Luis Alberto Warat - O Abuso Estatal Do Direito

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    O ABUSO ESTATAL DO DIREITO*

    (Breves comentrios sobre a concepo

    juridicista dos direitos humanos)

    LUIS ALBERTO WARATProfessor-CPGD/UFSC

    Existe uma forte tendncia a apresentar a questo dos

    direitos humanos sob um enfoque desideologizado e

    despolitizado.

    A histria do pensamento jurdico e poltico do sculo

    XX reafirma uma forte tendncia a reivindicar a neutralidade

    ideolgica da luta Delos direitos humanos.

    As concepes extraideolgicas dos direitos humanossignificam, a meu ver, s uma coisa: a sujeio direta

    ideologia das foras historicamente obsoletas e retrgradas.

    Recorre-se invariavelmente ideologia das concepes extra-

    ideolgicas dos direitos humanos, as consignaes da neutra-

    lidade poltica e ideolgica das lutas pelos direitos huma-

    nos, para encobrir a verdadeira intencionalidade dos diver-

    sos sistemas estatais de terror e a represo institucionalizada

    do povo.As freqentes afirmaes de que o problema dos direitos

    do homem tm uma importncia autnoma e ideologicamente

    neutra,formam parte do desenvolvimento ideolgico e poltico

    * 0 presente trabalho uma verso modificada da palestra pronunciada porocasio

    do I Seminrio Latino-Americano sobre a Universidade, o Ensino Jurdico e os

    Direitos Humanos, realizado em Santa Maria, entre os dias 21 e 24 de maro de 1988.

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    das prticas instituintes de uma forma totalitria de

    sociedade.Assim, as concepes dominantes dos direitos huma-

    nos constituem a medula de um projeto de deshumanizao e de

    despolitizao do social, feito cinica e mediocremente em

    nome do cortas prticas pseudo-humanizantes e de um pseudoesprito transcendente o som alienaes.

    A concepo desideologizada do problema doa direitos

    humanos foi expresso com bastante claridade pelo atual ocupanto

    do trono de So Pedro no discurso que pronuciou no Conclio

    Latinoamericano de Pueblas (Janeiro de 1979). Nesse pronun-

    ciamento Joo Paulo II condenou a impunidade com que so

    violados em todas partes os direitos fundamentais do homem

    afirmando que a Igreja no precisa recorrer a nenhum tipo deideologia para amar e defender ao homem e contribuir para sua

    libertao. O jornal Le Monde comentou com assombro a tese

    papal: Para Joo Paulo II os direitos do homem no implicam

    nenhuma ideologia.

    Parece-me impossvel pensar sobre o sentido histrico

    dos direitos humanos despojando-os de toda referncia ideo-

    lgica o poltica. Desta maneira unicamente se tenta impor um

    quadro estereotpico e mistificante das lutas que envolvem ecomprometem sua significao. Por um estranho fenmeno de

    histeria poltica, nossas habituais estruturas mentais con-

    tinuam refletindo a mentalidade do sculo XVIII. Possivel-

    mente um sintoma da tragdia do idealismo intelectual que

    procura um fabuloso paraso perdido. Fantasias perfeitas que

    negam (entre outras coisas! o carter poltico das prticas

    e os discursos mobilizados em torno aos direitos humanos.

    No podemos, tampouco, esquecer que na atualidadea discusso sobre o sentido dos direitos humanos esconde

    a controvrsia geral,o confronto, das principais ideologias

    de nosso tempo. Uma luta que influi ativamente na

    produo institucional das personalidades alienadas e nas

    dimenses simblicas da poltica internacional. Em nome

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    de presumidas violaes dos direitos humanos se consegue

    mtuos reforos s formas de pensamento, orientadas repro-

    duo das ordens simblicas estabelecidas para assegurar o

    triunfo de uma classe.

    Nos movimentamos a partir de uma caracterizao vaga eamorfa dos direitos humanos, vestgios conceituais, estilha-

    os do senso comum que permitem confirmar crenas

    identificatrias maniacamente defendidas .

    Ao contrrio do que pretende o idealismo intelectual do

    ocidente, em suas mltiplas variantes, todo conhecimento e

    interpretao da realidade dos direitos humanos esto liga-

    dos a uma das grandes vises sociais do mundo, a categorias

    de pensamento impensadas, que delimitam o pensvel epredeterminam o pensamento.

    As estratgias mudam, mas as predeterminaes continuam.

    No ocidente nota-se a tentativa de desideologizar e

    despolitizar a viso dos direitos humanos. Nos pases do

    Leste aparentemente se assume o carter poltico e ideolgi-

    co, mas se nega todo e qualquer efeito repressivo do Estado.

    Mostra-se ao cidado como uma partcula orgnica do Estado,

    sem nenhum antagonismo com a sociedade, o partido e asinstituies do aparelho governamental.

    Termino de ler um renomado jurista sovitico que afirma

    textualmente: a liberdade poltica se expressa e se revela

    na possibilidade garantida de participar na formao da

    vontade estatal, que corresponde aos interesses da maioria,

    aos interesses do povo, referendados pelas leis, assim como

    no comprimento conciente e voluntrio delas.(1) No fundo, o

    mesmo pensamento juridicista do ocidente.

    Apelando neutralidade das leis consegue se recuperar, de um

    modo ainda mais forte, os efeitos negados dos slogans desideologiza-

    (1) SAMUIL, Zivs: Derechos Humanos. Prosiguiendo la discusin. Editorial

    Progreso, Mosc, 1981.

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    dos do discurso ocidental sobre os direitos humanos.

    2. Retomando a problemtica colocada em meu primeiro

    livro publicado (2) diria que as vises utpicas do pensamen-

    to juridicista tentam apresentar uma verso exclusivamente

    privatista dos usos abusivos do direito: ligam a noo doexerccio abusivo dos direitos aos intereses particulares

    expressamente reconhecidos pelas leis: o uso absoluto e

    egosta dos direitos legalmente concedidos. Nenhum juris-ta

    que se preze tenta trasladar a problemtica das prticas

    abusivas ao plano do direito pblico. Ignora-se o abuso

    estatal dos direitos, a castrao estatal de nossa persona-

    lidade, de nossos interesses e necessidades. Existe uma

    denegao generalizada dos excessos da nor-matividade esta-tal. Escamoteia-se, por um lado, a existncia de uma socie-

    dade que vai sendo dia a dia tomada pelas leis. Dissimula-

    se,por outro lado, o uso absoluto que o Estado faz da lei

    positiva em nome dos intereses da sociedade, dos intereses do

    povo. Por suposto no estou falando s do abuso do terrorismo

    do Estado (desaparecimentos, torturas, exlios forados) ou

    da desintegrao scio-econmica de uma sociedade comandada

    simbolicamente por apelativas iluses de redemocratizao

    (caso brasileiro). Interesa situar-me diante de certos abu-

    sos simblicos que falam a respeito da implicao do desejo

    pessoal no impessoal: a experincia do indivduo num lugar

    inesperado, que escapa norma geral.

    0 estado abusa do direito enquanto reivindica o lugar

    do normativo, como instncia que provoca a alucinao do

    outro e exalta um projeto poltico-jurdico que se basta a si

    mesmo.

    O direito aparece, ento, como um lugar tpico e

    utpico inabalvel que justifica a normatizao total

    do tecido social. Um discurso uterino de socializao,

    um feitio que instala, na sociedade, a iluso de um

    lugar simultaneamente protetor dos intereses da

    (2) WARAT, Luis Alberto. Abusodel Derecho y Lagunas de la Ley. Editorial

    Abeledo Perrot. Buenos Aires, 1971

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    da sociedade e as liberdades pessoais. Em ambos os casos

    sempre o indivduo visto como um selvagem potencialmente

    perigoso, como um culpado potencial que deve ser vigiado pelo

    Estado e pelo Direito. Um Estado e um direito livres de toda

    suspeita e dos riscos de qualquer abuso. Um Estado e umDireito vistos como os lugares de harmonia entre os interes-

    ses sociais e os interesses individuais.As exorbitncias, as

    desmesuras, os abusos ficam para os que esto a eles obriga-

    dos, o Estado e o Direito ficam, ento, negados como potncia

    de desordem e pervero.

    Desta forma o juridicismo, como lgica de dissimulao,mos

    -tra-se eficiente dando crdito a uma fico de neutralidade

    que escamoteia os abusos de uma dominao jurdico-estatal,decidida nos bastidores.

    Na verso sovitica do juridicismo exalta-se a limita-

    o das liberdades individuais quando elas afetam os inte-

    resses da Sociedade e do Estado. O imaginrio juridicista

    sovitico no admite manifestaes que atentem ao cerne de

    seu projeto de implantao de um regime socialista. Mas,

    acrescentam os juristas soviticos: que a prtica do desen-

    volvimento social confirmou que o Partido Comunista da UnioSovitica constitui o timo mecanismo poltico para o clcu-

    lo, conjuno e coordenao dos interesses dos distintos

    componentes da sociedade, o mecanismo adequado para expres-

    sar os interesses integrais de todo o povo sovitico. Acres-

    centando que a ideo-logia do marxismo-leninismo expressa os

    interesses cardiais do povo sovitico, tornando realidade a

    harmonia entre os interesses da sociedade e os direitos do

    cidado. Um discurso que finge ignorar a tendncia ou preteno

    de uma forma de Estado que deseja controlar completamente o

    social.

    Desta maneira define-se um saber que se exibe,

    mas tambm se circunscreve nos limites de um aparelho

    dirigente e de uma moral inflexvel e glorificada.

    Uma moralidade que repudia as incertezas e

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    e torna afetivamente imatura toda prtica instituinte.

    3. De um modo geral, a instituio simblica da socie-

    dade fixa uma iluso homogeneizadora que fora as sociedades

    a representar-se na imagem de uma ordem, de uma comunidade

    orgnica unvoca e coesa. Uma unidade que se representasempre como um corpo. Velhas transce -dncias continuam

    firmes, com novos nomes, com diferentes adereos e mscaras.

    O fato que seguimos escutando o discurso de uma comuni-dade

    organizada, auto-afirmado no Direito e na pressuposio da

    existncia de uma razo e de uma moral reguladoras da soci-

    edade. A bela imagem grega da sociedade harmoniosa que per-

    dura na apologia idealizada do Estado de Direito, que no

    outra coisa que o privilgio das condies da obedinciasubmissa a uma ordem pressuposta: o modelo de uma boa

    sociedade que rejeita o carter conflitivo em que as leis so

    criadas.

    No Estado de Direito, os direitos so idilicamente

    enumerados. A democracia precisa invent-los nas

    indeterminaes da histria e na permanncia dos conflitos.

    Talvez precisemos falar dos direitos humanos com o

    direito permanncia dos conflitos, como o direito a impedirque as revoltas sejam negadas nos subterfgios de uma harmo-

    nia de leis e saberes,que, no fundo, satisfazem o desejo de

    servido.

    A democracia como o sentido de uma forma de sociedade

    sempre o produto dos conflitos sociais e das resistncias

    produo institucional de uma subjetividade que nos marca e

    nos anula, insistindo nas representaes de certeza e na

    reduo da ordem poltica s relaes de poder.Vivemos dias de perplexidade e de mudana de

    sensibilidade. Sociedades unidas ideologicamente ao Estado

    sem que se vislumbre no horizonte o ocaso da explorao e

    o terror. Uma dominao tecnologico-burocrtica - totalit-

    ria que se vai impondo, dasarmando o dissecando

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    as paixes, consagrando o tdio e a indiferena.

    Assim, a democracia e as prticas polticas dos direi-

    tos humanos permanecem prisioneiras de um trajeto de espe-

    ranas e desesperanas que pedem os sinais de novas perspec-

    tivas, que ocultam a pas-sagem a uma nova redescoberta domundo. dolos e fundamentos comeam a ser destronados por uma

    sensibilidade nova e recepctiva s diferenas, s particula-

    ridades, aos acontecimentos menores.

    Estamos diante de uma nova disposio de espirito

    para repensar a poltica e o direito a adjudicar-lhe novos

    territrios de sentido. Fugindo de um sentimento generaliza-

    do de desencanto comeam a fazer-se visveis as fantasias, as

    lacunas do pensamento estabelecido. Ele comea a envelhecerpela interrogao, no trabalho do pen-samento no degradado

    pela fixao das certezas. A tradio envelhe-ce pelas in-

    certezas. As prticas polticas dos direitos humanos no

    podem esquivar-se desta pressuposio se querem lutar alm

    das alternativas moralizantes e culpabilizadoras da dupla

    face do juridicismo (socialismo burocratizado e capitalismo

    tardio).

    As evidncias estabelecidas no servem para interrogar-nos so-bre os direitos humanos e sua inscrio na ordem

    simblica de uma sociedade que encontra, na democracia, seu

    sentido. As ltimas experincias de luta e resistncia mos-

    tram a esterilidade das profecias onipotentes e das regras do

    jogo aue delimitam padres de comportamento.

    Tempos que precisam de fermentao criadora e afetiva.

    Tempos procura de transformaes sem vigilncias moralizantes,

    nem cinismos. Tempos de desafio existencial que demandam areinvindicao da autonomia para todos os setores da vida

    social. Tempos em que o homem precisa ter uma conscincia

    autnoma de seus direitos e capacidade para formul-los e

    reinvindic-los. Estamos diante de uma sociedade que busca

    reconhecer-se aberta para poder preservar a condio humana

    frente s grandes mquinas (simblicas e tecnolgicas).

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    Sociedades que necessitam do conflito para contrabalanar a

    demarche de uma ordem totalitria que ameaa com sua

    irreversivilidade.

    Frente a Estados e a imprios econmicos que ampliam

    seu poder e petrificam as indiferenas; frente a minorias deprivilegiados que concentram a riqueza, o saber, e o Direito,

    devemos contra-por uma nova concepo da poltica, do saber

    e do Direito que se oponha aos que querem conservar os

    previlgios. Os grandes proprietrios temem os conlitos.

    Eles ameaam os logros conquistados. Obviamente os grandes

    possuidores preocupam-se por garantir suas conquistas, falam

    sempre dos direitos adquiridos, do Estado de Direito. As

    sociedades, ditas socialistas, no escapam a esta lgica dosdireitos adquiridos. Denunciam algumas grandes exploraes,

    mas deixam o Estado no lugar do privilgio e ao Partido

    Comunista no lugar das respostas sem suspeita.

    J no mais possvel engendrar modos de vida que

    preservem a vida, sem aceitar as ambivalncias do desejo e

    seus enigmas frente ao novo. Estereotipamos a comprenso do

    mundo quando renuncia-mos a reconhecer que um acontecimento

    pode ser no s conflitivo,mas tambm contraditrio. Ummovimento pode ser ao mesmo tempo revolucionrio e

    contrarevolucionrio (como acontece com muitas das pr-ticas

    dos direitos humanos). Podemos lutar contra o totalitarismo,

    desenvolvendo formas totalitrias de resistncia. Podemos

    amar a vida e violentar tanaticamente os momentos de

    afetividade. Trata-se da exigncia de no deduzir dos esque-

    mas de inteligibilidade as interpretaes e os caminhos

    operativos face aos eventos e s transformaes de nossa

    sociedade. Desfazer as representaes pre-estabelecidas

    uma pr-condio para as lutas pelos direitos humanos. Pre-

    cisamos ter o direito a reencontrar a liberdade de instituir

    o mundo aceitando o risco de decifr-lo sem culpa e sem

    sentidos pr-adjudicados.

    Por certo, estou falando das instncias preliminares, dos

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    preldios necessrios para uma prtica poltica dos direitos

    humanos, sem os fantasmas da totalidade e dos saberes infa-

    lveis. Para isto mister constatar a inadequao de uma

    viso instrumental da poltica que a mostra como realidade

    secundria, que institui historicamente o poder. A poltica tambm uma luta pelo espao simblico, incidente em que se

    apaga a transcedncia do poder e se anula sua eficcia

    simblica. A poltica demanda um espao pblico como espao

    simblico que irradia o mltiplo e interdita o unvoco.

    Pode-se dizer que estamos diante de uma reconsiderao

    da poltica que se defronta com uma concepo no cristali-

    zada do tempo e com uma concepo do peso do imaginrio

    social, sensvel s vacilaes do saber, da lei e dos dese-jos.

    Uma forma social totalitria forja uma identidade do

    povo com o poder que pressupe o tratamento simbitico do

    poder, do saber e da lei. Desta maneira forja-se ura princ-

    pio absoluto de inteligibilidade que libera do risco de

    interrogar e de interpretar sem segurana as incertezas da

    temporalidade: o traado de um sentido nico para os aconte-

    cimentos a fim de controlar os enigmas do tempo e as al-teraes da histria. No pode dissimular-se que uma das

    grandes condies para a formao e reproduo simblica do

    totalitarismo a perda da memria histrica. Assim, a cons-

    cincia do homem identifica-se com a conscincia do Estado.

    E evidente que num projeto totalitrio, o tempo e a memria

    coletiva pertencem s instituies executrias do referido

    projeto. 0 ritual de interveno sobre a memria e o tempo se

    d atravs de um campo simblico que exalta um relato no

    conflitivo da histria: celebra-se um passado conveniente-

    mente estereotipado para que opere como referncia legtima

    do projeto de dominao, apagando-se simultaneamente todo

    vestgio que permita traar uma interpretao diferente. O

    Estado totalitrio no s monopoliza a coero como uma forma

    de sua legitimao permanente, tambm recorre ao saber para

    monopolizar as lendas da histria e modelar as sucessivas

    caras do outro malfico, permitindo, assim apresentar-

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    se como sua contra-cara. 0 Estado aparece como o possuidor de

    um saber absoluto sobre a sociedade, sua histria e sua lei:

    um grande benfeitor. No fundo, uma tutela sustentada na

    imagem de um saber e uma lei perfeita que nos faz esquecer

    que numa memria coletiva unificada, no se percebem osconflitos, as diferenas e as divises. As imagens perfeitas

    da lei e do saber fortalecem as apresentaes transcedentes

    do poder totalitrio impidindo o desenvolvimento dos confli-

    tos que tentem a resistncia, a transgreao e a ultrapassagem

    da institucionalidade totalitria.

    4. As prticas empreendidas em nome dos direitos huma-

    nos tm que ter como meta impedir que os problemas da

    socieade sejam definidos sem a participao efetiva (noilusria) dos membros da sociedade ou contra eles. Em outras

    palavras, aes que traduzem o carter essencialmente pol-

    tico dos direitos humanos, enquanto impedem que a poltica se

    confunda por inteiro com o poder e o direito. Falar dos

    direitos humanos, como prtica poltica, pressupe sempre,

    no mnimo, uma distncia entre o poder e a sociedade, um

    espao de diferentes aes que constituem uma forma de resis-

    tncia e transgreo identidade entre os dominantes e os

    dominados. As prticas polticas dos direitos humanos so

    sempre prticas de lutas que abrem fissuras, que abalam a

    produo institucional de uma identidade entre a opresso e

    os oprimidos.

    Fugindo do juridicismo, diria com Leford,que a questo

    dos direitos humanos adquire importncia em razo de um

    impostergvel questionamento das formas totalitrias do po-

    der, do saber e da lei, assim como do sentido que determinam

    para a forma da sociedade contempornea.

    0 significado poltico profundo de uma prtica dos

    direitos humanos encontra-se intimamente ligado a uma con-

    cepo da poltica entendida como espao pblico (de uma

    sociedade incerta,heterognea e conflitiva) e prtica simb-

    lica de transgreo, resistncia e transformao.

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    Resulta claro, ento, que as diferentes verses juridicis

    -tas dos direitos humanos mal dissimulam a incompatibilidade

    absoluta entre as prticas polticas dos direitos do homem e

    o poder de um Estado que engendra a iluso de uma norma

    impessoal e annima, praticando muitas vezes a ilegalidadepara atender sua prpria segurana. Pode observar-se, com

    espanto, como na Amrica Latina alguns governantes reclamam

    que a sociedade ou as outras instituies do Estado convali-

    dam a legitimidade de suas prticas ilcitas. Hoje na Amrica

    Latina se est passando de um estgio de ilicitude si-

    lenciosamente tolerada pela indiferena, a outro estgio

    onde se reivindica o reconhecimento do carter legtimo dos

    abusos, das corrupes, do terror praticado por alguns r-

    gos do Estado.

    Estamos imersos numa forma social totalitria onde o

    poder, o saber, o direito e a moralidade tornan-se proprie-

    dade do Estado, enclausurando a poltica como reflexo e

    prtica. Os indivduos no podem invocar sentidos adversos

    acerca dos grandes lemas, as crenas ideolgicas e os prin-

    cpios de organizao da vida social. O desconhecido sempre

    domesticado, circunscrito ao registro do conhecido. O Estado

    aparecendo como legitimador da ordem (ainda quando a violen-

    ta descaradamente). Uma legitimidade atingida pelas pr-

    ticas simblicas de um projeto de socializao que despreza

    a questo do outro, a questo do ser.

    Partindo desta perspectiva, percebe-se que a questo

    dos direitos humanos e da democraica precisa ser pensada como

    um projeto global de libertao do homem em todos os nveis:

    social, politico, psquico, econmico, tico e esttico. Em

    ltima anlise, foram o social a afirmar-se como imprescin-

    dvel cenrio dos conflitos, das prticas de auto-autonomia

    e das reviravoltas das verdades institudas.

    Desta maneira, as prticas dos direitos humanos determinam

    a dissociao entre o saber, o poder,o direito e a moral estabelecida,

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    deixando a sociedade exposta democraticamente

    indeterminao dos direitos, das verdades, dos poderes e dos

    valores, razo do Estado. Para procurar o sentido democr-

    tico de uma forma de sociedade temos que tentar deix-la

    exposta s suas prprias ambigidades e incerte-zas.Frente s razes,aos poderes e s prescries que vo

    deter-minando o sentido totalitrio de uma forma ae socieda-

    de (um jogo disciplinar e culpabilizador que toma o espao

    pblico e avana sobre a intimidade cotidiana dos desejos e

    afetos), a prtica poltica dos direitos humanos surge como

    um plural imprevisvel dos espaos de resistncia e

    transgreso. Neles surgem prticas simblcias de deslocamen-

    to, abalos, que vo, pouco a pouco, revelando uma insuspei-ta matriz poltica: o ainda mais de todo discurso instituido.

    As prticas dos direitos humanos desencadeiam uma

    irreprimvel dinmica de democratizao, na medida que pro-

    vocam nosso reencontro com o Outro e com a autonomia de

    nossos desejos, pelas dimenses simblicas do aleim,numa

    multiplicidade de atividades autnomas em todos os campos do

    social. Os direitos humanos so fundamentalmente reivindica-

    es do no estabelecido. Eles fundamentam o direito sincertezas. Neste sentido eles preservam uma distncia en-

    tre o poder o discurso. E por esta mesma razo, propiciam a

    possibilidade de um deslocamento e mesmo de uma transgreo

    do imaginrio e das prticas que, a despeito dos antagonismos

    dissimulados, asseguram uma identidade de referncia e a

    continuidade de um projeto de dominao.

    Em nome dos direitos humanos pode assegurar-se a ultra-

    passagem permanente do instituido, abrindo o social digni-dade das margens, ao outro que no tem estatuto de sujeito

    por no ter acesso regra.

    A democracia e criatividade e resistncia.

    Percorrendo esses caminhos temos que redimensionar conceitos

    para poder permitir-nos a possivilidade de elaborar

    a critica dominao totalitria e s

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    prticas que sejam as locomotivas de uma permanente reinveno

    democrtica da sociedade. As respostas ao totalitarismo im-

    plica a resoluo (pelo menos a tentativa) do enigma que

    constitui o social como diviso e que faz da poltica uma

    luta para impedir que as regras e rotinas no operem. Tenhoinsistido, em meus ltimos trabalhos, na necessidade de

    perceber o sentido da democria como a contra -face do tota-

    litarismo: um acontecer poltico entendido como auto-criao

    incessante de novos direitos e ultrapassagem permanente de

    limites na sociedade. a poltica que encontra sua definio

    na prpria procura de seu destino e na negao de uma

    realidade, em princpio pr-fixada: advento incompleto e

    ruptura do imaginrio institudo e suas previses. E a demo-

    cracia como imaginrio inventivo que recusa todas as modali-

    dades da petrificao social. 0 totalitarismo acenta-se nes-

    sa petrificao, depende de um poder cristalizado que se

    irradia por toda a sociedade. Frente a esse jogo de irradia-

    es, as prticas dos direitos humanos realiza o sentido da

    democracia criando espaos para ir alm dos limites do poder

    petrificador e fora do fechamento do imaginrio social, do

    imaginrio sem invenes, que assegura a transcendncia do

    poder e sua eficcia simblica.

    Me interessa,sobretudo, mostrar a democracia como uma

    prtica semiolgica que abala o efeitos simblicos do

    poder,pronunciando a interrogao inicial,inaugural acerca

    da alienao e a autonomia.Ela passa simbolicamente margem

    do poder estabelecido para combater as condies institudas

    da heteronomia, tornando explcitas suas faltas. Neste sen-

    tido, a questo dos direitos humanos surge tambm como uma

    instncia simblica de interrogao que marca os limites dototalitarismo, abrindo um espao de reflexo e autonomia

    para a constituio criativa do mundo.

    5. Aps as interrogaes precedentes sobre

    o sentido poltico dos direitos humanos, pretendo

    encerraras presentes disgresses questionando a tarefa de

    homogeneizao e de unificao do social que

  • 8/12/2019 Luis Alberto Warat - O Abuso Estatal Do Direito

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    permanecem implcitas nas atuais propostas de redemocratlzao

    do cone sul. Elas reafirmam o projeto impossvel de um

    discurso e uma prtica que pretende a redemocraticao de

    nossas formas de socieda-de retomando as gastas flmulas do

    Estado de Direito. Elas s ficam airosas nos momentos crti-cos em que um povo busca sair de uma conjuntura poltica

    gravemente contaminada pelo terrorismo de Estado, logo essas

    crenas nos conduzem a um perigoso campo de certezas onde se

    pode anular as possibilidades do espao poltico. 0 estado de

    Direito e moral que alimentam a fico de dominar sua origem,

    seu prprio espao e o devir das prticas e suas representa-

    es.

    As crenas juridicistas que sustentam a ideologia doEstado de Direito dependem de um discurso vo, na medida em

    que o que procurado por ele no pode ser atingido. A

    democracia como dimenso simblica da poltica sempre um

    alm do social, a permanncia de um sonho incerto, de um

    sonho que no pode ser burooratizado, nem pode ficar prisi-

    oneiro de uma verso das regras que escondam a ambigidade de

    suas representaes e efeitos. A democracia um sonho em

    aberto. Ela pressupe o direito fundamental do homem

    criatividade, o direito de ter um imaginrio sem policiamen-

    tos: a invenso democrtica como imaginao que nos leva

    diante do novo. Assim, democracia e totalitarismo guardam

    profunda relao com a autonomia do desejo e do imaginrio.

    A possibilidade d livre criao de sonhos fora dos espaos

    mortos das instituies, para permitir a abertura para o

    novo, para o diferente, para o inesperado... enfim, para a

    democracia.