Luiza trecho

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Laura Malin Made in Brazil Luiza Brunet

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Laura Malin

Made in Brazil

Luiza Brunet

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sumário

Prefácio, por Fernando Henrique Cardoso ...................................... 7

Amélia ............................................................................................... 13

Vida de índio .................................................................................... 17

Coqueluche ....................................................................................... 23

Vou te matar! .................................................................................... 29

Papai Noel ......................................................................................... 35

Secos & Molhados ............................................................................ 39

Nos braços do pai ............................................................................. 43

A partida ........................................................................................... 49

Fim da infância ................................................................................. 57

Vazio ................................................................................................. 63

Primeiro namorado ......................................................................... 67

Pés descalços ..................................................................................... 73

Beijo do sol ....................................................................................... 77

Assédio .............................................................................................. 81

Debutante ......................................................................................... 85

Gata borralheira ............................................................................... 87

Fotos ................................................................................................. 93

Sombra ............................................................................................. 97

Príncipe encantado ........................................................................ 101

Sim! ................................................................................................. 105

Sra. Brunet ...................................................................................... 109

Flashes ............................................................................................. 113

Foi dada a largada .......................................................................... 119

Meu corpo, minha empresa ........................................................... 123

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Xuxa ................................................................................................ 131

Dijon ............................................................................................... 135

Oui, oui ........................................................................................... 141

Pra frente, Brasil! ............................................................................ 149

Nova York ....................................................................................... 153

Presente de Natal ............................................................................ 157

Boca grande .................................................................................... 163

Separações ...................................................................................... 169

Viajante ........................................................................................... 175

Vida nova ........................................................................................ 181

Yasmin ............................................................................................ 185

Amamentação ................................................................................ 187

Presidentes ...................................................................................... 191

Sonhos ............................................................................................ 197

Luto ................................................................................................. 201

Anjo mau ........................................................................................ 205

Antonio ........................................................................................... 209

Amor em dobro .............................................................................. 213

Cavalos selvagens ........................................................................... 217

Torres gêmeas ................................................................................. 221

Bullying ........................................................................................... 225

Beleza superior ............................................................................... 231

Ninho vazio .................................................................................... 233

Tombo ............................................................................................. 237

Fim de linha .................................................................................... 243

Metamorfose .................................................................................. 245

Sem Photoshop .............................................................................. 249

Pescaria ........................................................................................... 253

Viver ultrapassa .............................................................................. 255

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prefácio

confesso que recebi com agradável surpresa o convite da Luiza

Brunet para prefaciar seu livro autobiográfico. Minha relação

com ela nunca foi próxima, resumindo-se a dois breves encontros na

época que eu ocupava a Presidência da República, apontados nessas

memórias, onde ela confessa ser minha admiradora. Não é a amizade

que nos liga.

Surpresa maior, porém, tive ao iniciar a leitura de sua história de

vida. Fiquei de cara impressionado ao conhecer as agruras que passou

na infância e na adolescência, desde quando chegou ao mundo numa

choupana de sapê, escondida entre os cafezais da vila Montese, mu-

nicípio de Itaporã, hoje Mato Grosso do Sul. Nem eu, nem ninguém,

acredito, poderia imaginar que uma mulher glamourosa e chique

como Luiza Brunet tivesse essa origem humilde, pé no chão, escanca-

rada com gosto nas suas lembranças que mostram uma ligação direta

com a terra, o mato, os animais, típica das incontáveis e anônimas

famílias da roça que por aí afora calejaram suas mãos para construir

este nosso grande país. Quem se acostumou a ver essa mulher linda

brilhando nas revistas e nas passarelas jamais desconfiaria que seu

berço não tenha sido esplêndido, e, decididamente, não o foi.

Ao ler os primeiros capítulos de sua trajetória, descobre-se uma

história de superação de dificuldades, na qual a pequena Tatupeba,

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que tantas desventuras sofreu na pobreza de sua infância, mas se

alegrava brincando de índio e curtindo o cheiro do pó de serra, se

transformou pelas mãos do destino, mas com muita determinação,

na conhecida Luiza Brunet. Seus admiradores, certamente, se delicia-

rão com esse verdadeiro conto de fadas. Descobrirão que a famosa ar-

tista, expoente da moda brasileira, forjou sua beleza ajudando a mãe

a atiçar o fogão de lenha, torcendo os pescoços das galinhas abatidas

para o jantar com as mesmas mãos que se sujavam na terra da lavoura

mantida pelo pai. É quase chocante, e fascinante ao mesmo tempo.

O livro me prendeu. É difícil parar de ler a história de vida de Luiza

Brunet, contada por ela mesma através da escrita talentosa de Laura

Malin. Mais que um amontoado de fatos bobocas recheado de con-

versa fiada, sempre escondendo o fundamental, como soe se configu-

rarem as biografias de celebridades, Luiza é incrivelmente verdadeira,

expondo com sinceridade suas entranhas. Em seu doloroso aprendi-

zado se destaca o dramático momento em que, aos 10 anos, ela en-

frenta a desgraça da violência contra a mulher, colocando-se à frente

na defesa de sua própria mãe, ameaçada por uma faca brandida pelo

pai alcoólatra. Um suceder de amarguras, recheadas com aventuras

muito bem contadas, dá às vezes a impressão de estarmos frente a

uma novela. Mas se trata da dura realidade.

Sente-se até certo alívio quando a futura modelo adentra a rodo-

viária do Rio de Janeiro, acompanhando a mãe Alzira de volta para a

cidade grande, cheia de filhos, fugindo do marido violento e mulhe-

rengo para se esconder numa ruela de Manguinhos. Daí para fren-

te, na urbanidade, tudo vai mudar. Empregada doméstica, babá de

crianças, vendedora de loja, empacotadeira, Luiza fez um pouco de

tudo para vencer na vida, até encontrar o estúdio fotográfico que lhe

iniciaria nas alturas da fama através das revistas patrocinadas pela

Editora Bloch.

Poucos creem que pessoas famosas e afortunadas possam ter convi-

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vido com a miséria e enfrentado desgraças como se descobre ter ocor-

rido com Luiza Brunet. Os ídolos populares tendem a ser sublimados

pelos seus fãs, e muitas vezes colaboram com esse embuste da per-

sonalidade escondendo capítulos significativos, que talvez julguem

depreciadores, de seu passado. Outros inventam, ou exageram fatos,

alimentando os personagens que substituem a si próprios, criando

ilusões para agradar a opinião pública, ou satisfazer seu ego. Afora o

conteúdo em si, o livro de Luiza Brunet é importante por essa razão.

Ela não camufla nada, pelo contrário, exibe com tremenda sinceri-

dade sua intimidade, e essa atitude, humilde, a humaniza. A lição é

dupla: serve às pessoas desanimadas, encorajando-as a encarar a vida

de frente, como serve também aos ególatras que preferem construir o

futuro se escondendo do passado.

Luiza Brunet conta que, em 1991, interessada na emancipação de

Búzios, seu paraíso terrestre, decidiu entrar para a política, escolhen-

do o meu partido, o PSDB, para se filiar. Sua intenção era se colocar

como “prefeiturável”, mas seus planos eleitorais não vingaram. Desde

aquele momento, porém, ao seu modo ela se engaja no processo de

transformação da sociedade brasileira, emprestando sua fama à cau-

sa da cidadania, participando de um momento importante do país

quando vários artistas se mobilizaram contra a corrupção. Uma frase

sua, quase uma receita para melhorar o Brasil, ecoou das revistas na-

quela época: “Basta que acabe a corrupção e os governantes tomem

vergonha.” A bronca serve até hoje.

Nessa sua atitude política, que modela sua maturidade feminina,

encontro as razões que me satisfazem para prefaciar esta obra. A polí-

tica é importante demais para ficar restrita aos profissionais do ramo,

dominada eternamente pelas mesmas pessoas, ligadas ao comando

partidário. Para que a sociedade seja, de fato, democrática, a partici-

pação cívica é fundamental: os intelectuais, os artistas, os empresá-

rios, os operários, os jovens, as mulheres, as minorias, todos precisam

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se envolver, discutir, cobrar, exigir, fugindo assim da cômoda omissão

do tipo “eu não tenho nada a ver com isso”. Foi o que a Luiza Brunet,

junto com outros artistas, fez em um momento importante da nossa

construção democrática, que resultou no impeachment de Collor.

Agora, a abertura fornecida pelas redes sociais via internet facilita

ainda mais o processo de engajamento político. Não significa, necessa-

riamente, ser candidato a um cargo representativo. Basta você acreditar

em alguma coisa, defender uma causa, encontrar razões que lhe sub-

traiam da indiferença, ou do interesse particular, e lhe empurrem para

a preocupação com o bem público. Foi na luta em defesa dos direitos

humanos, a favor das liberdades democráticas, pelo desenvolvimento

nacional, que decidi, junto com tantos de minha geração, entrar pra

valer na política. Militamos dentro da universidade, saímos para ajudar

os sindicatos, os movimentos sociais e, no meu caso, segui a batalha

eleitoral, primeiro no Senado, depois na Presidência. Valeu a pena.

Conquistamos a democracia e a liberdade, avançamos no combate

às desigualdades sociais, colocamos o país no rumo do desenvolvi-

mento, com uma moeda forte, consolidamos nossa presença no mun-

do globalizado. Tais conquistas, porém, ainda carecem ser consolida-

das, bem como novas demandas surgem a desafiar nossa contempora-

neidade, exigindo serviços públicos decentes, melhor educação e mais

saúde, segurança aos nossos filhos, enfim os requisitos da qualidade

de vida no presente. Se esses bons motivos não bastassem, percebe-

mos o terrível mal da corrupção retornar a níveis jamais imaginados,

agora parecendo mais que um desvio de conduta pessoal para assu-

mir uma organização articulada como se fizesse parte do próprio jogo

do poder. Motivos para a participação política não faltam. Basta se

conscientizar, como num dado momento Luiza Brunet o fez, de que

numa sociedade plural, aberta e democrática, “o governo” somos nós.

Quando Búzios se emancipou, Luiza Brunet havia desistido de sua

candidatura a prefeito do município. Mas não abdicou da partici-

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pação política na sociedade. Ao final do livro, ela conta que, aos 45

anos, entristecida após a segunda separação matrimonial, precisou

se reinventar para ganhar novo ânimo na sua existência. Escolhida

“embaixadora” do Instituto Avon, passou a viajar pelo Brasil fazendo-

-se porta-voz das mulheres, participando de palestras, inaugurações

de hospitais e centros médicos, sempre apoiando ações em defesa da

mulher que sofre de câncer ou violência doméstica, “olhando em seus

olhos, dando uma palavra de conforto para um doente terminal”.

Compartilhou emoções, adotou uma causa, cresceu espiritualmente.

Deu, mais uma vez, a volta por cima.

Podem ler Luiza Brunet. Vale a pena.

FHC

SP, 30/10/2013

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amélia

era para eu me chamar Amélia. Meu pai queria fazer uma homena-

gem dupla: a ele próprio e à minha avó. Minha mãe não gostou:

“Amélia Luiza Botelho da Silva, não! Põe só Luiza!” Naquela época, ela

ainda não sabia que Luiza era também o nome de uma ex-namorada

dele. Ou melhor, de uma ex-amante. Foi assim com a maioria de nós:

Lúcia, eu, Leid, Lucenir, Luciana. Não sabemos – e já não saberemos

mais – até que ponto isso é verdade. Se esses nomes todos começados

pela letra L eram um desfile de ex-afetos do meu pai. Minha mãe

acatou, ingênua.

Meus pais se conheceram em Benfica, subúrbio do Rio de Janei-

ro. Mamãe estava de férias com uma das onze irmãs, a casa de meu

pai ficava logo ao lado. Ele era noivo de outra garota, mas se en-

cantou com ela, terminou o noivado e, quando mamãe voltou para

São Sebastião do Alto, no interior do estado do Rio de Janeiro, foi

atrás. Era carnaval, ela tinha 16 anos e era a temporã da família.

Estava acostumada com um pai rígido, delegado, mas era tratada

como princesa: costurava, bordava, estudava, tocava piano. Quando

chovia, corria para se molhar, depois pegava tanajura, brincava de

amarelinha, pega-pega, ciranda de roda. Quando voltava para casa,

molhada, levava bronca e surra de cinto. Lugar de moça de respeito

era atrás da janela da sala.

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Ele, cearense, 21 anos, vivia no Rio de Janeiro, onde era vendedor,

mas sonhava em ser fazendeiro, pois tinha um irmão no Mato Grosso

que estava indo de vento em popa. Queria boiada, lavoura, colheita.

Queria caçar, ter filhos, construir uma casa com varanda em volta

para ver o sol se pôr enquanto pitava o cigarro.

Antes de voltar para a capital, deram as mãos, andaram pela praça

se mostrando, e ele foi embora, prometendo retornar. Tinha planos

para ela – para eles: ia comprar um pedaço de terra no interior do país

e voltar para buscá-la. Juntos, ficariam ricos.

Depois disso, mamãe não conseguia mais prestar atenção nas aulas.

Bordava, em segredo, o seu enxoval. Trocava cartas com Luiz, juras

de amor, planos para uma família grande. Um dia, quando suspirava

para as paredes, em vez de copiar a matéria, acabou de joelhos no mi-

lho, castigada pela professora. Quando o sino bateu, ajeitou as meias,

pouco preocupada em esconder as marcas nas pernas. Dor, não havia

sentido: o coração já ardia numa paixão atroz que fazia com que o

resto do corpo ficasse anestesiado. Atravessou o pátio e ia saindo da

escola com as amigas, a cabeça nas nuvens, quando viu um príncipe

no portão da escola, de terno branco, óculos ray-ban, perfume Tabu.

Alto, magro, cabelo preto com brilhantina, sorriu para ela, mas fo-

ram as amigas que suspiraram. Meu pai era um galã, desses homens

que fariam sucesso em Hollywood, rosto simétrico, pinta de rico. A

professora, que vinha atrás, perguntou: “Quem é esse rapaz?” Mamãe

lembrou dos joelhos marcados pelo milho, subiu as meias três-quar-

tos e murmurou, ainda tímida, como se aquele prêmio fosse grande

demais para si: “Ele veio me buscar.”

Era verdade: papai estava apaixonado. Não era para menos, os dois

formavam um casal de chamar a atenção. Ela parecia um camafeu,

pele branquinha, cabelos negros, olhos levemente puxados. Naquela

mesma noite o noivado seria oficializado, com a aprovação dos meus

avós maternos.

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Papai ainda voltou ao Mato Grosso para comprar a terra dos so-

nhos. Um ano mais tarde foi buscar minha mãe. Casaram-se no bair-

ro carioca do Méier, numa igrejinha enfeitada de sonhos. Ele, de terno

preto e gravata clara, uma mistura de Gregory Peck com Clark Gable.

Ela, de vestido de cetim branco, luvas de renda, véu e enfeite na cabe-

ça, uma Rita Hayworth de sobrancelhas grossas. A recepção foi sim-

ples e mamãe não podia imaginar que aquele seria um dos maiores

luxos de sua juventude.

Deixaram o Rio de Janeiro dois anos após o primeiro encontro. Passa-

ram três dias sacolejando num ônibus, apaixonados demais para se im-

portar, até chegar a Itaporã, um município matogrossense constituído

por sete famílias em 1944. A lua de mel durou pouco, pois logo se mu-

daram para a tal fazenda que ele havia comprado. Era janeiro de 1960.

Lúcia, minha irmã mais velha, nasceu em dezembro do mesmo

ano, em Dourados. O parto foi complicado, a parteira não conseguiu

tirá-la de dentro do corpo jovem de mamãe, tinha os joelhos dobra-

dos. Arrumaram uma carroça, papai deu no lombo do cavalo e foram

parar no Hospital Evangélico de Dourados.

A partir dali, o conto de fadas acabou. Minha mãe virou um bi-

cho do mato, presa num cerrado que mais parecia deserto, árido de

vida e emoções. Meu pai, confrontado com a realidade dura, logo teve

que vender aquele pedaço de terra que tinha levado dois anos para

comprar e aceitar um emprego na fazenda de um latifundiário, onde

cuidava da plantação de café. A casa não tinha luz nem água, a hora

se marcava pelo desenho do sol na terra e o único espelho que havia

era o reflexo no açude. Mamãe aprendeu a cozinhar para os lavrado-

res. Quando a colheita acabava, depois de três ou quatro meses, meu

pai a mandava arrumar a trouxa com o enxoval que tinha trazido da

capital e os dois partiam para outro latifúndio.

Eu nasci numa choupana de sapê, no meio de um cafezal, dois anos

e quatro meses após o casamento. A vilazinha, município de Itapo-

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rã, chamava-se Montese. Minha mãe esperava por outro parto difícil,

papai foi chamar a parteira e, quando ela chegou, eu estava saindo.

“Nasceu num espirro”, a mãe costuma dizer. Eu sei o porquê: tenho

uma sede de vida enorme. Desde pequena, lembro de querer fazer

sempre mais. Não necessariamente melhor, nem diferente: mais. Mais

ação, mais emoção, mais aventura. Nesse começo, entretanto, eu não

imaginava o que seria mais. Não enxergava o casebre com suas veias

aparentes, a falta de luz, a vida de índio. Tudo era farto, os pés eram

descalços, com as mãos eu alcançava o resto de sol que iluminava as

nossas brincadeiras. O mundo era meu, minhas irmãs eram meus de-

dos – e eu, os delas.

Um ano mais tarde, quando Leid nasceu, já estávamos em outro

sítio. Eu ainda mamava no peito, o leite materno foi passado para ela

junto com as duas mudas de roupa que já não cabiam em mim. Deixei

de ser irmã mais nova para virar a do meio. Em seguida, veio Lucenir,

e já éramos quatro meninas. Éramos a nossa própria tribo – meu pai

saía para tomar conta da lavoura, minha mãe cozinhava para os la-

vradores e a gente cuidava umas das outras. A vida era simples assim!

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vida de índio

fecho os olhos e sinto o cheiro da madeira serrada. Vejo uma chu-

va de fuligem cair do céu, enchendo de purpurina o horizonte

líquido. Quando olho para baixo, estou sozinha, puxando a carroça

que parece não se mover. O jumento à minha frente não se incomoda

com nada, mas eu tenho pressa. Tenho coisas a fazer – coisas que só

podem ser feitas se eu mergulhar fundo em cada uma – sentir aquele

cheiro adocicado da madeira, deixar o sol me beijar, mergulhar no

açude. Essa é a lembrança mais forte da minha primeira infância: o

pó de serra.

Buscar restos de madeira serrada para o fogão era a minha tarefa

predileta. Eu tinha 5 anos e já pegava a carroça e ia até os fundos da

serraria, metia a mão na pilha que jorrava do duto, jogava para cima

e esperava aquela chuva dourada cair em mim: sorria. Depois enchia

a carroça e voltava para casa, o sorriso ainda no rosto.

Minha maior brincadeira era ajudar. Às vezes, eu ficava sentada no

beiral da porta, esperando alguma ordem. Meus irmãos corriam sol-

tos na minha frente, enquanto eu me sentia atada àquele chão frio.

“Preciso de tomate para a salada”, minha mãe dizia, na hora do almo-

ço. “Eu vou!”, gritava, animada, pulando para arrancar o fruto da hor-

ta que ficava nos fundos do casebre. “Acabou a água pra cozinhar!”,

ela reclamava, e lá ia eu para o poço, puxando o balde pesado. “Não

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tem fralda limpa!”, ela descobria, e eu pegava aquela trouxa suja, uma

pedrinha de anil e ia buscar uma mina d’água para lavar.

Quando tinha colheita, minha mãe ia para a cozinha, antes de o

sol raiar, fazer o café da manhã dos lavradores. Lembro de acordar

com o barulho, meus pais tomando aquele café fraco, cheio de açúcar,

enquanto eu corria ao poleiro e recolhia todos os ovos quentinhos

que as galinhas tinham botado. Depois ajudava mamãe a distribuir os

pratos, contava quatro ou cinco ovos em cima daquelas montanhas

de comida: arroz com feijão, batata, aipim cozido. Assim era o café da

manhã de quem ia passar o dia cultivando a terra. O nosso era ovo

cru, batido com açúcar e farinha, servido num prato de ágata branco

que mais parecia um penico. E a gente pedia mais!

Na hora do almoço, eles voltavam de barriga vazia, como se o cer-

rado tivesse comido suas entranhas. Eu corria até a horta, buscava

uma abóbora grande que arrastava com meu corpo pequeno, ou mui-

tas vezes com a ajuda da Leid. Pegava tempero, mais batata, a verdu-

ra que a terra tivesse maturado, e levava para a mamãe. Era sempre

finalzinho da manhã e ela estava às voltas com a carne do almoço. Às

vezes matava quatro, cinco galinhas, que a gente caçava para serem

abatidas. Torcia o pescoço delas sem pudor, eu ficava vendo as pati-

nhas dando os espasmos, uns cacarejos sufocados pelos dedos hábeis

de minha mãe, sem tempo para desencarnar antes que fossem depe-

nadas. A briga entre nós era para saber quem ia ficar com a bexiga do

bicho, que a gente enchia de ar para brincar depois do almoço.

Era a hora mais tranquila do dia, quando o sol se revelava generoso o

bastante para nos proporcionar tempo para brincar. Mamãe não para-

va: quando não tinha roupa para lavar ou estender, sentava num canto

para costurar uma peça ou catar feijão. Eu gostava de pegar aquelas

vassouras que a gente fazia com um galho e um punhado de mato seco

e ficava brincando de varrer o terreno. Todas as minhas brincadeiras

eram tarefas, mas eu não achava ruim ou estranho. Ao contrário.

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No meio da tarde, tinha sempre aquele café aguado e doce com

bolo de fubá ou bolinho de chuva. A gente também juntava frutas

fresquinhas, podia se dar ao luxo de jogar fora as que não estivessem

suculentas, os pés sempre cheios por cima de nossa cabeça. No inver-

no, tudo era milho: bolo de milho, pamonha, curau.

A gente se mudava constantemente, de acordo com as colheitas. As

casas eram sempre muito simples e parecidas, de sapê ou de tábuas

grossas, com uma porta dividida ao meio, que era também janela, se

aberta pela metade. O fecho era uma tramela, o fogão usava pó de ser-

ra ou lenha, e tinha um quarto para todos, com um berço para o bebê

da vez, e duas camas juntas para dormirmos. De tempos em tempos,

tínhamos que encher os colchões de novo, com folhas de bananeira,

porque eles iam murchando e afinando. E um único armário dava

conta de todas as roupas – geralmente uma muda para cada um.

Tudo era absolutamente orgânico e sustentável. O banheiro ficava

do lado de fora, a gente chamava de “casinha”. Era um puxadinho de

tabuinhas irregulares com um buraco no chão que, quando enchia de-

mais, forçava meu pai a tapá-lo e abrir um novo. O banho era ali na

frente de casa, ao ar livre, com água fria do poço. No inverno, mamãe

esquentava um caldeirão e nós tomávamos banho de gato. Até o sabão

era fabricado em casa, gordura animal com soda cáustica, um cheiro

muito forte, abrasivo, que era usado para tudo, desde lavar as pane-

las até tomar banho. Meu pai sempre fazia em quantidade e guardava

aquelas barras enormes do lado de fora, de modo que a casa ficava

envolta nesse incenso fedorento que é o cheiro da minha infância.

Apesar de simples, as coisas eram muito caprichadas. A roupa que

mamãe lavava ficava azulada de tão branquinha, secando no varal de

bambu, ao vento, formando sombras que se transformavam em dra-

gões e sereias. Sua educação de moça prendada não deixava que ela

apenas estendesse aqueles pedaços de tecido sobre o colchão – tinha

que passar a ferro, esquentado em brasa, toda a roupa que saía do

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varal. As camisas de papai estavam sempre impecáveis e prontas para

serem sujas da terra da lavoura.

O Mato Grosso era assim: frio no inverno, muito quente no verão,

quando andávamos descalças, só de calcinha de pano, como as bone-

cas. Subíamos em árvore, brincávamos de correr atrás dos pintinhos,

fazíamos bonecos de espiga de milho – isso mesmo, o próprio Viscon-

de de Sabugosa! A gente nem sabia que existia Monteiro Lobato, jamais

havíamos visto livros, mas era como se vivêssemos dentro de um!

Eu tinha essa coisa de ajudar muito na casa, me oferecia e, com isso,

acabava sendo mais solicitada. Cedo eu andava sozinha por todo lado.

Quando não tinha o que fazer, gostava de catar frutinhas silvestres,

nadar sozinha no açude, dar uma volta na bicicleta de alguém. Às

vezes tomava uma carreira de vaca, de touro, aquele silêncio de paz

interrompido pelo trote desvairado do gado.

Meu pai era lavrador, caçador, lenhador, construtor. Gostava de

segui-lo, vê-lo capinando, cuidando do milho, batendo o feijão, ensa-

cando a colheita. Me escondia e o ficava espiando de longe a conversar

com a terra: abria os braços, sujava as mãos e olhava para o céu, adi-

vinhando o tempo.

O mais divertido era quando batia o feijão com uma vara gigante,

na época da colheita. Soltava os grãos, depois pegava uma peneira

grande e os jogava para cima. Era um balé, as impurezas voavam, le-

ves, e eu as acompanhava subir, como se fossem para o céu, descansar

com os mortos. Os grãos de feijão caíam e os pedacinhos de nada

ficavam por ali, rodando, virando alguma coisa que não eram. Depois

eu trazia um saco de estopa e o ajudava a encher de feijão. Para finali-

zar, ele costurava com uma agulha grossa e levava para a tulha – onde

ficavam todos os sacos de colheita. Era nesse lugar que a gente gostava

de brincar quando chovia, subindo nos sacos, se escondendo.

Diariamente, ele tinha que trazer o almoço e o jantar. Trazia paca,

tatu, capivara. Às vezes, quando vinha um compadre, ele matava um

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leitão, depois colocava num jirau que havia construído e ia separando

as partes. Assim que o céu começava a escurecer, acendia uma fogueira

e nós, crianças, íamos cozinhando os pedaços do porco no fogo, co-

mendo uma carne meio viva, quase crua. Eu gostava tanto de comer

tatu, aquela carne escura e dura, que logo ele me apelidou de Tatupeba.

Quando acabava a refeição ainda havia porco para uma semana.

Minha mãe guardava a carne do suíno em sua própria banha, dentro

de uns latões grandes. Aquilo durava semanas. Também fazia lingui-

ça, havia sempre um cordel pendurado ao lado do fogão.

Aquela fogueira era a grande diversão da família. A gente não tinha

luz – apenas uma lamparina a querosene que fazia todo mundo acor-

dar com o nariz preto. A fogueira, depois que o sol se punha, era a

nossa luz, a nossa TV, o centro do universo. A gente pulava, queimava

galho, assava batata, brincava de sombra. Era lá que surgiam os causos

assustadores, contados por nossos pais ou pelos lavradores. A gente

acreditava em tudo: lobisomem, mula sem cabeça, boitatá. Era uma

gritaria quando, no meio de uma história, uma coruja piava ou um

bicho uivava. A gente corria para dentro de casa, trancava a tramela e

se escondia embaixo das cobertas.

Eu tinha 6 anos quando o caso mais sério aconteceu. Minha mãe

estava grávida do quinto filho, estávamos em volta da fogueira, um

vento gelado chegava do pantanal.

– Aí vem chuva – papai falou, apesar de as estrelas despontarem no céu.

Mamãe, com aquela barriga enorme, não se mexeu muito de onde

estava, uma manta estendida ao lado do fogo. Minhas irmãs mais no-

vas já cochilavam por ali, eu e Lúcia brincávamos de estourar milho.

De repente começou a tempestade, sem nos dar tempo de levantar.

Os pingos grossos de chuva apagaram o fogo, ficamos no breu e então

vimos os raios começarem a encher os céus. Por ali estavam espalha-

dos os talheres e pratos da refeição, além do facão que meu pai havia

usado para cortar a carne de paca.

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– Levantem, meninas, vamos, corram!

Estava escuro demais, tropecei, aterrissei com as mãos num galho

ainda quente da fogueira, queimei um pouco o joelho.

– Rápido, ora! – papai gritou, recolhendo o que podia.

Cabum!, mais um raio antes que nós conseguíssemos juntar as coi-

sas. Nica se agarrou a mim, chorando, assustada. Em segundos, está-

vamos molhadas.

– O raio, homem, o raio! – mamãe gritou.

Olhei para o alto: os raios realmente passavam rente a nós e àquela

terra elevada que ficava tão perto de Deus. Papai chutou o facão para

longe.

– Entra com as crianças! – ordenou.

Eles foram. Eu fiquei ali, paralisada, um pouco esquecida, um pou-

co escondida. A luz que vinha do céu, o tremor da terra quando as

nuvens se batiam, mais forte que carreira de boi.

Durante um tempo que me pareceu infinito, a tempestade me atin-

giu com uma energia que eu já não sabia se vinha de dentro ou de fora

de mim. O vento rugia, as luzes piscavam, as vozes gemiam. Eu sabia

o que estava acontecendo lá dentro: meus pais estavam tapando todas

as superfícies que refletiam qualquer tipo de luz. Para eles, facas, espe-

lhos e vidros atraíam os raios para dentro de casa. Eu, no entanto, me

oferecia, do lado de fora, para a luz. Não queria ser atingida: queria

ser contemplada. Eu sabia, timidamente, que estava no mundo para ir

longe. Para ousar. Para ajudar, transmitir, mudar.

A tempestade passou. Meus pais e minhas irmãs foram dormir sem

dar falta de mim, a casa sossegou. Fiquei ali, entre as mulas sem ca-

beça, os lobisomens, os sacis-pererês, envolta naquele cheiro doce de

terra molhada, sentindo minha pele sorver as gotas de chuva, os pés

enterrados na lama. Ali, naquele momento, eu perdi o medo de viver.

Page 19: Luiza trecho

coqueluche

minha mãe começou a ficar amarga com aquela vida: tinha vinte

e poucos anos, quatro filhos e se transformara num bicho do

mato. Meu pai já sentia os sonhos de se tornar um grande fazendei-

ro se despedaçando a cada novo filho que chegava. Foi nesse ambiente

que nasceu Luciano, o primeiro menino da casa. Um xodó, perfeitinho,

sempre disputado pelas irmãs. Eu não podia imaginar que o nascimento

daquele anjinho fosse desestruturar toda a minha família – para sempre.

Quando completou 9 meses, uma onda de coqueluche varreu a re-

gião. Apesar de não irmos para a escola, a bactéria viajou pelos ares

do cerrado, vitimando vizinhos, até chegar a nós. Toda a família caiu

doente. Começou como uma gripe inocente até que a casa tossia em

uníssono, noites sem fim de guinchos mecânicos. Nica e Luciano, os

caçulas, foram os que mais se abateram.

A gente morava, àquela altura, em outra fazenda, e passávamos pela

entressafra, de modo que mamãe não precisava acordar cedo para fa-

zer café da manhã para os lavradores. Em vez disso, saía de casa em

busca de ervas. “Fica de olho neles”, pedia para mim e para Lúcia,

enquanto se metia pelo mato. Fazia chás, xaropes, ervas maceradas,

cantava, rezava e chorava. Quando já não sabia o que fazer, passava a

ferro uma fraldinha para aquecer o peito deles.

Papai ficou desesperado; dias depois apareceu com uma carroça:

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– Põe os meninos aí que nós vamos pro hospital!

Ficamos em casa com a mulher de um compadre que morava na

região. Eu, Lúcia e Leid nos reunimos do lado de fora, pés descalços

na terra batida, resquícios da tosse, narizes escorrendo e medo.

– Vamos catar mais ervas – falei.

– Isso, vamos fazer xarope! – Leid concordou.

Nos dividimos: por um milagre da vida, nós três já sabíamos muito

bem quais eram as plantas proibidas e quais as permitidas.

No final da semana, meu pai voltou na mesma carroça.

– Cadê a mãe? – Leid correu para saber.

– Junta uma muda de roupa que vocês vão comigo! – pediu.

Meu coração foi à boca: coisa boa não era. Corri e calcei os chine-

los, amarrei todas as escovas de dentes numa trouxa feita com uma

camisa. Subi na carroça:

– Pai, cadê a Nica?

Ele não desviou o olhar do horizonte, se cruzasse os olhos com os

meus não seria capaz de esconder a seriedade da situação.

– No hospital, junto com o teu irmão.

Fomos para Itaporã, onde ficamos hospedadas na casa de outra co-

madre. O hospital ficava do outro lado da rua, mas não podíamos vi-

sitar. Angustiada, eu me distraía com a praça principal: as ruas e casas

enfileiradas, a calçada por onde poucos carros desfilavam, a igreja de

um lado, a escola no canto. Aquela foi a primeira cidade que eu co-

nheci e, apesar de seus parcos 20 mil habitantes, me parecia enorme.

Um domingo por mês íamos de carroça para a missa. E uma ou

duas vezes por ano, após a colheita, meu pai nos levava para fazer

compras. Cada uma ganhava um par de chinelos novo, um sabonete

cheiroso e um bonequinho chamado Para Pedro, que ficava com o

braço para cima, a perninha aberta e tinha uma fraldinha de plástico

quadriculada azul e vermelha. Acho que era para a gente treinar a

troca de fralda nos irmãos. O problema é que o boneco tinha os olhos

Page 21: Luiza trecho

coqueluche | 25

pintados com um esmalte muito vagabundo e no dia seguinte já co-

meçava a descascar e ficava sem olhos, parecendo uma assombração.

Também era durante essa visita anual a Itaporã que papai compra-

va um corte de pano para mamãe costurar nossas roupas. Sempre um

único tecido, o que fazia com que todo mundo ficasse igual. “Vai lá

e compra cinco metros para as meninas”, ela pedia. Ele voltava com

um rolo de algodão verde – sempre verde. “Verde de novo, homem?”

Papai dava de ombros – tinha uma fixação por verde.

Um pouco mais tarde, assim que nos mudamos para Itaporã, eu

decidi que não ia mais vestir só verde. Pedi a ele – implorei – que

comprasse um pedaço de tecido que tinha abacaxis desenhados. Que-

ria que minha mãe fizesse uma saia, coisa diferente. Eu adorava ficar

imaginando corte de roupa, cores e combinações. Mamãe, coitada, fez

o que pôde com o tecido de abacaxi: uma saia godê. E eu passei o resto

do ano sendo encarnada pelas irmãs: “Abacaxi, abacaxi!” Mas não me

importava, já sentia que estava à frente do tempo. Pouco depois, todo

mundo usava estampas frugais pelas ruas.

Era durante esse passeio anual a Itaporã que tirávamos a foto do

ano, o que rapidamente passou a ser um grande acontecimento para

mim. O fotógrafo vinha numa charretinha puxada por um cabrito

que batia com os cascos no chão de terra até alcançar a praça. A gen-

te formava uma fila e quase não se continha de tanta excitação. O

fotógrafo posicionava a câmera e sumia por trás da máquina, a gen-

te prendia a respiração e escutava aquele clique. Depois ele tirava o

cromo, feito com filme positivo, e o colocava, sem revelação alguma,

dentro de um monóculo de plástico colorido. Fechávamos um dos

olhos e direcionávamos o outro contra o sol. A pequena lente nos

aumentava, conforme distanciávamos do rosto o artefato colorido, e

os contornos iam ganhando vida, numa mágica fascinante. Eu me via

como uma imagem sacra, brilhando, não apenas pela luz que pene-

trava o fundo branco da geringonça, mas porque ali estava guardada

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uma mensagem cifrada que dizia que eu tinha uma missão. Uma coisa

que não sabia bem o que era, nem como aconteceria. Um sussurro que

falava que o meu futuro se confundia com a imagem do monóculo.

Óbvio que, aos 6 anos, tudo ainda era incipiente. Eu parecia uma

índia, franjinha e cabelo liso desgrenhado, pele escura de sol. Poderia

crescer para ser feia e descolada, ou bonita e acomodada. Mas já tinha,

dentro de mim, essa vontade de ser maior, de me projetar para fora de

uma caixinha colorida.

Foi justamente nessa época que comecei a reparar nas fotonovelas

que minha mãe ganhava das amigas, usadas e antigas. Eu virava as

folhas fascinada e, mesmo sem saber ler, entrava nas histórias e me via

como protagonista: a moça com a roupa bonita, brigando pelo amor

dos galãs por quem todas suspiravam. A heroína. Minhas irmãs en-

carnavam: “Tá no mundo da lua, Luiza?” E eu dava de ombros: “Ainda

vou sair numa dessas revistas!”

Logo Nica teve alta, foi ficar conosco na casa da comadre. Peguei-

-a no colo, estava magrinha, parecia pesar metade de quando havia

partido. Minha mãe passava o tempo todo no hospital e, quando a

via, me assustava: tinha olheiras de culpa e o corpo curvado. Seu leite

estava secando e Luciano não melhorava.

Um dia, acordei com seu choro atrás da porta. Ela e papai abraça-

dos, talvez o último abraço real que eu os veria dar. Ou talvez aquele

já fosse apenas um abraço de dor. À tarde, havia um caixão muito

pequeno em cima da mesa. Luciano tinha morrido.

“Broncopneumonia”, um adulto falou. Não entendi o que aquela

palavra queria dizer, mas com certeza era uma doença que tirava a cor

da pessoa. Me aproximei do caixão – eu já havia visto alguns caixões,

porque enterros eram eventos recorrentes. Mas jamais deparara com

um rosto tão conhecido petrificado. Coqueluche e broncopneumonia.

Poucos meses antes, um bebê da vizinhança havia morrido enfor-

cado com o cordão do capuz de crochê. Lembro que aquilo causara

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coqueluche | 27

desconforto entre os adultos, e minha mãe, muito hábil, havia justi-

ficado o caso para mostrar que todos nós estávamos a salvo: “O bebê

tomou leite com manga, foi por isso que morreu.” E ponto final. Mas

Luciano jamais havia misturado aquelas duas coisas tão venenosas:

leite e manga. O que seriam, então, coqueluche e broncopneumonia?

Antes de meu irmão morrer, enterros eram ótimos para brincar e

comer. Eu adorava quando meus pais falavam “fulano morreu”. Pula-

va de alegria com as irmãs – a farra estava garantida! Aos casamentos

nunca íamos, porque não possuíamos roupa chique. Mas aos funerais

íamos de chinelo de dedo e vestido velho! Sempre que eu estava ente-

diada com a vida rural, me aproximava da minha mãe e perguntava:

“Quando tem funeral, mãe?” E ela ria: “Como vou saber, Luiza, quan-

do alguém vai morrer?”

Nunca houve proibição de ver o morto, nem de acompanhar ve-

lório. Ao contrário, aquilo era mostrado para as crianças com uma

naturalidade tribal. “Faz parte da vida”, os adultos diziam. Certa vez,

um vizinho morreu num acidente de carro e o colocaram na mesa,

todo arrebentado, com sangue no rosto. A gente brincou ao seu lado

sem achar que era um monstro, sem ter pesadelos. Sentiu pena dele

apenas por ter feito a coisa errada: dirigiu e olhou o retrovisor du-

rante uma tempestade. Era sempre assim: tomou banho menstruada;

dormiu com os pés virados para a porta; viu um gato preto passar e

não isolou três vezes na madeira; passou por baixo de uma escada.

O fato é que, depois de morto, comemorava-se e muito a vida do

sujeito. Se o homem fosse importante e mais velho, matava-se até lei-

tão. Era comida para dar dor de barriga: os vizinhos das bandas le-

vavam bolos, rapadura, pamonha; as mulheres faziam café fraco e as

crianças se juntavam com uma liberdade ímpar, pois todos estavam

ocupados demais para prestar atenção. Amarelinha, bolinha, escon-

de-esconde, bexiga de galinha: isso era o que acontecia nos velórios.

Só que no enterro do meu irmão a gente não brincou. Meu pai

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bebeu muito, lembro que seus olhos ardiam de álcool, enquanto os

de minha mãe sangravam de tanto chorar. O cortejo partiu e nós fica-

mos com a comadre, olhando a fartura de comida espalhada pela sala.

Pela primeira vez, ninguém teve fome.

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vou te matar!

Wanderley nasceu pouco tempo após a morte de Luciano,

quando meu pai já ficava mais na cidade do que em casa. Co-

meçou com a desculpa de escutar os jogos da Seleção na Copa do

México de 1970, junto com os amigos e um radinho de pilha do bar

da cidade. Mas, mesmo depois de o Brasil ganhar seu tricampeonato,

todo dia era dia de comemorar: “Brasiiiiiiillll! Pelé, Jairizinho, Tostão,

Rivellino e todos os meninos do Zagallo. Um trago lá, outro aqui para

cada um deles!” E assim fomos ficando cada vez mais sozinhos no

interior: minha mãe, um bebê e quatro crianças que não sabiam ler

nem escrever. Que jamais haviam visto uma geladeira ou uma pia,

uma televisão ou um colchão de molas, uma lâmpada incandescente

ou um chuveiro.

Um dia meu pai chegou em casa anunciando: era hora de nos mu-

darmos para Itaporã – meu sonho! Mas o que eu nem imaginava era

o motivo real por trás dessa mudança: o desejo – e a necessidade – que

ele já tinha de ficar perto do bar.

Para mamãe, a desculpa perfeita era que estava mais do que na hora

de estudarmos. No fundo, a verdade era que ela precisava sair da-

quele isolamento – sozinha, com a gente e um marido que se torna-

va cada vez mais ausente e violento, era perigoso demais. Lembro de

uma discussão que os dois tiveram. “Eu vou te matar!”, ele falou, facão

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em punho, pela primeira vez atentando contra a dignidade da minha

mãe. Primeira de muitas, inúmeras, tantas que aquilo virou um jar-

gão. Naquele dia, entretanto, a coisa soou estranha para todos nós, o

impensável havia sido dito. Mamãe correu para fora de casa, afoita,

nos deixando para trás. Foi se esconder numa plantação de mandioca,

onde podia fantasiar-se de agulha no palheiro.

O dia caiu e ela não voltou. Meu pai ficou na frente de casa, garrafa

de aguardente na mão, passos largos de um lado para outro, como um

leão enjaulado. Já não conseguia enxergar o sol que rasgava aquela

terra, abençoando cada torrão, amaciando a passagem da água limpa

pelos rios, alimentando a copa das árvores e as plantações coloridas.

O que ele não percebia era a própria liberdade. Papai estava preso

dentro de si, amarrado por uma espécie de infelicidade que acomete

os adultos, gerada precisamente pelo abismo entre grandes expectati-

vas e realidades duras.

Ao emigrar para o Mato Grosso, seus sonhos eram de fazendeiro,

boiadeiro, dono de latifúndio. Ele se via sentado numa varanda larga

que rodeava a casa, com redes e cadeiras de balanço, um cigarro na

ponta dos lábios, as botas sujas de terra e as crianças correndo onde a

vista podia alcançar. Via-se bem servido pela linda mulher que havia

conquistado seu coração, comida farta, louça de porcelana, vinho de

marca.

Quando abria os olhos, estava numa casa de pau a pique, cinco fi-

lhos para alimentar, uma esposa que não enxergava o próprio reflexo

num espelho e um salário miserável para trabalhar de sol a sol. Então

agarrava sua garrafa e deixava as frustrações apoiadas sobre as nos-

sas costas, uma chibata batendo constantemente no dorso curvado de

mamãe, que encolhia-se ainda mais, na pura esperança de virar – ela

também – uma criança que pudesse ser colocada no colo e cuidada.

– Vou levar um prato de comida para ela – Leid falou, à noite, após

algumas horas de desaparecimento da mamãe.

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vou te matar! | 31

– Não, eu vou! – ofereci.

– Nem pensar, você fica aqui tomando conta da situação, Luiza, que

o pai te ouve melhor! – Lúcia completou.

Era verdade: por algum motivo inexplicável, ele me respeitava e

escutava mais do que às outras.

Leid partiu escondida, enquanto eu fui para a porta de casa, vigiar

papai, que tinha adormecido encostado numa tulha de milho. Lá den-

tro, Lúcia dava mamadeira para Wanderley enquanto Nica brincava

de riscar a parede do fogão com carvão.

Mamãe e Leid não voltaram, dormiram no meio do mandiocal, ao

sereno iluminado pela lua minguante. Papai ficou onde estava, torto

demais para levantar. Quando fui me deitar com os outros, lá estava

a prova do crime: o colchão, feito com tanto cuidado com folhas de

bananeiras, tinha um buraco de facão no meio. Eu e Lúcia nos entreo-

lhamos, apavoradas: ele realmente havia tentado matar a nossa mãe!

Não lembro de dormir aquela noite... Havia algo de incômodo de-

mais no ar. Não era palpável, sequer podia-se falar a respeito. Era o

terrível sentimento de que a felicidade se afastava, como um rio que

seca, expondo o leito rachado.

No dia seguinte, minha irmã voltou antes de mamãe. Papai havia

saído para trabalhar.

– Ele rasgou o colchão, Leid! – Lúcia exclamou.

– Não, ele tentou foi rasgar o rosto da mãe. Só que ela colocou o

colchão na frente para se proteger – ela retificou, compartilhando a

versão oficial.

No dia seguinte à noite do facão, uma comadre tinha ido nos visi-

tar. Durante horas elas haviam conversado em tom baixo, deixando

bem claro que o assunto era proibido. Eu, sempre curiosa, tinha man-

tido as orelhas em pé e escutado atrás da porta: elas estavam falando

sobre matrícula na escola. Foi o bastante para que eu fosse para o

meio do mato sonhar com a vida na cidade grande, com o uniforme

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escolar, com o poste de luz, com as fotonovelas que eram vendidas no

mercadinho, com os ônibus grandes que partiam dali uma vez por

semana para o mundo.

Duas semanas mais tarde, estávamos todos jantando em volta do

fogão. A comida fumegante, em cima do tampo de madeira, não dis-

sipava o medo que nos envolvia. Desde a morte de Luciano, meu pai,

sempre irritadíssimo, punha uma violência desnecessária em cada

gesto natural. Mamãe ainda não tinha voltado a falar com ele – mais

fechada do que nunca, nos dizia, com o olhar, da urgência e do deses-

pero que tinha em sair dali.

A única coisa que eu e meus irmãos desejávamos era que algum

tipo de paz voltasse a reinar. A refeição transcorria em silêncio quan-

do meu pai jogou seu prato cheio no chão, espatifando-o. Wanderley,

que dormia no quarto, acordou com o susto; eu corri para acalmá-lo.

Nica também se pôs a chorar, e Lúcia a levou para dentro. Ficamos

as duas dentro do quarto, tentando fingir que nada tinha acontecido,

que nada estava por vir, apenas com a boba ilusão de que iríamos

acalmar os pequenos e a paz voltaria.

Leid permaneceu à mesa. Minha mãe saiu, cruzou o pequeno cô-

modo que servia de sala e cozinha e fechou a porta. Foi então que

meu pai pisou no prato já quebrado e passou a chorar com uma raiva

crescente. Eu e Lúcia, cada uma com um irmão no colo, ficamos pa-

ralisadas ao ouvir o choro abafado de Leid juntar-se ao dele. Estica-

mos o pescoço para ver o que era, e foi então que testemunhamos a

cena mais chocante de nossa infância: meu pai de quatro, comendo

a comida do chão junto com os cacos de vidro do prato quebrado.

Leid soluçava cada vez que meu pai grunhia ao mastigar os pequenos

pedaços que lhe cortavam a boca. Paralisada, não conseguia se mover

da mesa. Viu que nós duas observávamos, pelas costas de meu pai, seu

ato de loucura.

Alguém tinha que fazer alguma coisa. Coloquei Wanderley no ber-

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vou te matar! | 33

ço, mas quando cheguei à sala Leid já estava ajoelhada ao lado de pa-

pai, alimentando-o como se fosse uma criança com a comida de seu

próprio prato. Peguei a vassoura para varrer os cacos misturados à

comida. Havia um rastro de sangue desenhado. O sangue do ódio que

o corroía, como a ferrugem num navio naufragado.

Minha mãe dormiu novamente na plantação de mandioca. Papai

arrastou-se para a nossa cama, onde adormeceu com os lábios ta-

lhados e inchados. No dia seguinte, deixamos os campos de minha

infância e fomos morar em Itaporã.