Luis II de Baviera: Reflexões sobre um Relatório...
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Adrian GramaryMédico Psiquiatra
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]
1. Uma cruz no lago Starnberg
Uma cruz, sobressaindo das águas próximas da margem do
lago Starnberg, recorda, hoje em dia, ao visitante, o lugar onde
faleceu afogado, numa noite de Pentecostes de 1886, o Rei
Luís II de Baviera. A sua morte, acontecida durante um passeio
à beira do lago, em companhia do eminente psiquiatra Bernard
von Gudden, continua envolvida em mistério.
Luis II de Baviera: Reflexões sobre um RelatórioPsiquiátrico-Forense Controverso
Ludwig II of Bavaria: Reflections on a Controversial Forensic Psychiatric Report
«É necessário continuar a criar estes paraísos, estes refúgios poéticos
onde possamos ocultarmo-nos e esquecer durante algum tempo a épo-
ca horrível que nos tocou viver.»
Carta de Luís II de Baviera
à sua antiga preceptora Sibylle von Leonrod
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Até onde nós sabemos, existem vários casos de psiquiatras
mortos pelas mãos dos seus doentes, mas este é o único caso
de um psiquiatra falecido não só pelas mãos do seu doente
mas também juntamente com ele.
O psiquiatra Bernard von Gudden foi um dos responsáveis
pela introdução dos princípios da psiquiatria non-restraint nos
hospitais alemães, mas é fundamentalmente conhecido por
ter sido o mestre de Kraepelin. Nessa altura, era director do
Hospital Psiquiátrico de Munique e conselheiro médico real, e
tinha assinado dias antes um relatório psiquiátrico-forense que
concluía que o Rei Luís II tinha uma paranóia e que, portanto,
o seu estado mental não era compatível com a continuidade
das suas funções à frente do Estado, indicando a necessidade
da inabilitação do monarca. Na sequência desta acção de
inabilitação, uma comissão tinha-se deslocado, alguns dias
depois, ao castelo de Neuschwanstein para comunicar a
decisão ao Rei, correspondendo a Von Gudden transmitir a
notícia ao monarca:
«Senhor, assumo hoje o mais triste dever da minha
vida. Vossa Majestade, segundo a opinião de quatro
médicos, foi declarado inabilitado. O Príncipe Liotpold
assumiu a Regência. Recebi ordens de acompanhar a
Vossa Majestade ao castelo de Berg esta mesma noite.
Se Vossa Majestade não ordenar nada em contrário,
senhor, o coche sairá às quatro horas.»
Luís II ficou finalmente recluso no castelo de Berg, sob a es-
treita vigilância de elementos da guarda pessoal, do psiquiatra
e de vários funcionários do Hospital Psiquiátrico de Munique.
Foram extremadas as medidas de segurança por temor à fuga
ou ao suicídio do Rei, entre outras foram colocadas grades
nas janelas, eliminados os puxadores das portas e as facas
dos serviços de talheres, e só foram permitidas as saídas do
monarca aos jardins do palácio em companhia de guardas.
Nessa noite, excepcionalmente recriada no extenso monólogo
interior escrito por Klaus Mann (A janela gradeada. A morte
de Luís II de Baviera), não sabemos bem como, mas o Rei
conseguiu convencer o seu psiquiatra a dar um passeio pela
margem do lago sem acompanhamento. Às 9 horas da noite,
o ajudante de Von Gudden, o Dr. Muller, preocupado com a
demora, deu o alarme no interior do castelo, organizando-se
uma batida pelo lago, que termina com a descoberta na água
dos dois corpos sem vida.
As autópsias aos dois cadáveres permitiram concluir que
enquanto o Dr. Von Gudden morreu por afogamento, o Rei
Luís II de Baviera parece ter morrido por congestão cardíaca.
Também é necessário destacar que Von Gudden tinha sinais
evidentes de ter participado numa luta corporal: a unha de um
dedo da mão partida e múltiplas lesões cutâneas (equimoses),
algumas à volta do pescoço, sinais que, curiosamente, não
apareceram no corpo do Rei.
A explicação mais plausível para isto é que o Rei, conhecido
por ser um bom nadador, fugiu em direcção ao interior do
lago, e o psiquiatra tentou evitar a sua fuga, entrando numa
luta corpo a corpo, na qual o Rei terá tentado estrangular o
psiquiatra, e que terminou com a vitória do Rei, que, uma vez
liberto, começou a nadar tentando atingir a margem oposta
do lago, morrendo, no entanto, uns metros mais longe, em
consequência da congestão cardíaca.
2. Um Rei Mecenas e Anacrónico
Luís II de Baviera subiu ao trono do Reino de Baviera em 1885,
num momento histórico de grande transcendência para o
futuro da Alemanha. Durante o seu reinado, este país iniciou
o caminho em prol da formação de um Estado unitário, que
integrasse, sob a égide da Prússia —representada pelo chan-
celer Otto von Bismarck e pela figura emblemática do Kaiser
Guilherme, futuro Imperador de todos os alemães— a floresta
variada de reinos, ducados, principados e cidades livres, que
constituíam o actual território alemão. Nesse sentido, o Rei
bávaro tinha todos os atributos para se tornar uma figura ana-
crónica e esquisita: amante dos monarcas autocratas segundo
o modelo do Ancient Regime, em particular Luís XIV, Luís XV
e Luís XVI, apaixonado pelas artes, excêntrico, noctívago,
sonhador, homossexual, misantropo, pouco apaixonado pela
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ideia da monarquia constitucional, com tendências absolutistas
e requintes medievais, e que para aumentar o seu carácter
singular, representava a cabeça visível de um reino católico no
meio de uma maioria de povos protestantes.
Obrigado a partir em 1871 e a reconhecer a existência do
Império Alemão e a tutela do Kaiser Guilherme, o seu papel
ficou assim limitado a ser um elemento quase decorativo,
situação que facilitaria ainda mais o seu isolamento e reclusão
nos inúmeros castelos que construiu pelo território da Baviera
(Linderhof, Neuschwanstein e Herrenchiemsee, entre outros).
Luís II foi amante das artes, em particular da arquitectura e
da ópera, e tornou-se famoso pelo seu mecenato de Wag-
ner, a quem convidou para viver na Baviera, pondo ao seu
alcance todos os meios necessários para compor a ópera
“Tristão e Isolda” e para representar partes de Tetralogia “O
Anel dos Nibelungos”. Saldou as inúmeras dívidas do músico,
assegurou-lhe uma pensão anual e alugou para ele, para o ter
mais perto, uma vila à beira do lago Starnberg, a um quarto
de hora de distância do seu castelo de Berg. No entanto, esta
amizade peculiar entre o Rei e o músico começou a ser alvo de
comentários jocosos por parte de alguns jornais satíricos, como
demonstra a alcunha “Lolus” criada por alguns jornalistas para
Wagner, em recordação do nome da famosa favorita do avô
do Rei, Luís I, a bailarina Lola Montes. O patrocínio de Wagner
acabou por provocar um escândalo sem precedentes no reino
e o Rei, obrigado pelos Ministros e pela Rainha-mãe, expulsou
Wagner do país, para evitar conflitos maiores.
3. Uma dinastia maldita
Há famílias, como aconteceu com os Kennedy mais recente-
mente, que parecem atrair a desgraça e o azar. Não falta algu-
ma razão àqueles que consideram os Wittelsbach, a família a
que pertencia Luís II de Baviera, uma dessas dinastias malditas.
O irmão de Luís II, Otto, que acreditava ser um cão, viveu, boa
parte da sua vida, fechado num castelo sob a vigilância de um
psiquiatra e da guarda real, ladrando e comportando-se como
se o fosse. Por outro lado, os Habsburgo, directamente enlaça-
dos com os Wittelsbach, através da Arquiduquesa Sofia, mãe
do Imperador Francisco José, e da mulher deste, a Imperatriz
Elizabeth, mais conhecida por Sissi, mantiveram-se na mesma
linha de desastres familiares.
O filho de Sissi, o Arquiduque Rodolfo, herdeiro da coroa
imperial, suicidou-se em 1889, juntamente com a sua aman-
te, Mary Vetsera, no Palácio de Mayerling, a que se seguiu
o Arquiduque Francisco Fernando, que foi assassinado em
1914 por um terrorista sérvio em Sarajevo, o que despoletou
a Primeira Guerra Mundial.
O Arquiduque Maximiliano, que cruzou o Atlântico, em 1864,
para ocupar o trono fantasma do Império Mexicano, acabou
por morrer fuzilado em 1867, pelas tropas republicanas de
Juárez. A própria Imperatriz Elizabeth não conseguiu evitar o
trágico destino da família, morrendo em 1898, em consequên-
cia do ataque com arma branca de um anarquista, na cidade
suíça de Genebra.
4. O Rei Virgem
Embora o epíteto que mais fama atingiu foi o de Rei Louco,
a ausência de relações femininas conhecidas determinou
que Luís II de Baviera também fosse conhecido como o Rei
Virgem.
A única mulher com quem manteve uma relação permanente,
de estreita cumplicidade ao longo dos anos, foi com a sua pri-
ma Elizabeth, a Imperatriz Austro-Hungara. Estas almas géme-
as tinham muitos pontos em comum: partilhavam uma atitude
pouco realista pela vida, a paixão pelo mundo das artes e uma
acentuada misantropia. No caso de Elizabeth é conhecido o
seu carácter fugidio e arisco - que a levou a evitar os contactos
com a aristocracia vienense e a preferir a fuga continua para
paraísos longínquos como o arquipélago da Madeira ou a Gré-
cia, e a sua preocupação com dietas rigorosas e com a prática
diária de ginástica, que nessa época eram comportamentos
estranhos para a realeza centro europeia.
A preocupação dos ministros com a sucessão no trono de
Baviera, obrigou o Rei Luís II a aceitar o compromisso com
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a sua prima Sofia, a irmã pequena de Elizabeth. Mas este foi
um relacionamento literário, esvaziado de qualquer conteúdo
erótico, sustentado numa relação epistolar em que o Rei se
auto-denominava Lohengrin, o protagonista da ópera de Wag-
ner, e Sofia era obviamente Elsa, a sua companheira na ficção.
Há quem pense que o monarca escolheu Sofia como segunda
alternativa por não ter podido escolher a irmã Elizabeth, com
quem o unia uma amizade muito estreita e pela qual sentia uma
paixão idealizada. Após múltiplos adiamentos, o Rei rompeu
definitivamente o compromisso, e Sofia acabou por casar com
o Duque Fernando de Alençon. Em 1887, porém, abandonan-
do marido e filhos, fugiu para a Suíça com o seu médico.
Foi separada do amante à força, declarada demente e inter-
nada numa clínica psiquiátrica. Mais uma vítima da maldição
dos Wittelsbach, Sofia morreu em Paris, em 1897, no incêndio
de um bazar de caridade.
5. Um controverso relatório psiquiátrico-forense
O processo de inabilitação realizado contra o Rei Luís II de
Baviera é, como tantos outros acontecidos durante o século
XIX e princípios do século XX, um bom exemplo da instrumen-
talização de que pode ser objecto a psiquiatria por parte do
poder político.
São múltiplas as irregularidades que envolvem a elaboração
deste relatório. Teríamos que começar por um facto salien-
tável e suspeito: Von Gudden redigiu o relatório sem nunca
ter observado o doente, neste caso o Rei, baseando as suas
conclusões psiquiátricas nos depoimentos de pessoas que
tinham feito parte do círculo de lacaios do monarca, a maioria
dos quais tinha sido expulso da corte, constituindo, portanto,
testemunhas comprometidas, que, obviamente, era muito
provável que emitissem pareceres enviesados sobre o estado
mental do monarca.
O relatório baseou a inabilitação nas excentricidades do Rei,
nas suas opiniões políticas – caracterizadas por um germa-
nismo dúbio e pela sua simpatia pró-francesa, devida a uma
atracção manifesta pelo esplendor da corte de Versailles –, no
desprezo que manifestava pelo povo bávaro, na sua manía de
construir castelos e nas suas amizades “degradantes” com
os lacaios.
Neste sentido, não foi por acaso que o autor do relatório se
sentisse na obrigação, no seu início, de dar uma explicação
sobre o facto de não ter havido um exame presencial do Rei:
«…manifestamos, em primeiro lugar, que considera-
mos inoportuno, além de desnecessário, reconhecer
em pessoa a Sua Majestade, dada a abundância de
documentação disponível…»
Outra irregularidade nos procedimentos do relatório diz respeito
à participação dos outros três peritos assinantes, pois uma
vez redigido, Von Gudden conseguiu, por meios turvos, as
assinaturas de mais três colegas: o seu genro, o Dr. Hubert
Grashey, professor de psiquiatria em Würzburg, e os clínicos
Dr. Hagen – que era conselheiro da corte – e Dr. Hubrich, que,
por sua vez, também não tinham observado o periciado.
Como já foi referido, a conclusão básica do relatório é que o Rei
apresentava um quadro delirante crónico ou paranóia, que o
tornava incapaz de reger a coroa de Baviera, mas a argumen-
tação do relatório falha no essencial, isto é, para um leitor que
se debruce no texto, surpreende a ausência de uma descrição
psicopatológica veraz do referido quadro psicótico.
Talvez possa aportar alguma luz seguir a argumentação do au-
tor através da transcrição dos parágrafos mais importantes do
relatório: no início Von Gudden aborda o carácter misantropo
e fugidio do Rei, com o seu famoso evitamento dos contactos
interpessoais:
«…esta aversão pelo trato humano foi-se acentuando
com o passar do tempo, até ao ponto de que o Rei fre-
quentava cada vez menos a igreja de Berg, e finalmente
fez construir no jardim privado do castelo de Berg uma
pequena igreja em estilo românico, onde podia ser ce-
lebrada a missa só para ele, estando terminantemente
proibida a assistência de qualquer outra pessoa. Como
é conhecido, também eram representadas peças de
teatro só para Sua Majestade porque não suportava
a presença de público. A companhia de outras pes-
soas tornou-se cada vez mais intolerável para ele (…)
é público e notório que, desde há muito anos, a Sua
Majestade não recebe pessoalmente os responsáveis
da Corte nem os ministros da Casa Real… ficando,
assim, o trato humano de Sua Majestade limitado
praticamente aos lacaios…»
Em relação aos lacaios, o relatório aborda o relacionamento
excessivamente próximo que o Rei mantinha com estes,
que era um dos aspectos do seu comportamento que mais
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escândalo tinha provocado na sociedade bávara, embora,
talvez para evitar alimentar os boatos já existentes, o autor
evite abordar os conhecidos envolvimentos homossexuais que
o Rei mantinha com alguns serviçais, nomeadamente com o
seu favorito, Hornig:
«…durante a estada da Sua Majestade em Schachen,
soube-se que os moços da estrebaria foram convida-
dos ao salão turco do castelo, onde, sentados sobre
carpetes de estilo oriental, beberam sorvetes em com-
panhia da Sua Majestade e fumaram cachimbos turcos.
E também, na conhecida como sala germânica, insta-
lada em Linderhorf, deitados sobre peles, os lacaios
beberam hidromel em grandes cornos…»
Von Gudden descreve, a seguir, aquelas extravagâncias artís-
ticas que iriam conformar, com o passar do tempo, o núcleo
essencial da lenda maldita do Rei Louco, como a construção
da maior gruta artificial do mundo, os passeios nocturnos a
cavalo, pelas montanhas próximas do recinto do palácio de
Hohenschwangau, portando o ceptro e a coroa e acompa-
nhado por lacaios com tochas, ou a sua paixão desmedida
pela corte de Versailles que o levou a construir castelos que
recriassem o esplendor da época de Luís XIV e Luís XV e a
organizar festas em homenagem a Luís XVI e Maria Antonieta,
actividades estas que teriam conduzido ao esvaziamento das
arcas do Estado:
«…neste domínio das fantasias incontroladas, não
submetidas às limitações impostas pelo real e pelo
possível, poderíamos incluir outros factos comentados
noutras partes do relatório, como o desejo tantas vezes
exprimido pela Sua Majestade de voar pelos ares numa
carruagem puxada por pavões, tendo encomendado ao
mestre mecânico Brand uma máquina para sobrevoar
os Alpes desde Hohenschawangau; ou a pretensão de
copiar a gruta azul de Capri, para a qual o lacaio Hornig
teve que se deslocar duas vezes a Capri para estudar
a referida cor azul…»
«…o moço de estrebaria Hornig referiu que a Sua Ma-
jestade costuma vestir-se em segredo a moda dos reis
absolutos de França e que fez tirar do tesouro real o
ceptro e a coroa para passear com eles durante as suas
expedições nocturnas e também que tinha intenção de
construir um novo Versailles em Graswangtal…»
«…transcrição de uma carta dirigida a Hesselschwerdt,
escrita pelo próprio punho da Sua Majestade a lapiseira,
por motivos de urgência: (…) as construções são a
única alegria que me resta, desde que estão paradas
sinto-me muito infeliz e seria capaz de abdicar ou de
acabar com tudo, isto deve acabar, que sejam reto-
madas as obras, se ele consegue isto, praticamente
me terá salvado a vida (…) A felicidade da minha vida
está em causa…»
«…A Sua Majestade só quer construir, e as estratégias
que usa para procurar o dinheiro necessário para isto
reflectem mais uma vez, se fossem necessárias mais
provas, ao ponto que chegou a decadência das suas
faculdades mentais…»
Mas a nossa opinião é que todo este catálogo fabuloso, em-
bora real, de extravagâncias, que faz parte da lenda maldita
do Rei Luís II, é no essencial semelhante ao de tantos outros
monarcas da história, que no entanto, na maioria dos casos,
foram poupados de ser objecto de uma acção de inabilitação
fundamentada em semelhantes excentricidades.
É por este motivo que ficamos ansiosos a espera dos argu-
mentos clínicos e psicopatológicos necessários para sustentar
a pretensa paranóia defendida por Von Gudden, mas quando
os elementos são finalmente apresentados, eles são difusos
e pouco consistentes. Começa por invocar, o relator, determi-
nadas semelhanças entre a doença psiquiátrica do monarca
e a do seu irmão Otto, encerrado num castelo desde o início
da idade adulta por um quadro psicótico, provavelmente
esquizofrenia:
«…a Sua Alteza Real o Príncipe Otto de Baviera está
afectado por uma doença mental incurável, cujas ori-
gens remontam-se aos anos da juventude, algumas
de cujas características têm uma semelhança óbvia
e significativa com certos sintomas da doença que se
manifesta na Sua Majestade…»
A seguir, passa a descrever as insónias e as cefaleias crónicas
de que sofre o monarca e o seu abuso dos soníferos:
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«…para terminar, faremos uma breve referência às
condições físicas do Rei. Desde há algum tempo, a
Sua Majestade diz sofrer de enxaquecas com sensação
de pressão e dor, sobretudo na região occipital, que
combate com sacos de gelo, às vezes até durante as
refeições. Também são frequentes as insónias; há cerca
de seis anos que o Rei toma cloral duas ou três vezes
por semana, mas desde há cerca de quatro anos tem
tomado outros soníferos, de cuja composição nada
sabemos os abaixo assinantes…»
Mas, chegado o momento de demonstrar a existência de
alucinações, os argumentos e as descrições de Von Gudden
parecem forçadas e inconsistentes:
«…sobre se a Sua Majestade apresenta realmente alu-
cinações, isto não pode ser assegurado com certeza
absoluta, embora possam indicar a sua presença as
observações de Hesselschwert ao referir que o Rei se
sobressalta com o mais leve ruído, e que, durante os
seus passeios, diurnos e nocturnos, costuma interrom-
per o seu discurso com frequência, dizendo ter ouvido
qualquer coisa, palavras ou passos; e, ao assegurar o
interlocutor não ter ouvido nada, retorquiu “o que se
passa é que tu és duro de ouvido, Hesselschwerdt”.
Tudo isto sem que a Sua Majestade conseguisse expli-
car nunca quais são esses ruídos ou essas palavras que
crê ouvir. Também estando o Rei no interior dos seus
quartos (como declarou o mordomo Welker) costuma
queixar-se de que ouve ruído de passos no andar de
cima, ordenando que este seja revistado, embora nunca
tenham encontrado lá ninguém. Ainda, encontrando-se
a sós nos seus aposentos (observações do 3 de Junho
de 1886, segundo depoimentos de Hesselschwerdt)
o Rei foi ouvido frequentemente a falar e rir em voz
alta, como se estivesse com companhia numerosa e
entretida…»
Descreve ainda a suspeição do monarca e descreve o que
parecem prováveis interpretações deliróides de conteúdo
paranóide ou autoreferencial, mas sem conseguir demonstrar
a existência dos delírios sistematizados característicos da
paranóia:
«…só a presença de elaborações ilusórias permite ex-
plicar o incidente que comunica o ministro Von Ziegler:
“o Rei comunicou-me mais de que uma vez o seu mal-
estar por ter sido objecto de olhares meus depreciativos
e desrespeitosos durante a audiência real, convidando-
me a justificar, posteriormente, o meu comportamento,
com o que tive que perder muito tempo elaborando
escusas e explicações para a pretensa falta de respei-
to”. Acredita Von Ziegler que a razão desta suspeição
é a convicção do rei de que a sua presença causa um
efeito desagradável nas pessoas, como se ficasse
envergonhado de alguma anomalia ou deformidade
muito óbvia; sentimento este que é bastante provável
que corresponda a um mecanismo ilusório presente na
Sua Majestade…»
Mas existe também uma explicação mais simples para estes
comportamentos: é lícito pensar que a imagem do Rei Luís II
nos últimos anos, com quase todos os dentes podres – o que
motivou modificações na ementa real, passando a comida a ser
servida triturada, e tornou o seu discurso difícil de perceber–
não contribuísse propriamente para aumentar a segurança do
monarca perante a sua exposição em público. A isto soma-se
o facto conhecido do sofrimento e culpabilidade com que o
monarca, católico praticante, vivia a sua homossexualidade,
como deixou explicitamente escrito nos seus diários:
«Ódio mortal aos sentidos, ódio mortal. Chega de bei-
jos. Lembrai-vos, Senhor, lembrai-vos. Desde agora,
nunca mais! Desde agora, nunca mais. Desde agora,
nunca mais!»
Os assinantes, no entanto, sem mais explicações psicopato-
lógicas do que as acima referidas, concluem, surpreendente-
mente, no fim do relatório:
«1. A Sua Majestade padece uma perturbação das
suas faculdades mentais já muito avançada; trata-se
concretamente de uma doença conhecida entre os
alienistas com o nome de paranóia (psicose de evolu-
ção progressiva).
2. Tendo em conta o carácter progressivo da doença
e o facto da sua longa duração no caso da Sua Ma-
jestade, destacamos o seu carácter incurável e a mais
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que provável continuidade e aceleração do processo
de deterioração das suas faculdades mentais.
3. A doença exclui a livre determinação da sua vonta-
de, e portanto, devemos considerar a Sua Majestade
incapacitado para governar, e incapacitado não por
um lapso de tempo superior a um ano, mas sim para
a vida toda.»
6. Novas reflexões sobre o caso do Rei Ludwig
Num estudo recente, o Professor da Universidade de Heidel-
berg, Heinz Häfner, soma-se àqueles que questionam se o Rei
mais do que um psicótico, não terá sido um homem nascido
na época errada. Sem dar resposta a esta pergunta, este au-
tor, no entanto, é de opinião que o diagnóstico de paranóia é
insustentável a partir da perspectiva actual. Recorda ainda que,
após a morte do Rei, um dos três psiquiatras que assinaram
o relatório exprimiu dúvidas sobre o diagnóstico de paranóia.
Segundo este autor, o Rei Luís II, com o intuito de fugir dos
seus conflitos internos, desenvolveu uma forma infrequente de
adição: a adição pela construção; adição esta que poderia ser
incluída, junto com, por exemplo o jogo patológico, no grupo
de dependências não relacionadas com substâncias.
O monarca também terá desenvolvido, sempre desde a pers-
pectiva de Häfner uma fobia social, que se foi exacerbando
com o passar do tempo, devido, em grande medida, aos
sentimentos de vergonha com o que o monarca vivia as suas
inclinações homoeróticas. Este quadro fóbico também permi-
tiria explicar a sua retirada social e da vida política.
Qual era o diagnóstico psiquiátrico de Luís II de Baviera? Mui-
tas vozes qualificadas parecem coincidir de que a paranóia
é uma hipótese actualmente insustentável. Além do estudo
mais recente de Häfner, estudos realizados por outros auto-
res apontaram, no passado, outros possíveis diagnósticos
psiquiátricos: perturbação esquizóide de personalidade, pa-
rafrenia ou demência fronto-temporal. Nós concordamos com
aqueles que pensam que é provável que o Rei tivesse uma
perturbação de personalidade, e que desenvolveu, a partir
de uma determinada altura da sua vida, um quadro de fobia
social e, usando o conceito de monomania de Esquirol, uma
incoercível monomania edificadora.
Para acabar, gostávamos de relembrar a sentença do historia-
dor Guy de Pourtalés, que na sua biografia caracteriza o Rei,
enquanto homem, como “o último grande artista coroado”,
“excepcional como personagem de tragédia”, embora não
duvide em fazer um implacável balanço final da personagem
histórica: “não amou absolutamente o seu povo, defendeu mal
a coroa e não defendeu os seus amigos”.
No entanto, por contradições da história, ao apaixonado
Rei Luís II devem os bávaros os múltiplos castelos por ele
construídos e disseminados pelo território bávaro, que
constituem, actualmente, o seu principal atractivo turístico.
E todos nós temos, ainda, uma dívida contraída com o
monarca, pois ele foi o principal mecenas de Wagner, cuja
obra é um pilar fundamental para compreender a música
do século XX.
Bibliografia
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Filmes: - “Ludwig” de Luchino ViscontiNa Net:- Was Mad King Ludwig II Really Mad? (http://www.uni-heidelberg.
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