³lugares de memórias, memória X história´ e até a questão da … · na Educação Básica,...

14
A Niterói que não conseguimos ver: a busca pelos lugares de memória de Niterói BRUNO ORNELAS DA CUNHA * “Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação”. (NORA, 1993:12-13) Inicio esse artigo com uma citação de Pierre Nora sobre os lugares de memória, pois tenho como objetivo problematizar sobre estes lugares no município de Niterói, no Rio de Janeiro. Pierre Nora defende que os lugares de memória “nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea” e que é “preciso ter vontade de memória” para que eles se constituam. É claro que na cidade de Niterói existem lugares de memória, mas será que eles têm interagido com a história da cidade? Será que os moradores de Niterói realmente visitam esses lugares em busca da Niterói do passado? Como o morador vê a cidade de Niterói? Esses questionamentos já circulavam pela minha cabeça por conta da prática docente na Educação Básica, onde pude constatar o desconhecimento dos alunos sobre a história de Niterói, mas ganharam mais vulto quando passei a estudar conceitos como “lugares de memórias”, “memória X história” e até a questão da formação de uma consciência histórica. Como professor de História em diferentes colégios particulares niteroienses destinados a pessoas de classe média e até alta ao longo da carreira, pude observar um desconhecimento sobre a história de Niterói. Ao abordar temas de História do Brasil como a criação do Ato Adicional de 1834 e a Revolta da Armada (1892-1893) exponho Niterói como capital da província e depois estado do Rio de Janeiro. A reação quase sempre é a mesma: surpresa geral. E estou falando de alunos de 2ª e 3ª séries do Ensino Médio. Questiono como muito dos moradores de Niterói tem visto a cidade. Ver no sentido de reconhecê-la, de se identificar com ela. É muito comum a expressão usada pelos cariocas de que a “única coisa boa de Niterói é a vista do Rio”. A ausência de uma memória local pode promover um enfraquecimento do conceito de comunidade, desarticulando a organização política da cidade. * Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense Mestrando Profissional em Ensino de História ProfHistória/UFF

Transcript of ³lugares de memórias, memória X história´ e até a questão da … · na Educação Básica,...

A Niterói que não conseguimos ver: a busca pelos lugares de memória de Niterói

BRUNO ORNELAS DA CUNHA*

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste

uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É

a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste,

estabelece, constrói, decreta mantém pelo artifício e pela vontade uma coletividade

fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação”. (NORA,

1993:12-13)

Inicio esse artigo com uma citação de Pierre Nora sobre os lugares de memória, pois

tenho como objetivo problematizar sobre estes lugares no município de Niterói, no Rio de

Janeiro. Pierre Nora defende que os lugares de memória “nascem e vivem do sentimento de

que não há memória espontânea” e que é “preciso ter vontade de memória” para que eles se

constituam.

É claro que na cidade de Niterói existem lugares de memória, mas será que eles têm

interagido com a história da cidade? Será que os moradores de Niterói realmente visitam esses

lugares em busca da Niterói do passado? Como o morador vê a cidade de Niterói?

Esses questionamentos já circulavam pela minha cabeça por conta da prática docente

na Educação Básica, onde pude constatar o desconhecimento dos alunos sobre a história de

Niterói, mas ganharam mais vulto quando passei a estudar conceitos como “lugares de

memórias”, “memória X história” e até a questão da formação de uma consciência histórica.

Como professor de História em diferentes colégios particulares niteroienses

destinados a pessoas de classe média e até alta ao longo da carreira, pude observar um

desconhecimento sobre a história de Niterói. Ao abordar temas de História do Brasil como a

criação do Ato Adicional de 1834 e a Revolta da Armada (1892-1893) exponho Niterói como

capital da província e depois estado do Rio de Janeiro. A reação quase sempre é a mesma:

surpresa geral. E estou falando de alunos de 2ª e 3ª séries do Ensino Médio.

Questiono como muito dos moradores de Niterói tem visto a cidade. Ver no sentido

de reconhecê-la, de se identificar com ela. É muito comum a expressão usada pelos cariocas

de que a “única coisa boa de Niterói é a vista do Rio”. A ausência de uma memória local pode

promover um enfraquecimento do conceito de comunidade, desarticulando a organização

política da cidade.

* Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense – Mestrando Profissional em Ensino

de História – ProfHistória/UFF

2

Além disso, a inexistência ou baixa identificação com a cidade pode provocar um

desinteresse por conhecer o meio em que vive. Se não me reconheço como parte de uma

comunidade não tenho interesse em saber o processo histórico de sua formação, de conhecer

as tensões que existiram e ainda existem para a formação do meio em que estou inserido.

Comecei a questionar se a situação apresentada – falta de conhecimento da história

local – seria resultado da grande presença de estudantes oriundos de outras cidades

fluminenses e até de outros estados, ou da proximidade com a cidade do Rio de Janeiro, que

como ex-capital do Brasil e atual capital do estado do Rio de Janeiro (desde 1975) acaba

atraindo toda a atenção como se toda a história do estado emanasse dela. Percebo, na verdade,

uma junção desses fatores somada à falta de um programa curricular de ensino de história

local. A seguir exponho um pouco da história de Niterói e procuro dialogar acerca desses

meus questionamentos.

Pouco se escreveu e se sabe da história sobre Niterói entre os séculos XVI e XVIII.

O estudo de Joaquim Norberto de Souza Silva1 publicado na Revista do Instituto histórico e

Geográfico Brasileiro, de 1854. Consta como história oficial de Niterói que sua fundação se

deu em 22 de novembro de 1573 pelo cacique temininó chamado Araribóia. Essa data faz

alusão a investidura das terras ao sesmeiro, que foi batizado de Martim Afonso de Souza. Ele

ganhou a posse das terras da “banda de além” (termo usado para identificar o outro lado da

Baía da Guanabara) da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro como agradecimento por ter

lutado ao lado dos portugueses contra os franceses e os índios tamoios.

Araribóia e seus guerreiros teriam vindo do Espírito Santo2 para auxiliar Mem de Sá

e Estácio de Sá na expulsão dos franceses, que haviam fundado a França Antártica, e seus

aliados, os índios tamoios. Estes eram inimigos dos temininós e estavam em guerra contra os

portugueses em diferentes áreas do litoral fluminense e paulista. Começava ali o mito acerca

da figura do cacique Araribóia que teria se destacado em várias batalhas contra os invasores

franceses e os nativos “rebeldes”.

As terras de “Bandas de além” era uma data de terras de sesmaria de Antônio de

Marins (ou Martins) e de sua esposa, Isabel Velha. Ambos renunciaram a posse das terras a

pedido do governador geral Mem de Sá para que elas pudessem ser destinadas a Araribóia

3

pelos “muitos serviços” realizados, em 16 de março de 1568. Em 22 de novembro de 1573, o

auto de posse transferia a posse das terras para Martim Afonso, o Araribóia.3

O local escolhido para instalação da aldeia de São Lourenço foi a enseada de Maruy,

num local elevado (atual Morro Boa Vista). Ali, junto com os jesuítas, Araribóia montou seu

aldeamento. Em 1627, os jesuítas ali montaram uma igreja dedicada a São Lourenço, que hoje

é conhecida como Igreja de São Lourenço dos Índios. As terras de “banda de além” sofreram

sucessivas invasões, tanto de brancos quanto de índios trazidos de outras regiões para serem

“pacificados”. A expulsão dos jesuítas do império português favoreceu a decadência do

aldeamento. Na década de 1850, o mesmo foi desmontado.

Niterói é um local escolhido ao longo de séculos por pessoas para fixar residência.

Podemos levantar como fatores favoráveis para isso a proximidade com a cidade do Rio de

Janeiro. Esta se encontrava cada vez mais populosa e epidêmica, empurrando seus moradores

mais abastados a buscar áreas mais agradáveis, incluindo o outro lado da Baía da Guanabara.

Somado a isso tivemos o aumento do prestígio da região com a elevação a condição de vila,

em 1819, e sua promoção a capital da província do Rio de Janeiro, em 1835. Como capital

provincial e, posteriormente capital estadual, Niterói se consolidava como um polo de atração

populacional.

A construção da Ponte Rio-Niterói4 e o boom imobiliário com o surgimento de novas

áreas residenciais fez com que muitas pessoas migrassem para Niterói nas décadas de 1970 e

1980. A década de 1990 significou o início de um processo de recuperação da cidade, com a

reorganização do espaço urbano, melhoria nos sistema de saúde e educação que fez com que o

IDH do município aumentasse de 0,681, em 1991, para 0,771, em 2000 e chegando a 0,837,

segundo o censo de 2010.

O aumento da violência urbano no Rio de Janeiro e a constante divulgação de índices

favoráveis sobre a cidade intensificaram ainda mais a migração de cariocas para o “outro lado

da poça” assim como pessoas que são transferidas de outros estados para trabalhar na capital

fluminense, mas optam por residir em Niterói.

Outro fator interessante que impulsiona a migração de pessoas para Niterói é o

aumento de poder aquisitivo de pessoas que habitam municípios vizinhos como São Gonçalo,

Itaboraí e Rio Bonito que não apresentam padrão de qualidade de vida próximo ao de Niterói.

4

Além de famílias inteiras é comum a migração apenas dos filhos para concluir o Ensino

Básico e ingressarem no Ensino Superior, já que não encontram qualidade semelhante em

seus municípios de origem.

O crescimento demográfico de Niterói é intenso e contínuo. Em 1971, o censo

promovido pelo IBGE contabilizou 324.2465 residindo em Niterói. Em 1992, o censo

registrou 439.091 habitantes. A estimativa para o ano de 2014 está em 495.470 residentes em

Niterói. Procurei descrever acima alguns dos fatores que “engordaram” bastante esses

números.

Esse breve levantamento sobre a cidade serve descrever o meu objeto de estudo – a

cidade de Niterói – e iniciar problematização sobre grande quantidade de pessoas “de fora”

em Niterói. Parece engraçado, mas preciso salientar que o próprio Araribóia não era nativo

dessas terras. Mesmo que ele tenha nascido na capitania do Rio de Janeiro, Niterói não foi seu

local de nascimento.

Procuro defender que o “inchaço” apresentado por Niterói é um dos causadores dessa

falta de identificação dos habitantes com a história de Niterói. Eles decidiram morar em

Niterói muito mais pelo que ela pode representar em termos de qualidade de vida (lazer,

educação, segurança) do que pelo que um dia representou no cenário histórico fluminense e

até nacional.

Numa breve abordagem com alunos das 2ª e 3ª séries do Ensino Médio de um

colégio que leciono atualmente constatei que muitos deles não conheciam nada sobre a

história da cidade e os que sabiam algo estavam com informações desencontradas. Resolvi

fazer um levantamento sobre a origem desses alunos e de seus pais.

O questionário continha perguntas como o local de nascimento do aluno e de seus

pais, o local preferido da cidade e se achavam importante estudar sobre a história de Niterói.

Fiz o levantamento de 93 respostas que me foram apresentadas em dezembro de 2014.

Constatei que desse montando 33,3% não haviam nascido em Niterói e moravam há pouco

tempo na cidade. Quanto à origem dos pais dividi em três opções. Se os dois nasceram em

Niterói (24,7%), se apenas um nasceu em Niterói (23,7%) e se ambos nasceram fora de

Niterói (51,6%).

5

O problema que procuro levantar agora e concluir no decorrer desse artigo é que

essas pessoas não apresentam ou tem pouco conhecimento da história local porque não são

nativas ou seus pais que não são. Escrevendo sobre Niterói, Gustavo Rocha Peixoto defende

que Niterói tem uma identidade própria, com seus locais históricos bem estabelecidos:

“Os bens municipais verdadeiros são aqueles que fazem eclodir em cada

niteroiense uma reação peculiar e que o distingue conscientemente do carioca e do

brasileiro genérico. São notas características da cidade que não são perceptíveis

senão aos detentores de um quê peculiar que os faz confrades nessa comunidade

(gemeinschaft) que se define como Niterói” (PEIXOTO, 1997: 220)

Peixoto entende que há lugares históricos que todos os niteroienses devem (ou

deveriam) conhecer já que se relacionam diretamente com a identidade da cidade. Ele utiliza o

termo Gemeinschaft6 por entender Niterói como uma comunidade onde grande parte dos

habitantes tem um passado em comum. Não é o que acontece com Niterói. Muitas pessoas na

verdade desconhecem o significado e até a existência desses bens patrimoniais.

Interpretando o que Peixoto chama de “bens municipais verdadeiros” vemos que se

refere ao patrimônio de Niterói, seja ele material ou imaterial. Esses bens são frutos de

projetos políticos ou artísticos que procuraram estabelecer, cada qual à sua época, uma

imagem idealizada da cidade. Alguns desses bens se tornaram “lugares de memória”, ao

procurarem guardar resquícios de uma coletividade que só habita ali. Reconhecer esses bens

seria, então, reconhecer todo o processo de construção da memória da cidade.

Ao questionar meus alunos sobre seus locais preferidos na cidade poucos foram os

que apontaram os monumentos históricos da cidade (museus, fortes ou praças públicas),

reconhecidamente locais de construção de memória. Apontaram lugares relacionados ao lazer

e ao entretenimento, bem como locais de prática de esportes. Geralmente a referência que eles

têm do que nós academicamente chamamos de “lugares de memória” são os que se encontram

na cidade do Rio de Janeiro.

Não há problema em se “espelhar” na cidade vizinha, mas deve haver um

questionamento acerca disso. O aluno deveria se perguntar, por exemplo, por que no Rio de

Janeiro existem grandes museus e Niterói não. Onde estariam essas “marcas” históricas

autênticas de Niterói? Elas existem e estão muitas vezes ao alcance dos olhos, mas não são

vistas. Passam despercebidos diante de olhos não treinados a enxergar e problematizar o meio

em que vivem.

6

A vinda constante de pessoas “de fora” pode provocar um desaparecimento da

memória local de Niterói. Não que a ausência desta memória local seja um risco, mas sua

falta prejudica a afirmação e a construção de laços sociais a partir dos usos do passado e

possivelmente dificulta que a comunidade se reconheça, esvaziando seu poder de organização

e capacidade de ação coletiva, enfraquecendo a presença política da comunidade e produzindo

o esquecimento.

Michael Pollak defende que a memória é um fenômeno construído7, de forma

consciente ou não. “O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é

evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.” (POLLAK, 1992: p.5).

Segundo o autor, a memória, individual ou coletiva, é constituída por acontecimentos,

personagens (ou pessoas) e lugares. Esses elementos precisam ser organizados para que essas

histórias de vida adquiram justificação e credibilidade, num processo chamado de

enquadramento da memória (termo que pegou emprestado de Henry Rousso).

O trabalho de enquadramento da memória utiliza referências fornecidas pela história

que são interpretadas e combinadas, a fim de criar uma memória que possa representar um

grupo ou sociedade de forma coerente. Não esqueçamos que essas referências tem que passar

pelo crivo da justificação e da credibilidade.

Para Maurice Halbwachs, um dos primeiros pesquisadores a refletirem acerca do

conceito de memória, toda memória é coletiva. Para ele a memória individual é formada por

diversos pontos de referência que nos inserem na memória da coletividade. Um exemplo

desses pontos de referência seriam justamente os “lugares de memória” trazidos à tona por

Pierre Nora e que nos auxiliariam no caso específico de Niterói.

A memória coletiva é, ainda, estruturada de tal forma que define “o que é comum a

um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de

pertencimento e as fronteiras sócio-culturais.” (POLLAK, 1992, p.3). Halbwachs (apud

POLLAK, 1992, p.3), destaca que a memória coletiva gera coesão social, sem precisar de

nenhuma medida impositiva. Seria através da “comunidade afetiva”, onde há uma adesão

afetiva dos indivíduos ao grupo. Essa adesão afetiva se daria a partir de uma negociação que

pretendesse conciliar memórias coletivas e memórias individuais. Nesse processo de

negociação, Halbwachs expressa que não adianta termos acesso à lembranças e testemunhos

7

de outros, se não houver pontos de contatos suficientes entre a nossa memória e a dos outros.

Só assim a memória coletiva é reconstruída em uma base comum.

Pollak chega a dizer que a memória nos parece, em primeira análise, ser um

fenômeno individual, pessoal, da essência de cada um, ligado a vida íntima. Só que o que leva

a existência de uma memória individual é exatamente a sua interação social junto a uma

coletividade, como esse indivíduo se relaciona, como é visto e vê. Logo, por excelência a

memória é antes de tudo coletiva.

A memória, seja ela coletiva ou individual, é composta, como já vimos acima, por

acontecimentos, personagens (ou pessoas) e lugares8. Muitas das vezes esses elementos são

ligados “por tabela” à memória individual. É possível que uma pessoa, em uma entrevista,

exponha um acontecimento que não viveu como o tendo feito. Alegar ter conhecido uma

pessoa sem tê-lo. Não podemos deixar de citar também, que existem pontos de referência que

não são flutuantes e mutáveis, ou seja, eles são marcos irredutíveis na vida da pessoa, e que

marcam sua essência. Essa é exatamente a memória individual, composta pelos elementos

citados acima e que são próprios da pessoa.

Segundo Pollak, a memória coletiva tem como funções manter a coesão interna e

defender as fronteiras territoriais9. Esta memória fornece uma gama de pontos de referência

que aproximam os indivíduos independente de quanto tempo se passa “em silêncio”, da

repressão que podem sofrer do aparelho estatal e até invasões de outros povos. São “tentativas

mais ou menos inconscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e

fronteiras sociais de coletividades de tamanhos diferentes”.10

O autor Ulpiano Meneses defende que a memória coletiva “assegura a coesão e a

solidariedade do grupo e ganha relevância nos momentos de crise e pressão.”11 Os dois

autores apoiam a ideia da memória como formadora de identidade social,.

Defendo a inclusão de um currículo de História Local de Niterói no Ensino Médio

como forma de despertar o pensamento crítico e a cidadania. Atualmente isso acontece apenas

nas séries iniciais. Não quero proteger a memória, mas como levantamos acima, entendo que

a presença de uma memória local permite uma série de questionamentos acerca do meio em

que vivemos e suas relações de poder, organização social e desenvolvimento econômico.

8

Estudiosos da História Local sustentam que sua aplicação facilita a absorção e

compreensão do conteúdo, fugindo da memorização e despertando a visão crítica, já que torna

possível ao aluno enxergar as relações entre a região em que mora com outras regiões do país

e até do mundo. Sobre a facilidade de compreensão transcrevo de Elison Paim e Vanessa

Picolli:

“O ensino da história local trata das especificidades das localidades, tem uma grande

importância, pois ele pode de diferentes formas apresentar aos alunos uma história

que parta de um acontecimento ou de um cotidiano que eles conhecem

empiricamente e, assim, estudar e relacionar os acontecimentos locais com os

acontecimentos globais.” (PAIM e PICOLLI, 2007, p. 114).

Sobre a possibilidade de despertar a cidadania e o rigor crítico transcrevo Natania

Nogueira:

“A escola, a quem foi incumbida a tarefa de formar o cidadão, acaba esquecendo

que a cidadania começa a partir da valorização do regional para então remeter-se ao

nacional. A valorização da memória do município favorece o surgimento de um

espírito crítico e comprometido com o bem comum.” (NOGUEIRA, 2001, p. 2).

Mais uma vez citando o trabalho de Gustavo Rocha Peixoto, vemos sua defesa no

levantamento do patrimônio niteroiense. Ele chega a defender o tombamento municipal como

forma de garantir que sejam preservados bens “do passado” que realmente se relacionem com

o cotidiano municipal de Niterói. Trabalhando mais da história local garantimos uma

identificação dos moradores com a cidade, criando sentido para os “usos do passado” e

fortalecendo laços de identidade.

A identidade por si é composta por três elementos: a unidade física, a continuidade

dentro do tempo e o sentimento de coerência. Desenvolver atividades que envolvam a

História Local visa demonstrar e a apresentar aos alunos a continuidade e a coerência. A

estrutura física já está definida (os limites do município), o que precisa ser levantado é porque

Niterói continua oferecendo resistência à ação uniformizadora da metrópole e aos laços que

unem as diferentes memórias que compõem a cidade. A memória é fator que acaba

explicando a continuidade e a coerência, logo ela é um importante elemento constituinte da

identidade.

Quando memória e identidade se unem conseguem derrubar e afastar qualquer

questionamento externo que ameace a memória específica, fruto do trabalho de

enquadramento. Não existe a necessidade de reformulações ou reestruturações. E essa

memória, por si só, quando estabelecida (ou seja, ligada a identidade) trabalha para manter a

9

coerência, a unidade, a continuidade e a organização do grupo. Por isso, ainda existem

niteroienses que se indignam diante das provocações dos cariocas.

Há em Niterói famílias históricas, cujos nomes se misturam e confundem com o

desenvolvimento da cidade, sobrenomes de peso dentro da história local. Alguns alunos

“carregam” tais sobrenomes e simplesmente desconhecem sua importância. Brasil, Vianna,

Souza Soares, Paz, Grilo, Carreteiro... Nomes que estão escritos na história de Niterói, mas

que passam despercebidos aos olhos desses jovens. Por isso, acredito que a História Local

seria um bom instrumento de inserção dos alunos que “vem de fora” e também de

reconhecimentos dos que são nascidos na cidade.

Trabalhar a história local abre a possibilidade de darmos ouvidos a histórias

“esquecidas” de Niterói. A busca por relatos de avôs e avós, ou até bisavôs e bisavós. De

vizinhos, de qualquer pessoa próxima que tenha sua história de vida ligada à Niterói. Pessoas

que antes não tinham porque “contar” suas histórias, agora seriam procuradas para tal. São

histórias que não estão estagnadas em “lugares de memória”, mas literalmente na memória

dos niteroienses12.

A História Local, porém tem suas armadilhas. O professor Luiz Reznik observou

duas tendências bastante comuns nos estudos sobre histórias de localidades. A primeira

tendência refere-se a situações em que há falta de informações sobre o local estudado e

utilizam-se visões generalizadoras da História do Brasil. “Desvia-se o problema através de

comparações hipotéticas do que tenha acontecido no local, com fatos generalizadores da

História do Brasil.” (REZNIC, 2002, p. 2). A segunda tendência é supervalorizar os

acontecimentos locais, buscando dar relevância ao local, colocando em uma posição de

destaque nacional que muitas vezes não tem.

Para exemplificar essas duas tendências às quais podemos incorrer erroneamente, eu

transcrevo estudo sobre história local e seus “exageros”. Quanto à tendência de usar visões

generalizadoras uso como exemplo uma prática vista em Niterói:

“Vale ressaltar que a partir do tratamento de fundador dado a Araribóia, a história de

Niterói passa a se confundir com a história da capital da República. Inseria-se a

cidade no conjunto da ordem federal, afirmando localmente a unidade nacional, a

partir do apelo ao passado distante. No plano simbólico, a inserção de Niterói e do

estado do Rio de Janeiro na sociedade nacional era garantida pelos fatos da história.”

(KNAUSS, 2003, P. 49).

10

Quanto à segunda tendência, a de supervalorizar acontecimentos locais transcrevo

uma prática comum nos estudo sobre São Gonçalo:

“(...) identidade gonçalense. Nos discursos dos membros das academias literárias,

vemos cada um incorporando essa ‘missão’: resgatar a identidade. Nesse intuito, por

vezes, eles produzem um história para a cidade em que identificam o pioneirismo

em alguns aspectos da vida social e destacam sua importância para a região e o país.

Nesses escritos, falta de autoestima dá lugar a um ufanismo, um amor excessivo à

pequena pátria.” (FERNANDES, 2009, P. 84-85).

Paralelo à introdução do currículo de História Local de Niterói pretendo utilizar

jogos como forma de despertar o interesse dos alunos para os temas abordados. KRUL e

EMMEL (2012: p. 4) destacam que o jogo passou a ser mal interpretado nas escolas,

passando a ser visto como uma atividade extra, para diversão dos alunos e sem seriedade

pedagógica. Amparados nos estudos de Vygotsky, os autores compreendem a importância do

jogo como forma de aprendizado e interação com o ambiente social. Para eles, o jogo

possibilita: “ensino, aprendizagem, pesquisa, leitura, reflexão, autonomia, criatividade,

mediação, diálogo, trabalho em equipe, cooperação, novos conhecimentos, discussão de

conceitos, autoria, tempo e espaço de produção de sentidos e significados.” 13 (KRUL e

EMMEL, 2012: p. 6).

Para PEREIRA e GIACOMONI (2013, 19) veem a utilização do jogo em aulas de

História como um exercício amoroso, já que valoriza o passado e cria expectativas quanto ao

futuro. Desperta no aluno o desejo de participar da atividade, sendo que esta mesmo que

abrindo a porta para o imprevisível baseia-se em conceitos. Para os autores, o jogo se torna

uma possibilidade de compreender diferentes realidades, desde as mais distantes no espaço e

tempo, quanto as mais próximas.

Criar uma atividade intitulada “Olimpíadas de História de Niterói” como atividade

complementar ao currículo da escola demandará esforço e tempo, mas defendo que é uma

forma de estimular os alunos a procurarem estudar por conta própria sobre a história de

Niterói. Para passaram de fases e chegarem á final, os grupos deverão conhecer diferentes

acontecimentos, curiosidades e símbolos municipais.

Note-se que comportamentos vivenciados na brincadeira, tais como cooperar,

competir, ganhar, perder, comandar, subordinar-se, prever, antecipar, colocar-se no

lugar do outro, imaginar, planejar e realizar, são aspectos fundamentais à

aprendizagem em geral, presentes também na aprendizagem de conteúdos escolares.

(FORTUNA, 2013, p.82)

11

A proposta que tenho executado atualmente é pedir trabalhos de pesquisa sobre a

história de Niterói. Procuro intercalar atividades de pesquisa mais tradicionais como trabalhos

impressos com trabalhos onde os alunos têm que buscar fotos ou imagens antigas de locais e

compará-las com fotos feitas por eles atualmente sobre os mesmos locais.

A tarefa de ensinar História não é fácil. Hoje, ser professor nos cobra cada vez mais

dedicação e muitas vezes não conseguimos obter o que desejamos. Pretendo colocar em

prática o desejo de incluir no currículo a História Local de Niterói e criar como atividade

complementar um projeto que possa balizar essa proposta (no caso, as “Olimpíadas”). Tenho

suporte na LDB e nos PCNs para defender minha ideia, mas não sou inocente em não saber

que há uma série de interesses que envolvem desde questões financeiras a medo de

comprometer outras disciplinas.

A proposta é usar o Ensino de História como forma de motivar uma nova visão

acerca da história de Niterói. A partir disso despertar nos alunos uma “curiosidade histórica”

que permita fazê-lo compreender o meio que o cerca independente de estar em Niterói, Paris

ou Berlim.

Com esse artigo procurei apresentar a cidade de Niterói, debater um pouco sobre a

memória e seus “lugares” bem como a possibilidade oferecida pela história local e os jogos.

Ainda em fase de muito estudo e conclusão de pesquisas procuro deixar minha contribuição

para que possamos ver o Ensino de História e seus debates sendo valorizados e mais

divulgados.

Referências

ASSIS, Elizabeth X. de; BELLÉ, Kássia; BOSCO, Vânia Dilma. O ensino da História local e

sua importância. In: Revista de divulgação interdisciplinar do Núcleo de Licenciaturas,

UNIVALI, 2013.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+): Ciências Humanas e suas

Tecnologias. Brasília: MEC, 1998.

CAMARGO, Célia Reis. A construção da memória na sociedade global. Identidades sociais:

Local x global. Patrimônio e Memória, UNESP: FCLAs: CEDAP, v.2, n.2, 2006.

12

FERNANDES, Rui Aniceto Nascimento. (2000), Um santo, um nome e várias histórias de

São Gonçalo do Amarante. In: Memórias e patrimônios: experiências em formação de

professores. RJ: EDUERJ, 2009, p. 83-99

FORTUNA, Tânia Ramos. Brincar é aprender. In: Jogos e Ensino de História. Porto Alegre:

Editora Evangraf LTDA, 2013, 1ª edição, 2ª reimpressão.

HARTOG, François. Tempo e patrimônio. In: VARIA HISTORIA 22 (32): 261-273, jul./dez.

2006, pp. 261-273

KNAUSS, Paulo. A cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na

sociedade contemporânea — o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961

In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 53, p. 25-54 – 2007.

_____________. Herói da cidade: imagem indígena e mitologia política. In: KNAUSS, Paulo.

Sorriso da cidade: imagens urbanas e história política de Niterói. Niterói Livros, Niterói,

2003, p. 47-77

KRUL, Alexandre José; EMMEL, Núbia. Possibilidades de trabalho com jogos no

componente curricular de história do ensino fundamental. Palestra proferida no IX Seminário

de Pesquisa em Educação da Região Sul, Caxias do Sul – RS, de 29 de julho a 1º de agosto de

2012.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história cativa da memória? Para um mapeamento da

memória no campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São

Paulo, nº 34, 1992, pp. 9-24

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. O ensino da história local: um grande desafio para

os educadores. Adaptação do texto publicado no IV Seminário Perspectivas do Ensino de

História: Ouro Preto, 2001.

13

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: PROJETO

HISTÓRIA. Tradução de Yara Aun Khoury São Paulo, nº 10, dez. 1993, pp. 07-28.

PAIM, Elison Antonio; PICOLLI, Vanessa. Ensinar história regional e local no ensino médio:

experiências e desafios. História & Ensino: Londrina, 2007.

PEIXOTO, Gustavo Rocha. Niterói patrimônio: a melhor coisa para Niterói é a vista do Rio.

In: MARTINS, Ismênia de Lima; KNAUSS, Paulo (orgs.). Cidade múltipla: temas de história

de Niterói. Niterói: Prefeitura de Niterói, 1997. P.217-228.

PEREIRA, Nilton Mullet; GIACONOMI, Marcello Paniz. Flertando com o caos: os jogos no

Ensino de História. In: Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Editora Evangraf LTDA,

2013, 1ª edição, 2ª reimpressão.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 10,

1992, pp. 200-2015.

_______________. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,

Vol. 2, nº 3, 1989, pp. 3-15.

REZNIK, Luís. Qual o lugar da história local? Apresentado no V Taller Internacional de

Historia Regional y Local. Havana/Cuba, 2002. Disponível em

www.historiadesaogoncalo.pro.br/txt_hsg_artigo_03.pdf

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J.

(Org.) Usos & Abusos da História oral. Rio de Janeiro, FGV, 2006, 8ª ed., pp. 93-101

1 SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Memória histórica e documentação das aldeias de índios da província do

Rio de Janeiro. In: R.IHGB 3ª série, nº 14 – 2º trimestre 1854. 2 Segundo o estudo de Joaquim Norberto de Souza e Silva os temininós seriam descendentes dos tamoios e

teriam ido para o Espírito Santo como meio de sobreviverem já que estavam em guerra. Os portugueses os

levaram para tal capitania em 1555, sob a solicitação do jesuíta Braz Lourenço ao donatário Vasco Fernandes

14

Coutinho. Na nova capitania os temininós fundaram com Braz Lourenço a aldeia de Nossa Senhora da Vitória

(atual cidade de Serra). Quando os portugueses foram combater os franceses instalados na Baía de Guanabara, o

cacique Araribóia teria aceitado o convite de Estácio de Sá e rumou com ele para o Rio de Janeiro a fim de lutar

contra os seus inimigos ancestrais. 3 Os documentos de renúncia e de posse encontram-se no referido documento de Joaquim Norberto de Souza

Silva, mas podem ser encontrados a partir do site da Secretaria de Cultura de Niterói.

http://culturaniteroi.com.br/blog/?id=430 visitado em 13 de junho de 2015

4 Oficialmente ponte Presidente Costa e Silva. 5 Retirado de http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/69/cd_1970_v1_t16_rj.pdf em 13/06/2015 p.

301 6 Peixoto se baseou em Tönnies que define gemeinschaft como “uma associação em que se encontra uma espécie

de “vontade natural”, baseada numa articulação orgânica de seus membros, [...] num sentimento de co-

pertinência na base de uma concordância espontânea de pontos de vista, interesses, finalidades”. 7 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 10, p. 4, 1992. 8 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 10, p. 2, 1992. 9 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, nº 3,

1989 p. 9. 10 Idem. 11 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história cativa da memória? Para um mapeamento da memória no

campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, nº 34, 1992, p.15. 12 Paulo Knauss caracteriza o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, que vitimou 317 pessoas e até hoje é

lembrado pelos niteroienses, apesar de não haver nenhum ritual ou monumento relembrando o fato, como um

exemplo onde vemos uma cidade que não quer lembrar o ocorrido, mas pessoas que não conseguem esquecer. O

incêndio não faz parte da memória oficial da cidade, mas compõe um importante laço de associação dos

niteroienses. Basta ver como poucos são os circos que se apresentam na cidade e os que vem tem baixa procura.

KNAUSS, Paulo. A cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na sociedade

contemporânea — o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961 In: Revista Brasileira de

História. São Paulo, v. 27, nº 53, p. 25-54 – 2007. 13 KRUL, Alexandre José; EMMEL, Núbia. Possibilidades de trabalho com jogos no componente curricular de

história do ensino fundamental. Palestra proferida no IX Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul,

Caxias do Sul – RS, de 29 de julho a 1º de agosto de 2012.