Luz no fim do tunel

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Proibida toda e qualquer reprodução desta sem permissão expressa do editor. A C & ARTE CIÊNCIA EDITORA & 2004 Cleonder Evangelista

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AC&ARTE CIÊNCIA

EDITORA&

2004

Cleonder Evangelista

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2004 by Cleonder Evangelista

Direção GeralHenrique Villibor FloryCoordenação Editorial

Rodrigo Silva RojasDiagramação

Rodrigo Silva RojasCapa

Rodrigo Silva RojasColaboração

Benedita A. CamargoRevisão

R. S. Causo/Elêusis M. Camocardi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Acácio José Santa Rosa (CRB - 8/157)

Editora Arte & CiênciaRua Treze de Maio, 71 – Bela Vista

São Paulo – SP - CEP 01327-000Tel.: (011) 3257-5871

Na internet: http://www.arteciencia.com.br

Índices para catálogo sistemático

1. Menor: Instituição: FEBEM: Reinserção e sucesso 362.7322. Autobiografia: Ex-interno da FEBEM 923

Evangelista, Cleonder, 1984Uma Luz no fim do túnel: uma história de sucesso de ex-interno da FEBEM/CleonderEvangelista. -- São Paulo: Arte & Ciência, 2004.224 p.; 21 cm

ISBN 85-7473-133-1

1. Autobiografia - Ex-interno da FEBEM. 2. FEBEM - Ex-interno - Depoimentos. 3.Menor Infrator - Reinserção e sucesso. 4. Adolescentes em situação socio-educativade internação - Autobiografia. 5. Sucesso na reinserção - Adolescentes de risco. I.Título.

CDD - 362.732- 923

E92L

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

Primeira Parte

Capítulo I – Licença, senhor ...........................................19

Capítulo II – Moleque mentiroso ....................................33

Capítulo III – Preso você não vai ......................................43

Capítulo IV – Você é que é o louco ..................................59

Capítulo V – Então você está aqui! ..................................77

Capítulo VI – Vai morrer! ................................................103

Segunda Parte

Capítulo VII – O Código Penal Não-Escrito ..............113

Capítulo VIII – O senhor está preso ...........................141

Terceira Parte

Capítulo IX - Eu queria realizar um sonho ......................163

Epílogo – Sendo um exemplo ....................................................221

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AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS

Ao engenheiro Roberto Massafera.

Aos agentes de proteção "funcionários da Febem", CristianoN. de Moraes, Clodoaldo C. Araújo, Augusto César S. Costa,Antoninho M. dos Santos, Evandro Coelho, Jaime das AlmasSantos, Mario Augusto Sluszas, Dionízio Carlos Neto, FranciniCavalini Landim, Manoel E. M. Neto, Isaac Correa, Elienai L. daSilva, Alessandra Martins Gitti, Fábio Alves da Silva, ElianaRibeiro, Alessandro Guedes da Silva, Rodrigo Pedro Barbosa,Dauer Alves da Silva, Helen C. Pansani, Marcos R. Marçal,Maurício Aparecido Vicente, Regina Pedro da Silva, Rubens JoséSantos, Solange S. V. Ribeiro, Patrícia Nascin Oliveira, AlexandrinaAbati Aguiar. Do plantão noturno: Clóvis da Silva, Jorge Araújo,Mario Nunes, Antonio Marcos Augusto, Adilson AparecidoBernardes, Jorlan de Jesus, Ailton de Oliveira (irmão), Washingtonde Oliveira, Márcio Domingos Vieira, Clodoaldo Basílio Santos,Elias A da Luz, Maurício M. Hilário, Alexandre dos Reis, PauloR. S. Barbosa, Antonio Ludugério Lima, Fernando N. de Souza.

Aos coordenadores da Febem Edvaldo dos S. Costa, JuarezDimes Barbosa, Hélio F. Felisbino, José Gilberto Bitencourt,Laércio José Narciso, Silvia Seabra Ribeiro, Vitor Augusto Canedo.Do setor pedagógico — Coordenador Pedagógico: Jair Souza dos

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Santos. Educação Física: Luís Alfredo M. Ferreira, MarcosMaldonado. Pedagoga: Márcia Gomes de Melo. Pedagoga:Valentina Nonato M. de Sá. Psicólogo: Marcos Tadeu da Silva.Do Setor Técnico: Secretária: Mirian Oliveira Silva. Psicólogos:Nivaldo Lopes, Roberto Pinto de Souza, Ivan Ayres da Silva.Assistente Social: Tereza Cristina Kiss. Psicóloga Encarregada:Silmara C. F. Félix. Do Setor Administrativo: EncarregadoAdministrativo: José Carlos Raponi. Secretárias: Maria José dos S.Gonçalves, Ana Paula de Moura. Rouparia: Ronalva da SilvaMacena, Walter Barbosa.

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PrefácioPrefácioPrefácioPrefácioPrefácio

A primeira vez que ouvi falar do Cleonder foi por meio daassessoria de imprensa da FEBEM. Eles precisavam de uma bolsade estudos para viabilizar a formação universitária de um internoque havia sido aprovado no vestibular e não tinha condições dearcar com as mensalidades da universidade. Até onde sei, este foio primeiro esforço da “nova FEBEM”, depois que foi transferidapara a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A propos-ta era oferecer oportunidades a um garoto que já tivera a desespe-rança como conselheira.

O projeto era interessante, mas levá-lo a cabo seria difícil.Existem o preconceito e o medo, entrelaçados, que fazem muitossorrirem amarelo quando analisam a solicitação da FEBEM, prin-cipalmente dentro de uma instituição de ensino. O que aconte-cerá se o menino voltar a praticar algum delito? O que dirão ospais de alunos quando souberem que seus filhos e filhas estão es-tudando junto a um ex-interno da FEBEM?

Nós da UNIP, no entanto, acreditamos nas dimensões hu-manas e sociais inerentes a uma universidade, e o termo “extensãocomunitária” não é apenas uma palavra vazia feita para figurarem parede ou ecoar em discursos. A integração dos excluídos, areinserção dos que se afastaram do convívio e das práticas sociais,

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o oferecimento de oportunidades, enfim, a educação, em seu sen-tido pleno, é a meta primordial da universidade, e a nossa não sefurta a essa responsabilidade.

Foi imbuída desse sentimento que a UNIP iniciou sua par-ceria com a FEBEM e a Secretaria da Educação. Tinha consciên-cia de que correria riscos e possivelmente encontraria críticos. Poroutro lado, haveria também os que abririam seus olhos, os queajudariam, os que colaborariam.

Claro que uma bolsa de estudos não se justificaria apenaspela situação de Cleonder, mas uma análise mais apurada de suaprova revelou um menino articulado e inteligente, bem prepara-do para o curso superior. O livro que escreveu depois só veio con-firmar o que já sabíamos. Contudo, para nós, a solução do pro-blema de financiamento do curso não seria suficiente. Por isso,nossa Comunicação Corporativa articulou apoios financeiros eestágios para facilitar a reinserção do garoto. Claro que o precon-ceito, tanto o real quanto o percebido, e, mais, o imaginado porCleonder, precisaria ser combatido. Assim, designamos professo-res-tutores no curso de Direito e psicólogos para acompanhá-lo eorientá-lo.

Sabemos que “uma andorinha só não faz verão”. Estimula-mos Cleonder a escrever sobre sua vida e experiências, em umaespécie de catarse e preparação para o futuro, a fim de que elepudesse usar sua vida como exemplo para si mesmo e para os ou-tros. Ao entender melhor seu passado, o garoto poderia planejarsua vida a longo prazo. Teria, pela primeira vez, a chance de pen-sar em um futuro digno.

A vida passada de Cleonder mostra que ele não foi nenhumsanto. Mesmo aos treze ou quatorze anos, seria temerário encontrá-lo pelas ruas à noite. Este livro não deve ser visto como uma apo-logia a um personagem, a uma vida de percalços, cheia de ro-mantismo e aventura. Ele nem ao menos tentou fazer isso. Errou,pagou seu preço e aprendeu com o sofrimento. O que ele quer

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mostrar com o livro é que, mesmo nas piores situações, ainda háesperança e chance para aqueles que realmente desejam mudar.

Pensando na situação da criança e do adolescente e na domenor infrator, Cleonder propõe-se a fazer uso de seu exemplo.Quer direcionar seus estudos acadêmicos e reforçar sua práticacom o saber teórico, de forma a poder contribuir com a socieda-de. É uma proposta ousada, para um jovem de 19 anos.

A nossa universidade acredita que o apoio da iniciativa pri-vada aos projetos da Secretaria da Educação para a reeducaçãode crianças e adolescentes que tenham se desviado das práticassociais é um caminho promissor. A UNIP não ficará sozinha.

Sabemos dos riscos que o Cleonder corre. Sabemos tambémque há chances de sucesso e de fracasso, mas acreditamos que amedida do ser humano é o seu próprio desejo de superar-se. Cha-mamos a isso de esperança.

Boa sorte, Cleonder!

João Carlos Di Genio

Reitor da Universidade Paulista-UNIP

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EM BRANCO

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PRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTEPRIMEIRA PARTE

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EM BRANCO

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Capítulo I: “Licença, senhor.”Capítulo I: “Licença, senhor.”Capítulo I: “Licença, senhor.”Capítulo I: “Licença, senhor.”Capítulo I: “Licença, senhor.”

Meu primeiro sentimento ao chegar à Unidade de Atendi-mento Inicial da FEBEM foi de puro medo.

Depois de uma viagem exaustiva de seis horas e meia, vindoda cadeia pública de Itápolis para a capital de São Paulo, ter che-gado ao prédio antigo e às sujas paredes de oleado escuro não foi,nem de longe, o alívio esperado. Toda a viagem tinha sido feita no“chiqueirinho” de uma viatura da polícia civil. Estava acompa-nhado de uma investigadora de polícia e do chefe da carceragemde Itápolis. Os dois iam sentados na frente, enquanto eu me en-colhia no apertado compartimento para transporte de presos, natraseira do camburão.

Lembrei-me do desamparo que havia sentido, quando metiraram da cadeia de Itápolis, depois de ser algemado por doispoliciais civis. Eles mandaram entrar no chiqueirinho, vestidocomo estava, apenas de camiseta, calção e chinelos. O investiga-dor e o carcereiro embarcaram e a viatura arrancou. Eu sabia quemeu destino era a Unidade de Atendimento Inicial da FEBEM,no Brás, mas ninguém se dera ao trabalho de me preparar para aviagem, dizendo para onde iríamos e quanto tempo ficaríamos naestrada. Tudo o que eu sabia era que, a cada segundo que passava,

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eu ficava mais distante da minha família, do meu lar, de minhaliberdade.

Enquanto viajávamos, eu encolhido nos fundos da viatura,o chefe da carceragem gritava lá da frente, por cima do ombro:

— Agora é que ‘cê vai saber o que é sofrimento, vagabundo!Vai começar a pagar os seus pecados!

Sentada ao seu lado, Cleide, a investigadora, não dizia nada.Eu podia sentir o quanto ele queria que ela participasse, tantoquanto podia sentir o constrangimento dela. Éramos conhecidos.A sua filha havia estudado comigo no Primeiro Grau. De minhaparte, tudo o que eu podia fazer era tentar me ajeitar um poucomelhor no estreito compartimento.

Mais tarde, consultando livros de Direito Civil e o Códigoda Infância e do Menor, soube que esse tipo de “transporte” eraproibido para menores. As razões eram claras o bastante — quan-do a porta do chiqueirinho foi aberta e os policiais me puxarampara fora, agarrando-me pelas algemas e pelos fundilhos, minhasjuntas estalaram e eu mal pude endireitar as costas. Meu fôlegoera curto e o coração pulava no peito. “A primeira brecha quealguém me der, aí é que eu escapo”, pensei, no instante em que oódio e o medo me dominavam.

Mas, em pé diante dos muros altos da FEBEM, minhas per-nas começaram a tremer. Fazia um calor de quarenta graus, po-rém eu tremia como se estivesse no inverno da Antártida. Osportões se abriram. Eu e minha escolta avançamos para dentrodo pavilhão.

Uma mulher baixa e gorda, de aparência masculina, veiotratar com a investigadora e o carcereiro, para receber os meuspapéis. Eram os únicos “documentos” que vieram comigo, agoraenfiados em um saco lacrado, com o resto das coisas com que fuipreso em Borborema. Minhas únicas roupas eram as que eu tra-zia no corpo.

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Eles me deixaram em uma sala vazia, suja, sem mobília. Fuitrancado ali até que, passados alguns minutos, aparecesse um ho-mem negro, alto e corpulento. Esses adjetivos não fazem jus a ele— era um verdadeiro monstro, de pescoço tão grosso quanto aminha cintura. Ao vê-lo, alguma coisa encolheu em meu peito.Pude reconhecer o contorno do seu crachá, oculto no bolso dacamisa, mas eu só saberia o seu nome mais tarde. Meu coraçãobatia tão forte que a camisa balançava em meu corpo. O senti-mento de medo cresceu.

Medo de morrer.

*

O funcionário negro ordenou que eu tirasse a roupa e que,com as mãos cruzadas atrás da nuca, me agachasse meia dúzia devezes. Enquanto obedecia, eu observava o funcionário da FEBEMpelo canto dos olhos. Ele tinha o olhar trancado no meio das mi-nhas pernas, talvez à espera de que um estilete ou qualquer outracoisa caísse dali para o chão sujo.

— Aí, Zé — ele disse. — Presta atenção na idéia, que é umavez só qu’eu vou falar.

Fiz que sim com a cabeça.

— Aqui, pra falar com a gente é "sim senhor" e "não se-nhor", entendeu?

— Entendi — eu disse, e já levei um soco no peito, porque,de nervoso, tinha me esquecido do “sim, senhor”.

Tudo isso para mim era algo do outro mundo. Diante domeu medo e espanto, nada fazia sentido e meu pensamento seagitava, sem direção.

O funcionário tornou a falar.

— Acho que ‘cê não entendeu direito.

— Já entendi, sim senhor — eu disse.

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— Aqui, pra passar na nossa frente — ele prosseguiu —tem que falar “licença senhor” ou “licença senhora”. E se nãofalar, vai ser cobrado na hora, morou, malandro?

— Sim, senhor.

— Ah! Outra coisa, Zé. Aqui também não se troca idéiacom ninguém, e não pense que somos idiotas, porque a gentepega ‘ocê, se conversar.

Saímos da sala e o funcionário ordenou que eu o acompa-nhasse, mas andando com as mãos para trás e a cabeça baixa, olhan-do para os seus calcanhares sempre. Se eu olhasse para os lados,enquanto estivesse no interior do pavilhão, levava “couro” na hora.

Entramos em uma outra sala.

— Ó mais um pianista aqui — o funcionário gritou.

“Tocar piano”, eu já sabia, significava tirar as digitais. Umrolinho com tinta preta era passado na ponta de cada um dosdedos, que eram então pressionados, um de cada vez, contra umcartão. O sujeito que me tirou as digitais fez tudo sem me olharna cara. Eu mesmo olhava tudo de lado e com a cabeça baixa, deum jeito furtivo, tentando não chamar para mim mais nenhumcastigo.

Dali me levaram para uma outra sala, com mais dois meno-res que também tinham chegado naquele dia. Esperamos nesselugar por uns dez minutos, com as mãos para trás e o rosto contraa parede. Os dois começaram a conversar baixinho um com ooutro, mas logo chegou um funcionário, que percebeu que elesconversavam. Horrorizado e ainda em pé na mesma posição, pre-senciei ao espancamento dos dois, cobertos de socos e pauladas,até estarem no chão, implorando para que parasse. Eu ouvia osom oco dos golpes, ao atingirem cabeças, peitos e braços, os gri-tos de dor dos dois meninos, o rosnar e os palavrões do funcioná-rio, e via as sombras agitadas nas paredes e no chão, no restritocampo visual que eu tinha, em pé ali sem poder me mexer. Teria

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tapado os ouvidos para não ouvir seus gritos de dor, mas isso teriame trazido o mesmo castigo.

Ofegante, o funcionário explicou aos dois as mesmas regrasque eu tinha ouvido há poucos minutos, e disse que se aconteces-se alguma coisa de novo com os dois, eles iriam levar um surra quenão conseguiriam andar por três dias. Eu continuava na mesmaposição, e sentia o suor escorrendo por meu pescoço e peito, suorde medo, medo que fazia coro com o terror dos dois outros me-nores.

O funcionário mandou que formássemos uma fila, um atrásdo outro, um olhando para os calcanhares do outro, e nós o se-guimos até um cômodo pequeno, menor do que uma sala de aula,mas com mais de cem garotos empaçocados nela. Estavam todossentados no chão, todos de cabeça raspada e vestindo camisetasbrancas e bermudas azuis, todos do sexo masculino e todos assis-tindo a uma única televisão, instalada em um suporte pregado naparede. Ficamos pouco tempo ali, graças a Deus. Logo fui levadopara raspar o meu cabelo, como os outros. Tomei uma ducha dedois minutos. Comi um almoço comercial, acompanhado de umrefrigerante. Uma banana foi a sobremesa. Enquanto comia eupensava em tudo o que tinha visto desde a minha chegada. Acolher tremia na mão, a comida às vezes parava na garganta.

Mandaram que eu retornasse à sala de televisão. Fui cami-nhando sem que ninguém me acompanhasse. No caminho passeipor um funcionário. Ele tinha um pedaço de madeira, grosso comoum caibro, na mão direita. A próxima coisa que senti foi o golpena coxa esquerda, alto, quase no quadril. Não agüentei de dor ecaí. Apareceu um segundo funcionário, que me deu um chuteno meio do estômago, enquanto eu ainda estava no chão.

— Levanta e vai pra onde estão os outros — ele ordenou.

Fui mancando, lutando para não vomitar o almoço de hápouco. Só quando me sentei em um canto, espremido entre osoutros, é que pensei em uma razão para a surra que havia levado:

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eu me esquecera de dizer “licença, senhor”, ao passar pelo funci-onário. Foi a primeira, mas não a última surra que levei.

*

Na sala apinhada, o cheiro de suor era forte. Era impossívelnão tocar em alguém ao seu lado, à sua frente ou atrás de você.Hálitos se misturavam, os muitos cheiros de suor tornavam-se oranço de um único bicho coletivo. Os únicos sons eram os dosdesenhos animados exibidos na televisão, e um ou outro fungarchoroso aqui e ali, dentro da sala. Alguns garotos tinham, comoeu, apanhado naquele dia ou no dia anterior, e gemiam baixinho.Eu me surpreendi gemendo com eles. Junto à única entrada, umdos funcionários — sempre chamados de “funça” pelos internos— de vez em quando parava junto ao batente, encostava ali eolhava para dentro, segurando um pedaço de pau.

Mais tarde um funça levou a gente para tomar banho. Eramquatro e meia da tarde, e o “banho” não ia além de passar porbaixo do chuveiro, partilhando um só pedaço de sabonete. Nãopodia me ensaboar muito, porque depois não haveria tempo paraenxaguar… Teria de tirar o sabão no corpo na toalha, mas quan-do apanhei a que me entregaram, ela já estava encharcada. Afi-nal, logo percebi, eram apenas quatro toalhas para cerca de 110detentos.

No canto do banheiro cheio de corpos magros e nus, umfunça esperava com um pedaço de madeira nas mãos, que lem-brava uma perna de mesa. O funcionário mandava os garotos seapressarem.

— Eu também pago imposto, e o meu dinheiro não é pravagabundo tomar banho, não. Então vai, vai, vai! Anda. Vamo’todo mundo saindo do chuveiro, que aqui não é hotel, não.

Vesti o uniforme que me entregaram. Tudo o que era meu,as roupas e os chinelos, foram para uma bolsa de plástico pratea-do, com um lacre que eles fizeram correr assim que enfiaram tudo

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dentro, e uma etiqueta com o meu nome. Era tudo o que eu trou-xera comigo, e tudo com que eu sairia dessa unidade da FEBEM.

Depois de jantar, me sentei no chão da sala que ficava dolado do refeitório, e junto com os outros fiquei assistindo televisãoaté às dez para as nove da noite. Todo mundo permanecia senta-do, abraçando os joelhos, os pescoços doendo de tanto olhar paraa tela da TV. Então nos mandaram dormir.

Eram os funcionários que escolhiam quem dormia onde, nosdois beliches de concreto, com dois garotos deitados juntos em-baixo, um sozinho em cima. No chão, iam três em cada colchãode solteiro. Havia menores deitados em cima e embaixo da mesade refeição. Tivemos que tirar a roupa. Cada um fazia uma trouxacom a camiseta, e enfiava dentro a sua escova de dentes de cabomole. Tudo era socado em uma trouxa maior, feita com um lençolgrande. Dormíamos só de cuecas. O saco com as roupas foi leva-do embora. As portas foram trancadas.

Fazia frio à noite, em março, quando fui trazido. Lá no inte-rior eu não estava acostumado com tanto frio. O único calor eraaquele que um corpo jogado no chão emprestava ao outro.

De vez em quando um par de olhos irados aparecia na frestada porta de metal, para ver se estávamos quietos, dormindo. Nassemanas seguintes, houve momentos em que garotos foram pegosconversando. “Sem idéia dentro do barraco”, os funcionáriosalertavam, cada vez que a gente se recolhia. O funça chamavaseus colegas e eles exigiam que o tagarela se apresentasse. Nuncavi acontecer. Os funças então acordava todo mundo e nos coloca-vam em pé contra a parede, equilibrados nas pontas dos pés,apoiados com a testa na parede e as mãos para trás. Chamavamisso de “arrastar o barraco”.

Acordávamos às 7:00h. A trouxa de roupas era trazida. Cadaum simplesmente apanhava o primeiro conjunto que encontra-va, e vestia por cima da cueca suja, que nunca era trocada. Logo

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percebi que havia internos com sarna, e em pouco tempo eu pró-prio adquiri uma coceira insistente.

Passávamos o dia assistindo televisão. Usar a privada, só nahora do banho. A única alternativa era agüentar…

As semanas se passaram assim. A cada dia aumentava o meudesespero. Após uns vinte dias da minha chegada, estourou umarebelião, frustrada e breve como fogo de palha.

Um interno arrancou o aparelho de televisão do suporte, e oarremessou contra um funcionário. O impacto quebrou a pernadireita do funça. Ao redor dos dois, os outros garotos se levanta-ram, gritando:

— Rebelião!

Durou pouco. Foi apenas um gesto de frustração e desespe-ro de um dos internos. A ele, depois da surra, “deram um bonde”— uma transferência. A todos os outros internos foi ordenadoque se deitassem de bruços no chão da sala maior. O funça negroe corpulento, que era o supervisor dos outros, passou a caminharsobre as costas dos garotos. Carregava um pedaço de pau, e sealguém reclamasse ou gemesse mais alto, era cutucado com forçana nuca ou nos rins. Enquanto ele pisava em nossas costas, ia reci-tando a sua ladainha. Qualquer sinal de rebelião, e aí sim é queíamos sentir na carne o que a UAI do Brás tinha a nos oferecer.

*

Meus pais vieram me visitar na UAI-Brás, em um par deocasiões. Primeiro meu pai, Francisco. Mesmo sofrendo de reu-matismo e sem condução para São Paulo, ele deu um jeito de virde carona com a ambulância que trazia pessoas de Borboremapara serem tratadas no Hospital das Clínicas. Todo esse esforçofoi recompensado com uma visita de apenas cinco minutos — omáximo que os funcionários da FEBEM permitiram. Assim quenos abraçamos, a agente social, uma cinqüentona baixinha e mal-dosa, nos separou e me mandou entrar.

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— ‘Tá encerrada a visita, porque aqui o tempo é curto, meusenhor — ela disse ao meu pai.

Eu podia ver o desgosto no rosto do velho, a tristeza em seusolhos cheios de lágrimas. No pouco tempo que pudemos conver-sar, a assistente social ouvindo tudo, sentada entre nós, pude ape-nas perguntar de minha mãe e de meu irmão Nenrod, que naépoca também estava preso. Dez anos mais velho que eu, ele esta-va em uma prisão comum.

A agente social disse que não devíamos ter muito contatofísico — nada de abraços. Quando minha mãe veio me ver, pou-co tempo depois e também aproveitando a carona com a ambu-lância, a mulher contou a ela que eu era usuário de crack. Isso eramentira, e minha mãe sabia disso. Sem pensar em me defenderdos meus erros, ela negou que eu fosse consumidor de outras dro-gas além de maconha. Ela sabia. Sabia de tudo o que eu fazia deerrado.

Na cadeia pública de Itápolis, o esquema tinha sido diferen-te. Meu pai me visitava sempre, e podia me levar comida, cigar-ros, roupas e artigos de higiene pessoal. Tínhamos mais tempopara conversar, quase duas horas, mas a grade da cela me impediade abraçá-lo. Por ser menor de idade, eu ficava segregado dospresos comuns e não podia ir para o pátio.

Na Unidade de Atendimento Inicial da FEBEM, nada dissoera possível. Não podíamos escrever cartas e mesmo as cartas querecebíamos de casa, aos domingos, eram rasgadas. O interno aslia, e depois era forçado a rasgá-las. Não havia nenhuma espéciede arquivo para guardá-las. Os sacos de plástico com nossos per-tences eram lacrados quando cada um chegava à UAI, e devolvi-dos assim, quando saíamos.

Uma semana depois da visita de minha mãe, recebi uma cartadela. A carta foi rasgada, mas suas palavras permaneceram nocoração.

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O que senti, ao fazer em pedaços as folhas de papel, foi umdesespero e uma raiva enormes, o desejo de escapar de algummodo. Mas era inútil. Tudo o que me restava era cumprir o meutempo ali — e pensar sobre as coisas que me tinham levado a essasituação.

*

Fui preso pela primeira vez durante um assalto. Aconteceuem Borborema, e eu fui o autor da idéia. Precisava do dinheiropara comprar entorpecentes. Mas não porque o fornecedor esti-vesse me cobrando. Ao contrário, eu pensava em me antecipar aele — e em comprar para revender.

O alvo foi um mercado da cidade, próximo da escola emque eu estudava. Pedrinho, um colega, foi o cúmplice relutante.Nenhum de nós fazia idéia real do que estava fazendo. Não ape-nas o mercado ficava próximo da escola que freqüentávamos to-dos os dias, mas umas quatro casas abaixo morava o delegado depolícia da cidade. Tínhamos apenas quatorze anos de idade e onosso plano nascera destinado ao fracasso.

Mal entramos, encapuzados, no mercado — mal o grito de“assalto!” deixou nossas bocas —, uma viatura da polícia dobroua esquina. Quando olhei para trás, Pedrinho já tinha dano no pé,sem nem mesmo me avisar do perigo.

O assalto se transformou em fuga. A viatura foi primeiro emperseguição a Pedrinho, que já estava atravessando a rua, corren-do a toda e ainda de capuz e arma na mão. Na verdade, foi acorreria dele que atraiu a atenção dos policiais… Dentro do mer-cado mesmo, ninguém pareceu alarmado com os dois garotosencapuzados.

Nós dois nos metemos no mato, que cresce quase no centrodessa cidade do interior.

Enquanto fugíamos pelo mato, podíamos ver a casa do dele-gado, muito ao longe. Os homens na viatura haviam perdido anossa pista, mas a mulher do delegado, segurando um filho pe-

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queno pela mão, nos viu. Ela tinha um telefone sem fio. Provavel-mente a sua atenção tinha sido chamada pelo tumulto na rua,onde uma viatura circulava com sirene e luzes policiais ligadas; eaté nós, enfiados no mato, podíamos ouvir os gritos dos policiais.

— Vai morrer — nós gritamos. — Vai morrer aí! Se chamara polícia, vai morrer.

Não sei dizer se ela ouviu a gente, tão longe estávamos, masela e a criança entraram na casa.

Pedrinho e eu ficamos escondidos. Dali a pouco, porém,surgiu o carro do delegado e mais uma viatura da polícia militar.Entre os reforços estava um cabo conhecido como “Robocop” e“Peito de Aço”, por não ter medo de nada. Ele logo se meteu namata atrás da gente, disparando tiros de calibre 12 — cujas car-gas de chumbo balançavam os renques de bambu—, enquantogritava para que saíssemos. Não sei se atirava para nos intimidarapenas, ou para matar.

Nós corremos e, longe dali, jogamos fora a arma. Acabamosnos separando. Eu deixei a mata e subi correndo um morro emque só havia pasto e um pequeno açude, para dar de beber aogado. Tive de contorná-lo. Ao fazer isso, vi que um policial procu-rava por nós mais abaixo, pensando que nos escondíamos entre osarbustos. Eu estava exausto e desarmado, molhado por ter atra-vessado um ribeirão. O capuz, feito com as mangas de uma cami-sa comprida, havia caído para o meu pescoço, durante a correria.Ao ver o policial, sentei no chão e gritei:

— Jurandir, pelo amor de Deus não me mata! — e me jo-guei no chão.

É claro, eu o conhecia de nome — a cidade é tão pequena,que todos nós conhecíamos…

Me entregar seria a melhor saída. Estava apavorado com ostiros do Robocop, e sabia que, se o delegado me pegasse ainda emfuga, ele provavelmente mandaria bala.

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Jurandir me levou para uma das viaturas. Eu já não ouviamais tiros. A viatura em que eu estava, rolando de um lado a ou-tro no chiqueirinho, passou a seguir uma segunda. As duas seemparelharam e se detiveram. Quando desci, Pedrinho já estavaapanhando do Robocop, com coronhadas de espingarda no pei-to. Eu também levei a minha dose. O delegado apareceu e meviu, sendo segurado pelo Robocop.

— Cadê a arma? — perguntou. — Cadê a arma? O quevocês iam roubar?

Eu já estava com as mãos algemadas para trás. O caboRobocop puxou minha cabeça para trás, agarrando-me pelos ca-belos. O delegado aproveitou o meu tronco exposto, e me deuum chute no estômago. Mais tarde, já encarcerado, eu cuspiasangue.

Apanhei um pouco mais.

— Agora você vai levar a gente até onde ‘tá a arma! — odelegado mandou.

— Não tem arma — eu disse. — A gente só ‘tava brincan-do. Ninguém ia roubar nada.

Depois de uma busca, o soldado Jurandir achou a arma.

Era de brinquedo.

A frustração dos policiais redundou em mais uma surra, nomeio do mato. Com uma arma de brinquedo seria difícil obteruma condenação. Ainda mais que o gerente do mercado afirmounão ter visto assalto nenhum, e se recusou a prestar queixa. Umdos policiais militares disse, durante o processo, que arma algumafora encontrada. O delegado e o Robocop insistiram na arma debrinquedo. Mas brinquedo não é arma, e eu ganhei o processo,sendo posto em liberdade depois de dois dias e uma noite na ca-deia. Fui então transferido para uma clínica de recuperação dedrogados, na cidade de Americana. Ali permaneci apenas um dia,e fugi. Era dezembro de 2000 e eu não queria perder as Festas.Passei alguns dias escondido. Tive uma segunda chance com o

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juiz, que me mandou para uma outra clínica, em Bauru. Fugi delá também. Na minha cola foram outros doze. Essa segundainternação foi em janeiro de 2001. No mesmo mês, fui pego commaconha. Em março do mesmo ano, eu estava na UAI do Brás,em razão dessa prisão por posse de entorpecentes.

E enquanto estive ali, me lembrava dos meus crimes, dasviolentas surras que tomei em Borborema durante a fuga, do pe-rigo de ter sido baleado, das oportunidades que o juiz me deupara me recuperar, tantas chances perdidas… e me pergunta-va…

Por quê?

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EM BRANCO

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Capítulo II: Moleque mentiroso.Capítulo II: Moleque mentiroso.Capítulo II: Moleque mentiroso.Capítulo II: Moleque mentiroso.Capítulo II: Moleque mentiroso.

Meu pai, Francisco, hoje com 55 anos, nasceu e cresceu nocampo. Na adolescência ele trabalhou na lavoura. Teve vida dura,sofrida, mas sua prioridade sempre foi a honestidade. Minha mãe,Izilda, teve origem idêntica. Quando menina, vendia ovos paraajudar em casa. Duas pessoas simples e trabalhadoras, que se jun-taram para formar uma família na esperança de melhorar de vida.E, como tantos brasileiros em condições idênticas, estavam conse-guindo, quando nasci, em novembro de 1984. Na época, meupai passou a recrutar trabalhadores para a roça e mais tarde veiopara São Paulo trabalhar na Ford. Minha mãe fazia e vendia bor-dados.

Cresci como tantos outros meninos do interior, com umainfância ótima, recebendo amor e carinho dos pais. Caçava e pes-cava, andava pelos matos. Fui à escola de educação infantil oupré-primário, e me lembro que levava um ovo frito, no pão, comolanche. A professora era a dona Isvânia. Lembro ainda que gosta-va de uma coleguinha, com quem queria dançar quadrilha. Elanão quis e eu chorei. Um valentão chamado Eliezer me perse-guia. Mais tarde joguei bola na escolinha do Borborema AtléticoClube, que tinha como treinador o seu Osmar. Ele às vezes judiavada gente, mas foi quem me ensinou o futebol. Freqüentei a

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escolinha por cinco anos, participei de campeonatos e viajei a ci-dades vizinhas para jogar.

Nada disso está além do que acontecia ou acontece com ou-tros meninos e meninas, por este Brasil afora. E a maioria deles,eu acho, não se volta para o consumo de drogas e para amarginalidade.

Conforme fui crescendo, passei meus sete, oito, nove, dez eonze anos normalmente. No dia 18 de julho de 1996, tive a infe-licidade de perder meu avô paterno, Lucírio Pedro Evangelista,que sofria de problemas do coração e morava em um sítio pertoda cidade. Era nesse sítio que eu me divertia nos finais de semana.Chorei muito com a morte do meu avô. Na escola minhas notaseram boas, o relacionamento com os professores e colegas de clas-se sempre foram bons.

No primeiro grau recebia incentivo dos meus pais para estu-dar. Eles fiscalizavam minhas lições e minha presença na escola.Sempre proveram o material e o uniforme, tudo bem cuidado.Na escola eu tinha um bom relacionamento com os colegas e pro-fessores, e até uma namorada, Juliélem, na sétima série. Meu me-lhor amigo era o Pedrinho. Tinha amigas também, Mirela eGlauce, que o são até hoje. A única coisa que me desabonava eraque eu, às vezes, matava aula com os amigos, para ir nadar no rioda cidade. Isso era tão normal que os professores nem esquenta-vam a cabeça e, às vezes ligavam direto para os nossos pais, man-dando que fossem nos pegar no rio.

Aproximando-me dos meus doze anos, comecei a sair de casa,dizendo para minha mãe que eu iria à casa da minha avó, Rosa,que veio a falecer em 8 de setembro de 1996, após sofrer umderrame cerebral que a deixou um ano na cadeira de rodas paratetraplégicos. Ela então não movimentava nenhuma parte do corpoe ingeria alimentos através de sondas.

Não posso dizer que minha mãe fosse desatenta em relação amim e ao que eu fazia. Pelo contrário. Ela sabia que eu gostava de

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ir à casa de minha avó, mesmo depois que ela se foi, ou de jogarfutebol na escolinha do BAC — Borborema Atlético Clube —que fica próximo de casa, e costumava conferir se realmente euestava lá. Às vezes não encontrava ninguém, a não ser minha tiaToninha, esposa do “Dito Araçá”. A tia contava que eu tinha pas-sado por ali, mas já tinha sumido. O técnico, por sua vez, diziaque eu vinha faltando aos treinos há alguns dias.

Eu era muito novo, estava começando a descobrir a belezada vida. Assim como muitos meninos do interior, eu gostava mui-to de nadar e de pescar em um rio de Borborena. Há muito tem-po eu já vinha freqüentando as suas margens, pois quando tinhameus sete para oito anos, meu avô Plínio me levava, com meusprimos Diego, Diogo e Michel, para nadar nesse rio, conhecidocomo Fugidos. Ele passa ao lado do nosso bairro e junto dele muitaspessoas da nossa vila diariamente se reuniam para conviver umascom as outras e para nadar. Eu e meus amigos íamos lá, depois daaula (que às vezes matávamos para nadar). Outras pessoas fre-qüentavam o mesmo ponto em que ficávamos.

Um dia dona Izilda, desesperada, saiu à minha procura, atéque conseguiu me localizar. Eu voltava do rio, onde eu e meuscolegas de classe estivéramos o dia todo. Já perto de casa, me de-parei com ela me esperando com uma varinha na mão — masnão apanhei. Ela apenas mandou que eu entrasse, para a genteconversar. Percebeu que meu calção estava molhado e perguntouonde eu andava. Então eu disse a verdade, que tinha ido com osmeus colegas ali no riozinho que fica pra baixo de casa, e quefiquei nadando lá com o meu companheiro Rafael (conhecidocomo “Massinha”). Minha mãe disse:

— Não é pra você ir mais nesse lugar sozinho, que está fi-cando muito perigoso lá, e se acontecer alguma coisa com você,não vai ter ninguém para me avisar. Eu sou sua mãe e me preocu-po com você.

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A conversa que tive com mamãe ficou em minha cabeça poralguns dias, mas logo não dei mais importância.

Passou-se algum tempo e meus colegas novamente me cha-maram para ir ao rio. Como meu pai saía todos os dias bem cedinhopara trabalhar, só ficava a mãe em casa. Aí eu aproveitava, poisera do seu Francisco que eu tinha medo. Sempre que aprontavaalguma, era ele quem me dava a bronca. Então comecei a fre-qüentar o riozinho de novo — todo mundo ia, por que eu nãopodia ir?

Quando voltava para casa, mamãe vinha conferir o calção,que na maioria das vezes estava molhado. Assim ela começou aimpor certas regras:

— Chegou da escola, vai fazer a lição, estudar o que vocêaprendeu hoje, e depois você vai brincar aqui em frente de casacom a Patrícia — dizia, mencionando a menina que morava aliperto.

Então comecei a pensar em um meio de ir ao rio nadar commeus colegas, sem que mamãe soubesse. Eu colocava a cueca parasecar na beirada do rio e ficava só com a bermuda. Meus colegasjá estavam fazendo a mesma coisa, porque os pais deles tambémcomeçaram a implicar, e alguns até pararam de ir ao rio. Maslogo mamãe percebeu, porque meu cabelo ficava duro por causada água do rio — e algumas cuecas estavam sumindo, já que àsvezes não dava tempo de secar, e então eu as jogava fora.

Era final do ano de 1996, as aulas estavam terminando, equase todos os colegas da sala toparam se encontrar no rio depoisda aula, mas antes eu não tivesse ido.

*

Naquele dia voltei para casa após a aula, troquei de roupa,beijei minha mãe e fui até o rio. De longe já era possível ver amultidão de pessoas fazendo folia na água, mergulhando da mar-gem e de galhos de árvore, algumas comendo o churrasco quepreparavam ali mesmo.

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De dentro da água fiquei observando um colega mais velho,que se chama Zé Mário. Ele fazia uns movimentos estranhos comas mãos. Isso me despertou a curiosidade. Continuei a observá-lo.Ele fumava o cigarro de maconha que acabara de enrolar. Isso jáhavia acontecido antes, esses momentos furtivos de curiosidadeem torno da droga, mas em todas as ocasiões eu terminara fican-do apenas na curiosidade. Mas desta vez, ao perceber que eu olha-va para ele, Zé Mário perguntou se eu estava a fim de dar unstragos. Eu disse que sim. Então ele perguntou se eu já havia fu-mado antes. Respondi que só tinha fumado duas vezes antes, masera mentira — não queria que debochassem de mim perto dosmeus amigos da escola.

Eu disse sim.

Naquele momento fiquei me sentindo o maioral. Alguns dosmeus colegas ficaram me admirando e dizendo que eu era corajo-so por ter fumado uma coisa tão forte e ainda estar de pé, mas naverdade não tinha me causado nenhum efeito. Achei meio estra-nho, e isso me fez ficar ainda mais curioso. Mais tarde, conversan-do com meus amigos, soube que alguns deles ficaram com medode mim, outros passaram a me admirar.

No dia seguinte, escapei de casa e desci correndo para o rio.Cheguei lá e encontrei todo o pessoal do dia anterior. Zé Máriotambém. Cumprimentei-o e fui apresentado ao resto da rapazia-da — Lú, Peludinho, Kubchek, Marinho, Soneca, TonhoVanirdão e o finado Biro-Biro, que nessa época já havia passadopelo Carandiru e era o patrão do tráfico de Borborema. Todosestavam fumando e eu entrei na roda até o baseado chegar naminha mão. Quando peguei na mão todos ficaram me olhando,para ver como eu reagia. Então, para não fazer feio diante deles,dei umas puxadas bem fortes, e o Lú ficou olhando e disse:

— Eu não sabia que você fumava.

Respondi que fazia uns tempos que eu andava fumando.Disse isso só para ganhar moral com eles. Conversa vai, conversa

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vem, e o baseado chegou de novo na minha mão. Dei mais algu-mas puxadas, passei-o e sentei.

Agora sim eu começava a sentir os efeitos. Tudo ficou maislento a cabeça começou a girar e eles diziam que o baseado é ocalmante para os problemas e que quando eu quisesse fumar erasó descer ali no rio, porque muita gente fumava nesse local, entãonem era preciso comprar.

Me despedi de todos com um forte aperto de mão e fuiembora para casa. Chegando, nem cumprimentei dona Izilda,fui direto para o banheiro. Abri o chuveiro, tirei a roupa e entreidebaixo do jato de água. Mas quando me dei conta, acordei —estava dormindo no chuveiro por causa da sonolência que a ma-conha me causou. Sai do banho e fui para a cama dormir. Nooutro dia fui à escola e alguns de meus colegas que estavam comi-go, o Devair (Piquira) e o Rafael (Massinha), se aproximaram demim para perguntar como era, e eu respondia que era o máximo,e que agora eu teria facilidade para jogar um xaveco e iria pegartodas as menininhas da escola, principalmente a Vanessinha, porquem eu estava louco para ficar. Então me empolguei e falei maisum monte de bobagens, me sentindo o maior dos maiores, masna verdade eu não sabia o que estava fazendo e muito menos oque falava.

Terminou a aula e eu fui embora. Não via a hora de chegarem casa para enrolar minha mãe e ir para o rio. E assim foi. Con-forme os dias iam passando, fui ficando cada vez mais rebelde,não queria ouvir orientações ou conselhos de ninguém. Mas ou-via e guardava o que esses “amigos” me diziam. Nessa idade, nãoera capaz de enxergar a realidade, agora, já envolvido com essaspessoas, amizade feita com muitos do ramo. Minha cabeça aospoucos ia sendo enfraquecida. Eu me deixava levar por essas in-fluências, a matéria que era passada na lousa ia ficando para trás,conversava muito na sala de aula… Comecei a ir mal nas maté-rias, apesar de adorar geografia, cuja professora era a donaClaudete, pessoa que hoje admiro e sigo como modelo.

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Passei a conhecer outros malandros da área. Aos poucos fo-ram me ensinando a malandragem do submundo das drogas, mealertavam para que tomasse cuidado e não falhasse com ninguém,para abrir o olho com a polícia, porque os policiais são sujos ecorruptos. E diziam também para tomar cuidado em casa, pois semeu pai soubesse, iria causar a maior encrenca.

Muitos desses meus novos “amigos” conheciam meus pais emeu irmão. Alguns deles até trabalhavam para meu o pai comobóia-fria na colheita da laranja em fazendas vizinhas. Meu irmãosempre foi trabalhador, mas até aí eu não sabia que ele fumavamaconha e era fabricante de lança-perfume, juntamente com oTonico e a Rita, dois vizinhos próximos de casa. Nenrod trabalha-va com meu pai, ajudando a olhar a turma na roça e conferindoas caixas de laranja para ver se estavam todas cheias, e muitos des-ses meus novos amigos também eram amigos dele.

Neste mesmo ano de 1996, com doze anos, comecei a rela-xar de vez na escola. Mas como era final de ano, mesmo assim fuiaprovado e passei para a sétima série.

As férias chegaram. Passei o Natal e o Ano Novo com toda aminha família, meus tios e tias. Fizemos uma grande festança nacasa de meu tio João Beleza. A família estava toda reunida paracomemorarmos mais um ano que passou, mas todos estavam ain-da muito entristecidos — no ano anterior, 1995, no dia 7 dejaneiro, meu tio Benedito dos Santos (conhecido como “Araçá”)faleceu em um acidente de caminhão na rodovia que liga Belém-Brasília, e seu companheiro de trabalho, Luiz (o “Ninão”), tam-bém morreu no mesmo acidente, os dois esmagados pelas torasde madeira que transportavam. Os corpos haviam sido transpor-tados de avião até a cidade de Catanduva. Em Borborema o veló-rio foi de caixão lacrado. A cidade toda parou, pois eles erammuito conhecidos.

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Com essa perda, a nossa família ficou muito abalada, masaos poucos todos tivemos de nos conformar com o ocorrido. Pas-samos o fim de ano juntos. Tudo foi bom, legal e divertido.

No começo de 1997 eu ainda estava de férias e durante essetempo me encontrava sempre com esses novos amigos por lugarese ruas que eram freqüentados por muitos viciados e consumido-res. Os antigos amigos já estavam se afastando de mim e eu deles.Fui me envolvendo cada vez mais, mas não era sempre que fuma-va e nem tinha adquirido a dependência pela maconha. Aindafumava doses pequenas. Era difícil comprar a droga. Às vezes oscolegas tinham e eu aproveitava para fumar com eles. Era difícileu arrumar cinco ou dez reais para fumar. Estavam acabando asférias, e um dia fui ao rio e fiquei lá o dia todo, mas não sabia queo seu Francisco chegaria cedo da roça e minha mãe estava preo-cupada comigo. Ela o mandou me procurar, e de repente de lon-ge pude avistá-lo descendo em direção ao rio. Antes que ele pu-desse me ver, saí correndo. Fui embora pelo mato, cheguei emcasa todo sujo. O seu Francisco ainda não tinha chegado, masminha mãe estava em casa chorando, e quando me viu veio per-guntar onde eu estivera e por que estava tão sujo e com os braçosarranhados daquele jeito. Por que eu estava fazendo tudo aquilocom eles, dando tanta dor de cabeça e preocupação?

Logo em seguida ouvi o barulho do portão sendo aberto.Sabia que era meu pai que chegava, e já comecei a mentir paraminha mãe, dizendo que tinha ido caçar. O pai entrou na sala esentou no sofá diante de mim. Ele só fez uma pergunta:

— Onde é que você estava, filho?

Passei a mesma mentira que tinha passado para a mamãe.Quando terminei de falar, ele apenas pegou a cinta que estava nobanheiro e me deu umas cintadas nas pernas.

— Moleque mentiroso, eu não ensinei você a mentir, vocêestava é com aqueles maloqueiros, maconheiros, só gente que nãopresta!

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Depois parou de me bater e mandou eu tomar banho e tro-car de roupa para a gente conversar. Fiz como ele disse.

Eles começaram a me perguntar, por que eu estava indo aesse lugar. Disse apenas que tinha ido lá para nadar, e ele explicouque lá não era lugar de um menino como eu ir, porque lá só tinhatranqueira.

Ouvi tudo e fiquei calado. A dura que eu levei foi muitoforte e parei de ir ao rio. Havia agora todo um novo conjunto deregras. Se o pai chegasse do serviço e dona Izilda contasse que euhavia aprontado, ele iria cortar o meu dinheiro da escola e não iadeixar eu brincar depois da aula. Se eu fosse a algum lugar, teriaque avisar antes.

Passaram-se alguns dias e eu só saía de casa para treinar fute-bol com o técnico Osmar do BAC. Algumas vezes eu via minhamãe lá longe no portão, me olhando enquanto eu jogava bola.

Toda essa atenção e vigilância da família de nada adiantaram.

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EM BRANCO

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Capítulo III: Preso você não vai.Capítulo III: Preso você não vai.Capítulo III: Preso você não vai.Capítulo III: Preso você não vai.Capítulo III: Preso você não vai.

Acabaram-se as férias e eu comecei a estudar de novo. Ago-ra estava com treze anos, na sétima série, com praticamente a mes-ma turma do ano anterior; alguns até me olharam meio torto aover que eu tinha caído de novo na mesma sala que eles. As únicaspessoas que sabiam o que estava acontecendo e não me rejeitaramforam as minhas amigas Glauce, Josiane, Luciana (a “Luluzinha”)e Rafaela, a mais brincalhona. Também o meu melhor amigo naépoca, o Pedrinho, que conhecia a malícia das ruas e do crimepor ter crescido em um bairro pobre da cidade, mas que nãotinha saído da linha até então. Todos eles não me discriminaramnunca e são amigos até hoje.

Comecei o ano e já conheci uma linda princesinha. Achavaque ela era muito bonita, carinhosa até no falar, uma voz tão doce,e freqüentava a igreja evangélica. O nome dela era Juliélem. Agente passou a se conhecer melhor, ficamos amigos, e nossa ami-zade durou uns dois meses antes de passarmos a namorar. Era umnamoro de criança, mas era gostoso. Ela tinha dois irmãos; um sechamava Pedro e o outro se chamava Thiago. Todos eles mora-vam na Vila Orestina, que fica a uns quinze quilômetros da cida-de, e onde tenho muitos parentes, da parte de meu pai.

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Juliélem e eu estudávamos de manhã e eu realmente come-cei a gostar dela. Costumava chegar uns dez minutos antes, sópara namorar um pouquinho antes de entrar para a aula, poisnão podíamos namorar na escola. Por coincidência, ela e eu estu-dávamos na mesma sala e sentávamos um pertinho do outro.

Assim que iniciamos o namoro, me abri totalmente com elae contei um pouco dos meus problemas. Ela não me rejeitou edisse que iria me ajudar a abandonar a maconha, e por isso come-cei a me dedicar mais na sala de aula, estudando ao seu lado.Juliélem nunca aceitou o hábito como uma coisa natural. Juntá-vamos as carteiras, estudávamos e namorávamos escondidos, con-versávamos. Mas os professores ficaram sabendo que a gente esta-va namorando e começaram a ficar de olho, e a inspetora Rose sóficava no nosso pé.

E assim permaneci com Juliélem por uns cinco meses. A dro-ga não foi a razão do fim do namoro, embora deva ter contribuí-do. Eu me tornei mais agressivo com ela, por exemplo, no perío-do em que lidava com gente baixa e grossa, nas ruas. Mas o fato éque o pai de Juliélem achava que ela era muito nova para namo-rar e nunca aprovou o nosso relacionamento.

Durante todo esse tempo de cinco meses em que mantive-mos nosso relacionamento, ela me ajudou muito, dando total apoioe incentivo, e era muito raro eu fumar maconha, pois não tinha ovício e só fumava em certas ocasiões, como alguma festa de ani-versário, e às vezes escondido atrás da escola. Mas enquanto per-manecemos juntos ela me ajudou bastante, só que depois que ter-minamos nosso relacionamento eu fiquei muito abalado e passei afumar um pouco mais do que antes. Agora eu não tinha maisJuliélem para preencher meu tempo e ficava com a cabeça vazia.

Cada vez mais ia me envolvendo com a droga, sem que eumesmo percebesse, porque, na minha cabeça, tinha certeza de

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que pararia quando bem entendesse, mas quando me dei conta,não era bem isso que estava acontecendo.

Em setembro de 1997, após termos terminados nosso na-moro, eu tinha treze para quatorze anos e consegui emprego emuma lanchonete no centro de Borborema. Meu pai dizia que jáestava na hora de trabalhar em um emprego fixo; por isso consul-tei a lista telefônica e consegui serviço de garçom na lanchonetedo Laércio. Usei a lista telefônica para procurar serviço porque naverdade eu tinha vergonha de pedir trabalho. Falei por telefonecom o Sr. Laércio, e ele me pediu que descesse até a lanchonete.No mesmo dia fui até o local e por lá mesmo fiquei trabalhando.Entrava às 17:00h. e não tinha hora para sair, pois, enquantotivesse freguês, tínhamos trabalho a fazer. No início fiquei meioacanhado, mas depois fui me soltando aos poucos, comecei a fa-zer amizade com os fregueses, alguns às vezes me davam até umagorjeta pelo serviço que eu fazia; outros eram arrogantes e igno-rantes, mas isso fazia parte do ambiente. Eu ganhava por noite ovalor de R$ 10,00 e trabalhava apenas nos finais de semana (sex-ta, sábado e domingo). O patrão me pagava sempre no domingoà noite a quantia de R$ 30,00, que eu gastava toda com porcaria.Voltei a fumar maconha mais freqüentemente.

O fato é que até então me faltava dinheiro para manter ohábito. Não era sempre que tinha cinco ou dez reais na mão. Àsvezes eu simplesmente aparecia em um círculo de conhecidos efilava uma bituca; às vezes tirava dinheiro de minha mãe, escon-dido, ou mentia, dizendo que era para comprar doces. Agora,ganhando minha própria grana, a história era outra.

Comecei a fumar cigarro também. Isso foi depois que fizamizade com uma turminha de fumantes, com quem aprendi afumar cigarro. Eram o Gutierrez, o Carlos (conhecido como“Bá”), e o Paulo (o “Samungór”). Todos eles fumavam cigarro ebebiam cachaça, mas eu nunca gostei de bebida alcoólica. Eles,porém, não fumavam maconha, e eu sim, e cada dia que passava

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estava fumando mais e aumentando as doses. Passaram-se apenasalgumas semanas e me tornei um fumante habitual, tanto de ci-garro quanto de maconha. O ordenado que recebia já não davapara suprir meus vícios. Hoje eu vejo que aquilo tudo se tornouliteralmente um círculo vicioso — eu trabalhava apenas em prolde meus vícios. Mas não demorou muito para meus pais desco-brirem que eu estava fumando cigarro, porque a minha família émuito conhecida na cidade e eu tinha passado a fumar cigarro narua. Quando eles souberam, me repreenderam e disseram quedeveria parar de fumar, mas a essa altura eu já estava muito rebel-de e respondi que não iria parar porque eles também fumavam eque eu estava fumando já fazia um tempo e que não conseguiaficar sem o cigarro. Até então eles não sabiam do uso da maco-nha.

Seu Francisco disse que se me pegasse com um cigarro nosdedos ou na boca não queria nem conversa comigo. Não dei bola,mas eles percebiam que estava havendo uma grande mudançacomigo. Eu estava crescendo e já não queria ouvir mais ninguém,já carregava o cigarro no bolso. Meu pai ficava furioso em veraquilo. Todo dia dentro de casa estava sendo uma guerra. Passeitambém a responder para meus pais em voz alta, e eles não admi-tiam e falavam alto também, para ver se eu me redimia. Então eunão agüentava tanta bronca e saía de casa. Vagava pelas ruas paraesfriar a cabeça e, com freqüência, permanecia em bocas de fumoe outros lugares perigosos; fumava baseados enormes, e só entãovoltava para casa. Entrava e não falava com ninguém, passava pelasala e ia direto para o quarto ou para o banheiro.

Permaneci trabalhando na lanchonete do Laércio, mas o queganhava eu achava pouco. Então, compreendendo como era omovimento na lanchonete, o fato de qualquer pessoa poder entrar,sentar-se ou ir ao banheiro sem ser interpelado, me veio a idéia devender drogas. Na lanchonete foi onde essa ambição começoua girar na minha cabeça. E já estava envolvido com as drogas e compessoas que tinham condição fácil de conseguir uma quantidade

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mais elevada de maconha. Então, certo dia, no meio da semana,fui conversar com o traficante que era o patrão da cidade, o jácitado“Biro-Biro”, um cara forte, alto, cheio de tatuagens e com avoz bem grossa, que morava em um barraco subindo a serra. En-tão cheguei lá, chamei-o e ele saiu. Veio me cumprimentar, poisme conhecia muito bem, desde o tempo em que eu descobrira amaconha, nas margens do Rio Fugidos. Biro-Biro perguntou oque eu queria.

— Ô, Biro-Biro, eu queria pedir uma coisa pra você — fuilogo desembuchando, apesar da apreensão que sentia. Afinal, Biro-Biro era grandalhão, com mais de trinta anos e muitas prisões epassagens pelo Carandiru e pela colônia penal em São José doRio Preto. — Eu tô ganhando muito pouco na lanchonete… Vocêsabe que eu tô trabalhando lá?…

— Eu sei. Às vezes eu vou lá pra baixo, e já te vi trabalhan-do.

A verdade é que ele vendia a sua “mercadoria” na elevaçãoem que ficava a praça da cidade, bem na frente da lanchonete.

— Então — continuei. — Eu não sou sujo na cidade, apolícia não sabe nada de mim, e eu queria ganhar um pouco dedinheiro, pra comprar alguma coisa. Eu pensei que podia vendero seu material lá na lanchonete.

— Boa idéia… — ele murmurou, depois de alguns segun-dos de silêncio. — No centro. Pra vender, você não vai despertar asuspeita de ninguém, já que trabalha de garçom. Quanto vocêquer?

— Ah, vê se você vê aí umas parangas pra eu vender — eudisse.

“Paranga” é como a gente tratava a maconha já envolvidaem plástico, pronta para a venda.

— Não, em paranga eu não vou te dar, porque ‘cê não vaiganhar nada. Vou te dar em um tijolo só.

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“Só que lembra: negócio é negócio. Esse tijolo tá valendomais de quatrocentos reais, e se ‘cê furar comigo, eu vou ter quecobrir o cara que me abastece, e vou ficar numa pior. Então, sónão pode dar falha. Se ‘cê cair com a polícia, segura o B.O. e tánormal, não precisa me pagar nada. Mas se o bagulho sumir e odinheiro não aparecer, aí a gente vai ter que conversar. Amizade éuma coisa, negócio é outra. Se você me pilantrar vai ser aquilo...”

Nada disso me assustou, porém. Não sei por que, mas eu eramuito frio com essas coisas. Em parte eu gostava da emoção deenganar a polícia e de estar fazendo uma coisa ilegal. Em casa,enganando meus pais, eu me sentia mais independente, mais ca-paz.

Peguei com Biro-Biro o tijolo de maconha, parecido comuma rapadura, e fui até o rio. Cortei e embalei eu mesmo. Biro-Biro também me deu uma paranga, para que eu tivesse uma idéiada quantidade que ia, em cada porção de maconha a ser vendida.Atravessei a cidade na boa porque nessa época a polícia nem ima-ginava suspeitar de mim. Enquanto fumava um pouco, eu pensa-va que o Biro-Biro tinha confiado em mim porque ele mesmohavia me dado muitos toques, me passado todas as manhas emacetes da coisa. Muitas vezes, quando a gente estava no rio e apolícia aparecia, eu já havia aliviado a dele.

— Aí, de menor, segura o barato aí — ele dizia, dando umaparanga para que eu a escondesse na boca e passasse pelos policiais.

A noite foi se aproximando. Assim que escureceu, saí da Matado Carvalho (onde mais tarde eu viria a ser caçado pela polícia).Escondi a maior quantidade por ali mesmo e levei um pouco co-migo, para ver se conseguia vender. Quando alcancei o centro dacidade, já fui falando pra rapaziada que tinha chegado uma ma-conha da boa. Mostrei a eles a paranga que tinha preparado, agente “deschavou” a maconha para poder enrolar; e o pessoal ex-perimentou e conferiu a qualidade.

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— A parada tá servida. — O que queria dizer que eu tinhaem bastante quantidade. — Pra me encontrar é só chegar lá nomeu trampo e dar um toque, que tá na mão.

Não deu nem tempo e toda a malandragem já estava saben-do. Eles gostaram da quantidade que eu estava servindo, que eramaior que a dos outros. Além dessa “vantagem” dada aos clientes,eu às vezes pagava o lanche do comprador. Assim eu mantinha aminha fachada e agradava os caras, que sempre voltavam. Empouco tempo, enterrei a concorrência e me tornei o mais podero-so no tráfico na cidade — e também o mais visado pela polícia.

Não enxergava o que estava fazendo, só pensava em mais emais grana. Não demorou muito e meu patrão na lanchonetecomeçou a desconfiar de pessoas estranhas e das amizades dife-rentes, porque muitos que iam lá comprar maconha comigo, jáiam direto para o banheiro, onde eu tinha a droga escondida.Outros se sentavam nas mesas e davam um toque ou um sinal, eeu ia atender como se fosse um cliente. Nada disso passaria des-percebido por muito tempo.

Não demorou muito e houve uma discussão entre meu pa-trão e eu. Ele era uma pessoa muito agressiva. Alguns dias depois,resolvi me livrar da pressão dele. Pedi emprego em uma lancho-nete que na época estava sendo inaugurada ao lado, a Lanchone-te do Val. Eles estavam mesmo precisando de um garçom, masme perguntaram se não causaria problema eu sair de um empre-go e ir para outro. Respondi que não estava satisfeito com o em-prego, nem com o patrão. O sujeito era muito carrasco, pois omáximo de esforço para ele nunca estava bom. Optei por deixaresse emprego e trabalhar na nova lanchonete. Val era o proprie-tário. Eu não o conhecia, mas ele sabia quem eu era, pois tinhasido caminhoneiro e muito amigo de meu finado tio “Dito Araçá”.Depois de vender o caminhão, ele abriu a lanchonete. Uma pes-soa honesta e digna, de família humilde. Eu também conheciadesde pequeno o irmão mais novo dele, Breno. Sua esposa Silvana

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é uma pessoa muito legal, compreensiva; e o irmão dela, que émais novo, era meu conhecido — nós jogamos futebol na escolinhado BAC juntos, embora ele fosse de uma categoria de idade aci-ma da minha.

Estava com quatorze anos quando comecei a trabalhar comogarçom para o Val. Sempre fui dedicado no meu serviço. Nãogostava de deixar nada para trás, e graças a Deus eles reconhe-ciam isso e sempre me trataram bem. Mesmo quando eu cometiaalgum erro nas anotações, eles procuravam uma forma de conser-tar o que eu havia feito de errado, ao contrário do antigo patrão,que punia rigorosamente sem querer saber de nada. Passaram-sealguns dias e eu entrei no ambiente de trabalho. Como trabalha-va de garçom e as mesas e cadeiras eram colocadas na calçada,com o pessoal transitando nas ruas, ficava fácil a minha venda demaconha, sem que Val e Silvana jamais soubessem.

Mas em pouco tempo fiquei muito falado e muito procura-do pelos viciados. Comecei a ver que as coisas não iam dar certo eque seria melhor dar um tempo. Tive o pressentimento de algoruim, então parei por um tempo e passei a responsabilidade davenda para um outro garçom, que se chamava Marinho.

Marinho já tinha passagens pelas cadeias da cidade de SãoPaulo, por roubo a carros fortes, e tinha o conhecimento e a ma-lícia do tráfico de entorpecentes. Nessa época, passei a responsa-bilidade para ele porque eu já não tinha mais patrão no tráfico eestava trabalhando por conta própria, com aos lucros adquiridos.Biro-Biro tinha sido preso (vindo a morrer na cadeia, anos de-pois). Eu herdei o “negócio” dele.

*

A minha rotina de escola mudou muito depois que me en-volvi com o tráfico. Tinha relaxado demais com as disciplinas e,ainda por cima, comecei a oferecer maconha para meu melhoramigo, o Pedrinho, que tinha malícia mas não fumava. Depois demuita insistência ele fumou, pois eu dizia que era desagradável

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para mim ter um careta do meu lado me vendo fumar e não par-ticipando da mesma viagem que eu.

De vez em quando ele fumava comigo, mas só quando eutrazia colírio para disfarçar os olhos vermelhos. Eu mesmo já em-pregava o truque, e hoje tenho problemas de vista por causa douso excessivo.

Nessa mesma época os problemas foram se acumulando e asconseqüências foram surgindo aos poucos. Quando me dei con-ta, já não tinha mais volta. Eu fumava bastante, em todos os luga-res que ia, tinha que estar chapado. Já não me preocupava empreservar minha imagem, e me tornei um usuário assumido. Todoo dinheiro que ganhava no trabalho e no tráfico gastava jogandofliperama e sinuca, farreando com meus camaradas e com as va-gabundas no bar, além da soma que ia para alimentar os vícios dotabaco e da maconha.

Na escola, o medo que as pessoas sentiam por mim era possí-vel de se ver na face de cada um, e por onde eu passava todosabriam caminho. Muitos me cumprimentavam só pelo medo,como eu podia perceber. Mas como a cidade é pequena e as notí-cias circulam, o meu nome logo passou a ficar conhecido, todosfalavam das minhas amizades, e que meus companheiros erambarra-pesada.

De fato.

Depois que o Biro-Biro parou de vender, eu ia buscar osentorpecentes com fornecedores de cidades vizinhas, como Itápolise Ibitinga. Os contatos eu havia obtido nas rodas de maconheiros,os nomes que rolavam, alguns telefones que passavam de mão emmão. Essa gente estava acima do Biro-Biro, na hierarquia do tráfi-co — gente que vendia de meio quilo para cima. Não era semmedo que eu subia o morro da Vila Simão em Ibitinga, no meioda favela, passando por guardas armados de revólveres e espin-gardas. Sentia, porém, segurança com relação à polícia — o es-quema da favela, com olheiros e vigias armados, impedia que a

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polícia subisse. Até pipas eram usadas como sinais da aproxima-ção da polícia — tinha muito craque em empinar pipa, a serviçodo tráfico.

Ao ver as armas, empunhadas tão às claras, eu sentia muitavontade de ter uma. Em parte, coisa de criança que sempre seinteressou… Em parte para me sentir mais forte, mais capaz deenfrentar as coisas do crime.

Às vezes Biro-Biro ligava antes e me recomendava. Até en-tão eu não tinha dado falha alguma. Freqüentemente, quando euia até eles, ficava dois ou três dias fora de casa. Pousava na casa dostraficantes ou em bicos de favela. Vez ou outra eu tinha que pas-sar por uma batida da polícia, no pé do morro. Perguntavam deonde eu era e o que fazia por ali. Eu dizia que era de Borboremae que estava ali para jogar futebol no CBI de Ibitinga. Eles exami-navam a minha carteira de jogador mirim do BAC, e eu passava.Quando desconfiavam, me mandavam embora com um tapa nanuca, mas nunca fui pego por nada nesses locais.

Na época, enfrentando esses perigos, não me passava pela cabe-ça que o crime pudesse chegar ao meu local de trabalho — ou àminha família. Tudo o que eu temia era que algo acontecesse comigo.Ser preso, baleado… Os caras do tráfico me diziam, porém:

— Preso você não vai.

Isso, claro, por ser menor de idade. Era raro que alguém daminha cidade fosse até mesmo internado na FEBEM.

Nessa altura, a polícia da cidade já me tinha em sua mira.Eles começaram a passar por mim me olhando de modo diferen-te. É claro, eu vinha aparecendo em locais suspeitos, o que cha-mava a atenção deles. Passaram a me abordar. Com isso resolvidar um tempo com a venda. Passei tudo ao Marinho. Eu entãoassumira o papel de fornecedor dele, que vendia para sustentar oseu próprio vício.

Eu tinha quatorze anos.

*

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Em casa, passara a afrontar meus pais não apenas com o usoda maconha, mas com os cigarros. Eu comprava os maços e osusava ostensivamente no bolso da camisa. O seu Franciscobronqueava e ameaçava me bater, mas nunca o fez.

— O senhor não pode dizer nada, porque o senhor fumatambém — eu dizia.

Menos de seis meses depois, ele havia parado de fumar, masisso não me impediu de continuar com o meu comportamentorebelde.

Uma das minhas piores atitudes foi levar para dentro de casae para o convívio com os colegas de escola o tipo de relação gros-seira, vulgar, desconfiada que eu tinha com os viciados emaconheiros para quem vendia a erva. Minha rebeldia me levavaa sair de casa por dias seguidos, enquanto resolvia os meus “negó-cios”, sem pensar na apreensão que gerava em meus pais. DonaIzilda ficava louca atrás de mim, sem que eu desse a menor satisfa-ção a ela ou aos outros.

Ela acionava a polícia e os parentes. Ela me procurava entreos conhecidos e em casas abandonadas. Uma vez me pegou emuma dessas construções vazias, cortando um caroço paraemparangar. Minha mãe, meu pai e meu tio Tição. Entrarampelos fundos e me surpreenderam. Fugi, deixando cair parangaspelo caminho, enquanto saltava os muros e cercas dos terrenosvizinhos. Minha mãe pegou uma das parangas que eu tinha dei-xado cair — ela já conhecia a droga nesse formato, e agora tinhaa comprovação de que eu era mais do que um consumidor — eraum traficante.

Quando nos encontramos em casa, ela perguntou o que euestava fazendo da minha vida.

Eu não tinha resposta alguma a dar.

Minha família sempre foi unida. Diante do problema queeu representava, vários parentes passaram a me procurar, parame dar conselhos e pedir que abandonasse a droga. Meu tio Tição,

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meu tio João Beleza, um vereador de Borborema, e até meu ir-mão Nenrod, ele mesmo um usuário eventual de maconha. To-dos se deram ao trabalho de falar comigo, mas suas palavras en-travam em um ouvido e saíam pelo outro. Às vezes, enquanto elesfalavam, eu estava pensando nas quantidades que tinha que cor-tar, na próxima remessa a encomendar ou na cobrança de um ououtro a quem havia vendido fiado…

Estava cego e surdo a tudo o que não fosse a droga e o di-nheiro que vinha com ela.

Mais que tudo, eu pensava no dinheiro. Como viver semele? Mas… como poder fumar a maconha, sem poder comprá-la?

Havia ainda o fato de que, agora como fornecedor, tinhaque prestar contas a pessoas acima de mim, que não toleravamqualquer vacilo. Tinha que estar alerta, ser esperto, manter tudosob controle, sob pena de pagar com a vida, porque, se desse umamancada, toda a engrenagem acima de mim podia perder o giro— e eram pessoas que não encaravam um prejuízo com um sorri-so nos lábios. Minha mente centrava-se sempre no próximo passoa dar, os cuidados a tomar, as somas que devia ou que tinha areceber. Como pensar em terminar com tudo, recuar para ummomento de minha vida em que toda essa ciranda não existia?

— Se falhar, morre — eu tinha ouvido, em várias ocasiões.

Dependendo da “falha”, é claro. Ou seja, da soma perdida.Agora que eu manejava uma quantidade maior, qualquer falhaseria um rombo de R$ 800,00 ou R$ 900,00.

E eu tinha apenas quatorze anos…

Minha mãe, diante de tudo isso — ou da parte disso tudoque ela conhecia —, começou a ter ataques de ansiedade e des-maios. Chegou a ser hospitalizada algumas vezes.

Isso foi no final de 1998 e naquela época pensei em parar.Mas havia sempre o peso da grana e a necessidade de manter ohábito. Minha solução foi fazer as coisas de maneira mais discre-ta. Fazia ligações a cobrar, de casa, para os caras de quem compra-

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va a maconha, em cidades vizinhas. Para a minha mãe, dizia quehavia parado. No fundo ela sabia que não era verdade, mas nãopodia fazer nada.

Desde o momento em que comecei a mentir, nessa vida decrimes, não parei mais.

Não podia mentir para meu irmão, Nenrod, porém. Elemesmo era um freguês do Biro-Biro, e um dia, ao procurá-lo,descobriu que Biro-Biro estava preso e não negociava mais.

— Quem tem agora é o Creondi — o Fernando, irmão doBiro-Biro, informou.

Meu irmão ficou furioso.

Ele foi atrás de mim e me encurralou. Nós brigamos e eulevei a melhor. Ele estava caído no chão, de costas, olhando paramim — e eu tinha a mão direita no cabo do revólver calibre 22,que já há algum tempo eu sempre trazia comigo enfiado na cin-tura.

Puxei o revólver, mas o cão se enganchou na calça, e só porisso é que não o apontei para Nenrod.

Teria sido capaz de atirar em meu próprio irmão?

Não sei… mas foi até esse ponto que cheguei, nesta primei-ra fase de minha vida de criminoso, ainda pouco mais do que ummenino.

*

O que me levou à tentativa de assalto do mercado emBorborema foi um carregamento de maconha vindo de Ibitinga,que se perdeu na estrada.

Um comando da Polícia Rodoviária estava parando todos oscarros.

Trazíamos a droga da seguinte maneira: eu vinha na frente,na garupa de uma moto; atrás, com a maconha, um cara da mi-nha confiança e o sujeito de quem eu a tinha comprado. Embora

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eu tivesse passado pela barreira, os caras que vinham atrás preferi-ram jogar fora a maconha que tinham com eles no carro.

E eu tomei o prejuízo.

Não tinha dinheiro para pagar de imediato. Sem a droga,por outro lado, eu não tinha como girar o dinheiro, para quitarminha dívida com o fornecedor. Poderia tentar obter uma quan-tia de um outro fornecedor, mas até lá a notícia já teria corrido eo meu maior medo era de que um segundo carregamento pode-ria também falhar.

Bem, o cara com quem falhei tinha me dito:

— Cleonder, quando você puder, você me paga. Quandose levantar de novo. Não tem problema.

Na época eu confiava só no meu cano e não na palavra dosoutros. A mesma pessoa que sorria e me dava a chance podia medar um pipoco assim que eu desse as costas.

Eu estava com quinze anos e precisava de muito dinheiro: aidéia que me ocorreu foi fazer o assalto. Escolhi o Pedrinho comocomparsa porque confiava nele. Não foi porque ele tinha algumaexperiência ou determinação especial para esse tipo de coisa. Meusplanos eram pegar o dinheiro do assalto e ir até o Rio, para com-prar uma quantidade de droga que pudesse me levantar, outravez, em Borborema. Tinha certeza de que conseguiria encontraro meu caminho, até mesmo no Rio de Janeiro.

Ao invés disso, terminei espancado pela polícia, e preso.

*

Quando a grade se fechou, eu chorei.

Nunca tinha visto um lugar tão sujo, limoso de sujeira acu-mulada. O colchão não era encapado, e qualquer movimento ar-rancava dele uma nuvem de pó, para atormentar a minha rinite.Quando eu não chorava, estava espirrando.

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Deitado, com um pano molhado cobrindo nariz e boca,pensava em meus pais. Queria os dois perto de mim, e que vies-sem me ajudar. Intimamente, queria encontrar uma explicaçãopara o que estava acontecendo, me lembrando do que me haviamdito: “Preso você não vai.”

Mas o fato é que eu estava preso e só ficava chorando e pen-sando em minha família. Tudo à minha volta me dava nojo e medo.A comida era insuportável, arroz duro e feijão que era uma papa,um bife duro como couro de sapato. Não consegui comer nosdois dias que fiquei ali. Eu só chorava.

Ao meu lado, Pedrinho dizia:

— Não chora, rapaz. Vai chorar pra quê?

Foi assim que ele, a quem eu havia convencido a participardo assalto, me consolava.

Toda a minha rebeldia havia se evaporado. As coisas em quedepositava o meu sentimento de segurança não estavam mais àmão — a arma, os contatos no tráfico. De repente, foi como se eutivesse despencado de uma certa altura, batido duro no chão, evoltado a ser uma criança.

Apenas um menino desamparado.

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EM BRANCO

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Capítulo IV: Você é que é o louco.Capítulo IV: Você é que é o louco.Capítulo IV: Você é que é o louco.Capítulo IV: Você é que é o louco.Capítulo IV: Você é que é o louco.

Dentro da cela imunda suja e fria, os meus pensamentos esentimentos se misturavam, e eu me encontrava perdido em mimmesmo. Estava sendo um choque muito forte. Choque que eumesmo havia causado, e não somente a mim e ao meu compa-nheiro, mas às nossas famílias. Logo nos primeiros minutos den-tro da cela, já comecei a me desesperar, tinha também rinite alér-gica e não parava de espirrar por causa do pó que saia dos col-chões desencapados e de espessura finíssima. Desesperado, come-cei a chorar compulsivamente. Chorava e espirrava, chorava eespirrava.

Não podia imaginar o que viria a acontecer nos próximosdias, então chorava constantemente, sem saber que meus pais,juntamente com meu tio João, corriam sem parar atrás de umadvogado para que eu pudesse sair. Conseguiram contratar o Dr.Ronaldo, jovem advogado que entrou no dia seguinte com umrecurso no foro, argumentando à Juíza de Direito que me liberas-se, pois tinham conseguido uma clínica de recuperação em queeu poderia ser internado. Causei todo esse transtorno, fiz tudoerrado, mas todas essas pessoas que me ajudavam — meus pais,meus tios e o advogado — conseguiram acertar as coisas.

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No dia seguinte, na cadeia de Itápolis, apareceu na porta dacela um senhor bem vestido com uma pasta nas mãos. Parou de-fronte à grade e disse:

— Cleonder…

Eu me levantei e fui até a grade. O carcereiro já foi abrindoa cela e me mandou sair. O advogado disse que tínhamos queconversar. Fomos então até a frente da cadeia, sem que me alge-massem. Estranhei, mas como não tinha intenção nenhuma defugir, me comportei até mesmo quando, ao chegarmos à entradada cadeia, pude ver a rua bem perto. No momento em que entreina recepção, vi meu pai e minha mãe sentados, conversando comum homem e uma mulher. Eu me sentei e eles começaram a mefalar um monte de coisas. Primeiro perguntaram como eu estava,e eu disse que estava bem; então eles disseram que eu sairia dali nomesmo dia. Fiquei muito feliz — até que me disseram que só esta-ria livre se fosse para uma clínica de recuperação.

Não aceitei o que me concediam (como se as coisas tivessemde ser da minha maneira). No mesmo instante recusei, de bocacheia.

— Não, não e não. Não vou pra esse lugar de loucos. Eunão sou louco e não adianta insistir que eu não vou.

Meus pais argumentaram:

— Vai, meu filho. Lá vai ser melhor pra você, assim você vaiconseguir parar de fumar cigarro e as outras coisas.

E eu na minha insistência continuei a me recusar e disse quevoltaria para dentro da cadeia, mas para esse lugar de louco eunão iria. Na minha cabeça passaram as coisas que tinha ouvido deusuários que estiveram internados nesse tipo de instituição. Com-pus um quadro assustador de pessoas que rastejavam pelo chão,que não falavam nada com nada, como muitas vezes eu tinha vis-to na TV. Sozinho em um lugar desses, longe de meus pais e dos

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meus amigos — tomando remédios, como eu pensava —, eu fica-ria louco também.

Lembro que isso aconteceu no dia 2 de dezembro de 1999.Eu me neguei a ir para essa clínica de recuperação na cidade deAmericana, interior de São Paulo, e cometi uma loucura que nin-guém pôde acreditar. Após ter vencido meus pais pelo cansaço epor me recusar a ir para a clínica, e não queria ouvir mais nenhu-ma palavra de insistência deles, me levantei e disse para o carce-reiro, o Sr. Mápele, que me levasse para a cela, porque eu não iafazer o que eles estavam querendo. Literalmente pedi para serencarcerado outra vez.

Balançando a cabeça de um jeito contrariado, o Sr. Mápeleme levou novamente para dentro, disse que eu era muito jovem enão sabia o que estava fazendo. No pavilhão da cadeia ele abriu aminha cela e eu entrei, me sentei no meu colchão fino eempoeirado, e baixei a cabeça.

O Pedrinho me perguntou o que tinha acontecido. Relateio que se tinha passado lá na frente. Ele me xingou de vários no-mes e disse:

— Louco? Louco é você, que troca um lugar daqueles poreste. Qualquer lugar é melhor do que aqui. Lá é melhor. Eu nun-ca fui, mas lá é melhor. Louco é você.

Isso me abriu um pouco os olhos. Os outros presos confir-maram o que Pedrinho dizia. Senti um peso na consciência e umasensação de angústia — achava que era tarde demais para reme-diar a besteira que havia cometido. Continuei a chorar.

— Não chora, rapaz — Pedrinho disse. — Pra que chorar?Não precisa chorar. Agora já foi e agora a gente tá aqui.

Intimamente, porém, eu refletia e maquinava um plano de-sesperado para ver se conseguia a liberdade. Diante das palavrasdo Pedrinho, o que me veio foi não ir para a clínica realmentepara me tratar e abandonar o hábito, mudar de vida; mas sim sair

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do lugar horrível em que me encontrava. Conforme fosse o es-quema na clínica, eu fugiria. Assim funciona a mente da gente,na prisão. Só a usamos para conquistar a vantagem mais imediata.Mas de qualquer forma, a minha única esperança estava com oadvogado — a quem eu havia dado as costas…

Naquele dia permaneci na cadeia, e logo amanheceu outro,e, pela sorte que Deus me deu — e pelo empenho constante daminha família —, mais uma vez o advogado e meus pais voltarampara conversar. Confesso que me assustei com a presença deles,meu peito saltando de esperança. Dessa vez eu já disse bem de-pressa, na grade, para o meu advogado, que aceitava ir para aclínica. Fui removido para a frente da cadeia — mas desta vez fuialgemado. Logo o Dr. Ronaldo mandou que retirassem as alge-mas para que eu assinasse os papéis de compromisso. Retiradas asalgemas, assinei os papéis que me levariam à clínica ASADAM,de Americana.

Quando retornei para a cela, a fim de apanhar as minhascoisas, Pedrinho me dirigiu um olhar irado, de pura inveja. Euestava saindo, enquanto ele permanecia encarcerado…

*

Viajamos umas três horas no carro do meu avô Plínio, umfuscão. Iam nele o seu Francisco, dona Izilda, o Dr. Ronaldo e eu.Quem dirigia era o advogado. Meu pai ia na frente, no banco dopassageiro, mas voltado para trás, falando comigo.

— O que tá passando na sua cabeça de trocar a nossa casapor um lugar desses? — dizia. — Trocar a nossa casa, tudo o queo pai te deu, pra ficar pelas ruas com essas pessoas? Você não gostamais do pai? O pai nunca te bateu, filho… O pai sempre te deu oque o pai podia dar. O pai não tem dinheiro… O pai trabalha naroça, mas com o dinheiro que o pai ganha, o pai compra as coisaspra você, quando o pai pode. Nunca tá faltando nada pra nós,por que é que você fica fazendo isso?

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Fiquei emocionado com suas palavras. Ao meu lado, no ban-co de trás, ia a minha mãe, e eu podia sentir que ela me queria aoseu lado, e não longe, na clínica.

— E agora o pai não tem dinheiro. Tá difícil… O pai temque pagar o Dr. Ronaldo — seu Francisco dizia. — O pai vaigastar lá na clínica um dinheiro que o pai não tem. Mas o pai vaifazer isso por você. Pelo menos até acabar isso tudo e você voltarpra casa.

— Mas não quero ficar lá, pai — eu disse.

Já estávamos chegando em Americana, depois de quase 350quilômetros de estrada. Pude ver que minhas palavras o deixarammuito preocupado.

— Não, filho, você tem que ficar lá — argumentou. — Temque ficar lá até a coisa acalmar. Só um mês, pra convencer a juízade que você melhorou e que pode ficar em liberdade.

O Dr. Ronaldo me disse, com dureza:

— Tem que ficar lá, rapaz. Tem que ficar lá sim, porquesenão você vai preso de novo. Você quer voltar pra cadeia, a gentedá meia-volta aqui mesmo. Senão você vai colocar todo mundoaqui numa fria com a juíza.

Fiquei com medo do que ele disse e por isso não falei mais nada.

*

Chegando à cidade de Americana, fomos por uma estradade terra em que percorremos uns dez, doze quilômetros até en-contrarmos essa clínica no fim do mundo. A primeira coisa quesenti foi vontade de voltar para trás. Era uma casa retirada e malmantida, onde era alojado um número de pessoas — mais de trinta— maior do que a clínica poderia abrigar. Do lado de fora haviaalguns canteiros de verduras, todas murchas, creio que por faltade irrigação. Fomos conhecer o dormitório e, ao ver aqueles beli-ches todos amontoados, alguns até seguros com escoras, sincera-mente me deu vontade de correr.

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Também fazia muito calor e a construção era abafada, semventilação. Os armários dos internos eram empilhados uns sobreos outros. Um lugar feio.

Fui recebido por um senhor negro, de meia-idade. Ele foimeio seco comigo. Disse que não tinha lugar na clínica para mim.

— O garoto não vai poder ficar, porque esta é uma clínicasó para maiores de idade.

Meus pais e o Dr. Ronaldo tinham comunicado a ele apenasque estariam trazendo uma pessoa para ser internada na clínica.Percebi o quanto eles tinham feito as coisas às pressas, visandoantes de mais nada me tirar da prisão. Meus pais nem sabiamquanto teriam de pagar, pela minha internação. Eles, é claro, en-frentavam uma situação dessas pela primeira vez, e o Dr. Ronaldoera um advogado iniciante — fui o seu primeiro caso. Eles ti-nham tomado conhecimento da clínica ASADAM através deminha tia e de um parente dela em Americana, que fazia parte daPolícia Federal. Então lá estava eu, prestes a ficar nesse local de-primente, indicado a nós por informações de segunda e terceiramão.

O Dr. Ronaldo disse ao responsável:

— Por favor, vamos conversar.

E explicou a ele tudo o que estava acontecendo. Tratava-sede um arranjo provisório, apenas até que a juíza pudesse falarcomigo e decretar a liberdade assistida.

— Tudo bem — o homem concordou. — Ele pode ficar,mas eu não assumo nenhuma responsabilidade pelo que possaacontecer com ele aqui. E tem outra coisa: aqui nós não amarra-mos ninguém. Quiser ir embora daqui, vai sem impedimento.

Silenciosamente, eu torcia para que ele não me deixasse fi-car. Sozinho com minha mãe, enquanto o pai e o Dr. Ronaldoconvenciam o sujeito, eu dizia, todo manhoso:

— mãe, eu não quero ficar aqui. mãe, me leva pra casa…

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Quando meu pai retornou, ele disse:

— Vamos tirar as malas do carro, filho.

*

Quando foram embora, senti meu peito amarrado, e perce-bi nos olhos de papai que ele também foi embora de coração par-tido por eu ter que ficar ali. Eu sabia que ele também não haviasimpatizado com o lugar, mas para ele era a única saída.

O pastor que comandava a clínica me recebeu no seu escri-tório. Explicou que ali era uma clínica evangélica e que oravam otempo todo. Você lia a palavra da Bíblia, refletia sobre ela duran-te um tempo e depois ajoelhava e pedia a Deus que o livrasse dovício e o fizesse encontrar o caminho. A esse ajoelhar chamava de“sacrificar” — e de fato, doíam os joelhos, de tanto tempo que sepassava orando e rogando a Deus.

Dentro da clínica permaneci em um canto, nem desfiz amala, que era enorme. Um funcionário, filho do pastor dono daclínica, veio falar comigo e me mostrar como tudo era ali dentro.Ele tinha uma bala presa na testa, acima do olho direito. Maistarde eu soube que ele tinha levado aquele tiro durante uma ten-tativa de roubo. Afirmava ter se curado do seu vício, na clínica.Achei estranho. Pensando também em como o lugar era retirado,me veio a noção de que ali haveria uns caras escondidos da polí-cia. Mas como saber?…

Na verdade, mal cheguei e já tinha estabelecido a intençãode fugir. Mais ainda depois da janta que me serviram — um pra-to com arroz, feijão e bastante beterraba por cima, carne não exis-tia. Então provei um pouco e joguei quase toda a comida fora, alimesmo no chão do refeitório.

Dormi uma noite apenas na clínica — embora “dormir” sejamais uma força de expressão: havia tantos mosquitos, que malpreguei os olhos. No dia seguinte acordamos às 5:30 da manhã etínhamos que ir obrigatoriamente para a igreja evangélica, feita

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de bancos de madeira áspera, cheio de telas protetoras depernilongos. Não tínhamos café da manhã, pois diziam que erapreciso ficar de jejum. Apenas dois dias na semana serviam ocafé-da-manhã, segundo me disseram, porque não fiquei para ex-perimentar. Apenas almocei e depois do almoço para a igreja denovo — e o pior era que tinha de ficar de joelhos para tudo; atéum coitadinho lá que estava com o pé quebrado tinha que se ajo-elhar. Do contrário, sofreria uma das punições, que eram carpirmato com a enxada, ou buscar lenha e água da mina com osmonitores — isso tudo eles me disseram, porque, quando chegoua noitinha, juntei minhas coisas e fui saindo de fininho.

Uns internos me disseram:

— Fica aí, rapaz, que vai ser bom pra você.

— Não vou ficar não — eu disse. — Vou embora.

— Não vai, não…

— Já fui.

E comecei a caminhar por uma estrada de terra, carregandoa minha malona nas costas. Ninguém veio atrás de mim.

Quando encontrei asfalto, já quase não sentia minhas per-nas, de tanto cansaço. Não sei dizer com precisão, mas calculoque caminhei uns oito ou dez quilômetros, até encontrar uma viaasfaltada. Já era noite, eu tinha fome. Andando por ali, presteiatenção nos ônibus que passavam. Caminhando, encontrei umponto de ônibus. Fiquei ali por umas duas horas, descansando epensando no que fazer. Estava sozinho, não conhecia nada deAmericana.

Debaixo da coberta do ponto, havia uma banca de camelô,iluminada por um lampião fraco. Quem cuidava era uma mu-lher, com quem fiquei conversando.

Do outro lado da avenida havia um clube de hipismo, e,diante dele, mais barracas de camelôs. A certa altura, a mulherdeixou a sua banca e foi conversar com um colega, do outro lado.

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Desesperado e com fome, passei a mão na sua caixa de tro-cados e saí a passos largos, arrastando minha mala.

Comprei apenas umas bolachas e salgadinhos, coisas quepodia comer enquanto me movimentava. Matei a fome e encon-trei o caminho até a rodoviária da cidade, onde comi mais umpouco, antes de ligar para meus pais. Contei ao seu Francisco asituação em que me encontrava. Tinha fugido e estava sozinhoem uma cidade estranha. Ele ligou para minha tia Irani, que moraem Borborema mas tem parentes em Americana, e por lá ajeita-ram tudo pelo telefone com esses parentes dela.

Um primo da tia Irani ficou de me pegar na rodoviária. Jáme adiantaram que ele trabalhava no departamento de investiga-ções da Polícia Federal, e que eu não devia me preocupar que elenão iria me fazer nada, a não ser me ajudar, levando-me para casadele e me dando a assistência necessária. Na hora em que ouviisso, senti medo de que ele me levaria para a cadeia de novo.

— Não, não, não, que ele vai me entregar pra polícia! —gritei.

Mas meu pai me acalmou, explicando a coisa toda do pa-rentesco, embora ele mesmo soasse desesperado. Afinal, seu filhomenor de idade estava sozinho em uma cidade estranha, talvezpassando fome ou perigo…. Acho que também deviam estar pas-sando por sua cabeça todos os gastos que tivera até então — a taxade internação, a viagem de Borborema até Americana… Mas eu,na época, estava cego a essas coisas e pensava apenas na minhasituação imediata.

Passaram-se umas duas horas e eu na rodoviária aguardan-do, ligando a cada pouco para o meu pai em Borborema parasaber que solução eles tinham encontrado e o que eu devia fazer.Então chegou bem devagar um homem de quarenta e poucosanos, em um Uno Mille. O carro tinha uma pequena luz policialem cima. Dei uma olhadela para ver se eu tinha alguma confir-mação ou retorno da parte do seu motorista, e para saber se real-

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mente era o tal sujeito. Por incrível que pareça, deu certo — atéparecia que já nos conhecíamos. Me aproximei e ele veio ao meuencontro. Perguntou meu nome.

— Oi, menino. É você que ‘tá perdido? É você que é o fujão?

Ele havia me encontrado pela descrição das roupas que euusava e que havia passado ao meu pai, e meu pai a ele. Entrei nocarro. No caminho para a casa dele, porém, fomos conversando eele foi me falando da FEBEM. Pelo que dizia, se eu não aprovei-tasse as oportunidades que tinha no momento, acabaria indo pa-rar na FEBEM.

— Se você continuar com isso, vai chegar uma hora que ajuíza não vai mais te dar nenhuma chance. Na FEBEM você ficasozinho, você apanha, a comida é uma merda… Você quer issopra você? Eu mesmo estou cansado de levar neguinho pra FEBEM.Quase toda semana eu estou lá.

Foi dele que ouvi pela primeira vez uma frase que ainda ou-viria várias vezes:

— Na FEBEM, o filho chora e a mãe não vê.

*

O investigador me deu toda a assistência necessária para es-perar os meus pais em Americana. Comida, banho, lugar paradormir e um pouco de dinheiro; mas tudo isso meu pai pagariadepois, porque este foi o combinado entre eles, e tudo para mi-nha proteção — e eu burro como era, não conseguia entendernada.

Fui avisado de que deveria ficar na casa dele, sem sair, por-que o bairro era perigoso. Não era bem favela, mas um bairropobre de periferia, de casas humildes e ruas de terra, com esgotoa céu aberto. A casa em que eu estava, porém, era melhor e aspessoas me tratavam bem. Além do investigador, moravam ali a irmãdele e o filho dela — um rapaz de uns dezenove anos —,que também havia se envolvido com entorpecentes. Segundo a

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mãe dele, com cocaína, mas ele já estaria recuperado. Um rapaztodo formal e culto, bonito e educado. Foi difícil acreditar quetivesse um passado de envolvimento com drogas. Logo descobrique havia se regenerado graças à religião, que havia encontradoem uma clínica: ele me convidava para ouvir hinos gravados emfitas K7, em seu quarto. Mas eu não gostava de ouvir hinos, e esseoferecimento eu também recusei.

À noite saí com ele — me esquecendo da recomendação dopolicial federal —, para dar uma volta. Era um bairro feio, pare-cendo coisa de filme americano, uma imagem do Brooklyn, comgente se aquecendo em torno de fogueiras queimando em latõese terrenos baldios cheios de lixo.

Passou um dia e uma noite e meu pai foi me buscar e metrouxe de volta a Borborema. Mas agora tinha que ficar escondi-do, pois tinha desrespeitado uma ordem da juíza — deveria terpermanecido na clínica, e fiz o contrário. Para todos os efeitos,ainda estava internado. Fiquei na casa dos meus tios Tição e Cláu-dia, que me receberam muito bem. Minha mãe me visitava ali, eeu estava proibido de sair para a rua. Meu pai tentava um meiode me recolocar na clínica em Americana, embora eu implorassepara que me deixasse ficar onde estava, com os meus tios, ou vol-tar para casa.

Alguma coisa havia mudado em meus pais. Suspeitava queeles não confiavam mais em mim. Quando dizia que não iria maisvoltar ao tráfico, podia ver que eles não acreditavam. Me sentidesprezado por eles, e minha reação foi pensar que se não reco-nheciam mais quando eu falava a verdade, então tanto fazia averdade quanto a mentira. Reconheço, por outro lado, que mui-tas vezes eu mentia sem necessidade de espécie alguma, apenaspor hábito. Depois de um tempo nessa vida, eu praticamente vi-via na mentira. É claro, me escapava completamente que, ao co-meter crimes e ser apanhado, tinha um compromisso agora coma justiça, e não apenas com os meus pais.

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Após quinze dias, escondido, sem que a justiça soubesse, fuicolocado em outra clínica, agora em Bauru: a Comuna. Isso sedeveu à minha insistência em não retornar a Americana.

Era um lugar melhor. Ali eu trabalhava em um tipo de tera-pia ocupacional, e ganhava um dinheiro (embora meu pai pagas-se a internação). Também se tratava de uma clínica evangélica, elá, estranhamente, as canções e o ambiente começaram a me afe-tar de um modo mais positivo.

Apesar disso, eu não estava gostando.

As instalações ficavam na Vila São Paulo, um bairro popu-lar, e do outro lado da cerca formavam-se grupinhos de rapazesque fumavam maconha. Eu podia sentir o cheiro. E tinha vonta-de. Todos os dias eu sentia o cheiro, e isso me torturava…

Durante todo esse período, eu não tinha fumado nem umavez, mas me sentia nervoso, agitado, como um bicho encurraladoem um canto. Mesmo com minha mãe eu havia me tornado maisseco.

Na clínica, sempre que não tinha nada para fazer, ficava pen-sando na maconha.

Havia gente boa lá — e gente ruim. Muitos ex-internos daFEBEM, gente mais experiente do que eu. Lá conheci um rapazchamado Ermínho, miúdo, branco e sardento, sem ninguém nomundo. Estava ali tentando levar uma vida diferente, encontrarum caminho para a sua vida. A clínica, para ele, era um ótimolugar. Mas eu, centrado em mim mesmo, não tomei consciênciado quanto podia aprender com a experiência dos outros. Nardofoi um outro sujeito mais experiente, que falou comigo.

— Fica aqui, rapaz — disse, e me deu o testemunho da vidadele.

“Testemunho” é como esse tipo de comunicação de expe-riências de vida é chamado no ambiente da clínica evangélica.Nardo havia se envolvido com o tráfico ali mesmo no bairro São

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Paulo. Fora preso várias vezes. Agora só desejava retornar a umavida normal.

Hoje penso que na época eu não tinha uma visão clara dotipo de experiência de que ele falava. A violência e as internaçõesna FEBEM ainda estavam longe e havia em mim um certo cinis-mo, que me fazia pensar, depois de ouvir sobre o sofrimento e odesespero, pelos quais gente como Ermínho e Nardo haviam pas-sado: “Ah, isso aí é problema seu”.

Ah, se eu soubesse…

*

Cheguei à Comuna com um pensamento muito semelhan-te àquele com o qual eu havia entrado na clínica ASADAM: “Senão gostar, ‘tô fora.”

Embora a nova clínica oferecesse palestras e estudos sobre adroga e o que ela causava às pessoas, as palestras não eram obriga-tórias e eu preferia ficar jogando bola ou olhando o movimentona rua, fora das instalações. Os funcionários da clínica conversa-vam bastante com a gente, explicando como devia ser a melhoratitude, o melhor comportamento, além das razões de eu estar alie os perigos que corria. O pastor Josi falou comigo pessoalmente,dizendo que eu deveria comparecer às palestras.

Dentro da clínica, ficava evidente qualquer tensão que euestivesse sofrendo por causa da falta da droga. Nenhum medica-mento ou tratamento era oferecido para a abstinência. Tambémnão havia um psicólogo acompanhando os internos, em bases di-árias.

As festas de final de ano estavam se aproximando. Na própriaComuna havia uma programação sendo preparada, com comidadiferente, e doações para as festas que começavam a chegar.

Por essa época, um rapaz apareceu na clínica. Depois quefizemos amizade, ele logo soltou que tinha entrado com uma

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paranga de maconha, escondida na sola da sua sandália. Eu meinteressei:

— Vamos, ver, vamos ver…

Não hesitei nem um segundo.

Na hora ele me mostrou um baseado bem fino. Só mais tar-de eu saberia que ele tinha entrado com uma quantidade bastan-te grande. Estávamos eu, ele e um terceiro rapaz, também compassagem pela FEBEM. Nós três fumamos atrás do galpão, juntoa uns carros quebrados, usados no curso de mecânica da Comuna.O cara que tinha entrado com a droga também trouxera umacaixa de fósforos, proibida dentro da clínica.

Cada um deu uma tragada e logo nos dispersamos. Cami-nhei até o campinho, em que outros garotos jogavam bola, e só alisoltei a fumaça.

Não fui longe.

Em pouco tempo um funcionário apareceu e me pegou pelobraço. Outros internos — aqueles que realmente pensavam narecuperação — tinham me caguetado. Se foi por causa do meugesto de soprar entre eles a fumaça da maconha, que os fez sesentirem ofendidos, ou se foi para me ajudar, não sei dizer.

Fui levado à sala do diretor. Ele tinha a “ponta” da bituca nacaixa de fósforos em que ela fora escondida, tudo sobre a mesa.Levei uma bronca e o grosso do incidente caiu sobre mim. Fuicastigado com um mês de lavar panelas, e o pastor Josi ameaçouchamar a polícia.

Fiquei com medo, e quando o sujeito que havia entrado coma maconha na clínica propôs fugirmos juntos, naquela noite, to-pei.

Na hora “h”, porém, achei melhor ir sozinho. Não queriater de carregar ninguém, quando fosse para conseguir comida ououtra coisa qualquer. Então levantei de mansinho e fui até umadas portas, que eram de correr e faziam barulho, ao serem aber-

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tas. Empurrei bem devagar, até abrir uma fresta larga o bastantepara mim. Mas ao olhar para trás, lá estava o cara.

— Vai, vai, vai — ele cochichou.

Pedi para ele olhar, enquanto eu pulava o cercado de tela dearame. Do outro lado, fui eu que olhei, enquanto ele pulava.Corremos rápido umas duas ou três quadras e então nos esconde-mos debaixo de um toldo — começava a descer uma garoa.

— E aí? Tem papel aí? — perguntei.

Foi só então que descobri a quantidade de maconha que eletinha com ele.

Ficamos a noite vagabundeando pela cidade. Depois disso,nos separamos. Ele era morador de Bauru, então simplesmentedissemos “tchau” um para o outro, e ele foi para o bairro dele. Namanhã seguinte à fuga, liguei para a minha mãe e contei o quetinha acontecido. Ela me contou que o seu Francisco já estava emBauru — tinha ido me buscar para a audiência que eu teria coma juíza, naquele mesmo dia!

— O que você fez? — gritou ela. — Seu pai foi aí pra tebuscar pra falar com a juíza! Você só vai complicar a sua vida…

É claro, eu não sabia de nada. O pastor Josi tinha recebidouma carta, informando da audiência, mas não me contou nada(talvez o meu uso de maconha, no dia anterior, o tenha distraídodisso, não sei…). Nunca teria fugido, se soubesse…

Ao ser informado, o arrependimento caiu sobre mim. Pen-sei que poderia estar em casa naquele instante, e não na rua.

Mais tarde liguei de novo, e meu pai estava. Ele tinha acaba-do de voltar de Bauru, tendo me procurado, sem sucesso, pelasruas da cidade. Tinha rodado cem quilômetros na ida, e cem navolta — imagine o gasto em combustível, mais a taxa de internação;ele até mesmo deixou lá o baú que havia comprado para guardaras minhas coisas, e que lhe havia custado uns R$ 120,00 ou mais.

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E é claro que, na clínica, contaram a ele o que tinha acontecidono dia anterior — que eu tinha sido apanhado com maconha.

De qualquer modo, suportei a bronca, e combinei que espe-raria por ele no Bauru Shopping. Fiquei na frente do prédio, sen-tado em um banco junto à entrada. Uma viatura policial passoupor ali várias vezes, mas não fui abordado por ninguém. Final-mente meu pai chegou. Meu tio Tição estava com ele. Chegaramquietos e me levaram para o carro. Dentro do carro, ouvi tudo oque tinha que ouvir…

— O que que você tá fazendo, rapaz? Olha o monte quevocê aprontou, pra depois sentar em cima… Era pra você estarem casa desde ontem. Agora o advogado teve que ir justificar asua falta na audiência. A juíza ficou te esperando até às seis e meiada tarde. Complicou a vida de todo mundo…

“O advogado lutou na nossa frente, discutindo com a Juízapra ela não expedir um mandado de busca e apreensão, pois vocêé só uma criança que não tinha noção do que estava fazendo, eque no máximo até amanhã você se apresentaria para falar com ajuíza. Ele precisou contar toda a verdade pra ela, e garantir quesem falta você se apresentaria lá.”

Tudo isso me explicaram no caminho de volta para casa. Fuiouvindo sem retrucar nada, pois sabia que a minha fuga não ti-nha sido uma coisa correta, mas agi por emoção e impulso juntocom o outro que fugiu, e pela minha inexperiência de vida emreconhecer as conseqüências dolorosas das minhas atitudes. Pelosmuitos erros que cometi, machuquei pessoas que me amavam.Mas ainda era uma dificuldade muito grande deixar a vida docrime, por causa de todo o lucro que eu adquiria tão facilmente,por causa dos contatos, do envolvimento, das ameaças, das tretasnão resolvidas, dos amigos e dos inimigos, enfim, uma série deoutras coisas. Largar não é fácil.

*

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No dia seguinte, fui ao fórum acompanhado dos meus paise do Dr. Ronaldo. Ele me disse, no caminho:

— Desta eu vou tentar te livrar, mas posso não conseguir. —O tom de voz dele era irado. — Eu não sou Deus. Pára de fazer oque está fazendo, porque você vai acabar me prejudicando com ajuíza, e aí eu não vou poder fazer mais nada por você.

Quando ouvi, pensei: “Pronto. Azedou tudo.” As palavras eo tom dele me assustaram. Com meus pais, não que eu premedi-tasse abusar da boa vontade deles, mas é claro que eles relevavammuitas das minhas faltas. Contudo, quando o advogado disse queia ser prejudicado junto à juíza, senti que uma porta se fechava.Fiquei inseguro quanto a comparecer ou não à audiência, temen-do ser preso. A alternativa era fugir. Mas compareci diante dajuíza, meu coração aos pulos.

Estávamos todos lá, até meu irmão e meu tio João Beleza, overeador. Vinte e três de dezembro de 1999, me lembro como sefosse hoje. Eu estava com muito medo, porque devido à besteiraque tinha feito no dia anterior, agora era necessário me apresen-tar a juíza sem garantia de que voltaria para casa. As horas forampassando e chegou o momento de irmos para o fórum. Ao che-garmos, meu coração queria sair pela boca. O advogado me ins-truiu. Meu nome foi chamado. Fiquei parado. O Dr. Ronaldo e asecretária do fórum olharam para mim, ela bateu duas vezes nacampainha. Ronaldo disse:

— Vai — e me deu uma batidinha no ombro.

Entramos na sala, meu pai na frente. Eu podia sentir o apoioda minha família, como eles torciam por mim. Silêncio total. Atéentão nunca tinha sentido tanto medo de voltar para as grades.

Nós nos sentamos e, do jeito que ficou, eu só tinha a juíza diantede mim, uma mulher loura e magra. Para ver os meus pais ou mesmoo advogado, teria de me virar para trás — mas estava duro de apreen-são. Foi iniciado o diálogo dentro da sala, e o valentão aqui tremendocomo vara verde. A juíza começou com as perguntas:

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— O que você quer fazer da sua vida?

Respondi que só queria viver com minha família. Falei bem,e a confirmação veio dos olhos do advogado.

— Por que você fugiu da clínica? — a juíza perguntou.

— Eu nunca passei um final de ano longe da minha família,e só fugi porque queria passar as festas junto com todos.

Falava como um menininho perdido as coisas que o advoga-do havia me instruído a dizer, mas a minha vontade de chorar eragenuína. De qualquer forma, as perguntas que ela me fez nãoficaram longe daquilo que o Dr. Ronaldo já me havia antecipado.

— Que esperança você tem, pra sua vida? Se você receber asua liberdade agora, o que vai fazer?

— Eu vou voltar a estudar, e não vou mais causar problemas— respondi.

— Você usa muita droga? O que você usa?

— Não, eu só usava quando estava com os meus amigos quefumam maconha. Mas agora eu não vou mais fumar.

Na verdade, como hoje eu sei, já tinha um hábito muitoforte de consumo da maconha. Tinha esperanças de não precisarda droga, mas a verdade é que, no futuro, ainda sentiria muitavontade e voltaria a fumar maconha.

— Nunca mais vou fumar — eu disse. — Porque quero fi-car com a minha família, quero ficar com a minha mãe.

Depois de algumas considerações, ela fechou a pasta e disse:

— Você vai voltar para sua casa, Cleonder, mas seus pais vãocuidar de você, e não quero mais notícia ruim aqui. Pode se reti-rar da sala, mas o Dr. Ronaldo e seu pai ficam.

Saí da sala o mais rápido que pude, e lá dentro a juíza deuuma dura no meu pai, mas disse que o processo seria arquivado. E“ponto final, estão dispensados”.

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Capítulo V: Então você está aqui!Capítulo V: Então você está aqui!Capítulo V: Então você está aqui!Capítulo V: Então você está aqui!Capítulo V: Então você está aqui!

Início do ano 2000. Agora tudo estava na santa paz dentrode casa, passamos nosso fim de ano um pouco mais felizes, minhafamília estava mais contente por eu ter voltado para casa, masainda sentiam medo. Medo de que eu aprontasse mais algumacoisa errada, que por destino não demorou a acontecer.

Pelos eventos do mês anterior, e com os transtornos que cau-sei, além do tempo que perdi, fiquei em recuperação em janeiro.Precisei repor aulas, no Colégio D. Gastão, onde estudava. Naépoca estava na primeira série do Segundo Grau, hoje EnsinoMédio. Jamais esquecerei dessa classe, pelo fato de ter amigas sin-ceras, que são minhas amigas até hoje. Todas sabiam o que haviaacontecido comigo, mas, mesmo assim, em meio a toda a confu-são em que eu tinha me metido, elas só pensaram em me ajudar.

A Josi era muito extrovertida, e é até hoje; sempre me tratoubem, passávamos o tempo conversando bobagens sadias, brinca-deiras maravilhosas e inesquecíveis. Foi uma amiga do peito, com-preensiva. Mas também me repreendia, se fosse preciso. Amigapara qualquer hora, pois quando minha vida começou a cami-nhar para o lado errado, ela continuou sendo o meu cantinho delágrimas para desabafar.

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Paixão forte, eu comecei a sentir foi pela Luciana (carinho-samente chamada Luluzinha), que também é minha amiga.Corpinho de violão, linda, mas tão linda que na minha cabeça sópodia ser ela, mas ela ainda gostava de um ex-namorado. Só de tê-la ao meu lado como amiga já era o bastante, pois podia sentir oconforto de estar próximo de quem se gosta, e mesmo assim eu iatentando conquistá-la, até que um dia a Josi e a Glauce armaramum esquema para eu e a Luciana darmos uns beijinhos atrás dacaixa d'água da escola. Fiquei muito empolgado, mas bem na horado combinado ela decidiu deixar como estava, porque algo maispoderia prejudicar a nossa amizade, que já era tão bonita e gosto-sa. E assim tive que aceitar, mas passou um tempo e eu a esqueci,como objeto do meu amor, mas nem por isso perdemos a nossaamizade.

Rafaela — a “Rafa” — louca de tudo. Quando eu estava aolado dela não parávamos de dar gargalhadas, tanto ela me conta-giava com seu astral. Me recordo que, quando ela engravidou doseu namorado, e a barriga dela ficou enorme, nós subíamos paracasa juntos, pois era o mesmo caminho. Ela vinha da escola comseus sete para oito meses de gravidez e, cansada, se pendurava nomeu ombro esquerdo com as mãos. A gente ia se arrastando, por-que eu também me cansava. Mas a Rafaela se tornou uma amigacativante e ótima para o desabafo, pois com ela eu conversavaabertamente sobre meus problemas e envolvimentos com pessoasdo submundo do crime, e ela, por ser filha de investigadora dapolícia civil, já sabia de alguns de meus problemas. Mas nossaamizade era tão forte que está firme até hoje, graças a Deus. ARafa casou-se e agora é mãe de dois filhos. O marido dela é umexemplo vivo de vida e de esperança, porque também passou di-ficuldades na adolescência.

Natália e Gustavo eram um casal perfeito, se conheceram ederam início ao namoro na sala em que todos nós estudávamosjuntos.

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A Natália sempre foi e é uma pessoa extremamente cons-ciente e responsável em suas atitudes, e sempre me aconselhou.Tivemos várias conversas, pois ela é muito religiosa, da igreja Ca-tólica. Natália me apoiou quando fiz o Brasa na Casa de Curso(um curso religioso). Enviou-me cartas e palavras de esperança.

Gustavo, conhecido como “Gustavão Gordo”… Este sim éo único amigo homem que me restou com uma amizade sincera.Em nossos intervalos de aula, comecei a jogar basquete com ele,porque ele jogava demais, e com seu irmão Zé. Tivemos muitasconversas, e ele sempre disposto a me ouvir e orientar. Foi criadoe cresceu nos braços da avó D. Idália. Também é bastante religioso,e sua irmã Crhistiane, hoje casada, estudava comigo. Gustavo é na-morado de Natália até os dias atuais. Continuam meus amigos.

Todas essas pessoas cruzaram meu caminho, e entre tantosconselhos e apoio psicológico, entre fatos e atos dos anos anterio-res, todos ficaram preocupados comigo. Às vezes, caminhandopela calçada, eu encontrava alguns desses amigos, e sempre pará-vamos para conversar e eu recebia vários e valiosos conselhos. Issose fixava em minha mente no momento, mas depois com o tempoeu esquecia e tornava a me meter em situações perigosas.

Então começaram as aulas de recuperação. No primeiro diaeu compareci, mas nem prestei muita atenção na aula, pois oscuriosos ficaram me perguntando sobre tudo o que havia aconte-cido. Percebi também muitas atitudes de preconceito contra mim.Depois da aula, no período noturno, vinha voltando para casa eencontrei um cara, o Bigode, que me convidou para fumar umbaseado, e não omito que estava com muita vontade. Fumamostoda a quantidade que estava enrolada. Ele sacou do bolso umapequena paranga e enrolou mais um. Fazia tempo que eu nãofumava, e sentia que a maconha pegava mais forte. Nisso as horasforam passando, e quando me dei conta já era de madrugada.Ficamos conversando por muito tempo, por isso não percebi opassar das horas. Isso foi no primeiro dia de aula…

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Quando voltei para casa, dona Izilda estava acordada e oseu Francisco tinha saído à minha procura. Minha mãe começoua me perguntar um monte de coisas — logo percebeu que euestava drogado. Não demorou e chegou meu pai, e no ato elacontou o que se passava. Começamos os três a discutir, e cada vezmais se alterava o tom das falas e o nervosismo crescia. Parei defalar. Só ouvi o que tinham para dizer. Era a mesma conversa deantes. No momento, o que eu queria era evitar que toda a pressãoque havia enfrentado antes retornasse. Disse que iria embora decasa, mas falei tudo sem pensar. Além do mais, havia fumado doisgrandes cigarros de maconha, e soltei muitas palavras sem medirseu peso sobre meus pais. Em meio ao tumulto, disse que sairia decasa, virei as costas e fui para o banheiro.

Tomei um banho, melhorei um pouco, e fui para o quartodormir, mas não consegui. Ficava pensando no que fazer para sairdessa situação. O pai e a mãe permaneceram conversando na co-zinha, que ficava no fundo da casa. O efeito da maconha foi di-minuindo, mas comecei a me lembrar das coisas que vinham acon-tecendo desde que tinha voltado para casa — eu chegar da rua esurpreender minha mãe fuçando na minha gaveta, revistandominhas roupas, e toda a conversa e proibições… Passei a pensarem como fazer para arrumar dinheiro e sumir de casa.

Aproveitando que meus pais estavam nos fundos, fui bemdevagar, sem fazer barulho, até o quarto deles, que ficava ao lado,na intenção de encontrar dinheiro. Não foi preciso procurarmuito, pois abri um faqueiro e encontrei o valor de R$ 300,00.Peguei tudo. Voltei para o meu quarto, tranquei a porta, pulei ajanela e fui para a rua até chegar à favela do Cai-Cai (que já nãoexiste mais), e por ali fiquei desde manhãzinha até o cair da noite.Passei o dia todo nessa pequena favela, consumi muita maconha— uma quantidade que não posso precisar.

Recordo-me de que, quando sai da Cai-Cai, estava com R$250,00, um pequeno tijolo de trinta gramas de maconha, e uma

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faca. Segui para uma casa abandonada, próxima da escola emque estudava. A rua era uma baixada, e três casas abaixo ficava acasa do delegado. Por ali também ficava o mercado, alvo da mi-nha tentativa de assalto. Passei em frente, percebi que não havianinguém, e adentrei rapidamente à casa.

Já conhecia a estrutura física do local, por ter consumidomaconha ali. Dei uma olhada no teto da casa e notei que a áreados fundos não estava coberta com o forro de madeira. Subi pelaparede, pisando na fechadura da porta para me servir de apoio, efui para dentro. Logo que entrei, fui dar uma trabalhada na dro-ga para embalá-la, de modo que a pudesse vender, recuperar odinheiro que tinha gastado e fazer lucro. Iludido e sem fazer idéiada preocupação que estava causando, e do perigo que corria, cor-tei com a faca pequenos pedaços para serem vendidos por cincoreais, embalei todos e depositei tudo dentro de uma sacola.

Quando ainda estava na Cai-Cai, deixei avisado para o Tico,um usuário conhecido meu, o lugar em que estaria. Não demo-rou muito e ele apareceu lá, me levou um cobertor e umas gulo-seimas para comer. Dei cinco reais para ele ir buscar salgados fri-tos no bar. Ele logo voltou.

Naquela noite fiquei por ali mesmo. Tico também ficou co-migo, e a cada hora nós fumávamos um baseado, até que, venci-dos pelo cansaço, dormimos ali mesmo, dividindo o cobertor.

Pela manhã acordei primeiro, o café-da-manhã infelizmen-te foi um baseado. O Tico ainda dormia e eu permaneci sentadono canto do cômodo sujo de restos de cimento. Quando acabeide fumar, pensava em como iria fazer para tomar um banho, poisestava sujo e sem roupas limpas, apenas as com que eu saíra decasa. Também estava com medo de sair do esconderijo e toparcom meus pais à minha procura pelas redondezas. Tico acordou epedi para ele arrumar umas roupas para mim. Ele também disseque tinha que ir para casa, porque a mãe dele poderia estar preo-cupada, mas que voltaria ao anoitecer e traria algumas roupas.

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Quando disse que a mãe dele poderia estar preocupada, me deuvontade de voltar para a minha casa, mas eu tinha medo das con-seqüências — especialmente por ter apanhado o dinheiro queestava no faqueiro da dona Izilda.

Tico subiu na parede e pulou do outro lado e saiu. Perma-neci onde estava até o meio da tarde, quando decidi sair para iraté a mata do Carvalho. Tomei um banho no riozinho que corta obosque, e coloquei a mesma roupa.

Fiquei por ali até de tardezinha, esperando a cueca secar, elogo chegou a noite. Saí do mato e voltei para a casa abandonada.Próximo dessa casa em que eu estava escondido havia um poste deiluminação, e percebi, ao olhar no chão do asfalto próximo daguia da calçada, rastros de pés que tinham pisado no barro, ecreio que ao sair limparam as solas ali. Pelo tamanho das pegadas,era gente grande. Mesmo assim entrei, e dei uma vasculhada noquintal. Mas como era noite, não deu para enxergar pegadas pelolado de dentro, porque lá estava escuro. Então subi na parede evoltei para dentro, com esperança de que o Tico voltasse logo,pois tinha planos de sair dali ao raiar do dia.

Rapidamente o Tico chegou, mas trouxe com ele um rapazda minha idade, de novo o Bigode — que no futuro próximo mecolocaria na cadeia injustamente.

Ouvi os dois chegarem. Eles pularam e entraram. A gente secumprimentou, e comecei a falar das pegadas. O Bigode até aquelemomento era uma pessoa em que eu confiava, pois uma vez noano passado estávamos o Paulo, irmão do Tico, o Tico também,Bigode e eu, todos sentados próximos da rodoviária de Borborema,quando chegou o Arcidão. Ele queria comprar fumo. Eu não ti-nha nada para ser vendido no momento, mas o Paulo vendeu.Quando o rapaz pegou a droga nas mãos, a polícia militar baixouna área. O primeiro a perceber fui eu, que avistei a viatura delonge, vinda de um ponto estratégico. Dei o alerta a todos:

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— Olha os homens, dispensa o bagulho! — e saí em dispa-rada.

Eles ficaram para trás. A polícia acabou encontrando a por-ção de maconha com o Arcidão, e o restante do pessoal tambémportava flagrante, mas todos engoliram antes da polícia botar asmãos neles. Os policiais perguntavam ao Arcidão de quem era adroga, e ele afirmou na cara do Paulo que tinha comprado dopróprio. Mas houve a intervenção do Bigode, que assumiu ime-diatamente (por ser primário), para evitar que o Paulo, que játinha vários processos em andamento, arrumasse mais problemas.Foram todos para o DP, e depois liberados.

Por esse motivo eu confiava no Bigode, e o Tico eu já conhe-cia há tempos.

Conversamos e tentamos bolar um plano. A idéia era eu e oTico sairmos dali e seguir para a cidade de Novo Horizonte comuns R$ 230,00 no bolso. Eu tinha um conhecimento nessa cida-de e pretendia comprar um oitão, para pagar em duas vezes, etrazer um pouco de fumo.

O Tico tentou colocar na minha cabeça que o melhor era agente sair dali ainda no mesmo dia, aproveitar a noite, que é me-lhor para se locomover, mas não concordei e disse que ao ama-nhecer seria melhor.

— Vamos amanhã — eu disse. — E ponto final.

— Tudo bem — Tico respondeu.

Por sua vez, Bigode concordava com tudo o que eu dizia,pela hierarquia e o respeito do tráfico. Tico era meu aliado nomomento e também muito experiente no mundo do crime, compassagem pela FEBEM Imigrantes, tendo participado da rebe-lião de ‘99, na qual cortaram a cabeça de um interno e a jogarampor cima do muro — ela foi parar aos pés da Tropa de Choque.

Preciso deixar claro, porém, que o Tico só ficaria comigoenquanto tivesse dinheiro no pedaço. Sem dinheiro, ele não teriame acompanhado. É assim, nessa vida. Sem dinheiro, você não

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tem nada. Ao mesmo tempo, disfarçadamente, um vive medindoo outro e, havendo oportunidade, nem que seja apenas pelo di-nheiro e pela moral, ou pelo ponto do concorrente, um derrubao outro — mata o outro. É a chamada “crocodilagem”. Então eumantinha um olho aberto até para o Tico. E havia uma outracoisa, que eu tinha aprendido muito cedo: nesse ambiente, em-bora a gente faça planos em conjunto, cada um tem o seu próprioplano. A minha idéia, por exemplo, era chegar em Novo Hori-zonte e lá deixar os dois plantados em algum lugar. Sozinho, fariao que tinha de fazer, e então retornaria para junto deles com ape-nas metade da droga obtida. Essa metade eu repartiria com ele. Evoltaria com o cano escondido na cintura, para me garantir dequalquer coisa.

Permanecemos ali na casa abandonada consumindo maco-nha, até que pegamos no sono. Eu já havia trocado de roupa edormi com ela.

O plano não deu certo porque, de tanto que fumamos, acor-damos umas nove horas da manhã. Mais uma vez o Tico disse:

— Vamos agora mesmo. Não podemos ficar vacilando aquinão, meu truta. Então Cleonder, vamos ou não vamos?

Eu disse que sim, mas tínhamos que pegar o horário dosônibus. Tico disse:

— E aí, Bigode, vai lá na rodoviária e vê os horários pragente, porque eu vou ficar aqui com o mano.

Bigode escalou a parede e foi.

Tico permaneceu comigo. Começamos a conversar sobrecomo administrar o que compraríamos em Novo Horizonte. Es-tabelecemos entre nós que o Bigode não iria, porque três mole-ques juntos chamariam muita atenção. Rapidamente Bigode vol-tou e nos passou a escala de ônibus. Mas só tinha carro às cincohoras da tarde, então tivemos de esperar. Parecia que o Tico sentiaalguma insegurança, porque novamente me chamou para sair-

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mos dali e irmos para outro lugar. Respondi que sairíamos na horade pegar o ônibus, e não custava esperar mais algumas horas. Ticodisse “tudo bem, truta”, que quer dizer "parceiro", "aliado". “Vocêque sabe.”

Antes eu o tivesse ouvido.

Mas passados alguns minutos, escutamos alguns minúsculosbarulhos, como se alguém estivesse pisando em pedregulhos. Deiuma olhadinha pela fresta da janela e não vi nada. Fumávamosum baseado que o Bigode enrolou da maconha que eu tinha, masnem deu tempo de terminar e…

Bam! Bam! Bam!

Três chutes na porta de alumínio.

Olhei para cima e vi um soldado escalando a parede. Eleestava lá em cima, com um revólver prateado em punho, apon-tando para nós.

— Pára, pára! — gritou.

O terceiro chute abriu porta. O delegado, com duas “qua-dradas” (pistolas) nas mãos, invadiu o cômodo. Fomos um paracada canto, e o “doutor” veio logo em mim, me cutucando, e eujá com as mãos nas paredes.

— Então você ‘tá aqui!

Ele não me bateu naquele momento, apenas me cutucoucom a arma de fogo na altura das costelas. Tive um choque demedo, não ousei me mexer — embora tremesse, encostado naparede.

Com nós três encostados na parede, começaram a vasculharo local e lograram êxito: encontraram uma pequena porção demaconha, uma faca, um colírio e R$ 220,00. Automaticamenteo delegado disse:

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— Vocês estão presos no Artigo 12 — que se refere ao tráfi-co de entorpecentes —, permaneçam calados porque tudo quedisserem será usado contra vocês.

E então exclamou:

— Porra, meu! Não dá nem pra se almoçar lá em casa, comessa baita tabela de maconha.

“Tabela” é a gíria para o cheiro da fumaça de maconha.

Três casas, abaixo, de onde estávamos, ficava a residência dodelegado…

Mas acho que era conversa dele. Na verdade, alguém deveter denunciado a nossa movimentação na casa.

Nos algemaram, pediram reforço de mais duas viaturas.Colocaram a gente dentro do chiqueirinho, mas, ao invés de le-var a gente para a delegacia, começaram a dar voltas conosco pelocentro da cidade, com as sirenes ligadas fazendo o maior barulho,e só mais tarde nos levaram para a delegacia de polícia.

Foram lavrados os autos, mas agora ninguém queria seguraressa bomba, e, como era tudo meu mesmo, acabei assumindo.Permanecemos na delegacia até o fim da tarde, quando a mãe doTico compareceu e ele foi liberado, pois foi considerado comoviciado. Depois veio a minha mãe, que foi falar com o delegado.Passado um tempo, fui chamado.

Entrei algemado na sala dele. Mamãe estava sentada. Eu mesentei ao lado dela. Quando ela viu minhas mãos presas, baixou acabeça e só Deus sabe o que dona Izilda sentiu naquele momen-to. De minha parte, sei apenas que me apertou o peito, de vergo-nha. Ela disse:

— É essa a vida que você quer levar? Foram essas roupassujas que eu dei para você vestir? Será que você quer me matar dedesgosto?

Então ela perguntou onde eu havia conseguido todo aqueledinheiro, o delegado na hora atravessou a conversa, dizendo “é

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da venda de drogas”. De novo a mãe perguntou, e eu disse queera dinheiro dela. Ela respondeu:

— Lógico que não, pois eu te dou apenas um real por dia evocê não ajunta dinheiro, você gasta tudo.

Logo que ela respondeu assim, percebi que não tinha dadofalta do dinheiro que eu peguei do faqueiro. Mas no momentofiquei quieto, com medo dela me bater enquanto eu estava alge-mado — e mamãe tem a mão pesada.

O delegado explicou a situação para ela, que ficou muitochateada. Era possível ver a tristeza em seu semblante, mas eu nãoconseguia enxergar nenhuma saída no momento. O Bigode fi-cou lá no fundo, algemado, sozinho. Ninguém da família delequeria ir buscá-lo, porque ele já vinha dando trabalho, envolvidocom entorpecentes e com muitos furtos. O delegado me liberouna seqüência para aguardar decisão do fórum, e Bigode ficou láaté anoitecer, quando a avó dele decidiu ir buscá-lo.

Mamãe assinou a papelada e me levou embora. Na saída daDP, meus primos aguardavam algum resultado. Quando deixei adelegacia com a dona Izilda, eles disseram:

— Mas que serviço, heim, Cleonder. Toda a família te pro-curando por esses dias todos e você é encontrado justo na delega-cia.

Continuei caminhando sem dizer uma só palavra, pois esta-va envergonhado. Minha mãe também não dizia nada. Como adelegacia ficava perto de casa, chegamos rápido.

Papai já sabia do ocorrido e ficou à espera; logo ao dobrar aesquina eu o vi, em pé do lado de fora. Ele entrou, ao me ver.

Envergonhado com o que causei, comecei a conversar commeus pais, e foi aí que o seu Francisco me perguntou:

— Quem você assaltou para arrumar aquele dinheiro?

Respondi que não tinha roubado nada. Desta vez contei averdade, porém com muito medo, explicando que o dinheiro

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encontrado comigo eu havia pegado do faqueiro da mãe, queficara na parte de cima do guarda-roupa. Ao ouvirem isso elesficaram espantados e me disseram:

— Não acredito, não pode ser… O dinheiro que você pe-gou nós deixamos de pagar as contas e também não fizemos com-pra pra casa e esse dinheiro que você pegou era para pagar o Dr.Ronaldo, que te livrou da cadeia e você ainda me faz isso.

Respondi, alarmado:

— Eu não sabia, eu não sabia. Desculpa, desculpa.

Conversamos seriamente e eu me abri pela primeira vez commeus pais. Contei o que estava acontecendo e pedi ajuda, porquesozinho eu não conseguiria sair das drogas. Entramos em um acor-do. Decidimos procurar um psicólogo no posto de saúde. No ou-tro dia fomos ao posto do SUS, onde fui atendido pelo Sr. Bene-dito, que havia sido meu professor no ano anterior, na época doprimeiro colegial.

Terminada a consulta, saí com muito medo — e sincera-mente posso dizer que saí de lá sem nenhuma vontade de voltar aser atendido. Essa foi a primeira vez que passava por esse tipo deterapia, com um profissional, e eu nunca havia falado tanta coisasobre a minha vida no crime e no mundo das drogas. Ao deixá-lo,fiquei me perguntando se ele comentaria minhas revelações comalguém… Na verdade, todo o meu instinto era o de continuarcom os segredos e as mentiras.

*

Passou-se uma semana. Fui para mais um atendimento comSr. Benedito. Começamos a conversar e me soltei um pouquinho.A conversa estava indo legal até o momento em que ele entrou noassunto da internação.

— Não, senhor — eu disse —, porque aqui fora esta bommesmo. Eu não vou me deixar prender em lugar nenhum.

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Ele foi fazendo o papel dele de psicólogo e contornou a situ-ação. O tempo se esgotou, havia mais pessoas a serem atendidas;fui dali para casa e desta vez minha mãe não estava comigo. Volteifurioso, pensando no que fazer para fugir dessa conversa de clíni-ca de internação.

Nesse mesmo dia, já na parte da tarde, eu não fazia nenhu-ma idéia do que estava prestes a acontecer comigo. Eram pratica-mente umas quatro horas da tarde e eu estava no centro da cida-de, em um bar que fica a uns duzentos metros do Fórum deBorborema. Tinha uma bicicleta Calói Cross preta e vermelha,que estava parada diante do bar. Em determinado momento de-cidi me retirar do bar para ir dar uma voltinha de bike, mas assimque apontei na porta a dona Lucilene, oficial de justiça, vinhavindo discretamente em seu carro, um fusquinha cinza. Quandomontei na bicicleta, ela encostou seu carro próximo de mim edisse que havia alguns papéis para eu assinar, mas meus pais tam-bém teriam que estar presentes. Vendo que eu estava montado nabicicleta, ela disse:

— Larga a bicicleta aí. Depois algum colega teu leva ela pravocê. E vem comigo.

No momento em que ela pronunciou essas palavras, entreiem pânico. Disse que ia de bicicleta mesmo para casa, mas logopercebi que, a uma distância de uns duzentos metros, havia umaviatura só observando o lance entre a oficial de justiça e eu.

Sem saída, montei na bicicleta para ir para casa, como donaLucilene havia dito. Fui na frente e o fusquinha atrás de mim —foram apenas algumas pedaladas e o camburão da polícia apare-ceu como num toque de mágica ao meu lado. Agora eu compre-endi do que realmente se tratava — eles vieram para impossibili-tar qualquer reação da minha parte. Mas dei apenas mais umaspedaladas e então efetuei um corte inesperado para a rua de bai-xo, e a viatura seguiu direto, agora em alta velocidade para tentarme pegar na esquinas das ruas que desciam a partir daquele pon-

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to. Passei a primeira esquina e tudo bem. A segunda esquina eu iatentar passar, mas a viatura Blazer parou bem na frente. Não pudebrecar e booom! Bati de cheio bem no meio da viatura e ali mes-mo fiquei, caído no chão.

Me ralei um pouco, a bike foi para o compartimento fecha-do e eu fui na frente até minha casa, para dar a notícia aos meuspais de que a juíza de Borborema havia decretado Prisão Tempo-rária para Apuração de Ato Infracional. Sem eu perceber, minhaficha na delegacia estava ficando comprida; não paravam de apa-recer novidades, e a juíza passou a me ver mais do que eu gostaria.Meus pais, coitados, já começavam a se desesperar. Não sabiam oque fazer. Queriam, no momento, se comunicar com o Dr.Ronaldo, mas eu disse:

— Agora não adianta chamar ninguém, porque essa deci-são judicial só vai ser revertida com recursos. Tenho que ir pracadeia mesmo, eu já esperava por isso, mas não fiquem preocupa-dos.

E meus pais responderam:

— Mas este papel está dizendo que você ficará preso porenquanto ali em Itápolis, mas que depois você vai ser removidopara a FEBEM.

A partir do momento em que ouvi esta palavra, entrei empânico. Começamos uma choradeira sem fim, o pai, a mãe e eu.Todos já tínhamos, claro, ouvido todos “contos de horror” possí-veis, a respeito da FEBEM.

— Papai, serei forte — eu disse. — Não vou arrumarencrenca com ninguém e vou sair vivo de lá.

Tentei confortá-los, pois era a única atitude positiva quepodia mostrar naquele instante. Confortei-os antes de sair. A ofi-cial de justiça leu o restante dos papéis. A mamãe foi arrumandouma pequena mala com alguns utensílios pessoais como pente,escova de dentes e creme, sabonete, algumas roupas... Mas a face

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de minha mãe assumiria um semblante de tristeza que mexeu commeu coração, mas agora era tarde demais para reverter qualquercoisa. Tinha mesmo que pagar minha dívida com a justiça.

Nos minutos finais de liberdade e ainda com os pulsos sol-tos, pude abraçá-los e me despedir com palavras de esperança.

Quando saí de casa, uma multidão de conhecidos ocupavaa rua. Havia um número de viaturas posicionadas estrategicamen-te nos arredores. Cheguei ao portão, estendi os punhos e as alge-mas se travaram, os policiais colocaram minhas coisas nochiqueirinho e me levaram para o hospital para fazer exame decorpo delito, antes de dar entrada na cadeia de Itápolis.

Chegando aos portões de entrada da cadeia, acho que nun-ca fui tão frio como nesse momento. Entrei e passei pela mesmarotina: retirar a roupa, ser revistado, agachar, vestir a roupa e serenfim encarcerado.

Desta vez fiquei de algum modo mais conformado, pois co-meçava a enxergar o que realmente eu tinha feito e que essas eramas conseqüências a enfrentar.

Os presos se assustaram com minha presença ali novamente.

— Mas você não tinha ido para a clínica? — muitos per-guntaram.

— Fui, mas fugi.

Outros perguntaram qual era a minha novidade. E eu res-pondia:

— Tô num Artigo 12.

Eles, espantados, estalavam os olhos, pois eu mal havia saídodali, e em menos de dois meses já tinha voltado, e ainda por cimaem um artigo pesado.

Fui colocado na mesma cela “corró” de antes. Agora já tinhauma noção de como agir dentro da cadeia. Preso ali, só sabia queteria uma audiência no dia 1.º de fevereiro de 2000, e minhas

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esperanças estavam todas concentradas nesse dia, pois não vianenhuma outra luz a me dar mais qualquer esperança. E justo nofinal de semana anterior eu havia arrumado uma namorada…

Eu já a conhecia e sabia que gostava de mim, mas nuncatinha dado uma oportunidade a ela. Chamava-se Josiane e eu adesprezava por achá-la meio magra e feia.

Mas como agora não podíamos reforçar nosso namoro, per-manecemos assim, distantes um do outro. Mas acho que me ape-guei muito rápido a ela, e, na prisão, prometi a mim mesmo quena primeira oportunidade que tivesse iria encontrá-la novamen-te, para tentar um relacionamento. Mas se não fosse com ela, euprocuraria outra pessoa, pois percebi que a mulher para mim atu-ava como um freio de mão; ou melhor, eu me sentia muito sozi-nho, em razão da vida que levava, foi se acumulando em mimmuita vontade de conversar, desabafar… Só que eu não tinhaninguém. Quando encontrei Josiane, me apeguei a ela e dentroda cadeia ficava pensando e pensando, e era muito gostoso pen-sar tanto assim nela, pois me sentia muito bem me importandocom uma outra pessoa.

Os dias foram passando e eu fui me adaptando ao lugar,porque sabia que merecia aquilo tudo, pois não havia praticadoatos de caridade, mas de crimes. Crimes que me fariam sentir napele o que era a dor de uma solidão, a frieza de uma cela, o senti-mento de estar abandonado,apesar do apoio dos pais.

O dia da audiência chegou e eu não tinha mais medo de medirigir à juíza. Meu advogado já havia me preparado e orientado.

Tomei um banho e aguardei ser solicitado pelo carcereirona cela.

Não demorou muito e o carcereiro — conhecido como“Xaropinho” — veio me chamar.

— Vamos aí, chegou o dia de receber o presente.

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O que ele queria dizer era que havia chegado o dia de rece-ber a condenação.

Mais uma vez colocaram os “grampos” nos meus pulsos. Fuipara o chiqueirinho da viatura e enfrentei os trinta minutos deviagem, até que chegássemos ao Fórum de Borborema.

A presença de meus pais, eu pude logo conferir na entradado fórum.

Fui retirado do chiqueirinho e passei por meus pais de cabe-ça baixa, envergonhado e com vontade de esconder o rosto. En-tramos e nos sentamos para aguardar o chamado da juíza, e eufiquei pensando assim: “Eles vieram em quatro policiais civis paramanterem a segurança deles, dizendo que para me remover nãopoderiam dar bobeira. Mas que segurança eu tive para ser con-duzido no chiqueirinho da viatura? Direitos humanos para pre-sos ou internos é só no papel.”

Após quase uma hora de espera, chegou a minha vez.

Entramos, primeiro eu e os quatro policiais civis, depois oadvogado Dr. Ronaldo e, junto com ele, o meu pai.

Ao entrar na sala, pedi licença e entrei. Mas quando olheipara a juíza, levei um susto — não era a mesma com a qual euhavia passado outras vezes. Ela disse que era substituta e que atitular não se encontrava por motivos de falecimento na família.E começou logo com as perguntas.

Me perguntou se a droga que foi encontrada no local daapreensão era minha. Respondi que sim.

Perguntou se eu comercializava os entorpecentes. Respondique não.

Perguntou o que os outros estavam fazendo ali no local. Res-pondi que éramos viciados e que, como eu havia comprado umapequena porção de maconha, tínhamos ido fumar em conjunto.

Ela ouviu as minhas respostas, parou, refletiu e disse:

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— O senhor já tem algumas passagens por aqui, mas foramarquivadas. Ah, Sr. Cleonder, vamos ver o que eu posso fazer comvocê.

Nesse momento o meu advogado pediu permissão para fa-lar e defendeu a minha liberação pelo prazo de dez dias, se eu mecomprometesse a me internar em uma clínica de tratamento derecuperação e reabilitação para o convívio social.

A juíza pensou e pensou um pouquinho mais, antes de di-zer:

— Decido. O senhor está liberado, mas pelo tempo de dezdias eu quero você internado, ou te mando para a FEBEM.

Rapidamente eu me comprometi com esse arranjo, e assineios papéis.

— Você está liberado, e podem retirar as algemas do jovem.

Os policiais retiraram as algemas, todos se mordendo de rai-va, pois contavam com que eu fosse condenado. Em um piscar deolhos eles sumiram tão rápido quanto a água que escorre peloralo.

Agradeci a juíza pela oportunidade, retirei-me da sala e abra-cei meu pai e minha mãe, que estavam felizes com a decisão. Agra-deci ao Dr. Ronaldo.

Eu recebera uma nova chance, mas agora tínhamos o com-promisso de encontrar uma clínica no prazo de dez dias.

*

O Dr. Ronaldo disse que em Bauru havia uma clínica exce-lente, chamada Gilgal. Alguém a tinha recomendado a ele.

— Mas lá não pode fumar cigarro — foi a ressalva que fez.

Concordei e disse que sim, que iria para Gilgal, sob qual-quer regra ou condição.

No outro dia, já estava tudo combinado para me levarematé essa clínica. Os cem quilômetros que nos separavam de Bauru

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foram percorridos em uma hora. Chegando lá, simpatizei com aentrada da instituição, que é muito bonita. Entramos e fomos fa-lar com o coordenador, o Sr. Augustinho. Só de me lembrar deleagora, enquanto escrevo, sinto saudades do bom velhinho.

Fui feliz na Gilgal.

Pelo tempo que durou.

*

A princípio, achei o Sr. Augusto um pouco chato, mas hojepercebo que na verdade ele era muito correto e estrito em tudo.As instalações da clínica eram bonitas e limpas, diferentes das outraspelas quais eu havia passado, com tudo bem organizado e com osinternos sendo tratados com muito respeito. Não éramos obriga-dos a nada — exceto comparecer aos cultos, pois se trata de umainstituição evangélica.

Até mesmo os internos tinham boa aparência, e pareciambem tratados, bem alimentados.

Quando cheguei, fui bem recebido, com todos desejando omeu sucesso.

— Seja bem-vindo em nome de Jesus! — gritaram em unís-sono, funcionários e internos.

Nessa clínica, apesar da boa recepção, eu a princípio me sentiasolitário. Mas aos poucos fui me conscientizando das palavras quevinham dos internos que lá estavam há mais tempo. Eles me esti-mulavam a perseverar, reafirmando sempre que, com esforço, eurealizaria a minha recuperação. E eu podia ver, na pessoa de cadaum desses internos, que de fato o sucesso era uma realidade quasepalpável.

Havia muitas atividades. Uma das que eu mais gostava era aprática do futebol. Pelo menos duas vezes por semana os internosiam a um quartel da Polícia Rodoviária, onde ficava o campinhoque usávamos. Em termos de terapia ocupacional, tínhamos umcurso de corte e costura, por meio do qual aprendíamos a fazer

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coleiras para cães e outras coisas. A clínica proporcionava tam-bém a prática de musculação e aulas de computação e de música.Aprendi lá a tocar violão e guitarra.

Acordávamos todos os dias às 7:30h., depois de uma boanoite de sono, em um colchão superconfortável. Os chuveiroseram de água quente, e o banheiro todo azulejado e limpo. Cadaum tinha direito a cinco minutos de banho, contado no relógio.Às oito tínhamos o café-da-manhã com pão com manteiga, leite eleite achocolatado, em jarras separadas. Dali, íamos para a capela— todos os dias. Após o culto o horário era livre, até a hora doalmoço. À tarde tínhamos estudo bíblico, com o Sr. Augustinho ea psicóloga Cíntia. Esse estudo não era obrigatório, mas todoscompareciam. Depois aconteciam as outras atividades.

Éramos obrigados, também, a freqüentar a igreja fora daclínica — no “mundão”, como chamávamos. Duas vezes por se-mana.

Meus pais estavam pagando R$ 400,00 — com a ajuda domeu tio João Beleza — por tudo isso. Mais tarde o diretor, Sr.Augustinho, fez um abatimento.

*

Comecei a sentir uma transformação interior. Os cultos,conduzidos pelo pastor Cássio, começaram a plantar em mim aPalavra de Deus. Também a atitude dos obreiros — que é comoos funcionários preferiam ser chamados — denotavam carinho einteresse por cada uma das pessoas que, pelo encontro desastradocom as drogas, precisara recorrer à Gilgal. Faziam com que nossentíssemos amados e valorizados. Com os seus conselhos, come-cei a reconhecer outros horizontes em minha vida. Tanto que pro-curava a conversa, o aconselhamento. Por fim, foi crucial o retor-no que eu tinha dos meus pais, que sempre investiram em mim,durante todos os momentos em que estive em dificuldade. Eles,também, passaram por um tratamento na clínica — a mesma psi-cóloga que me acompanhava dava orientações a eles, sobre como

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me tratar, me incentivar e reagir diante das coisas que eu fazia edizia. Era um novo tratamento, baseado no diálogo, e das oitohoras de visitação, quando parentes e amigos podiam nos ver, duashoras eram dedicadas a conversas com a psicóloga Cíntia — àsvezes também com a presença de Agostinho. Os pais aprendiamcomo lidar com os filhos, tanto dentro, quanto fora da clínica.

Senti que dona Izilda e o seu Francisco começaram a meentender melhor. Eles não adotavam mais aquela atitude pa-ternalista. Ao mesmo tempo, passaram a demonstrar mais confi-ança no seu desastrado filho. Isso foi muito importante para mim— foi como se tirassem um peso dos meus ombros.

De minha parte, passei a ser mais sincero com eles.

Tudo isso porque a clínica oferecia um espaço humano querealmente tratava a mim e aos outros como seres humanos — tãodiferente das outras clínicas — e da prisão e das primeiras unida-des da FEBEM por que eu passaria! Hoje percebo que o ambien-te pode ajudar a tirar o melhor de nós, se for um bom ambientecomo a Gilgal foi para mim; ou o pior, se for um ambiente comoa cadeia ou as unidades de primeiro atendimento da FEBEM.

O meu melhor amigo nessa clínica chamava-se Éden, umrapaz bem magro, que estava lá por envolvimento com entorpe-centes; era oriundo da UAI do Brás. Coincidentemente, éramosde cidades vizinhas, eu de Borborema, ele de Itápolis. Inclusive,ele havia passado pela mesma cela que eu, em outra época. Con-tudo, em minhas andanças pelo mundo do vício, na região, eununca tinha ouvido falar dele. Tínhamos algo em comum, na re-gião em que vivíamos. Além disso, gostávamos os dois de jogarfutebol, de ouvir música sertaneja, e aprendemos na Gilgal a rece-ber a Palavra de Deus com mais interesse. Juntos nas aulas de música,acabamos juntos no “conjunto musical” da clínica — eu na guitarrae o Éden no teclado, com mais um na bateria; formamos uma bandade louvor, sob os auspícios do professor de música.

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O baterista se chamava Rodrigo “Kulilim”, e com ele eu tam-bém construí uma amizade. Ele havia passado nove meses naFEBEM do Tatuapé, onde fora internado aos quatorze anos. Umrapaz muito carinhoso e compreensivo, mas um pouco tímido,que estava lá em parte porque lá fora, no “mundão”, ele não tinhanada. Sua família passava necessidade (sendo às vezes auxiliadamaterialmente pela própria Gilgal), e sair da clínica significariasimplesmente estar na rua. Ele chegou a sair uma vez, mas depoisde passar quinze dias fora da clínica, pediu para voltar.

Após quatro meses de internação, fomos promovidos a “au-xiliares de obreiro” — uma espécie de monitor que controla oambiente na clínica, disciplina as faltas, inclusive dando aos faltososo Salmo 119 para copiar; ele todinho, com os seus 176 versículos.E três vezes. Mas dependendo do tamanho da encrenca.

Conheci lá um rapaz chamado Ismael, que havia escapadode uma overdose de crack — que ele consumia desde os noveanos de idade—, e também passado um tempo em um hospital,sendo tratado com remédios. Além desse vício, ele bebia muitacachaça. Tinha seqüelas da overdose nos nervos da face, e conse-guia flexionar uma das orelhas, como a gente dobra um dedo.Chegou à Gilgal com quatorze anos e, enquanto esteve na clínica,até que se deu bem. Mas quando se sentiu mais restabelecido fisi-camente e após ser liberado da clínica, acabou voltando ao vício eretornou à Gilgal para mais uma temporada. Nesta segundainternação, ficou cinco meses entre nós e depois simplesmentedesapareceu.

Enquanto eu já começava a rascunhar este livro há umastrês semanas, vi o Ismael na rodoviária de São José do Rio Preto.Estava jogado na rua, um cobertor imundo cobrindo os seus mem-bros...

*

Deixei a clínica pouco antes de completar nove meses deinternação. Tanto o coordenador da Gilgal, o Sr. Augustinho,

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quanto a psicóloga Cíntia, me deram “alta”. A despedida foicomovente para mim e para outros também. Qualquer um queficasse lá por uns seis meses e depois saísse, deixava saudades. Aconvivência mútua inspirava carinho e interesse pessoal um pelooutro. O Kulilim chegou a me abraçar, com lágrimas nos olhos.Pedir para que eu ficasse... Eu era o seu amigo mais próximo, naclínica. A saída sempre traz sentimentos conflitantes — se por umlado havia uma perda, pela convivência que não aconteceria mais,por outro havia o sentimento de sucesso e de retorno à família.

Ao sair, eu me considerava uma pessoa diferente. Livre dosvícios, sentia-me mais leve. Por outro lado, a nova convicção reli-giosa parecia me ancorar mais firmemente na realidade, me co-municando uma forte sensação de segurança e de confiança.

Em casa, fui bem recebido por todos os meus familiares. Fi-quei quase um mês freqüentando a igreja, mantendo os novoshábitos. Um dia faltei, por estar meio doente e indisposto, masalgo me dizia para ir...

Não sei o que poderia ser diferente, mas o fato é que, doisdias mais tarde, minha vida tornou a virar do avesso.

*

No dia 7 de novembro de 2000, eu estava perto do ColégioD. Gastão, quando dois policiais me deram uma “geral”. Forambastante agressivos, torcendo o meu braço nas costas. Um delescolocou uma pistola contra as minhas costelas e me passou umarasteira. Caído no chão, fui rapidamente revistado. Nenhum de-les me disse nada, e me dispensaram enquanto eu ainda estava nochão.

Não entendi nada e achei que tinha sido apenas uma provo-cação. Conhecia os dois, e sabia da opinião negativa que tinhamde mim; por isso apenas me senti aliviado, quando me deixaramem paz.

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Mais tarde me encontrei com minha namorada de então,Letícia. Ela entrou na escola para assistir aula. Também entrei ede longe vi a inspetora conhecida como Preta, com a sua figurarobusta e simpática. Ela sempre me tratava bem, me chamava de“filho”; então fui até ela bater um papo.

Deixei a escola e caminhei até o outro lado da escola. Fui atéum ponto, do outro lado da entrada, em que podia ver o movi-mento dos alunos lá dentro. Fiquei ali um pouco, depois fui paraa Praça da Matriz, comer alguma coisa. Enquanto caminhava,cruzei com o Bigode, que vinha no sentido oposto. Ele me cum-primentou e eu retribuí.

— Como é que foi lá? — ele perguntou, querendo dizer “lána clínica”.

— Legal. Nossa, eu tô legal — eu disse, sem estender a con-versa. — Mas agora eu tô saindo, falou?

Na verdade, não queria nada com as antigas companhias.Como a gente diz na igreja, eu não queria “sair da bênção”.

Então peguei o caminho de casa.

Mas percebi, perto da escola, um corre-corre. Aconteciaperto de uma bomboniere que ficava nas proximidades. Preferievitar essa movimentação, indo para casa. No caminho, liguei paraa minha mãe, dizendo que ia para casa e contando que alguémhavia praticado um assalto.

— Mãe — eu disse —, roubaram a bomboniere. Eu ‘touaqui no Gigantão Lanches, comprei um lanche e tô indo emborapra casa.

— Vem logo — ela disse, pressentindo que algo poderia acon-tecer.

Mas quando cheguei na frente da minha casa, lá estavam —uma viatura da polícia e o Golf vermelho do delegado.

Eu não fazia idéia de que, já nesse momento, o Bigode haviame apontado como um dos participantes no assalto, em que uma

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criança pequena fora ameaçada de morte, para que sua mãe abrisseo caixa da bomboniere.

Ao ver os dois carros, passei direto pelo quarteirão da minhacasa. Fui para um posto de gasolina, de um conhecido, AntonioCarlos. Dali liguei para casa. Ao telefone, minha mãe gaguejava,se recuperando do susto que o delegado havia dado nela. Contouque eu era suspeito do assalto e que alguém havia me apontadocomo tendo estado nas suas proximidades.

— Mãe, o que é que ‘tá acontecendo aí? — perguntei.

Cheguei a pensar que fosse alguma outra coisa qualquer, enão o assalto cuja movimentação eu havia testemunhado.

— Eu sei que não foi você — foi a primeira coisa que eladisse. — Liguei na lanchonete e confirmei o tempo que você fi-cou lá. Eu sei que você ‘tava lá, no horário que o delegado contouque foi o assalto.

— Mas mãe, eles ainda ‘tão aí?

— Não, eles já foram embora. Só vieram perguntar de vocêe disseram que quando você chegar é pra comparecer na delega-cia. Espera um pouco que o pai vai te buscar.

— Não. Eu tô aqui no BR e já tô indo.

Em casa, dona Izilda me perguntou o que eu tinha visto doassalto. Ela ainda parecia um pouco nervosa, mas aliviada de euestar de volta. Me lembrou que eu deveria ir à delegacia, mas eudeclinei. Se eles já tinham passado em casa, era certo de que que-riam me prender, e eu não seria voluntário para ir para a cadeia.

Só fui preso uma semana depois.

Vieram em casa com um mandado de busca e apreensãopara apuração de ato infracional, expedido pelo promotor. Foiuma terça-feira, 14 de novembro, às sete horas da manhã. Meacordaram.

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Abri a janela do meu quarto e vi um policial civil, de pistolaautomática na mão, em pé diante da casa da vizinha. Deixei ajanela aberta e fui para a porta. Vi na sala a Lucilene, oficial dejustiça, que veio trazer ciência do mandado. Fiquei sem ação.

Meu pai se levantou e pediu que chamasse o nosso advoga-do. Eu mesmo não soube o que dizer. Não ofereci resistência.Troquei de roupa, apanhei alguns pertences e me entreguei aospoliciais, depois me despedi de dona Izilda e do seu Francisco.Eles sabiam que eu nada tinha a ver com o assalto e confiavamque seria inocentado mais tarde. De minha parte, me sentia vazio,em choque.

Fui levado à delegacia, onde aprontaram a papelada paraque eu fosse para a cadeia de Itápolis. Mas primeiro fiz o examede corpo de delito, em um hospital. No caminho, vi que o mesmogrupo que havia me apanhado em casa estava diante da casa doRodriguinho. Mais tarde eu viria a saber que, ele sim, fora umintegrante do assalto.

O outro integrante foi o Bigode. Nunca soube quais foramas suas razões para me incriminar. Ele fez um acordo com a polí-cia, para ter algum relaxamento na prisão? Foi por inveja da recu-peração que eu vinha demonstrando? Por algum agravo que elesentiu, daquela vez que fora preso comigo, pelo Artigo 12 — queeu segurei?... Sei apenas que ele não ficou preso comigo.

E que eu estava preso por causa dele.

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Capítulo VI: Vai morrer!Capítulo VI: Vai morrer!Capítulo VI: Vai morrer!Capítulo VI: Vai morrer!Capítulo VI: Vai morrer!

Depois dessa prisão, compareci diante de um juiz, que cons-tatou que a minha internação na última clínica havia sido umacordo apenas verbal com a juíza substituta. Isso complicou umpouco a minha situação perante a lei, mas de qualquer modo meuspais e o Dr. Ronaldo conseguiram que eu fosse novamente para aGilgal.

Só que agora eu não me sentia bem. Estava revoltado porcausa da prisão injusta. Na minha mente, não me cabia pagar essadívida. Então fugi.

Fui preso mais uma vez, por causa de um mandado de bus-ca e apreensão, devido à fuga da clínica.

Quando cheguei à Cadeia Pública de Itápolis, vi que iriacomeçar uma longa e dura caminhada dentro do sistema. Já sabiaque aguardaria pelo menos uns dois meses na cadeia, e que de-pois seria transferido para alguma unidade da FEBEM.

Dei entrada na cadeia, suja como sempre. Passei pela revistade rotina e fui metido direto na cela chamada de “corro”, que éonde ficam os menores. Já havia um “alemão” morando ali, denome Alessandro. Fiz amizade com ele, que me contou estar pre-so por Tentativa de Homicídio (Artigo 129).

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Apenas uma semana mais tarde chegaram mais dois meno-res, prontos para serem encarcerados. Eu só ouvia a conversadistorcida e um zunzum pelo corredor, mas quando os dois seaproximaram das grades da cela, pude reconhecê-los — eram oTico e seu irmão Paulo. Os dois haviam acabados de ser pegoscom um tijolo de 135 gramas de maconha e estavam sendo en-quadrados em Tráfico de Entorpecentes (artigo 12). Ao entraremna cela, eles me contaram o que havia acontecido, e já ficaram àvontade, pois o Alessandro era gente boa e não os incomodoucom nada.

Foram passando os dias e fomos ficando cada vez mais “cole-tivos” (íntimos) dentro do xadrez. Agora estávamos morando emquatro pessoas na cela. Jogávamos baralho e conversávamos bas-tante, e o mais importante ali era que nós quatro éramos todosbem aceitos pelos demais na cadeia.

Mas Alessandro foi logo transferido e nós que sobramos fi-camos na expectativa de uma transferência, porque a Cadeia Pú-blica de Itápolis é ruim demais. Lá não existem Direitos Huma-nos. Mas não foi dessa vez que recebemos a transferência.

Permanecemos aguardando a próxima oportunidade, pen-sando qual de nós seria, até que chegou uma novidade na cadeia— um novo prisioneiro, relacionado a um caso que havia chama-do a atenção de todos.

Lá dentro nós ouvíamos rádio FM. Apareceu no noticiárioque a polícia estava à procura de uma quadrilha que havia estu-prado uma moça na frente do namorado e roubado um toca-fitasde um Santana Quantum, na estrada que vai para o Malosso, umcampo de futebol.

Uma gritaria vinda da frente da cadeia chamou a nossa aten-ção e também a dos outros presos. Alguns presos gritavam de den-tro de suas celas, exigindo que os novatos se identificarem, masnenhum deles falava nada, como se estivessem tentando se prote-ger de uma possível represália.

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Não demorou muito e o carcereiro veio dizer que acabaramde prender a quadrilha de estupradores, aquela que tinha apare-cido no rádio. Automaticamente espalhou-se essa conversa pelacadeia toda, criando assim um barulho infernal. Muitos presoscomeçaram a gritar, xingar, ameaçar e pedir para que viessem logopara dentro.

O barulho continuou por umas duas horas, até que os no-vos prisioneiros fossem definitivamente colocados para dentro.

Eram quatro pessoas e entre eles estava um menor, por nomede Zequias. Os seus comparsas eram maiores de idade: Fábio Cola,Zé Galinha e Joãozinho.

Todos estavam sendo presos por serem os autores dos crimesde formação de quadrilha (Artigo 288 do Código Penal), assalto(Artigo 157), extorsão mediante seqüestro (Artigo 159) e estupro(Artigo 213 do Código Penal). Segundo o que ficou claro, eleshaviam abordado um casal que estava transando dentro de umSantana Quantum no acostamento da pista. Abordaram, rende-ram o casal e começaram a vasculhar seus pertences e o veículo,atrás de valores; não encontraram nada ou não se contentaramcom o que acharam, e então colocaram os dois no porta-malas docarro. Dois dos elementos passaram para o Santana, ficando maisdois no Corcel em que eles haviam chegado. Os que permanece-ram no Corcel não tiveram participação direta no estupro, mas osdois que assumiram a direção do Santana friamente estupraram amoça, e fizeram o noivo dela presenciar toda a cena, mediante aameaça de um revólver calibre 38, que Zequias segurava aponta-do para sua cabeça. O noivo não agüentou e perdeu seus senti-dos, podendo apenas presenciar o momento em que Zé Galinhapraticava o estupro. Mas soube-se mais tarde que Zequias tam-bém o praticou, depois de encontrar mais um preservativo, queele utilizou, da mesma forma que Zé Galinha. Os ocupantes doCorcel, Fábio Cola e Joãozinho já haviam se separado, mas con-sentiram com o que seus parceiros viriam a praticar, tendo inclu-sive fornecido a arma.

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O Fábio Cola e o Zé Galinha foram colocados em uma celaexclusiva para eles, chamada de “seguro”, onde a pessoa fica pornão ser aceita pelos presos. É o modo de garantir a sua integrida-de física, no ambiente violento da cadeia.

No xadrez 2 foi colocado o Joãozinho, e para a nossa celaveio o Zequias, menor de idade. Logo que entrou todos nós noslevantamos e fomos em direção a ele, perguntar o porquê deleestar preso.

Quando ele deu a resposta, dizendo que era seqüestrador eque não tinha nada a ver com o ocorrido, eu o Tico e o Pauloolhamos um para o outro e saltamos sobre ele, agredindo-o comsocos e chutes, até que ele desmaiou. Paramos de agredi-lo e fo-mos conversar.

Enquanto isso o Joãozinho, que tinha ido para o xadrez 2,também já estava sofrendo as conseqüências, sendo punido pelalei da cadeia. Sofreu como todo estuprador sofre.

Pedimos para a carceragem retirar o estuprador da nossacela, mas eles não davam ouvidos, mesmo com outros presos tor-cendo descaradamente para que Zequias e o outro morressem,para que alguém assumisse a tarefa de assassiná-los, pois na lei dacadeia deveria ser essa a sua pena. Por sua vez, o Fábio Cola e o ZéGalinha permaneciam só os dois no xadrez 8, o seguro — massempre sendo atormentados com xingos e gritos ameaçadores.

— Vai morrerrrrrrr. Vai morrerrrrrrrrr…

No interior da nossa cela, Zequias recuperou os sentidos e nóscomeçamos a fazer uma espécie de tortura psicológica nele, até queele veio a confessar que realmente participou do estupro. E aindacontou detalhes — foi aí que perdemos a cabeça, ouvindo tanta bar-baridade da própria boca de um dos autores da violência, e acaba-mos desferindo mais socos. Na hora eu estava enraivecido com tudo,além de revoltado por causa da minha situação.

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Ele, ao receber os golpes, caiu lentamente como que estives-se com falta de ar e ficou encostado às grades. Nós nos afastamose o deixamos ali agonizando.

Dois dos carcereiros passaram pela cela, vinte minutos de-pois. Viram Zequias desacordado, e um deles disse, com a maiorfrieza:

— Já morreu?

Ninguém da cela quis responder. Então lentamente os doiscarcereiros do plantão do dia se retiraram. Logo em seguidaretornaram com uma escolta de, no mínimo, uns dez homens dapolícia civil, que invadiram a cela, encurralando-nos como ratosnos cantos. Pegaram o Zequias e o levaram para o pronto-socor-ro.

Lá ele chegou bem, seus ferimentos não eram graves e de-pois de uns cinco dias melhorou e teve alta. A carceragem, malici-osamente querendo ver um fim na desgraça, colocou-o novamenteem nossa cela.

Alegavam não ter cela especial para Zequias. Nem revista-ram a cela antes, para ver se havia facas escondidas — na verdadehavia e eles sabiam disso, mas foi justamente por essa razão que ocolocaram de novo lá.

O Tico ficou louco da vida. Não queria morar com um tipodesse, mas veja bem: qualquer atitude em benefício do estupradorpode fazer com que a população da cadeia se vire contra quemdefender o estuprador em qualquer situação. Éramos obrigados,de certa forma, a satisfazer a perversa disposição dos outros pri-sioneiros, de torturar o estuprador. Mesmo de fora de nossa celavinham “pedidos” para que o obrigássemos a dançar nu nas jane-las de nossa cela, enquanto os outros gritavam insultos e ameaçascontra ele.

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Frustrado com tudo isso e com o descaramento dos carcerei-ros, de o colocarem de novo junto com a gente, Tico começou aatirar mais uma série de socos contra Zequias.

Após ele ter apanhado várias vezes, Tico e eu decidimos fa-zer uma brincadeira para ver se ele entrava em pânico.

Nós o levamos até o “boi” (banheiro) e dissemos que ele es-tava sofrendo muito e que continuaria sofrendo enquanto estives-se preso pelo fato de ter cometido um estupro.

Então declaramos que acabaríamos com o seu sofrimentonaquele mesmo dia. Logo de cara ele entendeu que estávamosfalando da sua própria execução. A partir daí mandamos que fi-casse calado, e ele com os olhos carregados de lágrimas ficou ob-servando o que iríamos fazer.

Pegamos um enorme lençol e fomos em direção a ele. Malnos aproximamos e ele começou a implorar:

— Pelo amor de Deus não me matem, eu faço tudo quevocês quiserem, mas me deixem viver, por favor.

Em minha mente eu não tinha planos de assassiná-lo; ape-nas daríamos um susto nele.

Passamos o lençol em seu pescoço, mas dei um nó falso paraque, quando puxássemos o lençol, eu de um lado e o Tico dooutro, o nó desataria; mas ele não viu a forma que dei o laço.

Começou a entrar em pânico, chorava implorando, invoca-va a mãe, que sofreria muito. Foi assim por uns cinco minutos.

Comecei a sentir dó dele e decidi acabar com a brincadeira,e disse ao Tico que agora seria a hora, e disse “puxa”, gritei.

Ele puxou de um lado e eu do outro. O nó se desfez. Zequiasquedou pálido e com as pernas moles.

*

Hoje eu me pergunto o que o martírio do Zequias me trou-xe. A tortura desse rapaz, na cela, com o consentimento dos car-

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cereiros, exigida pelos outros prisioneiros, eliminou a dor da jo-vem estuprada, apagou a violência de sua memória? Com certezaela nem soube. Era tudo um jogo particular, encerrado entre quatroparedes, desfrutado por aqueles que estavam entre as muralhasda prisão, dentro de uma noção de falsa justiça, que servia apenaspara dar vazão às frustrações e ao sadismo de presos e carcereiros.

Hoje sei que o Estado, através das leis que são aprovadaspelos representantes da sociedade, é que se reserva o direito dapunição. Qualquer castigo violento exercido fora dos olhos da leié um crime. Mas ali, no cárcere, os únicos agentes do Estado pre-sentes eram os agentes prisionais. Nem por isso eles deixaram deincentivar a tortura, de modo quieto, mas tão insistente quanto osapelos cruéis dos outros presos.

Eu me pergunto se ter judiado do Zequias tornou-me umapessoa melhor. Do mesmo modo, a mesquinhez perversa dos car-cereiros, colocando-o de volta em nossa cela depois da primeiraagressão, tornou-os pessoas melhores, que realizaram algo pelasociedade?

Os policiais que me espancaram a coronhadas, na minhaprimeira prisão, se tornaram pessoas melhores por terem exerci-do essa violência? E aqueles que me colocaram no pau-de-araraou que me bateram, apenas para me “ensinar a ser um bom pre-so” — são eles pessoas melhores? Os funcionários da FEBEM,sempre com pedaços de pau nas mãos e o desejo aberto de usá-loscontra os internos, são eles melhores, mais humanos? O que ostorna diferentes do patrão da droga, que manda quebrar as per-nas do viciado que deve a ele?

Você convidaria cada um deles, cada um de nós envolvidosnesse círculo de violência, para assistir a um jogo de futebol emsua casa, ou para sermos padrinhos dos seus filhos?

Talvez aqueles que realizam atos violentos supostamente emnome de um código não escrito de vingança, em nome da socie-

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dade, sejam tão desprezados quanto aqueles que sofrem essa vio-lência. Ou tão maculados quanto os que a desejam.

Talvez estejamos todos de mãos dadas, girando em uma ci-randa sem sentido que não elimina dor alguma, não traz justiçaalguma ao mundo, mas apenas reafirma e propaga essa mesmaviolência, mantendo a sua lembrança e a sua prática vivas e lan-çando-as para o futuro, para que você e eu, para que os meusfilhos e os nossos filhos possam vir a sofrer com ela, amanhã.

Alguém tem que romper essa ciranda.

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SEGUNDA PARTESEGUNDA PARTESEGUNDA PARTESEGUNDA PARTESEGUNDA PARTE

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EM BRANCO

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Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.Capítulo VII: O Código Penal Não-Escrito.

Permaneci com o Zequias e os outros durante quinze dias, efui transferido para a unidade da FEBEM do Brás. Como o des-tino do estuprador era a FEBEM, eu já sabia que a encrenca queele representava não terminaria por ali, e que provavelmente tor-naria a me encontrar com ele.

A FEBEM do Brás...

Lugar de desespero, de aflição, de torturas físicas que pudepresenciar, algumas que eu senti, a outras assisti, num ambientede medo, onde os rostos fechados dos funcionários refletiam-senos dos internos sentados no chão. Lugar que comportava umnúmero elevado de internos que tinham todos como única saídao apego e dedicação dos seus familiares. A visita porém era apenasde cinco a dez minutos, por falta de espaço. Também argumenta-vam que, por não haver espaço, não havia lugar para guardarnossas cartas e éramos obrigados a destruir a única coisa que haviaali de pessoal para nós.

Durante vinte e oito dias vivi o verdadeiro inferno da UAIdo Brás, com uma tentativa de rebelião frustrada, e menores apa-nhando de pauladas por qualquer coisa… A falta de higiene cau-sava coceiras e sarnas, menores se recuperavam de ferimento a

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bala entre nós, alguns com pinos de metal pelos braços, pernas…Enfim, sem quaisquer condições dignas e humanas. Na UAI todoo controle sobre os internos se dava na base da paulada. Não cul-po apenas os funcionários, pois o nosso governo não dava condi-ções humanas para que trabalhassem com segurança e com boaremuneração. Assim, acabavam passando todo o estresse para omenor internado. Por outro lado, sem dúvida havia o funcionárioque só gostava de dar pancada, que tinha prazer em ferir o outroindefeso.

Enfim, se eu generalizasse sobre os funcionários serem todosruins, estaria cometendo um erro. Conheci pessoas boas e profis-sionais da melhor qualidade. Há aquele que se comunica só napancada, há aquele que já não fala nada e há aquele que é umprofissional imparcial e justo. Desse último tipo conheci apenasuma dúzia, em todas as unidades por que passei, nenhum delesna UAI.

Após vinte e oito dias, chegou mais uma transferência. Sofrimomentos de tensão impostos pelo funcionário a todos nós, ao lero nome dos que seriam transferidos. Os nomes anunciados res-ponderiam “presente, senhor”, bem alto.

Meu nome foi chamado. Fui para uma fila, com as mãospara trás e a cabeça baixa, como de costume.

Peguei meus pertences que tinham sido recolhidos quandocheguei, e fui levado, juntamente com os outros, de um prédio aoutro. Nisso, já me vi na UAP 6 — Unidade de AtendimentoProvisório 6 —, que fica no pavilhão do prédio ao lado da UAI.Agradeci a Deus por estar saindo daquele lugar, mas esperavaque estivesse indo para um local melhor. Na verdade, foi apenasum pouco melhor.

Recolheram nossos papéis de entrada e nos levaram para asala de TV, que era enorme. Um funcionário começou a falarconosco, para explicar as regras da casa, que ali não eram muito

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diferentes das UAI, mas que só dependeria de nós passar nossosdias ali numa boa.

Ali também era mão para trás, sim senhor e não senhor, eandar em fila.

— Mas vocês podem erguer a cabeça — ele prosseguiu, —Troca de roupa é de dois em dois dias, tem uma cama para cadaum, vai ter um banho adequado, mas só vai depender de vocês.Se quiserem veneno aqui também é veneno, nós podemos tornaro lugar ruim.

“Vocês terão que estudar, cada um em suas séries, ficarão nopátio o dia todo, mas é sentado e não circulando, porque o pátioé pequeno. Pode entrar bolacha, material de papel para fazer ar-tesanato e cigarro, mas de acordo com o comportamento do diavocês fumam, caso contrário não fumam.”

O fumar e o não fumar se resumiam a um isqueiro que nãose fazia presente em nossas mãos, mas sim nas mãos dos funcioná-rios.

Me trataram bem quando cheguei, mas continuei na mi-nha.

Conforme foram correndo os dias, fui conhecendo melhoro lugar e o tratamento dos funcionários; encontrei também ali naUAP 6 o Alessandro, que ficou preso comigo na cadeia de Itápolis,no interior.

Fazíamos artesanato e faxina, e fumávamos cigarro. Era pos-sível conversar. Era um pouco melhor que a UAI, mas se pisásse-mos na bola, levávamos paulada também.

Fiz muitas amizades, me adaptei, me conformei melhor coma situação. Alessandro foi transferido para a UI 19, no Tatuapé, eeu fiquei apenas com os colegas que havia conhecido ali.

Já ia um mês que eu estava na UAP 6, quando chegarammais internos transferidos. Entre eles estavam os irmãos Tico ePaulo, a quem passei um pouco das coordenadas de como funcio-

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nava tudo por ali, para não acontecer com eles nada de inespera-do.

E eles vieram com uma notícia ruim, dizendo que, assim quesaí, o Tico acabou dando umas cinco facadas no Zequias, que foiparar no hospital. Um boletim de ocorrência foi aberto e o meunome estava envolvido. Disse que Zequias não morreu e que esta-va na UAI, e que a qualquer momento seria transferido.

Fiquei pensativo, após ter recebido a notícia, e fiquei na ex-pectativa de encontrá-lo, o que não demorou muito.

*

Alguns dias depois, quando Zequias chegou à unidade eulogo o vi e fiquei ansioso para poder falar com ele — para vercomo estava fisicamente e saber dele alguma coisa a respeito doBoletim de Ocorrência que, eu já sabia, tinha sido aberto depoisda minha transferência. Mas quando ele me viu, não quis se mis-turar e pediu para um funcionário destacá-lo e deixá-lo ficar pró-ximo do funça.

Quando explicou as suas razões, automaticamente o funcio-nário se levantou e solicitou o meu nome, o do Tico e do Paulo.Respondemos e ele nos disse para acompanhá-lo. Fomos levadospara uma sala da coordenadoria. Logo chegaram mais uns cincofuncionários. Começaram a perguntar o que aconteceu entre nóse Zequias e, mal começamos a explicar, foram nos cobrindo depancadas — todos os funcionários bateram na gente até que fi-cássemos os três caídos, gemendo e sussurrando de dor.

— Aqui quem manda é a gente, e não vai ter nenhum en-rosco entre vocês e o outro que acabou de chegar! — gritaram.

Mandaram a gente ir tomar banho, para aliviar as marcasdo corpo, mas não conseguíamos andar de tanta dor. Fomos nosarrastando como aleijados pelo chão. Chegamos no banheiro efomos trancados lá. Ficamos mais ou menos uma hora debaixo dochuveiro, porém sentados no chão.

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Quando abriram a porta do banheiro, já conseguíamos le-vantar, ainda com muitas dores. Fomos para os dormitórios, e lácolocaram a gente para deitar. Na cama ficamos três dias, porquenão conseguíamos andar de tanta dor.

Ao voltarmos para o pátio e o pessoal nos viu, vieram per-guntar o que havia acontecido e se estávamos bem.

Contamos o que aconteceu e permanecemos ali sentados nopátio. Veja que não é possível ficar calado, deixar de passar as in-formações que são exigidas pelos outros internos. O que eles pro-curam especialmente são contradições na sua história — afinal,na FEBEM o sujeito não entra com um B.O. Então, depois quefomos questionados, logo todos começaram a observar uma opor-tunidade de pegar o Zequias sozinho, e assim darem o troco. Nãodemorou a acontecer — quando viram que não havia funcioná-rio por perto e Zequias estava sozinho no banho, decidiram agre-di-lo.

Estavam mais ou menos uns trinta menores debaixo dos chu-veiros, e desses trinta, uns dez bateram no Zequias — no quechamam de “trem-bala”. Zequias começou a gritar. Isso chamoua atenção dos funcionários, que correram para o banheiro e oencontraram com o rosto sangrando e o levaram para a enferma-ria. Foi constatado que ele havia perdido dois dentes e tivera setededos quebrados.

Já de imediato o funcionário pediu para reunir todo o pes-soal, mas ninguém se apresentou. O funcionário disse:

— Ah, é estuprador mesmo.

E deixou o caso pra lá. Mas eles sabiam que o que ocorreufoi devido à surra que levamos. Então, eu penso, e quanto à surraque eu e os outros havíamos levado? Serviu para quê? Apenas paraos funças manterem a imagem da UAP-6 como uma “unidadeveneno”, como costumavam chamar?

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Unidade veneno quer dizer um lugar duro, severo, violentoe rígido como na época da ditadura militar. Parte da estrutura daFEBEM deve muito àquele período autoritário, repressivo, de“exceção” aos direitos individuais. Em unidades como esta, a pan-cada é uma ferramenta de trabalho, usada e abusada constante-mente.

Na UAP, eu ainda não havia recebido qualquer visita de meuspais, mas eles me mandavam guloseimas e cigarros por Sedex, atéque chegou o dia de eu receber minha primeira visita. Minhamãe veio me ver.

Fui levado para a parte térrea do prédio e lá encontrei donaIzilda, me esperando para me abraçar e ver como eu estava. Nósnos abraçamos e choramos de emoção. Não preciso dizer quantasaudade sentia dela e de meu pai, que estava mal de reumatismo ediabetes, nessa época.

A primeira notícia que ela me trouxe foi a de que meu irmãotinha ganho a liberdade. Ele fora preso logo após a minha prisão— e chegamos a nos encontrar na cadeia lá no interior. Isso foiuns dez dias após eu ter sido encarcerado. Ele fora pêgo em fla-grante, por tráfico de entorpecentes. Foi uma experiência estra-nha. Ele foi preso perto das nove da noite. Naquele dia eu estavadormindo, com muita dor de cabeça, e fui despertado às três damanhã pelo ruído de grades sendo abertas e fechadas. Curioso,subi na ventana e tentei enxergar o que estava acontecendo nosoutros xadrezes. Vi alguma agitação no X-7, onde havia um tele-visor ligado; contra a luz do monitor, eu podia ver pessoas andan-do na cela — uma das dez daquela cadeia. Acredite ou não, masreconheci Nenrod por sua nuca. Comecei a gritar, de puro deses-pero.

— Nenrod! Nenrod!

E o vi olhar para trás, assustado, à minha procura. Ele seaproximou da grade, e eu disse:

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— O que aconteceu?

Ele fez sinal com os dedos. Primeiro um indicador para cima,depois dois dedos em “V”: 12. Uma prisão por Artigo 12.

Só pude conversar com ele porque eu era bem visto na ca-deia e sabia que no dia seguinte não teria de dar grandes explica-ções da minha razão de ter acordado todo mundo com a minhagritaria.

— E agora, o que é que eu vou fazer? E o Lincon, como elevai ficar? — Lincon é o nome do filho dele, que então tinha unssete anos. — E a minha mulher, e o pai e a mãe, todo mundo vaiter que vir aqui, visitar a gente?

Como ele ainda não conhecia a “lei” da cadeia, eu disse aele, já conformado com a sua presença na prisão:

— Você pega as coordenadas aí, a lei...

— Mas que lei? — ele perguntou.

— A lei daqui de dentro. Aqui a gente tem uma lei. — Quemvai te passar essa lei é o Roy. ‘Cê pergunta pro Roy. Então medespedi dele: — Olha, eu vou descer agora, porque ‘tá muitotarde. Amanhã a gente conversa na hora que você sair pra o ba-nho de sol, no pátio.

— Não, não. ‘Pera aí. Não tem jeito de eu morar aí com‘ocê?

— Amanhã a gente troca idéia.

O meu medo era de que a nossa conversa irritasse ainda maisos presos, por isso a brevidade. E podia perceber no tom de vozdele o quanto ele estava assustado e envergonhado com tudo. Aoouvir isso, a minha própria agitação amainou — o mais impor-tante era que ele se integrasse o mais rápido possível ao esquemada cadeia, para evitar encrenca com os outros. Mas não deixei deperguntar:

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— ‘Cê tem cigarro aí? ‘Cê tá com fome? Tá precisando dealguma coisa?

— Só tenho dois ou três. O resto eles quebraram lá na fren-te...

Isso queria dizer que, na admissão, os carcereiros haviampartido os seus cigarros, para averiguar se havia algum tipo deentorpecente dentro deles.

— Eu vou te mandar então — eu disse. — Uns cigarros,umas bolachas e um miojo pra você comer.

E ele, ingenuamente, perguntou:

— E quem que vai trazer?...

— Chama o Roy — eu disse. — Ô, Roy. Segura que eu voulançar a tia.

E joguei o chinelo amarrado num fio de barbante trançado.Era como jogar de um lado a outro de uma rua.

Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei fumando umcigarro atrás do outro. Comigo, na época, ficava apenas oAlessandro “Alemão” Ambrósio — que havia despertado antes demim para o barulho das grades, e descoberto com o carcereiroque era o meu irmão que estava chegando. Ele tentou me acal-mar, conversando comigo, sobre o futuro das nossas vidas. Eusabia que a pena mínima para o 12 era de três anos e quatro me-ses — a máxima de quinze...

Nós nos separamos quando fui enviado para a FEBEM, pas-sado apenas um mês em que estivemos juntos na Cadeia Públicade Itápolis. Mais tarde, cerca de dois meses, nosso advogado, oDr. Ronaldo, conseguiu que ele respondesse à acusação em liber-dade. Afinal, ele tinha bons antecedentes, tinha profissão — erafuncionário público e motorista de caminhão. Nenrod conseguiuaté uma declaração assinada por todos os seus colegas, atestando asua boa conduta.

*

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Agora minha mãe vinha me trazer essa notícia, de queNenrod iria responder em liberdade. Fiquei muito feliz.

Minha mãe explicou que o seu Francisco estava um poucoruim ainda, mas que logo melhoraria. Na verdade, ele estava in-ternado com problemas de saúde, como eu viria a saber mais tar-de.

Permaneci uma hora com minha mãe, mostrando os artesa-natos que tinha feito para ela — algumas cestinhas, porta-retratos— e vi no seu rosto o sorriso que ela deu quando a presenteei comtudo aquilo.

— Eu estou bem aqui, mãe — contei. — Aqui não temproblema, não. É tudo calmo, tudo tranqüilo. Não tem perigo derebelião, nem de ninguém matar ninguém.

Ela, claro, sabia da violência da FEBEM pelos jornais e pelatelevisão. Mais ainda pela dona Lourdes, que é a mãe do Rodrigo,um interno com passagem pela UAP-8.

— ‘Cê não precisa se preocupar, que não vai ver nada natelevisão, sobre esta unidade.

Esgotou-se o tempo. A emoção mais uma vez me pegou,abracei a dona Izilda e me despedi. Com lágrimas nos olhos, elaficou me observando até que eu desaparecesse no final do corre-dor.

Quando voltei para o meu pavilhão, me senti mais aliviado,calmo, como se tivesse sido abastecido de emoções renovadas, comas notícias da família.

Mas no fim e a cabo, recebi apenas essa visita, mesmo por-que na semana seguinte surgiria mais uma transferência: agora euiria para o IEN — o Internato Encosta Norte. Diziam que lá erabom e que muitos internos pediam suas transferências para o IEN.Esse internato era bem falado do lado positivo, os inúmeros cur-sos profissionalizantes existentes ali.

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Chamaram-me e fui. Apenas eu e mais um recebemos a trans-ferência.

Despedi-me rapidamente do Tico e do Paulo, porque ostransferidos costumam ser chamados sem aviso.

Estávamos no Brás e tínhamos que ir até a Zona Leste de SãoPaulo. Fomos colocados em uma perua Toppic, e seguimos rumoà unidade do IEN.

*

Após uma viagem de uma hora e meia, chegamos. A entra-da das instalações era tomada pelo verde, bem conservada pelosintegrantes do curso de jardinagem. Fomos indo e pude notarque o lugar era bem organizado, a população era bem menor.

Fui levado para a coordenadoria, junto com o outro transfe-rido, para conversarem com a gente. Mas desta vez a conversa foibastante diferente daquela das demais unidades. Quem me rece-beu no IEN foram o coordenador, Sr. Edivaldo, e o Sr. Balbino.Disseram que seríamos chamados pelo nosso nome, que todos alieram tratados com respeito, mas que deveríamos responder comrespeito também; disse que havia um monte de curso para fazer eque a iniciativa de escolher os cursos que queríamos fazer serianossa.

Fomos revistados, como de costume, para entrar nas alas daunidade, e fomos levados para conhecer o espaço em que ficaría-mos. Jefferson, o outro rapaz transferido, foi para o Módulo 4; eufui para o Módulo 2. O Sr. Edivaldo disse que eu iria ficar emobservação por uma semana, para depois participar e ser inseridoem alguma atividade da casa. O mesmo foi dito ao Jefferson.

Entrei no Módulo, cheguei meio esperto e ligeiro, porque ointerno tem que “saber chegar”. Fui entrando com meus poucospertences nas mãos. Os outros internos já foram se aproximandopara saberem a meu respeito, o que eu havia feito e em qual arti-go estava enquadrado, por qual unidade passei e se tinha algum

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inimigo. Disseram que eu ficasse à vontade. Se quisesse, poderia irtomar um banho — me ofereceram sabonete, toalha, roupa, quepoderia usar até chegarem as minhas.

— Depois, quando todos estivermos reunidos — me disse-ram —, vamos conversar e te passar como funciona o nosso siste-ma aqui dentro, o Código Penal Não-Escrito.

Pedi licença e me retirei para ir ao BOI. Percebi logo que alihavia mais higiene do que nos lugares por que passei, retirei mi-nha roupa e fui para a ducha tomar um banho, mas agora eupoderia ficar embaixo da água o tempo que quisesse. Permanecimais de vinte minutos na ducha e depois sai e fui enxugar-me,vesti as roupas dadas pelos meus novos companheiros de batalha,uma blusa cedida pela unidade. Em seguida fui comer.

Terminei minha refeição na mesa e fui para um pequenopátio dentro do módulo, para fumar um cigarro. Os outros inter-nos estavam quase todos no banheiro aguardando a sua vez.

Quem se aproximou de mim para conversar foi Wellington,de vulgo “Peruíbe”. Preso e internado por homicídio doloso, comuma tatuagem estilo tribal nas costas. Ele veio lentamente emminha direção, me cumprimentou, perguntou qual era a minha“quebrada” — que quer dizer a cidade ou bairro de origem dapessoa. Respondi que morava no interior, na cidade de Borborema,e ele disse não conhecer.

Aproveitando a prosa, já fui logo perguntando quais eramas leis internas, o que se pode fazer e o que não pode. O que eledisse foi mais ou menos o seguinte:

O CÓDIGO PENAL NÃO-ESCRITO

Qualquer transgressão dessa lei, será punível com agressõese isolamento verbal (ninguém conversa com quem falhou).

Aqui não se fala palavrão para ninguém, se disser será co-brado pelos demais.

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Em dias de visita não se coça nenhuma parte do corpo nemse levanta a camisa.

Tudo que quiser, pergunte se há condições e agradeça. Porexemplo: “Tem condições de você me emprestar uma caneta?”Recebendo a caneta nas mãos, tem que responder “Agradecido”.

Na mesa ninguém conversa e não se faz higiene bucal (colo-car o dedo na boca ou passar a língua nos dentes).

Eu, a partir daquele dia, começava a fazer a faxina do boi —uma tarefa que seria a minha até a chegada do próximo. Concor-dei, porque já conhecia amplamente a lei da cadeia, mas tinhaque me fixar nas leis dali, pois ali é que iria viver até a minhaliberdade.

Ouvi tudo com muita atenção para não cometer erros, poisquem comete erros lá dentro é considerado pilantra e é excluídopelos outros internos, além de sofrer suas punições — como umasurra pelos próprios companheiros ou levar um trem-bala. Tudoisso eu sabia, mas queria conhecer as leis que regiam o espaço,pois cada lugar tem uma lei.

Recebi as coordenadas necessárias e fiquei pensativo, refle-tindo sobre o que Wellington havia me dito.

Rapidamente fui conhecendo melhor o restante da rapa-ziada do meu Módulo, alguns simpáticos, outros bem-humorados,uns de rosto fechado — tem de todo o tipo, mas você só não podese iludir com a aparência de ninguém.

Permaneci na mais pura cautela, pois ali, e em qualquer ca-deia, temos que refrear a língua — uma palavra impensada nãotem volta.

Mas não fiquei pensando nesse lado negativo. O lugar emque agora estava me transmitia uma energia positiva, por ser dife-rente o tratamento, por ser melhor a estrutura física, e pelas atitu-des positivas da maioria dos internos, muitos deles com perspecti-vas de um futuro melhor e dispostos a darem conselhos.

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As refeições também eram diferentes: já não vinham emmarmitex, por serem produzidas ali mesmo. No período diurnohavia um cozinheiro, mas no período noturno as responsabilida-des da manutenção da cozinha eram passadas aos internos.

Em outros lugares por que passei jamais fora dada tamanharesponsabilidade aos internos. Facas, estiletes e outros objetosmetálicos encontravam-se ao alcance de nossas mãos a todo ins-tante, e durante toda a minha internação no IEN nunca vi acon-tecer nenhuma tragédia com objetos cortantes. Apenas internoscom mais de três meses na unidade participavam das atividadesda cozinha; internos mais seguros psicologicamente, internos deboa conduta.

Conforme fui sendo observado, foram me atribuindo umpouquinho de responsabilidade, para ver como me saía.

Após umas duas semanas, fui chamado até a sala das assis-tentes sociais, para dar início ao atendimento psicológico. Medesignaram a psicóloga Flávia.

Passei pelo meu primeiro atendimento. Meio acanhado, nãofalei muito.

Conforme os dias foram passando, fui me adaptando me-lhor à unidade, e os coordenadores, por suas observações, decidi-ram inserir-me nos cursos de Panificação e Confeitaria, e permiti-ram que participasse das atividades esportivas na quadra de futsal.Havia até preparador físico, que era o Sr. Fernando.

Entrei no ambiente da casa e esqueci o mundo lá fora: ter-minei o curso de Panificação & Confeitaria e comecei na compu-tação; passei a dedicar-me às atividades da unidade. No períodona manhã, fazia o curso de Panificação e jogava futebol na qua-dra. Almoçávamos ao meio-dia e à uma e meia da tarde íamospara as aulas do Telecurso 2000. Estudávamos até às quatro horasda tarde, e depois vinha o lazer de jogar futsal até às seis; depoisera hora do banho para servir o jantar.

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Era um tratamento humano, com igualdade para todos. Sealguém reclamasse sem razão, os próprios colegas advertiam e di-ziam que se não estivesse bem ali, então era melhor pedir transfe-rência, porque a maioria não seria prejudicada por causa de umindivíduo que não queria nada com nada.

Quando digo que esqueci o mundo lá fora, falo das másinfluências e da ansiedade, porque vi que isso já não mais acres-centava ao meu caráter. Passei apenas a pensar na minha família.Portanto estava muito feliz, porque recentemente meu irmão ha-via saído da Cadeia de Itápolis, e meus pais agora estavam maisanimados, mesmo eu ainda estando preso. Por telefone eu conse-guia manter contato com eles, e podia sentir a sua felicidade. Issome contagiava e a cada dia que passava eu me enchia de esperan-ças de um futuro melhor.

Passado um mês, recebi a visita de meus pais. Eles já chega-ram sorrindo. A mãe chegou me apertando num abraço caloro-so, como um cobertor que aquece quem está com frio. Meu paitambém me passou muita energia positiva, mas só fiquei um pou-co triste por vê-lo arrastando a perna por causa do reumatismoque havia se agravado. Mas a alegria de vê-los não deixou que atristeza tomasse conta de mim.

Permanecemos mais de quatro horas juntos, pois agora a vi-sita era mais prolongada. Podíamos ficar juntos quase o dia todo:durava das 9:00h às 17:00h.

Conversamos bastante. Eles ficaram mais tranqüilos em sa-ber que eu estava em um bom lugar, e foram embora mais levespor saberem que eu estava bem. Mas não podíamos segurar aemoção de chorar em cada despedida.

Continuei a ser firme e sempre acreditando que, em breve,conquistaria a minha liberdade novamente e construiria uma car-reira, pois já havia despertado em mim a vontade de ser doutorem direito. Em razão de tudo o que havia feito e das punições queestava sofrendo, eu buscava nos livros do Código Penal uma solu-

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ção para o meu problema. Tentava encontrar alguma lacuna jurí-dica que facilitasse a conquista da minha liberdade. Por isso revi-rava nos livros e, enquanto eu ia adquirindo conhecimento sobreo Direito, aumentava cada vez mais a vontade de me formar eatuar como advogado. Queria beneficiar a mim mesmo, mas tam-bém desejava fazer valer a justiça, que só via ser vilipendiada e malempregada ao meu redor.

Os dias e as semanas foram passando e meus pais me visita-vam a cada dois meses. Fui engordando, e com o atendimentopsicológico fui abrindo minha mente, já conseguia refletir e com-preender com mais clareza. Aprendi a contornar diversas situa-ções, graças ao atendimento psicológico com a Flávia.

Cada vez mais eu aumentava minha auto-estima. Os funcio-nários começaram a notar minha dedicação para com os cursos, eem meus horários vagos eu fabricava meus artesanatos manuais— barcos de madeira, quadros, abajures, porta-retratos, pulsei-ras. Mas na maioria das vezes eu não tinha material para produzi-los, então fazia para os outros e cobrava o material para fabricaros meus. Às vezes, quando tinha visitas, eu dava o artesanato paraa minha mãe. Outras vezes eu vendia e trocava com acessórios eutensílios para o meu uso e consumo, como pasta de dente, cigar-ros, sabonetes ou mais material para o artesanato.

Sempre participei dos treinamentos de futebol. Uma vez adiretoria até marcou um amistoso contra outra unidade, a Uni-dade de Internação 4, do Tatuapé.

Foram semanas de preparo físico e psicológico até a nossalocomoção, não podíamos esquecer que tínhamos sido escolhidosa dedo para participarmos. Não era simplesmente aquele que jo-gava bem; tinha de haver uma conciliação, física e, acima de tudo,psicológica. Não é qualquer interno que vai para a parte externada unidade. Antes devíamos passar por uma rígida observação dacoordenadoria; ou seja, era necessário obter a confiança dosdiretores e era preciso demonstrar, no dia-a-dia, com atitudes

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e ações. Eu e mais um grupo de seis jovens internos demonstra-mos sermos dignos dessa confiança e fomos jogar. Jogamos e ga-nhamos.

Enfim, já estava na casa há quase cinco meses e não haviacausado nenhum tipo de problema. Sempre fui bem visto portodos, tanto pelos funcionários como pelos internos. Ficava naminha, cuidando dos meus afazeres e de minhas responsabilida-des.

Era raro a tristeza invadir meu coração. Eu sempre manti-nha meu sorriso no rosto, com muita energia positiva. Ao mesmotempo, tinha o poder de contagiar quem estava ao meu redor. Omeu relacionamento com os internos, graças a Deus, sempre foidos melhores, e até aquele momento eu não havia me metido emnenhuma confusão, pois sempre evitei conversinhas paralelas so-bre outros irmãozinhos internados, porque para mim o verdadei-ro homem é aquele que é transparente, capaz de dizer em seurosto o que sente e o que acha. Mas infelizmente muitos só o di-ziam após virar as costas; mas tudo bem, tipos assim sempre vãoexistir.

Havia alguns que gostavam de um leva-e-tráz de informações,apenas para semearem contendas e brigas entre os irmãos. Mas énessa hora que se tem que ser esperto e não confiar em ninguém.Principalmente evitar problemas, porque sempre há uns caras muitotraiçoeiros e invejosos. Mas também há sempre algum amigo e maisalguns em quem dá para se confiar, desconfiando.

O ambiente na unidade era de alto astral. No período no-turno, os funcionários passaram a desenvolver atividades de lazerno pátio da unidade, — jogos de dominó, truco, banco imobiliá-rio. Até fazíamos um pequeno torneio de módulo contra móduloe os vencedores ganhavam uma Coca-Cola cedida pelos funcio-nários.

Com o bom andamento da unidade (ausência de proble-mas de comportamento e de rebeliões), passamos a conquistar

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inúmeras regalias. Quando fazia calor sempre apareciam algunssorvetes para a gente, como forma de recompensa pelo bomcomportamento.

Logo, com os meus seis meses no IEN, passei a ter mais tem-po livre, por ter concluído os cursos disponíveis que me interessa-vam. Na parte da manhã, ficava fazendo artesanatos manuais outocava violão com o coordenador Balbino — quando ele trazia oviolão. Sempre fui apaixonado por violão, pois para mim serve deterapia — automaticamente tenho uma sensação de paz e calma.

Após algum tempo, essa rotina de não fazer nada começou ame causar ansiedade e desejo de ir embora. Consegui perceberque isso não era bom, então pedi para o funcionário Sr. Pereirame deixasse participar do curso de jardinagem, para que eu pu-desse distrair a cabeça ocupando meu tempo. Ele me inseriu nocurso.

Como sou nascido e criado no interior, sempre gostei deatividades que mexem com plantas, hortas, terra e enxada. Soudaquele tipo que prefere o campo, e meu pai me ensinou muitascoisas do campo. Creio que esse gosto deve ser por influência fa-miliar.

Iniciei o curso, Não era bem um curso, mas uma espécie deterapia ocupacional. Passei a cuidar das plantinhas do jardim dafrente da unidade, as mesmas plantinhas com que simpatizei eque tinham me dado uma sensação de alívio quando cheguei.Afirmo que cuidei com muito amor e carinho, para que os próxi-mos irmãozinhos que chegassem pudessem sentir a mesma sensa-ção que senti: paz.

Somente circulávamos pela unidade acompanhados de umfuncionário. No caso do curso era o Sr. Pereira que nos acompa-nhava. A nossa turma era composta apenas por quatro jovens,todos do interior.

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Após alguns dias, circulávamos livremente pela unidade, poisconquistamos a confiança de todos. Ninguém estava com o intui-to de fugir, porque se quiséssemos não seria difícil.

Todos queríamos voltar para casa, embora ali fosse um lugarbom. Ninguém seria capaz de cometer a besteira de tentar umafuga. Conversávamos bastante a respeito disso. Não valia a penaporque já havíamos percorrido quase toda a nossa caminhada, eisso não era mais do nosso feitio, porque estávamos todos psicolo-gicamente firmes.

Trabalhávamos cuidando das flores ao lado dos portões quedavam acesso à liberdade, acesso ao mundo exterior. Era gostosoficar observando o movimento dos portões se abrindo e, quandose abria, nós quatro ficávamos olhando e falando um para o ou-tro:

— Quando será que vai ser a nossa vez? Será que vamos con-seguir chegar até o final?

Um dizia para o outro:

— Nós vamos conseguir, só mais um pouco de paciência efé que a nossa vez chega.

Assim a gente conversava sobre o futuro, sobre o que fazer,em que trabalhar, erros para consertar; enfim, fazer tudo de bomque ainda não tínhamos feito.

Sonhávamos com uma vida melhor.

Os dias foram passando. O final de ano estava se aproxi-mando, e o juiz do foro do Brás pediu meu relatório. Me recordoque era o mês de novembro, mês de meu aniversário. Fizerammeu relatório — chamado de “conclusivo” — e o enviaram parao Juiz.

Geralmente a resposta vem em dez dias, e eu permaneciaguardando. Passaram-se dez dias e minha resposta não veio; pas-saram-se quinze e nada; completaram-se vinte dias e minha res-posta ainda não havia chegado. Comecei a ficar desesperado com

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medo de o juiz ter negado minha liberdade. Há casos semelhan-tes ao meu em que o juiz segura o adolescente por deduzir nãoestar recuperado, ou pela gravidade do ato infracional.

A ansiedade começou a tomar conta de mim. Era fim deano e eu desejava muito ir para junto de minha família. Mal rece-bia visitas devido às condições financeiras e à doença do meu pai,e eu queria voltar para a casa. Estava bem e queria voltar a teruma vida normal, porém a liberdade não dependia de mim, masdo juiz.

Mal sabia eu que faltavam apenas dez dias para que os pa-péis de minha liberação chegassem. Já fazia cerca de vinte e cincodias que eu estava aguardando. Eram umas cinco horas da tarde,eu tinha acabado de tomar banho e pretendia assistir à novelaMalhação, mas antes tinha que fazer minha faxina, que era lim-par o pátio.

Enquanto trabalhava, pedi a um outro interno, vulgo “Bo-quinha”, que pegasse uma maçã que estava na fruteira do refeitó-rio — era a sobremesa do almoço e eu ainda não tinha comido.Pedi a ele, por favor, para pegar o alimento, e ele pegou. Mas aoinvés de entregá-la em minha mão, atirou-a com força e maldadecontra o meu peito. Foi aí que não agüentei e revidei com o cabodo rodo, dando-lhe uma paulada em sua testa, e ali mesmo elecaiu. O cabo se quebrou, ficando um pedaço pontiagudo emminha mão, e quando caminhei para o lado que ele caiu, os ou-tros irmãozinhos me seguraram e não cheguei a atingi-lo nova-mente. Ele já estava desmaiado. Foi o maior tumulto — os fun-cionários invadiram em massa o módulo, mas já estava tudo con-trolado. Ele não devia ter feito o que fez, e eu também não, masfiquei irado no momento, não pensei e revidei. Por outro lado, senão tivesse revidado, os outros internos que testemunharam a si-tuação poderiam interpretar qualquer passividade da minha par-te como fraqueza, e eu teria de enfrentar alguma outra complica-ção no futuro.

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Ele foi levado para a enfermaria e eu para a coordenadoria.O Sr. Balbino começou a me reprovar pela minha atitude e mefez um monte de perguntas. Não respondi a nenhuma delas, edisse que só falaria na frente do Boquinha, para depois não dize-rem que delatei alguma coisa, porque mesmo estando recupera-do, eu era coagido pelas leis dos internos — eu tinha que cumpriro Código Penal Não-Escrito, a lei da cadeia.

Depois eu entraria para dentro novamente e, se falasse algu-ma coisa indevida, poderia sofrer as conseqüências. Não estou di-zendo que concordo com as leis dos internos privados de liberda-de, apenas digo que não poderia contrariá-las, pois poderia serpunido pela massa de internos, até com a morte.

Permaneci na coordenadoria umas duas horas, aguardandoo Boquinha sair da enfermaria, para ir até a coordenadoria e pôra história a limpo.

Ele foi levado pelo Sr. Edivaldo até lá. O Sr. Balbino come-çou a perguntar ao Boquinha o que havia acontecido, mas elenão queria falar. O Sr. Edivaldo deu um tapa no peito dele emandou-o falar. Aí ele soltou tudo que havia ocorrido.

Balbino, após ouvi-lo, dirigiu-se a mim e disse:

— Vai pro módulo.

Eu fui. Cheguei lá, já vieram me perguntar se os funcionári-os iriam fazer boletim de ocorrência por agressão, e respondi queaté agora não sabia de nada de B.O, mas que se fosse fazer eu nãoteria nenhum receio, porque só tentei me defender, nada mais doque isso.

Logo em seguida o Sr. Balbino me chamou para conversarde novo, na coordenadoria. Cheguei e o Boquinha ainda estavalá sentado. O Balbino pediu para que nós apaziguássemos a “treta”e colocássemos uma pedra em cima de tudo o que havia ocorrido.Também disse que não queria ver o ocorrido repercutindo den-tro do Módulo. Concordei com ele, porque sabia que o meu pro-

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pósito ali não era regredir, mas avançar. Então estendi a mão parao Boquinha e ele a apertou. Nesse momento, Balbino deixou-nosa sós dentro da sala e conversamos por uns vinte minutos. Nessaconversa eu disse a ele que nossa luta é contra o Sistema, e não umcontra o outro. Ele compreendeu. Rolaram até lágrimas nessesminutos de conversa. Também o ouvi e compreendi o lado dele.Colocamos uma pedra em tudo, nos abraçamos e ficamos em paza partir desse momento. Demos nossa palavra e firmamos um acor-do de sermos amigos, com o objetivo de vencer e voltarmos paracasa.

O Sr. Balbino entrou na sala e perguntou se já havíamosconversado tudo o que tínhamos para conversar. Balbino nos deualguns conselhos e nos liberou para voltarmos ao Módulo. Volta-mos conversando. Quando alguns viram que estava tudo bementre nós, demonstraram estar enfurecidos, pois sempre há umou outro que quer ver a desgraça do próximo, mas Deus é maiore iluminou nossos pensamentos. Tudo ficou bem.

Fiquei pensando no ocorrido e o quanto poderia ter me com-plicado. O juiz poderia me manter ali, pelo menos mais uns doisanos por essa agressão — isso se eu não fosse transferido para umaunidade de contenção. De fato, a agressão poderia ser vista pelaJustiça como gravíssima, porque o Código Penal é finalista, isto é,o caso seria julgado de acordo com a gravidade dos fatos. Quantomais grave, maior a pena — maior seria a minha internação, po-dendo atingir o limite máximo de três anos. É o que prevê o Esta-tuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Comecei a sentir um sério arrependimento pelo que fiz.Embora tenha me defendido, estava aprendendo outrosensinamentos, através do grupo de evangelização, e tentava revivertudo aquilo que aprendi quando fiquei internado na Gilgal. Eume sentia bem, mas agora estava arrependido, porque o que ha-via aprendido era amar ao próximo como a mim mesmo. Orei a

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Deus em pensamento, pedindo paz interior e discernimento ealgumas coisas mais. Não demorou e fui ouvido.

Participei muito dos cultos e pregações do irmão Ivan, co-nhecido pelos internos como “Terra”. Foi através desses cultos que,aos poucos, eu ia fui voltando aos braços do Senhor. Suas prega-ções me atingiam lá no fundo do coração, motivando-me dia adia a viver melhor.

Estávamos nos aproximando das festas de fim de ano, falta-vam poucos dias. Era o ano de 2001 e restava apenas uma sema-na para o Natal. Eu queria muito passar as festas deste fim de anocom meus pais. Minha fé e minhas esperanças foram maiores emais fortes. O último final de semana antes do Natal se aproxi-mou, era uma quinta-feira, me lembro como se fosse hoje.

*

Dia nublado, meio frio, mas o ambiente em nosso Móduloera bom. Todos estavam com muita energia positiva, pois quempassasse as festas ali veria os seus familiares no domingo próximo enas datas festivas. Fiquei o dia todo sentado na porta do Módulosó observando, com o olhar fixo voltado para a porta da sala dastécnicas e das assistentes sociais, porque os papéis de liberaçãovinham através de malotes e iam para a sala delas. Eu estava an-sioso. Era impossível não ficar. Depois de tanto tempo de espera,eu estava realmente confiante, mas tinha um pensamento íntimode que, se por acaso não chegasse a minha liberação, eu teria queesperar apenas mais um pouco. Já tinha informações de que meuprocesso, que estava no Fórum do DEIJ, já tinha sido observadopelo promotor. Ele o assinou, concordando, e agora estava nasmãos do juiz. Quando isso acontece é sinal de que o procedimen-to vai dar certo. Permanecia à espera, mas isso não me causavaangústia, mas sim um sentimento de otimismo. E eu não estavaerrado. Pontualmente, às seis horas da tarde, o malote chegou.Logo em seguida o Sr. Edivaldo veio em linha reta, direto para omeu Módulo, e disse:

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— Pessoal, chegou uma liberdade nesse módulo.

No momento, explodi de alegria. Perguntei se era a minha,e ele respondeu:

— Infelizmente não é a tua Cleonder, é a do Wagner doGuarujá.

A contrariedade dele era proporcional aos fatos que envol-viam a passagem de Wagner entre nós. Um mês antes de ele tersido liberado, por exemplo, foi pêgo com um cigarro de maco-nha. O Wagner ficou extremamente feliz com sua liberdade.Dando pulos e saltos de emoção, saiu abraçando todos. Para mimele disse:

— Calma Cleonder, você é um grande guerreiro e um gran-de amigo. Tenho certeza de que você vai pra casa. Calma, amigo,calma, eu torço por você.

Em momento algum fiquei com inveja ou com raiva. Aocontrário, fiquei contente porque mais um irmão conseguiu. Veros colegas conquistarem seus ideais me deixa muito feliz, pois comodiz a Bíblia em “Eclesiastes”, Capítulo 3: “Tudo tem seu tempo esua hora.” Permaneci focado nessas palavras.

Wagner pegou seus pertences mais importantes e o restanteele deixou para os outros mais necessitados, e foi-se embora. Feliz.

Já era o horário do jantar e eu não havia tomado banho, porter aguardado o malote chegar. Então separei minha comida paramais tarde, e fui tomar banho depois que os outros já haviamjantado. Tomei meu banho, jantei e fui ver televisão. Comecei aperceber que alguns funcionários mais chegados a mim começa-ram a dar uma voltinha pelo Módulo. Sempre davam uma olha-dinha para mim, e isso não era normal, pois quando o pessoalestava tranqüilo era difícil que entrassem para ficar observando.Fiquei desconfiado de alguma coisa. Comentei até com meus com-panheiros e eles também perceberam. Em turnos, vinha um fun-

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cionário diferente dar uma risadinha para mim, mas não era umarisadinha de deboche.

O dia se encerrou, era hora de dormir.

Entramos no alojamento, todos felizes. Ficamos conversan-do uns com os outros até altas horas da noite.

Meu melhor colega na época era o Osni. Ele me disse queestava chateado por não ter sido eu no lugar do Wagner, pois elenão gostava do Wagner. Disse-lhe para não se preocupar, porqueuma hora minha vez haveria de chegar.

Desejei um bom descanso a todos, como de costume. Pegueino sono e dormi tranqüilamente.

Começando mais um dia, já acordei animado. Mas as coisasnão estavam boas ali no Módulo 3, nem no 4. Já começaram odia com problemas. Discussão com os funcionários. Tudo foicriado por um folgado chamado Arcanjo, do 3, que queria imporseu poder sobre os funças. Há certos funcionários que são maistolerantes, outros já não são, mas não tenho o que reclamar deles;o Arcanjo tinha. Começou tudo por causa de um chuveiro quequeimou logo pela manhã, e ele queria porque queria tomar ba-nho quente. Foi grosseiro com um funcionário muito querido portodos os internos, e os que presenciaram o que ocorreu não gosta-ram do que Arcanjo fez e acabaram lhe dando um forte trem-bala. E ele virou “pilantra” — um indivíduo excluído e discrimi-nado pelos internos. Já no 4 ocorreu uma treta devido a um de-sentendimento de opiniões opostas sobre uns lances de futebol.Motivo fútil.

Graças a Deus o nosso módulo permaneceu na paz, masdevido o acontecido no 3 e no 4, naquele dia não iríamos para aquadra bater uma bola.

Logo pela tarde outra confusão, agora no Módulo 1. Umrapaz de vulgo “Farofa” estava querendo bater nos pilantras domódulo dele, para descontar a sua raiva por ter que passar o fim

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de ano ali. Geralmente esses coitados apanham por terem deixa-do alguma falha com alguém no passado, ou por alguma paradaerrada ocorrida com eles e reprovada pelos outros internos. Quan-do considerados pilantras, tornam-se sacos de pancadas.

Agora só faltava nosso Módulo dar problema. Esse era o meumaior medo. Tinha receio de que houvesse alguma novidade ruim,e acabasse sobrando para mim, justo agora.

Mas sem novidade no 2, porque quando percebemos e sou-bemos o que estava acontecendo, nos reunimos e conversamos,determinando que tudo deveria correr com tranqüilidade. Nãopodíamos deixar a imagem do Módulo 2 estragar. Todos com-preenderam e ninguém aprontou.

Anoiteceu. Me conformei que teria de passar as festas alimesmo, e que malotes contendo liberações não chegariam mais.

Fomos recolhidos e os funcionários nos alertaram para quenão tentássemos nada, porque o clima tinha ficado ruim por cau-sa de alguns elementos. E esse clima estava contagiando os outrosde cabeça fraca, animando-os a tentarem uma possível fuga.

Fiquei muito triste antes de dormir — tinha muito medo depagar pelos erros dos outros. Digo isso porque se alguém tentasseuma fuga e eu, mesmo sem querer, tivesse que participar dela euseria muito prejudicado, porque, se quisesse aproveitar as oportu-nidades que tive não teria sido difícil. Mas dali sempre quis sairpela porta da frente, a mesma pela qual havia entrado.

Deitei com um pouco de receio e não estava errado, poisassim que trancaram o nosso Módulo, o Farofa do 1 saiu corren-do pelas galerias, conseguindo alcançar a guarita dos seguranças.Escalou-a rapidamente e pulou. Ao cair no chão torceu o pé, masconseguiu correr meio que mancando. Foi isso o que os seguran-ças contaram, ao verem ele correndo.

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Fiquei atormentado para dormir. Demorou um pouco, maspeguei no sono e dormi. Não esperava a graça que Deus me dariana manhã seguinte.

Eram seis horas da manhã e o Sr. Balbino veio até minhacama me acordar. Puxou meus pés e disse o seguinte:

— Vamos, vamos Cleonder. Pegue tudo que é seu que já euvolto para te buscar.

Acordei apavorado, pois notei um pedaço de pau na mãode Balbino. Pensei que seria transferido para Franco da Rocha,porque as transferências dali só iam para Franco.

Então acordei os outros, cutucando o meu vizinho Almir,para que me ajudassem a resistir, se a idéia era me arrastarem dali.Alguns já estavam acordados e escutaram o que foi dito para mim.Conformado, comecei a arrumar minhas coisas, mas em um rit-mo bem lento. Quando Balbino voltou, ele disse, num tom irado:

— Mas você não arrumou nada ainda, venha cá na porta.

Fui e vi meus pais. Balbino disse:

— Você não quer ir embora?

Dei pulos e mais pulos de alegria. Dominado pela emoção,corri disparado em direção aos meus pais, e realmente eles confir-maram que eu estava livre. Livre para sempre.

Voltei para pegar minhas coisas, me despedi de todos, masespecialmente do Osni, que realmente foi meu amigo. Nós nosabraçamos, choramos um pouco e eu fui embora. Gostava muitodele e temia por sua segurança — alguns safados do internatonão gostavam dele e queriam dar um jeito para que ele se tornasseum pilantra dentro da instituição. Assim ele seria isolado e mal-tratado pelos outros internos, e sairia do caminho deles. O casoera que o Osni é um cara grande e musculoso, todo tatuado, e oscarinhas tinham medo de que, em algum momento, ele tentassetomar o poder deles.

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Fui em direção da minha liberdade, junto de meus pais. Ago-ra mais do que nunca, me sentia realizado.

Segui em direção aos portões que tantas vezes vi se abrirem efecharem. Agora eles se abriam para mim. Quase todos os funci-onários me aguardavam próximo da saída, e me despedi da maio-ria. Aos que estavam lá dentro, em seus postos, deixei lembrançase desculpas por não ter podido me despedir deles. A emoção eraenorme.

Atravessei os portões. Parei, olhei e respirei fundo. Ao olhardo lado de fora da muralha tive a surpresa: meu irmão ali, meesperando. Não podia ser melhor, foi tudo o que pedi a Deus.

Feliz, voltei com meus familiares para meu querido interior.E agora a família estava toda reunida, via nos olhos de minha mãea felicidade. Papai, que estava debilitado por causa do reumatis-mo, não sentia nem dores.

Voltei para casa.

Sonho realizado, eu tinha agora a minha liberdade conquis-tada.

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EM BRANCO

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CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.CAPÍTULO VIII: O senhor está preso.

Em paz, voltei para minha casa, como tanto pedi a Deus,Ele me concedeu passar as festas com minha família. Chegou oNatal e todos nos reunimos para comemorar a data e a minhasaída da prisão com uma grande festa. Depois da festa, saí commeus primos Paulo César e Diego para dar uma volta pelo centroda cidade. A multidão ocupava toda a rua e o trio elétricoKachotão fazia o maior barulho.

Muitos colegas da antiga vida tentaram se aproximar de mim,pois ainda não me tinham visto depois da minha recente liberta-ção. O que eu tinha para contar seria novidade para eles. E quaseque perco a cabeça logo de início com um certo elemento, por-que ele se aproximou de mim e disse o seguinte:

— E aí, Cleonder? Olha que o patrão ‘tá de volta pra abaste-cer os manos.

Ao meu lado estavam meus primos, que olharam para esserapaz com um olhar tão hostil, que rapidinho ele saiu de perto.

Me deu uma raiva muito grande, porque depois de tudoque eu tinha passado por causa da vida do crime — e esse caranem se lembrou de mim quando vivi meus apuros —, agora mevinha o sujeito com essas conversinhas que não faziam mais parte

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do meu gabarito, da minha vida. Tive vontade de esganá-lo. Masdeixa para lá, eu estava a fim de aproveitar minha sofrida e tãoconquistada liberdade. Durante essa minha voltinha eu estavaprocurando alguma garota do meu estilo e do meu gosto, parame distrair ou tentar ter uma companheira para me dar forças,para que eu não voltasse ao mundo do dinheiro fácil. Enquantodava minhas voltas pela praça, bati os olhos e me fixei em umagarota que eu muito havia desprezado por ela ser meio magrinha— mas agora a magrinha tinha se tornado uma bela mulher. Nosmeus tempos de colégio, na época em que eu namorava a Juliélem,essa menina magrinha corria atrás de mim e era louca para ficarcomigo, mas eu nem bola dava; apenas dei uns beijos nela antesde ir preso, mas foi só para ela parar de me atormentar — e agoravia que estava apaixonado por quem eu tanto havia desprezado.

Me aproximei dela e conversamos um pouco. Ela se fez dedifícil, mas por dentro até queria ficar comigo, só não queria daro braço a torcer. No final da noite meus primos queriam ir embo-ra, mas eu disse que ficaria conversando com essa garota, que sechama Josiane.

Permanecemos um bom tempo conversando até que a con-venci a dizer que pensaria no assunto.

Ela prometeu que iria à minha casa um dia desses para agente conversar. Acabei acompanhando-a até a casa dela. Lá nosdespedimos com beijos no rosto. Chegou o Ano Novo e nos en-contramos no centro de Borborema. Eu a chamei para dar umavolta comigo e ela topou. Passeamos, conversando. Nos entendía-mos cada vez mais — estava surgindo um clima em que nos sentí-amos atraídos um pelo outro. Depois de tanto tempo que perma-neci só, eu realmente precisava de uma pessoa para preenchermeu vazio interior, uma pessoa que ao mesmo tempo fosse amigae conselheira, mas nunca imaginei que fôssemos tão longe. Co-memoramos juntos a passagem de ano. Depois ela me disse queficaria comigo e daríamos início a um namoro mais sério.

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Fomos para um lado mais afastado do centro. Ali ficamospor alguns minutos que para mim se tornaram inesquecíveis. Fo-ram os primeiros minutos de 2002, quando firmamos o compro-misso de, na quarta-feira seguinte, estarmos juntos na minha casa,para conversarmos melhor. Nesta época ela trabalhava como babáde uma criança chamada Nani, filha do Cláudio e da Cris, quesão dois enfermeiros. Fazia isso para ajudar sua mãe Tereza e seupadrasto Pedro, que trabalhava colhendo laranja, pois o pai bio-lógico de Josiane abandonou a família quando ela tinha apenasdez meses de idade. Na quarta-feira ela veio. Fiquei muito feliz aovê-la e convidei-a para entrar. Fomos para a sala e nos abrimos umpara o outro, choramos sob a força da emoção, rimos e finalmen-te firmamos um compromisso. O namoro começou a partir daí.

Eu me sentia muito sozinho e só com ela passei a me abrir.Ela demonstrava preocupação comigo e eu tentava retribuir omesmo carinho com ela. Agora, após uma longa batalha peloslugares por que passei, eu estava melhor do que nunca. De voltaao meu lar, com a família reunida, todos felizes. E, por mais incrí-vel que pareça, a FEBEM me tornou apto a retornar ao convíviosocial. E a minha querida Josiane estava me mudando para me-lhor. Poucos dias depois, egresso da Fundação, tentei procuraremprego, mas as portas pareciam estar todas fechadas. De qual-quer modo, não desanimei, e continuei procurando. Tentava portelefone, tentava pessoalmente, mas ninguém queria acreditar emmim. Muitos tinham receio, medo de me dar emprego por mi-nha imagem ser péssima, e assim continuei sem emprego.

Meu tio, o vereador João Beleza, estava construindo um so-brado próximo ao hospital da cidade, e ele me deu serviço. Co-mecei a trabalhar como ajudante de pedreiro. Preparava a massa,o concreto e servia ao pedreiro no segundo andar do prédio, le-vando tijolos, massa e ferramentas. Não ganhava muito, apenasR$ 12,00 por dia, mas me sentia bem, porque no final de semana

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teria um dinheirinho para levar minha namorada para tomar umsorvete ou comer um lanche.

Trabalhei uns dois meses para meu tio João, até que ele deuuma parada na construção do sobrado e acabei ficando sem servi-ço novamente.

Josiane, que agora era a minha namorada, que havia conse-guido um emprego em uma fábrica de bordados. Iria trabalharna área de tecelagem. Por isso deixou o emprego de babá parabuscar melhores condições de vida. Ela sempre foi de família hu-milde mas muito honesta, e tinha uma personalidade muito for-te.

Passamos a nos ver apenas em seus intervalos de almoço equando ela terminava o expediente de serviço. Ela estava conclu-indo o terceiro ano do Segundo Grau. Eu já havia concluído oTelecurso 2000, mas tinha ficado com duas disciplinas penden-tes, que eliminaria no mês de junho, para que depois pudesseprestar o vestibular para alguma faculdade. Esse era meu sonho:queria me formar Doutor em Direito, mas até então o sonho nãopassava disso. Era muito bom sonhar de qualquer modo, pois ohomem que não sonha para mim é um morto-vivo. Porque quemsonha almeja algo, quem almeja algo busca e quem busca encon-tra. Essa é a minha visão das coisas, e queria mostrar a todos que épossível.

Completavam-se quatro meses da minha liberdade. Fui aomesmo lugar em que Josiane agora estava trabalhando, para verse conseguia uma oportunidade também. Eles fabricavam borda-dos e havia ainda um setor de estampas em tecidos. Em minhapassagem pela FEBEM concluí o curso profissionalizante deserigrafia, com diploma e tudo. Então me apresentei com o certi-ficado, a fim de conseguir este emprego, uma vez que eles esta-vam precisando.

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Compareci ao escritório da firma. Quem me atendeu foi oencarregado geral, chamado Sereno. Ele analisou o meu currícu-lo e disse para eu aguardar, pois com certeza seria chamado.

Fiquei à espera, mas não podia supor que, no dia seguinte,algo viria interromper todos os meus planos e perspectivas de vida.

*

A tarde de 2 de maio de 2002. Tudo estava bem, eram cin-co horas da tarde, minha amada havia acabado de chegar do tra-balho e eu estava na casa dela. Quando ela chegou, entramos —e logo em seguida estacionou um Opala da Polícia Civil deBorborema. Desceram do carro dois investigadores, que eu jáconhecia, o Crispim e o Toledo. Os dois já haviam me prendidoalgumas vezes, mas desta vez eles bateram palmas e a Josiane équem foi atender.

Perguntaram assim:

— O Cleonder está?

E minha namorada respondeu que sim!

Ouvi a conversa e automaticamente me apresentei na portada cozinha. Perguntei o que eles queriam ali.

Disseram que queriam falar comigo.

Caminhei até a frente da residência, mas não coloquei meuspés para fora; permaneci do lado de dentro, conversando comeles.

Disseram que o Dr. Delegado estava solicitando minha pre-sença na delegacia. Perguntei o que estava acontecendo. Eles dis-seram que não sabiam, apenas que o delegado queria falar comi-go.

Logo de início eu já os alertei de que não cometera maisnenhum crime desde que saíra da FEBEM. E que não devia nadae por isso iria atender ao pedido da autoridade, de acordo com o

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Artigo 330 do Código Penal, que diz que devemos ser submissosàs autoridades constituídas.

Acompanhei-os tranqüilamente até a delegacia. Fomos deviatura. No caminho pedi para, uma vez na delegacia, poder ligarpara o meu advogado, o Dr. Ronaldo, e garantir que ele estariame acompanhando.

Mas fui de consciência tranqüila, porque não havia cometi-do mais nenhuma infração.

Chegamos à DP. Fui levado e tratado pela primeira vez comdignidade, decência e respeito. Mas eu mal podia imaginar queme viriam as lágrimas, após alguns minutos.

O delegado me chamou para entrar na sala dele e assim eufiz. Sentei-me e ele começou a me elogiar, dizendo que estava con-tente por eu ter mudado radicalmente minha conduta na cidade,por não receber informações negativas a meu respeito, mas simpositivas, de que eu estava mostrando o contrário de tudo que fizno passado.

Ele disse:

— Infelizmente tenho que lhe dar uma notícia que não vaiser nada agradável para você, mas sei que você será forte e vaiconseguir superar tudo, sem regredir.

— Cleonder, chegou agora há pouco em nossas mãos ummandado de busca e apreensão para você, expedido pela juízalocal de Itápolis, de que você terá que cumprir mais uma medidasócio-educativa de internação na FEBEM, devido a agressõescometidas contra o Zequias, no interior da cadeia pública deItápolis.

— "O senhor está preso".

*

Naquele instante me recordei de tudo, mas não pensava queacabaria assim, pois no íntimo já havia até me esquecido e nãoesperava que resultasse em prisão, justamente agora que eu deci-

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dira acordar e viver para a vida. Ser preso por um evento aconte-cido um ano e três meses atrás!

Comecei a chorar, fiquei nervoso, falei um monte de bestei-ras.

— Eu deveria ter continuado no crime, pois agora eu esta-ria sendo preso mas teria dinheiro — foi uma delas. — E de queme adiantou mudar, sendo que a justiça vem e me dá uma sen-tença justo agora pra eu cumprir? Por que não me deu antes,assim eu cumpria tudo de uma vez? Mas ao invés eles me soltam eeu tento reconstruir minha vida e agora que estou vendo meusbons frutos, eles mandam me prender...

Foi apenas uma forma de expressar minha revolta no mo-mento, porque a notícia balançou totalmente a minha cabeça.Para completar, a menstruação de minha namorada estava atrasa-da. Pensávamos que ela poderia estar grávida. Isso era o que maisme preocupava. Fiquei irado, comecei a falar alto na delegacia.Então me conduziram até os fundos do DP e me deixaram lá, masnão me algemaram. Percebi que até mesmo os policiais se como-veram com o que estava acontecendo — todos conheciam minharotina de vida após minha liberação da FEBEM. Mas a justiça, seela é para um, deve ser para todos. E por ele, o Zequias, ser umser humano e pelo que eu fiz contra ele, eu devia pagar conformeo prescrito na lei.

Estava ainda muito nervoso e não aceitava de maneira algu-ma o que se passava comigo. A revolta tomou conta de mim. Mevi sozinho na delegacia. A única pessoa que sabia que eu estava láera a minha namorada... Pedi para ligarem para meus pais, poiseles ainda não sabiam. Então por telefone eles foram informados.

Minha mãe não teve outra reação a não ser entrar em deses-pero; meu pai ficou arrasado. Foram até a casa da Josiane parabuscá-la e seguiram para a delegacia. No caminho, meus paiscontaram a ela.

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Também não suportando, ela começou a chorar. Quandochegaram à delegacia, eu já estava algemado e me encontrava nosfundos do prédio. Meus familiares entraram à minha procura eos policiais os levaram até onde eu estava. Enquanto os papéiseram providenciados, fiquei aguardando para ser removido até acadeia de Itápolis. De repente, chegou mais uma viatura. Agoraquem fora preso foi o Paulo, por estar envolvido no mesmo delito.Logo em seguida prenderam o Rodriguinho, que também haviatomado parte nos eventos envolvendo Zequias. Faltava o Tico,que já havia sido liberado da FEBEM, mas por ter praticado maisdelitos e ter sido apanhado com drogas, fora enviado novamenteà FEBEM, antes mesmo que eu tivesse sido liberado da Fundaçãopela primeira vez.

Agora estávamos sendo presos por agressão ao estuprador.Meus pais e minha namorada, quando viram as algemas nas mi-nhas mãos, não acreditaram no que estava acontecendo. Eu tam-bém não acreditava, mas essa era a realidade — a conseqüênciade atos ruins cometidos no passado.

Josiane e eu nos abraçamos, em lágrimas, para ficarmos jun-tos nossos últimos minutos ali, pois logo eu seria removido para acadeia. Sentia arrepios só de me lembrar que voltaria. E agora ofato de eu ser reincidente seria um agravante. Pedi para meu paipegar os papéis que falavam a meu respeito, a sentença, e quandocomecei a ler, quase enlouqueci — o tempo máximo na FEBEM,segundo a condenação, seria de três anos, apresentando relatóri-os semestrais. Não esperava receber tamanha pena.

Meus últimos minutos acabaram-se. Tínhamos que partir,segundo disse o investigador que nos levaria.

— Passaremos pelo hospital para fazer os exames de corpode delito, e seguiremos viagem — informou.

Meu pai, minha mãe e Josiane foram rapidamente buscarroupas que eu pudesse levar para a cadeia. Enquanto eu estava nohospital, passando pelos médicos, meus pais e a Josiane aparece-

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ram para deixarem minhas roupas e dar os últimos abraços dedespedida.

Papai me abraçou, passando-me energia positiva, assim comtodos ali. Diziam que eu fosse forte, que conseguiria sair vence-dor. Meu pai disse que não me abandonaria, porque eu não haviatornado a cometer crimes, mas que se cometesse mais algum deli-to, ele me deixaria viver e aprender com a vida, que muitas vezesé dolorosa e ingrata conosco.

Quando saí da FEBEM pela primeira vez, ele me disse emuma conversa que se eu voltasse, ele não teria mais forças para metirar de lá. Eu o ouvi com atenção e guardei suas palavras, porqueo seu apoio constante foi um fator muito importante em minhavida e uma das razões para que eu não voltasse a delinqüir.

Havia uma outra coisa que me incomodava, nessa prisão tãoinesperada. Eu na época jogava muito futebol, sempre partici-pando de torneios e amistosos — que saudade daquele tempo!Poderia ter seguido a carreira de jogador... Jogava muito bem, nalateral e na ponta direita. Refletia também sobre os testes por quepassei, testes feitos no Grêmio Esportivo Novorizontino e peloFluminense — só eu e mais dois passamos no teste do Novo-rizontino, entre mais de 150 concorrentes. Fui chamado pelo clu-be, mas não compareci... Poderia ter dado continuidade, ter ini-ciado uma carreira, se não fosse pelas drogas... Então essa prisãovinha pôr uma pedra sobre essa oportunidade que cruzou o meucaminho. Hoje penso que talvez ainda não seja tarde... Adoropraticar esse esporte, no tempo que me sobra procuro reconcili-ar-me com os gramados, que me dão uma sensação de alívio. Etenho muitas esperanças de poder jogar por um clube.

*

Chegou a hora de ir. Nós três passamos pelo médico e fomossaindo do hospital. A porta do chiqueirinho já estava aberta paraentrarmos. A viatura arrancou e nos levou. No caminho eu fuicalado, sem dizer uma só palavra, apenas escorriam as últimas e

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poucas lágrimas, porque já me esgotara de tanto chorar. Em pou-cos minutos chegamos à cadeia.

*

Os policiais nos entregaram para a carceragem, que nos re-cebeu dando risadas. Afinal, foram eles que atearam fogo na fo-gueira e ao mesmo tempo foram testemunhas de acusação. Pordentro eu sentia muita raiva, mas não externei nenhum sentimento— e nem forças tinha naquele momento, devido à angústia e aodesânimo que tomava conta de mim completamente.

Fomos revistados na entrada, como de costume, e conduzi-dos até a pequena cela do corró (a cela destinada aos menores).Um caminho que nunca mais eu esperava ter que trilhar, por aque-las galerias frias e imundas. Paramos próximos da grade. Encon-trei um faxina chamado Miro, que eu já conhecia. Ele estava pre-so por tráfico de entorpecentes. Ao me ver, ele disse:

— Você aqui de novo, cara?

— Depois a gente conversa — respondi.

Comecei a observar as paredes em que tantas vezes eu deixa-ra o meu nome rabiscado, e dizia ao Paulo que nunca imaginaraque voltaria para esse lugar. Ele respondeu que agora não adian-tava lamentar.

— Temos que nos conformar com essa situação e puxar maisessa cadeia.

Mas eu não queria aceitar, e permaneci inconformado com tudo.

O Rodriguinho estava tão mal quanto eu, pois ele tambémtinha um relacionamento e agora ficava distante de sua namora-da e de sua mãe, que sofria de câncer no útero.

Cheguei perto da grade e notei o Miro se aproximando, comintenção clara de falar comigo. Ele era o faxina da cadeia e tinhaacesso a todos os outros presos. Chegou brincando comigo — comcerteza era para levantar meu ânimo e desamarrar minha cara, por-que eu estava de cara fechada, e não havia motivos para sorrir.

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Nós nos cumprimentamos e expliquei a minha situação. Apartir daí fomos fortalecendo uma grande amizade, ele sempredisposto a me escutar e me aconselhar. Dizia que eu teria outrasoportunidades e muitas felicidades na vida. Ele tentava, com suaspalavras, abrir meus olhos para os muitos caminhos que eu pode-ria trilhar, e as inúmeras portas que poderia abrir. Conversamossó um pouco, porque ele também teve que entrar em sua cela eser trancado. Os faxinas têm um certo horário para trabalhar,mas à noite são trancados.

A hora de dormir foi se aproximando e não havia colchões,porque disseram que na última rebelião os presos haviam quei-mado tudo, e que muitos estavam com colchões trazidos pela fa-mília. Marcão, o chefe da carceragem, alegou que não tinha col-chão. Cada um teve que estender seu cobertor no chão para dor-mir. A sorte foi que nossas mães mandaram cobertores...

A primeira sensação foi estranha, mas vencido pelo cansaçopeguei no sono rapidamente e dormi com os meus companhei-ros de cela.

*

Não conversávamos muito, porque ainda estávamos angus-tiados. Os outros presos, ao saírem para o banho de sol, vieramnos cumprimentar e perguntar o que nos trouxera até ali. Muitosconhecidos ainda permaneciam na cadeia de Itápolis, cumprin-do suas longas penas. Eu conhecia quase todos porque tinha mui-tas passagens por ali, mas nem por isso me senti à vontade. Sóconseguia pensar em meus pais e na minha namorada, que, comtanto esforço, me apoiava enquanto eu estivera em liberdade. Eumal conversava, não tinha apetite para comer. Apenas bebia água.Muitas vezes o Miro me dava um pouco de refrigerante ou suco,e sentava próximo da grade e aí estendíamos a conversa e isso foise tornando como uma terapia para mim.

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Essa prisão estava sendo a maior e a pior barra que eu játinha enfrentado em minha vida. Acabei perdendo meus objeti-vos, aos poucos ia caminhando para uma depressão.

Após alguns dias, fui desenvolvendo maior diálogo com oMiro e meus companheiros; voltei a comer, embora às vezes semfome. Meus companheiros de cela, Rodrigo e Paulo, já estavammais conformados com a situação e emocionalmente bem melho-res do que eu. Percebi que minha tristeza às vezes os incomodava.Tentavam me alegrar, mas era muito difícil me reanimar — eunão conseguia enxergar motivos de alegria. Mas como nunca gos-tei de incomodar meus amigos, fui me controlando e me confor-mando cada vez mais com a situação.

Ainda não estava recebendo visita, mas sabia que, brevemente,meus pais e Josiane viriam. Não queria passar minha negatividadepara eles, para minha mãe e para minha namorada. Fui melho-rando e contornando a minha situação psicológica, mas foi umprocesso difícil.

Quando recebi a visita da minha família, já estava bem me-lhor. Mas não deu para esconder a enorme dificuldade por quepassava, pois minha mãe foi a primeira a perceber uma diferençaque, por mais que eu tentasse, não conseguia esconder. As evi-dências estavam claras em meu rosto, eu também havia emagreci-do bastante. Mamãe, quando me viu, veio logo pegar em minhasmãos. Depois foi a vez do papai, que tentou me abraçar, mas agrade nos dividia, pois não eram abertas e nem saíamos para visi-ta. Era eu do lado de dentro e eles do lado de fora. Minha namo-rada não veio na primeira visita, porque era necessário fazer umadocumentação específica para ela poder entrar.

Conversando com a minha mãe, fui contando que estavasendo difícil, mas que eu venceria essa batalha de novo. Haviacontudo uma coisa a ser esclarecida, e disse a ela que não tinhacerteza, mas podia ser que a Josiane estivesse grávida. Mamãe nãose assustou, tentou me devolver calma, e disse que veria tudo isso

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e que, se realmente ela estivesse grávida, cuidaria de tudo pormim. O pai também reforçou esse apoio.

Bem ao meu lado, ocupando o espaço que sobrava da gra-de, o Rodrigo conversava com sua mãe, dona Lourdes, pessoaidônea mas adoentada. Nem mesmo a doença, porém, impediu-ade ajudar o filho mais uma vez. O mesmo acontecia com meu pai,que também estava mal do reumatismo, e assim mesmo enfrenta-va as dificuldades e comparecia para me ver.

Mal deu para matar as saudades e aliviar as dores emocio-nais, chegou o fim da visita.

Momento triste. Eles iriam voltar para casa, e eu continua-ria ali. Eu pensava em muitas coisas ao mesmo tempo, desejos derealização que foram interrompidos por um Mandado de Prisão,perspectivas de vida não se concretizariam por causa disso, so-nhos em perigo — enfim, tudo foi interrompido. Até mesmo aminha integridade psicológica foi colocada em risco, a forma emque me encontrava, com a cabeça no lugar, agindo honestamen-te, e a justiça queria remexer em toda a encrenca do passado? Asportas foram fechadas para mim e fui inserido em um mundomarginal, do qual eu já não fazia mais parte, mas foi isso que ajustiça determinou. Assim, depois de um longo lapso de tempo,fui condenado e teria de pagar, e, infelizmente, retornar ao siste-ma carcerário, com poucas chances de ser influenciado positiva-mente pelos seus protagonistas, os presos. Ao contrário, o retornoà prisão poderia na verdade empurrar-me mais para um retornoao crime. Uma porta de recuperação me era fechada, enquantoque o sistema me abria uma porta para a marginalização. Nãoposso pensar em nada mais contraproducente, no que diz respei-to à segurança da sociedade.

Eu me sentia como o meu tio Dito Araçá devia ter se senti-do, quando as toras de madeira caíram sobre o seu peito, no aci-dente de caminhão que o matou. Mesmo estando meioinconformado com a situação, não retrocedi em minhas atitudes,

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porém no fundo tinha a confiança de que no fim da linha umfuturo positivo me aguardava.

Passei a conversar mais, dentro da cela. Fui me conforman-do aos pouquinhos, até que chegou um dia em que já não maischorava. Passei a rir e a me descontrair. Comecei a contornar osproblemas e compreendi que para tudo há uma solução, enquan-to há vida.

Meus pais retornaram à cadeia para me visitar e Josiane con-seguiu entrar pela primeira vez. Fiquei muito feliz ao vê-la. Já fa-zia um mês que eu estava preso e ainda não a tinham liberadopara entrar. Depois de muita burocracia para elaborar os docu-mentos necessários, provando que era minha namorada, foi libe-rada a sua visita.

Essa visita correu melhor — me senti mais solto para con-versar, apenas me emocionava em alguns momentos e choravaum pouco. Josiane nunca havia entrado em uma cadeia, e eu per-cebia pelo rosto dela, que estava meio assustada com o lugar, ecom o fato de eu estar ali. Ficava olhando a estrutura da cadeia,reparando nas grades, os portões de chapas de aço bem grossos etambém a sujeira nas paredes e nos tetos do interior da cadeia,sinais de queimaduras pelas paredes, devido às rebeliõesacontecidas anteriormente.

Conversamos muito a respeito de como ficaria nosso rela-cionamento dali em diante. Eu disse:

— Quero de você uma resposta. Josiane, você está vendo asituação em que estou, eu não quis isso, mas agora preciso saberuma coisa de você. Eu já ‘tô condenado’. Não tenho outra coisa afazer, senão cumprir a pena. Não é uma cruz que você precisacarregar. Você sabe que não fiz nada, depois que a conheci, paravir pra cá. É uma coisa que eu já tinha feito. Eu só quero saber sevocê vai querer assumir essa responsabilidade de me ajudar a car-regar esse fardo. Quero saber se você vai ser fiel comigo. Porque

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se você não for, ou se você neste momento acha que não vai agüen-tar, a gente pára por aqui, agora!

Disse que tudo mudaria entre nós. Teríamos que ser caute-losos um com o outro, porque agora nosso relacionamento ficariamais tenso. Deixei claro, também, que se ela quisesse terminarcomigo, este seria o momento de fazer a escolha. Caso quisessecontinuar, teria de me prometer que caminharia comigo até ofinal dos meus dias dentro da cadeia, e o mais importante paramim era que ela continuasse me respeitando. Não queria sofrercom a possibilidade de vê-la afastar-se de mim e aproximar-se deum outro. O que eu não queria ter, dentro da cadeia, era essadúvida me atormentando. Ela concordou com tudo que falei edisse que não me abandonaria. Pedi, então, que ela fizesse o testede gravidez o mais rápido possível, pois eu sofria com essa incerte-za. Precisava ter uma idéia mais clara da situação o mais rápidopossível, para assim diminuir um pouco a minha agonia — quena verdade só teria fim quando eu pudesse voltar para casa.

Meus pais sorriram mais ao me verem, porque perceberamque eu estava melhor do que da primeira vez que me visitaram. Otempo passa tão rápido! Mais uma vez acabou a visita, e sofri ou-tro momento triste de despedida. Depois de saírem, fiquei meiochateado, mas logo fui bater um papo com meus companheirosda cela, para trocarmos as notícias recebidas. Graças a Deus todoshaviam recebido mensagens boas de conforto e paz.

Logo chegou o meu “jumbo” — mantimentos trazidos pelafamília, que também sofreram a revista, para só então serem leva-dos à minha cela. Mamãe mandava muitas frutas, e às vezes deixa-va de comprar as coisas de casa, para guardar o dinheiro e com-prar algo para me levar na cadeia.

Por todos esse tempo vivido nas celas, aprendi a dividir tudoque fosse de comer, para matar a fome do companheiro. O faxinaMiro era dono de uma rede de supermercados em Itápolis, e amãe dele também levava muitas coisas gostosas. Ele sempre me

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dava um pedacinho de uma torta e refrigerante. Sempre dividir,esse é o lema.

Conforme tudo isso foi acontecendo, foram se somando os dias.Eu via muitos novatos chegarem, outros irem embora, cada um noseu devido tempo — e nós ali no xadrez, ainda aguardando.

*

Certo dia, um menor dava entrada na cadeia. Mais uma vezouvimos o zum-zum-zum que vinha lá da frente. Foi se aproxi-mando da nossa cela. Observamos que era mais um conhecido.Um adolescente com o nome de Márcio, vulgo “Marcinho Pre-to”, da cidade de Borborema também. Estava sendo preso poruma série de infrações, e a juíza tinha decretado um Mandado deBusca e Apreensão. Ele já vinha tendo muitas chances com a Juíza,mas furtava excessivamente — era furto de aparelho de video-cassete, televisão, bicicleta... Roubava no próprio bairro. Tudo issoele fazia para manter o seu consumo de entorpecentes.

Já chegou confundindo as coisas. Ali tínhamos normas a se-guir e as passamos a ele, mas creio que por falta de atenção eleacabou arrumando desavença com o Rodrigo, a quem ele ofen-deu mostrando o dedo. Rodrigo perdeu a cabeça e agrediu Márcio,e acabou levando vantagem. Márcio foi nocauteado. Para mim,essa violência foi excessiva, e, querendo evitar complicações maio-res para o meu lado, fui correndo até o banheiro, peguei um fras-co com água e o atirei no rosto do Marcinho. Ele recuperou ossentidos após alguns segundos. Fiquei apavorado, com medo deque me sobrassem problemas, como no caso do Zequias.

Quando Marcinho acordou, o Rodrigo começou a falar ummonte de coisas para ele, que ouviu tudo quieto, talvez com medode que o agredíssemos também. Mas eu, desde quando retorneipara a prisão, tinha o objetivo de permanecer em paz.

Marcinho ficaria ali apenas por alguns dias. A juíza estavaaguardando uma resposta da FEBEM de Araraquara, para onde

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ele deveria ser enviado. E sem demora, após alguns dias, ele foitransferido. Não tínhamos a mesma chance que ele de poder irpara essa FEBEM de Araraquara, porque a juíza solicitou vagas,mas a unidade negou, alegando ser apenas uma unidade paraprimários, sendo Rodrigo, Paulo e eu todos reincidentes. O mes-mo pedido a juíza fez para as unidades de Ribeirão Preto e Tatuapé,em São Paulo, mas elas responderam que não tinham vagas e nemsegurança suficiente para nós três. Então ela solicitou vagas emFranco da Rocha, que, sem muita demora, retornou concedendoas vagas para Rodrigo e para mim. Paulo seria encaminhado no-vamente para a UAI do Brás.

Destas notícias ficamos sabendo através de meu advogado,que passou para minha família, que nos contou. Já podíamos de-duzir que essa seria a última visita.

Todos ficamos muito entristecidos, porque já conhecíamosnosso destino. Franco da Rocha nunca foi bem vista e os internoseram considerados de Alta Periculosidade, sendo autores de Cri-mes Graves e Gravíssimos. Também conhecíamos a rigidez dessecomplexo. Os funcionários batem demais e os internos revidamcom muita agressividade. Fui tomado pela sensação de medo.Medo de arrumar encrenca e, ao me defender, acabar me preju-dicando. Quando entramos em uma cadeia sempre surge o medodo que virá, pois nunca se sabe o que, onde e quando poderáacontecer o inesperado, como uma briga ou uma rebelião. O medoé constante.

A última visita em Itápolis foi a mais marcante, pois todoschoramos, nos despedimos e prometemos aos nossos pais que ven-ceríamos e que logo estaríamos de volta. Falamos também queeles não deveriam se preocupar conosco, que estaríamos bem.Rodrigo e eu permaneceríamos no mesmo complexo e seria maisfácil superar as barreiras com um colega ao lado. Mas Paulo esta-ria só e, infelizmente, ninguém poderia mudar seu destino, so-mente Deus.

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Encerrou-se a visita e o clima de tristeza, angústia e emoçãotomaram conta do lugar. As lágrimas escorriam no rosto de todos.Recebi o adeus deixado por meus familiares e o último beijo queJosiane me deu, com seu rostinho cheio de lágrimas, assim comoo meu. Depois do beijo, ela foi-se embora com meus pais.

Tentei passar o máximo de energia positiva que pude, paraque não ficassem preocupados. Mas a mídia, através dos canais deTV, já vinha falando do que era a FEBEM de Franco da Rocha.

No dia seguinte, Paulo foi transferido para a UAI. Deseja-mos boa sorte a ele.

Aguardamos apenas mais três dias. Bem de manhã, o carce-reiro veio até nossa cela para avisar que aquele seria o dia de partire devíamos nos preparar.

Pegamos o que deu para pegar e deixamos alguns pertencespara outros presos mais necessitados, que não recebiam visitas.

*

Chegada a hora. A grade foi aberta, mas não para a liberda-de. Um calafrio tomou conta de todo o meu corpo. Ao sair, Miro,o faxina, veio se despedir e desejar-me boa sorte. Disse para queeu não esquecesse dele. Respondi que jamais o esqueceria e tam-bém deixei o meu “boa sorte” a ele. Asseverei que um dia nosveríamos, do lado de fora da prisão.

O Rodrigo já estava lá na frente do corredor. Conforme fuipassando ao lado do restante das celas, todos os meus conhecidosme desejavam boa sorte. Os chefes de carceragem, Marcão eEduardo, os mesmos que me haviam incriminado, já estavamaguardando com as algemas abertas, prontas para serem coloca-das e travadas em nossos pulsos. Levaram-nos até a frente dacarceragem, onde a viatura nos esperava com o compartimentotraseiro aberto para entrarmos. Uma forte escolta de policiais ocu-pava mais duas viaturas, que nos acompanhariam até a FEBEM.

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Entramos e nos trancaram mais uma vez de forma irregularno compartimento fechado, que segundo a lei é proibido paramenores — mas ali não existem leis para presos. Se viesse a acon-tecer um acidente, como iríamos nos proteger, que segurança nosofereceriam? E conosco foram três policiais dentro da viatura emque estávamos. O único que tinha coração ali era o Sr. Leandro,que muito me orientou; este sim é um bom profissional. Os ou-tros carros que nos escoltavam seguiam um na frente com quatroocupantes, outro atrás com mais quatro, somando no total onzepoliciais. Tudo isso por receio de algum resgate ou tentativa defuga, por estarmos, aos olhos deles, inconformados com a situa-ção, e pela viagem ser longa — aproximadamente cinco horas.

Viagem longa, mas correu tudo bem. Paramos apenas umavez, próximo de Campinas — mas de tantos policiais em volta demim e de tanta vergonha, nem utilizei direito o banheiro. Fiqueiincomodado, pois todos nos olhavam, e os policiais causavam es-panto. Passei muita vergonha. Em mim não imperava mais uminstinto criminoso, apenas a intenção de pagar o erro cometidohá muito tempo, que foi julgado só agora.

"Por que?", eu me pergunto. Por que vieram me julgar, sónesse momento, quando a lei prevê um prazo máximo de 45 diaspara o juiz ter uma posição sobre o que será feito do menor infra-tor — se ele ficará internado provisoriamente, ou se receberá umacondenação definida em instituição educacional?

De qualquer forma, chegamos ao nosso destino. Rodrigo e eucomeçamos a observar a altura das muralhas, os seguranças em seuspostos nas guaritas, policiais próximos dos portões, cães perto dosmuros. Já começava a me dar um enorme calafrio, medo de quealguma coisa ruim viesse a me acontecer. Chegamos aos portões deentrada. Os policiais que me traziam se identificaram. As outras duasviaturas que nos escoltavam permaneceram do lado de fora.

Entramos.

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EM BRANCO

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TERCEIRA PARTETERCEIRA PARTETERCEIRA PARTETERCEIRA PARTETERCEIRA PARTE

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EM BRANCO

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CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.CAPÍTULO IX: Eu queria realizar um sonho.

Em minha primeira passagem pela Fundação, tinha ouvidofalar, muitas vezes, da FEBEM de Franco da Rocha. Das suas re-beliões, do perigo e do sofrimento que era ficar nesse lugar. Ou-via relatos de funcionários que trabalharam nessa unidade, rela-tos de internos que passaram por lá. Desta vez, lá estava eu, paraenfrentar a temida Unidade de Franco da Rocha.

Uma vez atrás das muralhas, senti que a minha única prote-ção no momento era Deus. Os policiais desceram do carro, abri-ram o chiqueirinho para que Rodrigo e eu pudéssemos sair e,nem bem descemos, um funcionário já nos mandou virar e en-costar o rosto contra a parede, colocar as mãos para trás, e semconversa. Dessa forma ficamos uns cinco minutos. O funcionáriomandou que o acompanhássemos, mas com as mãos para trás e acabeça baixa, caminhando um atrás do outro. Chegamos a umbanheiro — por sinal coletivo, com muitos chuveiros — e o fun-cionário mandou que tirássemos as roupas para que ele efe-tuassea revista, e assim fizemos. Todos os nossos pertences foram reco-lhidos. Permitiram que entrássemos apenas com as cartas, pois orestante ficaria ali em um saco preto com o nome de cada um.

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Após a revista, ele nos passou as normas e disse que qualquerdescumprimento resultaria em paulada.

Disse também que essa unidade “Alemanha” (em alusão aoscampos de concentração nazista, da Alemanha da Segunda GuerraMundial) era bem diferente das outras. O meu proceder, atitudee o respeito seria os fatores que me levariam de volta para casaileso. Ouvi e guardei bem estas palavras, para não fazer nada deerrado.

Fomos adentrando ao pavilhão, para retirar as digitais. Naentrada estava escrito UI 31. Tiramos as digitais e andamos maisum pouco no sentido do interior do pavilhão. Havia um númerogrande de funcionários e seguranças com seus pit-bulls segurospelas coleiras. A estrutura física era assustadora, cheia de gradesque iam do chão ao teto, com aproximadamente cinco metros dealtura. Passamos por umas quatro dessas grades, até chegarmos àscelas chamadas de “triagem”. Rodrigo e eu fomos separados —ele foi para uma cela solitária e eu para outra. Deram-me umcolchão, lençol e uma troca de uniforme. Então fecharam a portada cela, que era composta de chapa de aço, com apenas um pe-queno vão, que serve para entregar a comida ao preso. As paredesaté que estavam bem pintadas, mas a torneira e o vaso sanitárionão funcionavam. O espaço era apenas para dormir, pois circularnão era possível.

Em seguida um funcionário veio me trazer um prato de co-mida e uma garrafa descartável com dois litros de água. Eu mealimentei um pouco, mas não comi toda a comida — estava mui-to pensativo. Pensava em minha família, minha namorada. Lia erelia as únicas cartas que estavam comigo. Creio que Rodrigo tam-bém estava fazendo a mesma coisa.

Sentia um aperto dentro do peito, uma enorme vontade dechorar, tentava encontrar um porquê para tudo isso, um porquêpara tanta angústia, sofrimento e solidão.

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A distância entre meus familiares e eu ficou maior. Por essefato já não tinha esperanças de receber visitas, mas eu queria co-nhecer o resultado do exame de gravidez da minha namorada,pois esta incerteza me torturava. O primeiro dia na solitária pas-sou, e como o primeiro, assim foi o segundo, terceiro, quarto,quinto até o décimo, quando me tiraram da triagem “solitária” eme levaram para o “fundão”, onde estavam outros internos emseus pavilhões — denominados “alas”. Me colocaram na ala B.

Antes de me soltarem no pátio, tive que raspar a cabeça

— Isso é uma norma da unidade para diminuir as coceiras,piolhos e outras doenças.

Agora com a cabeça raspada, fui solto no pátio junto dosoutros. Fiquei quieto num canto, apenas observando a partida defutebol. Rapidamente, alguns se aproximaram de mim para con-versar. Conversamos. Me identifiquei, citando “B.O., cidade, pas-sagens na FEBEM…”. Enfim, passei todas as informações a meurespeito, e coletei algumas também.

Terminamos a conversa. Me chamaram para participar dojogo de futebol que estava acontecendo na quadra. Como estavacom muita vontade de correr, não pensei duas vezes. Fazia quasedois meses e meio que eu estava preso, e ainda não me haviamsoltado para estalar e desenferrujar os ossos, que estavam trava-dos.

Joguei um pouco. Terminou o horário do banho de sol. Tí-nhamos que nos recolher para as celas, tomar um banho e depoisaguardar o almoço. Eu ainda não sabia em que cela residiria. Ofuncionário me disse que ficaria no X-2, porque todos são damesma compleição física e altura. Eu me dirigi até a entrada dacela. Todos me cumprimentaram com apertos de mão e fui bemrecebido. O funcionário assoou o apito, e todos começaram rapi-damente a formar uma fila, um atrás do outro. Fiz o mesmo, en-trando com os outros numa só cela.

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Quando olhei para o lado de dentro da cela, comecei a con-tar em quantos estávamos. Contei doze presos, eu incluído. Logofui contar quantas jégas (“camas”) havia, e também eram doze,uma para cada um. Havia dois vasos sanitários e dois canos queserviam de chuveiro.

Agora era hora da ducha e, na movimentação, fiquei obser-vando cada um, um por um, até que vi um rapaz cuja fisionomianão me era estranha. Parecia conhecê-lo de algum lugar, não merecordava de onde. Permaneci na minha, até ver se ele semanifestava. Após algumas trocas de olhares, ele veio até mim edisse que me conhecia. Respondi que também tinha a mesma im-pressão. Ele perguntou se eu havia passado pela UAP 6, entãoconsegui lembrar dele. Realmente tínhamos ficado presos juntos.

Ele atendia pelo vulgo de “Tatau”. Era de Ribeirão Preto e,na época em que ficamos presos na UAP 6, ele estava lá por tercometido um homicídio e fora liberado com seis meses, mas haviaretornado por outro homicídio, desta vez assassinou um PM e seentregou perante o juízo por garantia de vida.

Eu disse que não havia cometido mais nenhum delito, masque estava preso cumprindo uma sentença que demorou a serjulgada. Entramos um pouco mais em detalhes. Ele recordava-seda época em que Zequias passou pela UAP 6. Tinha até presenci-ado o trem-bala que ele tomou no boi.

E assim nos tornamos colegas e fomos caminhando para aducha. Levei apenas minha toalha. Ele percebeu que eu não ti-nha sabonete e me cedeu um.

— Muito agradecido — respondi, e fui tomando minhaducha e conversando com ele, que me explicou algumas coisas dopavilhão.

Mais tarde, os doze adolescentes formaram uma fila parasaírem do xadrez. Caminhamos até o refeitório, que era uma es-pécie de “cela maior”. Entramos e nos sentamos para aguardar arefeição. Notei que estava sendo servido comida em marmitex, e

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não um prato como aquele que me serviram na triagem. A refei-ção na “ala B” é diferente da dos demais que aguardam na tria-gem. Durante o almoço não é permitido conversar, assoar o nariz,se coçar, limpar os dentes e nem mastigar de boca aberta. Se al-guém fizesse alguma destas coisas, iria direto para o seguro. Aque-les que se enquadram em algum desses casos podem ter a certezade sofrer muito do lado de dentro, pois não são aceitos pelos ou-tros internos. Alguns funcionários às vezes aproveitam da sua si-tuação para humilhá-los, ou colher informações sobre como andaa cadeia, alguma rebelião programada, internos sendo torturadospor seus companheiros fora das vistas dos funcionários — essetipo de informações. É um lugar onde vale tudo, só não vale pisarna bola.

Após a refeição, retornávamos para o xadrez, até a comidafazer digestão. Aguardávamos o horário da escola, que era a par-tir das três horas da tarde. Permanecemos até uma e meia da tar-de trancados. As celas são chamadas de “trancas”, pelas portasserem compostas de chapas de aço, com alguns pinos de grade aolado para servir de suspiro, como forma de circulação de ar.

Em questão de instantes já fiquei mais chegado da turmatoda, através do Tatau, que indicou para a rapaziada que eu eraum “truta” dele (amigo dele), que eu era mais um “sangue bom”.Ele foi uma espécie de “cunha”, um apoio para conviver bem.Isso geralmente acontece quando se tem algum conhecido. A ca-minhada fica mais leve, é mais fácil de se pegar uma coletividadee viver os dias com mais tranqüilidade. Já para aquele que nãoconhece ninguém, fica mais difícil a convivência. Para adquirirajuda sobre o procedimento da cadeia e do X, os irmãozinhos quejá estão lá passam as coordenadas do que se pode e não se podefazer.

O Rodrigo acabava de chegar para morar ali no pavilhão.Tive a sorte de tê-lo na mesma ala que eu, mas ele foi morar noX4. Fiquei um pouco mais confortado, porque sabia que batería-

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mos um papo todo dia. Ele mal entrou no xadrez dele e já eradada a hora de sair para o pátio, então nos cumprimentamos enos abraçamos.

— Firme? — eu disse.

Ele respondeu:

— Firme e forte.

Apresentei-o para o Tatau e mais alguns manos da cela. Elejá se sentiu mais acomodado. Os irmãozinhos do meu xadrez dis-seram a ele:

— Se precisar de alguma coisa liga nóis lá no dois. — Umafrase que significa “conte conosco”.

Quando se está no pátio não é preciso andar com as mãospara trás. Havia apenas uma sala de TV dentro de nosso pavilhão.Tudo que assistíamos era selecionado por uma central que fica naentrada da FEBEM, pois não podíamos receber notícias da mídiae pelos jornais, porque isso causa problemas e rixas entre presos,— mesmo atritos entre as pequenas facções criminosas que impe-ram em determinado espaço.

A sala de TV era bem espaçosa, mas quando todos se reuni-am a fim de apreciar um filme, aquilo virava uma lata de sardinhade tão apertado. Chegava a relembrar a UAI — o que me davaarrepios.

Às três horas era hora de estudar e. De acordo com a LeiN.º 8069, de 13 de julho de 1990, do Estatuto da Criança e doAdolescente, é dever do Estado e direito do adolescente ter acessoà educação, lazer e cultura. Em outras palavras, todos os internossão obrigados a estudar, mesmo não havendo interesse da partedeles. Têm de estudar, senão serão conduzidos até a sala de aulana paulada, embora não seja assim que a lei determine. De qual-quer forma, é assim que a maioria dos funcionários costuma tra-balhar, na Unidade 31 de Franco da Rocha.

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Penso que isso ocorre pelo fato de haver ali apenas internosconsiderados graves ou gravíssimos. A unidade é de Alta Conten-ção. Os internos são mais problemáticos e a estrutura de trata-mento já nasce errada desde o princípio, pois não faz sentido,violência para combater a violência.

Quem estivesse no ensino médio era para formar uma filaúnica, mãos para trás e cabeça baixa, e acompanhar os inúmerosfuncionários. Digo inúmeros, porque agora teríamos que andarpelas galerias da unidade até chegar às salas de aula, e esse montede funça nos escoltava para não dar chance de haver tentativa denada.

Em seguida vinha quem estava no ensino fundamental.Durante a aula era permitido apenas conversar a respeito da ma-téria e nada mais. Isso todos respeitavam porque o funça ficava naporta e contrariá-lo certamente traria algum castigo.

Assistíamos às aulas até as cinco e meia, tomávamos um caféda tarde, que era um suco em caixinha e um pão, depois retor-návamos para o pavilhão. Mas assim que entrei ali pela primeiravez, me surpreendi, — estavam fazendo revista em todos os inter-nos. Isso era feito por existirem certos elementos que pegam al-gum objeto para usar como arma. Sendo assim, a revista é neces-sária.

Após passar pela revista, fui para o X tomar uma ducha,porque depois jantaria lá no refeitório, às sete horas.

Na cela, falávamos sobre nossas vidas, sobre família, namo-rada. As decepções do destino, os erros e os acertos. Era mais doque uma terapia para mim, porque o que estava acontecendo emminha vida me deixou muito sensível e emocionalmente frágil.Comentei com Tatau que achava que minha mina poderia estargrávida. Ele disse que eu tinha que me inspirar em lembrançasboas, pois o ambiente era muito negativo e tínhamos que ser po-sitivos. Nosso objetivo era conquistar a liberdade, conquistar omundão. As palavras foram estas, que me aliviaram e ao mesmo

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tempo me inspiraram a levantar o meu astral. Eu me lembro queele falou assim:

— A gente tá preso, mas não tá morto, truta. A pena podeser longa, mas não é perpétua.

Ele realmente estava se tornando um amigo sincero, e maisadiante vou descrever o porquê.

Assim acabamos vencendo mais um dia de nossa pena. Omais importante foi que não ocorreu nenhuma desgraça no pavi-lhão, nem no restante da cadeia. Seria muito azar meu se ocorres-se alguma novidade. Confesso que sentia muito medo de aconte-cer algo inesperado, por isso, ficava sempre esperto. Mas o ines-perado ainda estava por vir.

*

Amanheceu mais um dia. Recordo-me de que era mês dejulho. Fazia frio. Meus únicos agasalhos eram o uniforme que aunidade me cedeu. Mesmo assim sentia frio, muito frio. Às sete emeia todos tinham que acordar, escovar os dentes e estarem comas jégas arrumadas até as oito horas, porque depois seria servido ocafé.

Permaneci no pátio com meus companheiros Rodrigo eTatau. Estava com vontade de jogar futebol, então começamos aorganizar um time. Tatau tinha um pacote de cigarro sobrando edecidiu apostar com o time rival. Aposta com cigarros, artesana-tos manuais, sempre foram comuns dentro dos sistemas carcerários.Tatau disse que se vencêssemos, o pacote seria nosso; mas se per-dêssemos, não precisaríamos pagar nada porque a iniciativa deapostar foi dele.

Formada a nossa equipe, entramos em quadra.

O jogo foi lindo no primeiro tempo, saímos disparado comvários gols. No segundo tempo trocamos de lado e o jogo come-çou duro e cerrado. Os dois lados queriam ganhar, porque umpacote de cigarro tem um valor especial no ambiente restritivo da

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unidade. Seria o nosso troféu. O segundo tempo estava termi-nando. A partida ficou mais emocionante, ambos os lados fica-ram mais agressivos nas disputas de bola — tanto que por váriasvezes ocorreram discussões. Mas a partida terminou e vencemoscom um enorme saldo de gols de vantagem. O pacote prêmio foinosso. Rodrigo e eu dividimos meio a meio e agradecemos ao Tatau,pois não tínhamos nada.

Soou o toque de recolher para as trancas. Fomos tomar umaducha e depois almoçar.

Depois disso, meu astral foi ficando 100% positivo. Já nãoficava me torturando psicologicamente. Recebi a primeira carta— foram minha namorada e minha mãe que escreveram. Nessacarta diziam que tudo estava bem e que o exame de gravidez ti-nha dado resultado negativo.

Fiquei triste mas ao mesmo tempo feliz. Triste porque minhacriança não viria, e feliz porque na situação em que me encontra-va, não poderia cumprir meu papel de pai. Essa carta me deumais alívio. Passei a viver os meus dias com a cabeça fixada naminha realidade, mas meus sonhos e objetivos de vida permane-ciam vivos em meu íntimo.

A carta foi um fator muito importante para o meu bem-estar interior. Eu a guardei com muito carinho. Afinal, ela era aminha companheira. O dia passou mais rápido, joguei futebol,almocei, estudei e jantei.

E assim passaram-se dias e mais dias de reeducação paga àjustiça.

*

Quando estava para completar um mês da minha chegada àUI 31, surge o inesperado, a novidade: o início de uma rebeliãono pavilhão “Ala G”.

Tumulto dos internos lá no fundão da cadeia. Eu podia ou-vir o barulho, os gritos, o ruído de ferros sendo arrastados pelo

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chão, e portas de aço que, pelo barulho infernal, estavam sendoarrombadas. Em questão de segundos, no máximo um minuto,uma leva de internos adentrava o nosso pavilhão. Alguns internosde nossa ala, pelo arroubo da emoção ou por impulso, começa-ram a chutar as portas.

Apareceu entre nós o pessoal que começou o tumulto. Per-cebemos que tentavam dominar o restante das alas, sendo oitoalas “pavilhões” comportando o total de 400 internos, divididosem oito alas, as Alas A, B, C, D, E, F, G, H — cada uma compor-tando cinqüenta internos. Agora estavam todos soltos e mistura-dos. Alguns funcionários até tentaram resistir e reagir, mas a mai-oria deles correu. Os poucos que ficaram para reprimir correramtambém ao verem a quantidade elevada de internos desgovernados.

Todas as celas foram abertas. Em nosso xadrez todos saímospara tomar ciência da situação, e saber qual a razão e a finalidadede tudo aquilo. Era porque os funcionários estavam batendomuito. Em pouco tempo, dois helicópteros da polícia sobrevoa-vam a unidade. Nenhum interno havia fugido até então. O climaera tenso. A tropa de choque foi acionada e já estava no portãocentral, preparada para entrar. Não havia reféns dentro da uni-dade, mas alguns internos considerados “pilantras” estavam apa-nhando um pouco de outros internos. O impasse durou pouco,cerca de quarenta minutos, até que acertaram uma negociação.As reivindicações foram no sentido de que os funcionários paras-sem de bater, pois a violência estava virando rotina. Por qualquerdeslize de um interno eles já vinham batendo com canos de ferroe tacos de madeira. Nessa mesma época a UI 32 de Parelheiros foidesativada, por terem encontrado no seu interior objetos usadospara a tortura como forma de repressão. Um interno, porta-vozdos demais, fez a reivindicação.

A direção da UI 31 garantiu que não haveria esse tipo detratamento e que estava tomando conhecimento dos maus tratossomente então. Garantiu que fiscalizaria o trabalho dos agentes

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de proteção, funcionários e coordenadores. O porta-voz dos in-ternos disse que se renderiam, mas não queriam a tropa de cho-que entrando nos pavilhões.

Dentro da minha cabeça eu tirava as minhas conclusões —dificilmente acabaria a violência institucionalizada. Mas agora eraesperar tudo voltar ao normal. Não houve grave destruição dopatrimônio público — apenas algumas portas foram arrancadase alguns colchões queimados. Nada de tão grave.

Tudo combinado e agora os funcionários entrariam para fazera contagem e dividir os adolescentes. A multidão se dispersou.Cada um retornou à seu pavilhão, mantendo-se todos sentadosno pátio até a entrada dos funcionários, como fora o combinado.

O helicóptero sobrevoou mais uma vez e foi embora. Emseguida os funcionários entraram.

Estávamos todos sentados em fileiras. Eles entraram e per-guntaram se havia alguém machucado. Ninguém se manifestouporque não havia ninguém ferido. Mandaram todos tirarem asroupas, permanecerem sentados apenas de cuecas. Assim foi fei-to, para que pudesse ser feita a conferência de números, nomes eobservação do corpo de cada adolescente, para ver se havia mar-cas ou não.

Eu só queria sair dali porque o sofrimento era constante. Secometesse um deslize no falar, arriscava-me a levar uma surra.Perfeito eu não sou, por isso vivia com medo.

Tudo voltou ao normal após a revista dos internos. No espa-ço da ala, algumas facas artesanais, chamadas de “naifas”, foramencontradas ou entregues. Voltamos para as celas. Nada foidestruído em nosso pavilhão. Por enquanto ninguém tinha apa-nhado — estava sendo cumprido o contrato verbal firmado coma Diretoria. Isso eu afirmo com respeito à minha ala, a B.

*

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Ficava pensando em uma oportunidade de avanço, mas aliera difícil progredir — os cursos profissionalizantes eram poucose eu tinha que aguardar em uma lista de espera.

Pedi a um funcionário de nome Santana para chamar o co-ordenador Tarso. O pedido foi atendido. Conversei com ele, pe-dindo para falar com a assistente social, ou com a psicóloga, poisminha intenção era pedir uma oportunidade de melhoria. Que-ria saber se ela poderia me transferir para uma unidade melhor.Tudo isso expliquei ao Sr. Tarso, que disse que veria isso para mim.

Mais tarde ele veio me chamar na cela, pois a assistente so-cial Evaneir estava me esperando. Fui conduzido até a sala dela econversamos bastante. Contei quais eram as minhas idéias e pedia sua compreensão. Eu precisava sair dali, porque da forma queestava eu não via espaço para mostrar que me recuperava. Mi-nhas idéias eram:

— Já que estou terminado o Segundo Grau, faltando ape-nas eliminar as disciplinas de Português e Física, eu queria realizarum sonho.

— E que sonho é esse? — ela perguntou.

Contei que estava estudando quando em liberdade e, comoela já sabia, eu estava preso há apenas alguns meses, mas o meuobjetivo lá fora era terminar o Segundo Grau e prestar o vestibu-lar. Eu queria cursar Direito, mas tudo fora interrompido porcausa de uma sentença antiga que tinha recebido recentemente.

A assistente social ainda não me conhecia bem, e deu umarisadinha irônica, quando lhe contei isso. O Sr. Tarso permane-ceu ouvindo sério. Ele sabia qual era o meu comportamento naala, porque no seu trabalho ele convivia cerca de doze horasconosco, e estava me conhecendo. Então o Sr. Tarso perguntou-lhe se seria possível conseguir uma transferência para uma de trêsunidades: UI 21, UI 25 ou UI 29. Ela respondeu que por en-quanto não havia vagas, mas que analisaria a minha situação com

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mais calma, e depois me daria um parecer. Respondi que tudobem e pedi para fazer uma ligação. Ela permitiu porque eu nãotinha visitas.

Falei com minha mãe, disse que estava bem. Ela vivia preo-cupada. Tinha visto no programa do Gugu imagens da rebelião.Terminei a chamada porque o tempo era curto.

Tarso retornou comigo para a ala. Fomos conversando. Eledisse que eu tinha uma conduta diferente dos demais. Paramosnas galerias da unidade e ele perguntou o que eu havia feito. Ex-pliquei a ele, e ele foi compreensivo. Aconselhou que eu conti-nuasse com a mesma conduta e com os mesmos pensamentos,que ele me ajudaria na medida do possível. Foi muito gratificanteouvir essas raras palavras, porque dificilmente um coordenadorou funcionário diz essas coisas para um interno — era precisoprimeiro mostrar muito boa conduta, para que isso acontecesse.

Estávamos entrando no pavilhão. O funça Sr. Santana veiome entregar uma carta que havia chegado. A remetente era mi-nha namorada. Agradeci ao Sr. Santana. O coordenador Tarsome acompanhou até o xadrez. Antes de entrar eu o agradeci bas-tante. Fui sincero, disse o meu obrigado de coração. Ele me res-pondeu que esse é o trabalho dele, para os que demonstram inte-resse em evoluir.

Entrei no X e já fui ansiosamente ler minha carta. Eram umascinco folhas de fichário. Com essas folhas vieram palavras lindasde conforto, força e amor. Veio também uma letra de música dosTravessos — “Bagagem”, que fala sobre a distância e a esperançade que ela nunca venha a nos separar.

Meu dia ficou ótimo. Era como se nem estivesse preso. Eume senti muito motivado para continuar de cabeça erguida. Oapoio da minha namorada e da minha família estava sendo o meualicerce e minha inspiração de conquista.

*

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Passei a jogar bola todos os dias na parte da manhã, pois ali agente tem que se manter ocupado, senão enlouquece. Conseguialgumas folhas de sulfite e um papel celofane, esses de embrulharovos de páscoa. Comecei a fazer artesanatos manuais, porta-retra-tos, cestinhas e casinhas, para que pudesse dar de presente quan-do visse alguém de minha família. Era uma atividade muito inte-ressante, porque, enquanto fazia o artesanato, eu ficava pensandona minha mãe, no meu pai que estava meio doente, na minhanamorada, e colocava todo o amor e carinho nos objetos. Ficavarefletindo sobre a minha vida, os meus sonhos, minhas perspecti-vas futuras, meus erros e acertos, e o que podia fazer para melho-rar ainda mais. Pensava também na situação em que me encon-trava. Qual a solução para revertê-la, e como provar a todos queeu realmente estava bem e que era capaz de conquistar meus ob-jetivos e realizar meus sonhos?

Muitos livros que eu lia, apesar da dificuldade em ter acessoa eles, tinha de pedir aos funcionários para que fossem buscar nabiblioteca, que a gente sabia existir no lugar, mas não exatamenteonde. Quando se pedia um livro, o funcionário levava o pedidoaté as assistentes sociais. Dependendo do funcionário, a solicita-ção não chegava a elas e eu nunca via a cor do livro. Mas às vezesconseguia, e eles me inspiravam à reflexão. Isso foi fazendo comque eu fosse desenvolvendo um controle maior da língua portu-guesa e um poder maior de reflexão. A minha preferência era lerlivros de psicologia e doutrinas jurídicas.

Através da reflexão, comecei a mostrar para mim mesmo que,depois de tantas barreiras superadas, tudo que passei, e a força depensamento que eu estava tendo, era mais do que possível con-quistar o almejado. Um grito de guerra foi dado em meu coração.Acordei e percebi que já não podia perder mais tempo — erahora de correr atrás e recuperar, de uma forma legal, tudo aquiloque havia perdido, durante o tempo em que vivera namarginalidade.

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Ainda aguardava a resposta da assistente social a respeito demeu pedido de transferência. Não foi preciso esperar muito. Elame chamou.

Um funça veio me buscar no pavilhão. Foi de manhã — euestava no pátio assistindo a um jogo de bola e ouvindo uma músi-ca de rap, porque depois da rebelião colocaram uma caixa de somno pátio, para o pessoal ouvir. Atendi o chamado do funça denome Marcelo, bacharel em direito, e caminhamos até a sala daassistente responsável pelo meu caso, a Sra. Evaneir. Deduzi queseria a respeito da minha transferência, mas só chegando lá parasaber.

Ela me viu, sorriu e me mandou entrar. Acompanhado dofunça, entrei e me sentei.

— Está tudo bem com você na ala, Cleonder? — ela per-guntou.

— Sim, senhora — respondi. — A senhora sabe que pre-tendo fazer do meu tempo passado aqui o melhor que posso.

Fui sincero com ela e, acima de tudo, comigo mesmo. Perce-bi que ela gostou do que falei.

— Está com saudades da família? — perguntou.

— A saudade é enorme — eu disse. — Mas tenho certezaque será por pouco tempo.

Ela me disse:

— Nossa! Como você está positivo! Faz bem ser assim.— Fez uma pausa e prosseguiu: — Então vamos ao assunto. Ésobre aquilo que você me pediu. Analisando a sua situação, eusolicitei uma vaga para uma unidade que é um internato aqui aolado, mas eles retornaram alegando que não há vagas.

Fiquei um pouco chateado ao ouvir isso. Ela percebeu.Disse que tentaria solicitar em outra unidade.

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— Não se preocupe, que qualquer novidade eu me comu-nico com você.

Depois disso, ela me deixou fazer uma ligação. Falei comminha mãe. Enquanto falava, eu chorava levemente. Mamãe medisse que meu pai fora internado mas passava bem. Foi apenas oreumatismo e a diabetes que se agravaram um pouco, mas nãoera nada de grave. Perguntei sobre minha namorada. Ela disseque todos os finais de semana Josiane vinha passar o dia com eles,porque entre segunda e sexta-feira ela trabalhava e estudava.

Tive que terminar. Me despedi, disse que estava bem e paranão se preocuparem. Pedi a benção dela e desliguei. Agradeci aassistente, olhei para o funça e com ele voltei para o pavilhão.Conversamos um pouco. Eu tinha ouvido os meus companheirosde X falarem que ele havia cursado uma faculdade de direito.Perguntei a ele se era advogado.

— Quem te falou isso?

Contei a verdade. Ele disse que não era advogado porqueainda não tinha prestado o exame da OAB. Quis saber por queeu perguntava. Disse a ele que meu sonho era cursar Direito, eque tinha planos de mesmo estando ali dentro conseguir prestarum vestibular. Ele ficou meio pensativo com o que eu disse. Jáestávamos chegando na ala e encerramos a conversa com ele di-zendo:

— Vá em frente.

*

A maioria das notícias que recebera foram boas. Apenas fi-quei pensativo sobre o problema do seu Francisco, meu pai — esobre meu pedido de transferência. Mas logo fui tentar terminarde ler um livro e relaxar. No dia seguinte os funcionários vieramselecionar alguns internos para conversar. Fui selecionado, semnem saber para o que era. Meia dúzia de internos foram conver-sar com o coordenador Sr. Tarso, na sala da coordenadoria. O Sr.

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Tarso, com seu jeito brincalhão, cumprimentou-nos e pediu paraentrarmos para bater um papo.

A primeira coisa que ele perguntou foi:

— Quem está de boa aqui?

Todos responderam erguendo os braços. O Sr. Tarso entãodisse:

— Tudo bem, mas prestem atenção. O grande caso é o se-guinte: estamos querendo pintar o nosso pavilhão com uma cormais leve, e vocês foram chamados aqui pelo bom comportamen-to e indicados pelos funças. Quero saber quem está disposto aparticipar desse trabalho.

Mais uma vez todos levantaram os braços, porque falta ocu-pação e estando ocupado, sofre-se menos.

Tarso disse que depositaria o voto de confiança dele em nós,porque isso tinha que ser uma tarefa “de responsa”.

Todos já foram se levantando e pegando as coordenadas como Sr. Santana, que era o funcionário responsável. Ele disse quedurante o tempo em que estivéssemos trabalhando, não seria ne-cessário andar com as mãos para trás, e nos passou o restante dosafazeres. Disse que primeiro pintaríamos as grades com tinta aóleo, mas nos alertou que teríamos contato com tiner, uma subs-tância tóxica se inalada, e que não queria descobrir novidades arespeito de alguém “cheirar”.

Disse o seguinte:

— Vocês irão raspar as grades, retirar o mais grosso, lixar edepois retirar o pó. Aí é só pintar. Depois das grades prontas,vamos pegar as paredes.

As grades eram pretas e passariam a ser verdes.

Conversamos com firmeza, combinando que não podería-mos cometer nenhum furo.

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Para nós o trabalho começou a ser muito gratificante, poisnos atribuíram responsabilidades e reconheceram nosso bom com-portamento, e também depositaram confiança em nós. Isso fazcom que o interno se esforce para cada vez mais receber elo-gios,o que faz parte da reeducação como uma terapia ocupacional.

Do meu ponto de vista e com experiência própria do ladode dentro das muralhas, penso que faltava justamente ocupaçãopara todos. É necessário inserir vários cursos profissionalizantes,para que o interno possa se especializar em alguma área, para que,quando posto em liberdade, possa usufruir de sua experiência eter mais acesso ao mercado de trabalho. Um ex-interno traba-lhando é um criminoso a menos nas ruas.

Pintamos todas as grades do pavilhão. Então atacamos as pa-redes, que estavam sujas e imundas. O Sr. Santana ficava obser-vando e fornecendo o material de que precisávamos. Tudo levouquase uma semana para ficar pronto, porém as grades e as celasficaram com um visual ótimo.

Quando acabamos, o coordenador Sr.Tarso pediu para oSr. Santana chamar todos os integrantes do grupo de pintura atéo refeitório. Chegando lá, o Sr. Tarso já veio brincando — esseera o jeito dele ser e de trabalhar — e nos disse que havia umasurpresa nos esperando.

Devido ao trabalho que fizemos, o Sr. Tarso nos deu duaspizzas e duas garrafas de Coca-Cola de dois litros. Contou quetodos os funças deram uma contribuição financeira como formade gratidão pelo trabalho que desenvolvemos.

Após comermos, Tarso perguntou quem estaria disposto acontinuar trampando. Todos responderam que sim. O coordena-dor disse que agora íamos começar a pintar as paredes da galeriae os corredores do interior da unidade. Começaríamos a partirdo dia seguinte.

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A rotina de quem estava envolvido no grupo de pintura fi-cou mais leve, e o ânimo aumentou por causa do trabalho. O juizestava sendo informado dos nossos esforços, através de relatórios.

Pintamos todas as paredes do interior da unidade. Ficou mui-to bonito. E mais uma vez ganhamos gratificações pelo nosso de-sempenho.

*

Depois de dois meses da minha chegada à unidade, a assis-tente me chamou mais uma vez. Fui até a sala dela, acompanhadodo Sr. Marcelo. Mal cheguei, ela já disse que tinha novidades. Noato pensei que fosse minha transferência, mas não era a hora ain-da. Mesmo assim fiquei feliz — eram meus pais que estavam alipara me visitar. O Sr. Marcelo me levou até um local em que eupoderia ficar com meus pais. O funça me conduziu até um pátioque eu nunca havia visto, e fiquei aguardando meus pais.

Logo percebi que estavam sem os calçados nos pés — usa-vam um chinelo como o meu, cedido pela unidade, porque énorma da casa substituir os calçados a fim de prevenir a entradade drogas, armas ou ferramentas de fuga.

Foi estabelecido o tempo de apenas trinta minutos de visita,porque era no meio de semana, e para mim estava sendo abertauma exceção. Permaneci o tempo todo ao lado de dona Izilda edo seu Francisco. Como fazia frio, eu tremia. Minha mãe descon-fiou da tremedeira e perguntou se eu estava machucado. Quisolhar o meu corpo, mas eu disse que eu não podia retirar a blusa,porque havia outros internos nas imediações e se eu fizesse issoseria punido. Ela sabia que existiam leis próprias entre os inter-nos, por isso não insistiu. Tentei reconfortá-la:

— O tumulto que ocorreu já passou e agora estamos todosbem, pois foi firmado um acordo entre os internos e as autorida-des.

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Conversamos sobre meu irmão, minha namorada... Eu per-cebia a tristeza de meu pai. Ao observar seu semblante, me doía ocoração e ao mesmo tempo eu sentia vontade de chorar. Meu painão falava muito, ficava me olhando… Sabia que ele estava triste,e intimamente eu desejava torná-lo o pai mais feliz da terra.

Como o tempo é curto, a visita chegou ao fim. Foi muitodifícil me despedir. Comecei a chorar e os abracei. O funça che-gou e disse que encerrou o tempo. Mamãe me deu um beijo edisse:

— Fica com Deus, meu filho.

*

No dia seguinte, logo de manhãzinha, o funcionário JoséRoberto, que cursava o quarto ano de direito, solicitou que euapanhasse tudo que fosse meu porque estaria sendo transferido.

Nesse momento, senti uma forte sensação de alívio. Respireifundo, me senti mais leve e agradeci a Deus por ter ouvido meupedido.

Perguntei ao funça para onde eu iria. Ele respondeu nãosaber. A ordem que fora passada a ele era de apenas me retirar doX, porque eu ia de bonde (transferência).

Estava ansioso por sair daquele barril de pólvora. Fomos atéa entrada da unidade, onde uma van me aguardava. Algemaram-me e prosseguimos. No caminho, perguntei para onde estávamosindo. O funça respondeu:

— UI 25 de Franco da Rocha.

No mesmo instante desanimei, porque lá tinha ocorrido umarebelião há um mês. Mas fui em frente, pensando em fazer de láum lugar bom e não deixar o lugar me fazer uma pessoa ruim. Ofuncionário, Sr. José Roberto, me disse que na 25 eu teria maisoportunidades de conquistar o que queria.

Entramos em uma estrada de terra batida. O veículo subiuum morro até chegar à entrada do novo complexo, em que eu

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permaneceria. Esse complexo era composto de unidades de Pro-gressão; o anterior era Contenção.

Os portões foram abertos e o carro entrou dentro da “gaio-la”. Descemos, o funça se identificou. Seguimos para o interiordo complexo, que comporta três unidades: UI 21, UI 25 e UI29. Fui levado à uma salinha para passar pela revista. O Sr. JoséRoberto foi embora me desejando boa sorte. Fique sob a respon-sabilidade do coordenador da UI 25, de nome Juarez. Tudo nor-mal quanto aos procedimentos de entrada. Caminhamos e passa-mos pela 21 e 29 e seguimos para a 25, que fica nos fundos docomplexo.

Fui conduzido até a coordenadoria. Em todo o trajeto quefiz, percebi que nada estava queimado — parecia que nem tinhaacontecido uma rebelião. Já na coordenadoria, fui levado a umamulher alta, loira, muito elegante. Reparei em seu crachá— estava escrito Silvia. Ela se sentou na cadeira de sua mesa e meperguntou:

— Qual é o seu nome?

Respondi:

— Cleonder Santos Evangelista, senhora.

— Qual a sua idade?

— Dezessete anos, senhora.

— O que você quer da vida Cleonder?

Eu disse:

— Quero prestar um vestibular e me formar Doutor emDireito.

Percebi que quando pronunciei estas palavras, ela ficou meioespantada.

— Espero que consiga — disse. — Pelo jeito você quer viverbem o tempo que vai passar aqui.

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Respondi que se dependesse de mim, não causaria proble-mas, e que iria colaborar na medida do possível.

As normas foram passadas. Entendi tudo a respeito da uni-dade.

A coordenadora Silvia terminou o diálogo comigo e fui le-vado para o módulo A, quarto 2.

O quarto comportava oito adolescentes em camas indivi-duais, todos uniformizados. Quando cheguei à UI 25, as coisasainda estavam um pouco rígidas, devido à recente rebelião. Nãoestava sendo liberado o banho de sol, haviam cortado o cigarrodos internos. Realmente, estava o maior veneno. Na verdade, saída UI 31 e quando fui para a UI 25, enfrentei todas essas dificul-dades pelos erros dos outros — aqueles que haviam realizado arebelião pouco antes. Mas graças a Deus isso não durou muito,porque depois conquistamos nosso espaço, recuperando os privi-légios. E eu conquistei muito mais do que um simples espaço —fui aos poucos conquistando um a um, tanto internos quanto fun-cionários.

Primeiramente nunca gostei de inimizade, embora tenha tidoinimigos na vida criminosa. Já então eu era uma pessoa de paz,que procurava dar o respeito para ter retorno. Foi isso que apren-di no IEN e agora, na UI Rio Negro 25, não seria diferente. Nãocriei atrito e ganhei a confiança dos colegas da unidade. Primeirodentro do próprio X, que agora passava a se chamar de “quarto”,porque não havia grades, mas apenas uma porta de chapa de açochamada de “robocop”. Jonatas foi o primeiro cuja amizade con-quistei. Eu o estimo até hoje. Estava preso por homicídio doloso(Artigo 121) há dois anos e dois meses. Dentro do mesmo quartoestava o irmão dele, Leonildo, vulgo “Cola”, preso por assalto àmão armada (Artigo 157). O Jônatas era mais velho, com 19 anos,e o Cola com 16 anos de idade. Não havia ninguém que eu jáconhecesse no quarto 2, mas eu reencontraria no banho de solantigos amigos de outras “unidades alemanhas”.

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Como logo de início fiz amizade com Jonatas e Cola, fiqueitranqüilo. Eles gostaram de mim; também eram do interior deSão Paulo. Com o restante dos colegas de cela eu fui fazendoamizade depois.

Com a união de todos e mantendo a disciplina, conquista-mos mais tempo de banho de sol. O cigarro e as coisas de comerque as visitas traziam foram liberadas para ficarem sob o nossopróprio controle, e não dos funcionários.

A unidade 25 era composta por dois módulos, A e B. Cadaum comportava quarenta adolescentes.

Após alguns dias, o pátio foi liberado em período integral.Os cursos existentes não deixavam o interno ficar desocupado —todos eram inseridos em algum tipo de ocupação. Além dos cur-sos havia um trabalho sendo desenvolvido pelo funça Manoel,mais conhecido pelos internos como “Manu”. Para quem tinhainteresse, ele ensinava a cultivar plantas, flores, para deixar a uni-dade mais agradável e com o visual mais bonito.

A respeito dos cursos profissionalizantes, era o Sr. Marcosquem inseria os interessados. Certa vez, fui falar com ele porquequeria fazer alguma coisa. O Sr. Marcos é formado em Psicologia,mas estava trabalhando na pedagogia e observando o interesse decada pelos cursos. Ele me colocou no curso de xadrez, cujo pro-fessor era o funcionário Rubens. Pessoa culta, inteligente e cuida-doso ao falar, ele me ensinou esse jogo que até então eu não co-nhecia e hoje jogo bem.

Fazia quase cinco meses que eu estava preso, fiquei dois nacadeia do interior, mais dois no inferno da UI 31 e agora quaseum mês na progressiva 25. Já havia pegado a coletividade comtodos, porém encontrei conhecidos dos meus tempos de IEN,UAP 6 e alguns que progrediram lá na UI 31 e vieram para a UIRio Negro 25. Muitos haviam reincidido e voltaram, outros ain-da estavam presos.

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Na unidade havia uma parte do chão do pátio que era deterra vermelha. O funça Sr. Mário queria melhorar esta parte daunidade. Ele conhecia um pouco do serviço de pedreiro e queriaalguns internos para dar uma força no preparo do contra-piso e,ao mesmo tempo, ensinar o serviço. Como era um trabalho bra-çal — mexer com concreto, tijolos —, poucos demonstraram in-teresse, mas eu já tinha trabalhado nesse tipo de serviço e pedipara o Sr. Mário me incluir. Ele me chamou na hora para expli-car o que queria fazer. Fomos até a área que seria trabalhada. Elecomeçou a explicar, disse que chamaria mais alguns jovens paraajudar e foi fazendo o convite para muitas pessoas, mas veio ape-nas um — era o companheiro vulgo “Farrampa”, do interior deMinas Gerais, da cidade de Sete Lagoas. Eu já o tinha visto aju-dando o Sr. Manuel com as plantas, e agora estaríamos juntosneste trabalho. Começamos a colocar estacas. Estávamos em três,Sr. Mário, Farrampa e eu, todos com as mãos na massa, pois quandosaíamos para o pátio retornávamos com os pés todos sujos de terrae o uniforme cheio de poeira.

A intenção de nosso trampo era fazer um contra-piso emtodos os lugares do pátio em que havia chão de terra. O Sr. Márioera gente fina e confiava em nós. Depois das estacas fincadas nochão, passamos a fazer o concreto. Como dentro da unidade nãohavia pedras, o Sr. Mário levava a gente para fora da unidade,mas ainda dentro do complexo, pois perto do campo de futebolhavia uns dois metros de pedra. Pegávamos com a pá e carregáva-mos a carriola, voltando para dentro. Após alguns dias, indiqueiao Sr. Mário o Jônatas, pois ele me contou que gostaria de daruma força. Sr. Mário o chamou para fazer parte.

O concreto era feito com o manuseio de enxadas entreguesem nossas mãos com a maior confiança. Mas também a gente seconsiderava merecedor de confiança, porque não maquinávamoso mal. Como diz o ditado: “Pela árvore se conhecem os frutos.”

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Então queríamos mostrar por nossos atos, que éramos merecedo-res dessa confiança.

Conforme a escala de plantão do Sr. Mário, nós trabalháva-mos e, quando ele estava de folga, o Sr. Manoel assumia. Isso quan-do as folgas não coincidiam.

Eu estava estudando. Logo chegariam as provas das duasdisciplinas pendentes; eu teria que ser aprovado para depois pe-dir à minha assistente social uma oportunidade para prestar ovestibular tão sonhado. Dentro de mim eu sentia que seria possí-vel.

Tinha uma saudade muito grande de meus pais. Sempreque ligava, pedia notícias de minha namorada. Eles me falavamque ela estava bem, mas a saudade era muito grande. Já não a viafazia tempo, muito tempo. Essa saudade e as dificuldades foramme encurralando e eu sentia mais e mais vontade de lutar e ven-cer.

Muitas vezes eu não tinha uma bolacha para comer, porqueminha família não tinha condições financeiras de me visitar, masestas e outras dificuldades eu superava. E para distrair a solidão ea dificuldade de não ter nada para comer além do que a unidadedava, eu me achegava a um funcionário com quem me identifica-va bastante — o Isaac Corrêa, que tinha muitos dons musicais etambém era compositor —, pois tínhamos os mesmos gostos. Eleera mestre em viola e violão e às vezes levava o violão para tocar.Como eu também tocava, quando nos uníamos começava aquelacantoria de música sertaneja, moda de viola e música-raiz. Haviadias que passávamos um ao lado do outro fazendo ele a primeiravoz e eu a segunda, e de vez em quando ele me dava um maço decigarros e algumas balas. Eu podia ver que ele gostava de mim edo Jônatas, que na maioria das vezes estava conosco, e o mesmoque ele dava para mim dava para Jônatas, pois sabia que não tí-nhamos visita. O Jônatas já não via sua mãe há mais de um ano emeio.

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Pelo fato de eu tocar violão, Isaac teve a idéia de montar oprojeto de um curso musical, que ele iria mostrar à direção, paraconseguir violões para a unidade. Como eu tocava, ele falou quepoderíamos fazer uma parceria; quando ele não estivesse de plan-tão ou estivesse em outras atividades, eu daria o curso para osoutros companheiros. Achei ótima a idéia e ele apresentou o pro-jeto para a diretoria. Instantaneamente o diretor Domingos, queé uma pessoa muito compreensiva, aprovou o projeto do Sr. Isaac,e disse que solicitaria violões para começar o curso. Domingos fezum pedido para a fábrica de violões Di Georgi, de Franco daRocha, mas de início recebemos a doação de apenas um violão,de um pedido de cinco. Por isso ainda não era possível desenvol-ver a atividade, mas já foi o sinal de um começo. Após uma sema-na a fábrica doou mais três — no total eram quatro violões doa-dos, que somamos a mais um que Isaac tinha. Assim, começamosa ensinar de acordo com o tempo disponível, tanto o dele como omeu. Foram selecionados alguns internos. Aos poucos fomos dandoinício ao curso.

Mais uma conquista em união. Como a unidade estava comum bom comportamento, o Sr. Maldonato, que antes era funça eagora pedagogo, deu início à prática de levar os adolescentes parao campo de futebol, que fica no lado externo da unidade, masainda no interior do complexo. Eram selecionados os de boa con-duta. Formávamos duas equipes, até mesmo alguns funcionáriosse envolviam na partida. A maioria dos internos estava entrandoem um único espírito de viver em paz. Assim era mais gostoso dese ficar ali, mais fácil, mais leve, melhor.

Arrumei ocupação para todos os dias — quando não faziacontra-piso, estava jogando xadrez ou na escola, no campo jogan-do bola, ensinando violão, ou na rouparia, onde às vezes me cha-mavam para separar os conjuntos que seriam trocados após o ba-nho. E quando no quarto, sempre ficava lendo algumas obras e estu-dando para eliminar minhas disciplinas. Mas sempre arrumava

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espaço para meus companheiros, Jônatas, Leonildo “Cola”,Franklin “Cristão”, Alex “Boquinha”, Nicolau “Cara Torta”,Wallace “Tilpolita” e Claudinei “Zap”. Assim eu ficava o dia todoocupado e isso me fazia muito bem. Muitos de meus companhei-ros estavam se espelhando em mim, e eu percebia isso, então osestimulei para que fizessem o mesmo, pois seria melhor para to-dos e para a imagem de nosso quarto, que até então vinha sendoelogiado por ser considerado o melhor em comportamento disci-plinar.

Depois de um certo tempo de convivência, adquiri carinhopor todos esses meus companheiros, e falava de meus planos eperspectivas para o futuro. Eles também falavam de seus sonhos.Nunca houve ar de deboche; muito pelo contrário. Realmenteeles estão guardados em meu coração, independentemente docaminho que cada um escolheu.

*

Com tanta ocupação, os dias passaram tão rápido que logochegou a primeira prova. Era de Português, e o pessoal do corpode funcionários e meus companheiros de quarto e outros me in-centivavam muito. Fiquei meio nervoso, com medo de não passar,mas o nervosismo sumiu, e fiz a prova. Após dois dias soube quefui bem, pois tirei a nota 6,0.

Agora só faltava uma, a mais difícil, Física. Nessa matéria eutinha dificuldade. Mas quando chegou o dia, o mesmo apoio eincentivo foi dado a mim por todos; fiz a prova, que foi corrigidana hora. Recebi a nota 7,5.

O sorriso de felicidade mal cabia no meu rosto. Contei paraos meus colegas de quarto e todos estavam ali me dando o maiorapoio. Os funcionários me elogiaram e as professoras tambémderam muita força, dizendo que eu tinha garra.

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Uma série de coisas boas foi acontecendo, e a empolgaçãoaumentava com cada acontecimento positivo. Umas poucas coi-sas negativas não me abalavam de maneira alguma.

Eu ligava para meus pais toda a semana. Podia senti-los atra-vés do telefone; a alegria deles era tão grande quanto a minha.Apesar de eu ainda estar internado na FEBEM, tudo que estavaacontecendo era positivo, e minha família já não sofria mais, por-que eu os confortava em cada ligação. A minha assistente social,Dona Tereza, e o meu psicólogo, Sr. Roberto, colaboravam comelogios, dizendo para minha mãe que eu era um rapaz muito bome que logo isso tudo iria terminar.

Toda a semana meu psicólogo me chamava para uma con-versa. Após eu ter terminado completamente o Segundo Grau,em uma de nossas conversas começamos a pensar juntos em comopoderíamos fazer para que o juiz me autorizasse a prestar o vesti-bular. Disse a ele que era preciso fazer um pedido. Ele me confi-denciou que seria melhor e mais fácil se eu estivesse preso há maistempo, porque o tempo que tinha cumprido ainda era muitopouco aos olhos do juiz. Mas me garantiu que continuaria traba-lhando na questão, para ver se tínhamos êxito.

Depois dessa conversa, voltei para a unidade, pedi um exem-plar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e comecei avasculhar página por página. Como já tinha um bom conheci-mento das leis, não foi difícil encontrar uma lei que me favorecia,dizendo que é prioridade do adolescente ter direito à educação,cultura e lazer. Quando li isto foi xeque-mate para o juiz, entãoconclui que, ao pedir para prestar um vestibular eu apenas pediao que me era de direito, nada mais, nada menos. Tendo termina-do os estudos do segundo Grau Completo, e a FEBEM não po-dendo me oferecer nível superior, seria impossível ao juiz negarum pedido como este. No tempo que passei pela cadeia de Itápolis,aprendi a elaborar petições razoáveis, então me veio à mente deusar do mesmo recurso. Elaborei meu pedido, — o Estatuto diz

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ser direito de todo adolescente peticionar a qualquer autoridade,conforme o Artigo 124 IV, da Lei 8.069 de 13-07-1990 do(ECA).

Petição que elaborei e encaminhei ao juiz.

Ex.º Sr. Dr. Juiz de Direito da Vara de Execuções Criminais daInfância e da Juventude da Comarca de Franco da Rocha – SP.

CLEONDER SANTOS EVANGELISTA, natural de Itápolis-SP, nasci-do aos 22/11/84, filho de Francisco Antunes Evangelista, residentes e domiciliadosem Borborema – SP.

Atualmente encontro-me internado na UI 25 de Franco da Rocha,sendo RG: 32344952-9 e processo n.º 54/01 na comarca de Itápolis-SP.

Ex.º, respeitosamente, venho comunicar, e solicitar, os seguintes quepasso a expor:

Encontro-me cumprindo medida sócio-educativa de internação, atu-almente cursando o ensino médio (2.º grau) em fase final, faltando apenaseliminar as respectivas disciplinas: Português e Física. É de grande interesse einestimável valor, com o consentimento de V.Ex.ª, sob as formas da lei, apósconcluídas as respectivas disciplinas de Português e Física, de acordo com oECA e o CPP, poder ser autorizado por V.Ex.ª a prestar um vestibular, ebrevemente cursar faculdade, na área de Direito.

Exº., requeiro nas formas da lei, se possível que V. Ex ª. possa aplicar amedida sócio-educativa de Semi-Liberdade ou Liberdade Assistida, para queassim sendo, eu possa ser beneficiado a dar continuidade aos meus estudos,uma vez que a UI em que me encontro não dispõe de tal nível de escolarida-de (nível superior).

MM Juiz, tenho eu estudado um livro cujo título é “Português no Di-reito” de Ronaldo Caldeira Xavier, onde tenho adquirido um ótimo conheci-mento sobre as leis e linguagem jurídica, e do qual pude usufruir para elabo-

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rar este pedido. Cada vez mais procuro enriquecer minha cultura, lendo erelendo obras famosas de grandes escritores, como por exemplo Machado deAssis, Fernando Pessoa, Luís de Camões, Millôr Fernandes, Sidney Sheldon,e muitos mais que engrandecem a nossa rica literatura e nosso Romantismobrasileiro.

Exponho a V.Ex.ª que meu pai é portador de Diabetes, Reumatismo(artrite artróide que é o atrofiamento dos nervos e juntas), estando eu muitodistante do domicílio de meus pais, ficam escassas as minhas visitas devido àdistância e às doenças que incapacitam meu pai de se locomover, sendo a suaidade de 53 anos.

MM Juiz, em minha vida passei por muitas experiências e obtive umbom conhecimento sobre a vida e como conviver socialmente.

Hoje, aos meus 17 anos de idade, tenho o certificado de computação(Windows), Serigrafia (estampas em tecidos), e nesta UI estou cursando ta-peçaria, prestes a receber o certificado; os dois primeiros seguem em anexo.

Excelentíssimo, caso seja imposta a medida sócio-educativa de Liber-dade Assistida, prontifico-me e comprometo-me a comparecer para ser aten-dido semanalmente por psicólogos da Unidade Básica de Saúde (U.B.S.) domunicípio, e apresentar o meu histórico escolar (nível superior) mensalmenteou sempre que solicitado.

Sendo outro o entendimento de V.Ex.ª, peço-lhe para ser avaliado pelaequipe técnica e psiquiátrica do Poder Judiciário, a fim de obter um parecerdestes profissionais sobre o aqui exposto.

Sem mais, aproveito o ensejo, elevo protestos de grande estima edistinta consideração. Respeitosamente, Cleonder Santos Evangelista.

UI 25- 05/09/2002.

Após a petição estar pronta, dei um jeito de encaminhá-lapara chegar às mãos do juiz — entreguei-a para os familiares deuma colega, e eles a entregariam no fórum.

Uma semana depois, quando estávamos indo para o campo,todos em fila um atrás do outro para manter a ordem, passamos

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por um latão de lixo, e eu vi um pedaço de jornal dentro. Discre-tamente apanhei a folha de jornal, porque me interessava peloscarros que apareciam nos anúncios. Como não temos contato como mundo exterior, eu queria ler o que dizia o jornal. Se o funcio-nário chegasse a ver que eu tinha apanhado o jornal, simplesmen-te mandaria que o jogasse fora. Mas imediatamente coloquei-odentro do calção e continuei a caminhar para o nosso destino,que seria o campo de futebol.

Na hora de escolher os times e dividir o pessoal, eu disse quesó queria jogar no segundo tempo. Sentei perto da grama, tirei ojornal do calção e comecei a ler o que me interessava, que eram osanúncios dos carros. Quando virei a página, fui lendo os anúnci-os e vi um emblema dos vestibulares da Fuvest e da UNIP. Nesseemblema estava a programação das datas dos vestibulares. Sem-pre tive vontade de estar dentro da UNIP cursando Direito. Deimediato já descartei a Fuvest, porque sabia que era um examemais desafiador — e porque as inscrições já tinham sido encerra-das. Mas a UNIP seria uma opção tão boa quanto, embora com adificuldade das mensalidades. De qualquer forma, qualquer ca-minho para a realização do meu sonho de ser um bom doutor emDireito, valia o meu sacrifício.

Havia ainda o fato de eu ter ouvido um amigo chamadoRodrigo, que era irmão de meu colega Rafael, o “Massinha”, fa-lar para sua mãe Lúcia que queria estudar Direito na UNIP, e quese não fosse a UNIP ele não estudaria mais. Até que ele passou novestibular e a mãe dele deu o apoio financeiro para os estudos.Isso ficou na minha memória. Depois disso eu ouvi muitas pesso-as falarem desta universidade e também anúncios na TV a respei-to da Universidade Paulista.

Copiei num papel as datas e os prazos do vestibular e o guar-dei para passar aos meus pais as instruções de como as coisas deve-riam ser feitas, e também o prazo que tínhamos. Por telefone eudisse também que antes de fazer a inscrição os meus assistentes

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teriam que convencer o juiz a me autorizar. Já adiantei que ia dartudo certo e que eles precisavam acreditar.

Nesse tempo em que eu já estava na 25, conheci uma pessoada área da pedagogia. Era um sujeito muito bom, calmo e mansono falar, o Sr. Jair, coordenador pedagógico. Foi para ele que co-mecei a expor minhas idéias antes de levá-las à assistente social eao psicólogo que acompanhavam a minha situação. Ele, porém,me orientou e disse que conversaria com o restante da equipe,para ver o que podiam fazer, e que no dia seguinte me traria umparecer. Ele de fato o trouxe, e muitas dúvidas eu tirei com ele. OSr. Jair estava sendo uma ponte para mim, porém a única ponte.

Fui chamado mais uma vez à sala das assistentes sociais — oSr. Roberto tinha novidades, disse que realmente esse era um di-reito meu. Ele já havia elaborado o pedido, mas não deu garantiade que iria funcionar. Quanto ao pedido que eu havia feito, per-maneci quietinho, passei para ele as datas do vestibular e o nomeda UNIP. Ele me disse que iria demorar alguns dias para recebera resposta, se o juiz me autorizaria ou não a prestar o vestibular.

Conversamos sobre tudo que se podia fazer e quais as pos-sibilidades de dar certo.

O pedido foi entregue aos cuidados do advogado da UI 25pelo Sr. Roberto; depois era só esperar uns dez dias mais ou me-nos, disse o advogado. Cada unidade tinha um advogado, queencaminhava as decisões de psicólogos e assistentes sociais aoFórum do Brás.

Depois o Sr. Roberto veio me perguntar como eu faria paraestudar.

— Sendo que você não tem nem livros e a biblioteca da 25não dispõe de livros preparatórios para vestibulares, como vocêvai fazer? — o Sr. Roberto perguntou.

Na hora me veio a pessoa do Sr. Jair na cabeça. Eu disse a eleque pediria para algum funça me dar uma força e perguntei a ele

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mesmo se por acaso não teria algum livro que pudesse me em-prestar. Ele respondeu que iria dar uma olhada e, ele tivesse, metraria. Nesse momento eu pensava no Sr. Jair e no Sr. Marcos,para mim eles eram a solução e dificilmente me desapontariam.

Agradeci por tudo que estavam fazendo. Eles responderamque esta era obrigação da equipe para os que realmente deseja-vam ser ajudados. Já estava me levantando da cadeira, quando Sr.Roberto disse:

— Pense positivo, que a gente consegue.

Retornei à unidade.

Voltei bastante animado, tinha certeza de que daria certo,porque até agora o meu mundo de sofrimento vinha se transfor-mando de uma forma tão inacreditável, que parecia que tudoestava virando da água para o vinho. Creio que eram os frutosque eu colhia por estar com o coração bom e ter uma condutaexemplar.

Mas quando cheguei à unidade, todos os internos estavamno pátio e alguns funcionários também. Próximo da coordenadoriaestava o Sr. Marcos, conversando com alguns internos. Então pen-sei: “Esta é a hora de falar com ele.” Comecei a passar minhasidéias e ele me respondeu:

— Você acha, meu filho? Você nunca vai conseguir passarem um vestibular. O ensino daqui é muito fraco e aqui é um cen-tro de energia negativa. Apenas estou dizendo o que eu penso, erealmente é quase impossível isso acontecer. Pra começar, vai serdifícil o juiz o autorizar a fazer o vestibular, e depois, mais difícilainda, passar nos exames.

Respondi a ele:

— Eu vou conseguir, Sr. Marcos. O senhor vai ver, eu vouconseguir.

Ele disse:

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— Espero que consiga, mas as coisas não são tão fáceis assim.Desejo-lhe boa sorte, de qualquer modo.

Depois me afastei dele. Na hora me deu uma raiva dele, poistodos estavam me apoiando. E justo ele, formado em Pedagogia ePsicologia, vinha me desanimar.

Permaneci pensando muito no que ele me disse. Estávamossendo recolhidos para o quarto. Continuei matutando. Quandocheguei lá, comecei a chorar. O Jônatas veio me perguntar o queestava acontecendo, perguntou se eu havia apanhado ou tinhaalgum problema com minha família. Em seguida os meus outroscompanheiros de quarto se aglomeraram em torno de mim parasaber o que se passava. Expliquei a eles que o Sr. Marcos haviadito um monte de coisas me desanimando, e contei o que ele ti-nha me falado. Quando terminei, todos me disseram para nãodar ouvidos, porque ele é assim mesmo. Wallace “Tilpolita” medisse para não dar ouvidos, porque o psicólogo podia ter feitocomigo um teste, para ver qual seria a minha reação. Nicolau “CaraTorta” disse:

— Fica tranqüilo, irmão, você vai conseguir. Fica de boa.

Tentei achar um fundamento para aquilo que o Sr. Marcoshavia me dito, mas não encontrei, pois o máximo que pude com-preender é que estaria me testando para ver se eu mudaria a mi-nha conduta ou se eu desanimaria, porque quando me retirei deperto dele, ele me lançou um olhar sinistro, um olhar de desafio,como se estivesse desconfiando de mim. Creio que ele pensavaque eu estivesse usando a idéia do vestibular como uma grandeferramenta para sair dali, e nada mais. Mas, meus pensamentos emeus planos iam muito além de uma conquista de liberdade, es-tando direcionados para conquista de autocrescimento e confi-ança em mim mesmo. Queria mostrar a mim mesmo, e depois aosoutros, que era capaz de alcançar meus ideais. Depois de tudoque o Sr. Marcos me disse e com minhas reflexões, a minha rea-

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ção foi de mais garra ainda. Vontade de vencer. Vontade de mos-trar. Vontade de cursar Direito.

Depois deste acontecimento eu me afastei um pouco do Sr.Marcos e fiquei na expectativa de encontrar o Sr. Jair no pátio epoder conversar com ele e saber se podia me arrumar algum livropara que eu pudesse estudar, porque na conversa com Sr. Marcosnão deu tempo nem de chegar a pedir. Quem me restou foi o Sr.Jair.

No dia seguinte, encontrei-o no pátio e conversamos. Fiz meupedido e ele o atendeu, dizendo que tinha livros de que eu neces-sitava. Ele me emprestaria os livros, que traria no dia seguinte.Fiquei muito grato pelo que Jair estava fazendo por mim. Os de-mais funcionários, que estavam a par da situação, se achegavampara conversar. Em meio a muitas e muitas conversas com váriosfuncionários, percebi e consegui captar que todos torciam pormim. A maioria expunha o que pensava e ficava contente em mever com estes pensamentos, pois afinal eu estava sendo fruto dotrabalho deles. Talvez, para muitos funcionários, eu estivesse sen-do o único fruto visível após tantos anos de trabalho com adoles-centes.

O Sr. Jair apareceu com os livros — eram três, um bem gran-de, grosso, de cor amarela; os outros eram mais finos. Já pegueilogo os três e nem esperei ele explicar para que servia cada um.

Ele disse apenas para eu tomar cuidado com os livros, queapenas o mais grosso era dele os outros ele conseguira empresta-dos. Fiquei até sem palavras para agradecê-lo, então disse apenasum “muito obrigado”. Mas o maior agradecimento ele receberiadepois.

*

O advogado da FEBEM disse que em mais ou menos dezdias o juiz me daria a resposta ao pedido para prestar o vestibular.Mas fui chamado por meu psicólogo, cinco dias após o encami-

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nhamento do pedido. O Sr. Roberto já tinha recebido um pare-cer da justiça, e esse parecer ele me disse ser positivo. Disse que euconseguira a liberação, mas que o juiz queria a data, a inscrição eo local em que eu estaria fazendo o exame. Mas eu já estava auto-rizado — apenas teria que informar o juiz desses requisitos solici-tados por ele.

Essa resposta foi motivo de muita felicidade. O funcionárioque me conduzia e me acompanhava até a sala do Sr. Robertosorria. Eu não conseguia me conter, o sorriso se esticou em meurosto e eu não conseguia parar de sorrir. O Sr. Roberto autorizoua coordenadora Silvia a me deixar ligar lá da sala da coordenadoria,para contar a novidade à minha família.

Quando contei ao meu pai que eu havia conseguido a auto-rização, ele começou a gaguejar no telefone de tanta alegria e medisse:

— Vai filho, continua assim, que você conseguirá tudo navida.

Então ele passou para minha mãe ouvir as novidades. Assimque comecei a falar, mamãe ficou tão contente quanto meu pai.Contudo, cautelosa como ele, só me dizia para não me envolverem nada e que era para eu fugir dos problemas. Mas disse aindaque estava muito orgulhosa de mim, pois mesmo estando presoeu dava muita felicidade e alegria para eles. Ouvir essas palavrasde meus pais me deram inspiração para lutar ainda mais e buscara resolução dos meus problemas. Nós nos despedimos e desliguei.

A coordenadora Silvia me deu os parabéns e me desejouboa sorte, pois ela acreditava muito em mim, e logo foram che-gando os outros funcionários que já estava sabendo das boas no-vas. Muitos disseram que agora eu teria que estudar muito, por-que para passar na UNIP e ainda mais no curso de Direito serianecessário estudar um bocado. Havia lá uns quatro funcionáriosque cursavam Direito na UNIP e me fizeram algumas recomen-dações.

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Fui recolhido para o quarto e chegando lá contei a novida-de aos meus companheiros. Todos, sem exceção, me deram osparabéns.

Faltava pouco mais de um mês para o dia do exame. Eu es-tudava como um louco. Conversei com o pessoal de dentro doquarto e disse que não sairia mais para o pátio, pois tinha de estu-dar. Às vezes precisaria de um pouco mais de silêncio, senão eunão conseguiria me concentrar, e essa era uma chance única queeu tinha em minha vida. Então disse a eles que precisava ser apro-vado, para que o Estado pagasse meus estudos, porque nem eu enem minha família teríamos condições para as despesas.

Como dentro de nosso quarto todos eram unidos, não hou-ve ninguém contra o que eu pedia — todos compreenderam edisseram que eu estava certo. Sem contar que ficaram muito con-tentes por eu estar conquistando meus objetivos.

Eu precisava me isolar no quarto. Abri mão do pátio e ape-nas saía para tomar banho, almoçar e jantar. Fora isso, ficava den-tro do quarto lendo, lendo, lendo e lendo. Foi assim por algunsmeses.

Os dias se passaram. Depois de tanto esforço chegou o tãoesperado dia. Recordo-me da data, que era 23 de novembro de2002. Na véspera acontecera o meu aniversário de dezoito anos,quando falei com meus pais e minha namorada, com quem hámuito tempo não conversava. A coordenadora me deixou ligarpara que ficasse mais calmo e prestasse o vestibular no dia seguin-te sem nervosismo. Realmente me acalmei, mas foi só no momen-to, porque quando faltavam algumas horas para me deslocar deFranco da Rocha até Santo Amaro, comecei a suar frio e o nervo-sismo era grande. Um funcionário da área da pedagogia, o Sr.Luís, que cuidava da biblioteca e dos jogos de lazer, me arrumoualgumas peças de roupas com o Sr. Walter da rouparia. Mas asroupas que foram emprestadas a mim não eram da rouparia, massim pessoais dele, porque o pessoal do corpo de funcionários não

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queria que eu fosse com uniforme da FEBEM. Tudo isso eles fazi-am para que eu não ficasse nervoso e para que os outrosvestibulandos não ficassem olhando para mim. Um pouco antesde irmos, o Coordenador, Sr. Victor, me chamou para conversar.

— Cleonder, a Sra. Francine e eu levaremos você para fazero exame. Convivemos muito tempo, juntos, aqui. Sempre obser-vei sua conduta, e nunca vi você desrespeitar ninguém, tanto funçaquanto seus colegas. Quero que saiba que o que vou fazer hojenunca fiz em todos os meus vinte e dois anos de FEBEM. Aolongo desta sua temporada entre nós, você conquistou minha con-fiança e a de seus companheiros lá do pátio. Saiba que não levare-mos você algemado e também não pedimos escolta da polícia.

Respondi ao Sr. Victor:

— Sei que minha liberdade será conseqüência de minhaconduta, sei também que por minha conduta é que vim pararaqui. Então fica a critério do senhor, se achar que precisa, podeme algemar; se achar que não precisa, fico agradecido pelo votode confiança. Quero que saiba que terá retorno, porque cumpri-rei, como cumpri até agora, o meu papel de homem. Na minhavida criminosa eu coloquei um ponto final há muito tempo; ape-nas estou pagando o que ficou pendente, e o senhor sabe disso.

Ele disse para eu ir me trocar e colocar a roupa que o Sr.Walter me arrumou. Quando fui me trocar, o Sr. Luís apresentoutrês trocas de roupa e pediu que eu escolhesse, então escolhi, e eleme deu um perfume dele para eu passar.

Recebi meu almoço, mas não consegui comer por causa donervosismo, então disse que já estava pronto. O Sr. Victor falou paraeu me despedir de meus amigos que estavam todos lá no pátio, poiseram aproximadamente onze horas da manhã. Saí do refeitório ecaminhei até o pátio. Dei logo um grito. Todos pararam de conversare prestaram a atenção em mim. Eu apenas disse:

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— Aí, pessoal. Chegou a hora de eu ir fazer a minha provalá no vestibular da UNIP, e espero que estejam torcendo por mim.Quero que vocês pensem em mim com muita energia positivapra que eu possa ser aprovado, porque é muito difícil, mas vouenfrentar essa parada.

Alguns lá do fundo gritaram:

— É isso ai Cleonder, vai nessa firme e forte que você conse-gue, truta!

Terminei dizendo obrigado pelo apoio e o incentivo duran-te todo esse tempo de correria que enfrentei para poder fazer oexame.

— Tomara que dê certo — eu disse.

O Jônatas falou:

— Já deu certo.

E assim olhei para o Sr. Victor, e ele disse:

— Vamos, que está na hora.

Saí da unidade, passei ao lado da UI 21 e UI 29 até chegaraos portões centrais, onde uma Toppic estava me esperando paranos levar. Logo que fui entrar na Toppic, o motorista perguntouse não iriam me algemar. O Sr. Victor respondeu:

— Esse aqui não precisa.

Saímos da unidade e do complexo e seguimos destino para ocampus da UNIP de Santo Amaro.

Meu coração ia disparado dentro do peito, pois esta seria aminha chance de mostrar que, mesmo sendo um preso da FEBEM,eu era tão capaz quanto qualquer outra pessoa na sociedade.

Eu estava meio nervoso, mas, conversando com Sr. Victor ea Sra. Francine, fui me acalmando. A viagem durou pouco maisde uma hora e meia, e quando chegamos, eu estava leve comonunca. Assim que o veículo parou, o Sr. Victor abriu a porta edisse para eu descer.

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Desci e ele nem sequer segurou no meu braço, e ainda porcima esqueceu a pasta que continha as canetas e o número deinscrição. Ele voltou e pegou o que tinha esquecido, me deixandosó com a Dona Francine. Em momento algum eu pensei em fu-gir. Ao contrário, pensei que realmente eles acreditavam em mime, automaticamente, passei a me sentir muito bem.

Entramos na UNIP e fomos procurar a sala. O mais interes-sante é que fomos cada um para um lado — o Sr. Victor em umcorredor, a Sra. Francine em outro e eu em um terceiro. A sensa-ção de saber que as pessoas confiavam em mim, mesmo eu estan-do numa situação radicalmente diferente deles, era muito boa.

Rapidamente o Sr. Victor encontrou a sala, saiu à nossa pro-cura e com facilidade nos achou.

Caminhamos até a sala e, antes de entrar, Francine e Victorme disseram:

— Muita calma, Cleonder, e boa sorte.

Entrei e procurei minha carteira, que tinha o número dainscrição do vestibular, e me sentei.

No quadro negro estava escrito o horário de início e de tér-mino do exame. Enquanto eu estava ali sentado, os coordenado-res que ficaram lá na unidade conversavam com todos os internosa meu respeito. O que sei e o que posso relatar é que os meuscolegas foram orientados para me darem força, quando eu voltas-se do exame, porque podia ser que eu não fosse aprovado, e osmeus colegas me ajudariam e não me deixariam desanimar. Nomomento em que o coordenador Juarez falava, eu dava início aoexame. O fiscal passou as coordenadas, entregou as provas. Co-mecei a analisar as questões.

Conforme ia lendo, o que eu havia estudado parecia sumirda minha cabeça. Eu ia ficando nervoso, por não saber a respostaà primeira questão, à segunda, ter dúvida na terceira, a quartanão me era estranha… Então parei de ler e tentei me acalmar.

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Coloquei a prova sobre a carteira e com esforço consegui esfriar acabeça.

Mais calmo, fui lendo e respondendo apenas àquelas que eusabia; as questões que não tinha certeza da resposta, fui pulando.Depois voltei a analisar as questões que havia pulado, e as respon-di.

Terminei a prova, chamei o fiscal e entreguei-a. O Sr. Victore a Sra. Francine estavam sorrindo do lado de fora da sala, pois sesentiam felizes por eu ter conseguido prestar o vestibular que tan-to sonhava. Quando me aproximei deles, o Sr. Victor me pergun-tou:

— Como foi na prova?

Respondi que acreditava ter ido bem. Dona Francine per-guntou se achei difícil, o que havia caído na prova e como euestava me sentindo. Disse que no começo foi difícil porque fiqueinervoso e não conseguia pensar, mas depois me acalmei. Contei aeles o que lembrava de algumas questões que haviam caído. Euestava me sentindo bem, porém muito ansioso para conferir ogabarito de resposta, que sairia à meia-noite.

Voltamos para a Toppic e seguimos de volta à unidade.

No caminho fomos conversando e rindo. Eu estava muitocontente e sentia que meus sonhos começavam a se realizar. Con-forme chegamos, entramos e até os seguranças se mostraram feli-zes por mim. Fomos para o pátio. Quando cheguei, não haviamais ninguém, pois todos os meus companheiros já tinham se re-colhidos para seus quartos, já que anoitecia. O Sr. Victor deixouque eu permanecesse um pouco no pátio e os outros funcionáriosse aproximaram em massa para me perguntar detalhes do vesti-bular. Contei a eles tudo o que eu podia, até o mínimo detalhe. OSr. Victor foi à coordenadoria contar aos outros coordenadoresque em toda a vida dele trabalhando na FEBEM, nunca tinhavisto um interno se comportar como eu me comportei. Enquanto

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ele falava isso, eu o ouvia do outro lado do corredor. Era essaforma de reconhecimento que me dava ânimo para cada dia maiscontinuar a lutar para alcançar o que eu desejava.

*

A minha professora de Educação Física, dona Elaine, foiquem acessou a Internet para conferir o gabarito.

No dia seguinte ela ligou para a unidade. Quem atendeu foio Sr. Laércio, um coordenador. Dona Elaine deu a resposta paraLaércio, que ficou encarregado de me falar, pois ele era o coorde-nador mais chegado a mim — sempre conversávamos muito, eele, além de ser um orientador excelente, é uma pessoa muito boae um profissional de ótima qualidade. Sr. Laércio me chamou nomeu quarto e disse que queria falar comigo lá na coordenadoria.Fomos caminhando juntos. Assim que entramos, ele disse:

— Meus parabéns, Cleonder. Você foi aprovado no vesti-bular.

Laércio quis me dar um aperto de mão e um abraço. Eupercebia no Sr. Laércio a felicidade dele, tanto quanto a minha,pois na verdade eu devia parecer a eles como o fruto do seu traba-lho. Eu estava explodindo de tanta emoção, o sorriso se fixou emmeu rosto, fui falando a todos que encontrava pela frente que euhavia sido aprovado. A minha felicidade contagiou todos na uni-dade, porque eles todos torceram por mim.

Rapidamente todos souberam e ficaram felizes. Os coorde-nadores e os funcionários reuniram todos os internos no galpãopara uma conversa. Após ter reunidos a todos, o Sr. Laércio mepassou a palavra e pediu que eu falasse algo. Contei as novidades.Ao mesmo tempo, tentava passar que eu não era diferente de nin-guém e que todos eram capazes de fazer o mesmo. Basta apenassonhar, fazer com que esses sonhos se tornem realidade, assimcomo eu fiz, e pretendo continuar fazendo. Me emocionei e nãoconsegui continuar falando.

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O corpo de funcionários complementou a mensagem.

Recebi elogios de todos os funcionários, coordenadores, pes-soal do pedagógico, assistentes sociais, e outras pessoas das unida-des vizinhas.

Meu psicólogo, o Sr. Roberto, estava solicitando minha pre-sença na sala dele. Chamaram-me lá na unidade. Fui conduzidoaté a sala de Roberto. Quando entrei, ele estava com um sorrisono rosto. Me deu os parabéns, eu o agradeci e começamos a con-versar.

Ele disse:

— E agora como você e seus familiares vão pagar a faculda-de?

Respondi:

— Se o Juiz me mantiver aqui, isso não cabe a mim e nem aminha família, porque enquanto eu estiver internado é o Estadoque arcará com minhas despesas. É assim que prevê o ECA da Lei8.069 de 13-7-1990.

— Vamos solicitar do juiz a sua liberdade assistida, porquenão há necessidade de você ficar internado, e com certeza vocêserá liberado em breve. E como vai fazer para pagar sua faculda-de? Isso é o que eu quero saber.

Respondi que não tinha condições, disso ele sabia, mas queiria pelo menos fazer uns seis meses com a ajuda de meu tio JoãoBeleza. Meus pais colaborariam com o que podiam colaborar. Nãoseria muito, mas se conseguisse trabalho, ficaria menos difícil cur-sar seis meses; depois eu trancaria a matrícula, tentaria fazer umfinanciamento com o FIES e tentaria arrumar um emprego, jun-tar um pouco de dinheiro para acabar o primeiro ano. Esses eramos planos que coloquei para o Sr. Roberto.

Ele ouviu e apenas me disse “tudo bem”.

Elogiou-me bastante, falando que eu deveria manter minhapersonalidade sempre assim.

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Agradeci ao Roberto e à dona Tereza, por tudo que estavamfazendo por mim

*

Agora que eu tinha sido aprovado, decidi voltar a fazer oscursos. Mas quase nenhum estava sendo inserido, porque estáva-mos nos aproximando do final de ano e vinha o período de fériaspara os professores.

Mas eu ainda podia continuar ensinando violão aos meuscolegas. Foi aí que a fábrica de violões acertou com a nossa unida-de de desenvolvermos um trabalho de lixar e moldar algumas peçasdo violão. Foi o funcionário Sr. Isaac quem cuidou de tudo. As-sim que algumas máquinas chegaram, demos início ao trabalho, ea fábrica firmou um contrato verbal de fornecer uma cesta básicapara cada participante. Era algo que o interno podia entregarpara a família, nos dias de visita.

Um dia eu estava trabalhando nas peças, quando o diretor,Sr. Domingos, solicitou que Laércio fosse me buscar lá na unida-de e me levar para a sua sala. O Sr. Laércio me encontrou nocurso, pediu licença para Isaac, que era companheiro dele de tra-balho, e me levou até Domingos. Eu nunca havia entrado na salado diretor, e agora ele estava me chamando.

Entrei na sala dele, e ele mandou que eu me acomodasse,me deu os parabéns por ter sido aprovado, os parabéns por meucomportamento exemplar, e me perguntou como estava me sen-tindo. Falei a ele que estava tão bem como nunca, mas que aindairia ficar melhor. Domingos disse:

— Vai ficar melhor sim, porque eu tenho algumas novida-des que vai gostar de ouvir.

Começou a dizer que a Rede Globo de Televisão ficou sa-bendo através da assessora de imprensa da FEBEM, Sra. Denize,sobre o meu caso, e se interessou em fazer uma matéria comigo.O diretor Domingos queria saber se isso me interessava.

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— Me interessa e muito — respondi.

Então ele disse para eu me preparar, porque os repórteresfariam perguntas inesperadas, e para que eu não viesse a comen-tar com ninguém, porque poderia causar inveja.

Retornei para a UI e permaneci quieto e não comentei paraninguém, mas fiquei pensativo o resto do dia, até o momento dedormir.

*

Iniciava-se outro dia, eu à espera da imprensa. Mais ou me-nos por volta das dez horas da manhã a equipe apareceu na uni-dade. Eu estava no pátio tocando violão para uns colegas que sedivertiam em cantar. O Sr. Juarez, de apelido “Cabo de Enxada”,veio me chamar, pois estavam me esperando. Caminhei até o pes-soal com o violão nas mãos. Cumprimentaram-me e eu os cum-primentei também, e começaram a me entrevistar.

Foram várias perguntas, uma das primeiras foi o que eu ha-via feito para estar ali; depois, como surgiu o desejo pelo curso deDireito; o que fazia ali dentro; como eu era tratado; se eu apanha-va… e mais um monte de perguntas. Respondi tudo com muitacalma e terminamos a gravação da reportagem, que foi veiculadano mesmo dia, no Jornal Hoje.

Os funcionários reuniram meus companheiros para assisti-rem à reportagem, que ficou muito bonita.

Dois dias após essa reportagem, jornalistas do jornal Diáriode São Paulo vieram me procurar, e novamente Domingos faloucomigo e mais uma vez eu fiquei contente.

Os jornalistas já estavam à minha espera e fui conduzido atéeles, que aguardavam em uma sala administrativa da FEBEM.

Quando cheguei, tive a surpresa de encontrar meus pais,que também estavam lá. Para mim isso foi uma felicidade semtamanho. Fizera-me mais uma série de perguntas e algumas para

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meus pais. A partir da entrevista foi publicada uma página inteiraa meu respeito.

Estávamos no mês de dezembro, quando minha vida deumais uma reviravolta. Sem que eu soubesse, a assessoria de im-prensa da FEBEM entrara em contato com o Departamento deComunicação Corporativa da UNIP, pedindo uma bolsa de estu-dos para mim.

O Sr. Henrique Flory, coordenador daquele departamentona UNIP, comprometeu-se a ajudar. Além de conseguir a bolsacom a UNIP, ele entrou em contato com o Dr. Roberto Massafera,um empresário de Araraquara, cidade onde eu deveria fazer meucurso de Direito, e explicou a situação. No final de tudo eles iriamme oferecer, além da bolsa de estudos, um estágio remuneradoem um escritório de advocacia já no primeiro ano do meu curso.

Chegando na sala, sentei-me e essas pessoas que eu nuncavira antes começaram a falar. Eu ouvindo tudo aquilo, que em-presários queriam me ajudar, não pude me conter e comecei achorar de emoção. Parecia ser mentira, mas não era; parecia umsonho, mas era real. Eu chorava como criança e chegava a solu-çar. As pessoas que estavam ao meu lado sorriam, enquanto euchorava. Não me cansava de agradecer e agradecer por tudo. Etodos juntos diziam que o trabalho deles era me ver bem.

Dispensaram-me, e o Sr. Roberto disse:

— Agora vai, influencie seus amigos a seguir este seu cami-nho. Acredite ou não, depois que você começou a mostrar que épossível realizar os sonhos, ficou mais fácil trabalhar com muitosoutros adolescentes, pois toda vez que converso com um de seuscompanheiros, eles sempre mencionam o seu nome.

E me retirei, dizendo:

— Obrigado, obrigado por tudo.

E voltei emocionado para a unidade.

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Na sala da coordenadoria liguei para meus pais e eles tam-bém se emocionaram tanto quanto eu. Conseguia sentir o tama-nho da felicidade deles. Minha família sentia-se muito bem, mes-mo eu ainda estando ali internado. Tinha certeza de que eles sen-tiam-se os pais mais felizes da face da terra, pois agora tinhamorgulho de mim.

Depois que saí da coordenadoria, caminhei até o pátio e noteique havia um monte de internos aglomerados perto de um mu-ral, mas eu ainda não sabia que lá estava a reportagem feita peloDiário de São Paulo. Fui bem de mansinho me aproximando, emeus companheiros, quando notaram minha presença ali, disse-ram:

— Olha você lá, Cleonder.

Era uma imagem minha que estava exposta no jornal — eusegurava um código penal que tapava metade de meu rosto. Nodia da entrevista tiramos essa fotografia assim, porque não é per-mitido mostrar o rosto de internos da FEBEM sem autorizaçãojudicial.

Todos ficaram admirados.

Passaram-se alguns dias e estávamos próximos do Natal. Erao dia 22 de dezembro de 2002, um domingo, dia de visita. Euestava ajudando a arrumar a churrasqueira montada de tijolos —a comida que foi enviada naquele dia era de primeira qualidade,pois muitos de nossos familiares estariam presentes para almoça-rem todos reunidos, pois era uma confraternização. Meu pai jáestava na portaria, aguardando o momento de entrar para mever.

Ele entrou, e quando eu o vi, fui correndo abraçá-lo. Noteique ele já não estava com tantas dores nas pernas.

Ficamos juntos o dia todo, almoçamos, conversamos bastan-te a respeito do curso de Direito. Meu pai queria saber quempagaria, onde eu estudaria, se eu sairia logo...

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Fui falando tudo a ele, explicando nos mínimos detalhes oque estava acontecendo, e ele foi abrindo um sorriso enorme.

Papai falou para mim que estava muito orgulhoso. Disse aele que não iria demorar muito para voltar para casa, pois desde aminha chegada à unidade, estava demonstrando ser uma pessoaboa. Tinha muitas esperanças de que o juiz reconheceria meu es-forço, compreenderia minha situação, e logo eu conquistaria aliberdade para poder estudar, porque agora eu já havia consegui-do as coisas mais difíceis, e minha liberdade seria conseqüênciado que eu estava plantando. Passamos o dia todo conversandosomente de coisas boas, até que infelizmente terminou a visita epapai teve que ir embora. Na despedida, ele recomendou que eucontinuasse como estava, e disse que estava muito feliz por mim.Acompanhei meu pai até o portão e ele se foi.

Interiormente eu sabia que aquela seria a última vez que meupai me visitaria na FEBEM, porque tinha a certeza de que logo ojuiz me liberaria.

Passei o Natal na unidade. Tivemos outra confraternização,mas foi só entre os internos e funcionários. A DENADAI, umaempresa de alimentos, nos mandou mais carne e refeições, comouma caridade natalina. Era muito bom manter um ambiente fa-miliar no lugar, pois a tranqüilidade que isso inspirava evitariamuitas desgraças que poderiam acontecer no final de ano, por-que muitos queriam passar esse período com suas famílias. Nestamesma data, os funcionários Sr. Jaime e Ludugério chamaramalguns internos com urgência, para apanharem algumas cadeirasde plástico no almoxarifado. Os escolhidos foram Eduardo eMarcos, que eram recém-chegados, Jônatas e eu, em um total dequatro internos.

Fomos caminhando com os dois funcionários. Pegamos ascadeiras e voltamos carregando um pouco cada um, pois dividi-mos o peso para ninguém levar nem mais nem menos. Quandoestávamos nos aproximando do portão da 25, Eduardo insinuou

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que o chinelo havia arrebentado, parou disfarçadamente e colo-cou as cadeiras que carregava no chão — e saiu em disparada, nadireção ao alambrado de tela. O companheiro dele, outro recém-chegado, também tentou, mas os dois não obtiveram êxito algum— pois antes de chegarem à tela para pulá-la, já havia do lado defora seguranças com cacetetes nas mãos, e mais alguns escondidosem pequenas cabanas camufladas na mata ao redor da UI. Eduar-do e Marcos, quando viram os seguranças com os cacetetes demadeira, se assustaram e voltaram, mas deram de frente com Sr.Jaime e o Ludugério, que tentaram detê-los após os dois teremdado alguns dribles nos funças.

Jônatas e eu permanecemos paralisados, observando. Eu nãoconseguiria me mexer nem que quisesse. Creio que Jônatas tam-bém sentia o mesmo. Eu só pensava em tudo que eu havia con-quistado, e sentia muito medo de perder tudo aquilo por quelutei — não seria justo perder tudo isso por causa de atitudes dosoutros. Passaram pela minha cabeça um milhão de pensamentos;senti medo de interpretarem mal, e pensarem que estávamos en-volvidos. Os fujões foram pegos e levados às pressas para o inte-rior da unidade. O que me aliviou foi quando Jaime se dirigiu aJônatas e a mim:

— Esperem aí, que eu já volto pra buscar vocês.

Este foi mais um voto de confiança, que automaticamenteme tirou da cabeça a apreensão sobre o que iriam pensar de mim.Demorou um pouco e Jaime veio nos buscar, mas em momentoalgum ele sequer chegou a perguntar se estávamos envolvidos ouse sabíamos de alguma coisa. Ele apenas disse:

— Por causa de um ou dois, nós funças temos que suspen-der o lazer de muitos inocentes, e agora terei de fazer um relató-rio e registrar um boletim de ocorrência, passar para o setor téc-nico tomar as providências de informar o juiz sobre o ato cometi-do por esses irresponsáveis.

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Mas o Sr. Jaime nos avisou que podíamos ficar tranqüilos,que nossos nomes não seriam envolvidos no boletim de ocorrên-cia. Por causa da confiança conquistada por mim e por Jônatas.Se em nosso lugar, na hora da tentativa de fuga, estivessem outrosinternos mal vistos e indisciplinados, pode ser que se desconfias-sem deles, mesmo não havendo participação. A confiança dos fun-cionários foi um fator essencial como escudo, para nos manterprotegidos. Em pensamento, eu pedia a Deus para que me tirassedali logo. Só Ele sabia o que poderia acontecer, com o passar dotempo…

*

Passou o Natal, todo mundo comemorou. Os fujões que qua-se nos prejudicaram estavam trancados em uma solitária. Termi-namos a nossa confraternização e nada foi interrompido. Passou-se o dia e já vinha chegando o Ano Novo. Quando chegou, foium dia normal. De dentro era possível enxergar os fogos explo-dindo no céu estrelado, na noite da virada do ano de 2002 para2003. Uma gritaria muito alta ecoava no ar, comemorando a vi-rada do ano. Mesmo estando presos, buscávamos nossas alegriasem um mundo fechado por muralhas, e a alegria possível nomomento era gritar, abraçarmo-nos uns aos outros, fazer pedidosolhando para o céu, pois os muros podem prender os nossos cor-pos, mas nunca conseguiriam aprisionar os nossos pensamentos.Recordo que falávamos assim, naquele dia:

— Nós presos vivemos de três coisas aqui: Fé, Esperança eProteção.

*

Um novo ano iniciou-se, tudo correu normalmente em nos-sa unidade, e assim permaneceu. Mas ninguém estava sendo libe-rado pelo juiz. Em breve o Fórum entraria de recesso e nada deninguém ir embora para casa.

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No dia 3 de janeiro, um dia gostoso, de céu meio nubladomas bem fresquinho, pela manhã fiquei jogando xadrez no pátio,e logo pela tarde começou a cair um leve chuvisco, uma garoa.Eu conversava com alguns colegas de outros quartos, quando umfunça subiu em uma mureta para fazer um anúncio. Ele falavaassim:

— Aí, pessoal, temos uma liberdade na casa e ela ééééééééé…— todos ficaram atentos — …Do Volnei!

Volnei era um grande amigo meu, que morava no quarto 3,que é vizinho do 2 (em que eu morava). Por coincidência Volneiestava internado por causa de um ato infracional cometido hámuito tempo. O caso dele era semelhante ao meu, mas com deli-tos diferentes, pois ele estava em um artigo de homicídio.

Volnei ficou muito feliz ao saber que voltaria para casa, —ele tinha uma filha muito bonita que já estava com um poucomais de um ano, e fora preso quando sua filha tinha poucos mesesde vida. Ele gostava muito de mim e eu dele.

Alguns minutos depois, surgiu um boato não se soube deonde, que havia mais uma liberdade vindo a caminho, e quemestava trazendo era o advogado da unidade, Dr. Camargo.

A família de Volnei já tinha sido avisada para ir buscá-lo.

Por volta das seis horas da tarde o Sr. Laércio veio me avisarde que eu deveria levar uma cesta básica até a sala do diretor,porque o Volnei iria levá-la. No momento, não desconfiei de nada,mas conforme fui andando ao lado de Laércio, eu pensava: “Porque o Volnei iria levar uma cesta básica, se ele não era integrantedo curso de lixar peças de violão, sendo que as cestas que a fábricadoava eram contadas de acordo com os que participavam do cur-so, e tinha um número exato de cestas e de integrantes?” Fiqueirefletindo sobre isso, quando, em determinado momento, o Sr.Laércio me parou e disse:

— A liberdade é sua. Acabou de chegar na casa, e a cestaque estamos indo buscar é para você levar, Cleonder.

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Nesse instante, a emoção tomou conta de mim, mas por foraeu apenas dava sorrisos de alegria. A felicidade era muito grande,porque agora eu realmente iria voltar para casa — e estaria cur-sando uma universidade. Poderia estar com meus pais e minhanamorada novamente... Estava muito feliz, e Laércio dizia queestava muito contente, pois ele sempre havia acreditado em mim.

Então peguei a cesta básica na sala do diretor. Era pesada.Eu a carreguei até a sala da coordenadoria, porque Laércio medisse que no dia seguinte eu seria “recambiado” (reconduzido)até a minha cidade.

Dentro do peito o coração queria saltar para fora. Voltei todofeliz, mas não contei nada para ninguém, pois tinha certeza deque todos ficariam chateados. Eu mesmo, por um lado me sentiamuito feliz por estar voltando para casa, mas por outro me sentiaum pouco triste, porque agora teria que me separar deles, quetanto foram meus companheiros; também dos funcionários, asassistentes e psicólogos, mas as coisas tinham que ser assim.

Guardei a novidade para mim, mas ela não ficou oculta pormuito tempo, — logo acabei contando. Estávamos no quartoaguardando o jantar; eu me levantei da cama e pedi para todosprestarem atenção, pois tinha algo muito importante a dizer. Con-segui a atenção de todos e contei que estava indo embora no diaseguinte.

De imediato ninguém acreditou, porque eu não estava agin-do como quem ia embora. Eles ficaram meio na dúvida, porquesempre que alguém ganha a liberdade, começa a se expressar comemoção, e eu estava calmo. Só por dentro sentia uma alegria semtamanho.

Passaram-se alguns minutos e fomos para o refeitório. De-pois de todos reunidos, um grupo de funcionário do noturnopediu para todos prestarem atenção. Os funcionários anuncia-ram que Volnei estaria indo embora, mas que havia mais um quetambém estava de liberdade, e contaram que esse alguém era eu.

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Todos os meus companheiros começaram a aplaudir, dizen-do “até que enfim”, pois falavam que eu era merecedor e que jáestava na hora.

O funcionário Sr. Fernando abriu um espaço para que eupudesse falar algo. Aproveitei a oportunidade e dei uma brevepalavra, dizendo:

— Espero que vocês possam ter a mesma oportunidade queestou tendo. Amanhã vou embora rumo a uma vida nova.

Disse que havia aprendido muito com cada um deles e queesperava que cada um tivesse aprendido um pouquinho comigotambém. Para quem ficava, desejei boa sorte e que todos pudes-sem empenhar-se, para retornar cada um ao seu lar.

O Sr. Fernando tomou a palavra e falou em nome de todosos funcionários do noturno, dizendo que tinha sido um prazerme conhecer e que todos sempre acreditaram em mim. Desejou-me boa sorte na vida lá fora.

Agradeci o apoio de todos eles, por tudo que fizeram e porterem acreditado em mim

— Muito obrigado — eu disse.

Jantamos e depois retornamos ao quarto. Depois do comen-tário no refeitório, todos agora realmente acreditavam que eu es-tava liberado. Senti que eles ficaram tristes por eu estar indo em-bora. Ficamos conversando sobre diversos assuntos, planos futu-ros e coisas assim.

Logo chegou o horário de dormir, mas antes eu avisei a to-dos os meus amigos de quarto que, quando eu fosse chamadologo pela manhã, me despediria deles. E as luzes foram apagadas.

*

Chegava a grande hora. Os momentos finais se aproxima-vam, já eram quase sete horas da manhã e o funça apareceu paraabrir a porta.

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Acordado, eu me levantei. Meus poucos pertences já esta-vam guardados em sacolas. Fui acordando os meus colegas, e fuime despedindo de cada um sem pressa — trocávamos abraços, aemoção fazia com que eu me expressasse sob forma de lágrimasdirigidas ao Jônatas... Eu dizia para ele agüentar mais um pouco,que logo viria a sua liberdade. Jônatas também chorou em meuombro, antes que eu seguisse o meu destino, e nos despedimosem apertos de mão e abraços fortes.

No caminho, passei pela coordenadoria para pegar minhacesta básica, me despedi também dos funcionários e coordenado-res. A funcionária Sra. Ellen era quem me levaria para Borborema,pois iríamos de recâmbio comum — um veículo da unidade. Aviagem era longa, dona Ellen e eu conversávamos. Quando nosaproximamos da cidade de Araraquara, fui indicando o caminho,porque o motorista não sabia.

Chegando em Borborema o coração batia mais forte. Eusentia uma sensação muito gostosa, porque finalmente me sentiarealizado. Apenas com o meu retorno ao lar, é que meu percursoestaria completo.

Chegamos à minha casa, descemos e fui entrando para cha-mar meu pai.

Quando o vi, logo lhe dei um grande abraço. Ele já estavame esperando, percebi que minha casa estava bastante mudada,mas meu quarto continuava do jeito que o deixei. dona Izilda nãoestava em casa, pois estava trabalhando no restaurante da praiado Juqueta, que fica uns sete quilômetros do perímetro urbano.

Meu pai assinou os documentos necessários e dona Ellen sedespediu de mim e retornou a Franco da Rocha.

Tomei um banho de quase meia hora, e depois fomos para aprainha ver minha mãe. Quando cheguei, mamãe me viu, abriuos braços e veio em minha direção.

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Ficamos conversando um tempão, mas como ela tinha detrabalhar, papai e eu voltamos para a cidade. Eu queria fazeruma surpresa para minha namorada, que ainda não sabia que euhavia voltado, porque meus pais não contaram para ela.

Fui até a casa de Josiane, chamei apenas uma vez e fui en-trando. Ela, ao ouvir meu chamado, saiu, e quando vimos um aooutro, corremos para nos abraçar e nos beijamos.

Conversamos bastante sobre tudo pelo que passei, como elahavia passado longe de mim, nossos planos para o futuro. Fomosentão para a minha casa. Quando anoiteceu, saímos para dar umavolta, pois era um dia de sábado, e voltamos cedo. Fomos para oquarto, nos amamos e dormimos abraçados.

Eu estava em casa, enfim…

*

Josiane e eu continuamos o nosso relacionamento de ummodo mais firme e mais feliz. Alguns de meus parentes vieram mever quando souberam que eu tinha voltado para casa, principal-mente meu tio João Beleza, a quem muito agradeço pelo que fezpor mim e minha família, dando sempre algum o conforto aosmeus pais e os amparando na maioria das vezes.

Meu avô Plínio dos Santos também foi me ver, pois ele sem-pre se preocupou comigo, muito me dava conselhos e, se antestivesse ouvido os conselhos dele, eu poderia ter trilhado outroscaminhos menos acidentados.

Meus pais e eu decidimos, então, alugar uma casa emAraraquara, porque iria cursar Direito no campus de lá, e o ôni-bus que fazia a linha levando os estudantes universitários para asfaculdades da UNIP era muito caro e a viagem seria cansativa.Alugando a casa em Araraquara as coisas ficariam mais fáceis.

Começaram as aulas na universidade, e eu ainda sem em-prego; o estágio prometido não tinha saído devido a problemascom o escritório de advocacia. Minha situação financeira come-

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çou a ficar crítica, então encomendei algumas vassouras caipiraspara vender na cidade, para que pudesse me manter melhor. Eassim fui lutando, dia após dia.

Saía meio cedo e voltava de tarde, tomava banho e andavadois quilômetros para chegar até a universidade.

Estava morando em Araraquara sozinho e quando sobravaum dinheirinho das vassouras que eu vendia, pegava o ônibus e iaaté Borborema ver meus pais e minha namorada, de quem eusentia muita falta.

O Dr. Roberto Massafera, para compensar o estágio quenão veio, passou a me pagar um curso completo de computação,o que foi me ajudando muito a me familiarizar com a informática.Nos dias em que não tinha o curso, eu vendia vassouras.

Assim foi o meu primeiro semestre de Direito na UNIP deAraraquara. Eu aprendia muito e estava muito entusiasmado, ocurso era cativante e eu sentia crescendo; o problema é que odinheiro continuava muito curto.

Na mesma Universidade que eu cursava havia a coincidên-cia de o coordenador ser um promotor de justiça de minha cida-de, o Dr. Flávio Nunes da Silva. Ele já me conhecia do meu passa-do e, quando soube que eu estava estudando naquele campus,veio dar-me os parabéns, dizendo que eu havia feito a melhorescolha. Concordei plenamente com ele.

Fiz amizade com algumas pessoas da sala, o semestre já esta-va terminando. Eu começava a entender o ramo do Direito, queé um mundo muito fascinante.

Certa vez eu estava em Borborema na casa de meus pais, emum fim de semana, quando o telefone tocou. Eu mesmo fui aten-der. Quem ligava era o Sr. Henrique Flory, que desejava me fazeruma proposta. Ele havia tomado conhecimento de minha situa-ção por meio do Sr. Roberto Massafera e, se eu estivesse disposto,iria me ajudar a escrever um livro sobre a minha vida; ele já tinha

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até uma editora interessada, que iria me pagar por um semestrepara eu escrever o livro em São Paulo.

O Sr. Flory deu a entender que acreditava em meu poten-cial e que minha experiência de vida e a minha vitória de passarno vestibular e estar cursando Direito eram fatos que deviam serdivulgados para servir de exemplo e motivação a outros. Tambémdeixou claro que identificar casos como o meu e estimulá-los erauma das principais funções dele na UNIP, e que não estava fazen-do nenhum favor para mim. “O incentivo ao mérito e à dedica-ção é uma preocupação constante da UNIP, Cleonder. Não im-porta o passado, você hoje é um exemplo que deve ser seguido.Muita gente pode aprender com você”, ele me disse.

De minha parte, dava graças a Deus por surgir uma saídapara a minha situação. Eventualmente, após o término do meuprimeiro semestre, pedi transferência para São Paulo, passando aestudar na UNIP do campus Vergueiro e a trabalhar na EditoraArte & Ciência. O Sr. Roberto de Sousa Causo, escritor profis-sional da editora, passou a me ajudar a escrever o livro.

*

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EM BRANCO

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Epílogo: Sendo um exemplo.Epílogo: Sendo um exemplo.Epílogo: Sendo um exemplo.Epílogo: Sendo um exemplo.Epílogo: Sendo um exemplo.

O que é uma “história de sucesso” para se colocar no títulode um livro? Minha vida não terminou ainda, está muito longedisso. Como posso colocar “história de sucesso” no título?

Penso que esse foi o meu maior aprendizado por tudo o quepassei. O sucesso não é chegar lá, e sim estar trilhando. A genteencontra a felicidade quando sabe aonde quer chegar e se sentelutando pelo que acredita. Chegar lá é conseqüência.

Hoje eu tenho um filho que está quase chegando — a Josianeficou grávida no segundo semestre de 2003 —, estou no segun-do ano do curso de Direito, tenho um livro que está saindo ago-ra... Será que isso é sucesso?

É em parte, com certeza, mas sucesso mesmo é saber que eunão vou cair mais, é saber que aprendi a vencer as tentações, atraçar meu caminho dentro da Lei, e que minha vida está muitomelhor assim. Mas ainda não é tudo.

Sucesso é a gente saber o que fazer e ter vontade de fazê-lo.E eu, graças a Deus, aprendi essa lição. Sei o que quero e sei comochegar lá.

Não quero ser apenas mais um advogado, ou um juiz oupromotor. Quero aprender e usar minha experiência para que

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outros, que estão onde eu já estive, também tenham a chance demudar. E, ainda, para que muitos não tenham que passar peloque passei.

Pretendo me especializar na situação da criança e do adoles-cente, entender as razões de tudo isso, e quero participar da mu-dança. Quero ter, além da experiência vivida, o conhecimentoteórico de tudo o que temos hoje, o que devemos e podemos fazerpara melhorar. Quero, sim, ser um exemplo. Não sei se vou con-seguir, mas sei que vou lutar com todas as minhas forças para rea-lizar meu projeto de vida.

Posso fazer planos, pensar no futuro, ter sonhos como todomundo e saber que depende de mim realizá-los.

Isto para mim é sucesso. É assim que me sinto hoje.