LUKÁCS E ‘O FENÔMENO DA...

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LUKÁCS E ‘O FENÔMENO DA REIFICAÇÃO’ 1 Rogério Castro 2 O que esse presente texto tentará mostrar, nessas breves linhas, é o primeiro dos três tópicos do capítulo “A reificação e a consciência do proletariado”, da obra História e Consciência de Classe (1923), de autoria do filósofo húngaro Georg Lukács, publicada em 1923. Não é pretensão deste autor, até pela limitação imposta pelo tipo de comentário que pretende fazer, estender-se e, logicamente, desconsiderar, o contexto no qual esta obra – que dispensa longos comentários a despeito de sua repercussão ao longo do século XX e até os dias de hoje – surge dentro do próprio processo evolutivo do seu autor. Apenas a título de registro, esse texto foi objeto de violentas refregas teóricas, seu autor teve imputado para si a fama de hegeliano, revisionista, dentre outras pechas que viria culminar na inclusão dessa obra na lista dos livros malditos do marxismo pela Internacional Comunista (Komintern) em 1924, um ano após a sua publicação 3 . Por outro lado, não menos importante frisar, sempre sob a ótica do desenvolvimento intelectual do seu autor, que ele próprio – em momentos distintos e por razões igualmente diferenciadas – não apenas uma vez se lançou publicamente para apontar equívocos que ele – ao longo de sua evolução – já não mais poderia deixar de considerar. É bom que se diga também que nem todas dessas suas autocríticas, como a de 1929, foram sinceras, diferente, por exemplo, da de 1967, onde reconhece inclusive a do final dos anos 20, quando de modo sistemático vai apontar os agora então equívocos contidos em sua discussão à época, principalmente os referentes à herança hegeliana, como por exemplo, como irá anotar o mesmo, a não tomada do trabalho como ponto central na análise dos fenômenos econômicos, a preponderância da noção (hegeliana) de sujeito-objeto idênticos 4 . 1 Esse trabalho foi apresentado como requisito de conclusão da disciplina “Tópicos em teoria social”, ministrada pelo professor José Paulo Netto, junto a Escola de Serviço Social do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 2 É aluno do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas – UFAL; em 2009.1, foi bolsista do PROCAD e aluno externo do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. É membro do Grupo de Pesquisa “Lukács e Mészáros: fundamentos ontológicos da sociabilidade burguesa”. 3 Para conhecer um pouco mais do contexto onde esta obra emerge, bem como alguns dos seus impactos, consultar Netto (1983; 1981), Konder (1980), Lukács (1999), Löwy (1998), etc. 4 Ver o Prefácio de 1967 em Lukács (2003). 1

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LUKÁCS E ‘O FENÔMENO DA REIFICAÇÃO’1

Rogério Castro2

O que esse presente texto tentará mostrar, nessas breves linhas, é o primeiro dos

três tópicos do capítulo “A reificação e a consciência do proletariado”, da obra História e

Consciência de Classe (1923), de autoria do filósofo húngaro Georg Lukács, publicada em

1923.

Não é pretensão deste autor, até pela limitação imposta pelo tipo de comentário que

pretende fazer, estender-se e, logicamente, desconsiderar, o contexto no qual esta obra –

que dispensa longos comentários a despeito de sua repercussão ao longo do século XX e

até os dias de hoje – surge dentro do próprio processo evolutivo do seu autor. Apenas a

título de registro, esse texto foi objeto de violentas refregas teóricas, seu autor teve

imputado para si a fama de hegeliano, revisionista, dentre outras pechas que viria culminar

na inclusão dessa obra na lista dos livros malditos do marxismo pela Internacional

Comunista (Komintern) em 1924, um ano após a sua publicação3. Por outro lado, não

menos importante frisar, sempre sob a ótica do desenvolvimento intelectual do seu autor,

que ele próprio – em momentos distintos e por razões igualmente diferenciadas – não

apenas uma vez se lançou publicamente para apontar equívocos que ele – ao longo de sua

evolução – já não mais poderia deixar de considerar. É bom que se diga também que nem

todas dessas suas autocríticas, como a de 1929, foram sinceras, diferente, por exemplo, da

de 1967, onde reconhece inclusive a do final dos anos 20, quando de modo sistemático vai

apontar os agora então equívocos contidos em sua discussão à época, principalmente os

referentes à herança hegeliana, como por exemplo, como irá anotar o mesmo, a não tomada

do trabalho como ponto central na análise dos fenômenos econômicos, a preponderância da

noção (hegeliana) de sujeito-objeto idênticos4.

1 Esse trabalho foi apresentado como requisito de conclusão da disciplina “Tópicos em teoria social”, ministrada pelo professor José Paulo Netto, junto a Escola de Serviço Social do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 2 É aluno do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas – UFAL; em 2009.1, foi bolsista do PROCAD e aluno externo do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ. É membro do Grupo de Pesquisa “Lukács e Mészáros: fundamentos ontológicos da sociabilidade burguesa”.3 Para conhecer um pouco mais do contexto onde esta obra emerge, bem como alguns dos seus impactos, consultar Netto (1983; 1981), Konder (1980), Lukács (1999), Löwy (1998), etc. 4 Ver o Prefácio de 1967 em Lukács (2003).

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Dito isto, a escolha pelo texto da reificação se explica, ressalvados os limites

intransponíveis decorrentes da interpretação hegeliana da relação objetivação-alienação no

plano da subjetividade, e que inclusive mais tarde vão fazer ruir, de acordo com o próprio

Lukács, os fundamentos de História e Consciência de Classe, pelo fato de ser aquela

redação, à época, um aspecto do jovem Marx que só virá a ser conhecido nos anos 30, com

a divulgação dos Manuscritos de Paris (1844)5. Ele realiza essa análise a partir da

abordagem que irá fazer do “fetiche” da Mercadoria presente em “O Capital”. A influência

de tal texto vai remeter a toda uma geração de críticos da Escola de Frankfurt, bem como a

outros filósofos, interessados em compreender o fenômeno da reificação, bem como os

seus impactos na consciência6.

Lukács está interessado em compreender os efeitos do fenômeno da reificação na

consciência do proletariado. Logo de largada, reportando-se a Marx, o filósofo húngaro vai

afirmar que não há como desvendar os problemas ocasionados pela instauração do modo

capitalista de produção, em última análise, sem compreender de modo fundamental a

estrutura, ou como diz ele mesmo, o enigma da mercadoria. E sendo entendida não como

problema particular da sociedade capitalista, e sim como problema central. Mas é aqui

também logo no começo de sua exposição que estarão reluzentes os sinais do que ele mais

tarde irá renegar e apontar o núcleo do seu equívoco. Isto porque, conforme o texto de

1923, estaria na estrutura da relação mercantil, e não no trabalho, “o protótipo de todas as

formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na

sociedade burguesa” (LUKÁCS, 2003, p. 193). Vejamos o que diz o próprio autor no

prefácio de 67.

(...) esse desvio [do marxismo] exerce uma reação imediata sobre o conceito de economia já elaborado e que, sob o aspecto metodológico, devia naturalmente constituir o ponto central. (...) Procura-se, é verdade, tornar compreensíveis todos os fenômenos ideológicos a partir de sua base econômica, mas a economia torna-se estreita quando se elimina dela a categoria marxista fundamental: o trabalho como mediador do metabolismo da sociedade com a natureza (idem, p. 15).

Lukács delimita de início o problema a que vai se deter ao longo da investigação,

que é o de compreender os problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da

5 “Somente quando as formas objetificadas [práxis] assumem tais funções [formas de expressão objetivadas pelo pensamento e sentimento humanos], que colocam a essência do homem em oposição ao seu ser, subjugam, deturpam e desfiguram a essência humana pelo seu ser social, surgem a relação objetivamente social da alienação e, como conseqüência necessária, todos os sinais subjetivos de alienação interna” (idem, p. 27).6 Cf. Konder (1980).

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mercadoria em sua forma objetiva e o comportamento do sujeito a ela submetido.

Afirmando ser esta uma forma específica (a fetichista) da relação entre os homens do

mundo moderno, Lukács, sempre se reportando a Marx, vai diferenciar estas sociedades

modernas das suas predecessoras – onde as trocas também existiam – pelo aspecto

qualitativo que permeava as suas diferentes relações de troca, a saber, a forma valor de

troca. Aqui, o pensamento reificado do mundo burguês, já não consegue prospectar esta

relação para além do aspecto quantitativo. Em “Para a Crítica da Economia Política”,

segundo Lukács, Marx já apontava quanto a essa diferença fundamental que vai se

verificar entre estas duas formas de proceder o intercâmbio orgânico da sociedade com a

natureza.

A troca direta, forma natural do processo de intercâmbio, representa muito mais a transformação inicial dos valores de uso em mercadorias do que a transformação das mercadorias em dinheiro. O valor de troca não tem uma forma independente, mas ainda está ligado diretamente ao valor de uso. Isso se mostra de duas maneiras. Em toda sua organização, a própria produção está voltada para o valor de uso, e não para o valor de troca; e é somente por exceder a quantidade necessária ao consumo que os valores de uso deixam de ser valores de uso e se tornam meios de troca, mercadorias. Por outro lado, eles só se tornam mercadorias dentro dos limites do valor de uso imediato, ainda que separados em pólos, de tal maneira que as mercadorias a serem trocadas devem ser valores de uso para os dois possuidores, e cada uma valor de uso para quem não a possui. De fato, o processo de troca de mercadorias não aparece originalmente no seio das comunidades naturais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas fronteiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras comunidades. Aqui começa a troca que, em seguida, repercute no interior da comunidade, na qual ela atua de maneira desagregadora (Marx, K. Zur Kritik der politischen Ökonomie, MEW 13, pp-35-6 apud LUKÁCS, 2003, p. 195-6)

Ou seja, o valor de troca, a “objetividade fantasmagórica” a que Marx vai se referir

em “O Capital”, tem sua única forma de expressão possível em seu portador material – o

valor de uso. Com a produção do excedente, a parte que fica subtraídos os meios de

produção e de subsistência consumidos (de quem a produziu) na relação que a gerou,

torna-se possível o intercâmbio pela troca, justamente a do excedente, e só aqui a forma

valor pode adquirir sua “feição” peculiar de “objetividade fantasmagórica”7. Aqui pode-se

notar o contra-senso produzido pela ordem burguesa que é o de produzir, ao mesmo tempo,

com o desenvolvimento das forças produtivas, o excedente e a escassez8.

7 Ver Marx, K. O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultual, 1983; e Marx, K. Salário, Preço e Lucro. São Paulo: Abril Cultural, 1982.8 “Se há um aumento na força produtiva, haverá um incremento maior na produção de valores de uso e uma diminuição na grandeza desses valores, enquanto se houver uma diminuição, o que ocorre é o inverso, uma diminuição da produção de valores de uso e um aumento do valor de suas grandezas (...) o que passa a

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Para se tornar uma forma universal, a mercadoria precisa penetrar na estrutura da

sociedade, remodelar as suas manifestações vitais, torná-las reflexos de sua imagem, para

então, e somente, tornar-se uma forma de conformação social. Citando Marx novamente

como exemplo, Lukács demonstra como o capital comercial, ao longo do seu

desenvolvimento, vai conformando as trocas, tornando-as regular, sempre reduzindo-as a

um terceiro elemento, num processo que vai se desenrolando até essa figura mediadora que

é a do comerciante estiver completamente consolidada; ele, como coloca Marx, é apenas

um mediador de extremos que não domina (o produtor e o consumidor) e de condições que

não cria. Ainda citando Marx, nas sociedades primitivas, as mistificações econômicas

predominam onde há o dinheiro e o capital lucrativo, enquanto sequer tomam forma onde a

produção é voltada para as necessidades e tem no valor de uso o critério único e exclusivo

para o consumo. Também estão excluídas das sociedades clássicas e medievais baseadas

na servidão e na escravidão. Nessas sociedades, embora as condições de produção

estivessem controladas, essa forma de dominação aqui é visível, porém ocultada pelas

relações sociais de dominação e servidão estabelecidas por estas mesmas sociedades.

Com a sua universalização, a forma mercadoria pode então ser compreendida de

modo mais autêntico, os aspectos mais decisivos da reificação surgidos do

desenvolvimento da relação mercantil assumem contornos mais firmes (proporcionando,

por exemplo, o desenvolvimento da sociedade), bem como tornam-se mais favoráveis as

condições para a compreensão dos seus efeitos na consciência – é claro que em posição

alheia ao próprio fenômeno da reificação9. A libertação do estado de “segunda natureza”

depende, dessa maneira, da insubordinação contra as forças pelas quais a reificação se

sustenta.

O caráter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos do produto do trabalho, como qualidades sociais naturais dessas coisas e, conseqüentemente, também a relação social dos produtores com o conjunto do trabalho como uma relação social de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qüiproquó, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais [...] É apenas a

determinar o usufruto comunitário passa a ser a relação abstrata surgida dessa forma de trabalho [ou seja, o mercado]” (CASTRO, R., 2009, p.17). Isso porque “o mesmo trabalho proporciona, portanto, nos mesmos espaços de tempo, sempre a mesma grandeza de valor, qualquer que seja a mudança da força produtiva. Mas ele fornece, no mesmo espaço de tempo, quantidades diferentes de valores de uso; mais, quando a força produtiva sobe, e menos, quando ela cai” (Marx, 1983, p. 52-3). 9 Aqui, mais uma vez, nota-se o papel “exacerbado” conferido a relação mercantil em detrimento da alienação na base objetiva. Resultado do entendimento ainda desfocado do lugar ocupado pelo trabalho na determinação do fenômeno.

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relação social determinada dos próprios homens que assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas10.

Marx está procurando ser o mais claro possível quando afirma que é a relação

estabelecida pelos homens, e não pelas coisas produzidas por eles, a definidora das

próprias relações entre os mesmos. Dito de outro modo e sem querer ser tautológico, não

são outras leis que não as definidas pelos próprios homens as que vão conduzir suas

relações, bem como não são as coisas resultantes de sua atividade portadoras de vontade e

condutoras de suas relações.

Lukács vai chamar a atenção nesse ponto para o fato de o homem, dessa relação

estrutural, ser confrontado pela sua atividade, e dessa relação que se estabelece entre ele e

o seu trabalho emergir leis estranhas que passarão a controlar todo o processo de produção,

atuando tanto em sua base objetiva quanto na sua base subjetiva. Na primeira, vai afirmar,

é como se o mundo de coisas surgido da atividade humana se descolasse do seu criador e,

já na forma de criatura, passasse a lhe dominar, criando leis independentemente dele e

assumindo um papel de regulador das relações de troca. No segundo momento, do ponto de

vista do resultado da atividade já em forma objetiva em relação ao seu produtor,

exatamente quando ela estiver completamente concluída, isto é, pronta para ser consumida,

esta é submetida a uma objetividade estranha aos homens, “de leis sociais naturais, e deve

executar seus movimentos de maneira tão independente dos homens como qualquer bem

destinado à satisfação de necessidades que se tornou artigo de consumo” (idem, p. 199-

200). Ou seja, é o reino da mercadoria.

Situando o momento de generalização da mercadoria a partir do momento em que a

força de trabalho se converte, para seu portador, em mercadoria, isto é, o processo que lhe

gera não está mais sob o controle de quem lhe dá essa forma final e acabada, o autor de

História e Consciência de Classe vai afirmar que essa forma mercantil vai de modo

incondicional determinar uma abstração do trabalho humano que será objetivado nas

mercadorias. Isso porque, continua, a igualdade formal entre produtos igualmente

diferentes só pode ser obtida se for baseada, em sua essência, no que há de igual entre eles

que – não há outro modo de ser – só pode ser o trabalho humano, e aqui, sob a forma

abstrata. Essa relação, dada na objetividade, na subjetividade será tida com a redutibilidade

desses dois resultados da atividade humana a um denominador comum, que passará a

estabelecer uma relação de equivalência formal entre ambas realizações humanas (os

10 Kapital I, MEW 23, p. 85 apud LUKÁCS, 2003, p. 198-9.

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produtos do trabalho), isto é, o tempo socialmente necessário, mensurável e tido cada vez

mais com precisão, e que será, como assinala o próprio Lukács, “o princípio real do

processo efetivo de produção de mercadorias” (idem, p.200). E é somente a partir daí, no

curso de sua evolução, da produção capitalista, que (o trabalho abstrato) passa a influenciar

a forma de objetivação (tanto dos sujeitos, quanto dos objetos), a relação da sociedade com

a natureza, bem como a relação dos homens entre eles.

Seguindo o referencial de Marx, Lukács vai assinalar a perda das qualidades

individuais, humanas, do trabalhador no desenvolvimento do processo de trabalho, desde o

artesanato, passando pela cooperação, manufatura, até chegar na grande indústria. Ao

longo desse processo, ocorre uma crescente racionalização das atividades, assim como a

fragmentação é bastante acentuada11, eliminando, por conseqüência, o contato do

trabalhador com o produto final do seu trabalho. Aqui nesse ponto, Lukács cita Taylor para

se referir, no avanço do processo de mecanização e racionalização, a imputação de fora

para dentro do tempo socialmente necessário, deixando a média temporal de ser

estabelecida pelos executores do processo de trabalho – embora calculado desde então com

um certo nível de racionalidade – e passando, dessa forma, da época empírica para a era da

gerência científica. Vejamos nas palavras de Lukács a que ponto chega a racionalização do

cálculo advinda do taylorismo.

Com a moderna análise “psicológica” do processo de trabalho (sistema de Taylor), essa mecanização racional penetra até na “alma” do trabalhador: inclusive suas qualidades psicológicas são separadas do conjunto de sua personalidade e são objetivadas em relação a esta última, para poderem ser integradas em sistemas especiais e racionais e reconduzidas ao conceito calculador (idem, p. 202).

Ou seja, essas qualidades passam a ser “re”-utilizadas num sentido agora que é o de

se obter um melhor aproveitamento do cálculo racional. A ruptura da unidade orgânica do

produto, aqui chamada por Lukács de irracional e que é o mesmo que dizer em seu

processo de confecção, e a sua substituição pela reunião de sistemas parciais

racionalizados, vai se dá pela exigência concreta da racionalização pela especialização. É

claro que isso ocorre partindo-se do princípio de se atingir uma racionalização cada vez

maior, de se ter resultados e cálculos cada vez mais antecipadamente estabelecidos, ou

seja, uma previsão maior e cada vez mais precisa de todo o processo de trabalho que

11 É interessante observar a consideração de Lukács a esse respeito, quando afirma serem “operações parciais abstratamente racionais” (idem, p.201), processo esse que viria culminar mais tarde numa completa mecanização do homem em sua atividade cotidiana de trabalho.

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culmina com a ruptura com a tradicional forma de se produzir, desfazendo-se a unidade

orgânica dos produtos acabados, terminando com o desenvolvimento da especialização ou

da divisão social do trabalho. “O produto que forma uma unidade, como objeto do

processo de trabalho, desaparece” (idem, p. 202). A unidade passa, então, a ser

determinada pelo cálculo; as atividades ligadas ao processo que vão conferir a unidade

passam a compô-la de modo arbitrário. Observe o trecho a seguir:

A análise racional e por cálculo do processo de trabalho aniquila a necessidade orgânica das operações parciais que se relacionam umas com as outras e que se ligam ao produto formando uma unidade. A unidade do produto como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso (idem, p. 203).

Essa é uma conseqüência inevitável do parcelamento da produção decorrente da

racionalização determinada pela precisão do cálculo. O longo percurso que o produto

percorre, desde a sua transformação primária na natureza, a autonomização de cada uma

das etapas do processo de trabalho, finalmente até a sua conformação enquanto unidade, na

verdade, nesse seu caminho, acaba muitas vezes por perder esse seu sentido de unidade.

Isso, na visão de Lukács, com a capitalização radical da sociedade, vai gerar, dentre outras

conseqüências, a relativização do caráter mercantil de um produto em suas diferentes

etapas de produção, ocasionando também, para não dizer agravando, a separação da

produção de um valor de uso no tempo e no espaço.

Mas esse processo de fragmentação, além do objeto da produção, não deixará

também o sujeito imune às suas repercussões. Pelo contrário. A fragmentação do objeto

necessariamente implicará igualmente na fragmentação do sujeito que irá se encarregar

pelas variadas etapas parcelares que irão originar o produto unitário. O sujeito, no processo

de trabalho, terá completamente suas propriedades e particularidades humanas subjugadas

às leis de um processo de produção cada vez mais mecanizado e que ao seu estilo deverá

ele incondicionalmente se submeter.

O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter (idem, p. 203-4).

Ele realmente é efetivamente incorporado a esse processo e sua atitude em relação a

ele passa ser a de um ser contemplativo, mas a de um ser contemplativo não num sentido

de “contemplá-lo” somente, mas também no sentido de contentar-se, de simplesmente

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aceitar estar abaixo das leis que a ele superiores estão, quando na verdade apenas se lhes

superpõem12.

Outra mudança que ocorre, independentemente da consciência do sujeito que

executa o trabalho, observa Lukács, é a da relação deste concernente ao tempo e ao espaço.

Essas duas categorias “fundamentais da atitude imediata dos homens em relação ao

mundo”13 se reduzem a um mesmo denominador comum, perdendo o tempo o seu caráter

qualitativo, e tornando-se, pelo critério da mensuração, cada vez mais, e somente,

quantitativo. Lukács quer salientar aqui a determinação que acaba sendo imposta pelo

tempo de se ter em iguais intervalos mesmas quantidades de trabalho realizado, pelo

critério da produção racionalizada. Assim, o tempo acaba se tornando um espaço, o

trabalho realizado algo despersonalizado.

Nesse ambiente em que o tempo é abstrato, minuciosamente mensurável e transformado em espaço físico, um ambiente que constitui, ao mesmo tempo, a condição e a conseqüência da produção especializada e fragmentada, no âmbito científico e mecânico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser igualmente fragmentados de modo racional (idem, p. 205).

Esse trabalho fragmentado e mecânico que vai caracterizar a atividade do sujeito do

trabalho será ao longo do seu processo de desenvolvimento transformado em realidade

cotidiana intransponível, e a sua personalidade, como dirá Lukács, não terá para este

nenhuma importância substancial do ponto de vista do sistema racionalizado de produção;

será (a personalidade) um espectador impotente em relação ao que ocorre sobre a sua

própria existência, “parcela isolada e integrada a um sistema estranho”14. Estará rompido

também os elos que aquela produção aqui chamada de “orgânica” mantinha em relação aos

sujeitos do trabalho, sendo agora essa produção caracterizada pela desintegração mecânica.

O que está se querendo dizer aqui é que com a transformação da força de trabalho

em mercadoria (momento da despersonalização), o aumento da necessidade da precisão

12 Aqui Lukács, inspirado em um trecho de “O Capital”, não quer, de modo algum, suscitar uma postura inativa do sujeito. Pelo contrário. O que ele está querendo destacar é exatamente o fato dele perder a opção, para não dizer o controle, e ser completamente designado pela máquina. Considera ele, citando Marx, essa contemplação muito mais enervante do que a atividade artesanal, por exemplo. Ver nota de rodapé nº 11. Vale ressaltar também a diferença que o autor faz na nota anterior ao admitir uma situação dessas muito mais de um ponto de vista individual, enquanto efetivamente aparência, do que de um ponto de vista de uma consciência coletiva enquanto classe; dirá ele, aliás, “que essa submissão foi o produto de uma longa luta que recomeça – num nível mais elevado e com novas armas – com a organização do proletariado em classe”. (id., p. 204).13 id. ibidem, p.204.14 id. ibidem, p. 205.

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temporal, do cálculo racional, o advento da desnecessidade da feitura “orgânica” do objeto

enquanto unidade (a fragmentação), e sua resultante necessária, a fragmentação da

produção (tanto do sujeito quanto do objeto), a mudança na relação com o tempo, a

subordinação às leis estranhas juntamente com a soberania das máquinas sobre os sujeitos

do trabalho, enfim, todo esse quadro produtivo que vai caracterizar a produção capitalista

emergente, a mecanização da produção, vai fazer “deles [os trabalhadores] átomos isolados

e abstratos, que a realização do seu trabalho não reúne mais de maneira imediata e orgânica

e cuja coesão é (...) mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo ao qual

estão integrados” (idem, p. 206)15.

Chegou a hora de explorar um pouco mais essas leis no sentido de estabelecer

alguns dos seus principais efeitos na consciência do proletariado. O desenvolvimento do

processo de trabalho baseado na racionalização mecanizada é baseado a partir da

possibilidade de exploração dada com o chamado “trabalho livre”16. E é somente com o

desenvolvimento das relações de troca de mercadorias, inclusive a única que gera “mais-

valor”, que é a força de trabalho, que a sociedade vai em certo sentido assimilar essa forma

de intercâmbio orgânico com a natureza e o fenômeno da reificação aqui vai atingir graus

elevados do seu desenvolvimento. As relações entre os membros da sociedade, e

principalmente entre aqueles que compõem o proletariado, embora em gradações

diferentes, estão cada vez mais obnubiladas17. E nesse sentido, Lukács descreve o núcleo

originário desse fenômeno:

A separação do produtor dos seus meios de produção, a dissolução e a desagregação de todas as unidades originais de produção etc., todas as condições econômicas e sociais do nascimento do capitalismo moderno agem nesse sentido: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas (id. ibidem, p. 207).

A perda de sentido dos objetos gerados para satisfação das necessidades humanas é

uma das etapas desse processo em que todas as manifestações vitais da sociedade

necessitam ser abarcadas por esse fenômeno. Esses objetos não mais aparecem como

objetos necessários para a satisfação, para a manutenção da vida humana; estes aparecem 15 Lukács observa que sociedades pré-capitalistas também conheceram o trabalho homogeneizado e mecanicamente organizado, mas difere da organização capitalista do trabalho pelo fato desta instituir o trabalho racionalmente mecanizado (id. ibidem, p. 206).16 Marx, em “O Capital”, no capítulo onde ele vai discutir “A assim chamada acumulação primitiva”, vai denominar, a partir da análise da expropriação da base fundiária do trabalhador na Inglaterra, esses trabalhadores, enxotados do campo em direção à cidade, de “trabalhadores livres como pássaros”, aludindo-se ironicamente a essa concepção de trabalho livre.17 Ver, nessa mesma obra de Lukács, o capítulo intitulado “Consciência de classe”.

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agora sob a forma de exemplares abstratos, sendo sua posse ou sua não-posse dependente

de cálculos racionalizados. E é nesse momento quando as relações de troca são permeadas

por atos isolados de troca de mercadorias que está dada a conformação histórica para o

surgimento do trabalhador “livre”. São eles exemplares abstratos, tidos como objetos

isolados, alheios a um processo de manipulação e combinação de seus elementos

constitutivos, “autônomos” em sua existência “não dotada” desse ato originário; essa é a

relação que é estabelecida quando esses objetos isolados são deparados. A relação reificada

dos atos isolados de troca de mercadorias, o seu aprofundamento, vai dar as possibilidades

da noção, também reificada, de trabalho “livre”; ou seja, a mais das vitais das necessidades

humanas será objeto desse fenômeno, ou ainda melhor, será abarcada por ele.

No entanto, o isolamento e a atomização assim nascentes são uma mera aparência. O movimento das mercadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa palavra, a margem real de todo cálculo racional não somente é submetida a leis rigorosas, mas pressupõe, como fundamento do cálculo, uma legalidade rigorosa de todo acontecimento. Essa atomização do indivíduo é, portanto, apenas o reflexo na consciência de que as “leis naturais” da produção capitalista abarcaram o conjunto das manifestações vitais da sociedade, de que – pela primeira vez na história – toda a sociedade está submetida, ou pelo menos tende, a um processo econômico uniforme (idem, p. 208).

Ao considerar esta aparência necessária enquanto aparência, Lukács vai afirmar

com propriedade que esta não é a relação, no plano da essência, e que, portanto, o

trabalhador – enquanto portador de sua força de trabalho – deve se apresentar como

“proprietário” dessa força, como se esta força fosse mercadoria, antes de ser força. Está ele

aqui – como a todo instante – desnudando os pilares, o caráter obscuro da relação reificada

que é estabelecida pelo cálculo racional e demonstrando com a conversão em mercadoria

de manifestações vitais do homem o caráter desumanizado e desumanizante – em sentido

profundo – da relação mercantil.

É interessante notar, a esse respeito, a constatação marxiana de que a propriedade

privada não só aliena a individualidade humana, como a dos objetos. O solo, por exemplo,

pode desvincular-se do fato de ser uma mercadoria, mas não pode perder suas qualidades

inerentes, as propriedades que lhe dão forma de solo e inclusive lhes confere fecundidade;

por conseguinte, nesta forma mercantil, este solo proverá não somente os frutos oriundos

da semeadura, mas fornecerá o fruto da renda fundiária aos seus detentores privados. “O

solo não tem nada a ver com a renda fundiária, nem a máquina com o lucro. (...) ele aluga

suas terras e recebe a renda, uma qualidade que o solo pode perder sem perder nenhuma de

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suas propriedades inerentes, como uma parte de sua fertilidade, por exemplo”18. Para

Lukács, essa é a nova substancialidade que os objetos enquanto mercadorias passam a ter

quando deixam de ter como único motivo de sua existência a sua existência como valor de

uso. “Essa objetivação racional encobre sobretudo o caráter imediato, concreto, qualitativo

e material de todas as coisas” (id. ibidem, p. 209). Mais adiante vai ele afirmar que se essa

relação imediata com o objeto é desfigurada, com o desenvolvimento da sociedade, essa

interação desfigurada com os objetos vai se intensificar. Observe:

Se, portanto, o próprio objeto particular que o homem enfrenta diretamente, enquanto produtor ou consumidor, é desfigurado em sua objetivação por seu caráter de mercadoria, é evidente que esse processo deve então intensificar-se na proporção em que as relações que o homem estabelece com os objetos enquanto objetos do processo vital em sua atividade social forem mediadas (idem, p. 210).

Com o desenvolvimento do capitalismo moderno, as formas do capital incorporadas

ao processo de capitalização da sociedade aparecem, na consciência do homem reificada,

como formas autênticas, puras, independentes do processo real de produção da sociedade.

Está se falando aqui do capital mercantil, do dinheiro enquanto tesouro ou capital

financeiro19, etc., que, para esta forma de consciência,

(...) se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, justamente porque nelas se esfumam, a ponto de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados à satisfação real de suas necessidades (id. ibidem, p. 211).

É exatamente aqui que está localizado um dos pontos centrais do debate que aqui

estamos travando. Há aqui um caráter oculto em torno dessa relação que é exatamente

aquele que não deixa transparecer o aspecto da satisfação das necessidades por intermédio

das mediações humanas, aqui, oculto na relação mercantil imediata. Este imediatismo

emergente e característico desta interação esta consciência reificada não vai tentar superar.

Pelo contrário. Ao invés de tentar suprimir a velatura que perpassa essa relação, essa forma

de consciência (reificada) vai investir na eternização desse imediatismo, “por meio de um

‘aprofundamento científico’ dos sistemas de leis apreensíveis”. “Do mesmo modo que o

sistema capitalista produz e reproduz a si mesmo econômica e incessantemente num nível

mais elevado”, dirá Lukács, “a estrutura da reificação, no curso do desenvolvimento

18 Marx, K. Deutsche Ideologie, Sankt Max, MEW 3, p. 212 apud idem, p. 209-10.19 Lukács fala de integração ao conjunto do sistema de formas do capitalismo primitivo, que nestas sociedades tinham uma existência isolada e separada da produção (p.210).

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capitalista, penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais profunda, fatal e

definitiva”20.

Marx em “O Capital”, no seu terceiro livro, demonstra a elevação do poder da

reificação citando como exemplo a auto-valorização do capital portador de juros. Esse

sobrevalor gerado a partir e somente de um outro valor não traz com ele mais as marcas de

seu nascimento, ou para ser mais condizente com as palavras de Marx, esses novos filhos

(valores) já não trazem mais resquícios do nascedouro. Esse capital que por ele mesmo

produz mais rendimentos para o seu detentor é no exemplo de Marx como macieiras que

geram maçãs, e é exatamente na naturalização dessa maneira de reproduzir o valor que está

o fetiche, segundo ele, cada vez mais automático. Cabe destacar aqui o valor referido

enquanto forma abstrata, aquele mesmo que tem no valor de uso o seu portador

indispensável. E ele vai mais longe. O capital ativo vai fazer o juro render não mais

somente com sua reinserção na produção; ele migra para a esfera financeira, adquirindo

essa nova forma e, completando o ciclo, também se auto-valorizando ou se auto-

perpetuando. E nesta relação lucro e juro acabam até mesmo invertendo os papéis. Aqui

atingimos um dos pontos mais elevados da mistificação. As relações de produção são

postas em outra esfera que não a sua esfera real, na qual se realiza. A autonomização da

esfera da auto-valorização descolada efetivamente da reprodução é, portanto, uma

demonstração altissonante da mistificação produzida pela sociedade capitalista.

Na fórmula D-D1, temos a forma não-conceitual do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção na mais alta potência: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condição de sua própria reprodução a capacidade do dinheiro, ou seja, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – mistificação do capital sob sua forma mais gritante. Para a economia vulgar, que quer representar o capital como fonte autônoma e de criação do valor, essa forma é naturalmente abençoada, pois nela a fonte do juro não é mais reconhecida, nela o resultado do processo capitalista de produção – separado do próprio processo – adquire uma existência autônoma21.

Ao mesmo tempo aqui estão dados os limites do pensamento econômico burguês,

bem como, e primeiro, a perda da sua base real, concreta. Não mais se sabe de qual valor

se fala, tendo em vista a posição astronômica que se encontra em relação ao mundo real, de

sua utilidade concreta, e ainda, inversamente, de que sua existência é totalmente

20 idem, p. 211.21 Kapital III, I, MEW 25, p. 405 apud id., p. 212-13.

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desprovida de sentido22. Tais conclusões, impensáveis e inalcançáveis para a economia

vulgar (pelos limites postos pelas suas próprias premissas), são demonstrações estrondosas

do quão reificadas são as relações econômicas nas sociedades capitalistas, inclusive da

parcela destas que se ocupa em entender a sua dinâmica, claro que pelo foco de análise

que, como dito, não lhes permite ver essas imprecisões – facilmente diagnosticadas sob a

lupa marxiana.

Lukács vai afirmar que certos pensadores burgueses até tomam consciência do

fenômeno ideológico da reificação, mas permanecem no nível do imediatismo, ficando

apenas no âmbito da descrição do fenômeno. Vai colocar que a separação do fenômeno do

fundamento econômico vai ser facilitada pela razão de ser esse processo acoplado ao

conjunto de transformações que necessariamente a sociedade tem que atravessar, para o

bem dos rendimentos capitalistas, e que, portanto, não pode deixar a teoria de abarcar23.

“(...) o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas

necessidades e se adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras

coisas”.

Esse desenvolvimento se dá na medida em que os mecanismos tradicionais ficam

para trás. O surgimento do método moderno baseado no cálculo racional culmina

necessariamente numa “sistematização racional de todas as regulamentações jurídicas da

vida, sistematização que representa, pelo menos em sua tendência, um sistema fechado e

que pode se relacionar com todos os casos possíveis e imagináveis” (id. ibidem, p. 216). O

interesse de Lukács é reconhecer a estrutura jurídica moderna, independentemente da

dogmática que a rege, das atuações enviesadas de juízes, o que, em ambos os casos, em

nada interfere no relacionamento possível que essa estrutura pode estabelecer com as

várias situações da vida cotidiana. Assim, dirá ele, “o sistema jurídico é formalmente capaz

de ser generalizado, bem como de se relacionar com todos os acontecimentos da vida e,

nessa relação, ser previsível e calculável” (id. ibidem, p. 216). A necessidade da

sistematização e da universalização trilhou opostamente ao sistema tradicional, a

preponderância do particular. Em relação a este último, porém, “isso tem como

conseqüência apenas novas codificações: o novo sistema tem, contudo, de conservar em

22 É claro aqui que não se está falando do papel e do sentido que desempenha essa forma de capital – que Marx vai chamar outrora de fictícia – no mundo dos negócios capitalistas (investidores, mercado de ações, rentistas, etc.). Se fala, é claro, do sentido que tem para a produção e a reprodução humana, isto é, da satisfação das suas necessidades. O valor, para esta função, não tem função; é algo literalmente dispensável. 23 Só para salientar que aqui esse abarcamento é enviesado.

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sua estrutura o caráter acabado e rígido do antigo sistema” (idem, p. 217). Mas isso não

deixará de ser, na verdade, o reflexo da ordem social em questão. Enquanto o sistema

antigo, tido como fluido, refletia uma produção exatamente fluida, em que o produtor via o

processo produtivo por inteiro, no sistema moderno o reflexo será outro: aqui, a produção

racionalizada, baseada no cálculo rígido, não pode ter nesse sistema outra imagem que não

a de uma exigência igualmente rígida. Na verdade, tanto um como o outro, são meros

reflexos, ou exigências, de concepções de modos de produção diferentes.

(...) o paradoxo demonstra ser aparente, quando consideramos que resulta simplesmente do fato de a mesma situação ser examinada uma vez do ponto de vista do historiador (cujo ponto de vista situa-se sistematicamente “fora” do próprio desenvolvimento), e outra do ponto de vista do sujeito participante, do ponto de vista da influência da ordem social em questão sobre sua consciência (idem, p. 218).

Aqui está, novamente, o caráter contemplativo do sujeito na produção capitalista. É

apenas um escravo, um ente subserviente da produção, que acima de tudo, vê tudo como

um sistema acabado, de leis absolutas e alheias a sua compreensão. E é exatamente do

caráter inflexível do cálculo, do embate renhido travado contra o imprevisível (os “acasos”

perturbadores), que brota o problema da burocracia moderna. Ela só é suficientemente

compreensível, afirma Lukács, se localizada nesse contexto em que há “uma adaptação do

modo de vida e do trabalho e paralelamente também da consciência aos pressupostos

socioeconômicos gerais da economia capitalista” (idem, p. 219). A racionalização que será

operada no direito, na administração e no Estado vai necessariamente implicar numa

semelhante fragmentação das funções sociais, do ponto de vista delas mesmas, um

requerimento que visa o entendimento dos mecanismos de funcionamento parciais, tendo,

no plano subjetivo, semelhantes impactos para a consciência, devido à cisão que se opera

entre trabalho e capacidades e necessidades individuais. “(...) implica, portanto, uma

divisão semelhante, racional e humana, do trabalho em relação à técnica e ao mecanismo

tal como encontramos na empresa” (idem, p. 220). Os resultados do aprofundamento desse

processo, dentre outros, são a utilização de formas cada vez mais formais e racionais no

trato de questões objetivas, que versam sobre o seu conteúdo essencial, porém sem atingir

o âmago, apenas abordando em torno de temas sem no entanto dominá-los em sua

completude. Isso ainda sem falar da agressão à essência humana do homem pela

intensificação da especialização unilateral da divisão do trabalho. Na atividade burocrática,

como na operária, há igualmente a separação da força de trabalho da personalidade

individual. Tanto em uma como na outra se repete a renúncia de aspectos da personalidade,

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só que na burocrática se limita ao aspecto da conversão mercantil, diferente da operária em

que há uma acentuada supressão pela máquina, considerando, ainda, as diferenças entre o

seu valor material e “moral”.

O gênero específico da “probidade” e objetividade burocráticas, a submissão necessária e total do burocrata individual a um sistema de relações entre coisas, a ideia de que são precisamente a sua “honra” e o seu “senso de responsabilidade” que exigem dele semelhante submissão, tudo isso mostra que a divisão do trabalho penetrou na “ética” – tal como, no taylorismo, penetrou no “psíquico”. Isso não é, todavia, um abrandamento, mas, ao contrário, um reforço da estrutura reificada da consciência como categoria fundamental para toda a sociedade (idem, p. 221).

O capitalismo, ao produzir uma estrutura econômica unificada, produz também uma

estrutura de consciência (formalmente) unitária para a sociedade. Assim, tanto a classe

assalariada como a dominante é alvo desse fenômeno. O trabalhador, que vai vender as

suas faculdades mentais – segundo Lukács, “faculdades espirituais objetivadas e

coisificadas” –, vai se transformar em um observador do devir social, bem como da

manifestação de suas próprias faculdades, assumindo, como o operário contemplativo, a

mesma postura, a de contemplar o movimento de suas próprias faculdades – aqui, já

objetivadas. Veja o exemplo do jornalista que Lukács utiliza para demonstrar a

manifestação dessas faculdades coisificadas:

Essa estrutura mostra-se em seus traços mais grotescos no jornalismo, em que justamente a própria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expressão tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do “proprietário” como da essência material e concreta dos objetos em questão, e que é colocado em movimento segundo leis próprias. A “ausência de convicção” dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e convicções só podem ser compreendidas como ponto culminante da reificação capitalista (idem, p. 222).

Não é somente na relação mercantil, na transformação em mercadorias dos objetos

para satisfação das necessidades, que a “objetividade fantasmática” vai se estabelecer, mas

também na consciência dos homens, nas faculdades e propriedades desta que vão penetrar

as várias manifestações que compõem o fenômeno da reificação. “(...) as propriedades e as

faculdades dessa consciência”, diz Lukács, “não se ligam mais somente à unidade orgânica

da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode ‘possuir’ ou ‘vender’, assim

como os diversos objetos do mundo exterior” (idem, p. 222-23). Portanto, essa

metamorfose não é algo qualquer; muda-se a forma de se perceber o mundo externo.

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Mas Lukács irá dizer que essa mesma racionalização carrega nela mesma os limites

de sua racionalidade. E este limite está dado exatamente pela investigação formal de sua

análise, por prescindir – necessariamente para poder existir inclusive – de inquirir a

matéria concreta. O sistema de leis que foca, analisa e decreta a autonomia dos sistemas

parciais não resiste à necessidade da prova concreta e tomba – efetivamente e sem

possibilidade de restituição – no terreno insolúvel da incoerência. Dirá Lukács:

(...) embora a racionalização dos elementos isolados da vida e o conjunto de leis formais dela resultante se adaptem facilmente ao que parece constituir um sistema unitário de “leis” gerais para o observador superficial, o desprezo pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo em que se baseia seu caráter de lei, surge na incoerência efetiva do sistema de lei, no caráter contingente da relação dos sistemas parciais entre si e na autonomia relativamente grande que esses sistemas parciais possuem uns em relação aos outros (idem, p. 223-24).

A crise é um dos momentos onde essa incoerência se manifesta de forma mais

aguda. Em tal época, torna-se impossível a sua compreensão essencial levando-se em conta

a continuidade imediata de cada sistema parcial. Aludindo-se a fragilidade da coesão dessa

“leis naturais”, Lukács dirá que esta solidez aparente e fechada só é possível pela relação

contingente dos seus sistemas. Um exemplo de Marx é citado justamente no sentido de

dizer que não há elos necessários na produção que determinem o destino de um

determinado artigo produzido pela necessidade de satisfação das necessidades. “(...)

nenhum elo necessário, mas somente contingente, entre a quantidade global de trabalho

social, que é aplicada a um artigo social [e] a amplitude em que a sociedade procura

satisfazer a necessidade aplacada por esse artigo determinado” (id., p. 225). A referência

aqui é ao trabalho excedente presente nas formas capitalistas de sociedade, que, para serem

tais como são, pressupõem o controle regimental de pormenores e, ao mesmo tempo, uma

totalidade contingente. E esse controle por intermédio de leis das atividades particulares se

dá pela necessidade da precisão, do cálculo racional, da previsibilidade. Sem esse domínio,

torna-se impossível alcançar os resultados esperados pelo produtor, que precisa ter em

mente antecipadamente os limites de suas possibilidades. Mas estas leis (do “mercado”),

racionais no sentido preciso do cálculo racional, “não podem ser dominadas por uma “lei”

como o são os fenômenos isolados, não podem de modo algum ser organizadas

racionalmente por inteiro”. O que não quer dizer que não haja nada que “reja” a totalidade.

“(...) esse sistema de leis deve não somente se impor aos indivíduos, mas ainda jamais ser

inteiramente e adequadamente cognoscível” sob pena de que asseguraria “ao sujeito desse

conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a economia política”.

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Lukács vai dizer em seguida que esse postulado que regula a totalidade, que é

diferente daquele que regula as partes, além de ser uma condição de funcionamento da

economia capitalista, é um produto da divisão capitalista do trabalho. Como já salientara

anteriormente, a produção da fragmentação irá gerar necessariamente um desenvolvimento

parcelar de uma determinada parte de modo totalmente desvinculado das outras, inclusive

da que ela pertence. Os portadores de tais tendências, ao longo do desenvolvimento

intensificado da divisão continuamente crescente do trabalho, serão os próprios

“especialistas” que serão movidos pelos interesses profissionais24.

Mas a questão da totalidade, a necessidade de se dominar por inteiro, ao menos

cognitivamente, é uma necessidade que não pode desaparecer. A ciência, por força da

especialização do trabalho, teria então despedaçado a totalidade, perdido o seu sentido

elementar. Utilizando-se de uma observação metodológica de Marx em “Para a crítica da

economia política”, na qual rebate uma assertiva que rejeita tal perspectiva por não tratar

dos vários aspectos em sua unidade (enquanto aspectos), “como se fossem os manuais a

imprimir essa separação na realidade, e não a realidade a imprimi-la nos manuais”25,

Lukács vai considerar, do ponto de vista oposto ao da consciência reificada, necessária tal

forma metodológica de abordagem dos problemas da realidade, exatamente por esse seu

traço não colidir com a lógica fragmentária da sociedade.

Quanto mais desenvolvida e científica ela for, maior é sua probabilidade de se tornar um sistema formalmente fechado de leis parciais e especiais, para o qual o mundo que se encontra fora do seu domínio e sobretudo a matéria que ela tem por tarefa conhecer, ou seja, seu próprio substrato concreto de realidade, passa sistemática e fundamentalmente por inapreensível (idem, p. 229).

A questão do método aqui é alertada por Lukács como questão fundamental. Ao

partir-se do plano puramente subjetivo, como por exemplo o comportamento do mercado, e

não da esfera da determinação concreta que é a produção, que inclusive vai determinar o

próprio mercado e os seus modos “subjetivos” de comportamento, na verdade, está-se

apenas se lançando para planos mais reificados, suprimindo-se os materiais concretos. A

economia, por exemplo, transformada em um sistema parcial fechado, “não é capaz nem de

penetrar em seu próprio substrato material, nem de encontrar a partir dele a via para o

24 Aqui Lukács é imperdoável quando cita um comentário de Engels a respeito do Direito em uma missiva dirigida a Konrad Schmidt. Ele fala que o Direito, na busca por uma afirmação livre de qualquer contradição interna, reflete, para conseguir ser uma “expressão coerente em si mesma”, exatamente por se autonomizar, de modo cada vez mais infiel, as condições econômicas das quais não pode se desvencilhar (idem, p. 228).25 Ver pág. 229 (idem).

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conhecimento da totalidade social”, compreendendo, assim, “essa matéria como um ‘dado’

imutável e eterno”26.

A relação entre método e classe não é tida como casual. Da necessidade de dominar

seu ser, esse ser social de uma classe, conceitualmente, advém a necessidade da interação,

ou ainda, as chaves para o entendimento dessa relação. A crise, novamente tomada de

exemplo, ao pensamento econômico, é um problema intransponível. Para torná-la,

juntamente com o sistema econômico, um problema “compreensível”, será preciso

racionalizar a economia, dotá-la de um sistema de “leis” puramente formal, matematizado,

para então, e somente, se encontrar formada a base metodológica de sua compreensão.

Lukács afirma que é nos períodos de crise que “o ser qualitativo das ‘coisas’ (...) seus

efeitos se manifestam sob a forma de uma paralisação no funcionamento dessas leis, sem

que o entendimento reificado esteja em condições de encontrar um sentido nesse ‘caos’”

(idem, p. 231).

Assim, a velatura que constitui o invólucro da crise e a sua irracionalidade são

conseqüência da situação em que se encontra a classe burguesa e dos seus interesses, bem

como também resultado necessário das limitações da aplicação do seu método

econômico27. As tentativas de entender as razões da crise, sob esse viés, incorrem, por

exemplo, no erro de apontar para a desproporção na produção, atendo-se aos aspectos

quantitativos, ignorando os qualitativos, o papel que tem os valores de uso tanto na

produção como no consumo28.

Mas a esse respeito, elucidativa é a citação de Marx da qual se serve Lukács para

demonstrar os limites da análise fenomênica, centrada na produção. Um artigo ao ser

lançado no mercado só completa o seu ciclo quando ele é vendido, tendo assim a

mercadoria realizado o seu valor, exatamente no consumo. Esse consumo vai gerar as

condições para se desencadear um novo ciclo, o florescimento econômico vai demandar

um consumo maior de meios de produção, logo requisitar mais trabalho, logo haverá mais

consumo, ocorre um maior consumo individual do capitalista, uma produção maior de

mais-valia, até que essa produção em excesso atinge um ponto de saturamento no mercado

em que não mais pode ser consumida, o ciclo portanto não é mais fechado, há

26 “Com isso, a ciência perde a capacidade de compreender o nascimento e o desaparecimento, o caráter social de sua própria matéria, bem como o das possíveis atitudes a seu respeito e a respeito do seu próprio sistema de formas” (idem, p. 230-31).27 Lukács observa que para ele ambos fazem parte de uma unidade dialética.28 A esse respeito ver a citação de Hilferding utilizada por Lukács (p.232).

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conseqüentemente uma diminuição na demanda, inclusive de meios de produção, uma

diminuição na realização da produção, por fim, o retrato fiel da crise está representado29.

É importante notar que essa incapacidade de prospectar no substrato material da

ciência não deve ser atribuída à impossibilidade individual e sim ao processo evolutivo da

própria ciência. Lukács cita como exemplo o desaparecimento na economia clássica da

noção de totalidade ao longo do seu desenvolvimento. Na jurisprudência esse conflito –

entre a forma e o conteúdo – vai se apresentar, graças a um estado mais solidamente

reificado, de modo mais diferenciado exatamente por esta partir de outros pontos, o cálculo

racionalizado, diferentes por exemplo dos da economia – o valor de uso e o valor de troca

– e, portanto, mais distantes da substancialidade material. A contraposição que a burguesia

vai fazer ao regime feudal baseada na igualdade formal se dá nesse sentido. Parte-se do

princípio de que essa igualdade formal junto com a universalidade do direito podem por

elas mesmas determinar seu conteúdo (articulação entre necessidade e liberdade). Contra a

imutabilidade das leis, a burguesia revolucionária vai combater os privilégios e os direitos

demiurgos dos reis. Somente após a vitória da revolução francesa é que vai se acrescer

noções “históricas” que vão reconhecer os limites formais em relação à determinação dos

conteúdos, exatamente por sê-los factuais30.

A coesão dessas leis, no entanto, será puramente formal. Vão exprimir, de acordo

com Lukács, um conteúdo de natureza política e econômica. Aqui ele vai citar o

“kantiano” Hugo, exatamente por este ir “às raízes” do direito, fora dele, quando segue em

busca do caráter jurídico da escravidão31. Daí, as proposituras de fundamentar o direito

como metajurídico, situá-lo na história, na sociologia, na política, só podem culminar na

edificação de um sistema formal de cálculo, em que o máximo que se pode fazer é precisar

conseqüências de determinadas situações, antevendo-as, dentro dos limites criados pelos

seus próprios executores. Essa noção do direito tornada encurralada por ela mesma só pode

ter sua incompreensão assemelhada a incompreensão que tem a crise para a economia

política32. A respeito desse esclarecimento, escreverá Lukács:29 Apenas complementando, de acordo com Marx o consumo de mercadorias não está incluído no circuito do capital de onde saíram. Enquanto esse consumo está fluindo, sendo realizado, independente de qual finalidade esteja se dando ao produto, tudo segue seu curso regular do ponto de vista do produtor capitalista. A tendência é que haja uma ampliação desse processo reprodutivo. Quando ocorrer um excesso delas, estas passarão apenas aparentemente para o consumo (idem, p. 233-34).30 Para o direito natural vai continuar prevalecendo a noção do sistema formal do direito (idem, p.235).31 “Durante séculos, ela foi realmente de direito entre milhões de pessoas cultivadas” (id., p. 236). O direito em questão aqui só pode ser de ordem transcendental, religiosa.32 A esse respeito, cita Lukács um qüiproquó em que se envolve um jurista que tenta explicar contorcidamente a sua origem, as tortuosas manobras que têm que fazer para manter tal concepção de pé –

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(...) se, por um lado, o problema do surgimento do direito, deslocado para outras disciplinas, encontrasse nelas uma solução e se, por outro, a essência do direito, que surge desse modo e serve simplesmente para calcular as conseqüências de uma ação e para impor racionalmente modos de ação derivados de uma classe, pudesse, ao mesmo tempo, ser realmente revelada (idem, p. 237).

Se ambas as situações fossem possíveis estaria desvelado o segredo do direito e

viria à tona o substrato material e real dele mesmo. Mas o direito ainda não se

desvencilhou dos “valores eternos”, o que faz conservar, ainda que de maneira renovada,

os seus laços com a gênese natural do direito. Daí, o seu fundamento real e concreto torna-

se imperceptível, em especial para as ciências que lhes tem como objeto.

E o fundamento real da origem do direito, a modificação das relações de poder entre as classes, tornam-se confusos e desaparecem nas ciências que tratam do direito, nas quais – de acordo com as formas de pensamento da sociedade burguesa – nascem os mesmos problemas da transcendência do substrato material que na jurisprudência e na economia política (idem, p. 237-38).

A coesão da totalidade vai sendo então cada vez mais postergada, também pela

filosofia, como síntese da totalidade das ciências, ao menos, é bem verdade, que

transcendesse os obstáculos formalistas provenientes da fragmentação, “orientando-se para

a totalidade material e concreta do que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer”

(idem, p. 238). Revelando-se a gênese, a necessidade e os fundamentos desse formalismo,

as ciências particulares, desvencilhando-se da unidade mecânica a qual se encontram,

demandariam uma remodelagem, inclusive interior, “pelo método filosófico interiormente

unificador”. E Lukács sentencia que não pode ser no terreno da sociedade burguesa que

uma mudança radical como esta poderá se processar.

Mas a filosofia continua a reconhecer, por estas ciências, o método e os resultados

por elas utilizados e alcançados, atendo-se ao papel de verificar, a partir dos conceitos por

elas formulados, a sua validade. A base da reificação contida nesse formalismo adquire

mais solidez, por ser este instrumental conceitual tido como imutavelmente dado, e faz

transparecer a visão de um mundo em uma versão definitiva, conceitualmente possível. E

exatamente por se limitar a analisar as possibilidades das formas, o pensamento burguês

bloqueia e torna inacessível o contato com o substrato material dessas formas. Mas, diria

Lukács com sagacidade, cada vez mais essa forma de abordar – e interditar – o universo

cognoscível está se assemelhando com uma lendária estória indiana segundo a qual a

resposta dada a indagação sobre o que repousa o mundo fora a de sobre um elefante. E o pelo menos aparentemente.

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Page 21: LUKÁCS E ‘O FENÔMENO DA REIFICAÇÃO’estudosdotrabalho.org/anais-vii-7-seminario-trabalho-ret-2010/... · três tópicos do capítulo “A reificação e a consciência do proletariado”,

inquiridor finalmente se deu por satisfeito quando lhe foi dito que este mesmo elefante

encontra-se repousado sobre uma tartaruga. Imagine-se, então, a perplexidade do incauto

burguês quando se der conta de que nenhuma força gravitacional efetiva atrai para si o seu

entendimento do mundo, e que somente o vácuo é que lhe pode servir de abrigo, de espaço

perfeitamente adequado, constituir um ambiente não inóspito ao seu pensamento, e por

conseguinte, de manter viva a sua organização enquanto classe.

Referências:

CASTRO, Rogério. A Mercadoria – Considerações preliminares sobre o Capítulo I do Livro Primeiro de O Capital. (anais eletrônicos – II Jornada de Integração e Pesquisa Acadêmica – PPGSS/ESS/UFRJ).

FREDERICO, Celso. Lukács. Um clássico no século XX. São Paulo: Moderna, 1997.

LESSA, S. Para compreender a ontologia de Lukács. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.

LÖWY, M. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.

LUKÁCS, G. Pensamento vivido. Autobiografia em diálogo. São Paulo/Viçosa: Ad Hominen/Ed. UFV, 1999.

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PINASI, M. O. e LESSA, S. (orgs.) Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.

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