Luta de Classes, Educação e Revolução

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  • Entrevista

    Germinal: Marxismo e Educao em Debate, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-138; fev. 2011 128

    LUTA DE CLASSES, EDUCAO E REVOLUO

    Newton Duarte

    Por: Celi Nelza Zulke Taffarel, Maria de Ftima Rodrigues Pereira e Elza Margarida de Mendona Peixoto.

    Desta feita, Germinal: Marxismo e Educao em Debate entrevista um dos mais contundentes

    opositores das pedagogias do capital na atualidade, com destaque para uma produo intensa de crtica s

    pedagogias do aprender a aprender, disseminada em artigos, livros e conferncias pronunciadas por todo o

    Brasil. Estabelecendo como meta deste nmero a reflexo sobre as possibilidades abertas para a revoluo,

    considerando as reflexes do V. 2, N. 2 que tratou das possibilidades e limites do Projeto Histrico

    Comunista, Celi Taffarel, Maria de Ftima Rodrigues Pereira e Elza Peixoto estruturaram o roteiro da

    entrevista que busca apanhar a avaliao de Newton Duarte sobre a atual conjuntura, no mbito das

    relaes hegemnicas e das possibilidades abertas para a educao.

    G. Na conjuntura de intensificao das lutas de classes, considerando os projetos em disputa para a direo do modo de produo da existncia e a evidente hegemonia do capital, quais so as condies objetivas, os limites e as possibilidades abertas para uma ao articulada e de oposio que analise e aponte a meta da revoluo?

    D.: Quando falamos em revoluo, uma primeira coisa que devemos ter em mente que podem existir

    vrios tipos de revoluo. Na perspectiva marxista a revoluo uma parte do processo de

    construo da sociedade socialista, entendida esta como uma transio ao comunismo. A revoluo

    tem, portanto, uma direo e isso requer a busca de compreenso das mediaes entre o presente (o

    capitalismo) e o futuro a longo prazo (o comunismo) passando pelo futuro a mdio prazo (o

    socialismo). A anlise do presente deve ser orientada pela perspectiva de futuro a mdio e a longo

    prazo. Mas o projeto de futuro no fruto de mera especulao, resultado da anlise das

    possibilidades postas pelo presente e pela escolha de algumas dessas possibilidades como aquelas

    pelas quais lutaremos. Como exemplo, mencionarei a questo da universalidade da cultura. Essa

    uma possibilidade concretamente existente e que j havia sido caracterizada por Marx e Engels, tendo

    ocupado lugar de destaque no pensamento de outros grandes nomes no campo socialista, como

    Lenin, Gramsci, Lukcs e Vigotski. No existe ainda uma cultura plenamente universal, pelo simples

    fato de que a humanidade no est ainda plenamente unificada. Mas a sociedade capitalista criou as

    premissas objetivas para a unificao da humanidade ao unir a todos os seres humanos no mercado

    mundial. A mundializao das relaes capitalistas e o desenvolvimento das foras produtivas criaram

    as condies para a humanidade dar um salto histrico em direo construo de uma cultura

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    universal. A histria at aqui percorrida acumulou elementos importantssimos para a construo

    dessa cultura e ser necessrios incorporarmos sociedade socialista toda a riqueza material e

    espiritual at aqui criada, para podermos avanar no processo de superao da humanidade dividida.

    A possibilidade existe, mas sua concretizao depender de nossas aes nessa direo. Por sua vez, o

    xito dessas aes depender do grau de compreenso que tenhamos dos processos sociais em curso.

    Infelizmente a oposio luta em direo a uma cultura universal no tem partido apenas do ps-

    modernismo, com sua grande carga de relativismo e subjetivismo, tem partido tambm do campo

    marxista, no qual existem grupos que, influenciados pelo ps-modernismo e pelo anarquismo, negam

    o horizonte da universalidade do ser humano. Em termos polticos isso acarreta avaliaes

    equivocadas dos conflitos existentes na sociedade capitalista contempornea e igualmente leva a

    estratgias equivocadas em termos de organizao de movimentos coletivos de pequena, mdia e

    grande amplitude. Se num primeiro momento a revoluo volta-se para a resoluo de problemas

    bsicos, como a eliminao social da fome e do analfabetismo e como a criao das condies

    materiais bsicas que assegurem a vida, precisamos no perder de vista que essa no a meta da

    revoluo. A meta a concretizao, na vida de todos os seres humanos, das mximas possibilidades

    de desenvolvimento multifacetado. Isso s ser alcanado quando o trabalho deixar de ser uma

    atividade alienada, quando for superada a diviso entre trabalho manual e trabalho intelectual, ou seja,

    quando a educao transformar-se na essncia do trabalho. No seria esse o sentido da conhecida

    passagem de Marx em Crtica do Programa de Gotha?:

    Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a escravizante subordinao

    dos indivduos diviso do trabalho e, com ela, a oposio entre o trabalho intelectual e o trabalho

    manual; quando o trabalho no for apenas um meio de viver, mas se tornar ele prprio na primeira

    necessidade vital; quando, com o desenvolvimento mltiplo dos indivduos, as foras produtivas

    tiverem tambm aumentado e todas as fontes da riqueza colectiva brotarem com abundncia, s

    ento o limitado horizonte do direito burgus poder ser definitivamente ultrapassado e a sociedade

    poder escrever nas suas bandeiras: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as

    suas necessidades! (http://insrolux.org/textosmarxistas/programagotha.htm).

    Alguns marxistas tm afirmado, aqui no Brasil, que a atividade educativa no trabalho. Esses autores

    partem de uma leitura reducionista e equivocada da categoria de trabalho em Marx. claro que a

    produo material a base de toda a existncia humana e sem essa produo no existiria a produo

    no material. Mas a categoria de trabalho em Marx jamais se reduziu produo material. Isso seria

    identificar trabalho com trabalho manual e seria abdicar do horizonte de superao da diviso entre

    trabalho manual e trabalho intelectual. Em toda a obra de Marx est presente a idia de que a

    superao da alienao produzida pela sociedade capitalista a elevao do trabalho a um nvel no

    qual o ser humano possa desenvolver-se de forma omnilateral. Se o trabalho se reduzisse, em Marx,

    produo material, no faria sentido ele afirmar que na fase superior do comunismo o trabalho ser a

    primeira necessidade vital, isto , a mais importante necessidade humana. Isso significaria que o ser

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    humano estaria reduzido s atividades de sobrevivncia. , portanto, um equvoco essa reduo da

    categoria de trabalho ao mbito da produo material. Igualmente um equvoco a afirmao de que

    no existe o trabalho educativo. Alis, para esclarecer melhor essa questo, nada melhor do que

    recorrermos aos escritos do prprio Marx sobre a distino entre o processo de trabalho

    propriamente dito e o processo de valorizao. Essa questo foi inteiramente esclarecida por Marx

    tanto no quinto captulo do livro primeiro de O Capital como no captulo sexto do mesmo livro,

    publicado postumamente como captulo indito. Marx criticava os economistas burgueses por no

    distinguirem o trabalho propriamente dito da forma capitalista de trabalho, isto , o processo de

    valorizao, de produo da mais valia. Alguns marxistas contemporneos incorrem no mesmo erro,

    s que na direo oposta. Se os economistas burgueses, ao identificarem o trabalho e o processo de

    produo de mais valia tinham em mente a eternizao do capital, os marxistas contemporneos, ao

    lutarem contra o capital, adotam a equivocada interpretao de que para eliminar-se o processo de

    apropriao da mais valia necessrio eliminar-se o trabalho. Temos a vrias questes conectadas: a

    das relaes entre o trabalho que transforma a natureza e as formas de trabalho que no resultam em

    produtos materiais; a questo da superao da diviso entre trabalho manual e trabalho intelectual; a

    questo da superao do trabalho como meio de vida e a transformao do trabalho na mais

    importante atividade humana (primeira necessidade vital) e, por fim, a questo da distino entre o

    trabalho na sua forma capitalista (processo de valorizao) e o trabalho como condio eterna da

    existncia humana.

    Nessa perspectiva entendo que as contradies da sociedade capitalista tem criado muitas

    possibilidades para a superao dessa sociedade, a despeito das foras gigantescas que o imperialismo

    tem a seu dispor. Mas as foras de esquerda tem desperdiado muitas oportunidades por trabalharem

    com uma viso muito pouco dialtica, que s enxerga negatividade onde Marx, dialeticamente,

    enxergava a fora motriz das contradies. Essa viso centrada na negatividade faz com que se

    busquem as possibilidades de revoluo pela tica das fissuras do sistema e no pela tica da

    superao por incorporao.

    G.: Onde est se dando o grande enfrentamento no campo da educao: na academia, na escola, no parlamento, dentro de casa? Que enfrentamentos so estes e com quais armas esto se dando? E o combate ao construtivismo e ao ps-modernismo, como se expressa hoje na educao?

    D.: A escola o lugar por excelncia da luta pela socializao do conhecimento. Mas assim como o fiz na

    primeira questo, tambm nesta preciso polemizar com o prprio campo marxista. Alguns marxistas

    tm afirmado que a educao escolar no tem importncia estratgica na luta pelo socialismo e outros

    tm afirmado que a escola sim importante, mas seria necessrio mudar radicalmente o modelo de

    educao escolar, passando-se para um segundo plano a questo da transmisso do conhecimento em

    suas formas mais desenvolvidas. Tenho defendido posies bem diferentes dessas. O papel da

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    educao escolar na luta pelo socialismo define-se pela importncia do conhecimento na luta contra o

    capital e na busca da formao plena do ser humano. Lutar pelo socialismo lutar pelos meios de

    produo. H autores marxistas que afirmam que o conhecimento no um meio de produo e que,

    portanto, a luta pela socializao do conhecimento no parte da luta pela socializao dos meios de

    produo. Esse raciocnio equivocado por duas razes. A primeira delas a de que ao longo dos

    vrios escritos de Marx encontra-se uma clara anlise do processo de objetivao do conhecimento

    nos produtos do trabalho e nos meios empregados no processo de trabalho. A anlise que Marx faz

    do processo de trabalho no captulo V de O Capital explica que o processo de objetivao transfere

    atividade do sujeito para o objeto e explica ainda que uma das principais caractersticas que

    distinguem a atividade humana da atividade animal o fato do produto da atividade existir na mente

    humana antes de ser realizada a atividade. Ora, os meios de produo, na sociedade capitalista,

    contem conhecimento cientfico objetivado. Ento essa a primeira razo pela qual no faz sentido

    considerar que o conhecimento no faa parte dos meios de produo. Alm disso, separar os meios

    de produo do conhecimento que permite a existncia deles assumir uma atitude fetichista. A luta

    pela socializao do conhecimento , portanto, um componente imprescindvel da luta contra o

    capital. Mas, se por um lado, evidente a incorporao de uma parte do conhecimento cientfico aos

    meios de produo, por outro lado h outros conhecimentos cientficos que no foram incorporados

    aos meios de produo. Menos ainda foram incorporados aos meios de produo os conhecimentos

    artsticos e filosficos. Mas afirmei acima que o papel da escola na luta pelo socialismo relaciona-se,

    alm da luta contra o capital, formao plena dos seres humanos. No esprito de minha resposta

    primeira pergunta gostaria de dar um especial destaque a esse ponto. A transmisso do conhecimento

    cientfico, artstico e filosfico pela escola de grande importncia quando se tem a perspectiva da

    formao dos indivduos na direo caracterizada por Marx, ou seja, da constituio da

    individualidade livre e universal. H autores marxistas contemporneos que consideram burguesa e

    limitada a idia da escola como instituio que privilegie a transmisso de conhecimento. Afirmam

    esses autores que a escola deveria ligar-se vida e que uma escola centrada na transmisso do

    conhecimento uma escola desconectada da vida real dos alunos. Essa uma viso estreita e

    imediatista das relaes entre escola e vida. Tal viso decorre, por sua vez, de uma viso igualmente

    estreita e imediatista das relaes entre o conhecimento e a prtica social. Estou desenvolvendo um

    estudo aprofundado das relaes entre arte e formao humana em Lukcs e Vigotski e esse estudo

    tem mostrado que as relaes entre a arte e a vida concretizam-se por sistemas complexos de

    mediaes. Nesse sentido, para que a arte desempenhe um papel realmente formativo, ela precisa

    distanciar-se daquilo que imediatamente vivido pelos indivduos em sua vida cotidiana. Vigotski, por

    exemplo, critica a idia de que a arte fosse uma reproduo da vivncia cotidiana das pessoas.

    Neste caso o milagre da arte lembraria o desolador milagre do Evangelho, em que cinco ou seis pes e uma dzia de

    peixes alimentam mil pessoas, todas comem at saciar a fome e os ossos restantes so recolhidos em doze cestas. Aqui o

    milagre apenas quantitativo: mil pessoas que se saciaram mas cada uma comeu apenas peixe e po, po e peixe. No

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    seria isto o mesmo que cada uma delas comia cada dia em sua casa e sem qualquer milagre? (...) O milagre da arte

    lembra antes outro milagre do Evangelho a transformao da gua em vinho, e a verdadeira natureza da arte sempre

    implica algo que transforma, que supera o sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma

    inquietao, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas est contido. (Vigotski,

    1999, p. 307).

    Ora, a escola precisa ir alm do cotidiano das pessoas e a forma dela fazer isso por meio da

    transmisso das formas mais desenvolvidas e ricas do conhecimento at aqui produzido pela

    humanidade. No interessa, porm, classe dominante que esse conhecimento seja adquirido pelos

    filhos da classe trabalhadora. Infelizmente h intelectuais marxistas que inadvertidamente acabam

    fazendo o jogo da burguesia ao desvalorizarem a educao escolar ou preconizarem uma escola

    descaracterizada, na qual a transmisso do conhecimento ocupa um papel secundrio, subordinado s

    demandas da vida cotidiana dos alunos.

    Toda essa discusso sobre a importncia ou no da educao escolar na luta pelo socialismo est

    ligada discusso sobre a atuao no mbito das instituies do Estado. Alguns marxistas afirmam

    que nada podemos fazer na esfera do Estado em termos de luta contra o capital. Em primeiro lugar

    essa uma viso bem pouco dialtica, como se no existissem contradies no Estado burgus. Os

    defensores dessa viso costumam defender a chamada educao no formal que estaria fora da

    influncia do estado e do capital. Essa tambm uma viso pouco dialtica pois assim como

    considera a educao escolar (que chamada pelos defensores dessa viso de educao formal

    com um tom negativo) portadora de todas as negatividades, considera a educao no formal

    portadora de todas as positividades. Uma seria totalmente alienante ao passo que a outra estaria

    margem da alienao. o mesmo tipo de raciocnio empregado pelos construtivistas, que

    caracterizaram a escola tradicional como totalmente ruim, repressora, ultrapassada, beirando o

    ridculo, ao passo que o construtivismo seria inteiramente bom, libertador, avanado, cativante,

    sedutor. Mas no posso deixar de fazer um questionamento: se esses intelectuais, marxistas ou no,

    consideram a atuao no mbito do estado e da educao formal algo que no contribui para luta

    contra o capital, no tem fora contra-hegemnica ou contra-sistmica, como alguns preferem dizer,

    ento porque esses intelectuais continuam sendo professores, isto , continuam atuando na educao

    formal e, alm disso, continuam sendo professores de universidades pblicas, ou seja, atuam no

    mbito do estado? Ser que essa contradio no os faz suspeitarem de que h algo errado em seu

    discurso e em sua prtica?

    Quanto aos embates com o construtivismo e outras pedagogias do aprender a aprender, a luta rdua

    por vrias razes. A fora dessas pedagogias vem do fato de que elas se encaixam perfeitamente no

    ambiente da sociedade capitalista contempornea. Da vem sua fora de atrao. Alm disso, elas tem

    uma grande capacidade de modificao de seus nomes, de seu vocabulrio e estratgias discursivas e

    prticas, ou seja, possuem um elevado grau de mutabilidade. Mas h um ponto que une a todas elas e

    que no se altera: a guerra permanente socializao do conhecimento pela escola pblica. O

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    universo ideolgico neoliberal e ps-moderno visceralmente desvalorizador do conhecimento em

    suas formas mais elevadas. Essa viso tem, entretanto, contagiado a muitos intelectuais de esquerda

    que tem adotado uma viso semelhante da corrente que existiu nos primeiros anos da Unio

    Sovitica, chamada Cultura Proletria, ou Proletcult. necessrio retomarmos as crticas feitas por

    Lnin a essa concepo de cultura proletria. Lenin, assim como Marx, Engels e todos os grandes

    lderes e autores marxistas, valorizava a apropriao, pela classe trabalhadora, da cultura produzida na

    sociedade capitalista e nas que a precederam.

    G.: No marco da transio que vivemos atualmente onde identificamos os pontos de apoio mais fortes para a defesa da educao pblica no Brasil?

    D.: No campo dos estudos acadmicos no tenho dvidas de que a referncia mais slida para a defesa da

    escola pblica o pensamento do grande educador marxista brasileiro, Dermeval Saviani, justamente

    homenageado pelo III EBEM, realizado em Salvador em 2007. Muitos outros educadores e

    pesquisadores, entre os quais me incluo, inspiram-se no pensamento pioneiro de Dermeval Saviani

    para desenvolverem na teoria e na prtica a luta em defesa da escola pblica no Brasil. Uma

    demonstrao cabal do quanto a escola pblica foco de luta ideolgica acirrada o fato de que a

    obra de Saviani seja sistematicamente alvo de ataques provenientes tanto do campo da direita quanto

    do campo da esquerda. Em 2009 o grupo de pesquisa Estudos Marxistas em Educao realizou em

    Araraquara um seminrio para marcar os 30 anos de existncia da pedagogia histrico-crtica. Pode-se

    dizer que nessas mais de trs dcadas de existncia essa pedagogia marxista tem sofrido todo tipo de

    ataque e sua morte tem sido anunciada muitas vezes. O mesmo tem acontecido h muitas dcadas

    com o marxismo e o socialismo. Parece-me que a insistncia dos ataques obra de Dermeval Saviani

    e pedagogia histrico-crtica revela, ao contrrio do que afirmam seus opositores, o vigor e a fora

    dessa perspectiva na defesa da escola pblica.

    Mas claro que a defesa da escola pblica no se apia apenas em referncias acadmicas, por mais

    importantes que elas sejam. H necessidades dos professores se organizarem para lutarem para que a

    escola torne-se uma instituio que inspire e aspire conhecimento. O foco de tudo o que se faz

    dentro da escola deve ser o conhecimento. H que se resistir s polticas educacionais que apontam

    em direo descaracterizao da escola e do trabalho do professor. H que se rechaar

    veementemente os discursos que secundarizam a transmisso do conhecimento pela escola. H que

    defender o professor, o aluno e a instituio escolar dos ataques provenientes dos gabinetes dos

    defensores, declarados ou no, da ordem social capitalista.

    G.: Voc vem fazendo o enfrentamento com as pedagogias do aprender a aprender, consagradas nas polticas de educao de FHC, identificadas com o senso comum e conformadas ao modo de produo capitalista. V diferenas nas polticas de educao dos governos do

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    Partido dos Trabalhadores? V diferenas nos valores que presidem as polticas educativas do governo FHC e Lula?

    D.: No que diz respeito s polticas de educao parece-me que as diferenas entre os dois governos so

    pontuais. No me parece que o governo Lula tenha rompido com a tendncia principal implementada

    durante o governo FCH, ou seja, no houve uma ruptura com a hegemonia das pedagogias do

    aprender a aprender. Alis, no vi indcios de que houvesse inteno de se realizar tal ruptura. Isso

    no quer dizer que os dois governos tenham adotado medidas idnticas no campo educacional ou que

    seus representantes tenham adotado discursos e prticas semelhantes. O que estou afirmando que

    no essencial a direo que se imprimiu educao escolar brasileira no governo FHC no foi alterada

    no governo Lula.

    G.: Como situa na luta de classes as polticas de governos estaduais e a poltica do governo federal em relao avaliao?

    D.: A avaliao uma conseqncia do tipo de educao escolar que se pretenda implementar. Por

    exemplo, a progresso continuada, defendida pelo governo paulista, uma conseqncia lgica da

    concepo construtivista em educao, que vem sendo adotada pelo discurso educacional oficial do

    estado de So Paulo h mais de vinte e cinco anos. Quando um sistema educacional adota uma

    perspectiva pedaggica que no valoriza a aquisio, pelo aluno, dos conhecimentos cientficos,

    artsticos e filosficos em sua forma mais desenvolvida, quando a educao escolar volta-se para a

    formao de competncias, quando se postula que quanto menos o professor ensinar melhor o

    aluno aprender, a conseqncia, em termos de avaliao, ser a de desconect-la do contedo

    ensinado e aprendido e transform-la em mera descrio de um percurso individual sem rumo

    claramente definido. Esse tipo de concepo no interessa classe trabalhadora. Esta quer que a

    avaliao seja um instrumento que indique se as crianas, os adolescentes e os jovens esto adquirindo

    o conhecimento cuja transmisso obrigao da escola. Quando os resultados calamitosos gerados

    pela adoo das pedagogias do aprender a aprender comeam a se mostrar por demais evidentes, os

    governos em nvel estadual e federal adotam medidas emergenciais da mesma forma que fazem com

    os momentos de enchente e de desabamentos nas grandes cidades. Parece-me que isso tem

    acontecido com a discusso sobre avaliao. No adianta, por exemplo, criticar a progresso

    continuada se no criticarmos radicalmente as pedagogias que lhe do base, como o caso do

    construtivismo, da pedagogia das competncias, da pedagogia dos projetos, da pedagogia

    multiculturalista, entre outras.

    G.: As teses ligadas educao enquanto capital social permeiam a atuao de ONGs, movimentos sociais ligados a projetos histricos de sustentabilidade propostas ditas de esquerda a que vem este discurso e prtica?

  • Entrevista

    Germinal: Marxismo e Educao em Debate, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-138; fev. 2011 135

    D.: Esse discurso e essa prtica ao mesmo tempo camuflam a origem real dos graves problemas

    estruturais da sociedade capitalista contempornea e criam a iluso de que a soluo desses problemas

    seria de ordem local, dependendo da criatividade e da iniciativa de indivduos e comunidades. Outro

    ponto negativo dessa concepo o atrelamento da educao aprendizagem da resoluo de

    problemas locais, o que limita o conhecimento escolar a uma perspectiva instrumental e imediatista.

    G.: Como analisa o reviver da defesa da educao popular?

    D.: Depende do que se entenda por educao popular. Se for a perspectiva que considera que a educao

    deva voltar-se para a assim chamada cultura popular em oposio educao escolar voltada para a

    assim chamada cultura erudita, ento eu vejo esse reviver da defesa da educao popular como mais

    um sintoma da desvalorizao ps-moderna das formas mais desenvolvidas do conhecimento. O

    relativismo cultural contido nessa viso de educao popular no compatvel com a superao da

    fragmentao da humanidade, com a perspectiva da humanidade unificada num nvel superior de

    desenvolvimento, em suma, no compatvel com a perspectiva comunista. Talvez seja compatvel

    com a perspectiva do comunitarismo cristo que est na base de alguns movimentos sociais

    contemporneos, mas essa no uma perspectiva marxista.

    G.: H um ataque natureza do trabalho educativo, enquanto espao emancipatrio, com as agendas mundiais por metas direcionadas ao mundo das organizaes? J estaramos com grandes parcelas da humanidade coisificadas?

    D.: Sim, h um ataque orquestrado natureza do trabalho educativo. Defenderei aqui uma tese simples,

    mas que encontra muita oposio no prprio campo marxista. O trabalho educativo essencialmente

    emancipatrio, ainda que se apresente, nesta sociedade, contraditoriamente marcado por formas e

    contedos muitas vezes alienantes. Que o trabalho educativo esteja sob ataque no significa que ele

    tenha perdido sua fora na sociedade contempornea. Ao contrrio, a fora desse ataque

    proporcional aos perigos que a educao escolar oferece classe dominante. Permitam-me ser

    repetitivo por uma questo de nfase: afirmo, em direo oposta a boa parte do discurso educacional

    de esquerda, inclusive marxista, que uma escola ensinando de verdade aos filhos da classe

    trabalhadora algo que oferece perigo classe dominante. Eu no acredito nessa viso negativista de

    que a alienao da humanidade teria chegado a nveis que praticamente inviabilizariam o trabalho

    educativo como um processo humanizante. Essa viso est contaminada do ceticismo ps-moderno.

    G.: Lukcs vem sendo estudado por voc e seus orientandos, em que ele seria fundamental para o avano dos marxistas nos debates e prticas sobre as atuais relaes de produo, o trabalho e a educao e conseqente trabalho didtico.

  • Entrevista

    Germinal: Marxismo e Educao em Debate, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-138; fev. 2011 136

    D.: Primeiramente esclareo que nem eu nem meus orientandos ou pesquisadores de nosso grupo de

    pesquisa elegemos um autor no campo marxista para nos tornarmos especialistas naquele autor. O

    fato de nos definirmos como marxistas claro que estabelece a obra de Marx como nossa referncia

    principal, mas nosso grande objetivo desenvolver estudos e pesquisas em educao tendo como

    referncia o materialismo histrico-dialtico. nessa perspectiva que estudamos diversos autores que

    nos auxiliem a compreendermos a educao escolar no contexto da luta de classes na atualidade. Feito

    esse esclarecimento, venho desenvolvendo, com a participao de alguns de meus orientandos de

    graduao, mestrado e doutorado, estudos sobre as contribuies de Vigotski e Lukcs para a

    compreenso das relaes entre a formao humana e as obras de arte, incluindo-se entre elas as

    obras literrias. Minha expectativa a de avanar na elaborao da teoria pedaggica marxista. As

    linhas gerais dessa pesquisa esto apresentadas num captulo do livro intitulado Arte, conhecimento

    e paixo na formao humana: sete ensaios de pedagogia histrico-crtica, que escrevi em parceria

    com Sandra Della Fonte e foi publicado em 2010. De certa maneira pretendo, com esse estudo, dar

    continuidade e aprofundar a elaborao terica que iniciei com minha tese de doutorado, intitulada

    A formao do indivduo e a objetivao do gnero humano, defendida na Unicamp em 1992 e

    publicada um ano depois, como livro, com o ttulo A Individualidade Para-Si. A grande

    contribuio de Lukcs para os estudos marxistas em educao est nas profundas anlises que ele fez

    acerca do significado que as grandes objetivaes do gnero humano tm para a humanizao dos

    indivduos. Procurei explorar um pouco essa temtica em dois textos meus recentes: o primeiro

    intitula-se Arte e educao contra o fetichismo generalizado na sociabilidade contempornea

    (disponvel na ntegra na internet) e outro, ainda indito, a ser publicado em breve, intitulado

    Contribuies da esttica lukacsiana para a teoria pedaggica marxista.

    G.: A teoria histrico cultural, enquanto legado do leste europeu para fundamentar a teoria pedaggica est chegando na formao dos professores e no cho da escola?

    D.: A teoria histrico-cultural uma teoria psicolgica fundamentada nos trabalhos de psiclogos

    soviticos, especialmente Vigotski, Leontiev e Luria. Ela de grande importncia com um dos

    fundamentos de uma pedagogia marxista, mas ela no , em si mesma, uma teoria pedaggica. No h

    uma pedagogia vigotskiana. Entre a teoria histrico-cultural, como uma teoria psicolgica, e a prtica

    escolar, h necessidade da mediao de uma teoria pedaggica. Como j explicitei, a teoria pedaggica

    com a qual trabalho e para cujo enriquecimento procuro contribuir a pedagogia histrico-crtica.

    Quando no discutida a questo da teoria pedaggica mais adequada para fazer a mediao entre a

    psicologia histrico-cultural e a prtica pedaggica, as idias de Vigotski, Leontiev e Luria acabam

    sendo apropriadas de forma distorcida e incorporadas s pedagogias do aprender a aprender, ou seja,

    so subsumidas ao universo ideolgico neoliberal e ps-moderno, como mostrei h mais de dez anos

    atrs em meu livro Vigotski e o Aprender a Aprender.

  • Entrevista

    Germinal: Marxismo e Educao em Debate, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-138; fev. 2011 137

    G.: O que existe de divergncia estruturante entre os que defendem a pedagogia histrico-crtica e os que defendem a critica a organizao do trabalho pedaggico e a crtica aos conteudistas?

    D.: Creio que vocs estejam se referindo s idias defendias por Luis Carlos de Freitas, que foi

    entrevistado no nmero anterior da Germinal. Freitas defende algumas proposies correlacionadas:

    1) A da no centralidade da escola como instncia educativa, isto , a escola seria apenas uma das

    modalidades formativas. Ao contrrio do que Saviani e eu temos defendido, para Freitas a escola no

    seria a mais desenvolvida e a principal forma de educao no atual estgio de desenvolvimento

    histrico alcanado pela humanidade. 2) A da no centralidade da sala de aula e da transmisso do

    conhecimento na escola. Freitas no descarta o domnio do conhecimento mas o coloca em segundo

    plano, subordinado ao que para ele considera decisivo em termos formativos na escola, ou seja, as

    relaes dos alunos uns com os outros e dos alunos com os professores e demais integrantes da

    instituio escolar. 3) A autogesto dos estudantes um dos pontos centras na viso de Freitas do que

    seria uma escola com um novo formato. bastante visvel, nesse aspecto, a influncia, alis assumida

    por Freitas, da perspectiva de Maurcio Tratemberg, educador brasileiro de inspirao anarquista. 4) A

    aproximao entre a escola e o seu entorno, tambm formulada por Freitas em termos dos vnculos

    entre a escola e a vida. Essa proposio faz com que ele entenda que a escola no campo deva ser

    diferente da escola da cidade. 5) Em conseqncia dessas proposies Freitas explicita sua

    proximidade s experincias educativas realizadas pelo MST e, mais do que isso, sua concordncia

    com a teorizao pedaggica que sem vem desenvolvida por Caldart e outros integrantes daquele

    movimento. Seria necessrio um espao maior para explicitar todas as divergncias que tenho em

    relao a essas idias, mas procurarei sintetiz-las o melhor possvel. Embora Freitas afirme que no

    desconsidera a importncia do conhecimento, sua viso de educao no revela uma real

    compreenso da importncia do conhecimento no processo de superao da sociedade capitalista e

    de construo da sociedade comunista. Alis, parece-me que nessa concepo defendida por Freitas

    est ausente aquela perspectiva da universalidade da cultura qual fiz referncia anteriormente nesta

    entrevista. A viso de educao de Freitas e tambm a do MST aproximam-se em muitos pontos da

    perspectiva multiculturalista, a despeito das crticas que Freitas faz ao ps-modernismo. Alis, essas

    aproximaes entre o multiculturalismo e o pensamento de Freitas podem ser tambm percebidas no

    dilogo entre ele e Miguel Arroyo. Creio que as consideraes que fiz ao responder as perguntas

    anteriores mostram a centralidade que a educao escolar e a transmisso do conhecimento tem na

    perspectiva que defendo acerca das relaes entre educao e luta em direo sociedade comunista.

    Mas eu gostaria de destacar mais um ponto de divergncia. Para mim a escola, em seu formato

    clssico, no uma instituio essencialmente burguesa, que tem por principal funo domesticar a

    classe trabalhadora. Por essa razo no concordo que seja necessrio um outro formato de escola. O

    que precisamos fazer superar os aspectos alienantes tanto da escola tradicional como das outras

    propostas de escola que surgiram na sociedade capitalista ao longo do sculo XX. Mas h um ncleo

  • Entrevista

    Germinal: Marxismo e Educao em Debate, Londrina, v. 3, n. 1, p. 128-138; fev. 2011 138

    da educao escolar que deve ser preservado e que podemos chamar a escola em sua forma clssica.

    O que a classe trabalhadora precisa no o fim da escola em sua forma clssica, mas sim sua

    universalizao.

    Uma ltima meno questo do adjetivo conteudista. Esse adjetivo usado, frequentemente, com

    um sentido pejorativo que revela a viso unilateral que muitas pessoas tm do que seja o contedo do

    conhecimento. Quem pensa dessa maneira no entende a dialtica entre contedo e forma. A esse

    propsito cito as palavras de Vigotski: Um determinado contedo pode ser apresentado de maneira

    adequada to somente com o auxlio de determinadas formas (Obras Escolhidas, volume 3, p. 54,

    edio espanhola)

    G.: Em face de tantas tarefas atribudas escola, a seu ver qual seria a tarefa precpua dos professores?

    D: Depois de tudo o que afirmei nesta entrevista, torna-se quase desnecessrio responder a essa pergunta.

    A tarefa precpua dos professores dominar e transmitir aos seus alunos o conhecimento cientfico,

    artstico e filosfico em suas formas mais desenvolvidas. Parafraseando Marx eu diria que na

    sociedade comunista ser professor deixar de ser um meio de vida e passar a ser a primeira

    necessidade vital de muitos indivduos, ou seja, para esses indivduos a transmisso do conhecimento

    ser uma atividade de desenvolvimento de sua individualidade como uma individualidade para-si. Ns

    podemos e devemos comear a lutar nessa direo desde j.