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    ANLISE DE ALGUNS EXCERTOS DE OS LUSADASJorge Santos (http://pwp.netcabo.pt/0511134301/)Maio 2000

    Lus de Cames

    Lus Vaz de Cames, filho de Simo Vaz de Cames e Ana de S e Macedo, nasceuem lugar incerto, provavelmente em 1525. A sua famlia era de origem galega, embora hmuito radicada em Portugal, e pertencia pequena nobreza.

    possvel que tenha frequentado a Universidade de Coimbra. Um seu parente, D.Bento de Cames, foi prior do Mosteiro de Santa Cruz e chanceler da Universidade.

    Em Lisboa conviveu com membros da fidalguia cortes, tendo em 1550 embarcadocomo soldado para Ceuta, no norte de frica, onde perdeu um olho em combate. De regressoa Lisboa, levou durante algum tempo uma vida de bomia. Em 1552 envolveu-se emdesacatos durante a procisso do Corpo de Deus, tendo ferido com gravidade um funcionrioda corte. Esteve preso alguns meses e acabou por partir para a ndia, onde chegou em

    Setembro de 1553.Como soldado, integrou a tripulao das armadas que patrulhavam a zona do Mar

    Vermelho e do Golfo Prsico. Em 1555 encontramo-lo nas ilhas Molucas e dois anos depoisem Macau, onde foi provedor dos defuntos e ausentes. Em 1560 regressou a Goa, onde esteve

    preso durante algum tempo, vtima de vagas acusaes. Foi nessa altura que conheceu ocientista Garcia de Orta1, para cuja obra escreveu o seu primeiro poema impresso.

    Anos depois procura voltar a Portugal, mas em 1568 Diogo de Couto2 encontrou-oretido em Moambique, pobre e sobrevivendo com a ajuda de amigos. S em 1569 consegueregressar a Lisboa, tendo publicado Os Lusadas em 1572. Como retribuio pelos servios

    prestados na ndia e pela redaco da epopeia nacional, D. Sebastio3 atribuiu-lhe uma tenaanual de 15.000 reis.

    Faleceu em Lisboa, a 10 de Junho de 1580.Em vida, publicou apenas, alm d Os Lusadas, trs poemas lricos. O restante da sua

    produo potica foi editada postumamente, a partir de 1595, tendo sido recolhida decancioneiros manuscritos. Nessas compilaes iniciais a atribuio de textos a Camescarecia de rigor crtico, mas a partir de 1897 vrios estudiosos aplicaram-se a reconstituir coma fidelidade possvel a obra lrica do poeta.

    Tanto o seu poema pico, como os textos lricos, so considerados de grandequalidade literria, tendo Cames exercido uma profunda influncia sobre os poetas

    posteriores, a qual se estende at aos nossos dias.

    1Garcia de Orta (1500-1568) De origem judaica, nasceu em Castelo de Vide e estudou nas universidades de

    Salamanca e Alcal, tendo-se diplomado em medicina. Em Lisboa exerceu clnica e leccionou na universidade.Em 1534 embarcou para a ndia, tendo-se dedicado ao estudo das plantas e drogas orientais, averiguando as suasqualidades teraputicas. Em 1563 publicou na ndia o seu famoso Colquio dos Simples e Drogas e CousasMedicinais da ndia, que inclui o primeiro poema impresso de Cames.2Diogo de Couto (1542-1616) Natural de Lisboa, estudou com os jesutas. Em 1559 embarcou para a ndia,tendo regressado dez anos depois, com Lus de Cames, que encontrou em Moambique. Em 1571 voltou paraGoa, onde morreu. Historiador, escreveu as Dcadas (5 volumes) eDilogo do Soldado Prtico.3D. Sebastio (1554-1578) Em 1557 sucedeu no trono de Portugal a seu av, D. Joo III, mas s ao atingir os14 anos assumiu a plenitude de funes. Desejoso de alargar e fortificar a presena dos portugueses no norte defrica chefiou pessoalmente uma expedio militar, tendo desaparecido na sequncia da derrota de AlccerQuibir.

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    Escreveu igualmente trs autos, onde se nota a influncia, quer do teatro vicentino,quer do teatro clssico: Anfitries,Filodemo,El-rei Seleuco.

    Noo de epopeia

    Uma epopeia a narrativa dos feitos grandiosos de um indivduo ou de um povo.Nesta definio encontramos os elementos essenciais de qualquer texto pico.Enquadra-se nognero narrativo sempre um relato de acontecimentos: o sujeito

    da enunciao assume-se como narrador e dispe-se a fazer o relato de um acontecimento ouconjunto de acontecimentos a um determinado pblico; a dimenso e a natureza do pblicodepende do assunto objecto do relato, presumindo-se que ser sempre constitudo pelas

    pessoas nele interessadas; se o assunto disser respeito a uma determinada comunidade o pblico ser mais restrito; se o assunto tiver um interesse mais vasto, o pblico ser maisalargado, podendo abranger potencialmente toda a humanidade.

    O assunto dever ter um carcter excepcional. Nem todas as aces so susceptveisde serem tratadas de forma pica; necessrio que, no entendimento do narrador (e do seu

    pblico), essas aces se distanciem dos acontecimentos vulgares, assumam um carcter de

    excepcionalidade. Nas epopeias primitivas os feitos narrados so de carcter lendrio, emboraessas fices tenham sempre um fundo histrico. Em algumas epopeias de imitao, noentanto, o assunto histrico.

    Os eventos exigem um agente e, tratando-se de eventos excepcionais, o agente deverser igualmente umser de excepo, um ser que, pela sua origem, pelas suas caractersticas, sedistancie, se imponha aos seus semelhantes (heri), pouco importando que se trate de umindivduo ou de uma colectividade (heri individual ou heri colectivo). NaIlada4 e naOdisseia5, escritas no sculo VI a.C., o heri individual: num caso, Aquiles; no outro,Ulisses. N Os Lusadas o heri , como o ttulo indica, colectivo o povo portugus. J na

    Eneida6 de Virglio h uma certa ambiguidade: o heri parece ser individual, Eneias, mas narealidade o objectivo do poema exaltar o povo romano.

    Caracterstica de todas as epopeias a utilizao de um estilo elevado, correspondente grandiosidade do assunto, e que se traduz na seleco vocabular, na construo frsicaextremamente elaborada e na abundante utilizao de recursos estilsticos.

    Estrutura externa

    Os Lusadas esto divididos em dez cantos, cada um deles com um nmero varivel deestrofes, que, no total, somam 1102. Essas estrofes so todas oitavas de decasslabos hericos,obedecendo ao esquema rimtico abababcc (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, eemparelhada, nos dois ltimos).

    4Ilada Poema pico, atribudo a Homero, escrito no sc. VI a.C. Tem como heri o grego Aquiles e narra aguerra entre gregos e troianos, que se prolonga durante dez anos e termina com a vitria dos gregos.5Odisseia Outro poema pico do sc. VI a.C., igualmente atribudo a Homero. O heri, Ulisses, depois determinada a guerra de Tria, procura voltar para casa, a ilha de taca, onde era rei, mas durante a viagem debarco v-se envolvido em numerosas aventuras, acabando por chegar ao fim de dez anos.6Eneida Poema pico, escrito por Virglio no sc. I a.C., que narra as viagens de Eneias pelo Mediterrnio,depois da destruio de Tria, em busca de um lugar para edificar uma nova cidade. Ter encontrado esse lugarna Itlia, estando, segundo a lenda, na origem de Roma.

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    Estrutura interna

    Cames respeitou com bastante fidelidade a estrutura clssica da epopeia. N OsLusadas so claramente identificveis quatro partes.

    Proposio O poeta comea por declarar aquilo que se prope fazer, indicando deforma sucinta o assunto da sua narrativa; prope-se, afinal, tornar conhecidos os navegadores

    que tornaram possvel o imprio portugus no oriente, os reis que promoveram a expanso daf e do imprio, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admirao pelos seusfeitos.

    Invocao O poeta dirige-se s Tgides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo eeloquncia necessrios execuo da sua obra; um assunto to grandioso exigia um estiloelevado, uma eloquncia superior; da a necessidade de solicitar o auxlio das entidades

    protectoras dos artistas.Dedicatria a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastio. A

    dedicatria no fazia parte da estrutura das epopeias primitivas; trata-se de uma inovao posterior, que reflecte o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social eeconomicamente dependente de um mecenas, um protector.

    Narrao Constitui o ncleo fundamental da epopeia. Aqui, o poeta procura

    concretizar aquilo que se props fazer na proposio.

    Estrutura da narrao

    A narrao d Os Lusadas tem uma estrutura muito complexa, o que decorre dosobjectivos que o poeta se props. Desenvolve-se em quatro planos diferentes, masestreitamente articulados entre si.

    Plano da viagem A aco central do poema a viagem de Vasco da Gama.Escrevendo mais de meio sculo depois, Lus de Cames tinha j o distanciamento suficiente

    para perceber a importncia histrica desse acontecimento, devido s alteraes queprovocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razo considerou a primeira viagemmartima ndia como o episdio mais significativo da histria de Portugal.

    No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamentedocumentado. Para manter a verosimilhana, o poeta estava obrigado a fazer um relatorelativamente objectivo e potencialmente montono, o que constitua um perigo fatal para oseu projecto pico. Da que Cames tenha sentido a necessidade de introduzir um segundonvel narrativo.

    Plano mitolgico (conflito entre os deuses pagos) Cames imaginou um conflitoentre os deuses pagos: Baco ope-se chegada dos portugueses ndia, pois receia que o seu

    prestgio seja colocado em segundo plano pela glria dos portugueses, enquanto Vnus,

    apoiada por Marte, os protege.Pode parecer estranho que Cames inclusse num poema destinado a exaltar um povocristo os deuses pagos, mas algumas razes permitem compreender essa atitude:1) Como vimos, a simples narrativa da viagem seria algo montona, tanto mais que Vasco da

    Gama e os seus marinheiros tm um carcter rgido, quase inumano: so determinados einflexveis, imunes s hesitaes, dvida, s angstias. No h ao nvel da viagemqualquer conflito. Para introduzir o necessrio dramatismo na narrativa, Cames teve queimaginar um conflito externo, o conflito entre Vnus e Baco.

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    2) Os poemas picos renascentistas so epopeias de imitao e como tal sujeitas a regrasestritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introduo de episdios maravilhosos,envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, semelhana do queacontecia nos poemas homricos ou na Eneida.

    3) Finalmente, o recurso aos deuses pagos mais uma forma de o poeta engrandecer osfeitos dos portugueses. Nas suas intervenes, os deuses frequentemente referem-se-lhe

    de forma elogiosa. Alm disso, o simples facto de a disputa entre os deuses ter comoobjecto os portugueses j uma forma indirecta de os exaltar.

    Plano da Histria de Portugal O objectivo de Cames era enaltecer o povoportugus e no apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. No podia porisso limitar a matria pica viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativatodas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos

    portugueses ao longo dos tempos. E f-lo, recorrendo a duas narrativas secundrias, inseridasna narrativa da viagem, cujo narrador o poeta.1) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde Ao chegar a este porto indiano, o rei

    recebe-o e procura saber quem ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gamalocaliza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a Histria de Portugal at ao reinado de

    D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua prpria viagem desde asada de Lisboa at chegarem ao Oceano ndico, visto que a narrativa principal iniciara-sein media res, isto quando a armada j se encontrava em frente s costas de Moambique.

    2) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual Mais tarde surge outra narrativa secundria. EmCalecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que seencontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras histricas portuguesas. O visitante

    pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que d a Paulo da Gama o pretexto paranarrar vrios episdios da Histria de Portugal.

    3) Profecias Os acontecimentos posteriores viagem de Vasco da Gama no podiam serintroduzidos na narrativa como factos histricos. Para isso, Cames recorreu a profeciascolocadas na boca de Jpiter, Adamastor e Thtis, principalmente.

    Plano das consideraes do poeta Por vezes, normalmente em final de canto, anarrao interrompida para o poeta apresentar reflexes de carcter pessoal sobre assuntosdiversos, a propsito dos factos narrados.

    Anlise da Proposio

    1 As armas e os bares assinalados7Que, da ocidental praia Lusitana,Por mares nunca dantes navegadosPassaram ainda alm da Taprobana8,Em perigos e guerras esforados

    Mais do que prometia a fora humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino9, que tanto sublimaram;

    7 A expresso inicial pode ser entendida como Os feitos e os homens ilustres. um decalque do 1 verso daEneida: Arma virumque cano.8Taprobana nome clssico da ilha de Ceilo, ao sul da ndia.9Novo Reino imprio portugus no Oriente.

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    2 E tambm as memrias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA F, o Imprio, e as terras viciosas10De frica e de sia andaram devastando,E aqueles que por obras valerosasSe vo da lei da Morte11 libertando;Cantando espalharei por toda a parte,

    Se a tanto me ajudar o engenho

    12

    e arte

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    .3 Cessem do sbio Grego14 e do Troiano15

    As navegaes grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro16 e de Trajano17A fama das vitrias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre lusitano18,A quem Neptuno e Marte19 obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga20 canta,Que outro valor mais alto se alevanta.

    Os Lusadas (I, 1-3)

    Como vimos, a finalidade da proposio, em qualquer epopeia, a enunciao do

    assunto que o poeta se prope tratar. Assim , tambm, n Os Lusadas: Cames est decididoa tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo portugus (o peito ilustre lusitano). E

    para isso estrutura a sua proposio em duas partes: nas duas estncias iniciais, enuncia osheris que vai cantar; na segunda parte, constituda pela terceira estrofe, estabelece umconfronto entre os portugueses e os grandes heris da Antiguidade, afirmando a superioridadedos primeiros sobre os segundos.

    Que o heri desta epopeia colectivo, um facto incontestvel. Quanto a isso, oprprio ttulo inequvoco: os lusadas so, afinal, os portugueses todos, no apenas os passados, mas at os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes quecaracterizam, no entendimento do poeta, o povo portugus e que ele sintetiza, na dedicatria aD. Sebastio, desta forma:

    amor da ptria, no movidoDe prmio vil, mas alto e quase eterno21

    O facto de o seu heri ser colectivo e a sua aco se estender por um intervalo detempo muito vasto permite-lhe desdobr-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O

    plural utilizado para designar cada um deles confirma o carcter colectivo do heri: baresassinalados, Reis, aqueles.

    10terras viciosas terras no crists.11lei da Morte esquecimento.12engenho talento.13arte eloquncia, a arte de dizer.14sbio Grego Ulisses, heri da Odisseia. Ao voltar a casa, depois da guerra de Tria, navegou durante dezanos pelo mar Mediterrneo.15Troiano Eneias, heri da Eneida. Cames chama-lhe troiano, porque era filho do rei de Tria, Pramo.Aps a destruio de Tria, navegou com os companheiros pelo Mediterrneo, procurando um lugar para fundaruma nova cidade (Roma).16Alexandro Alexandre Magno, cujo imprio ia da Grcia s proximidades do rio Indo.17Trajano imperador romano, conhecido pelas suas campanhas militares.18peito ilustre Lusitano povo portugus.19Neptuno eMarte Respectivamente, deus do mar e da guerra, para os romanos.20Musa antiga poesia antiga.21Os Lusadas (I, 10)

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    A inverso da ordem sintctica nessa primeira frase, que engloba as duas estnciasiniciais, pode tornar difcil, primeira leitura, a compreenso do texto. A ordem normal seriaesta: Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os bares...

    Pode esquematizar-se o contedo dessas duas estrofes da seguinte maneira:

    Atravs da poesia,

    se tiver talento para isso,tornarei conhecidos em todo o mundo

    q

    os homens ilustresque fundaram o imprio portugus do Oriente

    q

    os reis, de D. Joo I a D. Manuel ,que expandiram a f crist e o imprio portugus

    q

    todos os portuguesesdignos de admirao pelos seus feitos.

    Pelo esquema, vemos que Cames apresenta trs grupos de agentes (agentes e noheris, porque heri o peito ilustre lusitano).

    O primeiro constitudo pelos bares assinalados, responsveis pela criao doimprio portugus na sia. evidente que o poeta destaca principalmente a actividademartima, a gesta dos descobrimentos (Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram aindaalm da Taprobana).

    O segundo grupo inclui os reis que contriburam directamente para a expanso docristianismo e do imprio portugus (foram dilatando / A F o Imprio). Aqui sobretudo oesforo militar que se evidencia (andaram devastando).

    No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornaram dignos deadmirao pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam.

    A enumerao apresentada em gradao descendente: em primeiro lugar, osenvolvidos na expanso martima; depois, os reis envolvidos na expanso militar; finalmente,todos os outros. Essa valorizao relativa confirmada pelo espao textual: oito versos, para o

    primeiro grupo; quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro.No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem no apenas

    heris passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, paraos dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretrito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente

    perifrstico vo

    22

    .Ao contrrio das epopeias primitivas, aqui o heri colectivo, o que o prprio ttulologo indica Os Lusadas. Por outro lado, na proposio, como vimos, a indicao dosheris, alm de ser desdobrada em grupos diferenciados, em cada um deles utilizado o

    plural.A proposio no uma simples indicao dos seus heris, mas obedece j a uma

    estratgia de engrandecimento dos portugueses. A expresso por mares nunca dantes

    22 PAIS, Amlia Pinto.Para Compreender Os Lusadas, Centelha, 1984, p. 26.

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    navegados evidencia o carcter indito das navegaes portuguesas; observe-se o destaquedado palavra nunca. A exaltao continua com a referncia ao esforo desenvolvido,considerado sobre-humano (esforados / Mais do que prometia a fora humana).

    Na segunda parte, esse esforo de engrandecimento continua, desta vez atravs de umparalelo com os grandes heris da Antiguidade. O confronto estabelecido com marinheirosfamosos (Ulisses e Eneias), eles prprios heris de duas epopeias clssicas, e conquistadores

    ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreirosno inocente, visto que exactamente nessas duas reas que os portugueses se destacam. Equase a concluir, uma nota final, na mesma linha: ... eu canto o peito ilustre lusitano, / Aquem Neptuno e Marte obedeceram. A submisso do deus do mar e do deus da guerra aos

    portugueses (o peito ilustre lusitano) uma forma concisa e muito expressiva de exaltar ovalor do seu heri.

    Anlise da Invocao

    4 E vs, Tgides23 minhas, pois criado

    Tendes em mi um novo engenho ardente,Se sempre, em verso humilde, celebradoFoi de mi vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandloco e corrente,Por que de vossas guas Febo24 ordeneQue no tenham enveja s de Hipocrene25.

    5 Dai-me uma fria26 grande e sonorosa,E no de agreste avena ou frauta ruda27,Mas de tuba28 canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto29 muda.Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda;

    Que se espalhe e se cante no Universo,Se to sublime preo cabe em verso.

    Os Lusadas (I, 4-5)

    Invocar significa chamar em seu socorro ou auxlio, particularmente o poder divinoou sobrenatural30. Na proposio, o poeta apresentou o assunto que vai tratar e, dado ocarcter excepcional, a grandiosidade desse assunto, sente necessidade de pedir s entidades

    protectoras auxlio para a execuo de tarefa to grandiosa.Naturalmente, Cames, sendo um poeta cristo, no acreditava nas entidades mticas

    de que lanou mo. Utilizou-as sempre como um simples recurso potico. Isto , a Invocao, para Cames, mais um processo de engrandecimento do seu heri. De facto, a

    23Tgides ninfas do Tejo.24Febo Apolo, deus do Sol e da poesia.25Hipocrene fonte da Grcia; segundo a lenda, as suas guas tinham o dom de inspirar os poetas.26fria inspirao.27agreste avena efrauta ruda flauta pastoril.28tuba trombeta guerreira.29gesto rosto.30 MORAIS SILVA, Antnio de. Novo Dicionrio Compacto da Lngua Portuguesa. Confluncia/LivrosHorizonte, 1980.

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    grandiosidade do assunto que se props tratar que exige um estilo e uma eloqunciasuperiores. Agora, precisa, no o verso humilde, por ele tantas vezes utilizado, mas um um

    som alto e sublimado . O carcter sublime do assunto justifica, portanto, a Invocao e afirmado ao longo do texto, em mais do que uma expresso: famosa gente vossa, digna deapreo pelos seus mritos guerreiros (que a Marte tanto ajuda) como o poeta se refere aoseu heri. E termina, insinuando que esses feitos so to espantosos que, possivelmente, nem

    com o auxlio das Tgides podero ser transpostos, com a devida dignidade, para a poesia(Que se espalhe e se cante no Universo, / Se to sublime preo cabe em verso.).Desde j, registe-se que o nosso poeta no se limitou a invocar as ninfas ou musas

    conhecidas dos antigos gregos e romanos. Embora as Tgides no sejam criao sua,adoptou-as como forma de sublinhar o carcter nacional do seu poema. Independentemente dointeresse universal que possam ter, todos os feitos cantados, todos os agentes, so

    portugueses. Isso tinha j ficado claro na Proposio, mas refora-se essa ideia na Invocao.E, pela frmula utilizada (Tgides minhas), identifica-se pessoalmente com essenacionalismo, estabelecendo, atravs do possessivo, uma espcie de relao afectiva com asninfas do Tejo. A fora expressiva do possessivo reforada pela inverso e sua colocaoem posio forte (coincidindo com a 6 slaba).

    Tratando-se de um pedido, a Invocao assume a forma de discurso persuasivo, onde

    predomina a funo apelativa da linguagem e as marcas caractersticas desse tipo de discurso o vocativo e os verbos no modo imperativo determinam a estrutura do texto:

    E vs, Tgides minhas, (...)Dai-me (...)Dai-me (...)Dai-me (...)

    E este esquema revela imediatamente um dos recursos estilsticos utilizados pelo poeta: a repetio anafrica, que identifica claramente o pedido e evidencia o seu carcterreiterativo.

    Por outro lado, este tipo de discurso sempre acompanhado de argumentos, implcitos

    ou explcitos, de forma a mais facilmente persuadir o receptor. O primeiro deles antecede o prprio pedido ( pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente ) e a sua fora evidente: j que as ninfas lhe concederam essa nova inspirao, o desejo de cantar os feitosdos portugueses, ento devem igualmente dar-lhe o estilo, a eloquncia necessrios. Este

    primeiro argumento tem como fundamento a obrigao moral: quem cria a necessidade, devefornecer os meios.

    E logo aps a primeira formulao do pedido, surge o segundo argumento: Por quede vossas guas Febo ordene / Que no tenham enveja s de Hipocrene. Agora, ofundamento psicolgico outro: o poeta procura despertar o sentimento de emulao nasTgides, sugerindo que, ao atender o seu pedido, as guas do Tejo podero igualar ou atsuplantar a fama da fonte de Hipocrene, como inspiradoras de grandes poetas.

    O terceiro argumento encerra o pedido: Que se espalhe e se cante no Universo. Para

    que os feitos dos portugueses possam ser admirados no mundo inteiro, necessrio que asninfas atendam o seu pedido. Neste caso, recorre a uma argumentao finalstica: pressupe-se que esses feitos so dignos de serem apreciados, mas para o serem necessrio um estiloextremamente elevado. Alis, o ltimo verso sugere a ideia de que os feitos dos portuguesesso to grandiosos que dificilmente podero ser traduzidos em verso de forma adequada.Como se v, a estratgia de engrandecimento do povo portugus, iniciada na Proposio, retomada aqui, quase nos mesmos termos. Comparem-se estes dois ltimos versos comaqueles com que encerra a primeira parte da Proposio:

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    Cantando, espalharei por toda a parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

    Que se espalhe e se cante no Universo,Se to sublime preo cabe em verso.

    Vimos j que o poeta pede s Tgides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade

    do assunto requerem; o som alto e sublimado, exigido pelo novo engenho ardente que asninfas colocaram nele. Como poeta experiente que , sabe que a tarefa a que agora se propsexige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo destas duasestncias um confronto entre a poesia lrica, h muito por ele cultivada, e a poesia pica, a queagora se abalana.

    POESIA LRICA POESIA PICA

    verso humildeagreste avena

    frauta ruda

    novo engenho ardentesom alto e sublimado

    estilo grandloco e correntefria grande e sonorosatuba canora e belicosa

    Esse confronto serve-lhe para marcar a superioridade relativa da poesia pica sobre alrica, o que uma anlise medianamente atenta comprova facilmente.

    Nota-se, desde logo, a maior quantidade de expresses dedicadas poesia pica.Igualmente significativa a abundncia da adjectivao e, mais ainda, o recurso duplaadjectivao. Por outro lado, o valor semntico desses adjectivos merece tambm algumaateno: alguns afirmam o carcter elevado dessa poesia e do estilo correspondente (alto,

    sublimado, grandloco, grande); outros, a musicalidade e sonoridade que os deve distinguir(corrente, sonorosa, canora); alguns, ainda, sugerem a exaltao tpica dos feitos picos(ardente, belicosa).

    O efeito dessas expresses , de certo modo, ampliado pelo recurso ao paralelismosintctico ( substantivo + adjectivo + adjectivo), que conduz imediata associao dessas

    expresses.At os instrumentos musicais associados a cada um dos tipos de poesia so

    significativos: simplicidade da flauta, que associa lrica, contrape a sonoridade guerreirada tuba, prpria da epopeia.

    E ao referir-se tuba canora e belicosa, acrescenta: que o peito acende e a cor aogesto muda . Com esse verso pretende transmitir a ideia de que o estilo pico exerce sobre oleitor um intenso efeito emotivo, semelhante exaltao sentida pelos prprios heris que vaicantar. Note-se o recurso metfora o peito acende, que sugere uma espcie de fogointerior avassalador, reforada pela inverso (colocao do complemento directo antes doverbo).

    O Velho do Restelo

    94 Mas um velho, de aspeito venerando,Que ficava nas praias, entre a gente,Postos em ns os olhos, meneandoTrs vezes a cabea, descontente,A voz pesada um pouco alevantando,Que ns no mar ouvimos claramente,Cum saber s de experincias feito,Tais palavras tirou do experto peito:

    95 glria de mandar, v cobiaDesta vaidade, a quem chamamos Fama! fraudulento gosto, que se atiaCa aura popular, que honra se chama!Que castigo tamanho e que justiaFazes no peito vo que muito te ama!Que mortes, que perigos, que tormentas,Que crueldades neles exprimentas!

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    96 Dura inquietao d alma e da vida,Fonte de desemparos e adultrios,Sagaz consumidora conhecidaDe fazendas, de reinos e de imprios!Chamam-te ilustre, chamam-te subida,Sendo dina de infames vituprios31!

    Chamam-te Fama e Glria soberana,Nomes com quem se o povo nscio32 engana.

    97 A que novos desastres determinasDe levar estes Reinos e esta gente?Que perigos, que mortes lhe destinas,Debaixo dalgum nomepreminente33?Que promessas de reinos e de minasDe ouro, que lhe fars to facilmente?Que famas lhe prometers? Que histrias?Que triunfos? Que palmas? Que vitrias?

    98 Mas, tu, grao daquele insano34Cujo pecado e desobedinciaNo somente do Reino soberano35Te ps neste desterro e triste ausncia,Mas inda doutro estado, mais que humano,Da quieta e da simpres inocncia,Idade de ouro36, tanto te privou,Que na de ferro e de armas te deitou:

    99 J que nesta gostosa vadadeTanto enlevas a leve fantasia,J que bruta crueza e feridadePuseste nome esforo e valentia,J que prezas em tanta quantidadeO desprezo da vida, que deviaDe ser sempre estimada, pois que jTemeu tanto perd-la Quem a d37:

    100 No tens junto contigo o Ismaelita38,Com quem sempre ters guerras sobejas?No segue ele do Arbio39 a Lei maldita40,Se tupola de Cristo s pelejas?No tem cidades mil, terra infinita,Se terras e riquezas mais desejas?No ele por armas esforado,Se queres por vitrias ser louvado?

    31vituprios insultos.32nscio ignorante.33preminente notvel.34insano Ado35Reino soberano Paraso36Idade de ouro Para os antigos foi a primeira, e amais feliz, das quatro idades da humanidade; asseguintes so a de prata, a de bronze e a de ferro.37Quem a d Referncia a Cristo, no momento dapaixo.38Ismaelita Referncia aos mouros do Norte defrica.39Arbio Maom.40Lei maldita Religio muulmana.

    101 Deixas criar s portas o inimigo,Porires buscar outro de to longe,Por quem se despovoe o Reino antigo,Se enfraquea e se v deitando a longe!Buscas o incerto e incgnito perigoPorque a Fama te exalte e te lisonje

    Chamando-te senhor, com larga cpia

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    ,Da ndia, Prsia, Arbia e de Etipia!

    102 Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,Nas ondas vela ps em seco lenho42!Dino da eterna pena do Profundo43,Se justa a justa Lei que sigo e tenho!Nunca juzo algum, alto e profundo,Nem ctara sonora ou vivo engenho,Te d por isso fama nem memria,Mas contigo se acabe o nome e glria!

    103 Trouxe o filho de Jpeto44 do CuO fogo que ajuntou ao peito humano,Fogo que o mundo em armas acendeu,Em mortes, em desonras (grande engano!).Quanto milhornos fora, Prometeu,E quantopera o mundo menos dano,Que a tua esttua ilustre no tiveraFogo de altos desejos que a movera!

    104 No cometera o moo miserando45O carro alto do pai, nem o ar vazioO grande arquitector46co filho47, dando,Um, nome ao mar48, e o outro, fama ao rio49.Nenhum cometimento alto e nefandoPor fogo, ferro, gua, calma e frio,Deixa intentado a humana grao.Msera sorte! Estranha condio!

    41cpia abundncia.42seco lenho embarcao.43Profundo Inferno.44filho de Jpeto Prometeu; segundo a mitologia,criou o homem a partir de uma esttua de barro, aque insuflou vida com o fogo que roubou aosdeuses.45moo miserando Faetonte, filho de Apolo, deus

    do Sol; era o cocheiro do pai e foi por ele atirado aorio P, por se ter aproximado demasiado da Terra.46 grande arquitector Ddalo, construtor dolabirinto de Creta; concluda a obra foi a encerradocom o filho, e s conseguiram fugir, fabricandoasas com penas e cera.47Filho caro; ao aproximar-se demasiado do sol,a cera que dava consistncia s suas asas derreteu-se e ele despenhou-se no mar Egeu.48mar mar Egeu.49rio rio P.

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    Este episdio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde. Nomomento em que a armada do Gama est prestes a largar de Lisboa para a grandeviagem,uma figura destaca-se da multido e levanta a voz, para condenar a expedio.

    O texto constitudo por duas partes: a apresentao da personagem feita pelonarrador (est. 94) e o discurso do Velho do Restelo (est. 95 a 104).

    A caracterizao destaca a idade (velho), o aspecto respeitvel (aspeito

    venerando), a atitude de descontentamento (meneando / Trs vezes a cabea, descontente),a voz solene e audvel (A voz pesada um pouco alevantando), e a sabedoria resultante daexperincia de vida (Cum saber s de experincias feito; experto peito).

    No foi certamente por acaso que Cames optou por esta figura e no outra. A figurado Velho do Restelo ressuma uma autoridade, uma respeitabilidade, que lhe permitem falar eser ouvido sem contestao. As suas palavras tm o peso da idade e da experincia que daresulta. E a autoridade provm exactamente dessa vivida e longa experincia.

    No seu discurso possvel identificar trs partes. Na primeira (est. 95-97), condena o envolvimento do pas na aventura dos

    descobrimentos, a que se refere de forma claramente negativa (v cobia, vaidade,fraudulento gosto, dina de infames vituprios). Denuncia de forma inequvoca o carcterilusrio das justificaes de carcter herico que eram apresentadas para esse

    empreendimento (Fama, honra, Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Chamam-teFama e Glria soberana), sendo certo que tudo isso so apenas nomes com quem se o povonscio engana. E apresenta um rol extenso de consequncias negativas dessa aventura:mortes, perigos tormentas, crueldades, desamparo das famlias, adultrios, empobrecimentomaterial e destruio. Esta primeira parte introduzida por uma srie de apstrofes ( glriade mandar , v cobia. fraudulento gosto), com as quais revela que o que elecondena de facto a ambio desmedida do ser humano, neste caso materializada naexpanso ultramarina. O sentimento de exaltada indignao manifesta-se, sobretudo, pelautilizao insistente de exclamaes e interrogaes retricas.

    A segunda parte abrande as estrofes 98 a 101. introduzida por uma nova apstrofe,desta vez dirigida, no a um sentimento, mas aos prprios seres humanos ( tu, graodaquele insano). Se na primeira parte manifestou a sua oposio s aventuras insensatas quelanam o ser humano na inquietao e no sofrimento, agora prope uma alternativa menosm, sugerindo que a ambio seja canalizada para um objectivo mais prximo o Norte defrica. A estncia 99 toda ela preenchida com oraes subordinadas concessivas,anaforicamente introduzidas por j que , antecedendo a sua proposta de forma reiterada ecobrindo todas as variantes dessa ambio: religiosa (Se tu pola [Lei] de Cristo s

    pelejas?), material (Se terras e riquezas mais desejas?), militar (Se queres por vitrias ser louvado? ). E aproveita para apresentar novas consequncias malficas da expansomartima: fortalecimento do inimigo tradicional ( Deixas criar s portas o inimigo ),despovoamento e enfraquecimento do reino. E mais uma vez recorre s interrogaesretricas como recurso estilstico dominante.

    Vem depois a terceira parte (est. 102-104). O poeta recorda figuras mticas do passado,

    que, de certo modo, representam casos paradigmticos de ambio, com consequnciasdramticas. Comea por condenar o inventor da navegao vela o primeiro que, nomundo, / Nas ondas vela ps em seco lenho!. Faz depois referncia a Prometeu, que, segundoa mitologia grega, teria criado a espcie humana, dando assim origem a todas as desgraasconsequentes Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grandeengano!. Logo a seguir, narra os casos de Faetonte e caro, que, pela sua ambio, foram

    punidos. E os quatro versos finais da fala do Velho do Restelo sintetizam bem esse desejodesmedido de ultrapassar os limites:

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    Nenhum cometimento alto e nefandoPor fogo, ferro, gua, calma e frio,Deixa intentado a humana grao.Msera sorte! Estranha condio!

    Simbologia do episdio do Velho do Restelo

    Naturalmente, o Velho do Restelo no uma personagem histrica, mas umacriao de Cames com um profundo significado simblico.

    Por um lado, representa aquela corrente de opinio que via com desagrado oenvolvimento de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criao de umimprio colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos. Preferiam que aexpanso do pas se fizesse pela ampliao das conquistas militares no Norte de frica.

    Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim encontravam possibilidades de mostrarem o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo,encontravam nele justificao para as benesses que a Coroa lhes concedia. A burguesia, por

    seu lado, inclinava-se mais para a expanso martima, vendo a maiores oportunidades decomrcio frutuoso.

    Por outro lado, se ignorarmos o contexto histrico em que o episdio situado,podemos ver na figura do Velho o smbolo daqueles que, em nome do bom senso, recusam asaventuras incertas, defendendo que prefervel a tranquilidade duma vida mediana

    promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em desgraas. Encontramos aqui um ecode uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade,de que o homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo as suas ambies a uma sbiamediania (aurea mediocritas, na expresso dos latinos), j que foi a desmedida ambio quelanou o ser humano na idade de ferro, em que agora vive (cf. est. 98). Neste sentido oepisdio pode ser entendido como a manifestao do esprito humanista, favorvel paz etranquilidade, contrrio ao esprito guerreiro da Idade Mdia.

    Assim, o episdio do Velho do Restelo est de certo modo em contradio comaquilo mesmo que Os Lusadas, no seu conjunto, procuram exaltar o esforo guerreiro eexpansionista dos portugueses. Essa contradio real e traduz, de forma talvez inconsciente,as contradies da sociedade portuguesa da poca e do prprio poeta. De facto, Cames soubeinterpretar, melhor que ningum, o sentimento de orgulho nacional resultante da conscinciade que durante algum tempo Portugal foi capaz de se destacar das demais naes europeias.Mas Cames era tambm um homem de slida formao cultural, atento aos valores estticosdo classicismo literrio e imbudo de ideais humanistas. Se, ao cantar os feitos dos

    portugueses, ele d voz a esse orgulho nacional, que sentia tambm como seu, na fala doVelho do Restelo e em outras intervenes disseminadas ao longo do poema, exprime assuas ideias de humanista.

    O Velho do Resteloe o Auto da ndia

    Enquanto expresso de uma atitude de oposio expanso martima para oriente,podemos relacionar a fala do Velho do Restelo s crticas expressas, dezenas de anos antes,por Gil Vicente, no Auto da ndia. Nos dois casos encontramos a mesma viso anti-herica,

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    anti-pica, da expanso; a mesma perspectiva pragmtica de quem no corre atrs de iluses;o mesmo desejo de paz e tranquilidade; o mesmo receio do desconhecido.

    Aquilo que Gil Vicente condena em tom satrico, di-lo tambm o Velho do Restelonum tom srio e austero. A crtica fundamental do Auto da ndia incide sobre o desamparodas famlias, o adultrio das mulheres, provocados pela ida dos homens para a ndia, em

    busca de um enriquecimento fcil e, quase sempre, ilusrio. E as palavras do Velho do

    Restelo parecem um eco desse auto Fonte de desemparos e adultrios.

    Simbologia da Ilha dos Amores

    Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, o poeta dirige osnautas para a Ilha dos Amores, onde, por aco de Vnus e Cupido, recebero o prmio doseu esforo.

    Trata-se de uma ilha paradisaca, de uma beleza deslumbrante. A descrio doconsrcio entre os portugueses e as ninfas est repassada de sensualidade. Os prazeres quelhes so oferecidos so o justo prmio por terem perseguido o seu objectivo sem hesitaes.

    Todo o episdio tem um carcter simblico.Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso mitologia pag, apresentada

    aqui como simples fico, til para fazer versos deleitosos.Em segundo lugar, representa a glorificao do povo portugus, a quem reconhecido

    um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforo continuado, pela sua persistncia, pela suafidelidade tarefa de expanso da f crist, os portugueses como que se divinizam. Tornam-seassim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que afinalo prmio mximo a que pode as pirar o ser humano.

    De certo modo, podemos dizer que o amor que conduz os portugueses imortalidade. No o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo:o amor desinteressado, o amor da ptria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefascolectivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifcios. esse amorque manifestam Gama e os seus homens; ele que permite a tantos libertar-se da lei damorte. tambm esse amor que conduz Cames a espalhar os feitos dos seus compatriotas

    por toda a parte e tornar-se, tambm ele, imortal. esse amor, comum a si prprio e aos seus heris, que o leva a dizer, na Dedicatria a

    D. Sebastio:

    Vereis amor da ptria, no movidoDe prmio vil, mas alto e quase eterno;Que no prmio vil ser conhecidoPor um prego do ninho meu paterno.50

    O mesmo amor que leva Vasco da Gama a dizer, logo no incio da narrao que faz ao

    rei de Melinde:

    Esta a ditosa ptria minha amada, qual se o Cu me d, que eu sem perigoTorne, com esta empresa j acabada,Acabe-se esta luz ali comigo.51

    50Os Lusadas (I, 10)51Os Lusadas (III, 21)