acordou mais forte. A grandeza das manifestações de ontem comprova a energia da nossa democracia, a força da voz da rua e o civismo da nossa população”.

Esses diversos discursos políticos, orbitando em torno de um mesmo fe-nômeno, tentam se apropriar dessas manifestações e caracterizar os fenômenos. Verbos como “denegrir”, “justificar”, “entender”, “comprovar” acompanham os prognósticos que explicam e/ou deslegitimam as atuações dos vários segmentos da sociedade que estão indo as ruas. Em termos políticos, isso representa um cálculo, uma tentativa de se apropriar dos acontecimentos e, a partir das análises feitas, transmutá-los em argumentos que norteiem as ações políticas. São os parti-dos políticos, o Estado e os grupos sociais buscando angariar uma argumentação válida para sua atuação.

Enquanto Fernando Henrique Cardoso caracteriza esse movimento como uma insatisfação dos jovens com o futuro, a presidenta Dilma Rousseff expressa publicamente a ideia de que os atos são característica de que as instituições de-mocráticas brasileiras estão consolidadas. Se, por um lado ambos defendem as manifestações, por outro há uma questão em jogo: a interpretação dos atos, pelas forças políticas estabelecidas, começa a se transmutar em prognósticos que visam

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explicar e angariar para si as forças desencadeadas. Ao mesmo tempo, também, as manifestações se compõem por uma grande parcela de jovens que cresceram num período democrático da história brasileira.

Maria Celina D’Araújo argumentou que essa geração é mais democrá-tica, devido ao trabalho em grupo e aos modos de cooperação e comunicação, as próprias decisões são tomadas em foro horizontal, colegiadas, muitas vezes, virtualmente (pela internet). E, ao ser interpelada sobre os atos de violência151, chamou a atenção para a parcela de indigentes que participa das manifestações, justamente por ser a parte que mais sofre com a omissão e o descaso das esferas governamentais.

Numa entrevista concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil, Edgar Morin disse que a partir da crise que se instaurou (numa conjuntura global, desde 2008) advém três alternativas, para o campo político do capitalismo: ou o mode-lo permanece o mesmo, mantendo sua lógica de perversidade na sociedade; ou se democratiza se tornando mais justo; ou, radicalizando, se desarticula e abre espaço para o impensável. E, falando sobre a juventude na atualidade, disse que:

Hoje há uma causa que, em nome da liberdade e contra a dominação, não tem nome; é a causa de toda a humanidade, de todos os povos, de todos os con-tinentes. A humanidade está ameaçada por toda essa loucura, pela busca do lucro, por toda essa insanidade fanática. Minha recomendação é que, aí onde você está, lute pelas mutações, quer elas tenham dimensão global ou local. O desenvolvimento local favorece a melhoria global e a melhoria global favorece o desenvolvimento local. É este o desafio atual: tomar consciência do que hoje são os problemas e se engajar para enfrentá-los. É isso que eu quero dizer para a juventude.

Diante dessa reflexão, estabelecida por Morin, e a partir das experiências concretas procuramos entender o modo pelo qual as diversas linguagens políticas que se apropriam e participam das manifestações abrem e criam futuros. Advém, então, que a partir desses acontecimentos são reelaboradas, também, as explicações

151 Lembremos que os atos de violência dessas manifestações são cometidos, também, por pessoas da classe média (aparentemente fascista) e, principalmente, pela polícia. Muito fácil dizer em cadeia nacional que os indigentes são violentos por omissão do governo. Há anos, sabemos do abuso de poder cometido pelas policias militares estaduais nas periferias, da morte dos jovens negros e pobres. Muitas vezes, agimos como na alegoria de Ulisses que, amarrado no mastro, contempla a violência do canto das sereias, enquanto os marinheiros tampam seus ouvidos com cera, seguindo o curso por ele estabelecido. Advém uma certa sensação de que nada pode ser feito para mudar o estado de coisas.

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de experiências ocorridas no passado. Aqui, o presente se transmuta numa baliza que permite olhar à distância o passado e vislumbrar um possível horizonte futuro.

Essas manifestações recentes, além de dar indicativos sobre a política em nosso país, também, deram a percepção de que acontecimentos dessa ordem ainda polarizam o debate político, entre as forças que governam e o modo como a base da sociedade se manifesta, tanto a favor como contra ao que está sendo construído. É no calor desses acontecimentos que o espaço para a reflexão sobre a história se torna interessante: as reviravoltas da sociedade permitem, talvez, re-pensar quais os rumos que seguem, na atualidade, os tempos históricos e os usos políticos da história.

Proliferar oásis nos desertos: cálculo e apolitização diante da polarização política

Nesse sentido, começa a se criar uma série de explicações que buscam respaldar esses acontecimentos – para, também, evitá-los. Ao mesmo tempo em que aparecem análises que tentam dar conta dos acontecimentos futuros, surgem, também, explicações que procuram se respaldar no passado, de modo que a his-tória possa lançar luz ao que acontece, a partir de uma experiência passada. Es-sas duas percepções se tornam possíveis quando as confrontamos com os recém--ocorridos eventos.

De algum modo, o Estado procura fazer esse cálculo político sobre o futuro para manter certo controle e ponderar sobre o que pode e/ou não aconte-cer. Diante disso, as decisões políticas se orientam a partir de discursos racionais e previsíveis que, dependendo do desencadeamento, podem se descortinar em várias possibilidades. O que importa, nesse caso, é a produção de realidades que permitam controlar o futuro e manter a estabilidade das decisões políticas.152 A partir da consagração desse processo o Estado moderno garante sua perpetuidade. Esse tipo de cálculo que se desenvolveu durante os séculos XV e XVI, tendo se ampliado pela Europa entre os séculos XVII e XVIII. Podemos supor, ainda, que os aparatos burocráticos dos atuais Estados se baseiam nesse pressuposto.

Koselleck tendo estudado esse tema, percebeu que a história passara a se engendrar a partir das previsões calculadas que o Estado fazia para construir fu-turos, capazes de guiar as decisões. Dessa forma, entende-se que a construção de uma história passa, também, pelo monopólio que o Estado tenta angariar sobre os

152 A arte do cálculo político se desenvolve na Itália, durante os séculos XV e XVI, tendo como princípio fundamental que o futuro é indeterminável.

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acontecimentos passados e o modo pelo qual os planeja temporalmente (KOSEL-LECK, 2006). Diante disso, qual a necessidade que o governo tem de tutelar os acontecimentos presentes, se o que foge ao controle deve ser excluído e negado?

Todo anátema que mancha o curso do progresso ou é energicamente apa-gado, ou se redime adentrando num horizonte histórico-temporal, onde o futuro deve permanecer controlado pelo Estado (Idem).

A contribuição de Koselleck para esse assunto é muito interessante: ten-do estudado o modo como o Estado Absolutista começa a se apropriar do tempo histórico para guiar suas decisões e cálculos políticos, percebeu, por exemplo, que são criadas ficções que tentam perpetrar a duração de governos. Dessa forma, o planejamento temporal se transforma em condição crucial para a manutenção do poder estatal: o presente perde sua capacidade ao ser experimentado como presen-te, justamente, porque só se concretizará dentro de um futuro planejado.

Nesse ínterim, começaram a se desenvolver as filosofias da história, que auxiliam na recuperação desse presente, a partir do momento em que ele se co-necta a determinada ideia de futuro, capaz de guiar o curso da história e das ações, submetendo o próprio presente a uma direção, determinada pelo futuro (lugar da concretização moral do movimento histórico).

No século XVIII, o planejamento utópico do futuro tinha uma função clara: abrir espaço para a filosofia burguesa da história e minar o poder do Estado Absolutista. “Em nome de uma humanidade única, a burguesia europeia abarcava externamente o mundo inteiro e, ao mesmo tempo, em nome deste mesmo ar-gumento, minava internamente a ordem do sistema absolutista” (KOSELLECK, 2009), constatou Koselleck.

A estrutura do pensamento de Koselleck está focada principalmente em entender como a crise do Estado Absolutista abre precedente para a ascensão da burguesia e do discurso que justifica seu domínio no mundo. Nesse sentido, a cri-se instaurada a partir do século XVIII desembocaria no século XX de modo mais agudo, derivando-se no esvaziamento do conteúdo moral no campo da política. Disso decorre que as próprias reflexões de Koselleck foram tentativas de lançar luz à sua própria época, procurando entender a polarização política (capitalismo versus socialismo) que instaurava logo após o fim da Segunda Guerra Mundial (a iminência de uma guerra nuclear, durante a Guerra Fria).

Assim sendo, como entender, nas atuais circunstâncias, a lógica dos mo-vimentos políticos se há uma clara polarização de interesses? A crise instaurada parece advir da separação de interesses entre as instituições políticas, que tra-balham lado a lado às corporações privadas, e dos interesses dos cidadãos, que

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aspiram melhores condições de vida153. Em nome da austeridade fiscal, da manu-tenção do status quo das elites dirigentes, da redução dos serviços estatais, parece ser possível governar com solidariedade para o povo. Dessas percepções, convém a noção de que o cálculo político, novamente, procura esvaziar a politização: é conveniente haver cidadãos com corpos docilizados (FOUCAULT, 1999).

Nesse sentido, é importante a produção de movimentos que se chocam a ideia de um progresso contínuo. Se a polarização entre governo e sociedade obriga o primeiro a se voltar contra seus cidadãos é veemente a importância de se pensar as formas de conservar as liberdades adquiridas, ao invés de se pautar num mundo administrado – onde as esferas da vida sejam governadas por “máquinas totalizantes” de integração da vida e política.

Koselleck, em 1959, afirmou que a história europeia havia se convertido em história mundial e, diante disso, a crise instaurada no mundo era um desdo-bramento, também, do esvaziamento moral da política que havia se iniciado no século XVIII. Ante o fenômeno, Koselleck escrevera na introdução de Crítica e crise que:

A história transbordou as margens da tradição e submergiu todas as fronteiras. A tecnologia de comunicação sobre a superfície ilimitada do globo conduziu à onipresença de forças que submetem tudo a cada um e cada um a tudo (KOSEL-LECK, 2009, p.9).

Essa submissão, constatada acima, continua a se alastrar, e suas forças ainda procuram totalizar a vida, despotencializando cada sinuosidade de liber-dade. Todo o cotidiano (a vida nas fábricas, escolas, trabalho, o próprio sexo) é regulado e mediado por ações que são administradas: diante dessas circunstân-cias, a vida se apresenta de forma árida, sem a menor possibilidade de escapar da desertificação que se alastra a partir da consolidação dessa totalização – nem em nossa intimidade seria possível resistir a essa adestração. Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento afirmam que a integração total da vida se encon-tra em suspenso, mas não interrompida – a “máquina totalizante” tenta se espalhar por todas as esferas da vida.

153 Nos últimos anos surgiram diversos movimentos que, mesmo efêmeros em sua duração, expressam essa conjuntura: Occupy Wall Street, nos Estados Unidos; as revoltas populares, da chamada Primavera Árabe; as pessoas saindo às ruas na Europa, quando países como Espanha, Alemanha, França, Grécia Portugal, entre outros da União Europeia, anunciaram a redução de investimentos sociais sociais.

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A partir dessa conjuntura, perceberam a importância de conservar, am-pliar e desdobrar a liberdade, ao invés de seguir em direção ao mundo adminis-trado (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). É nessa perspectiva que os autores abordam a importância de preservar o conceito de esclarecimento, que em ambos assumem uma característica trans-histórica (está presente em todos os períodos da história da humanidade). Com isso, entra em pauta a necessidade de se refletir sobre o progresso e as consequências advindas do seu curso cego. Como resistir a forças que “submetem tudo a cada um e cada um a tudo”?

É necessário pensar o próprio pensamento. As causas que geram o seu engessamento devem ser procuradas na própria ideia de esclarecimento – que na busca incessante pela transformação do desconhecido em saber, pelas tentativas de domínio das forças da natureza, acabou criando formas de pensamento que excluem a necessidade de reflexão sobre a própria vida, das forças que a promo-vem. Nesse sentido, as manifestações que aconteceram ajudam a questionar qual o papel de um poder que age cegamente, esquecendo-se das forças que o compõe. Afinal, o governo não é feito, somente, de partidos políticos e cálculos que viabi-lizam apolitizar a sociedade.

Conclusão

São múltiplas as forças que compõem a sociedade. O próprio cálculo tende a não abarcar as diferenças, desconsiderando forças que habitam e criam a sociedade. Visto que as manifestações ainda se mantêm, é preciso reconhecer que a polarização entre as instituições governamentais e a população aumenta – grande parte das manifestações vem sendo respondidas com a truculência da força policial. Ainda sim, é extraordinária a força de mobilização social: como que em uníssono, o som do povo passou a ser escutado.

Podem dizer que o movimento e suas ações se encaixam na análise que Adorno e Horkheimer fazem de Ulysses de Homero. Segundo eles, um indivíduo altamente centrado, dominador, que contempla o mundo amarrado às próprias for-ças que comanda. Foi assim que Ulysses pode escutar o canto das serias, ao estar amarrado no mastro de seu navio, enquanto que os marinheiros sob seu comando e de ouvidos tampados, pela cera, remavam sem poder contemplar a beleza ater-radora do canto.

A burguesia e seu pensamento ficaram presos na rede que construíram, pois só podem contemplar o que produzem amarrados, sem condição de agir – olham para seus reflexos, apaixonados pela própria imagem, e afundam nas ilu-sões de uma contemplação vazia. Porém, não é o que acontece: a ida do povo

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nas ruas é o contrário disso. As manifestações, certamente, procuram encerrar a dominação que, há anos, vem sendo praticada, dando voz aos que procuram ser escutados.

Longe de ser uma Unidade “totalizante” – produzida pelo esclarecimento que desertifica o pensamento – apolitizada, as manifestações da rua são multipli-cidades que não tem pretensão à totalidade, muito menos de ser vistas sob a ima-gem de sujeitos. É justamente pela diversidade que as compõem que elas podem, talvez, desejar outra história: não a que é precedida por um progresso, por um a priori moral.

Entra em pauta uma história da contingência, de múltiplos matizes. Se antes a história era guiada pelo progresso (cego e linear), que pretendia servir de exemplo para as ações, talvez, agora, haja uma história que se construa no fluxo e pelas conjunções diversas, procurando, ao invés de ensinar (produzir um paradig-ma moral), se reconfigurar nos desejos que compõem a sociedade e na sociedade que constrói esses desejos. Não é a “história mestra da vida”, é uma história por se fazer.

Referências

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filo-sóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, 1985.BADIOU, A. Peut-on penser la politique ? Pari: Seuil, 1985. BURCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. Um ensaio. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. D’ARAUJO, M. C. S. Entrevista cedida à Globonews. Rio de Janeiro. 19 jun. 2013.FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. de Maria There-za da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. KOSELLECK, R. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009. ___. O futuro passado dos tempos modernos. In: Futuro passado: contribuição à se-mântica dos tempos históricos (1979). Trad. de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almei-da Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

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Textos da net

AZENHA, L. C. Os pela “democracia sem partidos” atacam militantes de esquerda. VIOMUNDO. 20 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/politica/na-paulista-defensores-de-democracia-sem-partidos-atacam-militantes-de--esquerda-e-queimam-bandeiras-vermelhas.html>. Acesso em: 5 jan. 2014.BAVA, S. C. O futuro da humanidade. Entrevista concedida por Edgar Morin. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 65, dez. 2012. Disponível em: <http://www.diploma-tique.org.br/artigo.php?id=1324>. Acesso em: 6 jan. 2014. MACEDO, D.; PEDUZZI, P. Dilma: manifestações comprovam democracia no país. Agência Brasil. 18 de junho de 2013. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-18/dilma-manifestacoes-comprovam-democracia-no-pais>. Aces-so em: 6 jan. 2014.NETTO, A. Alckmin chama manifestantes de ‘baderneiros’ e ‘vândalos’. O Estado de S. Paulo. 12 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,alckmin-chama-manifestantes-de-baderneiros-e-vandalos,1041542,0.htm>. Acesso em: 6 jan. 2014.Da redação. Lula e FHC falam dos protestos pelo país. Acesse Piauí (Revista Piauí). 10 de junho de 2013. Disponível em: <http://www.acessepiaui.com.br/pol-tica-brasil/lula-e-fhc-falam-dos-protestos-pelo-pa-s/23122.html>. Acesso em: 6 jan. 2014.

Pedro Demenech é mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo e doutorando em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Desenvolve o projeto de pesquisa “Entre a bússola e o torniquete: uma análise do pensamento de Ángel Rama”.

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LUGARCOMUMNº41,pp.223-

Sobre as manifestações de junhoesuasmáscaras

Javier Alejandro Lifschitz

Introdução

Em um texto da década de 1980, Alain Badiou dizia que a retirada do marxismo estava associada à retirada da própria política. Isso se expressava, den-tre outras formas, na uniformidade que tinham atingido os signos da política e na própria ineficácia das categorias de análise para pensar as transformações do espaço político. O autor concluía que pensar a política implicava se deslocar de paradigmas para poder formular os axiomas desse afastamento. Formular um qua-dro abrangente que tornasse inteligível o fato de a política ter se transformado em uma “molezaestrutural”, sem aposta subjetiva. Suas referências eram basicamente da França, mas suas observações pretendiam ter um alcance geral.

Transportemos agora esse quadro teórico para o que aconteceu recente-mente no Brasil. Embora seja cedo para análises mais profundas, podemos cons-tatar que um fato que chamou a atenção foi a implicação emocional dos jovens. “Houve um despertar”, anunciavam os jornais. A faixa etária dos manifestantes sugeria um ritual de iniciação e lembrava as cerimônias de passagem para novos planos da subjetividade. Como observa Gabeira em um artigo publicado logo após as primeiras manifestações multitudinárias:

Nos anos 1960, alguns, como eu, transitaram do existencialismo ao mar-xismo. Agora, o existencialismo parece estar de volta. De novo, uma parcela da juventude sai em busca de sentido: conectar as mentes, criar significados.

Portanto, as manifestações de junho não correspondem à caracterização de Badiou. Contudo, o autor abria um hiato na forma de conceber a política que ainda deve ser considerado ao se avaliarem as manifestações. Referia-se à neces-sidade de abandonar formas de pensar a política pautada na consistência dos laços sociais, isto é, na premissa de que existem coletivos e identidades sociais persis-tentes – o povo, o proletariado, a Nação ou a classe social –, porque essa forma de pensar oculta alguma outra dinâmica, qual seja, a da desagregação dos laços sociais. Laços sociais se desfazem e refazem com muita plasticidade, e Badiou foi

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224 SOBREASMANIFESTAçõESDEJUNhOESUASMáSCARAS

um dos primeiros teóricos a formular o hiato que existe entre essa dinâmica e o antigo modelo de representar a política.

Pensar o político era, pois, pensar sobre a inconsistência desses laços sociais, e essa perspectiva tornava caducas antigas questões, como a de tentar en-tender a lógica da representação de grupos e classes na arena política. O político devia ser pensado como um acontecimento, como algo que irrompe, podendo se perceber nele a própria inconsistência do social. A política como a irrupção do real e que se articula com o caráter imponderável que adquiriu o laço social. Por-tanto, era necessária uma mudança de rumo e passar de uma lógica da representa-ção para uma lógica da apresentação do social, estabelecendo novas genealogias e marcas de referência.

O passado da máscara

Ainda sob o impacto das grandes mobilizações de junho, o cientista so-cial André Singer observou que as manifestações eram a expressão de grupos sociais diferentes dos que haviam apoiado Lula e a eleição da presidente Dilma. As manifestações eram efeito de outra genealogia social:

Minha hipótese é que as manifestações estão compostas de duas camadas so-ciais. Uma são os filhos de classe média tradicional, estabelecida assim há mais de uma geração, que possivelmente puxaram as manifestações. Elas ganharam essa adesão também do que chamo de novo proletariado. Não é uma nova classe média. São jovens que não pertencem a famílias de classe média, mas passaram a ter emprego por causa do lulismo. Mas têm empregos precários, com alta rotatividade, más condições de trabalho e baixa remuneração. Ao longo das manifestações, a participação do segundo grupo foi aumentando. Isso talvez explique por que, na segunda etapa, elas se expandiram pela Grande São Pau-lo, pelo Grande Rio e pelas cidades em torno das capitais. A segunda camada é muito mais extensa do que a primeira e mostra o potencial do movimento (A energia..., 2012, p.p. 88-90).

Singer estava se referindo a esse desacoplamento dos laços sociais, mas parece não dar conta do corte que o movimento provocou e de que “todo corte”, como dizia Badiou, “coloca em estado de ficção toda a política antiga”. Existiu sem dúvida uma dificuldade em definir uma morfologia para essa presença mas-siva nas ruas, e isso se refletiu na própria dificuldade em lhe outorgar uma identi-dade: ora era um movimento, ora manifestantes; um movimento de classe média, mas também das periferias. De qual silêncio o grito surgiu?

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225Javier Alejandro Lifschitz

O fato foi que nesses dias de junho um modelo de representação política extravasou. Não havia liderança, não havia partido. Um movimento de massas sem representação, sem mediação, e convenhamos que isso é bastante singular considerando a tradição dos movimentos de massas, tanto no Brasil como no pla-no internacional. Tudo parecia uma ficção consagrada. Uma multidão sem parti-dos e sem uma identidade social explicitada, que se movimentava em direção a lugares legitimados do poder para expressar suas reivindicações. Não se tratava de legitimar o movimento garantindo seu reconhecimento político. O movimento existia em si e se autovalidava como tal. Se orientava sim, seguindo a lógica das consequências, sempre sujeita à tomada de decisões conforme os passos dados pelo adversário. Causas e efeitos que se sucediam em uma espiral abrangente:

■ Causa I: Protesto pelo aumento do preço das passagens de ônibus. ■ Efeito I: Passeata pela redução do preço das passagens de ônibus.

■ Causa II: Diversos estados propõem a redução do preço das passagens de ônibus a ser financiada com recursos públicos.

■ Efeito II: Mobilização até o local da Federação de Empresários de ônibus.

■ Causa III: O governo analisa a situação do setor e constata-se a formação de cartel e corrupção, envolvendo empresas e governo.

■ Efeito III: Passeata até a casa do governador do Rio de Janeiro no bairro de Leblon, onde a polícia reage de forma extremamente violenta.

■ Causa IV: A violência policial é registrada nas redes sociais e provoca fortes reações na mídia internacional.

■ Efeito IV: Nas manifestações seguintes a polícia faz “corpo mole” (ex-pressão popular que bem caracteriza uma atitude de resignação e com-placência), permitindo que grupos avancem nas ruas como um poder de-molidor e destrutivo.

Foram causas e efeitos desse tipo que colocaram as manifestações em movimento e isso aconteceu tanto nas ruas como nas redes sociais, porque a lógica da replicação também se introduziu nesses tempos rápidos da comunicação global interrupta. As manifestações se estendiam de madrugada por esse universo para-lelo. Porém, houve um salto quântico. Uma transformação morfológica que ainda permanece enigmática. Como pensar esse salto das redes às ruas e o retorno?

Na década de 1990, outros autores, como Michel Maffesoli, também re-fletiram sobre as “transfigurações do político” (MAFFESOLI, 2004). A políti-ca, segundo esse autor, está sofrendo uma implosão em cadeia, que atinge tanto

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os partidos como a ideia de Nação, de Estado e as próprias bases filosóficas do Contrato Social. A política tornou-se um motivo de desconfiança, como também observou Pierre Rosanvallon em seu livro intitulado A política na era da descon-fiança (2007). Os cidadãos estão se afastando da coisa pública, nota Maffesoli, e isso tem muito a ver com a incredulidade sobre as promessas da política. As espe-ranças messiânicas já não convencem. A política é incapaz de continuar sendo um suporte para o “adiantamento do gozo”.

Portanto, há um certo consenso com relação ao fato de estarmos viven-ciando o fim da política. Mas o posicionamento dos autores é bastante diferente no que diz respeito aos possíveis efeitos dessa situação. Para Badiou, o novo é essa desagregação dos laços sociais, enquanto para Maffesoli o novo é precisa-mente uma pulsão gregária que atravessa a sociedade em termos da revalorização dos laços comunitários. Contudo, este afirmava que tal tendência à proxemia não envolve o Estado. São aproximações empáticas que acontecem na sociedade ci-vil, com fortes sentimentos de desconfiança e principalmente de indiferença com relação ao Estado.

Entretanto, Maffesoli considera situações em que essa pulsão gregária se produz a partir do confronto com o Estado. Ondas violentas que se nutrem da luta contra o poder do Estado. O tema remete a questão antropológica das sociedades contra o Estado, a morte sacrifical dos chefes políticos observada em distintos grupos tribais, e que acontecia principalmente quando existia a ne-cessidade de partilha de bens materiais ou simbólicos. Segundo Maffesoli, algo parecido está acontecendo nas sociedades modernas; as comunidades estão sacri-ficando o Estado, ainda que isso esteja acontecendo mais pela via do afastamento que por ações violentas. Poder prescindir do Estado é uma forma de decretar sua morte simbólica.

Mas se transportarmos agora esse outro quadro teórico para as manifesta-ções de junho, o sentimento de inadequação persistirá, porque o que aconteceu no Brasil foi uma implosão de demandas para o Estado. Uma religação expressiva e desafiadora com a coisa pública: passe livre, investimento na educação e na saúde com padrão FIFA, reforma política, fim da PEC 37, derrogação de políticas ho-mofóbicas. Os 500 mil jovens que ocuparam a Avenida Presidente Vargas não se afastaram do Estado, muito pelo contrário, exigiram sua presença.

Enquanto escrevo este texto, ainda não foi lançado o novo livro de Ma-nuel Castells, intitulado Redes de indignación y esperanza: los movimentos socia-les en la era de Internet. Em seu blog,o autor diz que analisa fundamentalmente os efeitos das redes na irrupção da “Primavera Árabe”, e essa perspectiva sem

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dúvida pode ajudar a entender alguns aspectos das manifestações de junho. Mas há outros aspectos não menos relevantes e um deles é o fenômeno já apontado de deslocamento massivo das redes digitais para as ruas. O abandono, embora momentâneo, dos Playstation em direção a um aglomerado humano de impres-sionantes dimensões. De que vontade esse salto surgiu?

As máscaras e o espírito

Segundo Hegel (2012), a política sempre está atrelada ao espírito de uma época, porém acrescentando que essa conexão, embora interior e necessária, não é imediatamente percebida. É necessário fazer um percurso ¾ cujos passos ele delineia na Fenomenologia do Espírito – que culmina na ideia de que o espírito de uma época é somente um. Uma mesma raiz cultural que se expressa em todos os campos do fazer, como na política, na religião, na arte, no comércio ou na indústria. Cada um desses fazeres se configura por aspectos culturais muito va-riados que se combinam de uma forma também singular, porém nenhum deles é contraditório com relação ao espírito da época. Todas as figuras singulares, todos os fragmentos de cultura, embora possam parecer antagônicos, conduzem a uma mesma raiz cultural.

Entretanto, a inteligibilidade dessa unidade não é imediatamente dada à percepção. A percepção é para Hegel um dispositivo específico, diferente da reflexão, e que se caracteriza por captar a ordem simultânea das coisas. Perce-bemos coisas que estão acontecendo ao mesmo tempo, mas esse mecanismo não nos permite estabelecer conexões de sentido. Trata-se da percepção simultânea de objetos parciais que destacamos e enquadramos com relação ao resto do visível. Mas para onde orientar nosso olhar no meio de uma passeata com mais de 500 mil pessoas? Nos detivemos em imagens de destruição e em tudo que nos ameaçava, como o fogo ou o avanço da polícia. Mas também olhamos para o que inquietava nossa percepção, talvez por serem imagens ambivalentes ou inadequadas nesse contexto. Foi o caso da máscara do personagem V do filme “V de vingança”, sobre o qual falaremos adiante.

No mundo dos objetos, pode-se dizer que as máscaras são bastante sin-gulares porque reproduzem a face humana ao mesmo tempo em que a ocultam. Existe uma vasta literatura sobre o uso da máscara no campo da antropologia e do teatro, mas essa característica a coloca entre as imagens dialéticas, conforme a definição de Didi-Huberman (2011). São imagens que olhamos ao mesmo tempo em que somos olhados por elas. A máscara é uma imagem dialética que impõe sua própria visualidade no espaço de nossas certezas visuais. Mas, além disso, o que

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inquieta nessa máscara é o jogo ao qual nos convida a participar. Uma imagem lúdica desengajada do contexto político local, excêntrica com relação aos ícones do protesto social, que se instalou como um passe nas mobilizações de junho. Até onde a ficção é capaz de atingir?

Uma máscara teatral encenando a política, como acontecia na antiga Grécia, mas nessa encenação havia uma inversão estrutural. Os espectadores do máscara V agora eram manifestantes e a personagem se transportava da cena cine-matográfica para as ruas. Máscara e manifestantes se reencontraram, mas a mera presença desse ícone contribuiu para ficcionalizar essa experiência.

Contudo, esse objeto parcial parece insuficiente para explicar o clamor das ruas. Temos a necessidade de compreender o que aconteceu em realidade e a máscara parece estar longe de dar um sentido aos acontecimentos. Desconsidera-mos as fachadas e os cenários como dizia Goffman (1959), se referindo à necessi-dade de simulação expressiva que existe na vida social. Mas essas fachadas, esses objetos parciais, podem ser um elo nas conexões de sentido.

A primeira impressão sobre a fachada é que a maior parte dos ícones das mobilizações de outrora – como a imagem do Che Guevara, as bandeiras verme-lhas e os punhos levantados – não está presente. Os ícones são outros e o corte é marcante. A máscara à qual nos referimos é do filme V de Vendetta,154 dos irmãos Wachowski, mas também uma adaptação de um comic da década de 1980, de Alan Moore e David Lloyd (2006). O comic tem como cenário uma Londres de-vastada por uma guerra nuclear e os autores parecem ter se inspirado no contexto político da era Thatcher: “Um dos motivos que nos levou a criar o Estado policial e fascista britânico de Vendetta foi nossa atitude perante o governo ultraconser-vador de Margaret Thatcher”, diz David Lloyd. “A destruição desse sistema era a causa primordial para a existência de V”.

O cinema projetou o máscara V para o plano midiático e transnacional e esse ícone se incorporou a manifestações de cidades tão distantes como Istambul, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo, passando a ser um dos referentes da mudança iconográfica das manifestações de massas. Toda uma fachada social das mobiliza-ções de massas saiu de cena e em seu lugar se apresentam outras figuras expres-sivas. A máscara provém do cinema e do comic, porém suas transmutações não acabam aí. A personagem foi inspirada em um fato histórico, acontecido na Ingla-terra em 1605, conhecido como a Conspiração da Pólvora e que culminou com

154 Filme V de Vendetta (comercializado no Brasil como V de Vingança), lançado na Europa no dia 17 de março de 2006. Dirigido por James McTeigue. Produzido por Joel Silver e pelos irmãos Wachowski, que também escreveram o roteiro.

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o enforcamento público do líder católico Guy Fawkes. O grupo religioso do qual Fawkes fazia parte lutava contra a proibição dos direitos políticos dos católicos (HAYNES, 1994) e planejava explodir a Câmera dos Lordes quando o rei anglica-no Jaime I estivesse reunido com os parlamentares. A conspiração foi descoberta e Fawkes foi enforcado. Mas houve outros desdobramentos. O rei transformou o enforcamento em um símbolo e o dia 5 de novembro passou a ser celebrado em praças públicas com a queima de figuras que representavam os conspiradores e o Papa. Essa tradição se conservou por quase três séculos, até que foi abolida para evitar conflitos com a Igreja Católica, mas foi retomada no século XX como um símbolo da liberdade e da luta contra o poder opressor. O dia 5 de novembro continua a ser celebrado, embora agora sejam queimadas figuras que representam personagens públicos, como já aconteceu com Tony Blair e Osama Bin Laden.

Portanto, a trajetória da máscara se imbrica com a luta contra os sistemas totalitários. No comic está representado pelo regime fascista da “Nórdica Chama”, cuja aproximação com o imaginário orweliano é evidente, a começar pelo palco do conflito e pela figura do “Grande Irmão” que controla a intimidade dos corpos. Entretanto, no comic é mais evidente a apropriação ficcional de componentes do nazifascismo, com sequestro e desaparição de negros, judeus, asiáticos, socialis-tas e homossexuais; instauração de campos de readaptação e uso da ciência para experiências com humanos; a coligação de grandes corporações; participação da Igreja no discurso ideológico e exércitos de policiais civis nas ruas. Esse tema político acompanha a trajetória metamórfica da personagem, que se inicia com um fato histórico do século XVII, na década de 1980 passa a ser um comic em chave anarquista, e no século XX se projeta no plano cinematográfico. Daí a máscara é capturada atrás do palco e reaparece no espaço da rua, em situações políticas das mais diversas e que não necessariamente se relacionam com contextos totalitá-rios, como nas passeatas dos indignados na Espanha, em Wall Street nas ruas de Nova Iorque e agora nas avenidas das metrópoles brasileiras.

Liberalismo, anarquismo e rituais de iniciação

Mas o máscara V não é somente uma imagem. Convoca também o dis-curso de Guy Fawkes, Alan Moore e David Lloyd e dos irmãos Wachowski. E todos eles, com diferentes nuanças, trazem à tona um velho tema do liberalismo e do anarquismo: a relação do indivíduo com o Estado. Para o liberalismo, essa questão é fundadora porque o Estado é concebido como um verdadeiro guardião das liberdades individuais, embora os autores liberais não negassem a possibili-dade de o Estado se desviar desse mandamento. O Acordo do Povo, de 1649, con-

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siderado o primeiro manifesto democrático moderno, alertava os cidadãos contra o avanço do Estado sobre as liberdades individuais.

Entretanto, para o anarquismo a coação é própria do Estado. Não se trata de um desvio que se pode corrigir, mas de ações inerentes ao domínio de classe. Por isso, para o anarquismo, a luta contra o Estado é sempre legítima, como tam-bém os meios utilizados, sejam violentos ou não.

Para o liberalismo, a questão dos meios também está presente de uma maneira muito mais circunscrita. Como observa Rosanvallon (2007), na prática das democracias liberais existem duas formas de sancionar os desvios de Estado: o sufrágio ou as formas contrapoder. Estas últimas envolvem desde a mera crítica ao poder público até o controle ativo de parte do povo sobre seus governantes. Como aconteceu, de maneira radical, na Revolução Francesa durante o período do Terror, ecos desse contrapoder reverberam na personagem do comic: “Não é o povo que deve temer os governantes; são os governantes os que devem te-mer o povo.” Após a Revolução Francesa, essas formas radicais de contrapoder e controle ativo ficaram desacreditadas, mas outras formas de contrapoder não deixaram de se desenvolver e multiplicar, o que Rosanvallon denomina soberania negativa, e que consiste no poder de mobilização da população para obstruir pro-jetos de lei ou ações do poder público. O tema é tão relevante, que alguns autores (JONES, 1994) consideram que as diferenças, observadas nos sistemas políticos, cada vez mais obedecem ao tipo de respostas que os Estados dão a esse tipo de pressões. Mas o comic coloca a questão dos meios com que conta a população em outros termos. Até que ponto deve-se inibir a escolha dos meios utilizados contra o Estado quando se trata de governos totalitários? David Lloyd responde:

A mensagem principal é que todo indivíduo tem o direito de ser um indivíduo, e como tal tem o direito e o dever de opor resistência ao conformismo. A re-sistência de V consiste em atacar diretamente as instalações governamentais e assassinar os seguidores do regime. Portanto não é uma simples história de uma batalha contra a tirania, mas uma história sobre o terrorismo e, de alguma maneira, sobre se o terrorismo pode ser justificado. Isso é algo que devemos tratar de compreender, caso alguma vez pretendamos resolver o problema que no mundo real nos aflige (LLOYD, 2010).

Não se trata de um manifesto e menos ainda de uma reflexão acadêmica, mas o comic não deixa de transmitir posições que interferem na representação política. Porém, é um gênero de ficção e como tal escapa à ordem das clássicas narrativas políticas. Assim, posições que, do ponto de vista da teoria política, são

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antagônicas, aparecem na fala das personagens como se fossem intercambiáveis, principalmente no que diz respeito a um tema tão caro à juventude como o das liberdades individuais.

Mas o comic também introduz o tema do sinistro do totalitarismo e do terrorismo de Estado. O personagem V foi prisioneiro em um campo de readapta-ção e submetido a experimentos biológicos. Uma vítima da razão nazista, trazida de novo à tona por personagens de ficção, como o da cientista que comandava essa experiência: “Não lutam. Só ficam olhando para nós com seus olhos débeis. Parecem vermes. Quase não são humanos” (V de vingança, op. cit.,).

Nessa experiência biológica, todos os pacientes morreram menos o pa-ciente da cela V (cinco em número romano), que se torna um caso fascinante para a cientista. Sem possuir qualquer anomalia celular, ele se destaca por sua perso-nalidade magnética e olhar penetrante. Tem um comportamento que se mostra irracional, mas que parece obedecer a uma fria lógica. Cria e cuida de flores com tanto esmero e dedicação, que dão a ele fertilizantes e outros produtos químicos. Como narra a cientista, é com esse arsenal caseiro que ele acaba fabricando um explosivo e implode todo o campo, conseguindo escapar: “Foi no pátio que eu o vi. Tinha as chamas às suas costas. Estava nu. Ele me olhou. Como se fosse um inseto.” (V de vingança, op. cit.).

Seu próximo passo foi a vingança. Como um serial killer, ele assassina os carcereiros, o chefe da polícia, o pároco, o responsável da mídia – homicídios em cadeia no centro do aparelho de Estado. Uma vingança nietzchiana aos pode-res instituídos, mas que tenta comprometer a todos cidadãos, como ele expressa em um pronunciamento quando invade a TV:

Tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem--número de decisões catastróficas. Você deu a eles o poder para tomar decisões em seu lugar. Aceitou suas ordens insensatas sem questionar (V de vingança, op. cit., p. 118-119).

O máscara V como um Locke enlouquecido? Um anarquista destemido? As mobilizações de junho não foram mortíferas, mas atingiram infraestruturas do aparelho de Estado e lugares da memória nacional, como a esplanada do Congres-so Nacional, o Palácio do Itamaraty, a Catedral Metropolitana, Assembleia Legis-lativa do Rio de Janeiro, a sede da Prefeitura de São Paulo. Imagens de destruição que pareciam endossar o discurso do máscara quando implode a cúpula do Parla-mento: “Um edifício não é nada. São as pessoas que o adoram, que lhe dão poder, que o transformam em símbolo. Se destruímos o edifício, destruímos o símbolo.”

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Mas essas ações implosivas foram limitadas. O mais impressionante foi o avanço da multidão nas ruas. Um fenômeno de massas tão compacto que as in-dividualidades pareciam haver-se diluído. Como diz Elias Canetti no livro Massa e poder (1983), as ações de massas são antagônicas à ideia de individualidade porque neutralizam as hierarquias que fazem parte do cotidiano das pessoas. Mas esses jovens marchando juntos pareciam ao mesmo tempo estar isolados. Como se preservassem sua individualidade ainda que nas fileiras fechadas das marchas, e isso se manifestou no uso dos cartazes.

Para entender essa mudança, devemos lembrar que um elemento impor-tante das fachadas de outrora era a longa faixa de pano que geralmente encabeça-va a passeata e era segurado por uma fileira de pessoas, e que levava inscrita uma palavra de ordem. A diferença é marcante. Nas recentes mobilizações, cada mani-festante segurava seu próprio cartaz com sua própria palavra de ordem. Os carta-zes diminuíram de tamanho e as palavras de ordem se multiplicaram. Cada cartaz aludindo a uma demanda de um eu, que se diferenciava da demanda do cartaz do lado. Ou seja, a diminuição do tamanho dos cartazes correspondia a essa forma de intervenção política individualizada. Com isso não estamos fazendo alusão à figu-ra do indivíduo na tradição liberal. Trata-se, sim, de uma nova forma de conceber a ação política como um microagenciamento. Cada manifestante fazendo de sua reivindicação um agenciamento em grande parte voltado à gestão expressiva de um conteúdo singular em um contexto semântico extremamente heterogêneo. As palavras de ordem cobriam um amplo leque, que ia desde a homofobia até a re-forma política. Portanto, as mudanças na fachada estão relacionadas a mudanças na forma de intervenção. Nesse sentido, a mudança da fachada das mobilizações se articula como essa forma política inaugural que são os microagenciamentos.

Na realidade, as manifestações foram inaugurais em diversos sentidos, começando pelo fato de que para muitos jovens foi sua primeira participação na política. Como dissemos, um ritual de iniciação, que envolve mudanças na per-cepção do eu. Mas sem querer forçar a analogia, cabe a observação antropológica de que nesses ritos há também desprendimentos, abandono de atitudes, de formas de convivência e em alguns casos até troca de identidade (TURNER, 1974). E nesse rito, em que os jovens se lançaram às ruas, também houve o abandono, embora parcial, de uma forma de convivência, que são as redes sociais. Para ir às ruas, tiveram que se distanciar das redes. Por isso, cabe perguntar o que dessa lógica da interação virtual se plasmou no contato real. Como essa plataforma ili-mitada de mensagens, em que se cruzam sexos, ideologias, motivações e imagens, interferiu na constituição do movimento. De fato, foram essas plataformas vir-

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tuais que permitiram outra prática inaugural: um ato político massivo precedido por um imperturbável silêncio.

A máscara trágica

Em um livro dedicado ao uso de máscaras rituais em tribos indígenas da América do Norte, Lévi-Strauss (1979) mostrava que as diferenças entre elas tinham mais a ver com o fato de marcar diferenças entre povos que com a mensa-gem singular de cada uma. Eram as máscaras que marcavam as diferenças. Esse também poderia ser o caso de duas máscaras que pertencem ao universo da cultu-ra política contemporânea e das mobilizações de massas: o Che Guevara e agora a mascara V.

A comparação a princípio parece inapropriada, primeiramente porque a imagem do Che não é utilizada como máscara facial. Apesar disso, podemos dizer que a imagem do Che compartilha certas características da máscara mágica, tal como definida no teatro grego (LESKI, 2010): trata-se de uma imagem que tem a capacidade de transferir ao portador a força e as propriedades que nela estão nela representadas (Idem).

No caso da imagem do Che, o poder de transferir a seus portadores a força e o símbolo do revolucionário. Concordamos com o fato do significante revolução ter múltiplos significados, mas a questão aqui é a imagem e seu poder de aderência sobre o portador. Contudo, entre essas duas máscaras existem outras diferenças não menos importantes. O Che foi uma figura histórica e o máscara V um personagem de ficção. O Che pertence à história latino-americana; o V de ven-detta, aos estúdios da Warner Bros. Mas, como já dissemos, o máscara V remete a um personagem histórico do século XVII. A história, como observou Nietzsche, sempre teve relações íntimas com a ficção (BARRENECHEA, 2011). No caso ddo máscara V, o trajeto foi da ficção para a história; e com o Che, da história para a ficção. Esse deslocamento foi muito bem capturado no documentário “Personal Che” (2007), que mostra como a imagem do Che foi sendo apropriada pelas mais diversas ficções. O filme mostra algumas: Che como um santo milagreiro na Bo-lívia, como motivo de uma ópera rock no Líbano, como emblema de um político anarquista em Hong Kong e na camiseta de um neozista alemão.

Entretanto, o máscara V se transportou à nossa realidade. É uma máscara que perambula nas passeatas. Assim, uma máscara foi em uma direção e a outra na direção oposta. São máscaras que não se cruzam, e isso implica que nunca irão conviver no mesmo espaço. Na política não há convivência de fachadas, sempre uma é transbordada por outra, como mencionou Marx em O Dezoito de Brumário

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de Luís Bonaparte (2006). Uma máscara se retira ou é afastada, tanto faz. A ques-tão é que, ao se afastar, sempre leva algo consigo. Com o afastamento da máscara algo da política também se retira, e isso se confunde com os temas clássicos da tragédia, uma arte que surgiu precisamente acoplada ao uso de máscaras. A tra-gédia, como observa Leski (2010), é um cenário paradigmático onde se repre-sentam paixões humanas radicais e concepção de mundo. Atores mascarados que representam a experiência humana de enfrentar antinomias radicais, contradições irreconciliáveis no mundo dos homens e também dos deuses. O herói trágico se confronta, dolorosamente, com uma contraposição tão absoluta de valores que deve realizar um embate radical do qual não tem escapatória.

Como espectadores da tragédia, sabemos que nesse enfrentamento a per-sonagem vai morrer e isso provoca um sentimento de aceitação. Porém, ao ver que quem cai em desgraça foi um lutador incansável que entregou sua vida para melhorar a situação de outros, o sentimento é de desespero.

Na tragédia se combinam esses sentimentos que acompanham todo o percurso da queda trágica da personagem (LESKI, 2010). A vida do Che Gue-vara pode se inscrever nesse registro trágico. Muito distante do máscara V, que pertence a um outro gênero dramático. A máscara de um enredo romântico que tem como entorno o jogo burlesco e grotesco de um personagem transgressor que expõe ao ridículo os vícios públicos. Como diz a própria personagem do comic:

Você e eu, Evey! Nós dois contra o mundo. Ha, ha, ha! Um verdadeiro drama. Não é curioso como tudo termina em drama? Teatro é tudo Evey. O perfeito êx-tase. A grande ilusão. Eles se esqueceram dos dramas. Abandonaram os roteiros quando o mundo cintilou sob os clarões dos holofotes nucleares. Eu vou fazer com que se lembrem do drama, dos romances, das tramas policiais. Como vê, Evey, o mundo é um palco (V de Vingança, p. 32).

E nesse gênero também se inscrevem os cartazes das manifestações de junho, com sua forte carga irônica e burlesca: “Meu cu é ateu”; “Bem-vindo à Copa das Manifestações”; “Dilma, chama a educação de Neymar e investe nela”. Cartazes de autor que pareciam ser subtítulos sobre os vícios públicos. E esses cartazes-subtítulos se espalharam através de câmeras, celulares e filmadoras, re-criando, em um outro plano, a figura do espectador da comédia. Assim, se tivésse-mos que definir as manifestações de junho em termos de gênero narrativo, diría-mos que foram fragmentos dramáticos. Cada microagenciamento um fragmento, o que produzia uma impactante noção de multiplicidade. Não havia rastros do núcleo trágico das manifestações de outrora.

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Contudo, o máscara V contorna o tema trágico da vingança. Na tragé-dia sempre há motivos para a vingança e o herói trágico realiza a passagem ao ato. Vinga-se e mata. Nada parecido aconteceu nas mobilizações de junho, mas houve sim descargas violentas (CANETTI, 1983), agressões contra pessoas e de-predação de prédios públicos e comerciais. Momentos de descarga violenta que, segundo Canetti (Ibidem), está presente em todos os movimentos de massas nas mais diversas culturas, quando a massa “experimenta ela mesma o supremo sen-timento de sua potência e paixão selvagem”, que se lança contra vidraças, mutila esculturas, ocupa espaços públicos. Ataca-se a hierarquia que já não se reconhece, e atacam-se as distâncias, que separam a massa do poder. Mas o máscara V não é um personagem trágico. Tem um sorriso amigável, porém desafiador. Provoca desconfiança, e de fato muitos blogueiros viram por trás dessa máscara a ação de anarcopunks, neonazistas e vândalos. Um neonazista arrependido denunciava que por trás dos que provocavam o caos e expulsavam os militantes de esquerda estavam os máscaras V de Anonymus e um reconhecido jornalista alertava: “Não há um ‘movimento’ em disputa, mas uma multidão sequestrada por fascistas”:

O que começou como uma grande mobilização social contra o aumento das passagens de ônibus e em defesa de um transporte público de qualidade está descambando a olhos vistos para um experimento social incontrolável com ca-racterísticas fascistas que não podem mais ser desprezadas. A quem interessa uma massa disforme na rua, “contra tudo o que está aí”, sem representantes, que diz não ter direção, em confronto permanente com a polícia, infiltrada por grupos interessados em promover quebradeiras, saques, ataques a prédios pú-blicos e privados, ataques contra sedes de partidos políticos e a militantes de partidos, sindicatos e outros movimentos sociais? Como jornalista, militante político de esquerda e cidadão, já firmei uma convicção a respeito do que está acontecendo. Uma multidão cuja direção (rumo) passou a ser atacar instituições públicas, sem representantes, sequestrada por grupos de extrema-direita (WEIS-SHEIMER, 2013).

Surgia uma distinção dentro das mobilizações, uma dupla massa (Canet-ti) cujo comportamento mudava a natureza da manifestação e ameaçava assim a existência do movimento. Entretanto, o próprio movimento expressava através das redes que a ausência de liderança e de metas estratégicas não era uma falta e sim uma virtude. E o máscara, em seu transitar performático, também parecia rir das metas e das estratégias. Porém, nesse perambular sem meta exibia uma falta que é condição sine qua non da tragédia: o sujeito trágico tem plena consciência de seus dilemas. Exprime em palavras tanto os motivos de suas ações, como os

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dilemas e as forças irreconciliáveis que deve enfrentar. Mas tratava-se de uma mobilização dramática e, portanto esse núcleo trágico estava fora de cena ou talvez nas sombras do cenário. A questão do drama é a perplexidade, e o mascara V dialoga com esse sentimento. Na ultima cena do filme, os cidadãos de Lon-dres são convocados a colocar a mascara V e marchar em direção ao Parlamento. Uma multidão mascarada assiste atônita a implosão do Parlamento e nós, como espectadores manifestantes, moradores e transeuntes de grandes centros urbanos, compartilhamos essa perplexidade.

Referências

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237Javier Alejandro Lifschitz

Textos da net

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Javier Alejandro Lifschitz é doutor em Sociologia (IUPERJ). Professor do Depar-tamento de Filosofia e Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Pesquisa sobre temas da Sociologia da Cultura, principalmente mudanças nas for-mas de sociabilidade nas sociedades contemporâneas. Em 2012, publicou o livro Comunidades Tradicionais e Neocomunidades (Contracapa\Faperj, 2013).

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arte, mídia e Cultura

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LUGARCOMUMNº41,pp.241-

Omodoartísticoderevolução:dagentrificaçãoàocupação

Martha Rosler155

Embora extremamente importante, uma discussão sobreas lutas, êxodos e reapropriações do trabalho cognitivo especialmente no campo das artes visuais e especialmente quando tidas como a linha de frente da “classe criativa”, é supe-rada pela generalização mundial das manifestações públicas e das ocupaçõesdo ano passado, desse ano, e talvez do próximo. Eu gostaria de revisitara tese da classe criativa que eu tenho explorado aqui em uma recente série de ensaios vi-sando estruturar minhas percepções à luz dessas ocupações a fim de fazer algumas observações sobre a relação entre os artistas, o posicionamento da classe criativa e o movimento Occupy.

Mesmo antes da “multidão” se tornar um marco comum para os sonhos de revolução, em 1999, Seattle ganhou fama quando os protestos anti-corporati-vos reuniu ambientalistas e ativistas comunitários com forças de trabalho orga-nizadas para bloquear uma reunião da Organização Mundial do Comércio – um cenário que se repetiu em vários lugares em vários países desde então156. Não é novidade que os processos que ocorrem sob o termo de globalização – que visam os fluxos de capitais, bens e trabalho – criam uma unidade que nem sempre serve aos interessesdo capital ou dos capitalistas.

Canalizando Marx, Nouriel Roubini escreveu em “A Instabilidade da De-sigualdade” que “o capitalismo desregulado pode levar a ataques regulares de ex-cesso de capacidade, baixo consumo e à recorrência de crises financeiras destru-tivas, alimentadas por bolhas de crédito e preços de ativos e de crescimento.”157.

155 Tradução de Barbara Szaniecki e Cristina Ribas. © 2012 e-flux e Martha Rosler

156 O movimento geralmente etiquetado como anti-globalização é mais apropriadamente re-conhecido pelos seus membros e simpatizantes como movimento “alter-globalização” ou algu-ma variante do termo e é anti-corporativo mais do que anti-globalização, embora a globalização seja um termo derivado de seus entusiastas. Ver a discussão de Theodore Levitt abaixo.

157 Ver artigos de Nouriel Roubini. No post que data de 14 de outubro de 2011, ele começa aludindo à “turbulência social e política e instabilidade em todo o mundo, com massas de pes-

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Roubini afirma que o capitalismo tende a colapsos catastróficos: nada de novo até aqui. Mas a questão é que o neoliberalismo e sua financeirização desen-freada criaram um capitalismo que consome seu modelo anterior. Roubini segue em frente lembrando seus leitores que, mesmo antes da Grande Depressão, a bur-guesia esclarecida percebeu que a proteção ao trabalhador é um sistema redistri-butivo que fornecesse “bens públicos tais como educação, saúde e uma rede de segurança social” eram necessários para evitar a revolução.158 Roubini salienta em seguida que o Estado social moderno – welfare state – nasceu de uma necessidade na pós-Depressão de uma estabilização macroeconômica que exigia “a manuten-ção de uma grande classe média, ampliando a oferta de bens públicos por meio da tributação progressiva e fomentando oportunidades econômicas para todos”; mas tudo isto foi abaixo durante a desregulamentação maciça de Reagan-Thatcher, que Roubini – que não é sequer marxista – fareja em parte “nas falhas no modelo de bem-estar social europeu... refletido em bocejantes déficits fiscais, na elimina-ção da regulamentação e em falta de dinamismo econômico.” (Ibidem) 159

Diferentemente da maioria, Roubini proclama o fracasso deste “modelo econômico anglo-americano” de abraçar políticas econômicas que aumentam a desigualdade e criam um fosso entre rendas e aspirações. Políticas que, ao liberar o crédito ao consumo, fazem aumentar a dívida do consumidor assim como a dívida pública por causa da diminuição das receitas fiscais, e tudo isso seguidopor medi-das de austeridade contraproducentes. É exatamente este o modelo financeiro que tomou conta da imaginação e dirigiu as políticas das elites do ex-bloco do Leste.

soas nas ruas reais e virtuais”: “a Primavera Árabe; tumultos em Londres, de classe média de Israel protestos contra a alta dos preços da habitação e um aperto inflacionário sobre os padrões de vida, protestos de estudantes chilenos, a destruição na Alemanha dos carros de luxo dos ‘gatos gordos’; movimento da Índia contra a corrupção; infelicidade crescente com a corrupção e a desigualdade na China; e agora o ‘Occupy movimento de Wall Street ‘, em Nova York e em todos os Estados Unidos”.

158 Eu abordo esta questão em um ensaio de 1981 sobre fotografia documental (“dentro, ao redor e depois: reflexões em fotografia documental”). Apontava que as imagens ideológicas fo-ram empregadas nos Estados Unidos, durante a Grande Depressão, para mobilizar apoio para os mais pobres sob a administração de Roosevelt, com o entendimento de que aliviar o sofrimento seria evitar revolta.

159 Estou usando Roubini aqui como uma figura conveniente, uma vez que se poderia citar alguns outros economistas, particularmente Joseph Stiglitz, Dean Baker e Paul Krugman, do New York Times, ou Simon Johnson, ex-economista-chefe do FMI, para delinear os medos da esquerda-liberal dos economistas ocidentais.

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Muitas delas (como por exemplo a Letónia)160, ao implementar as medidas de aus-teridade prescritas,estão destruindo suas classes médias do presente e do futuro, exatamente como a Grã-Bretanha neo-Thatcheriana161.

Nos Estados Unidos, o Citibank, que exigiu dois resgates do governo americano após a crise financeira de 2008, publicou recordes de lucros trimestrais no valor de 3,8 bilhões de dólares nooutono de 2011, que correspondem a um aumento de 74% em relação ao trimestre anterior, enquanto seu diretor, Vikram Pandit, expressou sua simpatia aos manifestantes do Ocuppy Wall Street e propôs um encontro com eles.

Inspiradas nos levantes no mundo árabe em 2011, as ocupações em curso no mundo inteiro são movidas pela frustração de jovens de classe média e for-

160 Letônia, um pequeno país do Báltico que (como os outros dois países bálticos, Estônia e Lituânia) se libertou da União Soviética em colapso no início de 1990, é até agora o exemplo mais nítido dessa síndrome, também se pode citar a Irlanda e, possivelmente, a Grécia, Espanha e Portugal, no próximo ano, todos os que estão em contraste com o curso da Islândia (a menor economia de todos eles, mas não um membro da zona do euro) que prontamente rejeitou quais-quer condições impostas pelos organismos financeiros internacionais e, ao contrário, deu calote em sua própria dívida e perseguiu seus principais banqueiros por fraude criminal. No início de 2000, o governo de centro-direita da Letônia instituiu medidas neoliberais agressivas, em grande parte para se juntar ao euro e escapar do domínio da Rússia. Após a crise financeira de 2008 –, a Letônia experimentou o declínio financeiro mais precipitada de qualquer nação, perdendo cerca de um quarto do seu PIB em 2 anos. Seu governo, então, aplicou austeridade fiscal rigorosa, inclusive cortando pensões e salários. A classe média nascente, em uma história familiar, tinham sido induzida a comprar casas a crédito barato, mas esta dívida hipotecária (devida em grande parte a bancos suecos e alemães) não pode ser reembolsada, enquanto os valores de propriedade também caíram. As medidas de austeridade não conseguiram melhorar os balanços da Letônia, mas reduziu a classe média, para não mencionar os pobres, ao modo de subsistência ou à emi-gração. Dezenas de milhares de letões foram embora e a taxa de desemprego está em ou acima de 20%. A referência a partir de 2010 é http://www.counterpunch.org/2010/02/15/latvia-s-road--to-serfdom/ e, a partir de 2011: No entanto, como a Irlanda, a Letônia é bizarramente saudada como um exemplo bem sucedido de orçamento de austeridade. (Krugman escreve: “Mais alguns sucessos como este e Letônia estará de volta à Idade da Pedra”).

161 A Comissão Europeia votou em 2011 no “pacote de seis”, um conjunto de medidas que substitui as habilidades de membros de estados para controlar seus orçamentos, reinstituindo o limite do Tratado de Maastricht de 3% sobre os déficits e 60% do PIB em dívidas, além da co-brança de grandes multas, entre outras penalidades. Segundo a economista Susan George, a Co-missão também está construindo uma mudança na proteção dos trabalhadores levando a longas semanas de trabalho, salários mais baixos e, posteriormente, a aposentadoria tardia. A situação em relação à Grécia (que terá monitores da CE locais para impor medidas de austeridade) ainda em desenvolvimento mostra a direção anti-trabalho, uma característica do neoliberalismo, dos governantes financeiros europeus.

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mados – no caso árabe, trata-se de classes médias razoavelmente novas – que en-frentam sociedades controladas por elites extremamente ricas mas que têm pouca esperança num futuro seguro para si apesar de seus estudos universitários. Trata--se de sociedades que não fizeram nenhum esforço para criar Estados modernos de bem-estar ou mesmo neoliberais, nem para controlar a corrupção, a indiferença burocrática e o nepotismo flagrante, nem para instituirmais do que uma aparência de governança democrática. Manifestantes no mundo desenvolvido sabem que estão compartilhando condições que são funcionalmente semelhantes.162

Esses protestos – assim como as mobilizações ocorridas na França em 2006, onde se viu largamente uma mobilização contra a “precariedade” (ou “pre-carização), assim como as revoltas posteriores nas periferias de Paris ou na In-glaterra em agosto de 2011 – também refletem a ira de jovens de classe operária, especialmente a sua raiva contra a violência policial racista. No caso inglês, esses jovens estavam nas ruas destruindo e saqueando junto com os jovens da classe média. Alguns desse último grupo haviam se mobilizado meses antes – como os jovens chilenos estão fazendo ainda – em grande parte por conta dos aumentos esmagadores das mensalidades escolares que foram impulsionados pela coalizão conservadores-liberais-democratasno governo. Os protestos desses grupos, des-

162 Apesar dos protestos da Europa Ocidental em resposta a um futuro sem perspectivas tais como os indignados ou encampados na Espanha e as muitas manifestações na Praça Sintagma na Grécia que constituíram exemplos críticos e apesar da revolta na Tunísia que acabou sendo pelo menos em parte bem sucedida, a escala e sucesso improvável da ocupação na Praça Tahrir no Cairo se tornou a pedra de toque para o movimento, e assim permanece, independentemente de seus objetivos ainda não cumpridos, em reconhecimento do seu papel, ocupantes veteranos da Praça Tahrir, enviaram uma mensagem ao Occupy Wall Street: “A crise atual na América e na Europa ocidental começou, para você também, a trazer esta realidade para casa: do jeito como as coisas estão, todos irão trabalhar duro, as costas quebradas pelas dívidas pessoais e austeridade pública. Não satisfeito com a eliminação dos restos da esfera pública e do bem--estar social, o capitalismo e o estado de austeridade agora mesmo ataca a esfera privada e direito das pessoas à moradia decente com milhares de proprietários hipotecados encontram-se simultaneamente sem casa eem dívida com os bancos que os levaram para as ruas. Então, nós estamos com vocês não apenas em suas tentativas de derrubar o antigo, como para experimentar o novo. Não estamos protestando. Quem está lá para protestar? O que poderíamos pedir-lhes que eles poderiam conceder? Estamos ocupando. Estamos reivindicando esses mesmos espaços de prática pública que foram mercantilizados, privatizados e trancados nas mãos da burocracia sem rosto, carteiras imobiliárias e “proteção” policial. Guardem esses espaços, alimentem-nos e deixem crescer os limites de suas ocupações. Afinal, quem construiu estes parques, essas praças, prédios? Trabalho que os fez reais e habitáveis? Por que deveria parecer tão natural que sejam policiados e disciplinados? Recuperar estes espaços e gerenciá-los de forma justa e coletivamente é prova suficiente da nossa legitimidade.

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sas classes, foram disparados pelo reconhecimento de que provavelmente não há trabalho garantido para eles, ou talvez emprego algum.

Mas a precarização não é uma consequência necessária de alguma forma particular de trabalho.

A precarização agora se soma à mecanização (substituição de trabalha-dores por máquinas), à deslocalização (busca mundial do capital pela mais fraca regulamentação de trabalho e de meio ambiente) e à financeirização (manutenção do valor excedente no mercado de açõe sem oposição à mais-valia extraída de fabricação) como uma das grandes estratégias utilizadas para recuperar a lucrati-vidade desde os anos 1960. Estas estratégias, complementamos assaltos mais am-plamente observados ao Estado de bem-estar social e direitos do trabalhador (MA-RAZZI, 2011). Muitos dos estudantes e jovens diplomados que protestavam,por sua vez,vinham se preparando para empregos naquelas que temos chamado de indústrias do conhecimento, ou, mais recentemente, de indústrias criativas, um ramo da primeira.

1. Universidade como motor, modos de vida em estilo de vida

Deixe-mevoltar um pouco para trás, ou seja, para a consolidação deste setor na aurora da era da informação no início da década de 1960. Clark Kerr, economista do trabalho, primeiro reitor do campus elitista de Berkeley na Univer-sidade da Califórnia e então presidente de todo o sistema UC, viu a universidade como um local para a produção de trabalhadores do conhecimento. Em 1960, ele supervisionou a criação de um Plano Diretor de crescimento para oséculo XXI que harmonizava as instituições públicas de ensino superior e as organizou em três níveis: universidades de pesquisa, universidades estaduais e “junior colleges” de dois anos (rebatizados como “faculdades comunitárias”). Esse plano de refe-rência reconheceu a necessidade de unificar a formação e a administração de todo o setor do conhecimento, das elites para as classes trabalhadoras, em um mundo politicamente dividido. Kerr chamou a universidadede “instrumento privilegiado de propósito nacional” e imaginou que a” indústria do conhecimento” (termo que cunhou) superaria eventualmenteas indústrias em torno dos novos meios detrans-porte – estradas de ferro no século XIX e automóveis no século XX – na unifi-cação da nação, atuando como se um astroeconômico e servindo como motor do dominação dos EUA sobre o resto do mundo.

O movimento fundamental de protesto estudantil dos anos 1960 – o Mo-vimento pela Liberdade de Expressão em Berkeley – foi provocado em parte pelas políticas educacionais e de gestão assim como pelos objetivos de Kerr. Foi um

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movimento de um setor de liderança da classe média que estava destinado a se tornar a classe de trabalhadores de elite das novas indústriasdo conhecimento, senão seus próprios líderes. Ironicamente, hoje o sistema de UC está praticamente quebrado, confirmando o uso dos campi universitários pelo dicionário da Apple como exemplo para definir “termômetro”: “os campi universitários são muitas vezes o termômetro da mudança”.163

Em contraste, a subcultura punk britânica da década de 1970 foi, sem dú-vida, uma respostada classe trabalhadora a um futuro limitado, apesar de ser par-cialmente direcionada para escolas de arte que, em qualquer caso, foram inova-dores repositórios experimentais para desajustados da classe trabalhadora. Como Dick Hebdig e descreveu,

Apesar das garantias de confiança por parte tanto de políticos trabalhistas quanto de conservadores de que “nunca estivemos tão bem”, a classe se recusou a desaparecer. As formas nas quais a classe era vivida, as formas nas quaisa ex-periência de classe encontrava expressão na cultura, mudaram drasticamente. O advento dos meios de comunicação de massa, as mudanças na constituição da família, na organização da escola e do trabalho, transformações no status relativo de trabalho e de lazer, tudo serviu para fragmentar e polarizar a comunidade da classe operária, produzindo uma série de discursos marginais dentro dos limites gerais da experiência de classe (HEBDIGE, 1979).

O punk era antimercadoria e anticorporação, e seguiu uma tática de en-feiamento e automutilação, uma resposta foda-se! À cultura burguesa; o fato de que ele foi rapidamente mercantilizado e fortemente promovidona indústria da música não era a questão central... Até que, pelo menos, essa se tornou central. Para as gerações pós-1970, políticas de estilo de vida tornaram-se quase indistin-guíveis tanto da política quanto da vida cotidiana, e esse quadro de referência já se espalhou mundo afora.

Na verdade, o estilo de vida tem sido intensamente desenvolvido como um ponto importante para a comercialização de bens de consumo. Em análises de marketing do estilo de vida oferecidas em 1984 (quando o pensamento era novo), Theodore Levitt, professor de administração de empresas e marketing de Harvard, comentou sobre o fracasso da empresa Hoover em vender máquinas de lavar na Europa: “Perguntava-se às pessoas que funções elas gostariam de ter em sua má-quina de lavar roupa ao invés de perguntar o que elas queriam da vida” (LEVITT,

163 O New Oxford American Dictionary vem instalado em computadores da Apple que usam a versão OS X desde 2005.

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1984)164. É creditado a Levitt, editor da Harvard Business Review, a populariza-ção do termo “globalização”. Em A Imaginação do Marketing, seu best-seller de 1983, Levitt indicou que, como resultado da expansão mundial da mídia, os Estados Unidos estavam em uma posição ímpar para comercializar suas mercado-rias em todos os lugares, elevando seus denominados bens “high touch” – jeans e Coca-Cola – ao lado de bens de alta tecnologia (e, integralmente, junto com eles, o americanismo e o idioma Inglês) ao patamar de bens mais cobiçados do mundo.

Uma força poderosa impulsiona o mundo na direção de uma comunhão convergente, e essa força é a tecnologia... Quase todo mundo, em todos os luga-res, quer todas as coisas que eles tenham ouvido falar sobre, visto ou experimen-tado através das novas tecnologias.

Em suma, sem nomeá-la, mas simplesmente colocando-a sob a regra da “imaginação”, Levitt define a nova chave para o domínio do marketing como uma subordinação no atacado das reivindicações de um produto racional à modelagem psicológica criada por Bernay e universalizada, que é a base do marketing de estilo de vida. Levitt se refere à homogeneização como meio tanto quanto como resultado da globalização.165 Ele diferencia as multinacionais das corporações globais “forward thinking”, que, segundo ele, vendem da mesma maneira em todo e qualquer lugar produtos padronizados – automóveis, aço, produtos químicos, petróleo, cimento, produtos e equipamentos agrícolas, construções industriais e comerciais, serviços de bancos e seguros, computadores, semicondutores, trans-portes, instrumentos eletrônicos, produtos farmacêuticos e de telecomunicações, para mencionar apenas alguns dos mais óbvios.

Ao longo de 30 anos, colocamos muitas dessas categorias na matriz bas-tante atrapalhada de Levitt sob a rubrica das indústrias do conhecimento, incluindo a gestão da produção industrial fordista (de “automóveis, aço, produtos químicos,

164 Ao distinguir o que ele considera um arranjo multinacional de um global, Levitt escreve: “O caso da Hoover ilustra como a prática perversa do conceito de marketing e a ausência de qualquer tipo de imaginação de marketing deixou atitudes de multinacionais sobreviverem quando os clientes realmente querem os benefícios da padronização global. O projeto todo começou com o pé errado. Ele perguntou às pessoas quais características eles queriam em uma máquina de lavar roupa, ao invés de o que queria da vida. Vender uma linha de produtos adaptados individualmente a cada nação é impensável. Gerentes que se orgulhavam de praticar o conceito de marketing ao máximo não o praticaram de fato. Hoover fez as perguntas erradas, para em seguida não aplicar nem o pensamento nem a imaginação para as respostas “Theodore Levitt,” a globalização dos mercados, “The McKinsey Quarterly” (Verão 1984).

165 No homogeneizante mercado mundial, certos bens tais como pizza, tacos, bagels e tornam-se significantes quase universais da diferença.

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petróleo, cimento, produtos e equipamentos agrícolas, construções industriais e comerciais, serviços de bancos e seguros, computadores, semicondutores, trans-portes, instrumentos eletrônicos, produtos farmacêuticos”). Ao longo de 30 anos, as políticas de estilo de vida, tão unificadoras quanto diferenciadoras, ajudam a determinar como vivemos ou como devemos viver. As pessoas formam alianças baseadas no gosto, sobretudo através do tribalismoda aparência-como-identidade. Aglomerações de estilos de vida mercantilizados incluem não apenas bens, mas pessoas, crianças, conquistas pessoais, e elas tendem aser caras para serem adqui-ridas e mantidas. O punk agora é outra opção de estilo de vida, ainda que urbana e romântica. Junto com o Gótico eoutros modos de vida associados com o East Village de Nova Iorque, o punk também fornece o uniforme preferidodos descon-tentes dos subúrbios e das pequenas cidades shopping-moradia, enquanto o estilo hip-hop do Bronx (“Bronxish”), que é popular no mundo inteiro, exerce a mesma função para a classe trabalhadora “de cor”166. Nesta taxonomia, “hipsterism” é o estilo de vida de figuras tipo-artista – o triunfo da superfície sobre a substância – e é uma consequência direta da disponibilidade fácil de bens culturais através de meios tecnológicos.

Mas há momentos em que a profissionalização da formação em artes obtida em faculdades e universidades, combinada com a captura e branding de iniciativas lideradas ou gerenciadas por artistas – aqueles que residiam fora do âmbito das instituições artísticas – podem ampliar a rede social e o vocabulário de ação. Sabemos que, em uma economia pós-industrial, praticamente todo o traba-lho cai de certa forma sob o reinado da linguagem e do comportamento simbólico. Com certeza, todos os produtos culturais são achatadas em “informação”, mistu-rando junto pesquisa, redação, entretenimento e, claro, arte. A recepção popular da arte e seu público amplamente expandido permitiram, no momento presente, uma visibilidade mútua entre artistas e outros grupos subempregados, tanto for-mados quanto subformados. Ou, talvez, mais diretamente, à procura de uma série de textos mestres, o recém-profissionalizado discurso da produção artística aco-modou-se nas teorias Continentais do capital estetizado. Como explicar a posição peculiar de artistas na ou perto da vanguarda da organização capitalista? Assim, mesmo que a tendência seja para a profissionalização e emburguesamento dos artistas, juntamente com outros membros do setor simbólico, quando o futuro bate numa parede de tijolos, essas ideias e alianças em potencial podem ter consequ-ências revolucionárias. Os artistas e grupos liderados por artistas, e outros grupos pertencentes à demografia da classe criativa – que muitas vezes se sobrepõem ao

166 A autora Martha Rosler utiliza a expressão “de cor”.

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grupo dos que se identificam como ativistas de base, quer tenham frequentado ou não escolas de arte – estiveram no centro da instituição, da criação de estratégias e da energização do Occupy Wall Street no Zuccotti Park de Nova Iorque – reba-tizado Liberty Park.”167

Um modo de vida que se baseia na virtude e boa vida secular, tal como foi vendido a uma geração que cresceu formada por campanhas de escola e de mí-dia que promoviam responsabilidade cívica e moral – tais como Diga não às dro-gas168, Fumar mata, e Salve a Terra – é, sem dúvida alguma, mais propensa a ser adotado por jovens graduados em escolas de arte urbanas do que qualquer outro

167 A Occupy Wall Street foi posta em movimento por uma série de eventos que eu posso apenas parcialmente esboçar aqui. A ocupação havia sido prenunciada um par de meses antes por Bloombergville – nome inspirado no prefeito de Nova York – que foi um acampamento de três semanas de líderes sindicais e ativistas de base realizado no City Hall Park contra cortes orçamentais draconianos. (Outro precedente importante: a longa semana ocupação do Wiscon-sin State House, em Madison, apoiado pelos sindicatos, incluindo sindicatos de polícia). Um artigo especulando sobre a possibilidade de emular a Praça Tahrir pelo anarquista e antropólogo David Graeber foi publicado na Adbusters, uma revista de inspiração situacionista e de alto brilho canadense. Em seguida, a Adbusters fez uma chamada geral para a ocupação de Wall Street em 17 de setembro. As discussões sobre a possibilidade de construir um movimento haviam sido realizadas durante o verão no 16Beaver, um espaço discursivo mantido por artistas na área de Wall Street. Uma reunião ad hoc em 16Beaver depois de um seminário pesado sobre Dívida / Commons com ativistas e acadêmicos em que Graeber discutidas seu trabalho sobre a dívida (Debt: The First 5,000 Years, New York, Melville House, 2011) foi o impulso final para a ocupação centrada em uma Assembleia Geral. O grupo Bloombergville reuniu a ocupação de 17 de setembro mas Graeber, juntamente com o japonês anarquista ativista Sabu Kohso e a artista anarquista e ativista Georgia Sagri a quem ele havia encontrado no seminário 16Beaver organizaram em seguida a Assembleia Geral em linhas anarquistas.Em outubro de 2011, a Adbusters ofereceu um aconselhamento tático que era mais artivista do que ativista nos moldes da velha escola, mas ainda assim parecia familiar aos protestos contra a OMC em Seattle, ou até mesmo os dias de Yippie no final dos anos 1960 e até as performances dadaístas de antes da guerra: “Chegou o momento de amplificar o teatro do limite ... brinca-deiras desviantes, performances subversivas e desvios lúdico de todos os tipos. Abra sua ima-ginação insurrecional. Qualquer coisa, de uma transformação de baixo para cima da economia global até a mudança na maneira como nós comemos, nos locomovemos, vivemos, amamos e nos comunicamos... pode ser a faísca que sustenta uma revolução global da vida cotidiana! “Os Estudos da Performance Departamento da Universidade de Nova York logo depois começou a apresentar uma série semanal de palestras e workshops com foco na mudança social através de “táticas e estratégias criativas.”

168 Drogas, isto é, não consideradas como parte do formulário aprovado Big Pharma. Isso é importante porque, entre outras coisas, permitiu que os adolescentes fizessem distinções entre boas e más drogas, mas muitas vezes com base em outros critérios de legalidade.

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grupo demográfico. Estes são jovens profissionais urbanos talvez, mas não são os “yuppies” do passado (embora me interesse verificar que talvez o termo tenha re-tornado). Esses últimos eram advogados, publicitários e editores de revistas com alta renda, enquanto esses novos jovens profissionais urbanos são trabalhadores de baixo nível de especialização e aspirantes em seu campo de atuação. A vida urbana tem forte apelo para os membros dessas indústrias que, por sua vez, são constituídas por redes de lojas de pequeno porte que se beneficiam das relações face a face e das excitações do ambiente urbano.

2. A nova cidade criativa

Essa onda de preferência renovada pela cidade pode ser atribuída ao boom econômico do pós-guerra nas democracias do oeste industrial – estou olhando para os Estados Unidos –, o que levou à afluência crescente da classe mé-dia. Imediatamente após a guerra, após terem ganho alguma segurança financeira, muitos moradores das cidades migraram para as pequenas cidades e subúrbios recém-construídos, fato que causou certo encolhimento urbano.169

Um efeito desse despovoamento foi a evacuação de muitos centros de ne-gócios e a falência de muitas indústrias da cidade. Mas a direção da migração co-meçou a ser revertida quando crianças entediadas da classe média suburbana (jun-tamente com os gerentes de empresas e os yuppies recém-formados) foram atraídas pelos prazeres organizados da vida da cidade, não apenas pelos museus e teatros, como também pela vertiginosa mistura de anonimato, comunidade, diversidade e possibilidade que preenchem o imaginário urbano. Para ser direta, a experiência brutalmente homogênea de vida nos subúrbios, com seus shoppings idênticos e re-des de fast food, não oferece muito daquele potencial “modo de ser criativo” na for-mação de identidade; e, se a ideia de local existe hoje, ele se verifica tanto na cidade quanto em pequenas cidades rurais, mas não em subúrbios cercados.

Esse repovoamento e transformação das cidades – de espaços carentes de lojas e fábricas, carentes de recursos, e habitados por pessoas pobres e da classe trabalhadora ou ocupantes que vivem no parque habitacional degradado, transformado em espaços de desejo da classe média, de compras e entretenimento

169 Considerando que o racismo foi um importante motivador, o encolhimento urbano resultante é algumas vezes atribuído não em pouca proporção ao “movimento branco”. Pequenas cidades se tornam cidades-dormitório para trabalhadores dos centros. A cidade de pequeno porte se tornou a preferência de moradores dos Estados Unidos por conta da sua história e foi idealizada durante o segundo ponto alto da sociologia americana que foi difundida na Segunda Guerra Mundial.

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de alto nível – levou pelo menos uma geração. Isso também depende do esforço conjunto de líderes da cidade. Os bairros Soho e East Village em Nova Iorque já haviam provado, no final da década de 1970, que a transformação de antigos ar-mazéns e áreas decadentes em bens imobiliários valiosos poderia ser realizada ao permitir que artistas pudessem viver e trabalhar neles – mais que nada, o governo da cidade reconhecia e identificava essas pessoas que fariam uso, entendendosuas necessidades. Os representantes eleitos que, em épocas anteriores, poderiam ter apoiado o trabalho organizado, descobriram que tais círculos eleitorais estavam desaparecendo. Artistas, além disso, não iriam se organizar e tornar a vida difícil para os governos municipais. Nas décadas seguintes, o modelo Soho tornou-se paradigmático para cidades no mundo inteiro. (Outra tática popularera atrair pe-quenas novas lojas industriais, principalmente aquelas de alta tecnologia.) Mas não importa o quanto as artes (artes cênicas ou artes visuais institucionalizados em museus) foram consideradas motor econômico em algumas cidades, tal recur-so não é aplicável em qualquer lugar, e nem toda cidade pode de fato funcionar como um ímã para as artes. Uma nova teoria urbana se fazia necessária170.

A utilidade cívica de jovens educados, mas muitas vezes economicamen-te marginalizados foi popularizada por um jovem professor de planejamento ur-bano na Universidade de Carnegie-Mellon University, na cidade pós-industrial de Pittsburgh. O que o professor Richard Florida viu à sua volta naquela cidade em declínio foram bairros tornados aconchegantes e atraentes graças aos esforços de jovens recém-formados que montavam lojas de cafée pequenas empresas em locais de aluguel barato. O ambiente de consumo amigável criado – amigável para os clientes de classe média – enfatizava gostos compartilhados desde meados da década de 1960 através de escolas, músicas, filmes e revistas – gostos que define-mum determinado nicho entre formados e profissionais da classe média. Aquilo mostrava que elementos do que poderia, ironicamente, ser visto como virtude su-burbana, da reciclagem à jardinagem passando pelo artesanato (talvez resgatados da sabedoria de uma pequena cidade paradisíaca por revistas de estilos de vida nostálgicos), estavam sendo trazidos de volta aos bairros decadentes da cidade.

O professor Florida desenvolveu uma nova teoria baseada em vender esses amontoados de jovens geralmente subempregados – assim como categorias subculturais como gays, que tendem eles também a se reunir no que se costuma-

170 Ainda que a demonização da classe trabalhadora e dos trabalhadores pobres em áreas “caindo de maduras” para a “colheita” da propriedade privada seja uma prática já antiga, a chegada de “gente boa” nesses territórios apenas recentemente constituiu um perfil por si mesma; anteriormente, privilégios de classe eram tomados como um direito de posse merecido.

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va chamar de vizinhança boêmia – para planejadores urbanos como se fossem remédio certo para o desuso urbano (Ou aparentemente vendê-los, pois há aqui uma tática que funciona como uma isca). Criando uma forma nova e cativante de pensar o marketing da cidade como um marketing do estilo de vida – assim como o fizera anteriormente Theodore Levitt para o marketing de marca – e oferecendo uma tábua de salvação para gestores municipais muitas vezes desesperados171, seu livro A Ascensão da Classe Criativa... e seu papel na transformação do trabalho, do lazer, da comunidade e do cotidiano ofereceu ao evangelismo dos negócios o esboço de uma virada astuta. Com suas análises aparentemente sistemáticas, Flo-rida transformou a popularidade do seu livro num novo emprego e numa carreira de consultor. Ele é agora o chefe do Instituto Prosperidade Martin da Universida-de de Toronto, e é consultor para cidades, empresas, museus e organizações sem fins lucrativos ao redor do mundo. Prosperidade, assim como o adorável nome de Florida, é uma palavra-chave. Seu site, creativeclass.com, diz,

O Grupo Creative Class é uma boutique empresa de consultoria de serviços composta dos principais pesquisadores, especialistas em comunicação e consul-tores empresariais. CCG alia uma abordagem pioneira de pensamento global de liderança com estratégias comprovadas, oferecendo assim a clientes em todo o mundo a inteligência crítica de mercado para a competitividade e maior pros-peridade econômica.

Fiz referência à tese de “classe criativa” de Florida em uma série de arti-gos anteriores; aqui eu ofereço um resumo abreviado para elaborar a argumenta-ção. Existe certa ironia em revisitar este assunto agora quando a crise financeira de longo prazo lança alguma dúvida sobre o apelo da teorização da criação de classe nas áreas sob pressão financeira, mas a tese teve uma década inteira para vingar, e ela teve garra.172 As análises de Florida têm sucesso com gestores municipais na medida em que parecem promover diversidade em formas que muitas vezes reproduzem o que já está em vigor. Muitos que examinaram seus dados demons-

171 Florida não criou a ideia de “classe criativa”, mas ele tornou isso popular através de cate-gorias estatísticas. De acordo com sua tese, a classe criativa constitui cerca de 30% dos trabalha-dores norte-americanos, mas como veremos, os agrupamentos que ele usa são problemáticos.

172 Toronto, a base de Florida, é atualmente afetada pelo maior aumento do número de protes-tos contra receber prisioneiros, um estilo populista de direita, que se junta aos pronunciamentos e ações racistas e anti-gay. Repudiando o programa do governo anterior, a Ford cortou o finan-ciamento para ciclovias e metrô. Ao serem perguntados sobre a resposta de Florida, moradores de Toronto com os quais conversei disseram que a cidade estava eliminando todas as coisas que faziam dela a “sua cidade”

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traram a insuficiência das suas análises e, portanto, de suas conclusões.173 Críticos apontam que, ao confiar em categorias do censo padrão, ele varre para dentro da classe criativa todos os trabalhadores da indústria do conhecimento, desde os dos call-centers até os analistas de sistemas profissionais, cientistas e matemáticos – raramenteartistas.174 Um consenso sobre suas conclusões é que elas se referem à bem-estabelecida tese do “capital humano” de um desenvolvimento urbano co-locado dentro de novos quadros linguísticos, e mais importante, com a etiqueta “criativa” que vem nomeando “de lavada” todos que trabalham nas indústrias do conhecimento. Um grupo pequeno e relativamente pobre de habitantes urbanos – aqueles que oferecem ao consumidor simpatia e cor local – torna-se a face de um grupo maior e mais rico de membros basicamente invisíveis do “núcleo super-criativo” de Florida.175 Em seu “jogo de conchas”, criativos são definidos numa

173 Recentemente Flórida tem sido criticado novamente pela interpretação superficial e agre-gação de dados de pesquisa e estatísticas econômicas em seu artigo “Por que a América conti-nua se tornando mais conservadora”, publicado na venerável revista The Atlantic (atualmente de centro-direita), da qual ele é um dos 19 editores. Veja: http://www.theatlanticcities.com/po-litics/2012/02/why-america-keeps-getting-more-conservative/1162/ Muitos dos outros comen-tadores leem os dados quase da maneira oposta, e clamam que o eleitorado dos Estados Unidos está, por outro lado, crescendo em suas crenças, sem parar, no sentido do liberalismo enquanto que a política dos Estados Unidos, graças à radicalização do Partido Republicano, moveu-se para a direita. Veja por exemplo: http://bit.ly/1al97NX

174 Flórida engenhosamente inclui em seu mix um grupo estatisticamente pequeno de boê-mios que inclui os gays mas, como o economista de Harvard, Edward Glaeser relutantemente observou, sua regressão de dados sugere que, em apenas duas cidades, localizadas no estado da Flórida, a população gay de fato ajuda na economia.

175 Para subordinar a criatividade para fins econômicos, você precisa subordiná-la em todas as suas formas. Você não pode apenas gerar uma economia tecnológica ou economia da informa-ção ou uma economia do conhecimento; você deve subordinar os aspectos multidimensionais da criatividade. … existem três tipos de criatividade: criatividade tecnológica...; criatividade econômica, … transformar essas duas coisas em novos negócios e novas indústrias; e criativi-dade cultural e artística, … novas formas de pensar sobre as coisas, novas formas de arte, novos designers, novas fotografias, novos conceitos. Essas três coisas tem que vir juntas para acelerar o crescimento econômico. A classe criativa é composta de duas dimensões. Existe o núcleo dos supercriativos, … cientistas, engenheiros, técnicos, atores, artistas, músicos – os tão chamados boêmios que constituem cerca de 12% da força de trabalho... o núcleo supercriativo é realmente a força motriz que leva ao crescimento econômico. Eu incluo aí profissionais que trabalham com criação e gerentes, advogados, pessoas da área financeira, área de saúde, técnicos, que também usam suas próprias ideias, seu conhecimento e criatividade em seu trabalho. Eu não incluo nessa classe pessoas que trabalham em serviços ou indústrias de manufatura que usam criatividade em seu trabalho.

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concha como pessoas cujo engajamento mental está no coração do seu trabalho e em outra concha como pessoas que sabem viver com estilo, bem e barato, e sob outra concha ainda como pessoas essencialmente com altos salários e impostos a pagar. Como inconveniente – visto que a política segue as prescrições –, a classe trabalhadora é marginalizada, empurrada ainda mais para as bordas da cidade ou para os subúrbios, enquanto nos recintos recém-conquistados da cidade, escolhas burguesas – de rituais egocêntricos, mercantilizados e mediatizados – embalam cada momento marcante da vida, desde o nascimento até noivado e festas de des-pedida, casamentos, chás de bebê, nascimentos, comunhões, e talvez até mesmo falecimentos.

3. Os limites da criatividade e do liberalismo

Muitos críticos ingenuamente não percebem que Florida, assim como Clark Kerr, é um liberal social. Como a maioria dos neoliberais, ele está lá fora nas barricadas retóricas defendendo a tolerância, subsídios, bem como o direito da classe criativade realizar o trabalho da classe patrícia em troca de pouca ou nenhuma compensação. Estranhamente, ele pode então ser tido comoa projeção coletiva de certo ramo da elite liberal. Liberais gostam de celebrar artistas, ou, melhor ainda, “criativos” – aquele grupo amorfo de cervejeiros, padeiros, agri-cultores urbanos e donos de bar – contanto que suas festas e celebrações possam ser patrocinadas por bancos, empresas e fundações se que seus esforços possam ser civicamente “logomarcados”. Institutos de arquitetura realizam reuniões se publicam boletins publicizando cidades “habitáveis”. Instituições de artes se be-neficiam da atenção de órgãos governamentais e de fundações, mas também é importante considerar os custos.

Artistas já cúmplices (intencionalmente ou não) da renegociação de sig-nificado urbano para as elites foram chamados aparticipar de gestão social. Con-cessões imobiliárias têm sido estendidas a artistas e a pequenas entidades sem fins lucrativos, na esperança de melhorar a atratividade dos bairros emergentes e trazê-los de volta para níveis altos de aluguel. O destaque da arte e da “artistici-dade” confere a museus e grupos de arquitetura, assim como a grupos de artistas, artistas e administradores de organizações artísticas de pequeno porte e sem fins lucrativos a possibilidade de se inserir na conversa sobre modismo cívico.

Dificilmente os artistas são inconscientes de seu posicionamento por eli-tes urbanas, desde os interesses municipais e de propriedade imobiliária até os co-lecionadores de ponta e curadores de museus. Ironicamente, talvez, este também é o momento em que o engajamento social por parte dos artistas é uma modali-

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dade cada vez mais viável no mundo da arte, e jovens curadores se especializam em projetos de prática social. Muitos artistas estudaram na esperança de ganhar comerciabilidade e, muitas vezes, assim, adquirem pesados encargos de dívida. Escolas tornaram-se gradualmente gestoras e formadores de desenvolvimento ar-tístico; por um lado, elas preparam artistas para entrar no mercado de arte, e, por outro, por meio de departamentos de “prática pública” e “prática social”, elas moldam as restrições disciplinares de uma arte que pode ser considerada como um aparato governamental menor. Estes programas são seminários seculares de “novas formas de ativismo, de práticas de base comunitária, de organização alter-nativa e liderança participativa nas artes” que exploram “a miríade de links entre arte e sociedade para examinar as maneiras pelas quais os artistas... se envolvem com questões cívicas e articulam sua voz na esfera pública”.176

Se voltarmos a olhar novamente para os Estados Unidos – mas não so-mente lá – veremos que as instituições de artes e arquitetura estão bastante satis-feitas de estarem sendo arrastadas pela maré da classe criativa de planejamento urbano. O luxuoso fabricante de veículos BMW da velha economia da distinção se juntou ao Museu Guggenheim para criar “um laboratório móvel que viaja pelo mundo para inspirar ideias inovadoras para a vida urbana” com os nomes de ar-tistas e arquitetos de alto perfil nele colados.177 O “Lab” amarra firmemente a corporação, o museu, arquitetura, arte e entretenimento ao emburguesamento das cidades. Cidadania urbana substituiu outras formas de halo de polimentopara os chamados cidadãos corporativos. A propósito, todos eles gostam de bicicletas. As-sim como o Urban Omnibus, que também gosta de “Arte como ativador urbano”.

O Urban Omnibus é um projeto online da venerável Architectural Le-ague de Nova Iorque e é financiado por fundações, pela cidade de Nova Iorque

176 Essas frases são de um anúncio de trabalho difundido pelo departamento de uma grande universidade que oferece “um grau de mestre em Arte-Política que trata de elaborar, em uma chave ativista, o nexo entre a política que a arte faz e a política que faz a arte.” Para além do meu ceticismo, eu não quero desacreditar o potencial de tal formação e participação em uma rede; o problema recai na vida curta que tais iniciativas podem ter antes das instituições as transformarem em zumbis. Veja as duas últimas partes dos meus artigos da Classe Cultural para uma discussão do argumento de culturalização de Fredric Jameson e sua adoção de George Yúdice para debater que a arte que pode ser enquadrado como prática social pode colocar os artistas na posição de involuntariamente servir os objetivos do Estado e, concentrando-se em melhoramento, de abandonar a possibilidade da crítica.

177 No site The BMW Guggenheim Lab (http://www.bmwguggenheimlab.org), há o um es-forço realizado, sem sucesso, por artistas para ocupar o laboratório ao longo de um dia de ação dos artistas.

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epelo Governo Federal.178 Seu recurso recente – “Ação Cívica: Uma Visão para Long Island City” – descreve um novo empreendimento desenvolvido por dois museus locais de arte contemporânea que “convida equipes lideradas por artistas a propor visões para o futuro da cidade de Long Island”, uma localidade no bairro de Queens em Nova Iorque que é uma ruína pós-industrial com novo desenvol-vimento residencial de alto nível em seu “waterfront”. Outro recurso – “Abrindo Espaços”– é “um projeto de pesquisa, design e advocaciapara moldaro parque residencial de Nova Iorque para atender às necessidades de mudança da forma como vivemos hoje”179. Enquanto escrevo, em março de 2012, há uma atração especial no projeto em que um escritor freelance descreve a festa de aberturada recém-renovada Casa de Detenção do Brooklyn como um evento destinado a ga-rantir a vizinhos gentrificadores de que tudo ficará bem. Estou aqui usando o Lab e o Urban Omnibus para representar a míriade de esforços de órgãos municipais e instituições de elite – e algumas instituições autônomas ou ligadas a universi-dades públicas que ainda seguem um caminho não corporativo – para adotar uma criatividade praticamente naturalizadas e memes “hipster-friendly” em termos de design, imaginação, advocacia assim como, em alguns aspectos, eu estou usando o nome de Florida para representar a tese da classe criativa que o seu trabalho tem ajudado a transformar em jargão político dominante.

A versão que Florida concebeu do modelo de transformação urbana do Soho, como já afirmei, não consegue captar o agenciamento dos atores em seus cenários de transformação. Assim como a ciência foi tida pela mente capitalista como um degrau necessário para a tecnologia (um termo de negócio), a criati-vidade é considerada como o ingrediente necessário de “inovação”. As classes criativas tal como concebidas por Florida operam estritamente dentro da visão de mundo retratada pelo imaginário capitalista. Mesmo aqueles que não são sim-plesmente empregados em companhias de alta tecnologia são vistos como ins-tituindo pequenos negócio se aprendendo a oferecer serviços de boutique retrô

178 O projeto Urban Omnibus (http://urbanomnibus.net) é financiado pelo Fundo de Inovação Cultural da Fundação Rockefeller da Prefeitura de Nova Iorque, pelo Fundo Nacional de Dota-ção para as Artes, pelo Departamento de Projetos Culturais de Nova Iorque, e pelo Conselho da Cidade de Nova Iorque. A Liga de Arquitetura foi fundada em 1881 por Cass Gilbert e há muito tempo procura reconhecer a importância das artes em relação à arquitetura.

179 A frase “como nós vivemos agora” evidencia um conjunto previsível de afirmações previ-síveis quem constitui esse “nós”. Como escrevi em março de 2012, existe uma atração especial nesse local que é descrita pelo escritor free lance como uma Open House na recentemente reno-vada Casa de Detenção do Brooklyn, designada a apaziguar os gentrificadores da vizinhança, certificando-os de que tudo estará bem.

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começos de lojas e delicatessen de bairros americanos de antes da guerra ou serviços de fornecedores do século XIX (em breve teremos novamente a carroça de leite e o entregador de água com gás) ou lojas idealizadas, francesas ou italia-nas, em cidades e vilas. Eles não têm nenhum agenciamento para além da apli-cação de suas habilidades criativas em benefício dos gentrificadores e dos bem feitores. Eles não têm nenhum agenciamentono que diz respeito à transformação política e social em grande escala. É verdade que o modelo de Florida não está estritamente interessado naqueles cuja leitura contemporânea reconhece como artistas. Mas aqui o quadro de agenciamento é ainda pior se comparado ao dos artistas de mercado cujo potencial social vale, bastante diretamente, para servir os interesses da clientela internacional que habita os níveis de renda mais altos – um papel de serviço ao qual uma ou duas gerações de artistas foram treinadas para ambicionar.

Mas esta não é a imagem de nós mesmos que a maioria de nós – artis-tas, curadores e críticos – gostaria de reconhecer. Como outros participantes dos movimentos que ocorrem no mundo inteiro, e como participantes dos anteriores, os artistas tendem a querer emprestar a sua energia e as suas habilidades para a melhoria social e para o sonho utópico, mas não necessariamente como partici-pantes dentro dos sancionados quadros institucionalizados. A imaginação artística continua a sonhar com a ação histórica. Em um contexto de recessão econômica prolongado como o que estamos vivendo agora, enquanto a tese de classe cria-tiva mostra seus limites no que diz respeito à salvação de cidades, torna-se mais claro que artistas e outros membros da comunidade artística pertencem à classe pan nacional ou não nacional cuja composição é forjada através de fronteiras e cujos membros estão inclinados, como exige o cliché, a pensar globalmente e agir localmente.

Movimentos políticos são perpetuamente perseguidos por acusações de nostalgia dos anos 1960 e até mesmo de ludismo, acusações que resultam do antimodernismo da contracultura daquela década. Pessoas de esquerda são ro-tineiramente ridicularizadas pela Direita como hippies sujos de merda e, quan-do as ocupações começaram, a Direita não demorou a usar esta imagem para desacreditar os ocupantes. Mas as constelações de dissidência mudaram muito desde os anos 1960. Se as pessoas têm por objetivo romper com a modernidade, elas o fazem com uma gama variada de teóricos continentais a quem recorrer, e isso sem o modelo terceiro-mundista da contestação política em que o camponês ligado à terra – ou o nômade tribal para aqueles que não têm simpatia pela re-volução socialista – representou fortemente um ideal. A revolução hoje tem ares

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mais anarco-sindicalista ou eventualmente ares de conselho comunista do que marxista-leninista. A cidade não é simplesmente o terreno a ser evacuado, nem é o local de uma guerrilha warfare; ela é um quebra-cabeça conceitual e também um campo de batalha em que as apostas são uma guerra de classes em câmera lenta; e a agricultura é trazida para a cidade não por sonhadores em roupas caseiras, mas por aqueles que poderiam adotar o traje do arquiteto paisagista profissional ou do apicultor. “Criativos” podem trazer não apenas uma formação em design e bran-ding e, muitas vezes, um conhecimento de agitprop histórico e performance de rua, como também a capacidade de trabalhar com as ferramentas tecnológicas de pesquisa, de elaboração de estratégias e de implementação de ações em espaços virtuais ou físicos. A classe média – verdadeira ou funcionalmente – está à von-tade com os discursos e os modos de esforço intelectual tais como são exigidos no ensino superior ou na preparação para a faculdade. Artesanato e habilidades se encontram envoltos em uma estrutura que difere significativamente do seu en-tendimento anterior, mas o papel hegemônico das indústrias do conhecimento e os “dispositivos” eletrônicos de produção e de comunicação tornam esse quadro quase onipresente.180 Os horários muitas vezes flexíveis de artistas e de outros membros dos setores precários das classes criativas/boêmias de Florida também permitem uma liberdade de ir e vir em acampamentos e reuniões: uma capacidade de alterar tempo e compromissos de trabalho que não é possível para todos.

180 O sinal mais proeminente de sofisticação tecnológica é a referência visual frequente de Anonymous, um grupo amorfo de hackers, ou hackivistas (dos quais um pequeno grupo foi detido em fevereiro de 2012, chamado LulzSec), que usam máscaras como as de Guy Fawkes com o “V” da franquia Vendetta (usado por manifestantes e ocupantes como um sinal comum). “Anonymous” aparentemente conduziu uma série de negação de serviços contra os websites dos governos da Tunísia, Egito e Bahrain duranteas revoluções em curso nesses lugares, e isso expressou ou criou apoio para o Occupy. Veja http://bit.ly/178TPjb.Eu não tenho espaço aqui para dissecar ainda mais o possível papel desse pontualmente anár-quico e de certo modo festivo agrupamento de hackers. Mas, de maneira prosaica, uma gama de facilidades tecnológicas é sugerida pela facilidade com que o movimento Ocuppy fez uso não apenas das redes sociais amplamente conhecidas como Facebook e Twitter mas também de outros sites menos conhecidos como Vibe, o antigo IRC, o agora indispensável Livestream, Reddit, ou sites de reprodução de chat, de acordo com a revista PC assim como Tumblr e Google docs. Veja por exemplo http://mappingthemovement.tumblr.com .Uma avaliação anterior:“Nós criamos google docs compartilhados para que possamos nos co-municar... E nós criamos “google voice numbers” para todos... Uma página Tumblr, “Nós so-mos 99%” (http://wearethe99percent.tumblr.com)… revela um momento ruim para as pessoas, que se veem a si mesmas longe do topo do 1% dos Americanos.” http://news.discovery.com/tech/occupy-wall-street-tumblr-111006.htm

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Podemos ver os ativistas de ocupação reclamando um direito, criando uma presença, estabelecendo uma nova esfera pública, recusando-se a apresentar simplesmente demandas aos representantes e governantes e, exigindo o restabe-lecimento da política e decretando eles mesmos a democracia (a democracia tem sido parte da marca privada norte-americana, embora seja geralmente combinada com o neoliberalismo ou neoimperialismo). Ao mesmo tempo em que dou boas vindas ao novo, não posso deixar de apontar o velho: não para as demandas de auto-governo por parte de um grupo de rebeldes burgueses coloniais nas colônias americanas do século XVIII, e sim para o Movimento dos Direitos Civis Ame-ricanos e um de seus filhos, o movimento estudantil mundial de inspiração Free Speech e anti-guerra da década de 1960 para quem a democracia – democracia direta, sem representação – era uma ideia fundamental, pelo menos no momento zero do movimento no início daqueles anos.181 Na iteração atual, a contribuição de artistas famosos como Shepard Fairey (famoso por seu cartaz de Obama na campa-nha Hope de 2008) foram educadamente saudadas, mas estão por fora da questão, já que não é difícil ver as próprias ocupações como grandes obras de arte públicas em processo com um elenco de milhares de pessoas182. A grande maioria dos artistas – que formam o núcleo mal pago, o exército urbano não remunerado cujas atividades

181 Aqui eu estou olhando não apenas para as reuniões na cidade nos primeiros anos dasco-lônias americanas e sim, explicitamente, ao modelo de democracia participativa não violenta que foi apresentado por um dos grupos centrais do Movimento de Direitos Civis, o Comitê de Coordenação de Estudantes de Não-violentos, ou SNCC. Muitos dos jovens estudantes ativis-tas que se uniram à campanha da SNCC “Freedom Rider” o fizeram para barrar a segregação racial no Sul Americano, fato que influenciou os princípios que foram delineados logo após o posicionamento de Port Huron, um documento inicial do movimento estudantil e anti-guerra. Evidentemente, a história, as origens e as influências desses movimentos são muito mais com-plexas do que eu consigo rascunhar aqui. O amplamente conhecido discurso galvanizante do líder estudantil de Berkeley Mario Savio liberado no campus de Berkeley em 2 de dezembro de 1964, durante um impasse com a polícia universitária, inclui o seguinte preâmbulo: Eu peço a você que considere – se isto é uma firma, e se o Grupo de Regentes é o Grupo de Diretores, e se o Presidente Kerr de fato é o diretor-gerente, então direi algo a você – o corpo docente é um bando de empregadores e nós somos o material bruto! Mas nós somos um monte de material bruto que não queríamos ser – temos um processo se desenvolvendo em cima de nós. Não queremos ser transformados em produtos... Não queremos ser comprados por clientes de Uni-versidades, sejam eles o governo, a indústria, o trabalho organizado, sejam eles quem forem! Nós somos seres humanos!

182 Grupos de artistas estão cada vez mais atestando isso, por bem ou por mal; veja, por exemplo http://newamericanpaintings.wordpress.com/2011/11/09/the-art-of-occupatione http://bit.ly/pe4WZA

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os acólitos de Florida desejam explorar – vivem em um estado de precariedade que podem levá-los a buscar soluções sociais de maneiras novas e inesperadas. Aqui é o lugar onde o denominado “modo de produção artística” entra.

A socióloga urbana Sharon Zukin, escrevendo em 1982, identificou essa precariedade da vida boêmia como um dos cinco principais meios com queo modo de produção artística afeta o meio ambiente urbano. Os outros são: a “ma-nipulação de formas urbanas [e] a transferênciado espaço urbanodo velho mundo da indústria para o mundo “novo” das finanças, oudo reino da atividade econô-mica produtiva para aquele da atividade econômica não produtiva; expectativas decrescentes sobre a oferta de habitação resultante da substituição dos arranjos de vida boêmios para a habitação contemporânea; e, finalmente, a função ideológica:

Enquanto o trabalhador “colarinho azul” se afasta do coração da cidade financeira, é criada a imagem quea economia da cidade chegou a um patamar pós--industrial. O mínimo que se pode dizer é que esse fato desloca as questões das relações de trabalhoindustriais paraoutro terreno183.

Se a tese de classe criativa pode ser vista como uma espécie de hino à harmonia percebida entre os “criativos” e os “financeiros”, juntamente com os líderes da cidade e interesses imobiliários, orientando a cidade em direção àcon-dição pós-industrial, talvez as atuais ocupações de base possam ser vistas como a erupção de um novo conjunto de questões relacionado a um novo conjunto de relações sociais de produção. O modo de produção, lembremo-nos, inclui as for-ças de produção, mas também as suas relações, e quando estes dois entram em conflito, nasce uma crise. Se a tese de classe criativa pode ser vista como uma espécie de hinoà harmonia entre as forças criativas de produção e as relações sociais urbanas que as utilizariam em benefício de cidades desprovidas de capital industrial, talvez as atuais ocupações de base possam ser vistas como a inevitável chegada do conflito entre os criativos e a cidadeque os usa. É interessante, a este respeito, que o grito de guerra foi “ocupar” (que ecoa a injunção semelhante de Florida para gentrificar), isto é, para ocupar o espaço, para ocupar o imaginário social e político, de forma análoga à forma como movimentos anteriores radicali-zaram liberdade ememancipação, república em democracia, igualdade em justiça. Enquanto Florida diz gentrificar, nós dizemos ocupar.

Isso nos leva ao próximo passo, já em curso. O que as ocupações têm feito é fazer com que os membros de diferentes grupos – grupos de advocacia dos bairros, grupos de direitos de imigrantes e grupos de trabalhoda classe trabalhado-ra, organizados ou não – se tornassem visíveis uns aos outros, e a primeira fase do

183 Sharon Zukin, Loft Living (Vivendo num loft), p. 180.

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movimento Occupy consistiu em colocá-los em alianças temporárias. São essas alianças que formamos núcleos de ocupação do presente e do futuro.

Esse artigo é uma versão expandida da palestra apresentada em “Traba-lho da Multidão? A Economia Política da Criatividade Social”, uma conferência organizada pela Universidade Free/Slow de Varsóvia, e que aconteceu naquela universidade entre 20 e 22 de outubro de 2011, apenas um mês após o movimento Occupy ter começado. Esse artigo recebeu as importantes contribuições de Ste-phen Squibb, em comentários e discussões.

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Martha Rosler é uma artista americana. Nascida em 1943 em Nova Iorque, ela tra-balha com vídeo, foto-texto, instalação e performance, e escreve sobre arte e cultura. O trabalho de Rosler é centrado na vida cotidiana e na esfera pública, sempre de olho na experiência das mulheres. Uma de suas preocupações recorrentes são os meios de comunicação e a guerra, assim como arquitetura e ambiente construído, com ênfase nos problemas de habitação e de transporte.

Tradutoras Bárbara Szeniecki é graduada em Comunicação Visual pela École Nationale Supé-

rieure des Arts Décoratifs, mestre e doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica. Atualmente é coeditora das revistas Lugar Comum, Global/Brasil e Multitudes. No momento, desenvolve pesquisa de pós-doutorado intitulada “Tecnologias digitais e autenticidade: o esta-tuto da imagem fotográfica na linguagem visual contemporânea” na Escola Superior de Dese-nho Industrial da UERJ. É autora do livro Estética da Multidão.

Cristina Ribas é artista visual e pesquisadora. Mestre em Processos Artísticos Con-temporâneos, pela UERJ (Rio de Janeiro, RJ – 2008). Estudou artes visuais no Atelier Livre da Prefeitura em 1998 e 2004 e graduou-se no Instituto de Artes da UFRGS, em 2004 (Porto Ale-gre, RS). Desenvolve junto com A Arquivista a pesquisa militante Arquivo de emergência: do-cumentação de eventos de ruptura. Faz parte do Grupo Laranjas (desde 2001, coletivo In situ).

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Economia e subjetividade o aceleracionismo do ponto de vista do marxismo

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Apresentação

Bruno Cava

A Revista Lugar Comum inaugura a seção “Economia e Subjetividade”. Entendida como “ciência dos comportamentos” (Foucault) ou “produção de sub-jetividade” (Deleuze/Guattari). O “econômico” é concreção de relações sociais e repercute o estado de uma relação de força, ora travestida como pacto, ora como conflito aberto entre tendências políticas. Aqui, o objetivo é abordar e problemati-zar o que se convencionou chamar de “economia”, como campo do conhecimen-to, além de qualquer demarcação disciplinar ou positivismo metodológico. Sem ressentir o pensamento nalgum saber especialista que, por meio de dogmáticas e propedêuticas, procure se blindar das intervenções políticas. Estamos propondo apresentar textos a respeito de outra economia, uma altereconomia. Uma alterna-tiva à economia hegemônica aplicada na gestão dos estados e do capital, bastante blindada perante à crítica filosófica ou ação democrática, que costuma classificar como inadequadas diante do “fenômeno econômico”, suas exigências, lógicas e leis. E libertar as forças produtivas, assim, de sua concha estatal e capitalista.

A luta contra essa economia gera sua própria verdade segundo um saber menor, desviante principalmente da camisa-de-força da economia clássica e ne-oclássica. Na história da luta de classe, as duas últimas dedicaram-se a abstrair as suas próprias “objetividades”, num complexo processo de interdições, esque-cimentos, dogmatizações, normalizações do conhecimento, sempre produzido de dentro dos conflitos. A lei da oferta e da procura, a figura do indivíduo, e o paradig-ma da escassez, a divinização do mercado – produtos conceituais resultantes de um teatro das relações de força – aos poucos se normalizaram como “fatos” do econô-mico, usado então para legitimar o estado moderno e o capitalismo que lhe corres-ponde. Daí decorreu um paradoxal realismo político, pautado pelas imperiosas ra-cionalidades econômicas, respaldado pelos arcanos e mistérios do Mercado. Nesse realismo político que se apresenta neutralizado em relação à política, assentam-se as tecnologias de poder do capitalismo tardio: a nova sociedade do trabalho pós--fordista e o vagalhão ideológico que muitos preferem chamar “neoliberalismo”.

Na modernidade, o “econômico” apareceu para resolver as contradições entre o “político” e o “social”. Situado a meio termo, a alta síntese do “econômi-co” propicia um terreno de pacificação dos conflitos, delimitando as condições ao redor do que o embate pode chegar a consensos, à assunção de um mínimo opera-

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tivo. Trata-se um modelo dialético oscilante entre os pares “público” e “privado”. Ao privado caberia a busca da produtividade e competitividade, terra da iniciativa de indivíduos empreendedores; enquanto ao público competiria regular o proces-so, assegurar o provimento das funções de estado tão indispensáveis à coletiviza-ção do capital, a seu funcionamento segundo a paz dos proprietários. A economia clássica e neoclássica é forjada, dentro desse diagrama de poder, como um saber e uma técnica debruçados sobre a produção de equilíbrio geral do sistema, fecha-mento operativo e uma “pré-história” econômica para garantir sua própria justeza.

Outra tendência teórico-política, que termina por compartilhar lençóis com a primeira, consiste na reedição de um malthusianismo – com tintas ago-ra ecológicas. Diferentemente da primeira, esta não é uma corrente hegemônica, apesar de desviar parte das energias de transformação segundo um duelo idealista de posições, o que evidentemente interessa à conservação da ordem econômica. Grosso modo, abstraindo o homem da natureza, ela termina por reforçar a ar-madilha antropocêntrica que pretensamente combate, ao opor dois termos que não podem funcionar em separado. Como se houvesse um Homem destruindo o Planeta que precisasse ser contido! Ou, então, que vivêssemos num mundo com recursos limitados e uma voracidade ilimitada do Homem pela satisfação. Trata--se, aí, de combater o desejo, o que seria a essência de um capitalismo como franja expansiva de voracidades antinaturais. Nessa reedição de um humanismo autori-tário, o desejo acaba criminalizado no lugar do capital, Gaia passa a personalizar a natureza; e o Homem termina por substituir forças histórico-políticas muito con-sistentes e bastante localizadas, produtoras de sofrimento mas também de revolta e transformação. Gaia anula a natureza naturante, numa regressão mítica à “Mãe Natureza” – um produto ideológico em tempos de “fim da história”. Nessa con-cepção transcendente do mundo, as dores da luta não aparecem, as agruras e de-safios da terra são substituídas por uma consciência flutuante acima dos conflitos, purificada, “limpa”, e que se pretende universalista.

Os decrescimentistas respondem ao capitalismo negando o desejo, em vez de buscar libertá-lo. Contestam as relações de produção sem se situar nas forças produtivas. Exercem uma crítica negativa sem movimento real que lhes dê suporte, o que transforma o embate política numa discussão sobre limites e culpas. Sem o desejo, sem a capacidade de identificar dentro da configuração ca-pitalista as tendências de fuga, só lhes resta mesmo a impotência e mesmo o culto à impotência, – disfarçado doravante de conveniente subtração da cena política ou, máxima patologia, a resignação fatalista do fim do mundo.

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Diante disso, como primeiro tema abordado nestaa seção, trazemos o debate teórico-político do “aceleracionismo”. Tomado em seu viés marxista, ou seja, como crítica da economia política hoje, o aceleracionismo pode vir a ser uma aposta promissora. A hipótese aceleracionista não só contesta o fechamento da economia, – segundo a medida e imagem do valor, como concreção do social e pacificação do político, – como também rejeita o dogma da escassez, para retraçar as coordenadas e polivalências do mundo da produção segundo a matriz da su-perabundância. Uma economia pensada pela abundância, contra a racionalidade distributiva. Uma “antieconomia” da subjetividade, contra as objetividades simé-tricas dos limites e das insaciedades.

Porque é o capitalismo que, como já indicavam em fagulhas do pensa-mento Deleuze e Guattari, especialmente no Anti-Édipo, precisa erigir e salva-guardar instâncias de antiprodução. Os elementos de antiprodução – a divisão artificial entre “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”, ou entre funções de produção e funções de poder – não frustram o capitalismo. As antiproduções existem a fim de conter a multiplicação delirante e explosiva de qualidades, vir-tudes e diferenças. O valor, dessa maneira, é um “menos”. O capital não funciona mediante uma expansão infinita – pauta-se, isso sim, por uma expansão mitigada, ou melhor, por uma alavancagem, devidamente acompanhada de mecanismos de controle, e formas cada vez mais sofisticadas e abstratas de extrair valor. Essa ala-vancagem se apropria das potencialidades próprias da abstração, para impregnar a exploração em formas gradativamente mais difusas e abscônditas. O patrão se dissolve numa rede de explorações moduladas, e o comum é expropriado na des-medida da produção biopolítica. Parte da lógica estatal, por sua vez, é transposta à esfera dinâmica do mercado, em oposição dialética.

O aceleracionismo propõe não recuar, mas ir em frente até o fim. Propõe radicalizar as tendências explosivas do desejo de que o capitalismo tanto precisa, e tanto teme. Um desejo cujas concatenações são forças produtivas, e cuja onto-logia constituinte muda a cada vez, resultado e causalidade de lutas, reinvenções e conspirações, a cada vez.

***

Nesta primeira versão de “Economia & subjetividade”, publicamos qua-tro textos que abordam criticamente, sem proselitismos, o debate vívido ao redor do aceleracionismo em 2013.

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LUGARCOMUMNº41,pp.269-

ManifestoAcelerar:porumapolítica aceleracionista

Alex WilliamsNick Srnicek 184

O aceleracionismo impulsiona rumo um futuro que é mais moderno, uma modernidade alternativa que o neoliberalismo é incapaz de gerar intrinsecamente.

I. Introdução: sobre a conjuntura

1. No começo da segunda década do século XXI, a civilização global en-frenta uma nova espécie de cataclismo. Os apocalipses a caminho tornam ridículas normas e estruturas organizacionais da política forjadas com o nascimento do esta-do-nação, a ascensão do capitalismo e um século XX de guerras sem precedentes.

2. Ainda mais significante, é o colapso do sistema climático do planeta. Com o tempo, se ameaça a continuação da existência da população humana em todo o globo. Ainda que essa seja a mais crítica das ameaças que a humanidade enfrenta, coexiste e se entrecruza uma série de problemas menores, mas poten-cialmente tão desestabilizadores. O esgotamento terminal de recursos, especial-mente das reservas de água e energia, oferece uma perspectiva de fome em massa, colapso dos paradigmas econômicos e novas guerras frias e quentes. A incessante crise financeira levou governos a abraçar espirais mortíferas de políticas de aus-teridade, privatização de serviços do estado de bem-estar social, desemprego em massa e estagnação salarial. A automação crescente nos processos produtivos, inclusive no trabalho intelectual, evidencia a crise secular do capitalismo, em vias de se tornar incapaz de manter os atuais padrões de vida mesmo para as antigas classes médias do norte global.

3. Em contraste com essas catástrofes em contínua aceleração, a política atual está assolada pela inabilidade de gerar novas ideias e modos de organização, necessários para transformar as nossas sociedades, de modo a enfrentar e solucio-nar as aniquilações futuras. Enquanto a crise ganha força e velocidade, a política abranda e recua. Nessa paralisia do imaginário político, o futuro foi cancelado.

184 Texto traduzido por Bruno Stehling.

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270 MANIFESTOACELERAR:PORUMAPOLíTICAACELERACIONISTA

4. Desde 1979, a ideologia política globalmente hegemônica é o neolibe-ralismo, encontrado com algumas variantes entre os principais poderes econômi-cos. Apesar dos desafios profundamente estruturais que os novos problemas glo-bais lhe apresentam, mais imediatamente as crises financeiras, fiscais e de crédito, em curso desde 2007-2008, os programas neoliberais só evoluíram no sentido de aprofundá-los. A continuação do projeto neoliberal, ou neoliberalismo 2.0, come-çou a aplicar outra rodada de ajustes estruturais, em especial, encorajando novas e agressivas incursões do setor privado sobre o que resta das instituições e serviços socialdemocratas. Isso tudo apesar dos efeitos econômicos e sociais imediatamen-te negativos, e das barreiras de longo prazo impostas pelas novas crises globais.

5. Que as forças do poder governamental, não-governamental e corpora-tivo, de direita, tenham sido capazes de fazer pressão com a neoliberalização é, ao menos em parte, um resultado da paralisia contínua e da natureza ineficaz de mui-to do que resta da esquerda. Trinta anos de neoliberalismo tornaram a maioria dos partidos políticos de esquerda desprovida de pensamento radical, esvaziada e sem um mandato popular. Na melhor das hipóteses, eles responderam a nossa presente crise com chamados a um retorno à economia keynesiana, apesar da evidência de que as condições que possibilitaram a socialdemocracia do pós-guerra não exis-tem mais. Não podemos absolutamente retornar por decreto ao trabalho indus-trial-fordista de massa. Mesmo os regimes neossocialistas da Revolução Boliva-riana da América do Sul, ainda que animadores em sua habilidade de resistir aos dogmas do capitalismo contemporâneo, se mantêm lamentavelmente incapazes de apresentar uma alternativa para além do socialismo de meados do século XX. O trabalho organizado, sistematicamente enfraquecido pelas mudanças introduzi-das no projeto neoliberal, está esclerosado em um nível institucional e – quando muito – é capaz apenas de mitigar ligeiramente os novos ajustes estruturais. Mas sem uma abordagem sistemática para construir uma nova economia, ou uma so-lidariedade estrutural para promover mudanças, por hora o trabalho permanece relativamente impotente. Os novos movimentos sociais que emergiram a partir do fim da guerra fria, experimentando um ressurgimento nos anos após 2008, foram igualmente incapazes de conceber uma nova visão ideológico-política. Ao invés disso, eles consomem uma considerável energia em processos direto-democráti-cos internos e numa autovalorização afetiva dissociada da eficácia estratégica, e frequentemente propõem alguma variante de um localismo neoprimitivista, como se, para fazer oposição à violência abstrata do capital globalizado, fosse suficiente a frágil e efêmera “autenticidade” do imediatismo comunal.

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271Alex Williams e Nick Srnicek

6. Na ausência de uma visão social, política, organizacional e econômica radicalmente nova, os poderes hegemônicos da direita continuarão capazes de impor o seu imaginário obtuso, a despeito de toda e qualquer evidência. Quando muito, a esquerda será capaz momentaneamente de resistir parcialmente a algu-mas das piores incursões. Mas isso será irrisório contra uma maré inexorável em última instância. Gerar uma nova hegemonia global de esquerda implica na re-cuperação de futuros possíveis que foram perdidos, e, de fato, na recuperação do futuro como tal.

II. Interregno: sobre aceleracionismos

1. Se há algum sistema associado a ideias de aceleração, é o capitalismo. O metabolismo essencial do capitalismo demanda crescimento econômico, com competição entre entidades capitalistas individuais, mobilizando desenvolvimen-tos tecnológicos crescentes, na tentativa de alcançar vantagem competitiva, tudo acompanhado por uma crescente mobilidade social. Em sua forma neoliberal, essa autoapresentação ideológica é uma das forças de liberação das forças de destrui-ção criativa, liberando inovações tecnológicas e sociais em contínua aceleração.

2. O filósofo Nick Land captou isso de forma mais certeira, com uma crença míope, porém hipnótica, de que a velocidade capitalista por si só poderia gerar uma transição global em direção a uma singularidade tecnológica sem para-lelos. Nessa visão do capital, o humano pode eventualmente ser descartado como mero obstáculo a uma abstrata inteligência planetária, que se constrói rapidamen-te a partir da bricolagem de fragmentos das civilizações passadas. Contudo, o neoliberalismo de Land confunde velocidade com aceleração. Podemos estar nos movendo rapidamente somente dentro de um enquadramento estritamente defini-do de parâmetros capitalistas que jamais oscilam. Experimentamos apenas a cres-cente velocidade de um horizonte local, uma simples arremetida descerebrada; ao invés de uma aceleração que também seja navegável, um processo experimental de descoberta dentro de um espaço universal de possibilidades. É este último modo de aceleração que tomamos por essencial.

3. Ainda pior, como Deleuze e Guattari reconheciam, desde o começo, o que a velocidade capitalista desterritorializa com uma mão, ela reterritorializa com a outra. O progresso se torna restrito a um enquadramento de mais-valor, exército proletário de reserva, e capital de livre flutuação. A modernidade é re-duzida a medidas estatísticas de crescimento econômico, e a inovação social fica incrustrada com as sobras kitsch de nosso passado comunal. A desregulação de

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272 MANIFESTOACELERAR:PORUMAPOLíTICAACELERACIONISTA

Tatcher-Reagan senta-se confortavelmente ao lado da família vitoriana “back-to--basics” e valores religiosos.

4. Uma tensão mais profunda dentro do neoliberalismo ocorre em termos da sua autoimagem como o veículo de modernidade, como sinônimo para mo-dernização, enquanto promove um futuro cuja constituição interna é incapaz de promover. De fato, conforme o neoliberalismo progrediu, ao invés de possibilitar a criatividade individual, tendeu a eliminar a inventividade cognitiva, em favor de uma linha de produção afetiva de interações roteirizadas, junto a cadeias globais de suprimentos e uma zona oriental de produção neofordista. Um minúsculo cog-nitariado de trabalhadores da elite intelectual encolhe com o passar dos anos – e de maneira crescente na medida em que a automação algorítmica adentra as esfe-ras de trabalho afetivo e intelectual. O neoliberalismo, ainda que se, postulando como um desenvolvimento histórico necessário, foi de fato um meio meramente contingente para afastar a crise do valor que emergiu nos anos 1970. Era inevita-velmente uma sublimação da crise, ao invés de sua superação final.

5. É Marx, junto com Land, que continua a ser o pensador aceleracionista paradigmático. Ao contrário da crítica bastante familiar, e mesmo ao compor-tamento de alguns marxianos contemporâneos, devemos lembrar que o próprio Marx usou as mais avançadas ferramentas teóricas e dados empíricos disponíveis, na tentativa de entender e transformar completamente seu mundo. Ele não foi um pensador que resistiu à modernidade, mas antes um que procurou analisar e inter-vir dentro dela, compreendendo que apesar de toda sua exploração e corrupção, o capitalismo permanecia como o mais avançado sistema econômico em sua época. Suas conquistas não deveriam ser revertidas, mas aceleradas para além das restri-ções da forma valor capitalista.

6. De fato, como Lênin escreveu no texto de 1918, intitulado “Esquerdis-mo: doença infantil do comunismo”:

O socialismo é inconcebível sem a engenharia capitalista de larga es-cala baseada nas últimas descobertas da ciência moderna. É inconcebível sem a organização estatal planificada que mantém dezenas de milhões de pessoas na observância mais estrita de um padrão unificado de produção e distribuição. Nós, marxistas, sempre falamos disso, e não vale a pena perder dois segundos que seja falando com pessoas que não entendem nem mesmo isso (anarquistas e uma boa parte dos revolucionários da esquerda socialista).

7. Como Marx sabia, o capitalismo não pode ser identificado como o agente da verdadeira aceleração. Da mesma forma, a avaliação de políticas de esquerda como antitéticas à aceleração tecnossocial também é, pelo menos em

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parte, uma deturpação grave. De fato, se a esquerda política tiver um futuro, ele deve ser um que abraça ao máximo essa tendência aceleracionista suprimida.

III: Manifesto: sobre o futuro.

1. Acreditamos que a cisão mais importante na esquerda de hoje está entre aqueles que sustentam uma política popular de localismo, ação direta e in-cansável horizontalismo, e aqueles que esboçam o que deve passar a ser chamado livremente de uma política aceleracionista com uma modernidade de abstração, complexidade, globalidade e tecnologia. Os primeiros se mantêm satisfeitos em estabelecer espaços pequenos e temporários de relações sociais não-capitalistas, esquivando-se dos problemas reais envolvidos no enfrentamento de adversários intrinsecamente não-locais, abstratos e profundamente enraizados em nossa infra-estrutura diária. O fracasso de tais políticas está embutido desde o começo. Em contraste, uma política aceleracionista procura preservar as conquistas do capita-lismo tardio enquanto vai além do que seu sistema de valor, estruturas de gover-nança, e patologias de massa permitem.

2. Todos queremos trabalhar menos. É uma questão intrigante por que o principal economista do mundo da era pós-guerra acreditava que um capitalismo iluminado inevitavelmente progrediria em direção a uma redução radical da jor-nada de trabalho. Em “Perspectivas Econômicas para Nossos Netos” (escrito em 1930), Keynes previu um futuro capitalista onde indivíduos teriam seu trabalho reduzido a três horas por dia. O que ocorreu, entretanto, foi a progressiva elimina-ção da distinção entre trabalho e vida, com o trabalho acabando por permear cada aspecto da fábrica social emergente.

3. O capitalismo começou a restringir as forças produtivas da tecnologia, ou ao menos, direcioná-las a fins desnecessariamente estreitos. Guerras de paten-tes e monopolização de ideias são fenômenos contemporâneos que apontam tanto para a necessidade do capital de mover-se além da competição, quanto para sua abordagem crescentemente retrógrada da tecnologia. As conquistas apropriada-mente aceleracionistas do neoliberalismo não levaram a menos trabalho ou menos estresse. E ao invés de um mundo de viagens espaciais, choque futurista e poten-cial tecnológico revolucionário, existimos em um tempo onde a única coisa que se desenvolve é uma parafernália marginalmente melhor para consumidores. In-contáveis iterações dos mesmos produtos básicos sustentam a demanda marginal de consumidores às custas da aceleração humana.

4. Não queremos retornar ao modelo fordista. Nenhum retorno ao fordis-mo é possível. A “era de ouro” capitalista tinha como premissa o paradigma de

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produção no ambiente ordenado da fábrica, onde trabalhadores (homens) rece-biam segurança e um padrão de vida básico em troca de uma vida inteira de tédio embrutecedor e repressão social. Tal sistema se sustentava sobre uma hierarquia internacional de colônias, impérios e uma periferia subdesenvolvida, sobre uma hierarquia nacional de racismo e sexismo, e sobre uma rígida hierarquia familiar de subjugação feminina. Apesar de toda a nostalgia que muitos podem sentir, esse regime é tão indesejável quanto impossível de retornar na prática.

5. Aceleracionistas querem libertar as forças produtivas latentes. Nesse projeto, a plataforma material do neoliberalismo não precisa ser destruída. Precisa ser reaproveitada para fins comuns. A infraestrutura existente não é um estágio capitalista a ser esmagado, mas um trampolim para lançar o pós-capitalismo.

6. Dada a escravidão da tecnociência aos objetivos capitalistas (especial-mente desde o fim dos anos 1970) certamente ainda não sabemos o que um cor-po tecnossocial moderno pode fazer. Quem entre nós reconhece completamente quais potenciais inexplorados aguardam na tecnologia que já foi desenvolvida? A nossa aposta é que os potenciais verdadeiramente transformadores de grande parte de nossa pesquisa tecnológica e científica permanecem inexplorados, reple-tos de características (ou pré-adaptações) atualmente redundantes que, após uma mudança além do míope “socius” capitalista, pode se tornar decisiva.

7. Queremos acelerar o processo de evolução tecnológica. Mas o que estamos defendendo não é tecnutopismo. Nunca acredite que a tecnologia será su-ficiente para nos salvar. Necessária, sim, mas nunca suficiente sem ação sociopo-lítica. A tecnologia e o social estão intimamente ligados um ao outro, e mudanças em qualquer um deles potencializam e reforçam mudanças no outro. Enquanto os tecnutópicos defendem que a aceleração, por si só, seja capaz de automaticamente superar o conflito social (numa nova era utópica, quando ele não mais tiver senti-do); a nossa posição consiste em que a tecnologia deva ser acelerada exatamente porque necessária para tensionar e vencer esses conflitos.

8. Acreditamos que qualquer pós-capitalismo exigirá planejamento pós--capitalista. A fé depositada na ideia de que, após uma revolução, as pessoas irão espontaneamente constituir um novo sistema socioeconômico que não seja sim-plesmente um retorno ao capitalismo é ingênuo na melhor das hipóteses, e igno-rante na pior delas. Para aprofundar isso, precisamos desenvolver tanto um mapa cognitivo do sistema existente quanto uma imagem especulativa do futuro sistema econômico.

9. Para fazê-lo, a esquerda deve aproveitar cada avanço tecnológico e científico possibilitado pela sociedade capitalista. Declaramos que a quantificação

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não é um mal a ser eliminado, mas uma ferramenta a ser usada da maneira mais eficaz possível. A modelagem econômica é – colocando de forma simples – uma necessidade para tornar inteligível um mundo complexo. A crise financeira de 2008 revelou os riscos de se aceitarem cegamente modelos matemáticos, ainda que isso seja um problema de autoridade ilegítima e não de matemática propria-mente. As ferramentas a ser encontradas na análise de redes sociais, em mode-lagem baseada em agentes [agente-based modelling], em análise de big data e de modelos econômicos de não-equilíbrio são mediadores cognitivos necessários para entender sistemas complexos como a economia moderna. A esquerda acele-racionista deve se alfabetizar em cada uma dessas áreas técnicas.

10. Qualquer transformação da sociedade deve envolver experimentação econômica e social. O projeto de gestão participativa da economia Cybersyn, do governo chileno de Salvador Allende (1971-1973), é emblemático dessa atitu-de experimental – fazendo a fusão de tecnologias cibernéticas com modelagem econômica sofisticada e uma plataforma democrática instanciada na própria in-fraestrutura tecnológica. Experimentos similares foram conduzidos na economia soviética dos anos 1950 e 1960, empregando cibernética e programação linear, numa tentativa de superar os novos problemas enfrentados pela primeira econo-mia comunista. Que ambos tenham fracassado pode-se atribuir, em última aná-lise, às restrições políticas e tecnológicas sob as quais operavam esses pioneiros cibernéticos.

11. A esquerda deve desenvolver a hegemonia sociotécnica: tanto na es-fera das ideias, quanto na esfera das plataformas materiais. Plataformas são a infraestrutura da sociedade global. Elas estabelecem os parâmetros básicos do que é possível, tanto em termos de comportamento quanto em termos ideológicos. Neste sentido, elas incorporam o transcendental material da sociedade: elas são o que tornam possíveis conjuntos particulares de ações, relações e poderes. Ainda que boa parte da plataforma global existente esteja direcionada para as relações sociais capitalistas, essa não é uma necessidade inevitável. Essas plataformas ma-teriais de produção, finanças, logística e consumo podem e serão reprogramadas e reformatadas para fins pós-capitalistas.

12. Não acreditamos que ação direta seja suficiente para alcançar nada disso. As táticas habituais de marchar, erguer cartazes, e estabelecer zonas au-tônomas temporárias correm o risco de se tornarem substitutos confortáveis ao êxito efetivo. “Ao menos fizemos alguma coisa” é o grito de guerra daqueles que privilegiam a autoestima ao invés da ação efetiva. O único critério de uma boa tática é se ela permite êxito significativo ou não. Devemos acabar com a fetichiza-

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ção de modos particulares de ação. A política deve ser tratada como um conjunto de sistemas dinâmicos, dilacerados por conflito, adaptações e contra-adaptações e corridas armamentistas estratégicas. Isso significa que cada tipo individual de ação política se torna embotado e ineficaz com o tempo, à medida que o outro lado se adapta. Nenhum modo de ação política é historicamente inviolável. De fato, com o tempo, há uma crescente necessidade de se descartarem táticas familiares, em função das forças e entidades contra o que se pretenda aprender a lutar de forma eficaz. Em parte, é a inabilidade da esquerda contemporânea em fazer isso que está próximo ao cerne do mal-estar contemporâneo.

13. O avassalador privilegiamento da democracia-enquanto-processo precisa ser deixado para trás. A fetichização da abertura, horizontalidade, e in-clusão de boa parte da atual esquerda “radical” faz a cama da ineficácia. Sigilo, verticalidade e exclusão têm todos o seu lugar também na ação política efetiva (embora, obviamente, não um lugar exclusivo).

14. A democracia não pode ser definida simplesmente por seus meios – seja via votação, discussão ou assembleias gerais. A democracia real deve ser definida por seu objetivo – autodeterminação coletiva. Este é um projeto que deve alinhar a política com o legado do iluminismo, na medida em que é apenas através da mobilização de nossa habilidade de entender melhor a nós mesmos e a nosso mundo (social, técnico, econômico, psicológico) que podemos governar a nós mesmos. Precisamos postular uma legítima autoridade vertical, controlada coleti-vamente, além das formas de socialidade distribuídas horizontalmente, para evitar nos tornarmos escravos tanto de um centralismo totalitário tirânico, quanto de uma caprichosa ordem emergente que esteja além de nosso controle. O comando do Plano deve ser casado com a ordem improvisada da Rede.

15. Não apresentamos nenhuma organização particular como os meios ideais para incorporar esses vetores. O que é preciso – o que sempre foi preciso – é uma ecologia de organizações, um pluralismo de forças, ressoando e retroalimen-tando suas forças comparativas. Sectarismo é a sentença de morte da esquerda tanto quanto é a centralização, e nesse sentido, continuamos a acolher experimen-tações com diferentes táticas, (mesmo aquelas das quais discordamos).

16. Temos três objetivos concretos de médio prazo. Primeiro, precisamos construir uma infraestrutura intelectual. Imitando a Sociedade Mont Pelerin, de-fensora das benesses da “revolução” do neoliberalismo, a essa infraestrutura deve ser demandada a tarefa de criar uma nova ideologia, um novo modelo econômico e social, e uma visão do bem a substituir e superar os magros ideais que regem nosso mundo hoje. Essa é uma infraestrutura no sentido de requerer a construção

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não apenas de ideias, mas de instituições e caminhos materiais para incuti-las, encarná-las e espalhá-las.

17. Precisamos construir uma reforma da mídia em larga escala. Ape-sar da aparente democratização oferecida pela internet e pelas mídias sociais, os meios de comunicação tradicionais continuam cruciais na seleção e enquadra-mento de narrativas, além de possuir os recursos para processar o jornalismo in-vestigativo. Trazer esses corpos tão próximo quanto possível do controle popular é crucial para desfazer o atual estado de coisas.

18. Finalmente, precisamos reconstituir várias formas de poder de classe. Tal reconstituição deve ir além da noção de que um proletariado global gerado organicamente já exista. Ao invés disso, deve-se procurar tecer junto um conjunto heterogêneo de identidades proletárias parciais, muitas vezes incorporadas em formas pós-fordistas de trabalho precário.

19. Grupos e indivíduos já estão trabalhando em cada um desses objeti-vos, mas, por si só, cada um deles é insuficiente. É necessário que todos os três retroalimentem uns aos outros, cada um modificando a articulação contemporânea de forma que os demais se tornem mais e mais eficazes. Uma retroalimentação cir-cular de transformação ideológica, social, econômica e de infraestrutura, gerando uma nova hegemonia complexa, uma nova plataforma tecnossocial pós-capitalista. A história demonstra que é sempre um amplo agenciamento de táticas e organiza-ções que acarreta mudanças sistemáticas; essas lições devem ser aprendidas.

20. Para alcançar cada um desses objetivos, no nível mais prático, susten-tamos que a esquerda aceleracionista deva pensar mais seriamente sobre os fluxos de recursos e dinheiro necessários para construir uma nova infraestrutura política eficaz. Para além do ‘poder popular’ de corpos na rua, precisamos de financia-mento, seja de governos, instituições, “think tanks”, sindicatos ou patronos indi-viduais. Consideramos a demarcação e condução de tais fluxos de financiamentos essenciais para começar a reconstruir uma ecologia de efetivas organizações de esquerda aceleracionista.

21. Declaramos que somente uma política prometeica de domínio má-ximo sobre a sociedade e seu ambiente é capaz de lidar com problemas globais ou obter vitória sobre o capital. Esse domínio deve ser distinto daquele amado por pensadores do Iluminismo original. O universo mecânico de Laplace, tão fa-cilmente controlado ao receber informação suficiente, há muito desapareceu da agenda da compreensão científica séria. Mas não é para nos alinharmos com o cansado resíduo da pós-modernidade, condenando todo domínio como protofas-cista ou toda autoridade como intrinsecamente ilegítima. Ao invés disso, propo-

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mos que os problemas que afligem nosso planeta e nossa espécie nos obrigam a renovar o domínio em uma nova e complexa roupagem; ainda que não possa-mos prever o resultado de nossas ações, podemos determinar probabilisticamente escalas médias de resultados. O que deve ser acoplado a tal análise complexa de sistemas é uma nova forma de ação: improvisadora e capaz de executar um de-senho através de uma prática que trabalhe com a contingência que ela descobre apenas no curso de sua ação, em uma política de arte geo-social e astuta raciona-lidade. Uma forma de experimentação abdutiva que procura os melhores meios para agir em um mundo complexo.

22. Precisamos reviver o argumento que foi tradicionalmente feito para o pós-capitalismo: não apenas é o capitalismo um sistema injusto e pervertido, mas também um sistema que impede o progresso. Nosso desenvolvimento tec-nológico está sendo suprimido pelo capitalismo, na mesma medida em que foi desencadeado por ele. O aceleracionismo é a crença básica de que essas capa-cidades podem e devem ser liberadas ao moverem-se para além das limitações impostas pela sociedade capitalista. O movimento em direção a uma superação de nossas restrições atuais deve incluir mais do que simplesmente uma luta por uma sociedade global mais racional. Acreditamos que ele deva incluir a recuperação dos sonhos que fascinaram a muitos, de meados do século XIX até o alovorecer da era neoliberal, sonhando na missão do Homo sapiens em direção a uma expan-são além dos limites da Terra e nossas formas corpóreas imediatas. Essas visões são encaradas hoje como relíquias de um momento mais inocente. Ainda assim, elas tanto diagnosticam a impressionante falta de imaginação em nosso próprio tempo, quanto oferecem a promessa de um futuro que é afetivamente revigorante, bem como intelectualmente energizante. Afinal de contas, apenas uma sociedade pós-capitalista, possibilitada por uma política aceleracionista, é que será capaz de executar a nota promissória dos programas espaciais de meados do século XX, para ir além de um mundo de atualizações técnicas mínimas, em direção a uma mudança abrangente. Rumo a um tempo de autodomínio coletivo, e ao futuro propriamente alienígena que isso envolve e possibilita. Rumo a uma conclusão do projeto iluminista da autocrítica e autodomínio, ao invés de sua eliminação.

23. A escolha que enfrentamos é séria: um pós-capitalismo globalizado ou uma lenta fragmentação rumo ao primitivismo, à crise perpétua e ao colapso ecológico planetário.

24. O futuro precisa ser construído. Ele foi demolido pelo capitalismo neoliberal e reduzido a uma promessa barata de grande iniquidade, conflito e caos. Esse colapso na ideia de futuro é sintomático do status histórico retrógrado de

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nossa época, mais do que, como os cínicos do espectro político nos querem fazer crer, um sinal de maturidade cética. O que o aceleracionismo estimula é um futuro que é mais moderno – uma modernidade alternativa que o neoliberalismo é ine-rentemente incapaz de gerar. O futuro deve ser aberto mais uma vez, ampliando nossos horizontes para as possibilidades universais do Lado de Fora.

Alex Willians é doutorando na Universidade de East London. Atualmente trabalha em uma tese intitulada “Hegemonia e complexidade”. Ele também é o autor, com Nick Srníček, do livro ainda a ser lançado, Folk Polítics.

Nick Srníček é professor bolsista em Geopolítica e Globalização na UCL, e de dou-torando em Relações Internacionais pela LSE. Foi coeditor de The Speculative Turn (Re.press, 2011), e atualmente escreve Folk Polítics (Zero, 2014), com Alex Williams.

Tradutor Bruno Stehling é doutorando na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e participa da rede Universidade Nômade.

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LUGARCOMUMNº41,pp.281-

Sobre o aceleracionismo

Steven Shaviro185

Este texto, a meio caminho entre a literatura e a filosofia, faz uma incisão no debate sobre o aceleracionismo, cujo recente manifesto foi traduzido e publi-cado pela UniNômade. O autor mobiliza de Marx e Keynes a Deleuze & Guatta-ri, regado pela ficção científica. Embora, em algumas passagens, os argumentos percam de vista a qualidade positivamente monstruosa da multidão em relação ao capital, terminando por esboçar uma inversão dos termos da relação antagonista; trata-se de uma exposição didática das vertentes dessa discussão que, em sua re-tomada, ainda está desabrochando.

Por enquanto, a designação “aceleracionismo” tem servido de guarda--chuva para um conjunto de discussões político-teóricas que parece desenvolver dois elementos principais para uma “crítica imanente ao capitalismo”: 1) a posi-ção marxista que o capital, ao liberar as energias das forças produtivas, aguça as contradições que, tensionadas pela luta, podem levar a sua abolição; 2) o esquema de Deleuze & Guattari que o capital contenha um potencial desterritorializante que, se por um lado, é produtivo e essencial para sua própria autorenovação ao longo das crises, por outro precisa ser mantido sob controle, evitando que o delírio arruíne os axiomas e termine por precipitar a esquizofrenia comunista.

Nesse sentido, o aceleracionismo se contrapõe, sobretudo, a teorias e pro-postas político-teóricas que sustentem ser possível colocar-se fora da relação do capital, como se houvesse alguma utopia pré ou pós-capitalista a que pudéssemos nos apegar, como um depósito de pureza. Recusa, assim, quaisquer proposições regressivas a naturezas redentoras, sejam naturezas humanas ou “naturais”, bem como a qualquer moralização das tecnologias e técnicas, e das ciências, como malignas em si mesmas, que estejam ameaçando a natureza. Tais linhas que usual-mente se resolvem em teorias decrescimentistas ou catastrofistas terminam por reforçar a representação dominante num duplo movimento: 1) não só o discurso neoliberal, que costuma apelar à austeridade, à consciência/responsabilização in-dividual pelos problemas do mundo e, por último, à contenção de gastos sociais; 2) como também o núcleo duro da economia neoclássica, uma ciência organizada

185 Texto originalmente publicado em seu blog The Pinocchio Theory, em 17/11. Trad. UniNômade Brasil. Tradução, Bruno Cava.

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ao redor do (falso) problema de como gerir recursos limitados para desejos ilimi-tados. Em vez disso, o aceleracionismo quer repor o lugar da economia a partir da abundância, redimensionando as coordenadas do problema para as lutas. (N.E.)

Invasion

Em seu romance de ficção científica Pop Apocalypse, Lee Konstantinou imagina a existência de uma escola do pensamento marxista-leninista chamada “Destruição criativa”. Os adeptos dessa escola “interpretam os escritos de Marx como previsões literais do futuro, de modo que se atribuem a missão de ajudar os mercados capitalistas a se espalhar em cada canto do mundo, porque esta é a precondição necessária para uma revolução verdadeiramente socialista”. Isto significa que os marxistas criativo-destrutivos são indistinguíveis, em termos de prática real, dos capitalistas mais brutais. No romance, suas ações coincidem com aquelas de um grupo de investidores que concluiu que “existe dinheiro a ganhar com a destruição do mundo”, e que na realidade a destruição apocalíptica configu-ra uma “oportunidade sem precedentes para os negócios”. Dessa maneira, eles se esforçam em precipitar uma conflagração mundial nuclear: “Em nome de nossos acionistas, somos obrigados a adotar cada passo que pudermos para garantir o acesso aos mercados do Apocalipse, antes de qualquer outro”.

Tomemos esta sátira como parábola inicial para o capitalismo e o acelera-cionismo. Benjamin Noys, que foi quem realmente cunhou o termo aceleracionis-mo, de fato apresenta o aceleracionismo mais ou menos assim, como: “uma variante exótica da política da pira: se o capitalismo gera as próprias forças de sua dissolu-ção, então é necessário radicalizar o próprio capitalismo: quanto pior, melhor.”

Mas talvez a crítica de Noys seja um pouco injusta. O aceleracionismo é uma resposta nova a condições específicas do capitalismo hoje, neoliberal, glo-balizado e em rede. É uma crítica solidamente enraizada no pensamento marxista tradicional. O próprio Marx escreve tanto dos efeitos revolucionários do capital, quanto das contradições que o tornam inviável.

Marx e Engels escrevem no Manifesto que o capitalismo se caracteriza pelo:“Constante revolucionamento da produção, a perturbação ininterrupta de

todas as condições sociais, a incerteza perpétua e a agitação… tudo que é sólido desmancha no ar, todo o sagrado é profanado e o homem é finalmente compelido a enfrentar sobriamenteas reais condições de sua vida, e as relações com os outros.”

Note que o caminho para o incansável “revolucionamento” capitalista de tecnologias e relações sociais também revoluciona o nosso próprio entendimento. Na medida em que o capitalismo abala profundamente as bases materiais da vida,

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ele também desmistifica e desencanta; ele destrói todas as antigas explicações míticas e as legitimações anteriormente usadas para justificar o nosso lugar na sociedade e no cosmos.

Nós somos esquerda, como Ray Brassier pontua, num mundo onde a “in-teligibilidade se destacou do significado”. Minha distância em relação a Brassier, nesse ponto, consiste em que ele atribui a desmistificação das velhas narrativas a algum “ideal normativo de progresso explicativo”, quando de fato isso é, como Marx defende, uma consequência do extraordinário desenvolvimento das forças produtivas. Isto não significa que a ciência, na prática, seja em algum sentido arbitrária ou “construída socialmente”. Mas, sim, sugere que qualquer fala sobre a alegada força das inferências no espaço lógico das razões é ela própria pouco mais do que uma racionalização post hoc – em vez de ser qualquer tipo de explicação real e definitiva de como a ciência funciona. Nós devemos manter cautela perante o neorracionalismo de um Wilfrid Sellars, tanto como somos das narrativas satu-radas de significado que Brassier tão categoricamente dispensa.

Em qualquer caso, Marx recusa separar os efeitos radicalmente libera-tórios implicados no “constante revolucionamento da produção” da produção in-cessante da vasta miséria humana pelo capitalismo. Ele insiste que os dois efeitos caminham juntos, precisamente porque o desenvolvimento do capitalismo é tu-multuado por severas contradições internas. Essas contradições são, primeiro, a razão por que o desenvolvimento capitalista não é benigno e, em segundo lugar, por que o capitalismo não pode jamais ser o nosso horizonte último para a história ou da invenção tecnológica. Particularmente, Marx ressalta a contradição violenta entre as forças produtivas que são liberadas pelo capitalismo, e as relações de pro-dução que organizam essas forças soltas. A discordância entre elas, Marx insiste, deve levar à ruína do capitalismo:

“O monopólio do capital se torna um fardo para o modo de produção em que floresceu ao lado e por debaixo. A centralização dos modos de produção e a socialização do trabalho chegam num ponto que se tornam incompatíveis em suas cascas capitalistas. A casca explode em pedaços, quando toca o sino para a propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.”

Com risco de remoer o óbvio, vou apontar que o diagnóstico de Marx a respeito das doenças do capitalismo tem sido amplamente confirmado pelos eventos subsequentes; ainda que a sua visão do movimento além do capitalismo jamais tenha sucedido. Na sociedade de hoje, neoliberal, globalizada e em rede, o “monopólio do capital” de fato se tornou um “fardo para o modo de produção”. Podemos comprovar isso de muitas maneiras. Programas insanos de austerida-

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de transferem ainda mais riqueza aos já-ricos, mas ao preço de comprometer os padrões de vida (sem mencionar a capacidade de gastar) da população como um todo. A privatização de serviços anteriormente públicos, e a expropriação de re-cursos anteriormente comuns, terminam por minar as próprias infraestruturas que não deixaram de ser essenciais para a sobrevivência a longo prazo do próprio capitalismo. A “gestão de direitos digitais” e a proteção contra a cópia restringem o fluxo de dados, e amputam a força das próprias tecnologias que o tornou possí-vel em primeiro lugar. A vigilância ubíqua pelas empresas e órgãos de governo, e a consequente consolidação do Big Data, leva à estultificação, precisamente em pontos onde a ideologia dominante pede “flexibilidade” e “criatividade”. O investimento cada vez mais é dirigido na direção de títulos financeiros derivativos e outros instrumentos arcanos que, quanto mais dizem compreender o futuro ao precificar o “risco”, mais se movem para longe de qualquer ancoragem na ativi-dade produtiva real (a curto prazo, bem menos rentável). E, claro, a deterioração ambiental massiva resulta do modo como os gastos energéticos hoje estão escritu-rados fora dos livros dos empresários, na figura das ditas “externalidades”.

Ainda assim, nenhuma dessas contradições causou o colapso do sistema, ou mesmo ameaçou remotamente a continuidade e expansão de sua reprodução. Em vez disso, o capitalismo tem se perpetuado através de uma série contínua de reajustes. Aproximadamente todos nós, os indivíduos, sofremos as degradações e obstruções; mas o Capital ele próprio não. Apesar do fato que chegamos num ponto onde as relações capitalistas de propriedade se tornaram onerosos “fardos diante do modo de produção”, o mesmo que, inicialmente, as havia posto em mo-vimento; – esse fardo não mostra sinais de ser descarregado. A intensificação das contradições do capitalismo não levou a uma explosão, a nenhuma “negação da negação”. A “casca capitalista” falhou em “explodir em pedaços”; na realidade, ela calcificou como uma carapaça rígida, apertando de maneira sufocante a vida dentro dela.

O aceleracionismo pode ser melhor entendido como uma tentativa de responder a esse dilema. De um lado, nós temos contradições dialéticas massivas que, não obstante, não levam a nenhuma superação, ou à “negação da negação” da maneira que Marx – neste ponto, seguidor demasiado fiel de Hegel – ante-viu. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o capitalismo realmente existente nos trouxe até o ponto em que – talvez pela primeira vez na história humana desde a invenção da agricultura – tal superação é pelo menos concebível. Com as tecnolo-gias de alcance global, a criação e o uso de uma infraestrutura de comunicação e computação incrivelmente poderosa, a mobilização do general intellect [intelecto

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geral de massa], e automação maquínica em progresso assombroso, com tudo isso o capitalismo contemporâneo realmente produziu as condições para a afluência universal. No mundo de hoje, já existe riqueza acumulada, e tecnologia suficien-temente avançada, para que cada ser humano possa levar uma vida de autocultiva-ção e lazer. Como William Gibson disse numa citação famosa: “o futuro está aqui já – ele só não está equanimamente distribuído”.

Nós não deveríamos subestimar o significado disto. Pelo menos em prin-cípio (senão de fato), nós resolvemos o problema econômico – justo como John Maynard Keynes, escrevendo em 1930, previu que iríamos fazer no período de um século. “Isto significa”, Keynes acrescentou, “que o problema econômico não é – se olhamos ao futuro – o problema permanente da raça humana.” Ao contrário, Keynes previu:

“pela primeira vez desde a criação, o homem irá se deparar com o seu real, seu problema permanente – que é como usar sua liberdade em relação aos cuidados econômicos prementes, como ocupar o lazer, qual ciência e composição de interesses vão vingar para si, para viver sabiamente e prazerosamente e bem.”

O que o esteta Keynes previu como o resultado do capitalismo – assu-mindo, claro, a “eutanásia do rentista”, que Keynes esperava acontecer gradual-mente e sem uma revolução – difere pouco do socialismo imaginado por Charles Fourier ou Oscar Wilde, entre outros. Um e outro viam a afluência universal como uma condição necessária para que os seres humanos possam florescer, cultivando a sua individualidade ou suas paixões. A visão de Keynes não é, sequer, tão dis-tante do comunismo descrito pelo próprio Marx nos seus primeiros escritos: uma sociedade que “torna possível para eu fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar pela manhã, pescar de tarde, pastorear o gado à noite, escrever críticas depois do jantar, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.”

A visão aparentemente fora de moda (estética do século XIX) da auto-cultivação pode ser ligada não apenas ao último Foucault, como também à inteira questão de tornar-se pós-humano.

Mas é claro, o rentista não desapareceu gradualmente; nem a organização capitalista da produção foi derrubada pela reforma ou pela insurreição revolucioná-ria. Noutras palavras, a dialética hegeliana definitivamente falhou. O real é inques-tionavelmente não racional. A dialética hegeliana não é adequada para descrever essa “lógica” irracional, delirante do capital – ainda que o próprio Marx original-mente tenha analisado essa “lógica” com categorias hegelianas. Pelo que as nossas experiências do último século nos ensinaram, quanto pior as contradições internas possam chegar, mais o capitalismo se beneficia e é plenamente empoderado.

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Marx escreveu que o “capital é o trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo, e tanto mais viverá quanto mais trabalho sugar.” Mas, na realidade, o capital é ainda mais monstruoso do que isso. Porque ele é ativamente autocanibal. Ele se alimenta, não apenas do trabalho vivo, mas de si mesmo. Como David Harvey nos lembra, as predições de Marx sobre a “destruição violenta do capital, não por relações a ele externas, mas em vez disso como condição de sua própria autopreservação.” Quando a taxa de lucro declina, aí as vastas conflagrações do valor – em guerras ou crises econômicas – permitem que a acumulação do capital se renove. A lição consiste em que o capitalismo não é nunca desfeito pela ação de suas próprias contradições internas. Na verdade, o capitalismo precisa e usa essas contradições; ele sucessivamente se regenera por meio das contradições, e realmente não poderia sobreviver sem elas.

Noutras palavras, não podemos esperar negar o capitalismo, porque o ca-pitalismo por si só já mobiliza uma negatividade muito maior do que qualquer coisa que possamos conseguir juntar contra ele. O pequeno segredo sujo do capi-talismo é que ele produz abundância, mas igualmente e continuamente converte essa abundância em escassez. Deve fazê-lo, porque não pode suportar a sua própria abundância. De novo e de novo, como Marx e Engels falam no Manifesto, “aí irrompe uma epidemia que, em todas as épocas anteriores, teria parecido um ab-surdo – a epidemia da superprodução.” A riqueza que o capitalismo realmente pro-duz termina por minar a escassez que permanece sendo a sua raison d´etre. Uma vez a escassez tiver sido superada, nada restará para impulsionar a competição. O imperativo de expandir e intensificar a produção simplesmente se mostra absurdo. Em face da abundância, assim, o capitalismo precisa gerar uma escassez impos-ta, simplesmente a fim de manter-se vivo. Essa é a virada irracional que Keynes perdeu de vista, devido a sua esperança demasiado racional pela afluência gerada pelo capitalismo. E é por isso que Deleuze e Guattari, – na passagem tão notória e muito citada, que é o texto-Ur do aceleracionismo, – sejam tão urgentes para nós:

“Vamos ainda mais fundo… no movimento do mercado, de descodificação e desterritorialização… Porque talvez os fluxos não estejam suficientemente des-territorializados, descodificados o suficiente, do ponto de vista de uma teoria e prática de caráter altamente esquizofrênico. Não uma retirada do processo, mas um aprofundamento, para acelerar o processo, como Nietzsche coloca: sobre esse assunto, a verdade é que ainda não vimos nada.”186

186 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo; capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. p. 177.

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Esta passagem, de fato, tem sido tirada do contexto, e interpretada de um modo muito mais abrangente do que, eu penso, Deleuze e Guattari alguma vez pretenderam. Porque a afirmação só faz sentido à luz do entendimento geral deles, de como a escassez sob o capitalismo “não é nunca primária”, mas em vez disso “é criada, planejada e organizada dentro e através da produção social.” Mais especificamente, eles afirmam que a escassez “é contraproduzida como resultado da pressão da antiprodução” surgida do Capital, como o socius, ou monstruoso “corpo sem órgãos” do ser social.

O ponto mais amplo aqui reside em que a economia política precisa ser entendida antes de qualquer coisa em termos de abundância ao invés de escassez. A economia clássica de Smith e especialmente Ricardo, e depois deles Marx, e revivida no século XX por Piero Sraffa, estava preocupada com a produção, a distribuição e a despesa social. Esses economistas políticos perguntavam como uma sociedade poderia materialmente reproduzir-se, bem como poderia crescer ao gerar um excedente. E eles estavam, destarte, preocupados com a gestão e a distribuição de tal excedente. Mas a economia neoclássica, desde o final do século XIX, e especialmente hoje, tem um conjunto bem diferente de preocupações. Ela lida não com os problemas do excedente, mas da falta. Ela pergunta como indiví-duos tomam decisões, considerando que existam recursos limitados. Em vez de constatar que nós, na verdade, temos mais do que usamos, a economia neoclássica insiste que somos atormentados por desejos infinitos num cenário de meios apenas finitos. A economia neoclássica imita o modo com que o capitalismo deva supri-mir a abundância que ele mesmo produz, ao sujeitá-la a uma situação de escassez imposta.

Keynes também opõe o argumento a partir da escassez:

“Agora é verdade que as necessidades dos seres humanos possam parecer insa-ciáveis. Mas elas caem em duas classes – aquelas necessidades que são absolu-tas, no sentido que nós as sentimos qualquer que seja a situação em que nossos semelhantes possam estar, e aquelas que são relativas no sentido que nós as sentimos apenas se a satisfação delas nos eleva, nos faz sentir superior a nossos semelhantes. As necessidades de segunda classe, aquelas que satisfazem o nosso desejo por superioridade, podem de fato ser insaciáveis; porque quanto maior o nível alcançado, maiores elas serão. Mas isto não é tão verdadeiro nas necessi-dades absolutas – um ponto de satisfação pode ser logo alcançado, muito mais cedo talvez do que todos nós estejamos conscientes, quando essas necessidades

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são satisfeitas no sentido que nós preferimos dedicar as nossas energias adicio-nais a outros propósitos, não-econômicos.”187

Isso pode também ser ligado à ideia da autopromoção, em oposição à ideia dos séculos XIX e XX do desejo infinito.

Na última parte do século XX, as políticas keynesianas foram substituí-das pelas neoliberais – precisamente porque as últimas tinham a sua premissa na imposição de uma exigência universal por competição em todos os âmbitos da vida ao redor de bens escassos, como Foucault foi o primeiro a notar. Esta é uma questão ambiental também. Pensando em termos de escassez de recursos, o que significaria dizer que devemos aprender a viver com menos? Ou nós entendemos a destruição da biosfera por nós próprios, ou produziremos extinções em massa etc, como uma espécie de escassez imposta? Em contraste, talvez, à superabun-dância batailleana e a imitigada dádiva da energia solar? A economia em geral precisa ser desacoplada das ficções do desejo infinito.

Tudo o que disse até aqui sobre as contradições e ir além delas precisa ser entendido em termos de uma das mais controversas doutrinas do marxismo, aquela da taxa decrescente do lucro. Embora Marx se refira a “leis” da economia política capitalista; ele também fala que essas leis são tendenciais. A “lei da queda tendencial da taxa de lucro” (Gesetz des tendenziellen Falls der Profitrate). Exis-tem vários fatores contrários à tendência. A tendência é real em si; ela é parte de uma situação presente. Mas por causa dos fatores contrários, não existe garantia que a tendência vá realmente acontecer.

O que Marx chama de tendência tem algumas similaridades ao que De-leuze chama de virtual. Ambos são plenamente reais, mas sem ser inteiramente atuais. É uma questão de futuridade. A ficção científica articula a futuridade que já existe como um componente virtual do presente. Ela apreende tanto a tecnologia quanto a organização sócio-política-econômica. Dentre todas as suas realizações, o capitalismo neoliberal também nos roubou o futuro. Ele converte tudo num presente eterno. Os valores mais altos são supostamente a novidade, a inovação e a criatividade, e ainda esses sempre se revelam mais do mesmo. O futuro existe somente a fim de ser colonizado, transformado numa oportunidade de investimen-to. O desconhecimento genuíno do futuro é transformado, por meio do comércio dos títulos financeiros derivativos, num problema de cálculo de riscos. Eu sou assombrado por uma condição que Mark Fisher chama de realismo capitalista, na

187 KEYNES, John Maynard. Essays in Persuasion. New York: W. W. Norton & Co., 1963. p. 358. Tradução nossa.

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qual – como Fisher coloca, ressoando Jameson e Zizek – “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Dessa maneira, o aceleracionismo é uma tentativa de responder a um problema da imaginação, não menos do que um problema de economia.

A reconceptualização do capitalismo por Deleuze e Guattari foi usada nos anos 1990 pelo filósofo britânico Nick Land. Land empurra a esquizofrenia desterritorializante de D & G ao máximo, enquanto joga para escanteio a retórica anticapitalista. Em vez dela, Land celebra a desterritorialização absoluta como uma libertação, até o ponto da desintegração total e morte. Ele vê o capital como uma força alienígena que extrapola e rompe o humano; mas ele celebra essa força destrutiva (enquanto marxistas a denunciam, e os defensores do capitalismo ne-gam que seja o caso).

Land oferece uma visão própria da ficção científica para o capitalismo. Mas ele coincide a sua posição com a do capital – alinhando-se contra os seres humanos e qualquer outro tipo de vida orgânica. Isto assume a monstruosidade do capital com os conceitos de corpo sem órgãos ou socius. Mas nós precisa-mos mesmo, por conseguinte, coincidir com o capital, contra nós mesmos? Land desenvolve um tipo de síndrome de Estocolmo diante do capital. Contraponha isso ao modo como Hardt e Negri tentam retomar a multidão como sendo ela, e não o capital, a verdadeira monstruosidade, o que a ordem vigente sempre tentou reprimir por suas forças perigosas. Mas eles estão errados e Land está certo: é realmente o capital que é excessivo e monstruoso. Claro, não podemos perma-necer os mesmos, para lidar com essa monstruosidade. De maneira a sobreviver à monstruosidade do capital, a deixá-lo florescer por debaixo dela ou a despeito dela, precisamos mudar. Aqui é onde nós nos tornamos pós-humanos.

No conto de ficção científica “Phylogenesis”, Paul de Filippo trata direta-mente desta situação. A história tem caráter aceleracionista, na maneira com que empurra até o fim a plena monstruosidade do corpo do capital, – e especialmente a catástrofe ecológica que é uma de suas consequências mais importantes. “Phylo-genesis” é uma história sobre viver na face da monstruosidade.

A premissa literal de “Phylogenesis” é que uma espécie alienígena de gigantescos “invasores veio à Terra do espaço sem aviso… Na consecução cega de seu ciclo de vida, eles procuram biomassa para ser convertida em mais in-divíduos de sua própria espécie.” Como resultado, “a ecosfera é fundamental-mente comprometida, destruída sem chance de reparo”. A predação massiva dos invasores faz da terra uma massa arruinada, barrenta: “o planeta, outrora verde e azul, agora mais parece uma bola branca sem atrativos, exatamente a textura e a

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composição das [espécies invasoras]” Os seres humanos relutam em se conformar à dura verdade que eles não podem repelir a invasão: “apenas nos últimos dias da praga, quando os remanescentes da humanidade se acotovelam nos poucos refúgios sobrando, algumas pessoas admitiram que o extermínio dos invasores e a retomada do planeta eram impossíveis.” A agenda humana é resetada no último momento possível: com a vitória inalcançável, a pura sobrevivência se torna a única meta remanescente. Na situação de desapossamento geral, não existe mais nenhum meio ambiente capaz de sustentar a humanidade. Faz-se necessário, em vez disso, “adaptar um novo homem às condições alienígenas”.

E assim os “cromosartores” se põem a trabalhar, geneticamente recons-truindo o Homo sapies numa nova espécie. Renascemos como parasitas, vivendo dentro dos próprios corpos dos invasores espaciais. Do lado de fora, o hospedeiro apresenta uma superfície lisa: ele é um “bolo tremendamente glauco”, com uma pele “parecida a um composto azul-acizentado feito de gordura e plástico”, cober-to por um “brilho refletido do Sol relativamente alto”, e moldado como um “ovoi-de sem detalhes.” O hospedeiro, exatamente como o corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari, “apresenta a superfície lisa, escorregadia, opaca, tensionada, como uma membrana de barreira.” Mas debaixo desta superfície, Deleuze e Guattari nos dizem, o corpo sem órgãos “sente que existam larvas e vermes repugnantes… tantas unhas perfurando a carne, e tantas formas de tortura.” Ou, como Di Filippo conta na história, uma inteira ecologia pulula debaixo da “uniformidade polida da grossa pele do hospedeiro.” Sua “estrutura interior” é um “labirinto de células e artérias, nervos e órgãos, tubulações estruturais e prensas…” Um ambiente não--homogêneo de espaços secos e molhados, alguns amontoados com órgãos e con-dutores pulsantes, alguns que servem de casa para pequenos organismos errantes, outros parecidos com cavernas vazias formadas pela espuma interna.” E é aqui que a espécie humana geneticamente reconstruída estabelece residência.

A maioria dos textos de “Phylogenesis” amavelmente repassa a fisio-logia, a psicologia e o inteiro ciclo de vida da nova humanidade parasitária. A bioengenharia é precisa e eficiente. Tudo é otimizado de acordo com a fisiologia e o metabolismo do hospedeiro, no interesse da flexibilidade e adaptação. Qualquer coisa considerada supérflua à sobrevivência é expelida sem sentimentalismos. Os “neo-humanos” acasalam rapidamente, reproduzem em grandes números (em “ni-nhadas” de cinco ou mais), e amadurecem depressa. Eles podem exibir tanto um comportamento de enxame – ao se juntarem quando necessário para suplantar as defesas do hospedeiro – quanto de distribuição nomádica – “dispersando-se através do interior do alien gargantuano” para reduzir as chances de ser eliminado

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de uma vez pelos contra-ataques do hospedeiro. Uma vez tenham matado o hos-pedeiro, entram num período de hibernação no interior de “vesículas protetoras”, de maneira a sobreviver ao vácuo do espaço profundo, até que possam encontrar outro hospedeiro. Desta maneira, eles são capazes de perpetuar tanto seus genes quanto a herança cultural. Já que eles inevitavelmente “têm uma cultura basica-mente imaterial”, usam apenas tecnologias leves que tenham sido interiorizadas nos seus próprios corpos. Eles são especialmente bem dotados de “habilidade matemática”, incluindo uma “predisposição geneticamete induzida para resolver funções abstrusas em suas cabeças”. Esteticamente, eles são mestres e amantes da música, “a única forma de arte que sobrou aos neo-humanos livres de artefatos”. A matemática e a música são o único “espólio de 6 mil anos de civilização” que eles herdaram. As vidas dos neo-humanos são curtas e intermitentes: eles são “moscas domésticas, flores que murcham depressa, as criaturas da hora curta. Ainda assim, para eles, suas vidas têm um sabor doce como antigamente.”

Podemos ver a história de Filippo como uma alegoria do realismo capita-lista e aceleracionismo. A história se revela uma estratégia brilhante para adaptar--se à monstruosidade catastrófica. Onde “não há alternativa” – quando não mais pareça possível vencer a invasão do monstro, ou mesmo imaginar as coisas de outra maneira – a inversão parasítica de Filippo é o melhor que podemos fazer. Os neo-humanos de “Phylogenesis” escapam da extinção pelas mãos de alienígenas monstruosos, ao dispor uma situação onde a própria sobrevivência dependa abso-lutamente da continuação das monstruosidades. Os neo-humanos parasitas termi-nam matando qualquer hospedeiro que invadem; mas sua proliferação contínua é sempre contingente, pois depende do encontro com outro hospedeiro. A extinção dos invasores significaria também a sua própria e definitiva extinção.

Tão longe quanto eu possa ver, Filippo nunca pretendeu que “Phyloge-nesis” fosse lido como uma alegoria do capital. Ainda assim, os traços estão ali, em cada aspecto da história. A miniaturização dos neo-humanos (os adultos têm “pouco mais de um metro, com membros mais graciosos do que musculares”), a racionalização do seu design em favor da mobilidade e flexibilidade, a sua coor-denação espetacular, a sua habilidade de “monitorar a passagem do tempo com precisão suíça, graças a modificações de longa data dos núcleos supraquiasmá-ticos de seus cérebros, que passaram a fornecer relógios biológicos exatos”, o seu “determinismo embutido” pelo qual as pulsões sexuais são canalizadas “para um propósito particular”, a sua herança cultural severamente alinhada, e os mo-dos com que mesmo as suas atividades não-produtivas (cantar ou sexo não-pro-criativo) sirvam ao propósito, como “armas supremas no arsenal do espírito dos

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neo-humanos”: todas essas são variações reconhecíveis de técnicas familiares de gestão do regime pós-fordista contemporâneo de acumulação flexível. Os neo--humanos fazem uso das únicas ferramentas que encontram à disposição; eles parasitam e imitam os mesmos mecanismos que os haviam desapossado.

As vidas emocionais dos neo-humanos são efetivamente alinhadas de um modo pós-fordista. Sentindo um avassalador sentimento de perda, e ciente de todos os modos com que o potencial delas é contido, apesar de tudo essas pes-soas concluem que “nós só temos de tirar o máximo da vida que temos.”Quanto à perspectiva de que os hospedeiros monstruosos possam um dia ir embora, “nós não podemos contar com isso, não podemos nem sonhar a respeito”. Tanto social quanto afetivamente, os neo-humanos de Filippo são, assim, a própria imagem da multidão invocada por Hardt e Negri, e mesmo mais explicitamente por Paolo Virno. Eles exercitam uma criatividade genuína sob circunstâncias extremamente constritas; e eles produzem, e fruem, uma experiência do comum. Mas Filippo reconhece, mais claramente que Virno ou Hardt ou Negri o faça, as limitações de qualquer “mobilização do comum” na nossa situação presente, a da “subsunção real” do trabalho (e de formas de vida, em geral), sob o capitalismo. “Phylogene-sis” é uma demonstração do tipo de vitalismo a despeito do capital, mas é essa é também a resiliência que o neoliberalismo demanda, como diz Robin James: “A vida é tenaz, a vida é engenhosa, a vida é mutante, a vida é fecunda”.

Steven Shaviro é professor da Wayne State University (Detroit). Desenvolve junto com A Arquivista a pesquisa militante Arquivo de emergência: documentação de eventos de ruptura. Faz parte do Grupo Laranjas (desde 2001, coletivo In situ).

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LUGARCOMUMNº41,pp.293-

O antiprometeísmo entre neoliberaisecatastrofistas

Alberto Toscano188

No final do século XX, os novos humanismos conseguiram se acoplar à ideologia capitalista na base da conversão pós-fordista, para condenar moralmen-te o progresso, o ímpeto de transformação e qualquer esboço do poder coletivo, como sementes do mal, gérmens do totalitarismo. Essa leitura do século XX tar-dio rapidamente se conjugou com uma ecologia para quem o Homem é o grande culpado pela destruição do planeta, numa enviesada restauração do transcendente na forma do postulado antropocênico. O resultado político, irônico, foi um casa-mento improvável entre o que hoje são peças discursivas do esquerdismo (refrear o poder, proteger o mundo da potência) e um neoliberalismo que se debate para sobreviver à crise (naturalizar o poder na ação “descentralizada” dos mercados, a única eficiente).

Se os primeiros estão marcados pelo signo da melancolia e má consciên-cia, – ou senão invocam uma retórica radical apenas para permanecer na zona de conforto onde tal radicalismo é sofá; – os últimos não passam de cínicos interes-sados em continuar desmobilizando a potência comum e desarticulando quaisquer instâncias de transformação direta – e a própria ideia de que seja possível reunir a práxis e mudar o mundo – para realizar a dominação mais sofisticadamente totalitária já criada: o capitalismo globalizado, integrado e financeirizado de hoje.

Enquanto os catastrofistas e o beatos do “discurso do perigo” sucum-bem ao peso dos próprios princípios, os neoliberais celebram a sua impotência, ocupando todos os lugares de poder. Os pures et dures da esquerda terminam por morrer intoxicados pela própria pureza, ao passo que a direita, mais pragmática, ri de seu fastídio. Este artigo de Alberto Toscano contesta a hiperventilação teórica desse debate central às formulações políticas do começo do século XXI. (N.E.)

O preconceito contra Prometeu

Se os dominados que pensam como os dominadores, ou se os dominado-res traduzem as ideias dos dominados, certa afinidade entre ideologias pró e antis-sistêmicas é um traço comum das batalhas discursivas. Com a declaração de que

188 Tradutor: Aukai Leisner (especial pra UniNômade).

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a era dos extremos se aproxima, a ordem espontânea celebrada fervorosamente pelos agentes do mercado encontra sua oposição nas múltiplas resistências profe-tizadas pelos que pensavam que a mudança não seria mais mediada pela transição, isto é, pelo poder e pelo estado. Embora as tramas genealógicas que ligam a defe-sa e o antagonismo ao status quo sejam variadas, seria difícil subestimar a magni-tude que os efeitos sedimentados de uma longa Guerra Fria intelectual alcançaram no léxico da esquerda. Escoriações da vontade, denúncias do estado onipresente, advertências severas sobre as consequências da busca pelo domínio da natureza e da história: muitos dos muitos elementos no dossiê contra “Deus que falhou” são agora reproduções intelectuais, confiáveis e ubíquas. Visões de mundo, de outro modo incompatíveis, – liberalismo autoritário e liberalismo subversivo – agora convergem na condenação dos males políticos de um desejo prometeico de con-trolar o destino coletivo.

O antiprometeísmo da direita pode ser de maneira geral acusado de hi-pocrisia: clamores burkeanos por reformas cautelosas raramente impediram po-líticas que arrasaram os costumes e o comum dos oprimidos; e o tão alardeado encolhimento do estado redundou em uma hipertrofia de seu aparato repressivo, uma guerra branda contra a sociedade em prol dos mercados. O antiprometeísmo da esquerda, ao contrário, é mais geralmente marcado pela melancolia ou pela ilusão. Melancolia: a sensação que a emancipação seja um objeto mais lamentado do que desejado; e que o preço de nossos princípios seja proibitivo. Ilusão: a con-vicção que os despossuídos possam vencer os poderosos sem se unir e organizar forças; a crença que os sistemas e as capacidades que hoje encarnem o trabalho morto das gerações e carreguem as marcas das barbáries pretéritas possam ser simplesmente destruídas ao invés de, ao menos em parte, apropriadas. Tais atitu-des reverberam, mais ou menos inadvertidamente, aquele fundamental princípio contrarrevolucionário, segundo o que a catástrofe e a violência política são conse-quências da imposição de ideias abstratas (liberdade, igualdade, fraternidade…) sobre um material humano complexo e refratário.

Prometeísmo é uma questão de conhecimento, escala e proporção. A di-reita neoliberal baseia sua apologia da onipotência dos mercados na impossibi-lidade desastrosa do planejamento nos limites de nossa cognição. Ao recusar o ponto de vista da e na totalidade, ela também rejeita as concepções modernas de um controle político sobre o escopo e impacto das decisões, principalmente na figura da soberania popular, enquanto encoraja os aspectos mais perniciosos da noção, caros à microssociologia contemporânea, de que a escala é produzida em localidades específicas. Considere-se o atual poder exercido por esses fabulosos

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sítios de produção de efeitos sociais e políticos massivos, as agências de risco: organizações completamente fora da jurisdição de qualquer controle político, ante o que o poder do parlamento empalidece.

No que concerne aos objetivos, os defensores da supremacia do mercado jamais se cansarão de propor uma ou outra versão da harmonia preestabelecida entre a compulsão amoral de acumular tudo que for possível e as necessidades humanas, providencialmente reduzidas a um repertório exíguo de satisfações con-sumistas. A dominação abstrata e inumana da forma-valor, mensurando qualquer atividade humana sob o imperativo do mais-valor, é considerada compatível com “nossos valores” mais idiossincráticos e previsíveis, para tomar emprestado o vo-cabulário idiotizante dos políticos de hoje.

Mas a associação persistente das hecatombes do século XX com o esta-do, a ciência e o socialismo tem significado que as mais sinceras e amargas des-pedidas das ambições prometeicas surgem com os progressistas desacreditando no progresso e implorando, com convicção vacilante, por soluções gradativas. Nesses tempos de princípios preventivos e efeitos desconhecidos, é quase natu-ral perceber o conhecimento totalizante como arauto da catástrofe, especialmente quando conjugado a uma visão da história ou da humanidade como portadora de um telos. Em vez de se questionarem as sucessivas supressões de qualquer con-trole popular ou prática democrática além do reconhecimento periódico de uma cidadania passiva e pacífica, a coletividade e o controle se tornaram ambos alvos de suspeita. São aqueles que se recusam a abandonar o entusiasmo por projetos políticos insurrecionais infindáveis, poderes constituintes mas nunca constituídos, interrupções que não são nunca prelúdios para continuidades menos abjetas.

Mas as forças e frações que conspiram para perpetuar os padrões presen-tes de dominação não se cansam de organizar nódulos e centros de distribuição, estrategicamente localizados em vastas redes de cumplicidade. Se a ilusão refor-mista do estado como o único lugar de resistência contra o capital ainda sobrevi-ve, o mesmo sucede com o mito que, em meio a uma guerra social enormemente assimétrica, o enxame amorfo de uma multiplicidade não-coordenada portaria alguma vantagem contra a infraestrutura esclerótica do poder. Sem controle sobre as modalidades de produção e reprodução, a cooperação é sempre a cooperação do capital. Sob a atual forma de gestão, a anarquia será invariavelmente a falsa anarquia do mercado, e a ordem espontânea tenderá sempre a fazer com que os ativos retornem às mãos de seus proprietários legais, como um capitalista ameri-cano certa vez gracejou sobre as consequências da crise.

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Em um mundo em que a espécie humana tornou-se de fato um agente geológico, beneficiando-se (e padecendo) de integração logística e capacidade técnica que arrepiaria os superoperários de antanho, devemos nos questionar se um difuso senso comum antiprometeico não expressaria, em vez de uma sabedo-ria conquistada a duras penas, uma perigosa negação. Os problemas do antipro-meteísmo revelam-se particularmente agudos, se considerarmos sua propaganda como o complemento ideológico de um catastrofismo circundante. A ironia de nossa atual conjuntura é bem comunicada pela conjunção entre, de um lado, uma retórica difusa que devamos aprender a viver com nossos parcos recursos, que o progressismo e o produtivismo devam ser abandonados e, de outro lado, a proli-feração de práticas e propostas para governança, regulação e controle planetários – embora sejam do tipo que é invariavelmente delegada aos funcionários de um consenso forçado, os encarregados de mudar tudo para que nada mude (ou, se o fiasco de Copenhague for um sinal, de não mudar nada pra que tudo mude).

A noção largamente difundida que estamos agindo sob pressão do tempo, impelidos da conveniência à emergência pela flecha do tempo, reforça, de formas sutilmente perniciosas, o abandono da ideia mesma de controle coletivo. Do lado dos poderes estabelecidos, isso perpetua a prática de uma administração da crise que, da moratória fajuta e créditos de carbono a planos e processos de paz, está en-tre os principais componentes da catástrofe. Entre as forças da oposição, quando não se fazem concessões ecológicas ainda mais vis que as antigas, alimentam-se fantasias de sobrevivências apolíticas ou esperanças mal depositadas nas virtudes políticas da sociedade civil. Seja na economia, na ecologia, ou na geopolítica, esse estado entorpecente de mobilização impotente e ansiosa serve apenas para fortalecer as estruturas de poder e acumulação que perpetuam e alimentam a crise, desmoralizando e despolitizando uma população despida de direitos que pode, no máximo, baixar a cabeça às proibições, reciclar-se e adaptar-se.

Mas um legítimo desprezo pelo Leviatã moderno significou que, dentro das culturas oposicionistas, o senso de emergência decidiu ora por uma esperança desesperada nas virtudes vivificantes do colapso, ora por recolher-se em enclaves supostos, prefigurando um futuro em que são impotentes para construir. Mas a barbárie é um catalisador ainda menos provável do que aqueles partidos e estados cujas próprias barbaridades agora encobrem qualquer apelo, por mais razoável, por organização e centralismo. Embora ser pequeno às vezes seja bonito, a derrota e insignificância não o são. Enquanto o antiprometeísmo da direita nega conspi-cuamente o poder inflacionante do dinheiro, da classe e das finanças, juntamente com a centralização e concentração políticas desse poder em eixos centrais, a

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versão esquerdista reifica o contexto histórico e o conteúdo do controle. Fazendo uso do aspecto mais débil da crítica novecentista da religião, vitupera-se contra o Estado, a Tecnologia, o Progresso, e a História, como se a repudiá-los com o mes-mo acesso de honradez com que outrora se negava Deus. Tudo isso, novamente, em prol de uma liberdade e singularidade mal definidas.

Mas o problema é que, num mundo totalmente subjugado às necessida-des do homem, nesse inóspito e mesmo inumano Antropoceno, uma política to-talizante, capaz de vislumbrar o controle coletivo, é um componente inegociável para a emancipação. Regressão, secessão ou a mera interrupção – isto é, revoltas pensadas não como movimentos inexoráveis mas como fins nelas mesmas – vão figurar somente no radar dos dominadores. Um novo Prometeu não precisa tomar a forma de um Príncipe Moderno, o Partido, se o último for entendido como uma instância de comando com prevalência sobre qualquer outro conselho, associação ou forma de organização.

O controle coletivo deve envolver o controle e o recall, para usar esse im-portante slogan das comunas e sovietes, de suas inevitáveis instâncias de centraliza-ção. Trate-se de um horizonte de reforma radical ou de revolução, um enfrentamen-to sistemático não pode senão encarar, em vez de solenemente ignorar, os riscos do prometeísmo, deixando de lado qualquer apologia desmemoriada do poder de esta-do ou ilusões primitivistas, de sobrevivência. Mais importante, o hábito irrefletido de associar o poder da corrupção com certos conteúdos intratáveis – a possibilidade da violência, a proliferação das burocracias, a mediação das máquinas – precisar dar lugar a um engajamento com as formas sociais e as relações de controle.

Advertências sobre a ameaça do Prometeísmo numa época em que a ex-periência quotidiana da grande maioria é de desorientação, impotência e opacida-de – equivalem a simplesmente aquiescer com o exercício de poder nos lugares de sempre, pelos agentes de sempre, naquela mistura pitoresca de anarquia e despo-tismo que marca o governo do e para o capital. Para o bem e para o mal, o mundo que habitamos é uma imensa justaposição de dominações, os trabalhos vivos de séculos mortificados nas infraestruturas massivas que conduzem as nossas vidas quotidianas, processos naturais a um só tempo catalogados e inclassificáveis, e uma vasta acumulação de fins, finais e extinções estranhas aos planos originais, quando planos havia. Nesse sentido, qualquer política hoje que não seja somente um complemento insípido para o desapossamento e a degradação, paute ela o legado de duras reformas, da desesperada conservação, ou de uma abrangente revolução, não consegue fugir do problema prometeico de articular a ação e o conhecimento na perspectiva da totalidade.

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298 OANTIPROMETEíSMOENTRENEOLIBERAISECATASTROFISTAS

Na medida em que consideramos Prometeu como “o mais eminente santo e mártir no calendário filosófico”, emblema da servidão recusada a poderes abs-tratos e alienados (Deus, Estado, Dinheiro, Capital), então, prometeico deveria ser um qualificativo orgulhoso para aqueles que consideram a revolução não como uma adesão apaixonada a um ou outro rompante de negação, mas como um pro-cesso de desfazimento das formas sociais abstratas que limitam e humilham as capacidades humanas, bem como das ordens políticas que reforçam esses grilhões e humilhações.

Alberto Toscano é professor de Sociologia em Goldsmiths, Universidade de Lon-dres. É também autor de Fanaticism: A History of an Idea e editor do periódico Historical Materialism.

Tradutor Aukai Leisner é estudante de Graduação em Direito na UFPR e colabora com tra-

duções para a Uninôamde.

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LUGARCOMUMNº41,pp.299-

Umacríticahackeraomanifestoaceleracionista

McKenzie Wark189

“O hacker é aquele que contribui para construir novos regimes, ou ao menos povoar o regime existente com novos conceitos, novas ideias

(…) São os aceleradores da modernidade: os que trabalham dentro e contra ela. São aqueles para quem o regime da economia de mercado

é tanto um obstáculo quanto um capacitador”.

Celeridade: uma crítica ao manifesto por uma política aceleracionista

0.0 Não tem como não gostar de um manifesto que fala de mudança cli-mática já no segundo parágrafo. Revela uma percepção aguda da atual agenda dos tempos. E não é o menor mérito de Acelere: manifesto por uma política acelera-cionista [no Brasil, traduzido e publicado pela UniNômade]. Ele tem certa noção da atual conjuntura. Mas é uma noção apenas parcial, em minha visão. Em certa medida, é um texto bastante conservador. Claro, sempre fazemos uso do passado para imaginar um futuro. Mas esse processo – alguns o chamariam detournment, outros de hackeamento – tem que ser levado a cabo com um pouco mais de pro-fundidade e abrangência históricas. O que segue, portanto, é um comentário e uma crítica amistosos ao Acelere. A sequência das contra-teses equivale à ordem das tese no documento original.

1.1 O crescente ciclo da economia de mercado é uma série do que, de-pois de Marx, podemos chamar de fissuras metabólicas. Na divisão entre valor de uso e valor de troca, a troca de mercadorias afasta os objetos de suas matrizes de produção. Somente um lado da dupla forma do valor está sujeita a um circuito de retroalimentação quantitativa – o valor de troca. O seu duplo residual – o valor de uso – ou a malha de que se extraem as coisas, não é tão facilmente quantifi-cado. Assim, fissuras se abrem no processo metabólico. Fissuras que os sistemas políticos saídos de sucessivas eras da economia de mercado não podem sequer reconhecer como problemas, quanto mais resolver.

189 O texto Um crítica Hacker ao manifesto aceleracionista foi originalmente publicado em seu blogue Synthetic edifice, jun/2013. Tradução de Aukai Leisner.

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1.2 A mudança climática é a mais preocupante dessas fissuras, mas há muitas outras. O problema com a dinâmica da economia de mercado é que a luta de classes em seu interior tende, entre outras coisas, a forçar a classe dominante a substituir o trabalho direto pela tecnologia. Mas cada uma dessas substituições, por sua vez, vale-se de mais energia e mais recursos materiais. Hoje, toda a in-fraestrutura da economia de mercado global se comprometeu a consumir mais re-cursos do que provavelmente jamais existirá. A classe dominante, quando não se autoilude com diversos ardis ideológicos, certamente sabe que manter uma eco-nomia de mercado a todo vapor irá somente agravar diversas fissuras metabólicas, entre elas a fratura climática. Suspeita-se que estão se preparando na surdina, se armando, construindo suas arcas particulares.

1.3 Contra essa terrível perspectiva, urge construir um novo imaginário, um novo espaço para o pensamento e a ação. Tal imaginário já existe, mas está disperso. A dificuldade das classes subordinadas é sempre um projeto da totali-dade, justamente aquilo sobre o que elas não detêm poder. Bem, ninguém mais detém poder sobre a totalidade enquanto totalidade! A biosfera está em declínio como resultado de uma série de interesses privados competindo para fazê-la em pedacinhos – de valor de uso. O desafio é pautar a totalidade, abri-la, trazer a mo-dernidade de volta à cena como um espaço que possibilita mais de uma via para um futuro possível.

1.4 A classe dominante gostaria que pensássemos que o futuro ” neoli-beral” seja o único possível. Esse termo precisa ser combatido em várias frentes. Em primeiro lugar, não se trata de uma restauração da ordem liberal. É algo novo. Não foi uma volta no tempo a uma forma de economia mercadológica anterior ao estado de bem-estar e a todas as outras concessões arrancadas à força pelos tra-balhadores organizados e os movimentos sociais. É um novo estágio, baseado em novas infraestruturas técnicas, novas formas de controle. Em segundo lugar: o que faz alguém pensar que algum dia o capitalismo foi “liberal”? A autonomia da es-fera econômica já é uma proposição ideológica. A esfera “liberal” econômica foi conquistada por meio da massiva violência estatal contra os povos pré-modernos e suas formas de vida. Então: não houve capitalismo liberal; não há capitalismo neoliberal. Mas há um novo estágio da economia de mercado cujos contornos te-óricos estão mal definidos, em grande parte porque tanto direita quanto esquerda compraram a ideia do mito neoliberal.

1.5 No mundo superdesenvolvido da Europa, Estados Unidos e Japão, a composição de classe se alterou significativamente. A manufatura declinou na composição do trabalho. As demandas que organizavam os trabalhadores em suas

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lutas já perderam o horizonte. Mesmo se pudéssemos fechar todos os salões de beleza, não conseguiríamos o mesmo efeito de fechar uma indústria estratégica como o aço. Agora que muitas dessas indústrias estratégicas não estão localizadas no mundo superdesenvolvido, a classe dominante tem cada vez menos interesse em manter as condições de reprodução no espaço das antigas nações superde-senvolvidas. Se os grandes investimentos não se concentram lá, então por que se preocupar com a saúde ou educação desses trabalhadores? As velhas soluções keynesianas para a crise funcionariam muito bem, mas não há uma coalizão de interesses que lhe sejam favoráveis, além de existir uma enorme pressão da clas-se dominante para usar a crise como forma de reduzir as funções reprodutoras do estado. De qualquer maneira, as formas nascentes de mercantilização visam justamente ao trabalho afetivo e informacional, que o estado ainda fornece, da saúde e educação. O mundo superdesenvolvido oferece poucos novos domínios para expandir a mercantilização, de modo que esses antigos domínios socializa-dos acabam por entrar na mira.

1.6 A difusão das relações mercadológicas ao longo de todo o mundo su-perdesenvolvido fragmenta e torna cada vez mais moleculares os pontos de con-flito e luta. Formas de enfrentamento específicas e locais emergem, de Wall Street à tática silenciosa, passiva, à la Bartleby, de não fazer no trabalho nada além de nossa obrigação. O problema é encontrar tipos de cola semântica para unir reto-ricamente tais ações. Não precisa ser uma linguagem radical, apenas plausível. Uma poética popular da totalidade aberta, da existência de mais de um futuro possível, de mais de uma linha de fuga do presente.

2.0 Celeridade

2.0 Não tão rápido, alguém poderia retrucar. Não nos enredemos em ne-gações tão fáceis das formas presentes de teoria e práxis. Enquanto a forma do manifesto se sustenta na pura aniquilação do passado, procedamos com cautela, sem precipitação.

2.1 Para começar: já que a economia de mercado se diz preocupada com o futuro, até mesmo “progressista”, desafiemos esse mito. Parece que boa parte do que a classe dominante está fazendo agora no mundo superdesenvolvido é cul-tivar e proteger situações de quase-monopólio. Lançando mão do sistema arcaico de patentes para barrar qualquer engraçadinho, ou para se digladiar por zonas de influência. Enquanto isso, o que a classe dominante parece estar fazendo no mundo subdesenvolvido é produzir em larga escala o velho paradigma industrial do século XIX. Lá, ela encontra de maneira modificada a resistência dos trabalha-

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dores, e responde com as mesmas ofertas espetaculares, que são recebidas com o mesmo fastídio, novamente, numa escala ampliada. As relações de produção de uma economia de mercado estão mais para grilhões que constrangem o livre de-senvolvimento de novos arranjos técnicos e sociais do que formasde administrá--los. A própria forma mercadoria está fora de moda.

2.2 Há algo a ser dito sobre o exercício de imaginar onde a forma mer-cadoria acabaria, se deixada livre para acelerar conforme seu trajeto mental uni-lateral. A substituição dos trabalhadores resistentes pelo capital seria completa, tornando-os obsoletos, como um órgão residual. Isso se houvesse energia e re-cursos suficientes. Talvez não só os trabalhadores, mas a classe dominante se tornaria obsoleta. Um planeta inteiro se virando com pedacinhos de silício! Mas se trata apenas de um exercício mental, uma estratégia fatal na teoria. Na prática, não sobraria planeta o bastante para se aventar uma tal hipótese. Além do mais: a tecnologia pode ter importância, mas não é absoluta. É atirada de um lado a outro pelos interesses de classe em conflito. Mesmo que os caminhos alternativos para o futuro pareçam bloqueados, sempre há luta, diferenciação interna. Sempre há pontos que podem ser abertos à força.

2.3 A abertura de novos caminhos para o futuro significa reabrir a di-mensão qualitativa da modernidade, sua dimensão estética. Foi esse o terreno em que grassaram suas vanguardas: os futuristas e construtivistas, os surrealistas e situacionistas, os aceleracionistas e esquizomaníacos. Todos abriram futuros que agora estão barrados. Mas para se avançar três passos, há que se recuar dois. Há muitos recursos nos espaços estéticos altermodernos do passado com os quais se pode ensaiar passos adiante.

2.4 Todas essas vanguardas qualitativas acabaram por encontrar seu Waterloo: a retaguarda quantitativa. A via para sustentar a economia de mercado depois que os enfrentamentos dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais atingiram seu ápice era um novo tipo de quantificação, uma nova logística, uma nova rede de vetores de comando e controle. No começo, era tosca e lidava somente com agregados e representantes, como as primeiras simulações compu-tadorizadas da Guerra Fria. Mas o que realmente conduziu à sua dominação foi a infiltração na vida quotidiana da produção de informações quantitativas, a fim de que se expandissem para a totalidade da vida. Assim, as vanguardas qualitati-vas tem que reimaginar possíveis espaços para altermodernidades baseados nessa transformação da vida quotidiana, em todas as suas formas, num “gamespace” de informações quantificadas. Assim como os situacionistas imaginaram um espaço lúdico nos interstícios espaciais do policiamento urbano por meio da dérive, en-

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tão, nós também devemos imaginar e experimentar com os fendas e rachaduras no “gamespace” que se tornou a economia de mercado. O tempo da ruptura, ou do ato de bravura, é chegado.

2.5 Aqui, podemos trilhar o caminho de Marx, mas sem tratá-lo escolas-ticamente. Em vez disso, temos que reinventar sua prática: seu uso de ferramentas conceituais como ferramentas, seu uso dos melhores dados empíricos, sua cone-xão às lutas que o cercavam, sua utilização das estratégias comunicativas da pró-pria modernidade. Além disso, precisamos retomar a versão marxiana do slogan nietzscheano: “Deus está morto”. Para Marx, a história não é transitiva. Não se pode voltar atrás. Apenas ir em frente. É uma questão de lutar para abrir um outro futuro além deste, que como o próprio Marx intuiu, não tem mais futuro. Então: não nos voltemos ao que Marx diz, mas ao que ele faz. Alinhemo-nos, como ele o fez, à vanguarda dos tempos.

2.6 Tiraríamos pouco proveito em requentar os vários experimentos re-volucionários do século XX. Lênin e Mao tem pouco a nos ensinar. A conjuntura deles não é a nossa. O resto é conversa fiada.

2.7 Quais são as forças da mudança? Marx faz essa pergunta em seu Manifesto. Sua resposta: aqueles que se perguntam sobre a propriedade. Acontece que concentrar toda a propriedade nas mãos do estado não é resposta correta à per-gunta da propriedade. Adeus, Lenin; adeus, Mao. Mas a pergunta permanece váli-da. Quais sãos os agentes lutando dentro e contra as formas de produção emergen-tes que podem conformar os produtos dessas tecnologias e processos de trabalho? Uma das respostas é: o trabalhador. Mas outra é: o hacker. O trabalhador é alguém que luta dentro e contra um regime produtivo. O hacker é aquele que contribui para construir novos regimes, ou ao menos povoar o regime existente com novos conceitos, novas ideias – recuperadas pelas novas formas de propriedade conhe-cidas como “propriedade intelectual”. São os aceleradores da modernidade: os que trabalham dentro e contra ela. São aqueles para quem o regime da economia de mercado é tanto um obstáculo quanto um capacitador. A relação entre essas classes, e com outras classes subalternas, torna-se a questão tática central. Uma questão não apenas de poética de um novo futuro, mas de modos de coordenação.

3.0 Futuridade

3.1 A tarefa é coordenar a energia latente de um povo cansado, com o que a economia tem a oferecer, com a consciência de quais poderes modeladores nos restam, para abrir rachaduras em direção a novos futuros. Não é isso ou aquilo. Políticas para o povo e políticas técnicas têm que conversar. Do contrário, se cai,

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por um lado, em queixas locais e específicas, ou energias puramente negativas, ou numa recusa em confrontar o quadro mais amplo das fissuras metabólicas. Por outro lado, ignorar as políticas populares é também um perigo, o perigo do dilema tecnocrático. Seria basear decisões numa recusa em considerar as lutas e deman-das populares, mas também insights e dados das lutas populares dentro e contra a economia de mercado. Não precisamos de teoria ou ocupações, mas ocupações da teoria.

3.2 É a questão de saber se o fastídio com a economia de mercado agirá rápido o suficiente, à medida que se espalha do mundo superdesenvolvido para o subdesenvolvido, a ponto de abrir novos caminhos, antes que fissuras metabólicas comoa crise climática forcem o planeta a adotar “soluções” mais violentas, deses-tabilizantes e francamente fascistas para seus problemas. Na China, os trabalha-dores fabris já estão começando a ficar impacientes. Além disto, há ainda muita mão de obra barata a explorar no mundo. Enquanto isso, no mundo superdesen-volvido, um novo regime de extração de valor encontra meios de extrair valor do não-trabalho. Mecanismos de busca e redes sociais encontram maneiras de extrair valor das maneiras de usar, sejam elas voltadas ou não ao trabalho, e sem pagar um centavo. É uma espécie de empresa predatória, parasitando lutas populares francamente bem-sucedidas, a fim de liberar vários canais de informação da for-ma mercadológica e circulá-los livremente. Mas após derrotar as antigas indús-trias culturais com essa tática, o movimento social da cultura livre se encontra capturado, em um nível mais elevado de abstração, pelas indústrias predatórias e sua gamification de todos os aspectos da vida cotidiana. Então: qualquer projeto de altermodernidade tem que passar ao largo da expansão dos antigos regimes de mercantilização ao redor do mundo, mas também desses novos e peculiares regi-mes, prevalentes no mundo superdesenvolvido, mas com tendência a transformar os fluxos de informação por toda a parte.

3.3 Claro, parte da velha classe dirigente ainda insiste em medidas cres-centemente repressivas e globais para restringir a informação à velha forma pro-prietária, seja ela de patente, copyright ou marca registrada. Mas o atual regime de produção não respeita essa aderência da informação a alguns objetos particulares. ” A informação quer ser livre, mas está presa por todos os lados”. No entanto, parte do problema foi contornado por outra facção da classe dominante, que en-contra meios de extrair valor das economias de informação dadivosas e populares que surgiram. Novas táticas são necessárias hoje, para combater as novas e velhas formas de mercantilização. Talvez fosse até possível construir relações técnicas e sociais mais eficientes e úteis, não importa o quão low-tech, precisamente porque

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não necessitariam do embaraçoso “gerenciamento de direitos digitais” etc do an-tigo e aprisionante regime.

3.4 Enquanto talvez não haja um regresso possível ao antigo modelo for-dista de produção, as parciais socializações do mais-valor que foram o resultado das lutasdaquele tempo têm muitos pontos positivos. É verdade inconteste que esses sistemas “socialistas” de moradia, saúde e educação saíram-se melhor que seus análogos rentistas. A ideologia presente o nega, mas de fato assim se deu. Esses sistemas eficientes estão sendo retalhados no mundo superdesenvolvido simplesmente para fabricar cópias ineficientes que permitirão à classe dominante extrais mais-valor de alguma coisa. Não nos esqueçamos: pode não ter sido uma utopia, mas o socialismo triunfou, no ocidente, nessas áreas.

3.5 A construção de futuros melhores demandará toda a infraestrutura de que pudermos dispor. Mas não é tão simples como redirecionar as infraestruturas existentes, todas baseadas na contínua expansão dos recursos e na exploração do trabalho como dados inerentes. O primeiro passo é livrar-se da oposição binária isso/aquilo, no que concerne à tecnologia. Grande parte do debate a vê como pa-naceia ou maldição. A tecnologia, como diz Stiegler, é um pharmakon: é ambos, e tudo o que está entre. Uma tecnologia não é somente aquilo que realiza, mas também aquilo que pode realizar. Precisamos de uma abordagem aberta, experi-mental, uma abordagem crítica. Ser a favor ou contra é um dos velhos problemas de um vão discurso da modernidade.

3.6 Um dos melhores sistemas “socialistas” do ocidente foi o financia-mento público da alta ciência. A ciência sempre esteve subordinada a metas de segurança nacional e desenvolvimento industrial, mas não se confundia com eles. A internet foi inventada mais ou menos por acaso. A maior parte das grandes des-cobertas aconteceram antes que a ciência estivesse constrangida a produzir valor para a economia de mercado ou a necessidades de defesa especiais. Precisamos retomar um senso de possibilidade da ciência. A maior parte de seus fracassos não são imputáveis à ciência, mas à política. Pesticidas como o DDT causam dano devido a uma falha do circuito de retroalimentação que vai das políticas popula-res à tomada de decisões tecnocráticas. O mesmo é válido para muitos desastres tóxicos de hoje em dia. É preciso uma ciência para saber quando um produto da ciência está sendo mal empregado. A ciência do clima é a responsável por saber-mos que a ciência aplicada na indústria está causando problemas. Precisamos de mais ciência, não de menos. Inclusive uma ciência da sabedoria popular sobre efeitos da ciência aplicada à indústria.

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3.7 Mesmo uma pequena dose de tecnoutopismo pode não ser má ideia de tempos em tempos, imaginar espaços possíveis, ainda que apenas espaços con-ceituais, como no trabalho de Constant. Mas se reconhecermos que a tecnologia em si não nos salvará, também temos que acompanhar de pertoexperiências com “tecnologia social”. Estejamos envolvidos numa utopia ou numa nova prática social, há que se atentar para o modo como o social habita o tecnológico e vice--versa. A tecnologia e o social (ou o político) não são coisas separadas. A frase “o tecnológico é politicamente (ou socialmente) construído” não tem sentido algum. Quando falamos do político ou do técnico, estamos simplesmente olhando para o mesmo sistema com lentes diferentes. Mas entre os intelectuais, o social, o políti-co (e podemos acrescentar o cultural) são como um fetiche. Há algo de taticamen-te útil em se enfatizar a base tecnológica de tais perspectivas. Entre engenheiros e designers, é claro, aplica-se a estratégia de pensamento oposta. A aceleração da evolução técnica requer uma diálogo sofisticado, que inclua todas as perspectivas, inclusive as populares.

3.8 No entanto, não pode haver um retorno ao “planejamento” como pa-naceia, uma vez que ele sempre implica assimetrias de informação. As partes excluídas e seu conhecimento, suas lutas, sempre se mostram relevantes. Para encontrar exemplos, basta olhar para os desastres ecológicos do planejamento soviético. O desafio é coordenar o conhecimento qualitativo tão bem como o mer-cado coordena o conhecimento quantitativo – e melhor.

3.9 Novos tipos de medidas quantitativas também podem ajudar. Usemos esta arma contra a classe dominante! Mas também precisamos de novas ferramen-tas de visualização, novas narrativas, novas poéticas e que não excluam a política popular, mas a levem em conta. A pergunta a se fazer sobre qualquer novo “me-diador cognitivo” é: está mediando a cognição de quem?

3.10 A ênfase numa altermodernidade nesse ponto tem que ser nas suas práticas experimentais. O que implica não somente uma síntese entre as dimen-sões qualitativas e quantitativas da modernidade, mas também retraçar suas ten-dência críticas e negativas, assim como as afirmativas e construtivas.

3.11 Tudo isso clama por uma união das forças sociais. Requer alianças interclasses, entre trabalhadores e hackers. Requer redes transnacionais, cobrindo o mundo super e o subdesenvolvido. Não é simplesmente uma questão de repro-gramar as infraestruturas sociais existentes. É uma questão de alinhar todas as tendências que lutam dentro delas.

3.12 Não basta mais dizer o que seria a política ideal. Talvez a própria política deva se tornar objeto de severa crítica. Os intelectuais gostam de imaginar

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uma versão ideal da política, mas não se interessam tanto pelas existentes no pre-sente. É uma questão de encontrar o trabalho certo para aqueles entre nós que fa-lam e escrevem e não vão muito além disso. Talvez como agentes de uma “teoria desde baixo”, que procura conectar lutas particulares, em vez de planejá-las, de cima para baixo. Não falemos mais de como a política “deveria” ser. Camaradas, arregaçem as mangas!

3.13 Certamente não devemos regressar à política de sigilo, verticalida-de e exclusão que, antes de tudo, nos lançou nessa confusão. O planejamento é importante. Toda economia faz planos. Mas fechamento excessivo leva apenas a déficits de informação.

3.14 Nem o modelo centralista nem o meramente horizontal e participa-tivo funcionam sozinhos. Eles existem em tensão mútua, e com diversas outras formas sociais. Joguemos com um baralho completo de formas sociais.

3.15 Há sempre uma ecologia das organizações, ainda que incompleta. Mas o problema com a atual é que ela não reproduz suas próprias condições de existência. Ela as destrói. Esse deve ser um objeto central da crítica e da experi-mentação em todos os níveis.

3.16 Retirar-se para a montanha, equipar uma elite dirigente com uma nova ideologia e um par de ferramentas cognitivas somente prolongará a crise. Não flertemos com a fantasia de um novo príncipe de Siracusa.

3.21 A mitologia prometeica dos futuristas pode servir para alguns, mas um emprego mais amplo do repertório mítico de imagens e histórias é o que cla-mam ostempos atuais.

3.24 A perspectiva de um futuro precisa, no entanto, ser reconstruída. Pode-se começar com uma síntese das várias linhas da modernidade que estão agora fragmentadas em domínios separados, todas sob o jugo da mercadoria e sua equivalência quantitativa. Mas tal perspectiva não tem valor nenhum sem atores sociais identificáveis. Ela clama por uma luta popular, e populista, em mui-tas linguagens, reunindo diferentes modos de pensar e experimentar em projetos comuns. Pode não precisar de uma imagem ou metáfora onicompreensiva. Até mesmo na ideologia, modelos fordistas parecem coisa do passado. A tarefa não é de retórica política, mas de verdadeira política, de encontrar o modus vivendi para diferentes forças em luta, agindo agora, com a máxima celeridade.

4.0 Pensamentos Particulares de Conclusão

4.0 Então: Dois vivas para o #Acelerar. Mas somente dois. O Manifesto desenvolve a escrita provocativa de Nick Land, mas à sua esquerda. Mas se Land

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é um “aceleracionista de direita”, o #Acelere acaba ficando numa posição centro--aceleracionista. Ele acaba resvalando no planejamento, na fuga intelectual para a montanha, em vez de se engajar com as novas formas de luta. Não obstante, seu futurismo reavivado, sua abertura à tecnologia, para pensar os problemas em larga escala, são características positivas. O que falta é empurrá-lo um pouco mais à esquerda, sem cair nos pecados da esquerda: o fetiche da política como solução mágica para resolver todos os grandes problemas.

4.1 Na medida em que pessoalmente encontro aqui solo comum, #Ace-lere guarda semelhanças com uma posição que passei a defender 10 anos atrás, em A hacker manifest (Harvard, 2004) e Gamer theory (Harvard, 2007). Esses textos refletem, respectivamente, as dimensões mais positivas e pessimistas do aceleracionismo. Eu me baseei em diferentes fontes vanguardistas modernas, cuja genealogia eu esboçei em The beach beneath the street (Verso, 2011) e The spec-tacle of disintegration (Verso, 2013). Em suma: há outros caminhos para o mesmo território além daquele algo estranho que vai de Karl Marx via George Bataille a Nick Land. (Deleuze, no entanto, temos em comum). Talvez o projeto coletivo seja remapear aquele território, a fim de conhecermos melhor as nossas opções e que recursos podem ser extraídos do passado. Fora isso: danem-se os torpedos, sigamos a todo vapor!

McKenzie Wark leciona da New School University (Nova Iorque). É autor de Geo-grafia virtual (1994) e Telestesia: comunicação, cultura e classe (2012).

Tradutor Aukai Leisner é estudante de Graduação em Direito na UFPR e colabora com tra-

duções para a Uninôamde.

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resenha

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310 VINTECENTAVOS:ALUTACONTRAOAUMENTO / Bruno Cava

vinte centavos: a luta contra o aumentoElena JudensnaiderLuciana PiazzonPablo OrtelladoVeneta, 2013.

14 diasBruno Cava

A crônica cobre os 14 dias en-tre o primeiro protesto convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) e o anúncio da revogação do aumento das passagens de ônibus pela prefeitura de São Paulo. De 6 a 19 de junho, o livro suspende o juízo mais analítico para se concentrar numa narrativa panorâ-mica, no ritmo dos relatos, notícias e reportagens, conforme iam aparecendo dia a dia na grande imprensa e mídias alternativas. Coloca entre parênteses qualquer apriorismo ideológico, numa espécie de pragmatismo teó rico, abri-gando-o de desqualificações prontas. O método busca apreender o jogo tático dos governos e mídia corporativa, os vaivéns da organização, o termômetro político ao redor das primeiras mani-festações. Uma introdução por Macelo Pomar (“Não foi um raio em céu azul“) e um posfácio de Pablo Ortellado (“Os protestos de junho entre o processo e o resultado”) completam o painel dessa que, até agora, é a mais coerente publi-cação “de chegada” sobre o assunto.

A coerência, em boa parte, de-corre da leitura esquemática de Ortella-

do. Elogiando o “profundo sentido de tática e estratégia”, ele erige o MPL a exemplo de luta autônoma e eficaz. Au-tônoma, porque soube se desvencilhar das formas representativas, livrando-se de agendas outras. Eficaz, porque não somente orientada a resultados ime-diatamente reconhecíveis pela popula-ção, como também operante em múl-tiplas temporalidades: a “tempo frio” no paciente trabalho de divulgação e conscientização, a “tempo quente” na ação direta nas ruas, resoluta, irrever-sível. Um movimento que reuniu as virtudes organizacionais da autonomia e acúmulo com a virtù, bem ao gosto renascentista, de apropriar-se do tempo e agir na hora certa. O que aconteceu em junho foi um “momento maquiave-liano”: o MPL fez uma ousada leitura da conjuntura e foi à luta com uma in-tensidade inédita e determinação inaba-lável, atropelando todos os prudentes prognósticos da ciência representativa.

Para Pablo, as razões do su-cesso do MPL explicam igualmente o atoleiro em que patinaram as manifes-tações, depois da revogação do aumen-to. O esquema diferencia dois polos de uma tensão no interior dos movimen-tos: foco no processo ou foco nos re-sultados. O sucesso do MPL se deveu à capacidade de concentrar toda a força de seu processo de auto-organização, autonomia e autovalorização em resul-tados, por sua vez formulados a partir da percepção das condições sociais e

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econômicas de uma conjuntura. Evi-tou, assim, a dispersão em ações auto-fágicas, a renúncia a relacionar-se com o poder constituído na medida de seu antagonismo.

O autor dá exemplos com a mesma grade. Em 1967, uma grande mobilização em Washington pelo fim da guerra do Vietnã (o resultado) aca-bou dispersando parte significativa das energias em grandes intervenções con-traculturais em paralelo. Num exemplo de estimação do autor, é citado um ha-ppening organizado pelo beatnik Allan Ginsberg e outros: os manifestantes cercaram o Pentágono e, entoando um mantra, tentaram fazê-lo levitar. Ele anota outro exemplo, desta vez no ci-clo alterglobalização, do final dos anos 1990 e começo dos 2000: o foco na democracia interna e prefiguração de outro mundo possível, “sem estratégia clara” de realização, culminou ao fim e ao cabo em “assembleias inócuas” e nenhuma eficácia para frear a expansão do capitalismo global-financeirizado, a destruição ambiental ou a segunda guerra do Iraque.

O último exemplo vem do re-cente ciclo global, disparado com as re-voluções árabes na primavera de 2011. Na Tunísia e Egito, o enxame conver-giu na exigência da deposição dos res-pectivos ditadores, com um resultado realizável e realizado, fulminando di-taduras em vigor há décadas. Quando, no verão, a peste atravessou o Medi-

terrâneo (com o 15-M europeu) e, no outono, o Atlântico (com o Occupy), a febre revolucionária esfriou em meio a intermináveis processos internos de democracia direta e consenso, um as-sembleísmo anarcoide que, na prática, nada conquistou de duradouro. Um anarquismo ineficaz que, entusiasmado no início, inexoravelmente se esgota nas sucessivas purificações com que reafirma a sua identidade de princípios, até o cansaço e a imobilidade.

Para Pablo, não adianta apenas engravidar o presente do futuro, prefi-gurando-o mediante novos coletivos, movimentos e organizações. É preciso se engalfinhar com o discurso, a mídia, o “senso comum” das representações dominantes da sociedade. Confrontá--los, como faz o livro, ao repassar o noticiário. O antagonismo precisa ser conduzido em ações concretas com resultados palpáveis, por mais impro-váveis e imprudentes sejam, inclusive formulando demandas ao poder estabe-lecido, segundo uma estratégia de curto e longo prazo. Somente assim o “mo-mento maquiaveliano” das jornadas de junho pode acontecer, gerando na prá-xis uma vanguarda, eu diria, leninista. Quer dizer, uma vanguarda que aconte-ce, que não existe sem o acontecimento de que é deflagradora, sem a pretensão de liderar as “massas”, mas exprimindo ela mesma a arredia subjetividade que as atravessa. No fundo, uma vanguarda que esteja impregnada da expressão já

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qualificada das “massas”. Isto é, multi-dão, na acepção que emprestam à pa-lavra autores autonomistas como Anto-nio Negri e Michael Hardt.

O MPL, desta forma, com seu sentido de tática e estratégia, pôde convocar uma greve da metrópole, ex-primindo condições singulares de luta e resistência já presentes na multidão. Pôde, assim, desbloquear uma pro-dução de subjetividade que já existia, imanente, entre as “massas”. Existente porém represada, à espera da contin-gência para se realizar no tempo e es-paço. Certamente, o MPL não explica as jornadas de junho, – como não ex-plicam, por si só, a Copa das Confe-derações, as remoções de favelas, ou o modelo perverso de progresso e in-clusão social do “Brasil Maior”. Por si só, não tem como explicar o território existencial que levou transversalmente mais de um milhão de pessoas às ruas, a desafiar um dispositivo repressor alu-cinadamente brutal e colonial. No en-tanto, com seu foco na tarifa zero, na questão dos transportes coletivos, o MPL explica o contágio, a contingên-cia expansiva: a exposição insofismá-vel da metrópole como sofrimento, que deve e merece ser destituída.

O que não se pode concordar, no livro, é o clima de fim de feira. A crônica não termina em 19 de junho apenas por motivos cronológicos. A saída do MPL de cena significaria, também, o fim do “momento maquia-

veliano”. As pautas se dissolvem, as energias se dispersam, e as coisas ficam estranhas. Pablo faz uma analogia com o ciclo alterglobalização, quando a au-sência de “orientação política” levou a tática Black Bloc da época ao primeiro plano. Tudo passou a girar ao redor da violência da polícia e manifestantes, num iô-iô midiático. A comparação não só contorna o viés genuinamente anti-colonial do fenômeno no Brasil, ao ex-por a violência impregnada no cotidia-no e “senso comum”, e profundamente seletiva; como também se acerca de reproduzir o discurso dominante. Este que tem instalado o “vandalismo” no cerne do problema, somente para, em ato contínuo, desqualificar a ação (e criminalizá-la) como violenta, politi-camente irresponsável e sem estratégia ou tática.

Essa tática, por sinal, não es-taria presente desde o primeiro ato do MPL, indissociável de sua própria táti-ca, em 6 de junho? Não seria o enfren-tamento direto, cujas imagens furaram o cortinado jornalístico e sua civilidade maniqueísta para imantar os espectado-res com sentido político e mesmo esté-tico, não seria outra maneira inteligente de exposição do sofrimento da metró-pole? Indissociável, portanto, de uma estratégia ampliada? Se a gestão da mobilidade urbana embute uma gigan-tesca violência de classe, não o faz, a sua maneira, a gestão da segurança pú-blica nas grandes cidades? É comple-

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xo. São problemas, evidentemente, que a panorâmica do livro não teria como desenvolver. Precisaria ser integrada a outros planos e pontos de vista, a ou-tros métodos: quem sabe narrativas--travellings e mesmo textos de “câmera na mão”, em meio às manifestações. O que não dá, em qualquer caso, é en-grossar a narrativa do sucesso putativo das manifestações. Os resultados ainda estão abertos, e qualificando-se.

Bruno Cava é mestre em Filosofia do Direito pela UERJ, é escritor e blogueiro, e participa da rede Universidade Nômade.

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resumos

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seção Universidade nômade

nem xenios, nem são Francisco de assis. o milagre pertecem aos pobresFabrício Toledo de SouzaResumo: Fugindo das mais diversas formas de opressão e miséria, os refugiados e imigrantes enfrentam barreiras cada vez mais severas, principalmente nos países do norte. As garantias legais são deixadas de lado em favor de medidas arbitrárias, como detenção indefinida, expulsão e persecução criminal, inclusive dos que abrigam os imigrantes. A crise dos refugiados nunca parou de crescer e em 2013 o mundo tes-temunhou a pior crise humanitária das últimas décadas. Quanto aos imigrantes, atra-vessar clandestinamente as fronteiras é por vezes a única opção, cada vez mais peri-gosa, como provam as mortes no Mediterrâneo ou no deserto do Níger. A agonia do capitalismo se traduz em verdadeira guerra contra os imigrantes e refugiados e contra os pobres em geral. A fuga, ainda assim, surge como possibilidade de resistência e criação de novos mundos e formas de vida.Palavras-chave: Imigrantes; Refugiados; Crise; Pobreza; Trabalho Vivo.Abstract: Fleeing from various forms of oppression and misery, refugees and im-migrants face increasingly severe barriers, especially in northern countries. Legal safeguards are put aside in favor of arbitrary measures such as indefinite detention, expulsion and criminal prosecution, including the condemnation of those who shel-ter. The refugee crisis never stopped growing and in 2013 the world witnessed the worst humanitarian crisis in decades. As for immigrants, smuggled across borders is sometimes the only option, increasingly dangerous, as evidenced by the deaths in the Mediterranean or in the desert of Niger. The agony of capitalism translates into real war against immigrants and refugees and against the poor in general. The exodus still emerges as a possibility of resistance and creation of new worlds and life forms.Keywords: Immigrants, Refugees, Crisis, Poverty, Living Labour.

Ubuntu, o comum e as ações afirmativas Alexandre do NascimentoResumo: Ubuntu, palavra existente nos idiomas sul africanos zulu e xhosa que sig-nifica “humanidade para todos”, é a denominação de uma espécie de forma de vida comum, uma “Filosofia do Nós”, de uma ética coletiva cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida, a natureza, o divino e as outras pessoas em formas comunitárias. A preocupação com o outro, a solidariedade, a partilha e a vida em comunidade são princípios fundamentais da ética Ubuntu. Neste texto, procuro pensar as chamadas políticas de ação afirmativa a partir da perspectiva da ética Ubuntu, e fazendo relação com o conceito de Comum em Antonio Negri.

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Palavras-chave: Ubuntu, Comum, Ações Afirmativas, Igualdade, Relações Raciais. Abstract: Ubuntu existing word in South African Zulu and Xhosa languages that means “for all humanity”, is the name of a kind of common form of life, a “Philoso-phy of Us”, a collective ethic whose meaning is connecting people with life, nature, the divine and the other people in community forms. Concern for others, solidarity, sharing and community life are fundamental principles of ethics Ubuntu. In this text, I think the policy called affirmative action from the perspective of ethics Ubuntu, and making relationship with the concept of Common in Antonio Negri. Keywords: Ubuntu, Common, Affirmative Action, Equality, Race Relations.

Biopolíticas espaciais gentrificadoras e as resistências estéticas biopotentesNatacha Rena, Paula Berquó e Fernanda ChagasResumo: Este texto aborda as relações de poder no espaço das metrópoles contem-porâneas geridas pelo estado-capital neoliberal. As políticas públicas atuais sobre o território urbano vêm deixando um rastro de evidências claras de como a cidade vem se tornando um lugar de segregação e exclusão social. Em tempos de capitalismo cognitivo, no qual a tendência da produção cotidiana no mercado vem construindo redes de trabalho voltadas para setores criativos e sociais, as biopolíticas implemen-tadas consolidam uma dinâmica de produção do espaço complexa, mas realizando, com evidência, processos de exclusão das classes mais baixas de regiões de interesse do mercado. Compreender estas dinâmicas e as estratégias de políticas territoriais que legitimam o estabelecimento de parcerias público-privadas, é fundamental para o entendimento dos processos de valorização de determinadas áreas da cidade que têm sido resultado da gentrificação planejada. Faremos uma breve introdução ao que cha-mamos Império e sua forma de produção baseada no capitalismo cognitivo passando pela conceituação de biopoder, biopolítica, assim como, por um delineamento rápido da lógica das parcerias público-privadas e dos processos de gentrificação. Também serão abordadas as táticas de resistência positiva ou bipotências da multidão, às es-tratégias de urbanização neoliberal na construção de cidades-empresas via o conceito de cidade criativa.Palavras-chave: cultura, gentrificação, cidade criativa, biopolítica, biopotência.Abstract: This paper addresses the power relations in the space of contemporary me-tropolises managed by the neoliberal state capital. The current public policies on ur-ban territory come leaving a trail of clear evidence of how the city has become a place of segregation and social exclusion . In times of cognitive capitalism , in which the trend of daily production market has been building networks work focused on creative and social sectors , the biopolitics implemented consolidate a dynamic production complex space, but performing with evidence , processes of exclusion of classes lo-

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wer regions of interest in the market . Understanding these dynamics and strategies of territorial policies that legitimize the establishment of public-private partnerships , is fundamental to understanding the processes of recovery of certain areas of the city that have been planned result of gentrification . We will make a brief introduction to what we call Empire and its form of production based in cognitive capitalism through the concept of biopower , biopolitics , as well as a rapid design logic of public- private partnerships and processes of gentrification . Also we will discuss the tactics of posi-tive resistance or bipotências the crowd , the strategies of neoliberal urbanization in city building enterprises via the concept of creative city .Keywords: culture, gentrification , creative city , biopolitics , biopotency.

Cidades insurgentesRicardo GomesResumo: O capitalismo e sua forma de controle atualizam-se a partir dos avanços conseguidos pelos trabalhadores em sua luta contra as disciplinas. Agora se trata de modular todo o corpo social e de emprestar uma liberdade específica para a nova cida-de e o novo trabalhador. Já não falamos mais de uma cidade como um espaço ligado a raízes culturais, ela é atravessada e atravessa redes de comunicação, numa constante reformulação relacional ditada pelos mercados. Ao mesmo tempo este espaço é o mais apropriado para a proliferação da diversidade de lutas horizontais, múltiplas e coope-rantes, ou seja, as cidades são os novos espaços privilegiados para um antagonismo revolucionário.Palavras-chave: cidade, trabalho, produtividade, resistência.Abstract: Capitalism and its shape control is updated from the advances made by workers in their struggle against the disciplines. Now it comes to modular entire social body and lend a specific freedom to the new city and the new worker. Have we no longer speak of a city as a space connected to cultural roots, it is crossed through and communication networks in a relational constant recasting dictated by the markets. While this space is the most suitable for the proliferation of horizontal diversity of struggles, multiple and cooperative, ie, cities are the new privileged spaces for a re-volutionary antagonism. Keywords: city, work, productivity, resistance.

a favor de althusser. notas sobre a evolução do pensamento do último althusserPedro DavoglioResumo: Trata-se de uma defesa apaixonada do que o autor chamou de “o último Al-thusser”, de uma reconstituição da filosofia de um intelectual à beira da crise vital que

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o conduzirá a um giro decisivo do seu pensamento. Serão aí ressaltados elementos de continuidade e de inovação, e a tomada da hegemonia por estes. A continuidade do pensamento de Althusser se verifica particularmente do ponto de vista metodoló-gico: ele continua, com efeito, a desenvolver uma leitura sintomal do real (dos textos e dos acontecimentos) ou dito de outra maneira, uma leitura que não exalta tanto os elementos que constituem logicamente o conceito ou o acontecimento, mas os que desorganizam e debilitam sua ordem. Aplicado a Marx em Ler O capital, o “método sintomal” estende-se, porém – e é nisso que consiste a novidade da pesquisa – à aná-lise da crise do marxismo, da catástrofe do socialismo real e, sobretudo, da coerência do poder capitalista que é reafirmado na passagem à subsunção real da sociedade ao capital, entendida como totalidade do controle ideológico. O Althusser aqui retratado, portanto, é dramaticamente – mas não arbitrariamente – aproximado à concepção ne-griana de materialismo.Palavras-chave: materialismo aleatório; crise do socialismo; vazio; ideologia; último Althusser.Abstract: This article exposes a impassioned defense of what the author calls “the last Althusser”, a reconstruction of the philosophy of a thinker on the brink of a life crisis that will lead him a decisive turning point in his thinking. There will be emphasized elements of continuity and innovation, and the taking of hegemony by the last. The continuity of the thought of Althusser occurs particularly on the methodological point of view: it remains to develop a “sintomal lecture” of the real (texts and events), a reading that does not exalt the elements that constitutes logically the concept or event, but those who disrupt and weaken its order. Applied to Marx on Read Capital , the “sintomal method” extends to the analysis of the crisis of Marxism, the disaster of socialism and, above all, the cohesion of capitalist power which is reaffirmed in the transition to real subsumption of society under capital, understood as the totality of ideological control. The Althusser pictured here, therefore, is dramatically – but not arbitrarily – approximated to the negrian materialism.Keywords: aleatory materialism; crisis of socialism; empty; ideology; last Althusser.

dossiê devir menor, espaço, território e emancipação social. Perspectivas a partida da iberoamérica (organização susana Caló)

devir autónomo e imprevisto: por novos espaços de liberdadeSusana CalóResumo: Um pensamento das problemáticas do espaço e do território orientado pelo conceito de devir menor começa por reconhecer que o espaço e o território devem ser pensados na continuidade com disputas maiores sobre a vida e processos de au-

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tonomia. A partir da re-avaliação cuidada do conceito de devir-menor avançado por Deleuze e Guattari, particularmente o seu desenvolvimento no âmbito de uma prática de resistência à axiomática do capital na forma do problema do minoritário, este texto procura abrir possibilidades de pensamento de uma prática do espaço para além da aparente inevitabilidade dos modelos de governação neo-liberais. Importa distingui-lo claramente de uma apologia do marginal, do pequeno, ou do não-institucional. Procu-ra-se aqui enfatizar a necessidade de procurar formas de articulação e de formalização seguindo o argumento de que a política é sempre uma micro e uma macro-política. Reconhecer que a política se faz e se pratica na luta pelos espaços da existência como uma luta pela vida, implica defender que o direito ao território é também o direito à participação na invenção de um mundo – uma participação que depende da construção de articulações constitutivas entre uma micro e uma macropolítica.Palavras-chave: Emancipação, devir-menor e minorias, prática, micro e macro--política, articulação politica, formalização, participação, vida, movimentos sociais e instituiçõesAbstract: A thought of the problems of space and territory guided by the concept of becoming minor entails recognizing that space and territory should be problematized in continuity with larger struggles for life and processes of autonomy. Drawing on a careful re-evaluation of the concept of becoming minor advanced by Deleuze and Guattari, particularly their development within a practice of resistance to the axio-matics of capital in the form of the problem of the minority, this text seeks to open possibilities of thinking a spatial practice beyond the seeming inevitability of neo--liberal logic. It is key to clearly distinguish it from an apology to marginal, small, or non-institutional. The text seeks to emphasize the need to find ways of articulation and formalization, following the argument that politics is always a micro and a ma-cro- politics. Recognizing that politics is made and practiced in the struggle for spaces of existence as a struggle for life, implies to defend that the right to territory is also the right to participate in the invention of a world – a participation that depends on building constitutive links between a micro and a macro-politics.Keywords: Emancipation, becoming minor and minority, practice, micro and macro--politis, political articulation, formalization, participation, life, social movements and institutions

O sul também (não) existe. A arquitetura ficcional da América latinaEduardo PellejeroResumo: Num livro de 1977 sobre a obra Alejo Carpentier, Roberto González Eche-verría afirmava que, aquém das suas determinações geográficas, económicas e po-líticas, a América Latina é um lugar literário e ficcional, dividido entre as ficções

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coloniais hegemónicas (que coincidem com a sua primeira fundação), as ficções na-cionalistas modernas (que dobram especularmente a gesta da independência), e as fic-ções dos escritores que, em maior ou menor medida, procuram pôr em questão essas ficções dominantes, reformulando a tradição e relançando continuamente a fábula da sua fundação. Essa distinção crítica dá conta do papel jogado pela ficção literária nos projectos políticos instituintes das nações latino-americanas (e do imaginário associa-do), mas também da sua potência subversiva (enquanto mecanismo de desincorpora-ção). O certo é que, do romantismo ao modernismo, e do modernismo até nós, um verda-deiro devir-menor perpassa a literatura latino-americana, que na exigência de cons-tituir-se como consciência reflexiva do novo mundo viu-se obrigada à uma série de deslocações estratégicas e de passos ao costado que a levaram além dos horizontes maiores ou maioritários da expressão estética. Vicissitudes de uma literatura que, num território sem lugares comuns, assumiu a tarefa de produzir a memoria de uma expe-riência partilhada (quando não estilhaçada). Palavras-chave: América Latina; ficção; imaginário; identidade; diferença.Abstract: In a book of 1977 on the work of Alejo Carpentier, Roberto González Eche-verría stated that, short of its geographical, economic and political determinations, Latin America is a literary and fictional place, divided between colonial hegemonic fictions ( which coincide with its first foundation ), the modern nationalist fictions ( pecularly plying the independence ), and the fictions of writers who, to a greater or lesser extent, seek to question these dominant fictions, reformulating the tradition and continually reviving the tale of its foundation. This critical distinction gives account of the role played by literary fiction in instituting political projects by the Latin Ame-rican nations (and associated imaginary), but also of its subversive potency (as a me-chanism of disincorportaion). The truth is that, from romanticism to modernism and modernism to u , a real becoming minor pervades Latin American literature, which in demanding to establish itself as reflexive awareness of the new world was forced to a series of strategic displacemens and steps to the side that led it beyond the majorita-rian horizons of aesthetic expression. Vicissitudes of a literature which, in a territory without commonplaces, took on the task of producing the memory of a shared expe-rience (if not shattered).Keywords: Latin America; fiction; imaginary; identity; difference

o devir-mundo das práticas menoresAnne QuerrienResumo: As encomendas de arquitectura por parte das construtoras imobiliárias ou das instituições públicas, a pretexto de dar resposta às necessidades de alojamento,

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traduziu-se em programas de especulação financeira, que estão em parte na origem da crise actual.Com o devir-menor da arquitectura aparece o carácter plural daqueles a quem ela se destina, carácter plural no tempo da frequentação, nos desempenhos esperados das construções. Este devir-menor pode tomar forma de múltiplas maneiras. Aqui aborda-rei o caso do Atelier d’architecture autogerée, e a sua experiências de organização da transição ecológica em bairros pobres e periféricos de Paris. Poderá esta prática situ-ada intervir como referência num contexto ibero-americano, transatlântico e do Sul? As culturas do Sul alimentam uma relação com o outro a que os escritores e artistas brasileiros, na esteira de Oswald de Andrade, chamaram antropófaga, consistindo em se apropriar do que o outro tem de melhor, em assimilá-lo a fim de se transformarem. Acolher a arquitectura europeia tal como esta é deixa de ser recomendável nesta nova produção. E para tanto é já necessário escapar aos programas monumentais e aos mo-delos. Trata-se de desenvolver no espaço público pequenas intervenções no limite da arte contemporânea, da performance e da arquitectura, de fabricar uma arquitectura da rua, que se desenvolva nos interstícios da cidade, e que não se autorize senão da sua própria iniciativa – uma arquitectura que poderíamos dizer autogerida, mais centrada na ecologia e na formação dos habitantes. Enquanto o Sul ofereceu durante muito tempo a imagem do sofrimento humano, pontuada por alguns focos de resistência que a atenuavam, a sua potência recente em termos de desenvolvimento económico revela nele uma diversidade infinita e a capacidade de estabelecer o diálogo entre os saberes, de deslocar as linhas. A este apelo as experiências do Norte respondem por meio da crítica da pretensão das disciplinas à hegemonia e a profusão das experimentações. Mas a proliferação é impedida pelas vontades de controle e pelas crispações repeti-tivas que persistem. A convergência das emergências prepara-se lentamente, numa dispersão completa das suas manifestações.Assistimos a uma nova crioulização do mundo, a uma hibridação, que reemerge a partir do Sul e prepara o advento do mundo-todo (tout-monde) cantado por Edouard Glissant.Palavras-chave: especulação financeira; espaço da vida cotidiana, favelas, devir--menor da arquitetura, Atelier d’architecture autogérée, Ibero-América, Arquitetura e Psiquiatria, L’école mutuelle, micropolítica, ecologia, miscigenação, convergência das emergências, Edouard Glissant.Abstract: The control of architecture by real estate companies or public institutions under the guise of responding to housing needs, has resulted in programs of financial speculation in part responsible for the current crisis. With the becoming minor of architecture appears the plural character of those to whom it is intended, plural cha-racter of time attendance, in the expected performance of buildings. This becoming minor can be shaped in many ways. I will consider that of the L’atelier d’architecture autogérée , and its experience of organization of the ecological transition in poor

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neighborhoods and peripheries of Paris. Could this situated practice echo the Ibero--American context, transatlantic south? Cultures of the South feed a relationship with the other that the writers and Brazilian artists have called Antropofagic, in the wake of Oswald de Andrade, consisting of the appropriation of what the other has best to offer, in order to assimilate it and transform. To wellcome the European architecture such as it is is no longer recommended in this new mode of production. And for this it is necessary to escape the monumental programs and models. It is about developing small interventions in the public space on the edge of contemporary art, performance and architecture, to create an architecture of the street, which develops in the intersti-ces of the city, authorized of its own initiative, – an architecture we could say that is self-managed, more focused on ecology and the development of its inhabitants. (...) While the South has long offered the image of human suffering, punctuated by a few pockets of resistance, its power in recent economic development reveals an infinite diversity and the ability to establish a dialogue between knowledges, and move lines. To this appeal, the experiences the North respond through criticism of the claim to the hegemony of the disciplines and the profusion of experimentations . But proliferation is impeded by the will to control and repetitive nervousness that persist. The conver-gence of emergencies sets slowly, in a complete dispersion of its manifestations. On assiste à une nouvelle créolisation du monde, à une hybridation, qui remonte du Sud et prépare l’avènement du tout-monde (tout-monde) chanté par Edouard Glissant.Keywords: financial speculation; space of everyday life; favelas, the becoming-mi-nor of architecture; Atelier d’architecture autogérée; Ibero-America; Architecture and Psychiatry, L’école mutuelle, micropolitics; ecology; miscegenation; convergence of the emergences, Edouard Glissant.

Dionora. Para uma Arquitectura MenorPatricio del RealResumo: A mobilização do termo e da ideia de uma comunidade ibero-americana pode ser um acto de reivindicação, mas a ideia esconde uma consagração implícita de valores e tradições que reclamam unidade de espírito e transformam a história e a cultura em essências, por mais que as fragmentemos em pluralidades. A noção de Ibero-América depende da ideia de território; esta convergência entre espírito e terri-tório manifesta-se hoje como sintoma do retraimento e alargamento do Estado frente ao mercado internacional. Deve ter-se presente que o imaginário luso-tropicalista do brasileiro Gilberto Freyre, que serviu para exaltar as bondades do colonialismo e da ditadura num momento de debilidade democrática no chamado Terceiro Mundo, serve como advertência perante qualquer meta-geografia que insista em articular oposições e exclusões. Creio que hoje o mais importante é falar de uma rede de cidades do que de territórios, uma vez que a crescente urbanização agenciada actualmente pela

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expansão do mercado internacional reclama de nós novos imaginários geográficos. A chamada comunidade transnacional ibero-americana exerce as suas próprias exclu-sões, e se há alguma coisa que da globalização devamos recuperar, é precisamente a sua força de inclusão. Assim, devemos menorizar a Ibero-América.Palavras-chave: barbacoas, favelas, ranchos, barriadas, visualização, espaço urba-no, Michel de Certeau, Iberoamérica, migrações, bricolage, Eve Kosofsky Sedgwi-ck, Programa Favela-Barrio, Medellín, Mazzanti, ELEMENTAL, estratégias informais, estética, minimalismo, desigualdade, arquitectura menor, crítica arquitec-tónica, Pezo von Ellrichshausen, bão tradição.Abstract: The use of the term Iberoamérica or of the idea of an Ibero-american com-munity can be an exercise in legitimization; it can be a call for plurality and diversity. However, the idea of Iberoamérica carries with it the defense of traditional values that call for a singular spiritual unity that sees history and culture as eternal essences. Since Iberoamerica is tied to the territory one finds the convergence of this singular spiritual notion and the actual territory it defines. Today, this convergence appears in the expansion and contraction of the state within the dynamics of the international market. The luso-tropicalist imaginary deployed by Brazilian intellectual Gilberto Freyre, serves as a warning of the dynamics of any meta-geography, since his par-ticular convergence of essences and territory was used to celebrate the benefits of colonialism and need for dictatorship. Today, rather than insisting on grand territorial constructs, it is more salient to speak of networks of cities. The growth of urban zones, driven by the expansion of the international market, solicits new geographical imagi-naries. Since the so-called transnational Ibero-american community exercises its own forms of exclusion, it is best to imbue this idea with the positive force of inclusion found in globalization. Iberoamérica must become minor.Keywords: barbacoas, favelas (slums), ranchos, barriadas (neighborhoods), visuali-zation, urban space, Michel de Certeau, Iberoamérica, migrations, bricolage, Eve Ko-sofsky Sedgwick, Programa Favela-Barrio, Medellín, Mazzanti, ELEMENTAL, in-formal strategies, aestethics, minimalism, unequality, minor architecture architectural critique, Pezo von Ellrichshausen, bão tradição,

Feitiço, Arquitectura e TerritórioGodofredo PereiraResumo: A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular (1959) re-presenta, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois aspectos que lhe foram cen-trais: por um lado, o interesse por arte popular que traz já desde Itália, por outro, a descoberta da realidade política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O progra-ma original, como concebido por Bo Bardi, procurava articular a ideia de “Civilização Brasileira” através de um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia” e “Europa

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e Península Ibérica”. Partindo da influência que os “anos entre os brancos” tiveram sobre o posicionamento político da obra de Lina Bo Bardi, assim como a proximidade desta com a conceptualização de uma ecologia radical desenvolvida por Félix Guat-tari, este texto procura pensar a importância “feiticista” de certos objectos (artesanais, populares, ex-votos, relíquias) enquanto elementos transversais que dão corpo uma relação entre território e existência, enquanto lugar de transformação e luta política.Palavras-chave: Lina Bo Bardi, Feitiço, Objectos, Territórios Existenciais, Ecologia RadicalAbstract: The refurbishing/recuperation of Solar do Unhão Popular Art Museum (1959) represents, within Lina Bo Bardi’s oeuvre , the encounter between two of its central aspects: an interest in folk art which Lina carries from Italy, and the discovery of the political reality of Brazil, and particularly of its northeast. The original program, as designed by Bo Bardi , sought to articulate the idea of “Brazilian Civilization” through a cultural encounter between “The Indian”, “Africa-Bahia” and “Europe and the Iberian Peninsula”. Focusing the influence that the “years between whites “ had on the political positioning of Lina Bo Bardi’s pratice, and its increasing proximity to the conceptualisation of a radical ecology as developed by Félix Guattari, this text tries to think the importance of “fetish” objects (hand-made, popular, amulets, relics) as transversal elements that embody a relationship between territory and existence, as a place of transformation and political struggle.Keywords: Lina Bo Bardi, Fetish, Objects, Existential Territories, Radical Ecology

abertura – triologia da terraPaulo TavaresResumo: Abertura (trilogia da terra) é uma instalação de vídeo que investiga as di-mensões espaciais do processo de re-democratização do Brasil na década de 80, de-pois de mais de 20 anos de regime militar. Nesta publicação, apresentam-se imagens e trechos de entrevistas que fazem parte do projecto, na sequencia da sua estrutura escalar baseado em uma trilogia: urbana, agrária, territorial. Observadas em conjunto, estas revelam que no centro das “revoluções moleculares” que ocorreram no Brasil durante esse período foi central a questão da abertura de um velho nó colonial – la tierra.Palavras-chave: Félix Guattari; ‘Abertura’; Triologia da Terra: Escala Agrária, Urba-na e Territorial, Ermínia Maricato, Darci Frigo, Carlos Marés.Abstract: Abertura (trilogia da terra) is a vídeo installation that investigates the spa-tial dimensions of the process of re-democratization of Brazil in the 80s after more than 20 years of military rule. In this publication I present images and excerpts of in-terviews that are part of the project following its trilogy-based scalar structure: urban, agrarian, territorial. Observed together, they reveal that at the centre of the “molecular

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revolutions” that took place in Brazil during that period there was the question of opening an old colonial knot – la tierra. Keywords: Félix Guattari; Micropolítica: cartografias do desejo, ‘Abertura’; Trilogy of the Earth: Urban, Agrarian and Territorial Scales, Ermínia Maricato, Darci Frigo, Carlos Marés

a Cidade multiforme: o caso do indoamericanoAtelier Hacer Ciudad e Colectivo Situaciones Resumo: Em dezembro de 2010, teve lugar uma ocupação maciça e em princípio inesperada do Parque Indoamericano, na Zona Sul de Buenos Aires. O Indoamericano compõe um dos rostos menos visitados da cidade. Talvez porque nele não se reflecte nenhuma das mensagens retóricas que ambicionam captar o espírito de uma cidade que oficialmente se apresenta como aberta ao turismo, santuário da cultura, meca do cosmopolitismo, crisol de raças, além de sede de amabilidade cívica e laboratório de criatividade política. Encontramos neste fragmento cru da vida urbana chaves de com-preensão do que existe, e do que poderia existir. O presente e os seus possíveis. Os episódios violentos que marcaram a desocupação do Parque Indoamericano conjugam num só movimento a procura de terra e habitação ao mesmo tempo que a dinâmica da valorização imobiliária; a acção directa das massas ao mesmo tempo que operações punteriles; o racismo que transversaliza o social, as instituições governamentais e os estereótipos mediáticos, ao mesmo tempo que um reflorescimento da sacrossanta nacionalidade argentina vinculada à defesa da propriedade privada; a violência cri-minal, civil e policial, ao mesmo tempo que momentos agónicos da vida colectiva e comunitária; o estatuto do espaço público e a ressignificação da figura do “vizinho” (“vecino”).Palavras-chave: Parque Indoamericano, vecino, valorização imobiliária, operações punteriles, propriedade privada, espaço público, migração, racismo, fragmentoAbstract: In December 2010, a massive and unexpected occupation of the Indoame-ricano Park took place, in the south of Buenos Aires. The Indoamericano composes one of the least visited faces of the city. Maybe because it does not reflect any of rhe-torical messages that aspire to capture the spirit of a city that is officially presented as open to tourism, a shrine of culture, a mecca of cosmopolitanism, a melting pot, and place of civic kindness and lab of political creativity. In this raw fragment of urban life we found keys to understand what exists and what could exist. The present and its possibles.The violent episodes that marked the evictions of the Park Indoameri-cano combine in one single movement the demand for land and housing and at the same time the dynamics of real estate speculation; the direct action of the masses at the same time as the punteriles operations; the racism that cuts across the social, the governmental institutions and media stereotypes and at the same time the revival of

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the sacrosanct Argentinian nationality attached to the defense of private property; the criminal, civil and police violence at the same time as agonizing moments of collecti-ve and community life; the status of public space and redefinition of the figure of the “neighbor” (“Vecino”).Keywords: Indoamericano Park, vecino (neighbor), real estate speculation, punteriles operations, private property, public space, migration, racism, fragment

algumas considerações acerca da prática de mapeamento Colectivo IconoclasistasResumo: Desde 2008, organizamos workshops com organizações políticas, movi-mentos sociais e grupos culturais, promovendo um trabalho colaborativo em torno a mapas e cartografias. O mapeamento colectivo é um modo de elaboração e de criação que subverte o lugar de enunciação desafiando as narrativas dominantes sobre os ter-ritórios para transformar a invisibilidade de saberes, situações e comunidades em nar-rativas colectivas críticas. A partir do desenho e facilitação uma séria de ferramentas os participantes socializam saberes não especializados e experiências do quotidiano, compartilhando conhecimento para visibilidade questões mais prementes críticas do território, identificando conexões e consequências em causa. Este ponto de vista é expandido no processo de relembrar e assinalar experiências e espaços de organização e de transformação, com o fim de tecer a redes de solidariedade e afinidades. Não exis-tem requisitos ou condições para participar das oficinas, todos nós temos a capacidade de “ olhar de cima “ sobre o nosso território como um “voo de um pássaro “ que desde a memória nos permite reflectir e marcar diversas temáticas. O mapeamento colecti-vo é uma ferramenta lúdico-política com grande potencial, mas não é desprovida de ambiguidades. É preciso ter em conta que o conhecimento crítico que emerge a partir das workshops, se cair em mãos erradas, pode ser usado para vulnerabilizar os direitos dos participantes. Por outro lado, os mapas são uma “fotografia” do momento e não representam a complexidade sempre problemática e dinâmica, por isso é importante que o espaço de discussão e de criação que não se feche sobre si mesmo, mas que se posicione como um ponto de partida disponível para ser retomado por outros, um dispositivo apropriado que construa conhecimento, potenciando a organização e a elaboração de alternativas emancipatórias. Palavras-chave: mapeamento colectivo, cartografias críticas, práticas colaborativas, pedagogia popular, recursos gráficos e criativos.Abstract: Since 2008, we have been organizing workshops with political organiza-tions, social movements and cultural groups, fostering a collaborative work in carto-graphic mapping. The collective mapping is a practice and mode of creation which subverts the place of enunciation challenging dominant narratives over the territories

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to transform the invisibility of knowledges, situations and communities in critical and collective narratives. From the design and liberation of a number tools and everyday experiences, the participants socialize non-specialized knowledges and daily life ex-periences, sharing knowledge for the critical visualization of the most pressing issues of territory, identifying responsible connections and consequences. This view is ex-panded in the process of remembering and signaling experiences and organizational spaces and transformation to weave solidarity networks and affinities. There are no requirements or conditions to participate in the workshops, as we all have the ability to ‘elevate’ ourselves over our territory for a ‘ bird’s flight ‘ which from our memory allows us to reflect and mark various topics. The collective mapping is a ludic-politi-cal tool with great potential but it is not fully unambiguous. It is important to keep in mind that the critical knowledge that emerges from the workshops, if it falls into the wrong hands, can be used to violate the rights of the participants. On the other hand, the maps are a “snapshot” of the moment and do not make justice sometimes to the always problematic and changing complexity, so it is important that the space for dis-cussion and creation is close upon itself, but it is facilitated as a starting point availa-ble to be taken up by others, an appropriate apparatus to build knowledge, promoting the organization and development of emancipatory alternatives.Keywords: collective mapping, critical cartographies, collaborative practices, popu-lar pedagogies, graphic and creative resources

seção navegações

O desejo do motorista de ônibus: esquizofrenia e paranoia situadasJésio Zamboni e Maria Elizabeth Barros de BarrosResumo: Trata-se de uma pesquisa clínica do trabalho que, pela intercessão entre clínica da atividade e esquizoanálise, procura acompanhar a produção desejante entre motoristas de ônibus urbano na Grande Vitória – ES. Operando como cartografia do trabalho, a pesquisa-intervenção aborda a atividade como construção de paradoxos pelos trabalhadores. Destaca-se o paradoxo dos nomes riscados como analisador das dimensões éticas, estéticas e políticas do trabalho em questão. As questões da ativi-dade de pesquisa e da atividade de motorista cruzam-se pela criação de dispositivos analíticos situados. Analisa-se o desejo do motorista como oscilação entre os polos esquizofrênico e paranoico, de maneira que estes processos não se reduzem aos indi-víduos, mas expõem como o desejo se produz coletivamente.Palavras-chave: motoristas de ônibus, esquizoanálise, clínica do trabalho, desejo, esquizofrenia, paranoia.

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Abstract: This is a clinical research work, the intersection between clinical activi-ty and schizoanalysis looking monitor desiring production among urban bus drivers in Vitória-ES. Operating as mapping work, the research intervention addresses the paradoxes of activity as construction workers. Noteworthy is the paradox of names scratched analyzer as the ethical, aesthetic and political dimensions of the work in question. The issues of research activity and activity driver intersect the creation of analytical devices located. Analyzes the desire of the driver as the oscillation between paranoid schizophrenic and poles, so that these processes can not be reduced to indi-viduals but to expose the desire to collectively produce. Keywords: bus drivers, schizoanalysis, clinical work, desire, schizophrenia, paranoia.

proliferar oásis: por uma história politizada do desejo e da contingênciaPedro DemenechResumo: Este ensaio utilizou os discursos políticos sobre as atuais manifestações como forma de se repensar a escrita da história. Saindo de uma conjuntura, na qual a história é submetida as fabulações do cálculo político promovido pelo Estado, que monopoliza o passado, inviabilizando manifestações contrárias às suas, entra em voga a necessidade da produção de uma história que se faz na contingência. A proliferação de pessoas nas ruas, nesse sentido, promoveu uma reorganização da conjuntura polí-tica, demarcando a concepção de que uma história mestra da vida já não serve mais. Entra em pauta, agora, a necessidade de produzir uma história que se faz pela contin-gência, a partir dos desejos que configuram a sociedade e vice-versa.Palavras-chave: discurso político; história; solidariedade e resistência; desejo e sociedade. Abstract: This paper used the political discourses about the present manifestations as a form of rethinking the writting of history. Leaving a context that submits history to the fabulations of the State’s political calculation, which monopolizes the past making impracticable manifestations against its own, the need of producing history in the con-tingency becomes popular. The crowds in the streets reorganized the political context, making useless the conception of a leading history of life. It matters now a history made in the contingency, out of the wishes that configure society, and vice-versa. Keywords: political discourse; history; solidarity and resistence; wish and society.

sobre as manifestações de junho e suas máscarasJavier Alejandro LifschitzResumo: Neste artigo indagamos sobre alguns aspectos simbólicos das manifestações ocorridas no mês de junho de 2013 no Brasil, principalmente sobre o sentido político do uso das mascaras e da participação dos jovens. Destacamos algumas interpretações

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sobre os acontecimentos, chamando a atenção para as transformações na iconogra-fia e no cenário das mobilizações com relação a outros períodos. Observamos que a mudança de ícones está relacionada com novas representações sobre o Estado e a liberdade, e articulamos esse tema com o caráter trágico e dramático das mascaras. Palavras-chave: Manifestações populares no Brasil- movimentos urbanos- protesto social. Abstract: In this article we inquire about some of the symbolic aspects of the demonstra-tions occurred in the month of June, 2013 in Brazil, mainly about the political meaning of the use of masks and youth participation. We highlight some interpretations of the events, calling attention to the changes in iconography and the scene of protests over other perio-ds. We note that changing icons is related to new representations of the state and freedom, and articulate this theme with the character of the tragic and dramatic masks.Keywords: Popular demonstrations in Brazil-urban movements- social protest.

arte, mídia e Cultura

Modo artístico da revolução: da gentrificação à ocupaçãoMartha Rosler Resumo: O modo como as práticas artísticas participam da gentrificação de áreas ur-banas supostamente degradadas ou, ao contrário, procuram resistir à lógica da cidade mercadoria e inventar novas formas de vida é o tema central deste artigo. A autora analisa alguns elementos do capitalismo contemporâneo tais como financeirização da economia, deslocalização da produção e precarização do trabalho que foram fun-damentais para alavancar um novo ciclo de movimentos de protestos a nível global. Assinala também, neste novo ciclo, o papel ambíguo das universidades e a potência das “Ocupações” com seus modos de vida singulares que tensionam os modelos de “cidade criativa” vendidas por consultores mundo afora. À gentrificação das cidades contrapõe a ocupação das cidades. Palavras-chave: Ocupação; cidade criativa; estilos de vida; precarização; gentrificaçãoAbstract: The way artistic practices participate in the gentrification of urban areas supposedly degraded or, on the contrary, seek to resist the logic of commodity city and invent new forms of life is the central theme of this article. The author examines some elements of contemporary capitalism such as financialization of the economy, reloca-tion of production and precariousness of work: all elements that were fundamental to leverage a new cycle of global protest movements. Also notes, in this new cycle, the ambiguous role of universities and the power of the “Occupations” with their singular modes of life that pressure brand new models of “creative city” sold by consultants. In response to the gentrification, the author reclaims the occupation of cities.Keywords: Ocupação; cidade criativa; estilos de vida; precarização; gentrificação

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Economia e subjetividade

manifesto aceleracionistaNick Srnicek e Alex WilliansResumo: O Manifesto Aceleracionista, publicado em maio de 2013 por Alex Willia-ms e Nick Srnicek, da London School of Economics,lança mão de um rigoroso exercí-cio de diagnóstico dos impasses políticos da esquerda contemporânea. Em verdadeiro tour de force, que incendiou o debate entre os anti-capitalistas, os autores apontam como as catástrofes de nosso tempo (a questão ambiental, as crises financeiras, guer-ras e ameaças de fome) não são apropriadamente processadas pela esfera política, em que reina a confusão e a impotência em pensar e pôr em prática alternativas de futuro. O plano de ação que o texto sugere tem na aceleração seu termo-chave: acelerar as velocidades do modo de produção até o ponto de ruptura; apropriar-se das tecnologias e métodos do capital para lutar dentro e contra o sistema.Palavras-chave: Aceleracionismo; Neoliberalismo; Pós Capitalismo.Abstract: Accelerate Manifesto, published in May, 2013, by Alex Williams and Nick Srnicek, from London School of Econimcs, draws on a rigorous exercise in diagno-sing the political dilemma of the contemporary left. In a veritable tour de force, which has ignited the debate among the anti-capitalists, the authors show how the catastro-phes of our time (the environmental question, the financial crisis, wars and massive hunger threats) are not adequately dealt with in the political sphere, where confusion and impotence in thinking and putting into practice alternatives for the future reign. The plan of action the text suggests has in accelerate its key-word: accelerate the spe-eds of the present mode of production to the point of rupture; take ownership of the technologies and methods belonging to capital, in order to struggle inside and against the system.Keywords: Acceleracionism; Neoliberalism; Post Capitalism.

sobre o aceleracionismoSteven ShaviroResumo: Neste artigo, o professor Steven Shaviro, da Wayne University, valendo-se de um largo espectro teórico, que vai de Marx a Nick Land, passando por Keynes e Deleuze-Guattari, com referências ilustrativas à ficcção científica, esboça um pano-rama do debate atual sobre aceleracionismo. O autor lembra que o aceleracionismo começou como uma resposta ao dilema de porque, apesar de as contradições dentro do capitalismo terem se intensificado, com as forças produtivas em crescente expansão, não sucedeu, como previra Marx, a superação do modo de produção. Face à enorme plasticidade do capitalismo, que incorpora seus mal-funcionamentos e crises à dinâ-mica de sua própria conservação e constante renovação, a proposta aceleracionista é

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de radicalizar as fissuras no interior do sistema, de tensionar suas contradições – em suma, sem invocar purismos ou passadismos mitológicos, derrotar o inimigo em seu próprio território.Palavras-chave: Ficção Científica; Aceleracionismo; Resistência.Abstract: In this article, professor Steve Shaviro, from Wayne University, making use of a large teorethical spectrum that ranges from Marx to Nick Land, and encom-passing Keynes and Deleuze-Guattari, with illustrative references to science fiction, outlines a panorama of the current debate on acceleracionism. The author reminds us that acceleracionism began as an answer to the dilemma of why, despite the intensi-fied contradictions and ever-growing productive forces, the overcoming of the mode of production didn´t come about, as Marx had foreseen. Given the great plasticity displayed by capital in incorporating its malfunctionings and crisis to the dynamics of its own conservation a constant renovation, the acceleracionist proposition is to radicalize the gaps inside the system, to force its contradictions – in short, without invoking purisms or any kind of mithological nostalgia, we need to beat the enemy in its own territory.Keywords: Science Fiction; Acceleracionism; Resistence

antiprometeísmoAlberto ToscanoResumo: Neste artigo, o sociólogo e filósofo Alberto Toscano, valendo-se do conceito de prometeísmo em política, procede a uma análise das estratégias discursivas e prá-ticas da direita e esquerda no início do novo século. À direita, os neoliberais, com im-pressionante desfaçatez, promovem o enxugamento do Estado e alardeam o mercado como instância reguladora autossuficiente da vida social. Do outro lado desse sinistro espectro ideológico, debate-se uma esquerda melancólica e iludida, temerosa de que um projeto de emancipação radical reavive os fantasmas do totalitarismo. A saída à esquerda que o autor propõe, como linha de fuga do presente opressivo, passa por en-carar de frente a questão prometéica de tomar o destino coletivo em nossas mãos, sair da zona de conforto do ativismo de sofá e abandonar a retórica inflamada mas inócua, para articular ação e teoria na perspectiva da totalidade.Palavras-chave: Prometeísmo; Neoliberalismo; Catastrofismo.Abstract: In this article, the sociologist and philosopher Alberto Toscano, drawing on the concept of Prometheism in politics, goes on to analyse the discursive and practical strategies of the right and left in the dawn of the new century. In the right-wing circle, the neoliberals, with astonishing cynicism, promote the shrinking of the State and praise the market as a self-sufficient regulatory mechanism of social life. On the other side of this gloomy ideological spectrum, agonizes a melancholic and deluded left, fe-arful that a radical emancipatory project may bring back the ghosts of totalitarianism.

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The leftist answer the author suggests, as a line of flight from the oppressive present, involves facing the prometheic question of taking in our hands the collective destiny, to leave the confort zone of slacktivism and abandon the passionate but harmless rhe-toric, in order to articulate action and thinking in the perspective of totality.Keywords: Prometheism; Neoliberalism; Catastrophism.

Uma crítica hacker ao manifesto aleceracionistaMcKenzie WarkResumo: Neste artigo, o sociólogo e teórico de mídias McKenzie Wark desenvolve uma crítica amistosa, mas incisiva ao Manifesto Aceleracionista, publicado em maio de 2013 por Alex Williams e Nick Snircek, da London School of Economics, que in-flamou o debate entre a esquerda política. Wark sauda como bem-vindas e necessárias as preocupações em evidência no Manifesto, como a questão ambiental e seu futuris-mo e abertura para pensar o papel das novas tecnologias. Por outro lado, censura-lhe a posição demasiado centrista, sua tendência ao escapismo e ao planejamento tecnocrá-tico, em detrimento do real engajamento com as novas formas de luta. O autor faz uso de conceitos originais como “gamificação” da vida e introduz a figura do hacker que, lutando lado a lado com o trabalhador, dentro e contra o capitalismo, trabalha como um acelerador da modernidade, povoando-a de novos conceitos e ideias.Palavras-chave: Hacker; Futurismo; CríticaAbstract: In this article, the sociologist and media-theorist McKenzie Wark develops a friendly but sharp criticism of the Accelerate Manifesto, published in May 2013, by Alex Williams and Nick Srnicek, from the London School of Economics, that kindled the debate among the left. Wark salutes as necessary and welcome the main issues in the Manifesto, such as the enviromental debate and its futurism and openess to thinking the role of new technologies. On the other hand, the author upbraids its excessive centrist position, its tendencies to escapism and bureaucratic planning, to the detriment of real engagement with the new forms of struggle. Wark makes use of original concepts such as “gamification” of life and introduces the figure of the hacker who, struggling side by side with the worker,inside and against capitalism, works as an accelerator of modernity, filling it new with concepts and ideas.Keywords: Hacker; Futurism; Critique.

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notas dE ConjUntUraAscidadesvisíveisdoRioKarl Erik Schøllhammer e Micael HerschmannEvita(nos)MadonnaumahistóriadoterceiromundoSófia Tiscornia e Maria Victoria PitaAco-produçãodagreve:asgrevesdedezembrode1995naFrançaGiuseppe Cocco

a CUltUra da prodUção x a prodUção da CUltUraLinguagemepós-fordismoChristian MarazziOhibridismodoimpérioMichael HardtEspaços,corposecotidiano:umaexploraçãote-óricaByrt WammackRuínasmodernistasBeatriz Jaguaribe

CibErEspaçoNotassobreoconceitodecibernáuticaFranco Berardi (Bifo)

Corpo E sExUalidadEProcura-seumcorpodesesperadamenteNizia VillaçaTravesti:EvanumcorpodeAdão...eeufuiexpul-so do paraísoHugo Denizartaids e comunicação: repensando campanhas eestratégiasAntonio Fausto Neto

navEgaçõEsNaçãoemfluxo:Brasileáfricadosulfernando Rosa RibeiroComunidade, etnicismo e externalidades urba-nas,handicapouvantagemparaoBrasil:da"lon-gaduração"aosproblemascontemporâneosYann Moulier Boutang.

notas dE ConjUntUraAs escatologias do segundo milênioJavier LifschitzAsnovaslutassociaiseaconstituiçãodopolíticoGiuseppe CoccoFala um policialCarlos Alberto Messeder Pereira

CorrUpçãoAmáfiaeadinâmicadocapitalismoCarlo VercelloneDas propriedades ainda desconhecidas da cor-rupçãouniversalRené SchererDa corrupção, do despotismo e de algumas incer-tezas:umaperspectivacéticaRenato Lessa

CibErEspaçoO manifesto do cyberColetivo CyberUmpesadelodoqualnadapoderánosdespertar/Anders MichelsenCibercidadesAndré Parente

Corpo E sExUalidadERituais de troca e práticas sexuais masculinas.Sexo impessoalP. de Busscher, R. Mendès-Leite e B. ProthDiscursos sobre omasculino: um panorama damasculinidade nos comerciais de TVBenedito Medrado

navEgaçõEsEscravagismopós-modernoYann Moulier BoutangOsterritóriosdamundializaçãoThierry Baudouin

mEdiaçõEsEquilíbriodistante: fascíniopelobiográfico,des-cuido da críticaAnamaria Filizola e Elizabeth Rondelli.

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notas dE ConjUntUraAs lutas dos desempregados na FrançaEntrevistacomLaurentGuilloteauPós-fordismoverdeerosaPedro Cláudio Cunca Bocayuva CunhaDrogas e cidadaniaGilberta Acselrad

novos rEgionalismosPopulaçõesdeEstado:Nação e regionalização da economiaMirtha LischettiNações,racismoenovauniversalidadeToni NegriEntrecooperaçãoehierarquia:sujeitossociaiseconflitosnoNordesteitalianoGiuseppe CacciaCarta aos federalistas do Nordeste italianoToni NegriVelhosenovosregionalismos:oRSeoBrasilRuben George OlivenO espaço e o tempo no discurso zapatistaManuela FeitoNovas paisagens urbanas e identidades sócio--culturaisEdson Farias

CibErEspaçoZapatistas e a teia eletrônica da lutaHarry Cleaver

Corpo E sExUalidadEAAidsnapornografia:entreficçãoerealidadeAlain Giami

navEgaçõEsAqueminteressaofimdotrabalhoGláucia Angélica Campregher

mEdiaçõEsEspetáculoeimagemnatautologiadocapitalGiuseppe Cocco

notas dE ConjUntUra1998–AeleiçãoquenãohouveLuis Felipe MiguelOsignificadopolíticodaseleiçõesYves LesbaupinEntreumpacoteeoutro:entreaconstituiçãofor-mal e a constituição materialGiuseppe Cocco

novos Espaços dE massiFiCação doConsUmo E dE prodUção CUltUralTelevisãoabertaeporassinaturaElizabeth RondelliFunk:umcircuito“marginal/alternativo”de produção e consumo culturalMicael HerschmannParaumadefiniçãodoconceitodebio-políticaMaurizio LazzaratoInvasãodeprivacidade?Maria Celeste MiraVivernacidadedaBahiaAntonio Albino Canelas Rubin

Corpo E sExUalidadEEscritosobreumcorpo:linguagemeviolêncianacultura argentinaJuan Manuel ObarrioCultura,GêneroeConjugalidade:as“transformaçõesdaintimidade”comodesafioMarlise Míriam de Matos Almeida

navEgaçõEsEntrevistacomAndréGorz:ofimdotrabalhoas-salariadoThomas Schaffroth e Charling Tao

mEdiaçõEsOeventomodernistaHayden WhiteOsgrafitesdeBrassaïSuzana M. DobalMotoboy:ocarniceirodafamaHenrique Antoun

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notas dE ConjUntUraOnovoFinanzkapitalChristian MarazziOcinemacomofolclore-mundoIvana Bentes

viagEns, dEsloCamEntos E FrontEiras no mUndo ContEmporânEoDospântanosaoparaíso:hughGibsonea(re)descobertadoRiodeJaneiroBianca Freire-MedeirosFronteira, jornalismo e nação, ou de comouma ponte separou duas margensAlejandro Grimson“Campo”Antonio Negri e Michael HardtOndecomeçaonovoêxodoGiorgio AgambenMelancolias,viagenseaprendizadosDenilson LopesNotíciassobreahistóriatrágico-marítimaMaria Angélica MadeiraOlugarhabitávelnomundoglobalJosé Luiz Aidar Prado

CibErEspaçoAgentes na redePaulo Vaz

Corpo E sExUalidadEDeleuzeeaquestãohomossexual:UmavianãoplatônicadaverdadeRené Schérer

navEgaçõEsAnaçãoentreoesquecimentoeamemória:umanarrativademocráticadanaçãoHugo Achugar

mEdiaçõEsSobreratosehomens:atentativadereconstruçãodahistóriaemMausAndré Cardoso

notas dE ConjUntUraUniversidade:crisetambémdecrescimentoIvo BarbieriavidasoboimpérioMichael Hardt

aCElEração E novas intEnsidadEsCrash:umaantropologiadavelocidadeoupor que ocorrem acidentes ao longoda estrada de DamascoJeffrey T. SchnappMáquinaseestéticaGuillermo GiucciDorefúgiodotemponotempodoinstantâneoMauricio Lissovsky

CibErEspaçohipertexto,fechamentoeousodoconceitodenãolinearidadediscursivaMarcos Palácios

Corpo E sExUalidadEDotabuaototem:BundasNízia Villaça

navEgaçõEsImagináriosglobais,medoslocais:a construção social do medo na cidadeRossana Reguillo

mEdiaçõEsAdeus,AM/FM.orádionuncaseráomesmoMarcelo KischinhevskyArespeitodaquestãodoespaçoemtheemperorofthenorthpoleJorge Luiz Mattar Villela

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notas dE ConjUntUraPolítica de segurança e cidadaniaPedro Cláudio Cunca BocayuvaMST:ojulgamentodasvítimasIgnez PauliloBiopiratariaoubioprivatização?Richard Stallman

trabalho E tErritórioGlobalização das economias, externalidades,mobilidade, transformação da economia e da in-tervençãopúblicaYann Moulier BoutangAcidadepolicêntricaeotrabalhodamultidãoGiuseppe CoccoOvalordainformação:trabalhoeapropriaçãonocapitalismocontemporâneoMarcos Dantas

CibErEspaçoMatrix.ofimdopanópticoKatia MacielAsnovastecnologiaseademocratizaçãoda informaçãoLuis Felipe Miguel

Corpo E sExUalidadESomostodostravestis:oimaginárioCampeacrisedoindividualismoDenilson Lopes

navEgaçõEsRiodejaneiro,cidadecinematográfica.A cidade como produção de sentidoKarl Erik Schøllhammer

mEdiaçõEsGattaca:sobreogovernototalitáriodas identidadesSérgio OliveiraAviáveldemocratizaçãodoacessoaoconhecimentoWaldimir Pirró e Longo

notas dE ConjUntUraComo bloqueamos a OMCStarhawkO paradigma das duas fronteiras do BrasilAbdul-Karim Mustapha

Estratégias da mEmóriaAmídiaeolugardahistóriaAna Paula Goulart RibeiroIssonãoéumfilme?ídolosdoBrasilcontemporâneoMicael Herschmann e Carlos Alberto Messeder PereiraMuseudaTecnologiajurássicaErick FelintoCidadedeDeus:MemóriaeetnografiaemPauloLinsPaulo Jorge Ribeiro

CibErEspaçoCooperação e produção imaterial em softwares livres.ElementosparaumaleiturapolíticadofenômenoGNU/LinuxLaurent Moineau e Aris Papathéodorou

Corpo E sExUalidadENavegarépreciso,viveréimprecisoIeda Tucherman

navEgaçõEsCaminhando para uma renovação da economiapolítica.ConceitosantigoseinovaçãoteóricaAntonella Corsani

mEdiaçõEsJoséOiticicafilhoeoavatardafotografiabrasileiraAntônio FatorelliOJoelhoaprisionado:o“casoRonaldo”comoconstruçãodasestratégiasdiscursivasdamídiaAntônio Fausto Neto

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notas dE ConjUntUraNotas e impressões sobre as eleiçõesnorte-americanasAmérico FreirePós-modernismo.comeageração‘Y”Felipe Ehrengerb

intEnsidadEs ErótiCasOhomossexualnotextoChristopher LaneO sadomasoquismo em dois temposNízia VillaçaPrazeresdesprezados:apornografia,seus consumidores e seus detratoresJoão FreireRevistasmasculinasepluralizaçãodamasculinidadeentreosanos1960e1990Marko Monteiro

CibErEspaçoOsambaemrede:comunidadesvirtuaisecarnavalcariocaSimone Pereira de Sá

Corpo E sExUalidadE‘ABerlimimoral’dosanos30:cinemahomossexualpré-hitlerAdriana Schryver Kurtz

navEgaçõEsItineráriosrecifensesAngela PrysthonTráfico:paisagenssexuais–AlgunscomentáriosAnders Michelsen

mEdiaçõEsImagináriotecnológicoemDavidCronembergIvana BentesTropicália,popcanônicaLiv SovikLarsvonTrier–EscapandodoestéticoBodil Marie Thomsen

notas dE ConjUntUraTotalidadesMichael Hardt e Toni NegriMinhalutanoImpérioLuca Casarini (entrevista)Diáriodeviagemdacaravanapeladignidadein-dígenaMarco Rigamo

propriEdadE indUstrialE Capitalismo CognitivoRiqueza,propriedade,liberdadeerendanocapitalismocognitivoYann Moulier BoutangAmúsicaemrede:ummagmacontraditórioAlessandro LudovicoAsPatenteseasaúdepúblicabrasileira:ocasodaAIDSCarlos André Passarelli e Veriano Terto Jr.O Brasil e a quebra de patentes de medicamentos anti-AIDSEloan dos Santos Pinheiro (entrevista)

CibErEspaçoCronologia da internetPaulo Vaz

Corpo E sExUalidadEA preferência é mais para a mulataNatasha PravazEstudosgays:panorâmicaepropostaDenilson LopesCagar é uma licença poéticaSteven Butterman

navEgaçõEsque“negro”éessenaculturapopularnegra?Stuart Hall

mEdiaçõEsEtienne-JulesMareySuzana M. DobalProzac,meiosemáfiaFernando Andacht

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notas dE ConjUntUraBem-vindoaodesertodoReal!Slavoj ZizekA Argentina na indiferençaReinaldo Laddaga

a polítiCa da mUltidãoComunidadesvirtuais,ativismoeo combate pela informaçãoHenrique AntounSem o macacão branco Luca Casarini (por Benedetto Vecchi)Ocontra-impérioatacaAntonio Negri (por Marcelo Matellanes)DePortoAlegreaGênova,a cidade na globalizaçãoGiuseppe CoccoTransformar a guerra globalistaemseçãoativadainteligênciaFranco Berardi (Bifo)

CibErEspaçoCapitalismoflexíveleeducaçãoemredeAlberto Rodrigueshistória,comunicaçãoesociedadena era da informaçãoGustavo Said

Corpo E sExUalidadEOpolicial,omassagistaeogarotodeprograma:figurasemblemáticasdeumaeróticagay?Carlos Alberto Messeder Pereira

navEgaçõEsGeopolíticadoconhecimentoediferençacolonialWalter Mignolo

mEdiaçõEsMúsicadaderiva,aMTV-BrasilLuis Carlos FridmanAfeto,autenticidadeesocialidade:umaabordagemdorockcomofenômenoculturalJeder Janotti Junior

notas dE ConjUntUraPortoAlegre2002:otrabalhodasmultidõesColetivoAçãocontraaguerraglobal:acaravanainternacionalnaPalestinaLuca Casarini

rEsistênCiasResistiraquê?Oumelhor,resistiroquê?Tatiana RoquePodersobreavida,potênciadavidaPeter Pál PelbartUniversidadeecidadania:omovimentodoscursospré-vestibularespopularesAlexandre do NascimentoPanelaçoseruídos:a multidão em açãoGraciela HopsteinO“quilombo”argentinoGerardo SilvaEmprego,crescimentoerenda:históriadeconteúdoeformademovimentoAntonella Corsani e Maurizio Lazzarato

UnivErsidadE nômadEOcopyrightdamisériaeos discursos da exclusãoIvana BentesRádioslivres,rádioscomunitárias,outrasformasdefazerrádioepolíticaMauro Sá Rego Costa e Wallace Hermann Jr12proposições:resistência,corpo,ação-estratégiaseforçasnaproduçãoplásticaatualEricson Pires

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para Uma UnivErsidadE nômadE

navEgaçõEsSobreapolíticaculturaldosCacáDieguesTatiana Roque

transição E gUErraSobreo‘medo’ea‘esperanca’emBaruchdeEspinosaGerardo Silvaquemdissequeomedovenceuaesperança?Márcio Tavares d’AmaralOocasodavítima.Paraalémdaseparaçãoentre criação e resistênciaSuely RolnikDosilênciozapatistaàeuforiapetista:ficaalgumlugarparanós?Walter Omar KohanAspolíticasdeaçãoafirmativacomoinstrumentodeuniversalizaçãodosdireitosAlexandre do NascimentoPorqueestenovoregimedeguerra?Philippe ZarifianGuerra,informaçãoeresistênciaRicardo Sapia

UnivErsidadE nômadEODireitocomopotênciaconstituinte:umacríticaàteoriadoDireitoThamy PogrebinschiComunicação e diferença nas cidadesJanice CaiafaAsilusõesetno-genealógicasdanaçãoLorenzo Macagno

introdUçãoModulações da resistência

a potênCia da mUltidãoParaumadefiniçãoontológicadaMultidãoAntonio NegriMultidãoeprincípiodeindividuaçãoPaolo VirnoPoderconstituinteemMaquiaveleEspinosa:aperspectivadaimanênciaFrancisco GuimaraensO direito de resistência na teoria políticacontemporâneaThamy PogrebinschiRepresentaçõesdopoder,expressões de potênciaBarbara Szaniecki

o Capitalismo E a prodUção dE sUbjEtividadETrabalhoeproduçãodesubjetividadeThiago DrummondAclínicacomopráticapolíticaJô GondarPensando o contemporâneo no fio da navalha:entrelaces entre capital e desejoClaudia E. Abbês Baeta NevesClínica, política e as modulações do capitalismoEduardo Passos e Regina Benevides

rEdEs E movimEntosMovimentossociais,açõesafirmativaseuniversalizaçãodosdireitosAlexandre do NascimentoAsmigraçõeseotrabalhodaresistênciaLeonora CorsiniPiqueteros:dilemasepotencialidadesdeummovimentoqueemergiuapesardoEstadoeàmargemdomercadoGraciela Hopstein

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Expressões do monstruoso precariado urbano: forma M, multiformances, informeBarbara SzanieckiArtaud,momooumonstro?Ana KifferOcorpoeodevir-monstroCarlos Augusto Peixoto JuniorDo experimental informe ao quasi-cinema, observaçõessobre“COSMOCOCA–programain progress”,dehélioOiticicaInês de AraujoCulturasmúltiplasversusmonoculturaPedro de Niemeyer Cesarino

navEgaçõEs“Faxina” e “pilotagem”: dispositivos (de guerra) políticos no seio da administração prisionalAdalton José MarquesLutasoperáriasemSãoPauloenoABCnosanos70Jean TibleNas peles da cebola ou da “segunda natureza”em excesso.A delicada luta pelo estado de exce-ção benjaminianoJoão C. Galvão Jr.rEsEnhasConsumismo e Globalização – faces e fases deumamesmamoeda?[Por João Batista de Almei-da Sobrinho]UmnovoImperialismo?[Por Marina Bueno]

UnivErsidadE nômadEOsnovosmanifestossobreascotasAlexandre do NascimentoVidanoecontraotrabalho:afetos,críticafeminista epolíticapós-fordistaKathi WeeksOsdireitoshumanosnocontextodaglobalização: três precisões conceituaisJoaquín Herrera FloresAnálisedaNovaConstituiçãoPolíticadoEstadoRaúl Prada Alcoreza

mídia E CUltUraMídia, Subjetividade e Poder: Construindo os Cidadãos-ConsumidoresdoNovoMilênioJoão Freire FilhoResistências criativas: os coletivos artísticos e ativistasnoBrasilHenrique MazettiGuerra Civil Imaterial: Protótipos de Conflito dentrodoCapitalismoCognitivoMatteo PasquinelliMidialivristas,uni-vos!Adriano Belisário, Gustavo Barreto, Leandro Uchoas, Oona Castro e Ivana Bentes

CidadE E mEtrópolECidadeeMetrópole:aliçãodabarragemGerardo SilvaPotências do samba, clichês do samba – linhas de fuga e capturas na cidade do Rio deJaneiroRodrigo GuéronTrabalho–operaçãoartística:expulsõesCristina RibasCidades,cegueiraehospitalidadeMárcia de N.S. FerranDispositivometrópole.AmultidãoeametrópoleAntonio Negri

a CUltUra monstrUosaApotênciadahibridação–édouardGlissanteacreolizaçãoLeonora Corsini

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UnivErsidadE nômadEThomasJeffersonouatransiçãodademocraciaMichael Hardt

Para meu Parceiro Vanderlei Marta Peres

lUtas, govErnos E a CrisE globalAscategoriasabertasdanovaConstituição boliviana.FormaçãodoEstadoPlurinacional: alguns percursos intelectuaisSalvador Schavelzon

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GovernoislâmicoegovernamentalidadeLeon Farhi Neto

Sobreacrise:finanças edireitossociais(oudepropriedade!) Maurizio Lazzarato

govErno lUla: dEsaFios para Uma polítiCa do ComUmPontos de MídiaBarbara SzanieckiGerardo Silva

Porummundodemocráticoproduzidodemocraticamente(ou:odesafiodaproduçãodocomum):contribuiçõesapartirdaexperiênciadoSistema de Saúde Brasileiro Francini Guizardi e Felipe CavalcantiDireitoàCidadenohorizontePós-FordistaAlexandre Fabiano Mendes

Estabilidadedecontratosnaindústriadeenergia:Umavisãosul-americanaAndré Garcez Ghirardi

Refugiado,CidadãoUniversal:umaanálise dodireitoàidentidadepessoalPatricia Magno

O Programa Bolsa Família entre a assistência condicionadaeodireitouniversalPedro Barbosa Mendes

mídia E CUltUraWeb2.0eoFuturodaSociedadeCiberculturalHenrique AntounUmaarmadilhadeVertovDiscussão coletiva proposta por Inês Araújo

navEgaçõEsAclínicadocorposemórgãos,entrelaços eperspicácias.Emfocoadisciplinarização e a sociedade de controle Emerson Elias MerhyTráficodeDrogas:Biopodere BiopolíticanaGuerradoImpérioMaria Elisa da Silva PimentelBula CãoMulato/Canismutatis ViralataInProgressEdson Barrus

rEsEnhasBAChELARD,Gaston.AintuiçãodoinstantePor Wanessa Canellas

AGAMBEN,Giorgio.EstadodeExceçãoPor Antonio Negri

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UnivErsidadE nômadEManifestodaRedeUniversidadeNômadeemapoioàlutadostrabalhadorespobressem-tetodacidadedoRiodeJaneiroAntonioNegrinoFórumLivredoDireitoAutoralConferência de AberturaNadaserácomoantes:deztesessobreacrisefinanceiraParaumareflexãosobreasituaçãosocio-econômicacontemporâneaAndrea FumagalliArevoluçãoinconclusadosdireitoshumanos:pres-supostosparaumanovaconcepçãodecidadaniaAlexandre MendesAsnovasformasdelutaspós-mídiasdigitaisIvana BentesA crise da política é a crise da representação e da grande mídiaGiuseppe CoccoOkirchnerismoeasúltimaseleições:umaleituracríticaCesar Altamira

UnivErsidadETecendoademocracia–Reformauniversitária,governoemovimentossociaisPedro Barbosa MendesTodoopoderàautoformação!Coletivo edu-factoryUniversidadeAbertaPaolo DoMovimentoEstudantileUniversidade:apontamentosa partir da experiência da UFPBFelipe de Oliveira Lopes Cavalcanti e Paulo Navarro de Moraes

navEgaçõEsEducaçãonasaúde,saúdecoletivaeciênciaspolíticas:umaanálisedaformaçãoedesenvolvi-mento para o Sistema Único de Saúde como política públicaRicardo Burg Ceccim, Fábio Pereira Bravin e Alexandre André dos SantosPoderViverSimone Sobral SampaioTecnologias,hackseliberdadeGilvan Vilarim

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UnivErsidadE nômadEParaintroduzir“OtimismodaRazão”,dePerryAndersonAntonio NegriO triunfo do cérebroAlberto De Nicola• AscondicionalidadesdoProgramaBolsaFamília:oavessodacidadaniaMarina BuenoSeisdedezembrode2009:oporquêdovotocidadãoOscar Vega CamachoPorqueLuizInáciodesagradaaCaetanoVelosoMarta Peres

Ascomunidadesquevêm...Experiênciaepensa-mentoemtornodeumautopiacontemporânea–ONGCEASM/MaréGlaucia Dunley

mídia E CUltUraRádio:algunsaspectosestéticosdosestudosderecepçãoWanessa CanellasGordonMatta-Clarkentrefotografias:fragmentosdeuma performanceElena O´NeillAgentesaíademanhãsemterideiaYann BeauvaisColaboração,usolivredasredeseaevoluçãodaarquiteturap2pFabio MaliniAPráticadaVida(Midiática)CotidianaLev Manovich

rEsEnhasEntre os muros da escolaPor Leonora CorsiniGlob(Al):BiopodereLutaemumaAméricaLatinaGlobalizadaPor Alexandre Mendes

intErsEçõEs raça/gênEro/ClassEApresentaçãoODevir-“MulherNegra”:umapropostaontológicaeepistemológicaVanessa Santos do CantoDevirmulherdotrabalhoeprecarizaçãodaexistência.AcentralidadedoscomponentesafetivoserelacionaisnaanálisedastransformaçõesdotrabalhoLucia del Moral Espin e Manu Fernández GarcíaAdiscriminaçãodonegroemCuba:causaseconsequênciasDimas CastellanosA ideologia da miscigenação e as relações interraciais no BrasilOtávio VelhoOs riscos da comunidade capturada X a plataforma da“favelania”Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

navEgaçõEsOdesmoronamentodaverdadesocialnaColômbiade Camilo TorresAlejandro Sánchez LoperaTrabalhoVivoemAtonaDefesadaVidaAténahoradeMorrerMagda de Souza Chagas e Emerson Elias MehryPoderconstituinteepoderconstituído:osconceitosdeAntonioNegriaplicadosàsalteraçõesconstitucionais em Portugal e no BrasilMaíra TitoLegados/efeitosdeFélixGuattariSylvio Gadelha

artE, mídia E CUltUraLaroyê Exú! O“Trabalho”deRonaldDuarteBarbara SzanieckiProximidades MetropolitanasCecília CotrimImagempolida,imagempoluída:artifícioeevidêncianalinguagemvisualcontemporâneaMarcos Martins

rEsEnhasSegurança,Território,População(deMichelFoucault)Por Wanessa CanellasAPeople’shistoryoftheUnitedStates(dehowardZinn)Por Thaddeus Gregory Blanchette

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UnivErsidadE nômadELiberdadeOperaísta(homenagemaRomanoAlquati)Gigi RoggeroAntecedentespolíticosdooperaísmo:osQuaderni RossiCésar Altamira

mUndo-brasil: govErno/polítiCa/movimEntosLutascosmopolíticas:MarxeAméricaIndígena(Yanomami)Jean TibleManifestoPolíticoCosmopolitaAntropofágicoCarlos Enrique Ruiz FerreiraConversaçõesno impasse:dilemaspolíticosdopresente, parte 1Colectivo SituacionesFigurasdasubjetividadeedagovernabilidadenaAméricaLatinaEnzo Del BufaloOcasoBattistieocasodosrefugiadoscongoleses:a justiça em termos de lutaFabrício Toledo de SouzaOsCursosPré-VestibularesparaNegroseasPolíticasdeCotasnasInstituiçõesdeEnsinoSuperior no BrasilAlexandre do NascimentoVivendonolimbo?Projeto Turbulence

artE, mídia E CUltUraBiopolíticaeteatrocontemporâneoJosé da CostaEmtornodo‘vírusdegrupo’.SeminárioGuattari não cessa de proliferarRicardo BasbaumTransgredirassigilosassiglasdonão”:alinguagemcomo espaço de criação de saídasMariana Patrício

navEgaçõEsEntrearepresentaçãoearevelação.kevinLynchea construção da imagem (do nomadismo) da cidadeGerardo SilvaPlay-GroundXWork-Out–Devaneiosnefelibáticossob o céu de CopacabanaMarta Peres

rEsEnhaMundoBraz.ODevir-MundodoBrasileoDevir-BrasildoMundo(deGiuseppeCocco)Por Bruno Cava

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UnivErsidadE nômadEMegaeventos,pontosdeculturaenovosdireitos(culturais)noRiodeJaneiroBarbara Szaniecki e Gerardo SilvaBiopoder,TrabalhoeValorSimone Sobral Sampaio

ComUnismoépossívelsercomunistasemMarx?Antonio NegriOsbenscomuns:umsetornegligenciadodacriaçãode riquezaDavid BollierInquietaçõesnoimpasse–ParteIIColetivo Situacionesquerelapelademocracia:Sociedadeemmovimento e processo constituinteOscar Vega CamachoFugacomoresistência:apobrezacriandoexcedentesFabrício Toledo de Souza

artE, mídia E CUltUraRevalorizaroplágionacriaçãoLeonardo F. Foletto e Marcelo de FranceschiNarrativasnoTwitter:ofenômenonoBrasileassuasimplicaçõesnaproduçãodaverdadeFábio MaliniOChãonasCidades–Performanceepopulaçãode ruaAndréa Maciel GarciaContraponto Brown SugarAndré GardelExperimentocarne:Umpoucosobrea“Estéticadafome”deBertoltBrechteaperformanceFatzerBrazAlexander KarschniaDeleuzeeocinemapolíticodeGlauberRocha: ViolênciarevolucionáriaeviolêncianômadeJean-Christophe Goddard

navEgaçõEsAcerca da moralidade do suicídioFermin Roland SchrammSaúdedotrabalhadornogovernoLulaMônica Simone Pereira Olivar

rEsEnhaCommonwealth:AmorePós-capitalismo (deAntonioNegrieMichaelhardt)Por Bruno Cava

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UnivErsidadE nômadEManifestoUninômadeglobal:Revolução2.0

dirEitos hUmanos/ homEnagEm a joaqUín hErrEra FlorEsApresentaçãoJoaquínherreraFloreseadignidadedalutaAlexandre MendesJoaquínherreraFloreseosDireitoshumanosapartir da Escola de BudapesteAndré Luiz MachadoTrabalhoeRegulação:oDireitoCapitalistadoTrabalhoeascriseseconômicasWilson Ramos FilhoDiálogospertinentes:micropolíticadotrabalhovivoematoeotrabalhoimaterial:novassubjetivações e disputas por uma autopoiese anticapitalística no mundo da saúdeEmerson Elias Merhy, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Paula Cerqueira e Tulio Batista FrancoApersistênciadaEscravidãoilegalnoBrasilRicardo Resende FigueiraVestfalha–AconstituiçãodoImpérioeasaporiasdaPaz PerpétuaGerardo Silva Leonora CorsiniAinfluênciadaesquerdae/oudosocialismoparaaafirmaçãodosDireitosEconômicos,SociaiseCulturaiseideiasparaumanovaagenda,aavant-garde,dosDireitoshumanosCarlos Enrique Ruiz Ferreira e Giuliana Dias Vieira

artE, mídia E CUltUraO animismo maquínicoAngela Melitopoulos e Maurizio LazzaratoEntrevistas–AgenciamentosProjeto de pesquisa visual de Angela Melitopoulos e Maurizio LazzaratoImaginaçãoeRepresentação:Whose Utopia?André Keiji KunigamiParacolocardevezacomunicaçãoimidiaticaCleber Daniel Lambert da SilvaAgalinhadosovosvirtuaisMariano Canal e Patricio Erb

navEgaçõEsOnascimentodafilosofia:umapeçaemtrêsatosRodrigo Siqueira-Batista

rEsEnhasEstéticadamultidão(deBárbaraSzaniecki)Por Bruno CavaVidaCapital:EnsaiosdeBiopolítica(dePeterPálPelbart)Por Thais Mazzeo

UnivErsidadE nômadEOcomumeaexploração2.0Universidade NômadeDoamorpelarua:aprendendocomooutronoscotidianos das cidadesSarah NeryDevir-índio,devir-pobreBruno CavaNatramadasapucaia:geofilosofiaeaflorestahipertecnizadaCleber Daniel Lambert da Silva

FoUCaUlt E as tECnologias do ComUmApresentaçãoBio-economiaeproduçãodocomum:reflexõesapartirdopensamentodeMichelFoucaultAlexandre Fabiano MendesEntredeterminismoeliberdade:aconstruçãodocomumcomonovouniversalJudith RevelResistências,subjetividades,ocomumJudith RevelTecnologiasdocomum:reflexõessobreopós-fordismoArianna BoveéticaepolíticanarelaçãosujeitoeverdadeSimone Sobral SampaioPotênciadoSer:ocuidadodesi,opolíticoeocomumLudmila GuimarãesPistasparaaproduçãodeexperiênciascomunitáriasAdriana Rodrigues Domingues

artE, mídia E CUltUraUmapolíticaculturalparaaspráticascriativasBarbara Peccei SzanieckiMetrópole,culturaebrevesreflexõessobreosnovosmuseus cariocasVladimir Sibylla PiresIndignadosglobaisporumaculturapolíticadigitalAline CarvalhoOrockdosanos60easutopiasprivatizadasdacontemporaneidadeLuis Carlos Fridman

navEgaçõEsO lugar do animal laborans e as transformações no mundodotrabalhoMariangela Nascimento

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UnivErsidadE nômadEA copesquisa nas lutas da cidadeAlexandre F. MendesA copesquisa militante no autonomismo operaístaBruno CavaAascensãoselvagemdaclassesemnomeHugo AlbuquerqueAsduasfacesdoApocalipse:umacartadeCopenhagueMichael Hardt

dossiê 40 anos do anti-édipoDois desejos, dois capitalismosCarlos Augusto Peixoto Junior e Pedro Sobrino LaureanoTratadodenomadologia:desejoerevoluçãoVladimir Lacerda SantaféMemória-máquinaMurilo Duarte Costa CorrêaRacharasimagens,contraefetuaroacontecimento,conceituaracomunidade:aexperiênciacomunitária emregistrosfotográficosdeMaiode68Eduardo Yuji YamamotoOsquarentaAnosdoAnti-édipo,Política,Desejoe(sub)Deleuze-GuattarianismoHugo AlbuquerquePotênciasdopolíticoemDeleuzeeGuattari: amegamáquinapolíticaAldo Ambrózio e Davis Moreira AlvimFilosofiaPolíticadeDeleuzeeGuattari:asrelaçõescom MarxRodrigo Guéron

artE, mídia E CUltUraPorumdesigndesejante:e(ntr)eovirtuo-design eoact-designM. Lucília BorgesPelas“gagueiras”dalíngua:aoficinapoéticadeVladimirMaiakóvskiPedro Guilherme M. Freire

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UnivErsidadE nômadECapitalismomaquínicoemais-valiaderede:NotassobreaeconomiapolíticadamáquinadeTuringMatteo PasquinelliReFavela(notassobreadefiniçãodefavela)Gerardo SilvaAfronteiracomométodoecomo“lugar”delutas segundo Sandro MezzadraPedro Cláudio Cunca BocayuvaEntrevistacomAntonioNegriemviagemàAméricado SulOccupy:ademocraciarealcomoconstruçãodaindignaçãoBruno Cava

dossiê CopEsqUisaApresentaçãoBrevesnotassobreométodo.Produçãodesaber e copesquisaGigi RoggeroParafazercopesquisa:oslugaresdalutadeclasseColetivo Universidade Nômade (Itália)Pesquisa-CartografiaeaProduçãoDesejantedoEspaço UrbanoSimone Parrela Tosteshomofobiaecartografia:marcasdomedonaAvenidaPaulistaLuan Carpes Barros Cassal

navEgaçõEsFalsificaramoeda!Michael HardtAdestruiçãodauniversidade.Consideraçõessobreauniversidadequevem(esboços)Carlos Enrique RestrepoRacificarahistóriaeoutrostemores…María Iñigo Clavo

rEsEnhasOanti-édipo:capitalismoeesquizofrenia (deGillesDeleuzeeFélixGuattari)Por Bruno CavaUma democracia a procura de radicalidade (deétienneBalibar)Por Sandro Mezzadra

rEsEnhasIlrisvegliodellastoria:Filosofiadellenuoverivoltemondiali (de Alain Badiou)Por Gigi RoggeroFebre do rato (de Claudio Assis)Por Bruno CavaVioleta foi para o céu (de Andrés Wood)Por Hugo Albuquerque

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Opesquisadorin-mundoeoprocessodeprodução deoutrasformasdeinvestigaçãoemsaúdeAna Lúcia Abrahão, Emerson Elias Merhy, Maria Paula Cerqueira Gomes, Claudia Tallemberg, Magda de Sousa Chagas, Monica Rocha, Nereida Lucia Palko dos Santos, Erminia Silva e Leila ViannaPorumacidademenor:hegemoniaeresistência nacidadedoRiodeJaneiroErick Araujo de Assumpção e Túlio Batista FrancoUmapropostadepesquisa-açãoaplicadaemumaaldeiaMbyá-GuaraniFranklin da Silva Alonso

artE, mídia E CUltUraTobeornottobeawhitelimousine?Arte,instituiçãoesubjetividade:fricçõesnacidadeBarbara SzanieckiVerdade,ideologiaeviolêncianasprimeirasfotografiasdopovoemPortugalFrederico Ágoas

navEgaçõEsCriandooComumeFraturandooCapitalismo:umatrocadecartasentreMichaelhardteJohnholloway(ParteI)Por uma Escola PluralAlexandre do NascimentoAs forças demoníacas das pulsões no pensamento freudianoesuasmarcasnafilosofiadadiferençaJoão C. Galvão Jr.

rEsEnhasEstratégiasdearticulaciónurbana:proyectoygestióndeasentamientosperiféricosenAméricalatina; un enfoque transdisciplinario (deJorgeMarioJáuregui)Por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

UnivErsidadE nômadEO PT se reduziu a um partido da ordem e pela ordem?

dossiê: a potênCia dos pobrEsApresentaçãoLulismoeofazer-sedeumanovaclasseJean TibleNovaclassemédiaounovacomposiçãodeclasse?Giuseppe Cocco

A produção do atraso e do isolamento do campesinato:juventudenocampesinatobrasileiroBeatriz Maria de Figueiredo RibeiroAs imagens da MultidãoVladimir Lacerda SantaféO“estadodeexceção”eainternaçãocompulsóriaRicardo GomesGestãoescolar,democracia,MariaosemiáridoenósAndré Antunes MartinsAPTO,01qto,sl,coz,bnh,s/gar.Revisitandoo EdifícioMaster:deviresealegriasnumcampocontroladoFrederico Canuto“Novodesenvolvimentismo”:asUnidadesdePolíciaPacificadora(UPPs)ea“integração”dos pobresurbanosnametrópolecariocaEduardo de Oliveira RodriguesUmnovoparadigmaconstitucional:oárduocaminhoda descolonizaçãoMelissa Mendes de NovaisOcupaçãoMauáepoderdefabulação:consideraçõesapartirdeumaatividadedeformaçãoStella Zagatto PaternianiPobrezaetecnologiasocial:oqueistotemaver?Rosa Maria Castilhos Fernandes e Aline AccorssiDabiopolíticaànoopolítica:contribuiçõesdeDeleuzeDomenico Uhng HurApobrezaeadimensãoéticadamilitânciaRicardo Luiz Sapia de Campos

artE E mídiaEspectroLivre:oDireitodoPovoàComunicaçãoThiago NovaesBibliotecasemRede,DIY:piratariadee-booksnoensino superior brasileiroGabriel MenottiACo-produçãoTelevisiva:oenvolvimento dospúblicosedosnão-humanosnoprocesso comunicacional mediado pela TVJosé Pedro Arruda

rEsEnhasOsbatalhadoresbrasileiros:novaclassemédia ounovaclassetrabalhadora? (de Jessé Souza)Por Bruno CavaOssentidosdolulismo:reformagradualepactoconservador (de André Singer)Por Bruno Cava

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