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Anais do XII Encontro Internacional da ANPHLAC 2016 - Campo Grande - MS ISBN: 978-85-66056-02-0
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Lugares de memória das ditaduras: as experiências no
desenvolvimento das políticas de memória no Brasil e na Argentina a partir de lugares edificados
Elson Luiz Mattos Tavares da Silva Mestrando em História pela UNIFESP
Em de abril de 1964, o Brasil enfrentou um golpe militar1 que culminou na
instalação de uma ditadura que perdurou 21 anos. Essa ditadura marcou a história do
Brasil, sobretudo pelas gravíssimas violações de direitos humanos cometidas durante
e pelo regime. Foram incontáveis perseguições e assassinatos. E tais violências não
se caracterizavam como excessos, mas parte estrutural do governo. Variadas formas
de tortura, violência sexual, além de desaparecimentos, ocultação de cadáveres, são
exemplos de violações praticadas pela ditadura que, junto com a censura e outras
formas de cerceamento do debate de ideias, permitiram que o regime se sustentasse
por tantos anos.
Todo o aparato que consolidava esse regime estava fortemente organizado
atrás dos muros das instituições públicas e de casas clandestinas. Esses lugares eram
muitas vezes palco dessas violências, fossem ilegais, ou amparadas por algum tipo
de legitimidade institucional. Havia ainda apoio de parte conservadora da sociedade
civil e de grandes empresas que, além de sustentação ideológica, ajudavam
financeiramente2 na manutenção do regime.
Infelizmente, a ditadura brasileira não foi um processo isolado. Ela se enquadra
em um período marcado por golpes e o estabelecimento de ditaduras militares na
América Latina, definidas por uma política de segurança nacional, em especial nos
países do cone sul. Essas ditaduras resultaram da pressão do capital internacional
por novas formas de acumulação, assim como pelo aprofundamento das contradições
de classe, em que os projetos reformistas ou revolucionários emergiam como saídas
coerentes aos problemas apresentados.3
Na Argentina, a ditadura durou do golpe em 1976 até 1983. Ainda que seja
similar em alguns aspectos à do Brasil, há uma diferença importante. A violência
institucionalizada na Argentina se iniciou ainda antes do golpe, sobretudo com a ação
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de grupos paramilitares, como a Triple A – Aliança Anticomunista Argentina – e do
Comando Libertadores de América.4 E, após o golpe de 1976, o desaparecimento e
os campos de concentração se consolidaram como principais instrumentos
repressivos.5 A ditadura argentina deixou um aterrorizante saldo de cerca de 9.000
pessoas assassinadas ou desaparecidas. De acordo com a Comisión Nacional sobre
la desaparición de personas (CONADEP), este número pode ser muito maior.6
Esses grupos estavam instalados em lugares que foram posteriormente
chamados de Centros Clandestinos de Detenção (CCD) e, nesses lugares, ocorriam
uma série de violações, inclusive torturas, assassinatos e desaparecimento de
pessoas.
Los centros de detención, que en número aproximado de 340 existieron en toda la extensión de nuestro territorio, constituyeron el presupuesto material indispensable de la política de desaparición de personas. Por allí pasaron millares de hombres y mujeres, ilegítimamente privados de su libertad, en estadías que muchas veces se extendieron por años o de las que nunca retornaron. Allí vivieron su «desaparición»; allí estaban cuando las autoridades respondían negativamente a los pedidos de informes en los recursos de habeas corpus; allí transcurrieron sus días a merced de otros hombres de mentes trastornadas por la práctica de la tortura y el exterminio, mientras las autoridades militares que frecuentaban esos centros respondían a la opinión pública nacional e internacional afirmando que los desaparecidos estaban en el exterior, o que habrían sido víctimas de ajustes de cuentas entre ellos.7
Passados os anos de chumbo das ditaduras no Brasil e na Argentina, alguns
esforços têm sido realizados com o objetivo de restabelecer uma normalidade
democrática nesses países. Em medidas distintas, com mais ou menos intensidade,
desde a reabertura política, foram e têm sido promovidas políticas para condenar,
ainda que simbolicamente, as ações arbitrárias e as violações de direitos humanos
praticadas sistematicamente pelos governos militares.
Os chamados “lugares de memória das ditaduras”8 representam aquelas
instalações onde funcionaram os centros de repressão durante as respectivas
ditaduras e que de alguma forma têm sido preservados por sua importância histórica.9
O debate sobre a preservação desses lugares é bastante atual e ainda se apresenta
como cenário de disputa política. Como exemplo, é possível verificar o recente
tombamento das instalações onde funcionou o DOI-CODI em São Paulo, em 2014,
assim como a alteração do nome do Elevado Costa e Silva, há poucos dias.10
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Reconhecendo a importância da preservação dessas construções, bem como
a importância de políticas que ultrapassem as fronteiras nacionais, o Mercosul, por
meio do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH), elaborou um
documento intitulado Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre lugares
de memória. Considerando o fato de que diversos desses países passaram por
períodos de autoritarismo de Estado e gravíssimas violações de direitos humanos,
apresenta o objetivo de contribuir com a integração destes países e, sobretudo,
postular referências para lugares/sítios de memória na área de atuação deste
organismo a partir do direito internacional e dos direitos humanos, compreendendo os
lugares de memória como instrumentos de memória, verdade, justiça e reparação.11
Este documento trouxe uma definição que sintetiza o debate sobre lugares de
memória:
Os lugares de memória são todos aqueles lugares que resultam significativos para uma comunidade e que permitem incentivar processos de construção de memórias vinculadas a determinados acontecimentos traumáticos ou dolorosos.12
Pierre Nora, uma das grandes referências sobre o tema, defende a ideia de que
os locais de memória seriam criados por estar em curso um tempo sem memória e,
portanto, surgiriam como uma necessidade de criar, artificialmente, uma solução para
uma suposta ausência de memória espontânea sobre determinados fatos.13
Diferentemente dessa definição, o que se busca com a criação dos lugares de
memória das ditaduras é a superação do abuso do esquecimento14, quando os atores
sociais são desapossados de seu “poder originário de narrar a si mesmos.”15
Apesar da importância da preservação desses lugares para a memória de seus
respectivos países, ou mesmo para a história da América Latina, esses lugares têm
passado por processos de salvaguarda muito distintos. Considerando que a violência
foi estrutural também para a manutenção não só dos regimes ditatoriais, mas para
uma realidade de controle e repressão que atingiu vários países, cuja história
atravessa as fronteiras nacionais, é imprescindível perceber os processos de
recuperação de tais lugares também em perspectiva que não se limite aos territórios
nacionais.
Nesse sentido, serão colocados em perspectiva comparada os processos de
constituição de alguns dos lugares de memória nas cidades de São Paulo (Brasil) e
Córdoba (Argentina). Os lugares selecionados se tratam de alguns bens edificados
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reconhecidos como patrimônio histórico entre os anos de 1985 e 2014. Esse amplo
período utiliza como referenciais os anos de reconhecimento dessas construções
como lugares de memória.
Sendo destacados os seguintes lugares em São Paulo: o Memorial da
Resistência, local onde funcionou o DEOPS, principal memorial instalado nesta
localidade; o local onde funcionou o Destacamento de Operações de Informações –
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e o Portal do Presídio Tiradentes,
única instalação remanescente do Presídio, cujo tombamento se tratou de um esforço
evitando a completa demolição daquela edificação.
Em Córdoba são evidenciados: o Archivo Provincial de la Memoria, onde
funcionou o chamado “D-2”, o Departamento de Informações da Polícia; La Perla, um
dos mais importantes centros de tortura e desaparecimento da ditadura argentina; e
La Ribera, onde se instalou o Comando Libertadores da América, uma organização
de caráter paramilitar que se consolidou como lugar de desaparição e terror depois do
golpe.
Lugares de memória em São Paulo
O Memorial da Resistência é a principal referência em São Paulo, e muito
possivelmente no Brasil, sobre projetos memorialísticos em lugares em que ocorreram
violações de direitos na ditadura militar. O memorial está instalado no Largo General
Osório, próximo às estações da Luz e Júlio Prestes, no bairro de Campos Elíseos,
região central da cidade. A fundação do memorial ocorreu em 1º. de maio de 2008.
Mas, ainda que tenha se tornado uma referência no tema, o processo de criação do
Memorial foi bastante tenso e revela alguns dos graves problemas de preservação
patrimonial, sobretudo daquelas construções que se referem à ditadura.
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Figura 1 - Fachada do Memorial da
Resistência (Foto: Elson Silva, Acervo pessoal)
Figura 2 - Situação das celas nos anos 90 (Foto: Fernando Braga, Acervo APESP)
O edifício é um exemplar dos grandes projetos de Ramos de Azevedo.
Construído em 1914, foi utilizado inicialmente como sede dos escritórios da
Companhia Estrada de Ferro Sorocabana até 1938. Depois, de 1940 até 1983, foi
utilizado como Departamento Estadual de Ordem Política e Social, DEOPS, um dos
principais órgãos repressivos da Ditadura. Com a extinção desse órgão em 1983, o
prédio passou a ser ocupado pela Delegacia de Defesa do Consumidor, DECON. Em
1997, a gestão do edifício passou para a secretaria da Cultura.
A construção foi tombada pelo CONDEPHAAT como bem cultural em 1999.
Mas já havia acontecido outras tentativas, com processos de tombamento não
concluídos, de preservação daquele edifício como parte da paisagem urbana do
bairro. Depois de tombado, o edifício ficou algum tempo em condições de total
abandono, tendo enfrentado um desastroso processo de restauração, executado pelo
escritório de arquitetura Haron Cohen, concluído em 2002. A restauração, motivada
por uma bem-intencionada vocação de esquecimento, previa apagar as marcas do
passado que trouxesse à tona os resquícios da violência que marcou a ditadura. A
intervenção, que buscava tornar o local num centro cultural agradável e asséptico,
terminou por descaracterizar o espaço interno, apagando características que
remetiam ao uso do local pelo DEOPS, e com isso, parte de sua história.
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Figura 3 - Interior de uma das celas em
1990 (Foto: Fernando Braga, Acervo APESP)
Figura 4 - Cela em estado de abandono
meados dos anos 90 (Foto: José Patrício, Acervo MRSP)
Ainda neste mesmo ano, já sob a responsabilidade do Arquivo Público do
Estado de São Paulo, tentou-se instalar alguns projetos que não se desenvolveram,
dentre eles: o Memorial do Cárcere e o Memorial da Liberdade, no espaço onde se
encontravam quatro das antigas celas usadas pelo DEOPS. Até que, em 2008,
finalmente se instalou o memorial da resistência, ocupando parte do pavimento térreo
apenas. No mesmo pavimento, há um espaço de restaurante, e nos outros pavimentos
funcionam uma instalação da Estação Pinacoteca, a Biblioteca Walter Wey e um
auditório.
O Portal do Presídio Tiradentes foi o primeiro bem tombado em São Paulo com
o objetivo de preservar e comunicar a recente história de violência do terrorismo de
Estado. Localizado na Avenida Tiradentes, número 451, em frente ao Batalhão Tobias
de Aguiar, sede das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) da Policia Militar
do Estado de São Paulo. O Arco é também testemunha do apego destruidor que
vigora na “preservação” desses bens.
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Figura 5 - Portal do presídio.
(Foto: Ana Paula Brito. Fonte: Memorial da Resistência de São
Paulo)
Figura 6 - Foto do Presídio Tiradentes.
(Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária do estado de São Paulo)
O presídio foi construído para ampliar o número de vagas prisionais na cidade,
ainda no século XIX, em 1852. Durante a Era Vargas, foi utilizado como prisão de
perseguidos políticos. E já nos anos de chumbo, foi o destino de muitas presas e
presos políticos que de algum modo eram condenados formalmente pelo regime.
Alguns torturadores afirmavam que o presídio “era o paraíso”, afinal, quem
ingressasse ali ficava oficialmente sob a custódia do Estado, o que diminuía as
chances de desaparecer ou ser assassinado.16
O presídio foi quase totalmente demolido em 1972, tendo permanecido apenas
seu portal, cujo tombamento foi concluído em 1985.
“Considerando o valor histórico do Arco da Pedra enquanto símbolo da luta contra o arbítrio e a violência é meu parecer que ele deva ser tombado, e posteriormente transformado em monumento público. Sendo um arco, é forçosamente uma passagem que simboliza o esforço atual para a plena redemocratização do país”.17
O edifício que abrigou a “Operação Bandeirante” (OBAN) e o Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) se
localiza na Rua Tutóia, 921, Vila Mariana. Foi tombado em janeiro de 2014. Nesse
mesmo endereço, está instalado o 36º Distrito Policial, a poucos metros do Comando
Militar do Sudeste, que durante a ditadura foi sede do II Exército.
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Figura 7 - Entrada do 36o Distrito policial.
(Foto: Elson Silva, acervo pessoal).
Figura 8 - Edifício onde funcionaram OBAN e
DOI-CODI. (Foto: Elson Silva, acervo pessoal).
Esse lugar se tornará a mais conhecida e notória imagem do terror do estado ditatorial contra seus opositores. Passa a ser um símbolo de torturas, assassinatos e desaparecimento forçado dos corpos de presos políticos mutilados por indescritíveis e intermináveis horas de torturas. Inicialmente comandada pelo Coronel Waldir Coelho, essa estrutura violenta ganha vida “legal” como DOI-CODI - II Exército, em agosto de 1970, e um novo comandante, o Major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Esse oficial será o mais conhecido responsável por torturas, assassinatos, violações e massacres de militantes de oposição à ditadura militar.18
A OBAN, em 1969, e posteriormente o DOI-CODI, foram estratégicos na
engrenagem ditatorial. Sua criação e operação eram resposta a uma demanda da
repressão por uma estrutura mais eficiente para combater as organizações contrárias
à ditadura. Teve início em um núcleo especializado, organizado a partir da
reestruturação do serviço secreto da 2ª. Divisão de Infantaria, que reuniu membros da
Secretaria de Segurança Pública, DOPS, do Centro de Informações do Exército (CIE),
e da Aeronáutica (CISA), e resultou na captura de integrantes de diversas
organizações da esquerda armada.19 Essa organização se consolidou sob a insígnia
do DOI-CODI, cuja política repressiva se sistematizava em uma sequência de ações
que se resumia em “destruir as organizações de esquerda, o combate aos partidos
comunistas e o aplicar o terrorismo de direita”20.
Com o encerramento da ditadura, a edificação passou a integrar o espaço da
delegacia. Em 2012, foi aberto um processo de tombamento, a pedido de Ivan Seixas,
que ficou preso e foi duramente torturado naquele lugar, junto com o pai, que foi
assassinado naquelas instalações. O pedido foi concluído em 2014 com um parecer
favorável ao tombamento. Entretanto, a delegacia continua funcionando naquele local,
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e há um embate político para que o espaço se desvincule das forças de segurança,
para que possa enfim receber algum projeto memorialístico.
O Archivo Provincial de la Memoria se localiza em uma pequena rua chamada
Passagem Santa Catalina, 64/66, na cidade de Córdoba, Argentina. Esta passagem
está estabelecida na região mais central da cidade, ligada à Praça San Martín, marco
zero. O segmento construído mais recentemente foi o que se localiza mais próximo
ao Cabildo, entre 1817 e 1850. Já no início do século XX, a polícia passou a utilizar
essas construções, assim como o Cabildo, como sede de suas dependências. A partir
de 1940, as antigas casas dos séculos XVIII e XIX da Passagem Sta. Catalina
serviram como espaço de detenção, perseguição, tortura e desaparecimento de
militantes políticos. Nas décadas de 1960 e 1970, o Departamento de Informações
(D–2) foi sistematicamente ocupado com inúmeros militantes políticos, sindicalistas e
estudantes que eram sequestrados ou massivamente arrastados de marchas e
manifestações.
De 1978 até 1983, funcionou como centro clandestino de detenção, tortura e
extermínio. Em dezembro de 2006, depois de sancionada a Lei da Memória, as
instalações onde funcionara o D-2 passaram a ser a sede da Comissão e do Arquivo
provincial da Memória. Em 2007, ex-presos foram convidados a derrubar muros que
foram construídos com o objetivo de dificultar o reconhecimento do lugar e, em 2008,
foi inaugurado o “museu do sitio”.
Figura 9 – Porta de entrada do Archivo
(Foto: Elson Silva, acervo pessoal)
Figura 10 – Muro derrubado para revelar espaços do ex–"D–2” (Foto: Elson Silva,
acervo pessoal)
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Atualmente, além de ser um lugar (sítio) de memória, o Arquivo Provincial da
Memória, como o próprio nome diz, salvaguarda uma série de documentos históricos
referentes ao terrorismo de Estado na Argentina, inclusive aqueles encontrados em
outras instalações, assim como também preserva documentos relacionados à luta
pelos direitos humanos na província.
La Perla foi um dos maiores e mais perversos centros clandestinos de detenção
na Argentina. Foi construído especificamente para ser o destino de presos políticos
durante a última ditadura civil-militar, tendo iniciado suas atividades junto com a
própria ditadura. Apesar do “curto” período de atividade, de março de 1976 a
dezembro de 1978, estima-se que cerca 2.500 pessoas tenham passado por ele, das
quais poucos sobreviventes são conhecidos.21 O centro está localizado nos arredores
da cidade, em uma pequena estrada secundária da Rota Nacional 20, que interliga as
cidades de Córdoba e Carlos Paz.
Figura 11 - Entrada de "La cuadra", espaço onde presos ficavam alojados. (Foto: Elson
Silva, acervo pessoal)
Figura 12 - Parte interna de "La cuadra",
dormitório dos presos. (Foto: Elson Silva, acervo pessoal)
O sequestro, atividade sistemática e estrutural de terror da ditadura argentina,
era a principal forma de ingresso de presos no centro clandestino. Como um
verdadeiro campo de concentração, as pessoas eram destituídas de suas identidades
e tratadas por números. Outro eufemismo era chamar de trasladar aqueles que seriam
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assassinados, ou as sessões de tortura de interrogatório, assim como a sala de tortura
era conhecida como sala de terapia intensiva.
Em 1979, sua existência foi “oficializada”, tendo se tornado um quartel militar,
sede do “Esquadrão de exploração de cavalaria aerotransportada 4” do III Corpo do
Exército, responsável pela província de Córdoba. Esse esquadrão ficou instalado por
muitos anos, inclusive após a ditadura, até 2007, quando o governo federal cedeu
todo o edifício à Comissão Provincial da Memória. Em 24 de março de 2009, La Perla
é aberto ao público como espaço para memória e promoção de direitos humanos.
Campo de la Ribera foi outro centro clandestino que foi convertido
recentemente como espaço de memória. O espaço está localizado na região noroeste
da cidade, próximo ao Cemitério San Vicente e à Avenida Costanera. Foi criado ainda
nos anos de 1940 para abrigar uma prisão militar. Ainda antes do golpe, em 1975, a
prisão foi transferida para outra instalação e, em dezembro daquele ano, Campo de
la Ribera passou a sediar a base de operações do “Comando libertadores de
America”, servindo também como centro clandestino de detenção, tortura e
extermínio. Em 1978, com a visita da Cruz Vermelha internacional, o lugar voltou a
ser uma prisão, e, ao final da ditadura, foi abandonado.
Figura 13 - Pátio interno do Campo de la Ribera.
(Fonte: Archivo Provincial de la Memoria)
No final dos anos 80, o espaço passa a ser administrado pela província de
Córdoba e, em 1990, uma escola pública começa suas atividades no edifício onde
funcionava o Casino de Oficiales. Em 2009, três anos após a criação da Lei da
Memória22, a escola foi transferida para outro edifício, na mesma região. E em 2010,
no dia 24 de março, data do golpe, foi entregue como lugar de memória.
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Figura 14 - Campo de la Ribera - Corredor interno
(Fonte: Archivo Provincial de la Memoria)
Diferenças e aproximações para preservação dos lugares no Brasil e Argentina
A primeira característica que aproxima esses lugares é o fato de todos, de
algum modo, terem sido instalações da repressão, seja em São Paulo ou em Córdoba.
Alguns deles, às vezes utilizados como prisão, sede de grupos paramilitares, ou palco
de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados. E tendo sido lugares tão
centrais para as ditaduras, seriam legítimos de serem preservados por sua
historicidade.
Mas sua preservação não se repousa somente sobre as memórias individuais.
A constituição de memoriais serve não só para que as pessoas que tiveram suas vidas
marcadas pelas ações de terror praticadas ali possam ter suas memórias preservadas
por meio da materialidade daqueles edifícios. Os memoriais são potenciais
instrumentos de reparação. Seja por serem capazes de promover uma homenagem,
ou uma forma de reparação às pessoas que tiveram suas vidas diretamente marcadas
por estes lugares, muitas vezes com sofrimento ou até mesmo morte23, ou por serem
capazes de promover uma reparação a toda sociedade, que de algum modo teve sua
trajetória marcada pelas ações de violência realizadas ou arquitetadas nesses
lugares.
Essa reparação, quando promovida pelo Estado, além de permitir que a
sociedade recorde e elabore esse passado violento, promove um reconhecimento, por
parte do próprio Estado, das arbitrariedades cometidas ali. O direito à verdade é um
dos pilares do conjunto de práticas que se convencionou chamar de “Justiça de
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Transição”, e, juntamente com os esforços para preservação de memórias sobre
determinados períodos de exceção, constitui-se como ponto inicial para as discussões
e ações para a justiça de transição.24 Preservar os lugares em que ocorreram essas
violações dialoga, portanto, com o direito à verdade, à memória e à reparação – ainda
que simbólica – individual e coletiva.
Os casos apresentados demonstram as trajetórias de cada edificação, assim
como suas variadas formas de reapropriação pela sociedade, como edifícios públicos
e como lugares de memória. E também dão indícios das distintas estratégias adotadas
nos exemplares brasileiros e argentinos para refuncionalização desses lugares.
No Brasil, todos os lugares tiveram sua preservação iniciada a partir da
conversão em patrimônio histórico a partir do tombamento pelo Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT).25 O portal
de entrada (arco) do Presídio Tiradentes foi o primeiro a ser tombado, como medida
para evitar o completo apagamento de toda a construção da superfície da cidade. Um
procedimento feito com urgência antes que as obras do metrô demolissem também
aquele último remanescente. O lugar onde funcionara o presídio segue sem qualquer
tratamento memorialístico.
O edifício onde está o memorial da resistência passou por algumas ações de
restauração para seu tombamento, ainda durante a ditadura, por sua arquitetura e
contribuição à estética urbana, tendo se consolidado apenas no apagar das luzes dos
anos 1990, que enfim reconheceu a arquitetura a partir de seu uso como DEOPS.
Apesar da intervenção desastrosa a que foi submetido, o espaço abriga o projeto mais
bem sucedido de lugar de memória, reflexo da ação de diversos grupos da sociedade
civil pela preservação da memória política dos anos de chumbo.
As instalações do antigo DOI-CODI, hoje tombadas como patrimônio histórico,
seguem longe de qualquer realidade de receber algum projeto de uso como lugar de
memória.
Esses casos demonstram a inexistência de uma política sistemática para
preservação desses lugares. Considerando o procedimento do CONDEPHAAT, as
ações partiram sempre da sociedade civil, e, de algum modo, devendo considerar a
composição do conselho, tiveram suas demandas atendidas, garantindo a
preservação dessas edificações por meio do tombamento, mas sem qualquer garantia
de instalação de projetos educativos ou qualquer capacidade de comunicação ou
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reparação. Ainda que haja uma compreensão internacional sobre a preservação e o
potencial como instrumentos de reparação desses lugares.
A Argentina, que vem seguindo caminhos distintos nos procedimentos para a
transição à democracia, apesar dos muitos conflitos sobre o tema, conseguiu, a partir
de 2003, estabelecer uma política de memória e verdade que não se aplicou somente
aos lugares de memória. No início do governo Kirchner, foi anunciada uma
reorganização da cúpula militar, além da anulação de leis de Obediência Devida e
Ponto Final26. Em seguida, houve um processo de reapropriação da Escola Superior
da Mecânica Armada, um grande marco na política de preservação desses lugares no
país, criando ali um instituto para a memória. Em seguida, foi criado o Arquivo
Nacional da Memória (Archivo Nacional de la Memoria) para armazenar toda
documentação encontrada e produzida pela CONADEP, propondo que estas ações
se replicassem nas demais províncias, que deveriam criar e manter seus arquivos e
memoriais.
Quando se completavam 30 anos do início da Ditadura, foi criado o Arquivo e
a Comissão Provincial da Memória de Córdoba, em março de 2006, por meio da Lei
9286, a chamada “Lei da Memória”27. Tanto o arquivo quanto a comissão ficariam
sediados no edifício onde funcionou o “D-2”, no casarão da Pasaje Sta. Catalina. Essa
mesma lei já indicava a preservação de outros lugares, como La Perla e La Ribera,
que têm sido sistematicamente submetidos a propostas de preservação e difusão de
memórias.
Ainda que São Paulo e Córdoba tenham desenvolvido experiências distintas, a
criação desses lugares é fundamental para a consolidação da democracia nesses
países, o que foi percebido e sistematizado no documento do IPPDH/Mercosul
chamado “Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre lugares de
memória”, ou para a criação da coalizão internacional para sítios de memória e
consciência que promove e estimula a preservação de lugares onde tenham ocorrido
violações dos direitos humanos ao redor do mundo.
Todavia, a criação e o reconhecimento desses lugares pelos Estados e por
organizações internacionais não têm sido suficiente para criar uma rede de
intercambio de aprendizados entre esses lugares, tampouco em garantir que
permaneçam se desenvolvendo, uma vez que continuam subordinados aos interesses
políticos dos governos em questão.
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E, apesar das dificuldades, a preservação e operacionalização destes lugares
têm se revertido em contribuições inestimáveis à compreensão das ditaduras, de seus
aparatos repressivos, de suas práticas de terror, da violência cometida contra aqueles
que se opuseram, bem como em instrumentos de voz, de memória e de reparação
àqueles cujos direitos foram violados. Enfim, estes lugares de memória podem
contribuir para o questionamento da própria sociedade e de suas práticas autoritárias.
1 Há uma tendência mais recente de se atribuir o nome de “Golpe Civil-Militar” ao processo histórico que culminou na instalação da Ditadura Militar, tendo em vista a importante participação de setores civis na arquitetura do Golpe. Inclusive do embaixador Lincoln Gordon, que representou um período de grande interferência dos EUA na política brasileira. FICO, Carlos et al. (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 137. 2 Por exemplo, o famoso caso de Henning Boilesen, presidente do grupo Ultra e da FIESP, que ficou conhecido por arrecadar dinheiro dentre o empresariado para contribuir no financiamento de ações repressivas. CIDADÃO Boilesen. Direção: Chaim Litewski. Brasil: IMOVISION, 2009 (92 min.), color. 3 PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência. In: FICO, Carlos et al. (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 144. 4 CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. São Paulo, Boitempo Editorial, 2013, p. 38. 5 Ibidem, p. 39. 6 CONADEP. Nunca Más: Informe de la Comisión Nacional sobre la desaparición de personas. Buenos Aires: Eudeba, 2012, p. 14. 7 Ibidem, p. 59. 8 Na Argentina é recorrente o uso da expressão “Sitios de Memoria”, assim como também se utiliza o termo “sítios de consciência”. 9 Os processos de preservação no Brasil são habitualmente motivados por sua vocação artística. Todavia Riegl, em 1903 (data da publicação original), já apontava para a importância de preservação de bens não só por sua característica estética (Gewoltte), mas por sua importância histórica (Ungewoltt). RIEGL, Aloïs. El Culto Moderno a los Monumentos. Madrid: Machado Libros, 2008. 10 MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Lei n. 16.525, de 25 de julho de 2016. Altera a denominação do Elevado Presidente Costa e Silva para Elevado Presidente João Goulart, e dá outras providências. Disponível em: http://documentacao.camara.sp.gov.br/iah/fulltext/leis/L16525.pdf Acesso em: 27 de julho de 2016. 11 MERCOSUL. Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre lugares de memória. Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IDPPH), 2012, p.3-4. 12 Ibidem, p.16. 13 NORA, Pierre. Entre a Memória e a História: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, v. 10. São Paulo: PUC, dez. 1993, p. 7-28. 14 O abuso do esquecimento, como definido por Ricoeur, consiste na intenção de esquecimento promovido por aqueles que detém poderes (políticos, econômicos, sociais) com o objetivo de impedir a construção de memórias sobre determinados fatos, ou manipulá-las de modo a se recordar de uma “história mutilada”. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 455. 15 Segundo Ricoeur, em essa A memória, a história, o esquecimento, é a forma mais ardilosa de esquecimento, e tem origem em contextos autoritários, em que se verificam práticas de censura e outras formas de cerceamento da memória. 16 VILLAMÉA, Luiza; SEQUEIRA, Claudio Dantas. A torre das donzelas. Revista IstoÉ, n. 2120, 30 de junho de 2010. Disponível em: http://istoe.com.br/83253_a+torre+das+donzelas/ Acesso em: 05 de setembro de 2016. 17 CONDEPHAAT. Processo 23345, Portal de Pedra do Antigo Presídio Tiradentes. 1985.
Anais do XII Encontro Internacional da ANPHLAC 2016 - Campo Grande - MS ISBN: 978-85-66056-02-0
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18 SEIXAS. Ivan. Uma ditadura contra o povo e o país. IN: BERNARDES, Laura; CARDOSO, Ítalo (Orgs). Desaparecidos Políticos: um capítulo não encerrado da História Brasileira. São Paulo: Ed. do Autor, 2012. p.47. 19 JOFFILY, Mariana. No centro da Engrenagem: Os Interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo; Rio de Janeiro: Eds. Arquivo Nacional e EDUSP, 2013, p. 39-40. 20 Ibidem, p. 45. 21 MARIANI, Ana; JACOBO, Alejo Gómez. La Perla: historia y testimonios de un campo de concentración. Barcelona: Editorial Aguilar, 2012, p. 370. 22 CÓRDOBA. Lei n. 9286, de 22 de março de 2006. Ley de la Memoria. Criação do Arquivo Provincial da Memória e adesão a Decreto Nacional n. 1259/2003. 23 SOARES, Inês Virgínia Prado Soares; QUINALHA, Renan Honório. Lugares de Memória no cenário brasileiro da justiça de transição. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 10, jun. 2011, p. 75-86. 24 “O direito à verdade foi definido como aquele que têm as vítimas de graves violações aos direitos humanos e seus familiares de conhecer a verdade do ocorrido, em particular a identidade dos autores e as causas, os fatos e as circunstâncias em que estes foram produzidos. Além desta dimensão individual, o direito à verdade tem uma dimensão social ou coletiva, ligada ao direito que têm os povos de conhecer seu passado para assim construir uma memória histórica e resguardar-se para o futuro”. MERCOSUL. Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre lugares de memória. Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IDPPH), 2012, p. 11. 25 O procedimento para tombamento, ou conversão em patrimônio histórico, passa por duas fases: uma preliminar, em que se desenvolve um estudo simplificado e então encaminhado ao Conselho para prosseguimento. Sendo aprovado pelo conselho, será encaminhado para a elaboração de um estudo qualificado, o “Estudo de Tombamento”, para posterior aprovação definitiva de seu tombamento. Em caso negativo, arquivado. 26 Lei n. 23.521, de 04 de junho de 1987, Lei de Obediência Devida e Lei n. 23.492, de 23 de dezembro de 1986, Lei de Ponto Final. Ambas as leis foram criadas durante o governo de Raul Alfonsín (1983-1989), minimizando os impactos judiciais sobre os militares, o que se apresentou como grande contradição, já que, durante este governo, os primeiros militares foram julgados e condenados por sua ação durante a ditadura argentina. 27 CÓRDOBA. Lei n. 9286, de 22 de março de 2006, Lei da Memória. Criação do Arquivo Provincial da Memória e adesão a Decreto Nacional n. 1259/2003.