LUKÁCS, G - Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels

download LUKÁCS, G - Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels

of 29

Transcript of LUKÁCS, G - Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    C o py rig h t 2 0 10 b y E dito ra E xp re ss ao P op ula rT ra dU l;a o e r e v l s a o de J os e P au lo N etto e M ig ue l M ak oto C ava lc an ti Y os hid aT i tu lo o r ig i na l: C a r / o s M a rx - F e d e r ic o E n g e ls - S a b re e l a rt e

    C apa , P ro je to g ra f ico e D l aq ramaeao ; Krits Es t ud i o

    lmpressae: Cromose t e

    O ad os In te rn ac io na is d e C ata lo ga c;a o-n a-P ub lic ac ;a o (C IP )

    M382cM a rx , K a rl, 1 8 18 -1 8 83

    C ultu ra , a rte e lite ra tu ra : te xto s e sco lh id os / K arl M arx eF rie dric h E ng els ; tra du C3 0 d e J ose P au lo N etto e M ig ue lM ako to C ava lca nti Y osh ida .--1 .ed .-S ao P au lo : E xp ress30

    P o pu la r, 2 0 10 .T ra du ca o d e: S ob re e l arteIn dexad o e m G eo Da dos - h t t p : / /www.geodados . uem.b rI SBN 978 - 85 -7743 - 168- 71. C u ltu ra . 2 . A rte . 3. Li teratura. I. E n g e ls , F r ie d ri ch ,

    1 820 - 18 95 . II. T itu lo .C O O 701

    801C ata lo qa ra o n a P ub lic aG ao : E lla ne M . S . J ova no vic h C R B 9/1250

    1 a e diQ ao : o utu bro d e 2 01 0

    T od os o s d ire ito s re se rva do s. N en hu ma p arte d este livrap ed e s er u tiliza da o u re pra du zid a se m a a uto rlz ac ao d a e dito ra .

    E dito ra E xp res sao P op ula r U da .Rua A bo llca o , 201 I B ela V is ta I 0 1319 -010 I S ao P au lo - SPT e l [1 1 ]3 1059500 I F ax [ 1 1 ] 31120941 I l iv rar ia@expressaopopular . com.br I www.exp ressaopopu la r . com.b r

    http://www.geodados.uem.br/mailto:[email protected]://www.expressaopopular.com.br/http://www.expressaopopular.com.br/mailto:[email protected]://www.geodados.uem.br/
  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    INTRODU

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    as leis particulares (isto e , aquelas que sao especificas de determinadosperiodos) deste processo. Isso, contudo, nao implica, de modo algum - eeste e 0segundo ponto de vista -, urn relativismo historico, A essenciado metodo dialetico, de fato, esta exatamente em que para ele 0abso-luto e 0 relativo formam uma unidade indestrutivel: a verdade absolutapossui seus proprios elementos relativos, ligados ao tempo, ao lugar e ascircunstancias. E, por outro lado, a verdade relativa, enquanto verdadereal, enquanto reflexo aproximativamente fiel da realidade, reveste-se deuma validez absoluta.

    Necessaria consequencia do ponto de vista acima referido e arejeicao, pela concepcao marxista, da acentuada separacao e do iso-lamento dos ramos particulares da ciencia, tais como sao comuns nomundo burgues. Nem a ciencia, nem os seus diversos ramos, nem a arte,possuem uma historia autonorna, imanente, que resulte exclusivamenteda sua dialetica interior. A evolucao em todos esses campos e deterrni-nada pelo curso de toda a historia da producao social em seu conjun-to; e so com base neste curso e que podem ser esclarecidos de maneiraverdadeiramente cientifica os desenvolvimentos e as transforrnacoes queocorrem em cada campo singularmente considerado. E claro que estaconcepcao de Marx e Engels, que contradiz abertamente tantos precon-ceitos modernos, nao comporta uma interpretacao mecanicista, como aque costumam fazer numerosos pseudomarxistas ou marxistas vulgares.No desenvolvimento das analises rna is particularizadas que se segui-rao, haveremos de voltar a esta questao, Basta -nos, por ora, salientarque Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do desenvol-vimento dos campos particulares da atividade humana (direito, ciencia,arte etc.); jarnais ignoraram, por exemplo, 0 fato de que urn pensamentofilosofico, singularmente considerado, liga-se a outro pensamento filo-sofico que 0 precedeu e do qual ele e urn desenvolvirnento, uma corre-

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYQRG LUKAcs

    do processo hist6rico geral da sociedade. A essencia e 0 valor esteticodas obras literarias, bern como a influencia exercida por elas, consti-tuem parte daquele processo social geral e unitario atraves do qual 0homem se apropria do mundo atraves de sua consciencia. Do primeiroponto de vista, a estetica marxista e a historia marxista da literatura eda arte fazem parte do materialismo historico, ao passo que, do segundoponto de vista, sao uma aplicacao do materialismo dialetico; ern ambosos casos, porern, sao uma parte peculiar, especial, deste conjunto, corndeterminados principios esteticos especificos,

    Os principios rnais gerais da estetica e da historia marxist a da lite-ratura encontrarn-se, pois, na teoria do marerialismo historico. 56 a partirdo materialismo hist6rico podem ser compreendidas a genese da arte e daliteratura, as leis do seu desenvolvimento, as suas transforrnacoes, as linhasde ascensao e queda no interior do processo de conjunto. Por isso, cumpre-nos examinar preliminarmente algumas questoes gerais basicas do materia-lismo historico. E nao apenas tendo ern vista a necessidade de fundamentarcientificamente 0nosso ernpreendimento, mas tarnbern porque e exatarnen-te neste campo que devemos distinguir corn clareza 0 autentico marxismo{averdadeira visao dialetica do mundo) da sua vulgarizacao deformadora,que - no terreno em que nos colocamos - comprometeu da maneira maisperniciosa 0marxismo aos olhos de urn vasto circulo de pessoas.E sabido que 0materialismo hist6rico identifica na base economicao principio diretor, a lei determinante do desenvolvimento hist6rico. Doponto de vista da sua conexao com 0 processo evolutivo do conjunto, asideologias - e, entre elas, a literatura e a arte - aparecem unicamente comosuperestruturas, que so secundariamente determinam este processo. Destaconstatacao fundamental, 0materialisrno vulgar parte para a conclusao,mecanica e erronea, distorcida e aberrante, de que entre base e superes-trutura s6 exisre urn mero nexo causal, no qual 0 prirneiro termo figuraapenas como causa e 0 segundo aparece unicamente como efeito. Para 0marxismo vulgar, a superestrutura e uma consequencia mecanica, causal,do desenvolvimento das forcas produtivas. 0 metodo dialetico nao adrni-te semelhante relacao, A dialetica nega que possam existir, em qualquerparte do real, relacoes de causa e efeito puramente univocas: ela reconheceate mesmo nos dados mais elementares da realidade complexas interacoesde causas e efeitos. E 0 materialismo hist6rico acentua corn particularvigor 0 fato de que, num processo tao multiforme e estratificado como 0e a evolucao da sociedade, 0processo total do desenvolvimento historico-social s6 se concretiza ern qualquer dos seus momentos como uma intrin-cada trama de interacoes. Unicamente com uma metodologia deste tipo

    I3

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    e possivel abordar, ainda que sumariamente, a questao das ideologias.Quem quer que veja nas ideologias 0produto mecanico e passivo do pro-cesso econornico que lhes serve de base nada compreendera da essencia edo desenvolvimento delas, e nao estara representando 0marxismo, masuma imagem caricatural do marxismo.

    Em uma de suas cartas, Engels se exprime a respeito do problema nosseguintes termos: 0 desenvolvimento politico, juridico, filosofico, religioso,literario, artistico etc. baseia-se no desenvolvimento economico, Mas todoseles reagem tarnbem uns sobre os outros e sobre a infraestrutura economica,Nao se trata de que a situacao econornica seja a causa, a unico elementoativo, e que 0 resto sejarn efeitos puramente passivos. Ha todo urn jogo deacoes e reacoes a base da necessidade economica, que, em ultima instan cia,terrnina sempre por impor-se '.Tal orientacao merodologica marxista tern como consequencia a

    atribuicao de urn papel extraordinariamente importante, no desenvolvi-mento historico, a energia criadora e a atividade do sujeito. A ideia centraldo marxismo, no que se rcfere a evolucao historica, e a de que 0 homemse fez homem diferenciando-se do animal atraves do seu proprio trabalho.A funcao criadora do sujeito se manifesta, por conseguinte, no fato de queo homem se cria a si mesmo, se transforma ele mesmo em homem, porintermedio do seu trabalho, cujas caracteristicas, possibilidades, grau dedesenvolvimento etc., sao, certamente, determinados pelas circunstanciasobjetivas, naturais ou sociais. Este modo de conceber a evolucao historic aesta presente em toda a visao marxista da sociedade e, tam bern, na esteticamarxista. Marx diz, em uma passagem, que a rmisica suscita no homemo senso musical; e essa concepcao, igualmente, e uma parte da concepcaogeral do marxismo no que concerne a todo 0desenvolvimento social.

    Marx concretiza deste modo a abordagem do problema:Sornente pela riqueza objetivamente explicitada da essencia human a podeser em parte aperfeicoada e em parte criada a riqueza da sensibilidade sub-jetiva humana. Isto e : urn ouvido musical, urn olho capaz de colher a belezada forma; em suma, sentidos pela prirneira vez capacitados para urn desfrutehumano, sentidos que se afirmam como faculdades essenciais do homem",Tal concepcao assume grande importancia nao so para uma com-

    preensao do papel hist6rico e socialmente ativo do sujeito, mas tarnbempara esclarecer 0modo pelo qual 0marxismo enxerga os periodos espe-cificos da hist6ria da humanidade, 0desenvolvimento da civilizacao e oslimites, a problematic a e as perspectivas desse desenvolvimento. MarxconeIui da seguinte maneira 0 raciocinio acima citado:14

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    A educacao dos cinco sentidos e trabalho de toda a historia universal atenossos dias. 0 sentido subordinado a exigencias praticas animais e urn senti-do limitado. Para a homem faminto, nao existe a forma human a do alimen-to e sim apenas a sua existencia abstrata como alimento: 0 alimento podese apresentar indiferentemente em qualquer forma, ainda que seja a maisgrosseira, e nao se conseguira dizer em que ponto a sua atividade nutritiva sediferenciara da do animal. 0 homem angustiado por uma necessidade naotern senso algum, mesmo para 0espetaculo mais belo: 0mercador de pedraspreciosas so ve 0valor comercial delas, nao ve a beleza e a natureza peculiarde cad a pedra; ele nao possui qualquer senso estetico para 0mineral em si.Portanto, a objetivacao da essencia humana, quer do ponto de vista teorico,quer do ponto de vista pratico, e necessaria tanto para tornar humanos ossentidos do homem como para criar urn sentido humano adequado a inteirariqueza da essencia human a e natural'.Portanto, a atividade espiritual do homem dispoe, em todos os

    seus campos de atuacao, de uma determinada autonomia relativa; e issodiz respeito sobretudo a arte e a literatura. Cada campo, cada esfera deatividade se desenvolve espontaneamente - por obra do sujeito criador- vinculando-se de modo imediato a s suas criacoes precedentes e desen-volvendo-as ulteriormente, ainda que por meio de criticas e polemicas.J e i advertimos quanta ao fato de esta autonornia ser relativa e nao com-portar, em absoluto, a negacao da prioridade da base economica; dis so,porem, nao resulta, de modo algum, que a conviccao subjetiva de quecada esfera da vida espiritual se desenvolva espontaneamente seja merailusao. A autonomia a que nos referimos e fundada objetivamente naessencia mesma do desenvolvimento, na divisao social do trabalho.

    Sobre esta questao, Engels escreve:Os homens que se ocupam disso [do desenvolvimento ideologico] pertencem,por sua vez, a orbitas especiais da divisao do trabalho e creem desenvolverurn dominic independente. E, a medida que passam a formar urn grupoautonorno dentro da divisao social do trabalho, suas producoes, inclusiveseus erros, influem sobre todo 0 desenvolvimento social e mesmo sobre 0desenvolvimento econornico. Apesar disso, porem, eles continuam sob ainfluencia dominante do desenvolvimento economico".E, no trecho que se segue, Engels elucida bern a sua concepcao

    metodologica do primado do economico:A meu ver, a suprema cia final do desenvolvimento econornico, inclusivesobre estes dominios, esta fora de duvida, mas ela opera dentro das con-dicoes impostas em cada terreno concreto: na filosofia, por exemplo, pelaacao de influencias econornicas (que, por seu turno, na maioria dos casos,operam apenas sob disfarces politicos etc.) sobre 0material filosofico exis-

    15

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    tente, transmitido pelos predecessores. Neste caso, a economia nao cria apartir do nada, mas determina a maneira como se modifica e se desenvolveo material de ideias preexistentes; e, mesmo assim, quase sempre 0 faz demodo indireto, ja que sao os reflexos politicos, juridicos e morais que, emmaior proporcao, exercem influencia direta sobre a filosofia",Tudo a que Engels afirma aqui sobre a filosofia pode ser tarnbem

    amplamente aplicado aos principios fundamentais da evolucao da lite-ratura. E claro que todo desenvolvimento, encarado de modo concreto,tern 0seu carater particular, e 0paralelismo entre dois desenvolvimentosjamais pode ser generalizado mecanicamente. E claro que, no quadro dasleis que dizem respeito a sociedade em seu conjunto, 0 desenvolvimentode cada esfera assume 0 seu carater particular, com suas leis pr6prias.

    Se agora quisermos concretizar, ainda que s6 superficialmente,o principio geral assim obtido, chegamos a formular urn dos principiosmais importantes da concepcao marxista da hist6ria. No que concerne ahist6ria das ideologias, 0materialismo hist6rico reconhece - ainda nesteponto, em franca oposicao ao marxismo vulgar - que 0desenvolvimentodas ideologias nao acompanha mecanicamente e nem segue pari p assu 0grau de desenvolvimento economico da sociedade. Na hist6ria do comu-nismo primitivo e da divisao da sociedade em classes, a respeito da qualescreveram Marx e Engels, nao e de maneira alguma necessario que acada florescimento econornico e social corresponda infalivelmente urnflorescimento da literatura e da arte, da filosofia etc.; nao e absoluta-mente necessario que uma sociedade mais evoluida socialmente possuauma literatura, uma arte, uma filosofia necessariamente mais evoluidado que as de uma sociedade corn nivel inferior de progresso.

    Marx e Engels insistem, ern muitas ocasioes, sobre a desigualdadede desenvolvimento no campo da hist6ria das ideologias. Engels, porexemplo, ilustra as consideracoes citadas ha pouco recordando comoa filosofia francesa do seculo XVIII e a filosofia alema do seculo XIXnasceram em paises completa ou relativamente atrasados, 0 que mostraque, no campo da filosofia, a funcao de guia pode ser exercida pela cul-tura de urn pais que, no campo economico, se rnantem em grande atrasoquando comparado corn outros paises proximos. Esta constatacao foiassim formulada por Engels:

    Eis a razao por que paises economicamente atrasados podem, nao obstante,em filosofia, empunhar a batuta em materia de filosofia: [foi0 que fez] a Fran-\a do seculo XVIII, em relacao a Inglaterra, em cuja filosofia os franceses seapoiavam; e, mais tarde, a Alemanha em relacao a urn e outro destes paises".

    r6

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    Marx formula este pensamento - referindo-se principalmente aliteratura - de maneira, se possivel, ainda mais clara e mais concisa. Eleafirma:

    Em relacao a arte, sabe-se que certas formas do florescimento artisti-co nao estao de modo algum em conformidade com 0 desenvolvimentogeral da sociedade, nem, por conseguinte, com 0 da base material quee, de certo modo, a ossatura da sua orgariizacao. Por exernplo, os gre-gos comparados com os modernos ou ainda Shakespeare. Em relacao acertas formas de arte, a epopeia, par exemplo, ate mesmo se admite quenao mais poderiam ser produzidas na sua forma classica em que fizeramepoca, isto e, naquela forma que imprirniu 0 seu selo a toda uma epocado rnundo; que, portanto, no proprio ambito da arte, algumas das suascriacoes notaveis so sao possiveis num estagio inferior do desenvolvimen-to artistico. Se este e 0caso em relacao aos diversos generos artisticos noambito da propria ar te, internamente, e ja menos surpreendente que sejaigualmente 0 caso em relacao a todo 0 dorninio artistico no desenvolvi-mento geral da sociedade".Tal concepcao do desenvolvimento hist6rico exclui, nos marxist as

    autenticos, toda esquematizacao e toda manipulacao de dados a basede analogias ou paralelismo mecanicos. 0 modo pelo qual 0 principiodo desenvolvimento desigual se manifesta em urn determinado campo eem urn determinado periodo da historia das ideologias e urn problemahistorico concreto, ao qual 0 marxismo so pode dar resposta com basenuma analise concreta da situacao concreta. E e por isso que Marx con-clui desta maneira as consideracoes precedentes: "A dificuldade resideapenas na maneira geral de apreender estas contradicoes. Uma vez espe-cificadas, sao logo resolvidas":",

    Marx e Engels se opuseram, durante toda a sua vida, as vulga-rizacoes esquernaricas de seus autointitulados discipulos, que preten-diam substituir 0 estudo concreto do processo historico concreto poruma concepcao da hist6ria apoiada em deducoes e analogias merarnen-te artificiosas, com a substituicao das relacoes complexas e concretasda dialetica por meras relacoes mecanicas. Urn excelente exemplo daaplicacao desse metodo pode ser encontrado na carta de Engels a PaulErnst!', na qual 0 primeiro toma decididamente posicao contra a ten-tativa feita pelo segundo de definir 0 carater "pequeno burgues" deIbsen a partir de urn conceito geral de "pequeno burgues", elaboradopor Ernst a base da analogia com 0 tipo do espirito pequeno burguesalernao, em vez de se reportar as peculiaridades concretas da situacaohist6rica norueguesa.

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    As invcstigacoes hist6ricas de Marx e Engels no campo da artee da literatura estendem-se ao inteiro desenvolvimento da socieda-de humana. Mas, nao menos do que no caso das suas tentativas paraidentificar no desenvolvimento geral da sociedade humana os tracesdo desenvolvimento economico e social, 0 interesse principal deles, nocampo da arte e da Iiteratura, voltou-se para a deterrninacao dos tra-cos essenciais do presente, da evolucao moderna. E, se considerarmosnesta perspectiva a concepcao marxista da literatura, veremos aindamais clara mente a importancia assumida pelo principio da desigual-dade de desenvolvimento na dererrninacao das peculiaridades de qual-quer perfodo, Sem duvida, 0 sistema de producao capitalista representao grau econornico mais elevado no quadro do processo evolutivo dassociedades divididas em classes. Mas tambern nao ha duvida de que,para Marx, tal sistema de producao e essencialmente desfavoravel aodesenvolvimento da literatura e da arte. Marx nao e 0primeiro e nemo iinico a dar conta do fato e a descreve-lo. Somente com ele, porern,as causas efetivas do Ienomeno aparecem em sua integralidade efetiva.o fato e que somente uma concepcao abrangente, dinamica e dialetica,como 0 e 0 marxismo, pode proporcionar 0 quadro exato dessa situa-cao, Naturalmente, este nao e 0 lugar para abordarmos, nem mesmo demodo surnario, tal questao,

    Isso torna particularmente claro para 0 leitor 0fa to de que a teoriae a hist6ria marxistas da literatura constituem apenas parte de urn com-plexo mais amplo, ou seja, 0 materialismo hist6rico. Marx nao deter-mina 0 sentido fundamentalmente hostil a arte do sistema capitalistade producao a partir de pontos de vista esteticos. Assim, se quisermosavaliar as afirmacoes de Marx sobre 0 assunto com base em criteriosquantitativos e estatisticos - 0 que nao e licito, certamente, para quemqueira alcancar uma justa cornpreensao do problema -, chegaremos aconclusao de que esta abordagem da questao pouco chegou a interessa-10 . Mas quem tenha estudado a fundo e de maneira adequada 0 capitale outros escritos de Marx teve a oportunidade de notar que algumas dassuas indicacoes, consideradas no quadro de conjunto de todo 0 sistema,oferecern uma penetracao na essencia do problema bern mais aprofun-dada do que ados escritos dos anticapitalistas romanticos, que por todaa vida se ocuparam de estetica.

    A economia marxista, com efeito, faz com que as categorias doser economico (do ser que constitui 0 fundamento da vida social) sejamderivadas das manifestacoes de suas formas reais, isto e , como relacoesentre homens e homens e, atraves destas, como relacao entre sociedade eIS

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    natureza. Mas, ao mesmo tempo, Marx demonstra que, no capitalismo,todas essas categorias aparecem necessariamente numa forma reificada;e, por causa dessa forma reificada, ocultam a sua verdadeira essencia,ou seja, a de relacao entre os homens. Nessa inversao das categorias fun-damentais do ser humano reside a fetichizacao inevitavel que ocorre nasociedade capitalista. Na consciencia humana, 0mundo aparece com-pletamente diverso daquilo que na realidade ele e: aparece deformadoem sua pr6pria estrutura, separado de suas efetivas conexoes, Torna-senecessario urn peculiar trabalho mental para que 0 homem do capitalis-mo penetre nesta fetichizacao e descubra, por tras das categorias reifica-das (mercadoria, dinheiro, preco etc.) que determinam a vida cotidianados homens, a sua verdadeira essencia, isto e, a de relacoes socia is entreos homens.

    Ora, a humanitas - ou seja, 0 estudo apaixonado da substanciahumana do homem - faz parte da essencia de toda literatura e de toda arteautenticas, Nao basta, para que sejam chamadas de humanistas, que estu-dem apaixonadamente 0homem, a verdadeira essencia da sua substanciahumana; e preciso tam bern, ao mesmo tempo, que elas defendam a inte-gridade do homem contra todas as tendencias que a atacam, a envilecem ea adulteram. Como todas essas tendencias (e, naturalmente, em primeirolugar, a opressao e a exploracao do homem pelo homem) nao assumemem nenhuma sociedade uma forma tao inumana como na sociedade capi-talista - exatamente por causa de seu carater reificado e, portanto, apa-rentemente objetivo -, todo verdadeiro artista ou escritor e urn adversarioinstintivo destas deforrnacoes do principio humanista, independentemen-te do grau de consciencia que tenham de todo este processo.

    Repetimos que e obviamente impossivel discutir aqui amplamenteo problema. Analisando alguns trechos de Goethe e de Shakespeare,Marx poe em evidencia esta acao anti-hurnana do dinheiro, que altera edeforma a essencia do hornern:

    Shakespeare destaca no dinheiro praticamente duas propriedades: 1) e adivindade visivel, a transmutacao de todas as propriedades humanas e natu-rais no seu contrario, a confusao e a inversao universal de todas as coisas,aquele que concilia as inconciliaveis; 2) e a prostituta universal, a proxenetaque corrompe as homens e os povos. A inversao e a confusao de todas asqualidades humanas e naturais, a conciliacao dos inconciliaveis - a poderdivino - do dinheiro, tudo isso provem da sua essencia enquanto ser gene-rico que se aliena, exterioriza e se vende. 0 dinheiro e 0 poder alienado dahumanidade. 0 que eu nao posso fazer como homem, isto e , aquila queeu nao consigo com as minhas forcas essenciais individuais, consigo-o pelo

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    dinheiro. 0 dinheiro transforma, pois, essas forcas essenciais em algo queelas nao sao, quer dizer, no contrario delas+'.Mas, com isso, nao se exaurem os temas principais ora abordados.

    A hostilidade da ordem de producao capitalista a arte se manifesta igual-mente na divisao capitalista do trabalho. Urn maior desenvolvimento nacornpreensao deste aspecto do tema nos remeteria, ainda uma vez, aoestudo da economia como uma totalidade. Do ponto de vista do nossoproblema, vamos nos contentar em fixar aqui urn so principio, que sera,novamente, 0 principio do humanismo, 0 principio que a luta ernanci-padora do proletariado herdou dos grandes movimentos democraticose revolucionarios precedentes, heranca elevada a urn plano qualitativa-mente superior, ou seja, a reivindicacao do desenvolvimento harmonicoe integral do homem. Ao contrario, a hostilidade a arte e a cultura,propria do sistema capitalista, comporta 0 fracionamento da totalidadeconcreta do homem em especializacoes abstratas.

    Mesmo os anticapitalistas rornanticos reconhecem que e esse, real-mente, 0estado de coisas. Com a diferenca, porern, de verem nele apenasa expressao de uma fatalidade, uma calamidade, pelo que tentaram -ao menos sentimentalmente, no plano ideal - refugiar-se em sociedadesrnais primitivas, assumindo, deste modo, uma posicao que devia inevi-tavelmente assumir caracteristicas reacionarias. Marx e Engels jamaisnegaram 0 carater progressista do sistema capitalista de producao, mas,ao me smo tempo, desmascararam-Ihe impiedosamente as aspectos desu-manos. Eles compreenderam e expressaram claramente que apenas tri-lhando tal estrada a humanidade poderia alcancar as condicoes mate-riais basicas para a sua libertacao real e definitiva no socialismo. Mas acornpreensao do carater econornico, social e historicamente necessariada ordem social capitalista e a fundamentada repulsa a qualquer "retor-no" a epocas superadas nao embotam a critica da civilizacao capitalistapar Marx e Engels, mas, ao contrario, a agucarn. Quando eles remetema epocas ja superadas, isso nao implica uma evasao romantic a no passa-do; esta atitude remete ao inicio da luta que emancipou a humanidadede urn periodo de exploracao e opressao ainda mais oculto e intenso, ouseja, 0periodo feudaL Por isso, quando Engels fala do Renascimento,suas consideracoes se referem a essa luta de ernancipacao, as conquistasiniciais da luta dos trabalhadores em busca da libertacao; e, quandoele contrapoe a divisao capitalista do trabalho aos processos vigentesnaquele tempo, nao 0 faz tanto para exaltar estes iiltimos, e sim, prin-cipalmente, para mostrar 0 caminho que conduz a humanidade a liber-tacao futura.20

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    Por isso, falando do Renascimento, Engels pode afirmar:Foi essa a maior revolucao progressista que a humanidade conhecera ateentao; foi uma epoca que exigia gigantes e que forjou gigantes pela forca dopensamento, pela paixao e pelo carater, pela universalidade e pela erudicao,Dos homens que lancararn as bases do atual dominic da burguesia poderase dizer 0que se quiser, mas de modo nenhum que tenham pecado de limi-tacao burguesa. [... J OS herois daqueles tempos ainda nao eram escravosda divisao do trabalho, cuja influencia comunica a atividade dos homens,como podemos observa-lo em muitos dos seus sucessores, urn carater limita-do e unilateral. 0 que rna is caracteriza as referidos herois e que quase todoseles viviam plenamente os interesses de seu tempo, participavam de maneiraativa na luta politica, aderiam a urn au outro partido e lutavam, uns coma palavra e a pena, outros com a espada, e outros com ambas as coisas aomesmo tempo. Dai a plenitude e a forca de carater que fazem deles homensde uma so peca. Os sabios de gabinete eram nesta epoca uma excecao: eramhomens de segunda ou terceira linha, ou prudentes filisteus que nao desejamsujar os dedos':'.Marx e Engels exigiam dos escritores do seu tempo, por con-

    seguinte, que - atraves da caracterizacao dos seus personagens - elesromassem apaixonadamente posicao contra os efeitos perniciosos e envi-lecedores da divisao capitalista do trabalho e colhessem 0homem na suaessencia e na sua totalidade. E exatamente porque percebiam na maiorparte dos seus contemporaneos a falta dessa aspiracao a integralidade,do anseio pela totalidade, a orientacao para 0 essencial, e a essencia,consideravam-nos epigonos sern importancia,

    Na sua critica a Sickingen, tragedia de autoria de Lassalle, Engelsescreve: "Voce tern razao quando protesta contra a md individualiza-cao, hoje muito espalhada, que se reduz afinal a pobres argucias e e 0sinal que distingue a literatura esteril dos cpigonos'?". Mas, na mesmacarta, Engels indica tambem a fonte onde 0poeta moderno pode buscaresta fore;a, esta amplitude de horizontes, esta totalidade. Na sua criti-ca ao drama de Lassalle, ele nao se limita a reprovar-lhe 0 fato de tersuperestimado politicamente 0 movimento aristocratico de Sickingen(que era substancialmente reacionario e nao tinha, desde 0inicio, qual-quer possibilidade de exito), e de ter ao mesmo tempo subestimado asgrandes revolucoes camponesas da epoca: indica, tambem, de que modouma vasta e rica representacao da vida do povo teria podido conferir aodrama caracteristicas mais realistas e cheias de vida.

    As observacoes feitas ate aqui mostram como a base econornicada ordem capitalista de producao repercute na literatura independen-temente da subjetividade dos escritores. Marx e Engels, porern, estao

    2I

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    bern longe de negligenciar este momenta subjetivo. Voltaremos a abor-dar mais a fundo esta questao; por ora, limitamo-nos a uma breve indi-cacao: e exatamente a identificacao do escritor burgues com sua classe,com os preconceitos da sociedade burguesa, que 0 acovarda, que 0 fazdar as costas aos problemas essenciais. No curso das lutas ideologi-cas e literarias realizadas nos anos que se seguiram imediatamente a1840, 0 jovem Marx desenvolveu uma critica aprofundada ao romancede Eugene Sue, as misterios de Paris, muito lido naquele tempo e bas-tante popular na Alemanha 15. Aqui, limitamo-nos a lembrar que aquiloque Marx mais fustiga em Sue e precisamente 0fato dele se adaptar asuperficie da sociedade capitalista, deformando e falseando a realidadepor puro oportunismo. Hoje, naturalmente, ninguem mais I e Sue. Masa cada dec ada surgem, em consonancia com as eventuais humores daburguesia, escritores que se poem "em moda" e para os quais - com asvariantes de cad a caso - essa critica conserva a sua validez.

    Pode-se notar que nossa analise, fixando-se inicialmente na gene-se e no desenvolvimento da literatura, passou quase que insensivelmentea tratar de problemas de estetica, no sentido estrito do termo. E, comisso, chegamos ao segundo complexo de problemas da concepcao mar-xista cia arte. Marx considerou extremamente importante a investigacaodas premissas historicas e sociais cia genese e do desenvolvimento da lite-ratura, mas jamais sustentou que as questoes a ela concernentes fossemcom isso sequer aproximativamente exauridas.

    A dificuldade nao esta em compreender que a arte e a epopeia gregas estaoligadas a eertas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside nofato de nos proporcionarem ainda urn prazer estetico e de terem ainda paranos, em eertos aspectos, 0 valor de norm as e modelos inacessiveis'".

    A resposta de Marx a questao que ele mesmo se coloca e , aindauma vez, de carater historico-conteudistico, Ele enfoca as relacoes exis-tentes entre 0 mundo grego, como "infancia normal da humanidade",e a vida espiritual dos homens nascidos bern mais tarde. Mas a ques-tao nao 0leva ao problema da origem da sociedade, mas a forrnulacaodos principios fundamentais da estetica (nao de maneira formalista, eclaro, mas em uma ampla perspectiva dialetica). A solucao fornecida porMarx, com efeito, suscita dois grandes complexos de problemas relativosa essencia estetica de toda obra de arte de toda e qualquer epoca: quesignificacao possui 0 mundo assim representado do ponto de vista daevolucao da humanidade? E de que modo 0 artista representa urn dosseus estagios, no quadro geral dessa evolucao?22

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    o caminho que leva a questao da forma artistica deve partir daqui.E tal questao, naturalmente, so pode ser colocada e resolvida numa inti-ma conexao com os princfpios gerais do materialismo dialetico. Uma tesefundamental do materialismo dialetico sustenta que qualquer tomada deconsciencia do mundo exterior nao e mais do que 0 reflexo da realidade,que existe independentemente da consciencia, nas ideias, representacoes,sensacoes etc. dos homens. E claro que 0materialismo dialetico, que narormulacao geral deste principio concorda com todos os tipos de mate-rialismo e se opoe a todas as variantes do idealisrno, e decididamentediferente do materialismo mecanicista. Quando Lenin criticava sobreisso 0velho materialismo, insistia precisamente neste motivo fundamen-tal, ou seja, 0 de que 0 velho materialisrno nao estava em condicoes deconceber dialeticamente a teoria do reflexo.

    A criacao artistica, por conseguinte, enquanto uma forma de refle-xo do mundo exterior na consciencia humana, esta inserida na teoriageral do conhecimento professada pelo materialismo dialetico. E certoque a obra de criacao artistic a, dadas as suas peculiaridades, constituiurn momento singular, com caracteristicas proprias, da teoria materia-Iista dialetica do conhecimento; nela vigoram muitas vezes leis nitida-mente diversas das de outros campos abrangidos pela referida teoria.~as consideracoes que se seguem, procuraremos falar a respeito de algu-mas dessas peculiaridades do reflexo litera rio e artistico, sem pretender,obviamente, nem de longe, tracar urn quadro exaustivo (ainda que soesbocado) do conjunto de tais peculiaridades e de seus problemas.

    A teoria do reflexo nao e absolutamente nova em estetica. A ima-gem consubstanciada na palavra reflexo, como metafora que exprirnebern a essencia da criacao artistica, tornou-se famosa gracas a Shakes-peare, que, na cena dos cornediantes em Hamlet, indica essa concepcaoda arte como constituindo a base da sua teoria e pratica Iiterarias. Masa ideia em si e muito mais antiga: ela ja constituia urn problema cen-tral na estetica de Aristoteles. E, desde entao, excetuadas as epocas dedecadencia, predomina em quase todas as grandes esteticas, E claro queuma exposicao historica da evolucao das concepcoes esteticas nao cabenesta introducao, Basta-nos, contudo, recordar de passagem 0 fato deque muitas esteticas idealistas (como, por exemplo, a de Platao) baseiarn-se, a seu modo, nesta teoria. Mais importante, ainda, e a constatacao deque quase todos os grandes escritores da literatura mundial escreveraminstintivamente (com maior ou menor grau de consciencia) segundo talreoria, e que os esforcos deles para esclarecerem a si mesmos os princi-pios basicos de suas pr6prias criacoes encarninharam-se no sentido dessa

    23

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    teoria. A meta de quase todos os grandes escritores foi a reproducaoartistic a da realidade: a fidelidade ao real, 0 esforco apaixonado parareproduzi-lo na sua integridade e totalidade, tern sido para todo grandeescritor (Shakespeare, Goethe, Balzac, Tolstoi) 0 verdadeiro criterio dagrandeza literaria.

    Que a estetica marxista, a prop6sito dessas questoes funda-mentais, nao encampe as reivindicacoes de uma "inovacao radical", ecoisa que s6 surpreende aqueles que, sem motivo serio e sem verdadeiroconhecimento de causa, vinculam a concepcao do mundo do proletaria-do a qualquer "novidade absoluta" ou a urn "vanguardismo" arristico,acreditando que a emancipacao do proletariado comporte no campo dacultura uma completa remincia ao passado. Os classicos e fundadores domarxismo jamais adotaram tal ponto de vista. No entender deles, a con-cepcao do mundo do proletariado, a sua luta de emancipacao e a futuracivilizacao a ser criada por essa luta devem herdar todo 0 conjunto devalores reais elaborados pela evolucao plurimilenar da humanidade.

    Lenin constata, num de seus trabalhos, que uma das razoes dasuperioridade do marxismo ern cornparacao com as ideologias burgue-sas consiste exatamente nesta sua capacidade de incorporar criticamentetoda a heranca da cultura progressista e de assimilar organicamente tudoo que e grande no passado. 0 marxismo supera estes seus predecessoresapenas (se bern que este "apenas" signifique muitissimo, quer metodolo-gicamente, quer no que cone erne ao conteudo) por tornar conscientes assuas aspiracoes, eliminando os desvios idealistas e mecanicistas de taisaspiracoes, reconduzindo-as as suas verdadeiras causas e inserindo-asapropriadamente no sistema de leis da evolucao social. No campo daestetica, no campo da teoria e da hist6ria da Iiteratura, podemos resumira situacao dizendo que 0 marxismo eleva a esfera da clareza concei-tual aqueles principios fundamentais da atividade criadora que vivemha milenios nos sistemas dos melhores pensadores e nas obras dos maisnotaveis escritores e artistas.

    Se agora pretendemos esclarecer algum dos aspectos mais impor-tantes dessa situacao, deparamo-nos com a seguinte questao: 0 que eessa realidade que a criacao artistica deve refletir com fidelidade? Aqui,importa acima de tudo 0carater negativo da resposta: essa realidade naoe somente a superficie imediatamente perce bid a do mundo exterior, naoe a soma dos fenomcnos eventuais, casuais e momentaneos, Ao mesmotempo que coloca 0 realismo no centro da teoria da arte, a estetica mar-xista combate firmemente qualquer especie de naturalismo, qualquertendencia a mera reproducao fotografica da superficie imediatamente

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GY0RG LUKAcs

    :"efceptivel do mundo exterior. Ainda neste ponto, a estetica marxista=-ada afirma de radiealmente novo; limita-se a desenvolver ao seu mais::_2mnivel de consciencia e clareza aquilo que sempre se eneontrou nocentro da teoria e da pratica dos grandes artistas do passado.

    Mas, ao mesmo tempo em que combate 0 naturalismo, a estetica':0 marxismo eombate, com nao menos firmeza, urn outro falso extre-=:0: a concepcao que, partindo da ideia de que a mer a copia da realidade':eye ser rejeitada e da ideia de que as formas artisticas sao independen-:;:'5 dessa realidade superficial, ehega a atribuir, no ambito da teoria e da;:ratica da arte, uma independencia absoluta as formas artisticas. Esta:alsa concepcao chega a considerar a perfeicao formal como urn fimtill si mesma e, por conseguinte, prescinde da realidade na busca de tal~rfei

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    gicas se compoern de detalhes naturalistas, impressionistas etc., e estesdetalhes inorganic os se articulam em uma pseudounidade, sob a egidede uma "concepcao do mundo" mistificada.

    A autentica dialetica de essencia e fenorneno se baseia no faro deque ambos sao igualmente momentos da realidade objetiva, produzidospela realidade e nao pela consciencia humana. No entanto - e este e urnimportante axioma do conhecimento dialetico -, a realidade apresentadivers os graus: existe a realidade fugaz e epidermic a, que nunea se repe-te, a realidade do instante que passa, e existem elementos e tendencias deuma realidade mais profunda, que ocorrem segundo determinadas leis,ainda que estas se transformem com a mudanca das circunstancias. Taldialetica atravessa toda a realidade, de modo que, numa relacao dessetipo, relativizam-se aparencia e essencia: aquilo que era uma essenciaque se eontrapunha ao fenorneno aparece, quando nos aprofundamos esuperamos a superficie da experiencia imediata, como fenomeno ligadoa uma outra e diversa essencia, que s6 podera ser atingida por investiga-coes ainda mais aprofundadas. E assim ate 0 infinito.

    A verdadeira arte visa ao maior aprofundamento e a maximaabrangencia na captacao da vida em sua totalidade onicompreensiva.A verdadeira arte, portanto, sempre se aprofunda na busca daquelesmomentos mais essenciais que se acham ocultos sob a superficie dosfenomenos, mas nao representa esses momentos essenciais de maneiraabstrata, ou seja, suprirnindo os fenomenos ou contrapondo-os a essen-cia; ao contrario, ela apreende exatamente aquele processo dialeticovital pelo qual a essencia se transform a em fenomeno, se revel a no feno-meno, mas figurando ao mesmo tempo 0momenta no qual 0 fenomenomanifesta, na sua mobilidade, a sua pr6pria essencia. Por outro lado,esses momentos singulares nao s6 contern neles mesmos urn movimentodialetico, que os leva a se superarem continuamente, mas se acham emrelacao uns aos outros numa permanente acao e reacao mutua, consti-tuindo momentos de urn proeesso que se reproduz sem interrupcao. Averdadeira arte, portanto, fornece sempre urn quadro de conjunto davida humana, representando-a no seu movimento, na sua evolucao edesenvolvimento.

    Dado que, desse modo, a concepcao dialetica apreende, numaun ida de universal movel, 0 particular e 0 singular, e claro que essa con-cepcao deve se manifestar de maneira peculiar nas formas fcnomenicasespecificas da arte. Ao contrario da ciencia, que resolve este movimentonos seus elementos abstratos e se esforca por identificar conceitualmen-te as leis que regulam a interacao entre os elementos, a arte conduz a

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYQRG LUKAcs

    .aruicao pela sensibilidade desse movimento como movimento mesmo,ern sua unidade viva. Uma das mais importantes categorias desta sinteseartistica e a do tipo. E nao foi por acaso que Marx e Engels se repor-tararn a este conceito quando quiseram definir 0 verdadeiro realismo.Escreve Engels: "0 realismo supoe, a meu ver, alern da fidelidade aos;,ormenores, a reproducao exata de caracteres tipicos em circunstanciastipicas?". Mas Engels afirma igualmente que nao e licito, absolutamen-tc, contrapor a tipicidade ao carater unico do fenorneno, fazendo delauma generalizacao abstrata deste: "Cada urn destes caracteres e urn tipo,mas, ao mesmo tempo, urn individuo singular determinado, urn Oeste',como diz 0 velho Hegel. E assim deve ser"!".Portanto, 0 tipo nao e , para Marx e Engels, 0 tipo abstrato darragedia classica, nem 0 personagem que resulta da generalizacao idea-.izante de Schiller, e muito menos aquela media que pretenderam esta-::elecer a literatura e a teoria literaria de Zola e seus sucessores. 0 tipovern caracterizado pelo fato de que nele convergem, em sua unidade con-rraditoria, todos os traces salientes daquela unidade dinarnica na qual aautentica literatura reflete a vida; nele, todas as contradicoes - as maisimportantes contradicoes sociais, morais e psico16gicas de uma epoca- se articulam em uma unidade viva. A representacao da media, aocontrario, faz com que tais contradicoes, que sao sempre 0 reflexo dosgrandes problemas de uma epoca, aparecam necessariamente dilnidas.~enfraquecidas no estado de espirito e nas experiencias de urn homemmediocre, com 0que sao sacrificados os seus traces essenciais. Na repre-sentacao do tipo, na criacao artistica tipica, fundem-se 0concreto e a lei,o elemento humano eterno e 0historicamente determinado, 0momen-TO individual e 0 momento social universal. Portanto, e na representa-~ao tfpica, na descoberta de caracteres e situacoes tipicas, que as maisimportantes tendencias da evolucao social conseguem uma expressaoartistica apropriada.

    A essas observacoes de carater geral, devemos acrescentar umaoutra: Marx e Engels viam em Shakespeare e em Balzac (em compara-cao, respectivamente, com Schiller, de urn lado, e com Zola, de outro)a tendencia artistica realista que melhor correspondia a estetica queprofessavam. A preferencia por estes grandes escritores indica, por simesma, que a concepcao marxista do realismo nada tern a ver com acopia fotografica da vida cotidiana. A estetica marxista se limita a dese-jar que a essencia individualizada pelo escritor nao venha representadade maneira abstrata e, sim, como essencia organicamente inserida noquadro da ferrnentacao dos fenornenos a partir dos quais ela nasce. Nao

    27

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    --------------------------------- --------CULTURA, ARTE E LITERATURA

    e absolutamente necessario que 0 fenorneno artisticamente figurado sejaatingido como fenomeno da vida cotidiana e nem mesmo como fenomc-no da vida real em geral. Isso significa que ate mesmo 0 mais extrava-gante jogo da fantasia poetica e as mais fantasticas representacoes dosfenomenos sao plenamente conciliaveis com a concepcao marxista dorealismo.

    Nao e de modo algum por acaso que precisamente algumas nove-las Iantasricas de Balzac e de E. T. A. Hoffmann estivessem entre ascriacoes artisticas mais admiradas por Marx. Naturalmente, ha fanta-sia e fantasia. E ha fantastico e fantastico. Se, neste campo, quisermosprocurar urn criterio de valorizacao e discrirninacao, deveremos voltaras teses fundamentais da dialetica materialista e a teoria do reflexo darealidade. A estetica marxista, que nega 0 carater realista do mundorepresentado atraves de detalhes naturalistas (que escamoteiam as for-

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYGRG LUKAcs

    Todas essas exigencias manifestam a resoluta e radical objetivida-it: da estetica marxista. Segundo tal concepcao, 0 traco dorninante doszrandes realistas e , pois, a tentativa apaixonada e espontanea de captar:- reproduzir a realidade tal como ela e , objetivamente, na sua essencia.A esse respeito, sao numerosos os equivocos correntes acerca da estetica:::larxista. Costuma-se repetir que ela subestima a acao do sujeito, que elasubestima a eficacia do fator artistico subjetivo na criacao da obra de arte.Costuma-se confundir Marx com aqueles vulgarizadores que permanecemteoricamente presos as tradicoes naturalistas e apresentam como marxistaJfalso e mecanico objetivismo dessas tradicoes, Tivemos, contudo, oca-;1.10 de constatar que urn dos problemas centrais da concepcao marxistai: a dialetica do fenorneno e da essencia, a descoberta e enunciacao daessencia no contexto das contradit6rias manifestacoes fenornenicas. Ora,se nao cremos que 0 sujeito artistico "erie" ex nihilo algo radicalmente:lOVO, se reconhecemos que ele descobre uma essencia que existe inde-oendentemente dele (e que nao e acessivel a todos e permanece por muitoTempo oculta ate para 0maior dos artistas), nem por isso a atividade dosujeito cessa ou e minimamente diminuida. Portanto, se a estetica marxis-ra identifica 0maior valor da atividade criadora do sujeito artistico no fatodele assumir em suas obras 0 processo social universal e torna-lo sensivel,experimentalmente acessivel; ese, nessas obras, cristaliza-se a autocons-ciencia do sujeito, 0 despertar da consciencia do desenvolvimento social,nada disso implica uma subestimacao da atividade do sujeito artistico,mas, ao contrario, temos assim uma legitima valorizacao desta atividade,mais elevada do que a de qualquer outro criterio precedente.

    Ainda aqui, como em tudo, 0 marxismo nada cria de "radical-mente novo". J a a estetica de Platao, a sua doutrina do reflexo artisticodas ideias, aflorava essa questao. Mas, tambem neste campo, 0marxis-rno recoloca sobre seus pr6prios pes a verdade que os grandes idealis-ras tinham descoberto invertida. Por urn lado, 0marxismo nao admite,como vimos, uma radical contraposicao entre fenomeno e essencia, masprocura a essencia no fenomeno e 0 fenorneno na relacao organics coma essencia. Por outro lado, a captacao estetica da essencia, da ideia, naoconstitui para 0marxismo urn ato linear e definitivo e, sim, urn proces-so: processo que e movimento, aproximacao gradual a realidade essen-cial, ate mesmo porque a realidade mais profunda e essencial e sempreapenas uma porcao daquela totalidade do real da qual tambem faz parteo Ienomeno superficial.

    Por isso, se 0 marxismo realca a objetividade mais radical doconhecimento e da representacao estetica, acentua tambem, ao mesmo29

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    tempo, 0 papel indispensavel do sujeito criador, ja que este processo,esta aproximacao gradual a essencia oculta, e uma estrada que se abresomente para os maiores e mais perseverantes genies da criacao artisti-ca. A objetividade da ciencia marxista chega ao ponto de nao reconhecernem mesmo a abstracao - a abstracao verdadeiramente significativa - apropriedade de mere produto da consciencia humana; demonstra, aocontrario, especial mente para as formas prirnarias do processo social(isto e , as formas economicas], de que modo a abstracao se realiza eopera com base na propria realidade social e de seus objetos. Mas, parapoder acompanhar 0 processo de abstracao com inteligente fantasia,para poder trilhar 0 seu caminho e iluminar seus desenvolvimentos, epreciso concentrar em figuras e situacoes tipicas 0 tecido do processoglobal. E, para isso, requer-se urn genic artistico da maxima grandeza.

    Vemos, por conseguinte, que a objetividade da estetica marxis-ta nao se acha absolutamente em contradicao com 0 reconhecimentodo fator subjetivo na arte. Mas devemos ainda considerar esta ideia deoutro angulo: precis amos acrescentar as nossas consideracoes que aobjetividade marxista nao significa neutralidade em face dos fenomenossociais. Precisamente porque - como corretamente reconhece a esteticamarxista - 0 grande artista nao representa coisas ou situacoes estati-cas, mas investiga a direcao e 0 ritmo dos processos, cumpre-Ihe, comoartista, definir 0carater de tais processos. E, numa tomada de conscien-cia deste genero, ja esta implicita uma tomada de posicao, A concepcaosegundo a qual 0 artista seria so urn espectador passivo desses proces-sos, situando-se acima de todo e qualquer movimento social (a flauber-tiana impassibilitei; e , no melhor dos casos, uma ilusao, uma forma deautoengano; mas quase sempre nao passa de uma evasao, de uma fugadiante dos grandes problemas da vida e da arte. Nao hi grande artistaem cuja representacao da realidade nao se exprimam, ao mesmo tempo,tambem as suas opinioes, desejos, aspiracoes apaixonadas e nostalgicas.Sera essa constatacao contraditoria em relacao a nossa assertiva de quea essencia da estetica marxista e a objetividade?

    Entendemos que nao. E, para poder elucidar a questao, devemoslembrar brevemente 0 problema da chamada arte de tendencia ou detese, procurando esclarecer qual seja a interpretacao marxista do pro-blema e quais as relacoes dessa intcrpretacao com a estetica marxista.o que e a tese? Numa acepcao superficial, e uma tendencia politica ousocial do artista que ele quer demonstrar, defender e ilustrar com a suapropria obra de arte. E interessante e sintornatico que Marx e Engelssempre se exprimissem com ironia a respeito de tais construcoes artifi-

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    .::::sas, quando tratavam de uma arte dessa especie, A ironia que mani-~=s!am se torna especialmente aspera quando verificam que 0 escritor,;:.ira demonstrar a verdade de qualquer proposicao ou justificacao, vio-.enra a realidade objetiva, deformando-a. (Vejarn-se, ern particular, as::-servac;6es criticas de Marx sobre Sue.) Mesmo quando se trata de umzrande escritor, Marx protesta contra a tendencia no sentido de utilizar::..:ia a obra, ou mesmo um so personagem, como expressao direta e:..::J.ediatadas opinioes do autor, 0 que priva 0 personagem da autentica;:"Jssibilidade de viver ate 0 fundo suas proprias faculdades vita is segun-" : . i ) as leis intimas e organicas da dialetica de seu proprio ser. E e isso que~.Iarx desaprova na tragedia de Lassalle:

    Poderias exprimir, e num grau muito maior, as ideias mais modernas nasua forma rnais pura, ao passo que, ao procederes como procedestes, exce-tuando-se a liberdade religiosa, e a unidade politica que permanece, de fato,como a ideia central do teu drama. Muito naturalmente, no caso que apon-to, deverias ter shakespeareanizado mais tua peca. Considero 0 teu maiorerro a schillerizacdo, ou seja, a transforrnacao dos indivfduos em simplesporta-vozes do espirito da epoca",No entanto, esta rejeicao da literatura de tendencia nao signifi-

    ca absolutamente que a verdadeira literatura nao tenha uma tendencia.Cabe lembrar que a realidade objetiva, em si mesma, nao e uma cao-:lea mistura de movimentos sem direcao, mas urn processo evolutivoque possui internamente tendencias mais ou menos acentuadas e que,sobretudo, possui em si uma tendencia fundamental. 0 desconhecimen-:0 desse fato, e uma tomada de posicao falsa diante dele, ocasionamsernpre grandes prejuizos a qualquer criacao artistica. Basta recordar acritica de Marx a tragedia de Lassalle.

    Isso ja define a atitude do artista em face das diversas tenden-cias do movimento social e, em particular, das tendencias fundamentaisdeste processo. De acordo com isso, Engels exprime do seguinte modo 0seu ponto de vista sobre a tendencia na arte:

    Nao sou, de forma nenhuma, adversario da poesia de tendencia como tal.Esquilo, 0pai da tragedia, e 0 pai da comedia, Aristofanes, foram ambos, ede forma muito vigorosa, poetas de tendencia, bern como Dante e Cervantes.Eo que ha de melhor em Intriga e amor de Schiller eo fato de ser 0primeirodrama politico alernao de tendencia. Os russos e noruegueses modernos, queescrevem excelentes romances, sao romancistas de tendencia. Julgo, porem,que a tendencia deve derivar da pr6pria situacao e acao, sem ser explicita-mente formulada. 0 poeta nao tern que ja dar pronta ao leitor a solucaohist6rica futura dos conflitos sociais que descreve'".

    31

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    Engels explica aqui claramente de que modo a tendencia se conci-lia com a arte e ajuda 0 artista a produzir as maiores criacoes; mas issos6 ocorre quando a tendencia brotar organicamente da essencia artisti-ca da obra, da representacao artistica, ou seja - de acordo com 0quedissemos antes - da realidade mesma, da qual a arte constitui 0 reflexodialetico. Ora, quais sao as tendencias fundamentais diante das quaisos autenticos criadores de obras literarias devem assumir posicao? Saoas grandes questoes do progresso do genero humano. N enhum grandeescritor pode permanecer indiferente diante delas, e, sem tomar apaixo-nadamente posicao em face de tais questoes, nao sera possivel criar tiposautenticos, com 0 que nao tera lugar 0 verdadeiro realismo. Sem essatomada de posicao, 0 escritor jamais podera distinguir entre 0 essenciale 0 nao essencial. Do ponto de vista da totalidade do desenvolvimentosocial, a possibilidade de efetuar uma distincao justa e vedada aqueleque nao se entusiasma pelo progresso, que nao detesta a reacao, que naoama 0 bern e nao repele 0mal.

    Neste ponto, porern, verno-nos aparentemente envoltos numa pro-funda contradicao, Da argumentacao precedente, parece resultar quetodo escritor da sociedade dividida em classes deve possuir, para sergrande, uma concepcao progressista do mundo em filosofia, sociologiae politica; parece resultar que, em suma (para dar a essa aparente con-tradicao uma formulacao clara), todo grande escritor deve ser politicae socialmente de esquerda. No entanto, nao poucos entre os grandesrealistas da hist6ria da literatura - e exatamente os autores preferidospor Marx e Engels - demonstram 0 contrario: nem Shakespeare, nemGoethe, nem Walter Scott, nem Balzac tiveram uma posicao politica deesquerda.

    Marx e Engels nao s6 nao procuraram evitar essa questao comoa submeteram, de fato, a uma analise sutil e profunda. Numa famosacarta a Margaret Harkness, Engels aborda amplamente 0problema, istoe , 0 fato de que Balzac, portador de sentimentos politicamente monar-quistas e legitimistas, admirador da aristocracia em declinio, exprima,nas suas obras, em ultima instancia, exatamente a concepcao oposta.

    Nao hi duvida que, em politica, Balzac era legitimista. A grande obra quedeixou e uma elegia permanente, lamentando a decornposicao inevitavelda alta sociedade; todas as suas simpatias van para a classe condenadaa desaparecer. Mas, apesar disso, a satira nunca e tao contundente nema ironia nunca tao amarga como quando poe em acao, precisamente, asaristocratas, esses homens e mulheres por quem sentia uma simpatia taoprofunda+ .

    32

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    E, em nitido contraste com isso, ele apresenta os seus adversaries:-t:2.:ricos,os republicanos revoltosos, como os unicos verdadeiros herois= . . ; _ epoca, As consequencias ultirnas dessa contradicao sao sintetizadas:-Cf Engels da seguinte forma:

    o fato de Balzac ter sido forcado a ir contra as pr6prias simpatias de classe econtra seus preconceitos politicos, 0 fato de ter visto 0 fim inelutavel de seustao estimados aristocratas e de os ter descrito como nao merecendo melhorsorte, 0 fato de ter vista os verdadeiros homens do futuro no unico localonde, na epoca, podiam ser encontrados - tudo isso eu considero como urndos maiores triunfos do realisrno e uma das caracteristicas rnais notaveis dovelho Balzac".Ted ocorrido, talvez, urn milagre? Ter-se-a revelado aqui uma

    ~:enialidade artistica "irracional", misteriosa, que nao pode ser apreen-":ida conceitualmente e que rompeu as cadeias das concepcoes politicas~ue a adulteravam? Nada disso. 0 que a mencionada analise de Engels2.:monstra e , substancialmente, urn fato simples e claro, cuja verdadeira~:gnifica~ao, contudo, s6 foi pela primeira vez efetivamente descobertat analisada por ele e por Marx. Trata-se, antes de mais nada, daquelaaonestidade estetica incorruptivel, isenta de qualquer vaidade, propria.ios escritores e artistas verdadeiramente grandes. Para eles, a realida-de. tal como ela e , tal como se revelou em sua essencia apos pesquisascansativas e aprofundadas, esta acima de todos os seus desejos pessoais::naiscaros e mais intimos. A honestidade do grande artista consiste pre-.:isamente no fato de que, quando a evolucao de urn personagem entraem contradicao com as concepcoes ilusorias em funcao das quais ele seengendrara na fantasia do escritor, este 0 deixa desenvolver-se livrementeJ.re suas iiltimas consequencias, sem se perturbar com 0 fato de que suasmais profundas conviccoes viram fumaca por estarem em contradicaocorn a autentica e profunda dialetica da realidade. Tal e a honestidadeque podemos constatar e estudar em Cervantes, em Balzac, em Tolstoi.

    Mas tambem esta honestidade tern urn seu conteudo concreto.Para percebe-lo, basta confrontar 0 legitimismo de Balzac com 0de urnescritor como Paul Bourget, por exemplo. Bourget esta efetivamente emguerra contra 0 progresso, quer mesmo impor a Franca republicana 0jugo da velha reacao; ele se serve das contradicoes e do carater pro-blematico da vida moderna para apresentar como rernedio a ideologiasuperada dos velhos tempos. 0 verdadeiro conteudo do legitimismo bal-zaqueano, ao contrario, e a defesa da integridade do homem durante aascensao capitalista iniciada na Franca a epoca da Restauracao, Balzacnao percebe apenas a forca irresistivel desse processo; percebe igual-

    33

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    mente que sua irresistibilidade deriva dos momentos progressistas quecontem. Percebe que essa evolucao, a despeito de todos os seus tracesdeformados e deformantes, alcanca no desenvolvimento da humanidadeuma etapa mais elevada do que a feudal ou semifeudal que eia esta des-truindo, por vezes de forma horrenda. Porern, ao mesmo tempo, Balzacverifica que este processo traz consigo uma dilaceracao, uma deforma-

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    corrente progressista da evolucao humana. Do ponto de vista marxista,i: tao inadrnissivel colocar no pedestal dos classicos escritores ineptos oumediocres por causa de suas conviccoes politicas, quanta querer reabi-litar, com base na forrnulacao de Engels, escritores de maior ou menorhabilidade, mas completa ou parcialmente reacionarios.

    Nao foi por acaso que falamos, a respeito de Balzac, da salva-guarda da integridade do homem. N a maior parte dos grandes realistas,~este 0motivo que leva a reproducao do mundo real, se bern que - como~ 6bvio - com caracteristicas e tons bastante diversos, conforme as epo-cas e os individuos. Grandeza artistica, realisrno autentico e hurnanismosao sempre indissoluvelmente ligados. E 0principio unificador e precis a-mente aquele mencionado, ou seja, a preocupacao com a integridade dohomem. Tal humanismo e urn dos principios fundamentais mais essen-ciais da estetica marxista. Devemos reafirmar que foram Marx e Engelsos primeiros a colocar 0 principio da humanitas no centro mesmo daconcepcao estetica, Ainda aqui, como em tudo 0 mais, Marx e Engelsioram os continuadores da obra dos maiores representantes do pensa-menta filos6fico e estetico, elevando-o a urn nivel qualitativamente rna isalto. Por outro lado, porern, precisamente porque nao sao seus iniciado-res, mas realizam a coroamento de uma longa evolucao, Marx e Engelssao de longe os representantes rna is consequentes deste humanismo.

    E, se sao tais representantes, 0 sao - contrariamente aos precon-ceitos burgueses habituais - exatamente com base em sua concepcaomaterialista do mundo. Numerosos pensadores idealistas ja sustenta-ram parcialmente principios humanistas analogos aos de Marx e Engels;numerosos pensadores idealistas lutaram em nome do humanismo con-tra tendencias politicas, sociais e marais combatidas tambern por Marxe Engels. Mas s6 a concepcao rnaterialista da historia e capaz de reco-nhecer que a verdadeira e mais profunda lesao ao principio do huma-nismo, a dilaceracao e mutilacao da integridade humana, e apenas aconsequencia inevitavel da estrutura econornica, material, da sociedade.A divisao do trabalho nas sociedades de classe, a cisao entre cidade ecampo, a divisao entre trabalho fisico e trabalho espiritual, a exploracaoe a opressao do hornem pelo hornern, a fragmentacao do trabalho nascondicoes anti-hurnanas da ordern capitalista de producao - todos estesprocessos sao processos economicos, materiais.

    Sobre os efeitos culturais e artisticos de todos esses fenomenos,ja escreverarn (em tom ora elegiaco, ora ironico) ate mesmo pens adoresidealistas, revelando grande profundidade e acuidade de visao; porem,56 a concepcao materialist a da hist6ria, elaborada par Marx e Engels,

    35

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    estava em condicoes de alcancar as raizes da questao. E, por terem pene-trado ate as raizes, eles puderam superar a critica meramente ironicadas manifestacoes anti-humanistas do desenvolvimento e da existenciadas sociedades divididas em classes, bern como as lamentacoes elegiacasque evocam nostalgicamente tempos passados pretensamente idilicos,Eles souberam demonstrar cientificamente de onde provern e para ondese dirige 0 processo geral, bem como 0 modo pelo qual sera possivelsalvaguardar realmente a integridade humana, a integridade do homemreal. Souberam indicar 0 modo pelo qual se devem modificar as basesmateria is de que resultam necessariamente a mutilacao e a corrupcaodo humano; 0modo pelo qual a humanidade adquire consciencia e peloqual 0proletariado, portador social e politico avancado desta conscien-cia, pode criar bases materiais que facilitem 0aperfeicoamento social,politico, moral, espiritual e artistico, impulsionando a humanidade a urnnivel jamais alcancado no passado.

    Esta questao se situa no centro do pensamento de Marx. Num deseus textos, ele contrapos a situacao do homem na sociedade capitalistaa situacao do homem na sociedade socialista:

    No lugar de todos os sentidos fisicos e espirituais, colocou-se, portanto, purae simplesmente, a alienacao de todos estes sentidos, substituidos pelo sentidodo possuir. A esta absoluta pobreza precisou ser reduzido 0 ser humano paraque ele pudesse engendrar de dentro de si mesmo a sua riqueza intima [...].Assim, a supressao da propriedade privada representa a completa emanci-paciio de todos os sentidos, de todas as faculdades humanas. E representaessa emancipacao exatamente pelo fato de que tais sentidos e faculdades setornaram humanos tanto subjetiva como objetivamenre".Assim, 0 humanismo socialista se insere no centro da estetica

    marxista, da concepcao materialista da historia, Em oposicao aos pre-conceitos burgueses (que se apoiam na concepcao tosca e anridialeticapropria do marxismo vulgar), e preciso sublinhar com enfase que, se estaconcepcao penetra nas raizes mais profundamente entranhadas no ter-reno, nem por isso nega a beleza das flores. Ao contrario, e a concepcaomaterialista da historia, a estetica marxista, e somente ela, que forneceos instrumentos para uma justa compreensao deste processo na sua uni-dade, na sua organica conexao entre raizes e flores.

    Por outro lado, aquela afirmacao de principio da concepcao mate-rialista da historia - segundo a qual a verdadeira e definitiva emancipa-c;aoda humanidade em relacao as consequencias deformantes da socie-dade dividida em classes so se pode realizar no socialisrno - nao implica,absolutamente, uma contraposicao rigida, antidialetica, esquematica,

    II

    I

    ----------------------------------------------_j

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    GYORG LUKAcs

    que leve a urn repudio sumario da cultura das divers as sociedades divi-didas em classes ou a indiferenca em face das divers as realizacoes dessassociedades e de suas manifestacoes culturais e arristicas (como ocor-re frequentemente nos vulgarizadores superficiais do marxismo). Semduvida, a verdadeira historia da humanidade cornecara com 0 socialis-mo. Mas a pre- historia que conduz ao socialismo constitui urn elementoessencial da formacao do proprio socialismo. E as etapas desse caminhonao podem deixar indiferentes os defensores do humanismo socialista eda estetica marxista.o humanismo socialista torna possivel a estetica marxista a unifi-cacao do conhecimento hisrorico e do conhecimento puramente estetico,a continua convergencia do juizo historico e do jufzo estetico. Dessemodo, a estetica marxista resolve precisamente a questao que mais ator-mentara os seus predecessores, quando eram realmente grandes, e quefoi sempre deixada de lade pelos menores: a da unidade entre 0 valorestetico permanente da obra de arte e 0 processo historico do qual ela- exatamente na sua perfeicao, no seu valor estetico - nao pode ser des-vinculada.

    [1945J

    NOTAS1 [Trata-se da edicao hungara dos escritos esteticos de Marx e Engels, para a qual Lukacs

    escreveu esta introducao.]2 [Bedim: Bruno Henschel, 1948.]3 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 104]4 [Cf., ern outra traducao, infra, a p. 135]5 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 135-136]6 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 105]7 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 106]8 [Cf., em Dutra traducao, infra, a p. 106]9 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 127].10 [Cf., em Dutra traducao, infra, a p. 127J11 [Cf., ern outra traducao, infra, a p. 119]12 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 145]13 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 194]14 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 78J15 [Cf., ern ourra traducao, infra, a p. 233]16 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 128]17 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 67]18 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 66]19 [Cf. Paul Lafargue, "Karl Marx: recordacces pessoais", em D. Riazanov (org.), Marx: ahomem, a pensador, 0 reuolucioruirio. Sao Paulo: Global, 1984, p. 86.]

    37

  • 5/9/2018 LUKCS, G - Introdu o aos escritos est ticos de Marx e Engels

    http:///reader/full/lukacs-g-introducao-aos-escritos-esteticos-de-marx-e-engel

    CULTURA, ARTE E LITERATURA

    20 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 75]21 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 66]22 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 68-69]23 [Cf., em outra traducao, infra, a p. 69]24 [Cf., em outra rraducao, infra, a p. 166].