M. Delly - Flor Do Lar Flor Do Claustro (PtPt)

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Ttulo: Flor do Lar, Flor do Claustro. Autor: Delly. Dados da edio: Livraria Figueirinhas, Porto, 1937. Gnero: romance. Digitalizao e correco: Dores Cunha. Estado da obra: corrigida. Numerao de pgina: cabealho. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. I Manuela estava agora s na capela em que flutuava ainda um leve perfume de incenso, qusi desvanecido pelo das rosas e dos lrios que guarneciam o altar. Soror Maria Coletta, depois de arrumar o pequeno coro, onde, pouco antes, se tinha dado a bno do Santssimo Sacramento, havia desaparecido, fechando sobre ela a porta da sacristia. Por trs da grade e da cortina preta do coro das religiosas, a lenta salmodia cessara, retirando-se as piedosas reclusas. Manuela permanecia s, com a cabea entre as mos, tudo esquecendo no fervor da sua prece. Passando atravs duma vidraa, um raio de sol brincava no seu chapu muito simples, na sua blusa de fina cambraia branca, nos seus dedos delicados, em que se apoiava a fronte, emmoldurada de bands negros, lisos e cetinosos. 6 Ergueu, por fim, a cabea. Os olhos escuros,- dum escuro quente e dourado, - poisaram longamente no tabernculo. Parecia reflectir-se neles um brilho estranho, que se comunicava a toda a sua fisionomia fresca e gentil. A sua fina boca entreabriu-se, e murmurou algumas palavras, enquanto a alva tez se coloria sob a influncia duma poderosa emoo. Manuela continuou assim durante alguns instantes. Flamejava no fundo das suas pupilas uma promessa ardente, apaixonada... O som duma campainha, agitada na parte exterior pela Irm rodeira, veio subitamente cham-la realidade, Ergueu-se devagar, fez uma profunda genuflexo, e saiu da capela. - Esquecia-me das horas, minha Irm, disse rodeira, que a saudava amigavelmente. ? - junto de Deus que se est sempre melhor, menina. O brilho que, pouco antes, iluminara o rosto de Manuela, apareceu nele de novo. - Sim, certo. Mas no podemos, a-pesar-do conforto que sentimos junto de Ele, esquecer os deveres da terra. Minha prima j deve estar a pensar no que ter sido feito de mim. - Oh! a menina Tecla j deve calcular que 7 deixou passar o tempo a conversar com Nosso Senhor! disse a rodeira, sorrindo. Boa tarde, menina Manuela! - Boa tarde, Soror Francisca. Depois de transpor a porta, Manuela cortou direita pela rua de pavimento pedregoso, orlada dum lado por muros floridos de rosas silvestres, e, do outro, por antigas casas venerveis, habitaes das velhas famlias da Rocalndia; depois tomou por uma rua transversal, de pavimento semelhante, que a conduziu a uma pequena praa estreita, rodeada por antigas moradias, cujo rs-do-cho era geralmente ocupado por

pequenos estabelecimentos, de aspecto arcaico e alpendre entrada. Uma delas, contudo, tinha-se conservado casa burguesa. Na ombreira da porta, uma chapa embaciada anunciava a profisso do proprietrio. Foi para ela que se dirigiu Manuela, acabando de abotoar as luvas, que tirara emquanto esteve na capela. Apoiou o dedo no boto da campainha elctrica,- um verdadeiro luxo para a Rocalndia, cujos habitantes se incrustavam ferozmente nos costumes do passado, a despeito dos esforos de alguns novos, apaixonados pela modernidade. A colocao da campainha deu logar, na pequena cidade, a comentrios sem fim, a crticas amargas. 8 Havia dois anos que o facto se dera, e muitos rocalandeses preferiam ainda servir-se da argola que ficara no seu lugar, desdenhando essa inveno moderna, que lhes parecia um ultraje aos costumes ancestrais, ciosamente conservados. Dizia-se mesmo que duas das principais famlias da povoao chegaram a pensar em retirar os seus negcios das mos desse notrio to amigo de novidades, renunciando ao propsito apenas em ateno antiguidade do cartrio Viannes, por onde haviam passado os seus maiores, e onde se tinham sucedido titulares duma integridade absoluta. Confiar os seus interesses ao sr. Viannes fazia parte das tradies da Rocalndia, e pareceria um sacrilgio fugir tradio. Mas os pobres rocalandeses haviam tido recentemente outros motivos de escndalo, O notrio actual, homem novo e empreendedor, havia-se lembrado, alguns meses antes, de comprar uma bicicleta, e de fazer nela, no as suas voltas profissionais,- do que Deus o livrasse, porque ficaria para sempre desqualificado ! - mas alguns passeios pelos arredores. E sua esposa, uma senhora nova e muito amvel, educada num convento de Annecy, imaginara, naquele vero, oferecer um ch, todas as quintas-feiras, tarde, a alguns conhecimentos 9 ntimos,-costume inteiramente contrrio s tradies dos rocalandeses, que apenas se reuniam noite. E no bastava ver introduzido um pouco de esprito moderno na pessoa dos funcionrios impostos pelo Estado, mas fora contaminado tambm um filho da terra, Paulino Viannes, que vinha tambm concorrer, para introduzir innovaes, perturbando a rotina daqueles costumes seculares. O notrio e a sua mulher suportavam filosoficamente a desaprovao dos seus conterrneos. Obrigados a viver naquela povoao atrasada, aproveitavam dela o que possua de bom, - o seu esprito religiosO, por exemplo, ainda bem radicado, - e levavam, a despeito das recriminaes, uma vida "mais aberta, mais inteligente e desprendida, ao mesmo tempo, dos entraves ridculos do meio, tanto quanto permitia a profisso do sr. Viannes. Mas eram mal vistos por esse facto. E, se no fosse a presena de sua cunhada, a sr.a Viannes, no teria mais que duas ou trs pessoas nas suas reunies. Alice Viannes era, porm, to estimada pelas suas amigas, que estas no seriam capazes de lhe infligir o desgosto de faltar quelas tardes de quinta-feira, para as quais as suas mos hbeis 10 preparavam os mais saborosos acepipes da arte de pastelaria. A amvel Alice, to alegre e atraente, no admitiria nenhuma recusa que no fosse seriamente justificada. Estava naquele momento na sala de jantar, junto da mesa em que, sobre uma toalha guarnecida de renda, os pratos dos pastis rodeavam o bule. Alta, vigorosa, feies bem acentuadas e tez muito morena, Alice Viannes

parecia a imagem da sade, -sade moral e tambm fsica como o testemunhava o olhar claro, recto e firme dos seus olhos pardos. Rodeavam-na algumas donzelas; e, entre elas, conservava-se um mancebo alto, magro, cujo rosto plido terminava por uma barba loira escura. Sorria levemente ao ouvir os ditos espirituosos que se trocavam em volta dele entre Alice e as suas amigas. Mas esse mesmo sorriso era grave, um pouco triste, como o olhar que se desprendia dos seus olhos negros, poisando destradamente sobre as donzelas que ali estavam. - Severino, toma outra chvena? ofereceu Alice, voltando-se para ele. - Obrigado, minha querida Alice. Uma chega. - O senhor gosta de ch ?preguntou uma jovem baixa, ruiva, de nariz arrebitado. 11 -Muito pouco, menina. Outrora, mesmo, no podia suport-lo; minha me, que o saboreia com delcia, obrigou-me a acostumar-me, porque no gosta de o tomar s, e agora bebo de bom grado uma chvena, mas no mais. Pela fisionomia de vrias jovens que ali se encontravam passou uma sombra de compaixo, e a baixinha ruiva insistiu: -Admiro a sua heroicidade, sr. Viannes, porque no seria capaz de tomar uma coisa que detestasse, e lembro-me agora de ter ouvido dizer que detestava o ch. - verdade, menina, mas tudo se consegue quando se trata de causar prazer a outrem, e, principalmente, quando se trata da nossa me, disse com simplicidade Severino. Alice envolveu seu primo num olhar de profunda admirao. Sabia ela muito bem que a palavra herosmo no era exagerada aplicando-se a Severino Viannes, esse filho admirvel que sacrificava os menores gostos e se condenava ao celibato, para satisfazer uma me caprichosa, tirnica, de exigncias espantosas; rodeava-a de todos os cuidados, das mais ternas afeies, e nunca deixava escapar uma queixa, uma palavra de impacincia. Nomeado professor, no ano antecedente, do liceu 12 de Lyon, consagrava a sua me todo o tempo, e, com o recurso dos seus vencimentos, proporcionava-lhe uma existncia desafogada, confortvel, como ela gostava, privando-se ele de tudo e vivendo como um anacoreta. Ningum conhecia a fundo a extenso dos sacrifcios feitos pela afeio filial de Severino Viannes, nem a soma de esforos que empregava para suportar com fronte serena o carcter desptico injusto e atrabilirio dessa me, de que ele falava sempre com respeito, sem que at, os mais ntimos alguma vez conseguissem surpreender-lhe uma nica palavra de censura. -A vem Tecla, para levar mais ch, disse novamente a ruiva, olhando para a porta aberta de par em par, e que fazia comunicar a sala de jantar com o salo. Avanava uma donzela, segurando nas mos umabandeja cheia de chvenas vrias. Severino foi ao seu encontro e cumprimentou-a efusivamente. - Menina Tecla, isto muito pesado para si! - Oh! de modo algum! Eu no sou, afinal, to fraca como pareo! Entreabriu-lhe um sorriso os finos lbios rosados, subindo at os olhos cor de violeta, que subitamente se iluminaram. -13 - Isto no quere dizer que no agradea o seu cuidado, sr. Severino, acrescentou numa voz suave e bem timbrada. Alice, a sr.a Meuilles reclama uma chvena. Emquanto falava, a donzela aproximava-se da mesa. Era baixa, mas admiravelmente proporcionada. O seu rosto, embora no fosse regularmente bonito, encantava pelo contraste dos olhos azues e dos cabelos pretos, e

talvez mais ainda pela expresso de doura, pela irradiante, espiritual candura do olhar. - Estou a ver que sua prima a abandona, Tecla, comentou sorrindo, uma das jovens. Tecla sorriu tambm. - Talvez se tenha esquecido das horas na capela. Mas no deve tardar por a. - Acabar por se fazer religiosa, acrescentou a ruiva, pegando num bolo. Tecla empalideceu ligeiramente. - possvel... No sei, murmurou ela. - Mas no vale a pena entristecer-se j, queridinha! disse Alice com afectuosa vivacidade. Tudo vir a seu tempo... Ora a tem a sua Manuela. Tecla correu para a porta da sala de jantar, onde aparecia a esbelta figura de Manuela. 14 -Grande m, tinhas-me esquecido ? disse passando carinhosamente o brao em volta do pescoo de sua prima. -No me ralhes, querida... Parece que no venho muito atrasada, porque vejo ainda Alice em atitude de se servir duma chvena, acrescentou Manuela, dirigindo-se para a mesa. m - para a sr.a Meuilles, que pede uma segunda chvena, disse Alice, estendendo a mo recm-chegada. Pelo contrrio, j muito tarde, amiga Manuela. - Nesse caso apresento-lhes mil desculpas, disse jovialmente Manuela. Demorei-me na capela, esqueci-me das horas... Emquanto falava, ia apertando as mos que se lhe estendiam. A Severino preguntou com interesse notcias de sua me, dirigindo a cada uma das jovens presentes uma frase amvel, que lhe vinha do corao. Parecia que tinha entrado na sala, com ela, uma intensa irradiao de bondade. Dirigiu-se para o salo vizinho, a-fim-de cumprimentar as outras convidadas, e Tecla seguiu-a. Era como uma criana beira de Manuela, muito mais alta. As duas primas mostravam um certo ar de famlia, mas no se pareciam. Tinham apenas 15 o mesmo cabelo, dum negro soberbo, e a mesma ctis, muito branca. Severino seguiu-as com o olhar, depois voltou-se para sua prima. - Ento julgas que Manuela pensa em entrar para um convento, Alice? - Acho isso muito provvel. duma piedade invulgar e visita frequentes vezes a abadessa das Claristas. -Creio que ela j qusi uma santa! declarou uma morenita, em faces cor de ma camoesa. - Em todo o caso, uma bela alma, cheia de caridade e dedicao. Mas, se ela se faz religiosa, a pobre Tecla fica desesperada. - Pode consolar-se com o casamento, Alice. - Casar-se? volveu a ruiva com um sorriso malvolo. Deve ser difcil, porque lhe falta o principal... -Talvez que o seu primo a dote. -Oh! quem que pode contar com a generosidade dos Harbreuze? Sempre tiveram reputao de sovinas, e julgo que no ser Gualberto quem a desminta. - Isso avanar demais, Luiza. Ningum conhece ainda bem o carcter do senhor Harbreuze. - Um soberbo, irritantemente orgulhoso da 16 sua fortuna e da posio que ocupa no nosso meio. Uma natureza reservada, desdenhosa, fria como um mrmore... Parece-me que Manuela e Tecla nem

sempre devem gorar momentos felizes entre ele e a velha senhora Harbreuze. Severino olhou-a com surpresa. -Julgo que Gualberto no de carcter to spero como o pinta, menina. Certamente, como diz, de natureza reservada e fria, mas era outrora um camarada prestvel e bom, e, nas raras ocasies em que o encontrei depois, no me pareceu muito mudado.. Luza mordeu os beios. - que o viu com os olhos da sua antiga camaradagem de infncia, sr. Severino. Aqui, estimado, mas no amado. O aparecimento de Manuela e Tecla porta da sala de jantar veio desviar a conversa. Severino afastou-se um pouco, refugiou-se num dos profundos vos da janela, e da os seus olhos pretos, tristes e graves, contemplaram longamente Tecla, que apoiava a cabea escura contra o ombro de sua prima, emquanto esta ouvia com um sorriso abstracto a palestra das amigas de Alice de Viannes. Trs quartos de hora depois, Manuela e Tecla 17 saam da casa Viannes, retomando o caminho pouco antes percorrido pela primeira. A habitao dos Harbreuze era contgua ao convento das Claristas. Tinham sido os antepassados dos actuais representantes dessa velha famlia burguesa quem dera outrora s Senhoras Pobres o terreno e os edifcios. Estes, nos ltimos anos, iam caindo em runas, o que se explicava pela data da sua construo, porque eram anteriores casa Harbreuze, por sua vez duma idade respeitvel, como o atestava a data por cima do batente, segura por largos pregos, polidos pela velha Gertrudes. Na estreita rua dos Pelames, que o Sol s visitava de passagem, a casa dos Harbreuze, j de si escura e severa, tinha uma aparncia desagradvel. Ao v-la, dir-se-ia que, por detrs das grades de ferro do rs-do-cho, ia aparecer a cara desolada de algum pobre prisioneiro. E a velha Gertrudes, que veio abrir a porta s donzelas, dava tambm a idea duma carcereira, com o seu largo rosto desabrido, boca desdentada e olhitos duros, ocultos sob a arcada superciliar, muito proeminente. - Menina Manuela, est l em cima uma carta para si, disse a criada, fechando a porta. a 18 senhora que a tem, e est impaciente por ter demorado tanto. Atravessando o vestbulo soturno e frio, as donzelas entraram no aposento a que chamavam sala. Era ela, desde sempre, o logar habitual da reunio da famlia. Serviam-lhe de ornamento alguns velhos mveis slidos e sem gosto, tapearias antigas, cuja cor era difcil distinguir, alguns retratos dos antepassados, j denegridos. Havia ali, contudo, uma limpeza meticulosa, uma ordem perfeita, e at uma simetria excessiva, que dava, logo de entrada, uma desagradvel impresso de frialdade. Uma senhora idosa, sentada junto da janela numa confortvel poltrona, voltou para as recm-vindas um rosto ainda formoso, a despeito das numerosas rugas que o sulcavam. - At que enfim! Ainda bem! disse na sua voz seca. Quando ides para casa dos Viannes, no se vos pode pr mais a vista em cima... Tens aqui uma carta de teu irmo, Manuela. A interpelada aproximou-se duma pequena escrivaninha colocada a um canto do aposento, pegou num canivete e abriu devagar o envelope de espesso papel gnero pergaminho. Sem se apressar tambm, desdobrou a carta e percorreu 19 com a vista as poucas linhas duma letra cheia, firme, bem legvel.

- Gualberto estar aqui amanh, av, disse tranquilamente, dobrando a folha. - Tanto melhor! disse a velha senhora, cujo frio rosto se aclarou levemente. Um ligeiro tom de rosa subiu s faces brancas de Tecla, um tnue lampejo brilhou no fundo dos seus olhos cor de violeta. - preciso ver que no falte nada no quarto dele. Gertrudes dar mais uma limpadela aos mveis ; tambm ser bom sacudir os tapetes, porque a poeira volta com uma rapidez espantosa... E tu prevenirs Vitorina, por causa do bife de grelha. - Sim av. Sempre que Gualberto Harbreuze regressava das suas frequentes viagens, a velha senhora renovava as mesmas recomendaes. Pouco importava que os aposentos do mancebo tivessem sido limpos e arrumados na vspera. Era indispensvel recomear, como era indispensvel que Manuela fosse depois examinar tudo, embora Gertrudes estivesse, pelo menos tanto como ela, ao corrente dos hbitos de seu irmo. O bife de grelha estava igualmente na tradio: parecia que o jovem chefe da casa Harbreuze no poderia ser devidamente 20 acolhido, se no visse figurar na mesa esse prato que Vitorina tinha orgulho em saber preparar, Gualberto era, na verdade, o fulcro em volta do qual tudo girava. Havia-se conservado nos Harbreuze a tradio daquele direito de primogenitura. E a velha senhora Harbreuze exagerava-o mais ainda, pois que s via no mundo seu neto. A neta e a sobrinha, Tecla, nada eram a seus olhos, ou antes, no deveriam passar de humildes criadas de Gualberto, se este assim o permitisse. Manuela nenhum desgosto manifestava por essa preferncia, qual estava acostumada desde a infncia. . Parecia-lhe tambm muito natural tratar com aquela deferncia seu irmo, muito srio, que no tinha conhecido em pequenino, e que sempre lhe testemunhava uma verdadeira afeio, embora nada expansiva. - Soubestes alguma coisa de novo em casa dos Viannes? preguntou a senhora Harbreuze, voltando a pegar no seu trabalho de malha. - Eu, nada, av. Tambm cheguei um pouco tarde. - E tu, Tecla? A voz tomava um tom de maior secura quando se dirigiu sobrinha. 21 - Eu tambm nada soube, minha tia... Estava l o sr. Severino Viannes, que se mostra muito fatigado. Diz a senhora Viannes que ele trabalha em excesso, porque sua me se torna cada vez mais exigente. A velha encolheu os ombros. - uma doida, essa mulher. H-de dar cabo do filho ... Ora chega-te aqui, Tecla. A donzela aproximou-se. Os dedos da senhora Harbreuze, nodosos pelos reumatismos, pegaram na extremidade da gola de renda antiga que ornava o simples vestido cinzento de Tecla. -i Ento que vem a ser isto ?... onde foste buscar esta gola? - Fui eu que a emprestei a Tecla, av, porque o seu vestido j pouco prprio para estas reunies, disse a voz calma de Manuela. Perpassou nas faces da velha um claro de irritabilidade. - Tu s ridcula! Essa gola foi-te dada por Gualberto, no era para

enfeitares com ela Tecla. - Tenho a certeza de que Gualberto nada ter que dizer. Alm disso, Tecla tem tanto direito de a usar como eu, porque essa renda vem duma av comum. -Tanto direito ?... Esqueces-te ento de que 22 s Gualberto o herdeiro desses objectos, jias e outros, que se transmitem desde sculos aos primognitos ?... e que alm disso Florncio, o pai de Tecla, recebeu a sua parte de herana, pelo que esta nada tem a reclamar? O olhar duro da velha poisava no rosto de Tecla, ruborizado pela vergonha. - A reclamar, no, mas nem por isso menos natural que ela traga, como eu, esse adorno, acentuou Manuela com firmeza. Ao mesmo tempo estendia a mo, e pegando na de Tecla, passava-a por baixo do brao, em ar de proteco, afectuosa. - Mas no essa a minha opinio! volveu a senhora Harbreuze com sobrecenho. Falarei a Gualberto quando ele vier, e veremos o que ele pensa. Demais no compreendo que uma pessoa sria, como pretendes ser, anime os instintos de garridice que certamente existem nessa pequena. Desta vez Tecla tornou-se muito plida; os seus olhos encheram-se de lgrimas. Conhecia bem, infelizmente, o sentido daquela aluso! A senhora Harbreuze, que nunca pudera tolerar seu sobrinho Florncio Lormey, fartara-se de dizer sua segunda sobrinha que, se estava agora pobre e obrigada a recorrer generosidade 23 de Gualberto e Manuela, era por culpa de sua me, uma senhora elegante e frvola, desposada por Florncio num instante de desvairamento, a despeito da oposio de seu tio Harbreuze, e que a tinha arruinado por completo. Os olhos escuros de Manuela rebrilharam de indignao. - No, av: Tecla no uma garrida - disse com arrebatamento, apoderando-se da mozinha tremente. Ela sempre, entre todas, a mais simples. E julgo no ter cometido uma falta enfeitando um pouco a minha querida irmzinha. - Sim, j sei que queres ser a ltima a falar, resmungou a velha. Falarei a Gualberto, torno a dizer. No deixar de me aprovar, com certeza, porque um grande inimigo do garridismo feminino. Eis a um que se no deixar apanhar, como esse pobre Florncio... Entretanto, vai examinar o quarto dele e previne Gertrudes e Vitorina. As duas jovens saram da sala, subiram lentamente a larga escadaria de pedra, muito escura, como toda a casa. No primeiro patamar, Tecla parou repentinamente, lanou os braos em volta do pescoo da prima e desatou em soluos. - Porque que ela me quere assim mal? balbuciou. 24 Porque est sempre a dizer que sou garrida ? - No faas caso, minha querida Tecla. A pobre av tem um gnio spero. Bem sabes que tambm eu tenho muitas vezes de suportar os seus destemperos. - Sim, mas comigo o caso diferente. Sinto que h da parte dela malevolncia, o propsito firme de me desgostar. - No, -minha Tecla: no imagines semelhante coisa. Vamos, limpa esses olhos e vai mudar de vestido. Se quiseres, poders depois ajudar-me a acabar as camisas para a velha Armandina. E com um gesto de maternal ternura, Manuela passou o seu leno sobre os belos olhos cheios de lgrimas. - Sim vou apressar-me... E olha, se estiveres presente quando a tia falar

a Gualberto, dir-lhe-s que... no sou garrida, sim? Manuela sorriu ao meigo olhar suplicante. - Falarei com ele antes, para que esteja ao corrente do que se passa. Alm disso, como j disse av, ele no ligar nenhuma importncia ao caso. Tranquiliza-te, no ser por isso que ficars a seus olhos com a reputao de frivolidade. - Seria para mim to desagradvel! murmurou Tecla, cuja tez se coloriu levemente. II Desde tempos imemoriais, os Harbreuze tratavam da preparao de peles e couros, principalmente para a indstria de luxo. Juntando aos seus lucros uma grande economia e uma simplicidade de vida nunca desmentida, haviam adquirido uma grande fortuna, que foi aumentando sempre, mormente depois que Amadeu Harbreuze, o pai de Gualberto, aplicou sua indstria diferentes descobertas modernas e se envolveu em negcios importantes com o estrangeiro. Daquela fortuna recebera Gualberto, segundo o costume, a mais larga parte. Continuava tambm a indstria dos antepassados e dava-lhe ainda maior desenvolvimento. Era, no dizer de todos, uma inteligncia notvel, um carcter firme, enrgico, muito perspicaz, e justo para com aqueles que estavam ao seu servio. Possua, numa palavra, 26 todas as qualidades dum chefe, excepto a benevolncia que, unida firmeza, atrai e mantm as simpatias. Gualberto Harbreuze era frio, pouco acessvel, muito concentrado, e as suas maneiras altivas davam razo aos que afirmavam que o jovem senhor da casa Harbreuze, orgulhoso como todos os seus maiores, se considerava um ser superior, por causa da sua velha estirpe burguesa, da sua fortuna e da situao preponderante que esta lhe assegurava, no s na Rocalndia, mas tambm em toda a Saboia. Como natural, aquele magnfico partido era ambicionado por todas as donzelas da cidade e dos arredores. Mas a frieza de Gualberto desconcertava-as, nas raras vezes em que o mancebo aparecia na sociedade. Como devia ter o corao pouco erno, e o consideravam to interesseiro como os Harbreuze antigos, s poderiam conservar alguma esperana as que possuam bom dote. Nunca, porm, at ali, Gualberto fizera qualquer aluso a casamento, mesmo em sua casa. Contentava-se certamente com a existncia tranquila que lhe proporcionavam, no regresso das suas viagens de negcios, a av, Manuela, e Tecla, a pequena prima rf, de quem era tutor. A sua permanncia no estrangeiro fora desta 27 vez mais demorada que de costume. Nenhuma explicao dava nos raros e curtos bilhetes postais que dirigia av e irm. Procedendo assim, no saa fora dos seus hbitos vulgares, porque nunca falava a ningum dos seus negcios, e encerrava-se num laconismo que tornava muito pouco animadas as reunies de famlia. No entanto, a notcia do regresso do jovem dono era sempre acolhida com viva satisfao, que se manifestavam por uma viva actividade de limpezas e polimentos por parte de Gertrudes, de Vitorina e de Mateus, os trs criados. O humor atrabilirio da senhora Harbreuze costumava, geralmente, amansar nessa ocasio; Tecla, sempre to aplicada ao que fazia, tinha algumas distraces e vigiava o andamento dos ponteiros do relgio, que lhe parecia muito vagaroso; apenas Manuela conservava a sua imperturbvel serenidade, tratando do bem-estar de todos sem o menor esquecimento, sem pressas, sem rudo, olhando para tudo e conservando, no obstante, em sua alma, o recolhimento que para todo o dia ia buscar missa matinal. Chovia torrencialmente, numa tarde de trovoada, quando parou em frente da

casa a carruagem que fora buscar Gualberto estao. Manuela 28 e Tecla, sentadas na sala, pois Gualberto no gostava que fossem ao seu encontro, levantaram-se e dirigiram-se para a porta que dava para o vestbulo. - Onde vais, Tecla ? No precisas acompanhar Manuela! gritou a voz spera da senhora Harbreuze. Qualberto no teu irmo, julgo eu! Tecla corou e recuou um pouco na sombra do aposento, sentando-se novamente e cruzando sobre a saia as pequeninas mos trmulas. Manuela voltou logo, seguida do viajante. As efuses entre Gualberto e os seus nunca eram longas. Avanou para a senhora Harbreuze, que uma paralisia imobilizava na poltrona, e, curvando a sua alta estatura, roou com os lbios a fronte enrugada da velha dama. - Boa tarde, av! Como vai do seu reumatismo ? - Na mesma, meu filho, na mesma. E tu?... A tua viagem ? - Excelente, disse em tom breve. Mas estou satisfeito por me encontrar de regresso. - A tua ausncia desta vez foi longa. - Sim, retiveram-me circunstncias particulares. 29 Passou devagar a mo pela barba preta, levemente frisada, que fazia sobressair o tom mate da sua epiderme. - vou mudar de fato, e depois jantaremos, acrescentou no tom de voz incisivo dum homem habituado a mandar. A viagem abriu-me o apetite, e saborearei com prazer o bife de grelha da nossa Vitorina. At j, av e Manuela. Dirigia-se para a porta, mas Manuela atalhou com vivacidade: - Ainda no deste as boas-tardes a Tecla... Onde ests tu, Tecla? A donzela saiu da sombra em que se refugiara, e avanou para Gualberto, que havia parado. - Boa tarde, Tecla, disse tranquilamente. Ela colocou a mo tremente naquela que se lhe estendia. - Boa tarde, Gualberto... Estou muito contente por saber que fez boa viagem, disse numa voz cariciosa e um tanto velada. - Muito boa, com efeito. Pareces-me com melhor cara que por ocasio da minha partida, acrescentou, lanando rapidamente a vista sobre o rosto ruborizado de sua prima. - No me encontro mal, mas sinto hoje bastante calor, balbuciou ela. 30 - H-de ser sempre um pelm, disse a voz seca da senhora Harbreuze. - para recear, replicou Gualberto, avanando novamente para a porta. Tecla voltou para o lugar do costume, pegou no seu lavor e ps-se a trabalhar. Mas o seu rosto tornara-se de-repente plido, e as lgrimas orvalharam-se nos olhos. Gualberto apareceu pouco depois, e conduziu, como tinha por costume, a poltrona rodante da av para a sala de jantar, austera e sombria. Depois sentou-se em frente dela e serviu-lhe a sopa, o que, em casa dos Harbreuze, pertencia tambm por tradio ao chefe de famlia. Ainda segundo os seus hbitos, Gualberto no fez a mnima referncia sua viagem. De tempos a tempos, trocava ligeiras palavras com sua av, com sua irm, mas o seu laconismo tornava difcil uma conversa seguida. Parecia, no entanto, que a senhora Harbreuze bebia as suas menores palavras. No queria retirar os olhos daquele rosto firme e enrgico, iluminado por pupilas do mesmo escuro dourado que se notava nas de Manuela, mas que nenhuma idea de semelhana evocavam entre o irmo e a

irm, porque as dele eram frias, enigmticas, 31 parecendo fixar os outros sempre com uma indiferena altiva, em que os estranhos liam muitas vezes o desdm. O jantar nunca se prolongava quando Gualberto assistia. Tinha um apetite moderado e detestava a longa permanncia mesa. Tecla, que comia lentamente, tinha de engolir bocados grandes e deixava qusi sempre uma parte da sobremesa no prato, sem que seu primo desse a perceber que reparava nisso. Na sala, Gualberto acendeu um charuto. O fumo no incomodava a senhora Harbreuze nem Manuela, e Tecla, que o no podia suportar, nunca ousara confess-lo quando sua prima a interrogava a esse respeito, porque tinha receio de desagradar a Gualberto e de se ver excluda da sala todas as noites, emquanto ele fumava, pois no seria certamente o primo quem modificaria os seus hbitos por causa dela. Naquela noite, Gualberto parecia um pouco preocupado. Atirou fora o charuto meio consumido e aproximou-se da janela aberta, por onde entrava o ar hmido e quente. - Parece-me que ainda temos trovoada esta noite, disse Manuela, suspendendo por momentos o bordado em que trabalhava. 32 provvel, respondeu Gualberto. Afastou-se da janela e voltou para junto do grupo formado pela senhora Harbreuze, por Manuela e por Tecla. - Devo dar-lhes uma novidade, um acontecimento que vai modificar a nossa existncia, disse com muita calma. Levantaram-se para ele trs olhares surpreendidos e vagamente inquietos. - Acontecimento ? preguntou a senhora Harbreuze. Mas qual ? - O meu casamento, av. - O teu... casamento ? exclamou a velha, emquanto Manuela deixava escapar um movimento de assombro. - Sim: pedi h quinze dias uma jovem austraca, de famlia muito nobre, a condessa Otlia von Walberg. Brilhou no olhar da velha senhora uma chama de orgulho. -Uma condessa austraca?!... i Foi ento por isso que demoraste a estada na ustria, Gualberto? - Sim, foi em parte por isso, disse com a mesma tranquilidade. Tive ocasio de prestar um pequeno servio ao pai da menina de Walberg, que me convidou a passar alguns dias no seu 33 castelo de Rennubrunn. Foi assim que conheci a condessa Otlia. - Como ela, Gualberto ? Era Manuela que o interrogava, com a voz um pouco alterada pela comoo que lhe causara a notcia inesperada. - Notavelmente bela, inteligente e instruda, piedosamente educada. - E rica? Desta vez a pregunta partia da senhora Harbreuze. - No, disse lacnicamente Gualberto. No se pode ter tudo, av. Os Walberg pertencem mais antiga nobreza do Imprio, e a condessa Otlia uma grande dama dos ps cabea. - Evidentemente, sob esse ponto de vista, um bom casamento... E afinal, com a tua fortuna, podes dar uma satisfao ao teu amor-prprio! disse orgulhosamente a velha senhora. Gualberto, voltara a encostar-se janela, e, durante alguns momentos, de braos cruzados, deixou errar a vista diante dele, no vcuo. Manuela ainda no estava refeita da surpresa que lhe causara a revelao de Gualberto. Cobria-lhe o olhar uma sombra de inquietao... E esse

olhar baixou sobre Tecla, que se havia curvado 34 novamente sobre o seu lavor e continuava a trabalhar, como se, verdadeiramente, a notcia do casamento de Gualberto lhe no causasse admirao, nem fosse para ela de qualquer importncia. Tivera unicamente o cuidado de recuar mais um pouco, por forma que voltava as costas luz, e o rosto no podia ser observado pela senhora Harbreuze e por Gualberto. - E quando o casamento? interrogou a velha senhora, olhando seu neto com uma evidente expresso de orgulho. Ele teve o rpido sobressalto dum homem arrancado a um pensamento absorvente. - A menina von Walberg deseja que a cerimnia demore um ms. Realizar-se na capela do castelo de Rennubrunn, com a maior simplicidade, porque a minha noiva , como eu, inimiga do fausto e do rudo... Lamento que no possa assistir, av. Mas Manuela ir, certamente. Descruzou os braos e inclinou-se para a senhora Harbreuze. - vou dar-lhe a boa-noite, av. Tenho algumas cartas a escrever antes de me deitar. - Ento boa-noite, meu querido filho. Procura descansar bem. Mas dize-me uma coisa: no tens uma fotografia da tua noiva ? 35 - Tenho; o pai mandou tirar-lhe o retrato antes da minha partida. vou mostrar-lho, se assim o deseja. Tirou do bolso interior uma pequena carteira e pegou numa fotografia, que apresentou av. Manuela inclinou-se por cima da senhora Harbreuze e fitou demoradamente um belo rosto de olhos soberbos, melanclicos e graves, boca um tanto contrada, fronte altiva, coroada por uma vaporosa cabeleira. - Tens razo, notavelmente bela, disse a senhora Harbreuze, numa voz de satisfao admirativa. Parece, com efeito, soberanamente distinta... E mostra tambm ser muito sria, sem sombra de garridice. - Uma espcie de sorriso irnico entreabriu por momentos os lbios de Gualberto. - Parece-me difcil formular esse juzo por uma simples fotografia, av. - Sim, mas se atendermos expresso da fisionomia... E demais j sei que devia possuir essa qualidade para te agradar. - com efeito extremamente sria. Julgo que a frivolidade lhe desconhecida. Pegou na fotografia que lhe entregara a av e estendeu-a a Manuela. 36 - Queres examin-la mais de perto, Manuela ? - Obrigada, Gualberto, vi-a bem. , com efeito, muito formosa. - Deve ser uma admirvel noiva! disse a senhora Harbreuze com entusiasmo. Ainda tem me? - No: a senhora Walberg morreu h muitos anos. - E irmos? - Um irmo-apenas que ainda no conheo, e que oficial de lanceiros. com cuidado, Gualberto guardou a fotografia na carteira, que meteu no bolso. O seu olhar encontrou a cadeira vazia, em que pouco antes se sentara sua prima. - Onde est Tecla? - Talvez se haja retirado por excesso de discrio, disse Manuela, que fora a nica a notar o silencioso movimento de retirada de Tecla, e que no dissera uma palavra para o impedir. - Fez mal. Desde que comecei a falar deante dela, porque julguei que tinha, como parenta, tanto direito como vs a conhecer desde j o acontecimento que se prepara.

- Oh! isso no tem importncia! comentou a senhora Harbreuze com desdm. Tecla no passa 37 duma criana pouco inteligente, e que facilmente se tornaria semelhante a sua me, num meio diferente do nosso. - possvel, articulou o mancebo. Bem, boa noite, av; boa noite, Manuela. Apertou a mo da irm e saiu da sala. - Que inesperado acontecimento! murmurou a senhora Harbreuze, juntando as mos. Mas com ele tinha de ser assim. Deve casar-se segundo a sua idea, sem que ningum intervenha, sem pedir autorizao seja a quem for. um verdadeiro Harbreuze! Vibrava na inflexo da velha senhora um mixto de orgulho e de pesar. Recordava, sem dvida, com a sua natureza autoritria e propensa despesa exagerada, ao amor do luxo, fora prontamente reprimida por Marcelo Harbreuze, seu marido... como, por morte deste as suas veleidades de independncia tinham sido rapidamente aniquiladas por seu filho Amadeu. Gualberto continuava a tradio. Testemunhava a sua av uma certa deferncia; mas, desde que ficou chefe-de-famlia, fz-lhe compreender logo que tambm ele conservaria a independncia mais completa, que s ele era ali o senhor, no tendo que dar contas a ningum. 38 Depois que Manuela, como fazia todas as noites, com o auxlio de Gertrudes despiu e deixou sua av, subiu ao primeiro andar, em que se encontrava o seu quarto, contguo ao de Tecla. Parou porta desta, hesitou um momento, mas desandou devagar o puxador e entrou. Tecla, de p diante da janela aberta, olhava para fora, na noite sombria. Voltou-se levemente entrada da prima, e, embora o pequeno candeeiro, colocado na mesinha de cabeceira, a alumiasse escassamente, Manuela notou logo o crculo azulado que lhe orlava os olhos. - Ainda te no deitaste, querida? Pois bem; sabes que no deves ficar para a a cismar toda a noite. - vou j para a cama, disse em voz alterada, mas precisava de tomar um pouco de ar. Estava muito calor na sala. - i Queres que faamos juntas as nossas oraes? Inclinou afirmativamente a cabea, e ajoelhou junto da sua prima. A voz de Manuela elevou-se, grave, penetrada de fervor. Tecla, com a cabea entre as mos, respondia num tom levemente trmulo, em que perpassava, por vezes, uma espcie de quebranto. 39 - Agora boa-noite, queridinha, disse Manuela, ao levantar-se. Lanou os braos ao pescoo de Tecla e atraiu contra o peito a cabea escura. Lbios um pouco ardentes roaram as suas faces e viu que os olhos de Tecla estavam cheios de lgrimas. -Minha querida, minha querida Tecla, que tens tu ?... No receies diz-lo a tua prima, a tua irm. As lgrimas agora corriam ao longo do fino e mido rosto, caindo na blusa de Manuela. - Fala, minha querida Tecla! Mas Tecla no respondia. A sua mgoa vibrava num estremecimento que a percorria toda. Manuela no insistiu. Tambm no precisava da resposta de Tecla para conhecer a causa do seu sofrimento. J por ocasio da ltima partida de Gualberto, havia surpreendido lgrimas nos seus olhos, notara a sua palidez e a sua tristeza durante alguns dias, e o regozijo que na vspera se lhe espelhara no rosto, notcia da sua chegada. Tecla, a pequena Tecla, tam afectuosa e sensvel, amava seu primo, esse Gualberto frio e

indiferente, que a tratava, a bem dizer, como coisa a que se no liga importncia. Amava-o e admirava-o timidamente, qusi receosamente, nem chegando talvez a medir, na sua 40 inexperincia, o sentimento que a dominava. Fora necessria aquela notcia repentina do casamento de Gualberto para lhe abrir os olhos e infligir-lhe um sofrimento, cujos sinais eram bem visveis naquele rosto que parecia ter subitamente emmagrecido, emaciado. Manuela, porm, conhecendo esse corao sensvel e duma altivez delicada, com o fino tacto que a caracterizava, compreendia que era melhor deixar cicatrizar a ferida em silncio, com o auxlio de Deus. E foi por isso que, sem a interrogar mais, beijou demoradamente a fronte de Tecla, a escaldar, murmurando: - Pede ao Senhor, minha querida, pediremos ambas, para que tu sejas forte. Tecla apertou-a num movimento de ternura ardente. - Oh! Manuela, felizmente posso contar contigo ! Se no fosses tu, no poderia viver aqui!... Dize-me, tu no irs embora?... No te fars religiosa, como alguns afirmam ? Manuela desviou lentamente a vista dos olhos suplicantes que se erguiam para ela. - Esse o segredo de Deus, minha Tecla, disse com suavidade. No te inquietes antecipadamente com o que poder acontecer, pois Deus h-de certamente permitir que fique junto de ti at que esteja fixado o teu futuro! - Oh! o meu futuro! balbuciou Tecla, em tom dolorido. E de-repente, lanando os braos ao pescoo de sua prima, disse numa voz sufocada: - Sabes o que ns faremos, Manuela? Entraremos ambas no convento... no mesmo convento, para no nos separarmos. - Quem sabe ?... Mas as resolues desse gnero tm de ser amadurecidas, minha querida Tecla. Por agora, trata-se apenas de ter coragem e resignao, mostrando-te neste mundo, onde Deus te quere ainda uma verdadeira crist, que sabe sofrer e esquecer. Trocaram pela ltima vez um beijo, e Manuela saiu do quarto. Quando ia entrar no seu, viu surgir no corredor, para onde abria o aposento de Gualberto, a alta figura de seu irmo. - s tu, Manuela? Estes corredores esto muito mal iluminados. Ser bom arranjar candeeiros mais fortes... ou ento, e isso prefervel, mandarei pr a electricidade, porque a tenho na fbrica. Manuela ficou muda de espanto. A electricidade 42 numa casa de Rocalndia! Rocalndia-a-Morte, como lhe chamavam... E era Gualberto, um dos mais tradicionalistas rocalandeses, que pretendia fazer essa revoluo! Sem dar a perceber que notara a surpresa provocada, ele continuou. - Mas porque no te deitaste ainda? No esse o teu costume. - Demorei-me junto de Tecla, i No ests fatigado da tua viagem, Gualberto? - De modo algum. Acabei de fazer a minha correspondncia e vou agora descansar um pouco, Mas esqueci a chave da mala no bolso do sobretudo, que ficou l em baixo. Boa noite, Manuela. Pegou-lhe na mo, atrau-a para ele, dandolhe um beijo nos cabelos negros. - Que pensas do meu casamento, Manuela ? preguntou com uma inflexo de doura na voz.

- Penso que fazes bem, se a que escolheste digna da tua afeio, disse gravemente. Ele mergulhou a vista na de sua irm, que viu faiscarem aqueles olhos escuros, onde geralmente se notava uma frieza desesperadora. -Julgas-me capaz de amar algum, Manuela? preguntou numa voz calma, levemente mordaz. 43 - Julgo, porque amas a valer tua irm, respondeu ela com tranquila meiguice. A mo de Roberto roou-lhe o ombro, numa espcie de gesto afectuoso. - verdade, amo-te, Manuela, e agradeo-te por o teres reconhecido, porque raras vezes o tenho demonstrado. Quanto ao meu casamento... Estou qusi certo de que, em toda a Rocalndia, no haver quem no diga que, nesta unio, procuro apenas a satisfao do meu amor-prprio... E essa, afinal, j uma satisfao para os seres incapazes de experimentarem outras, concluiu numa espcie de riso sardnico. Afastou-se. E Manuela, ao entrar no seu quarto, pensava! Am-la- verdadeiramente ? ... ou ser apenas o seu orgulho que fala ? III Gualberto havia calculado bem qual seria a opinio dos seus concidados com respeito ao seu casamento. Todos foram unnimes em declarar, na Rocalndia, que essa unio era o remate do edifcio lentamente erguido, havia muitos sculos, pelos Harbreuze, esses orgulhosos burgueses que, pela sua fortuna e pela sua antiguidade, sempre se tinham mantido no galarim. Agora o seu descendente, mais ambicioso ainda, pretendia unir-se alta nobreza. E no veio ao esprito de nenhum rocalands, por exemplo, a idea de que esse casamento podia ser o resultado duma real inclinao, pois julgavam Gualberto incapaz duma afeio sincera. - E evidente que essa condessa o desposa apenas por causa da sua fortuna, declarou a gorda snr.a Boutrin, mulher do mais antigo mdico de 45 Rocalndia, que tinha uma inveja surda pela posio dos Harbreuze. - Oh! com certeza, apoiou sua filha Luza, o senhor Harbreuze, tam glacial e desprovido de amabilidade, no homem que possa inspirar afeio. Parece-me difcil que uma mulher possa ser feliz junto de semelhante carcter. Mas, como diz a mam, ter a fortuna dele para a indemnizar, concluiu num tom meio irnico, meio zombeteiro, a menina Luza, que secretamente se sentia furiosa por no ter sido a eleita, a-pesar-do receio que lhe inspirava Gualberto. Afinal, a escolha feita pelo senhor Harbreuze no alto da escala social no causava admirao a ningum. Desde sempre se dissera que ele s faria um casamento de ambio ou de dinheiro. Uma coisa apenas intrigava os seus concidados,: Porque teria ido escolher uma estrangeira, em vez de a procurar entre as donzelas de Rocalndia ou dos arredores? Se queria nobreza, tambm ali a encontrava. No havia as meninas de Greunzac, cujos antepassados se entroncavam nas Cruzadas? E a menina Adelaide de Porbelin, que possua uma rvore genealgica soberba e cujo av se tinha ligado casa ducal de Saboia ? 46 Mas no, Gualberto Harbreuze tinha preferido escolher uma austraca! Procuraram obter informaes junto de Manuela e de Tecla. Mas estas conseguiram furtar-se s preguntas mais ou menos discretas, porque, na verdade, no sabiam mais que os curiosos. Durante os quatro dias que esteve em Rocalndia Gualberto, a bem dizer, no falou de sua noiva. Agora havia partido para Paris, a-fim-de comprar as jias para a noiva, e, durante quinze dias, apenas um simples bilhete postal, lacnico e

insignificante, chegou casa Harbreuze. Certa manh, porm, Manuela recebeu um telegrama de ustria anunciando a chegada de seu irmo para a tarde desse dia. E assim se soube que Gualberto, depois de sua demora em Paris, tinha voltado para junto de sua noiva. Quando regressou, Manuela teve a impresso de que ele estava muito preocupado, mesmo distrado, o que nele era realmente extraordinrio. Anunciou que, no dia seguinte, chegariam estofadores de Paris para transformarem o quarto destinado jovem senhora Harbreuze... E, ao mesmo tempo que eles, apareceram tambm operrios que iam fazer na casa Harbreuze a instalao da luz elctrica. 47 A senhora Harbreuze, no ousou erguer a voz para protestar contra aquela profanao dos costumes ancestrais, contra aquela reviravolta da velha moradia. Mas, quando o neto no estava presente, repetia a cada passo com ar consternado: - Mas que lhe passaria pela cabea? Que loucura ser esta?... Os Viannes triunfavam. Ah! agora, j lhes no chamariam modernos, termo profundamente desprezvel na boca dos rocalandeses! -Gualberto Harbreuze, o dolo da regio, passava-lhe adiante em questo de modernismo! O grande quarto do primeiro andar, que fora o da falecida me de Gualberto e Manuela, foi desobstrudo dos seus velhos mveis de acaj macio, slidos e feios, das suas pinturas de repes granate, do pesado relgio Imprio, e dos candelabros que o ladeavam. As paredes foram recobertas com um estofo sedoso, dum cinzento-azul-plido, entremeado com florinhas de tons menos vivos. Os mveis chegaram por fim, mveis Luiz xv, duma artstica riqueza, acompanhando uma admirvel guarnio de chamin e diversos objectos de luxo, escolhidos com um fino gosto, que era uma revelao, porque nunca o senhor Harbreuze o tinha manifestado at ali. 48 Era ele quem fiscalizava aquela instalao em todos os seus pormenores, como tinha por costume, quando se tratava de qualquer modificao a fazer na sua fbrica. Nada lhe escapava, e os operrios, sob aquela vigilncia inflexvel, realizavam prodgios de rapidez. Estava tudo pronto quando, trs dias antes da cerimnia, Gualberto partiu para a ustria, Manuela no o acompanhava. Havia tido uma entorse e a viagem tornara-se impossvel. A chegada prxima daquela estrangeira provocava uma espectativa ansiosa em todas as pessoas da casa Harbreuze, e as menos inquietas no eram as velhas criadas, que, vendo as transformaes operadas por seu amo e o luxo, inaudito para um Harbreuze, introduzido nos aposentos da noiva, receavam que ela fosse uma rabugenta, que viesse a revolucionar por completo aquela pacfica habitao. A velha Harbreuze no manifestava tambm menor espanto. Seria acaso essa condessa duma espcie diferente para se no contentar com o que havia bastado a tantas senhoras suas antepassadas ? Desde que soubera dos esponsais de seu irmo, Manuela entregava-se s suas preces ainda com 49 maior fervor, se isso era possvel. Pedia a Deus que ele encontrasse nesse estrangeiro uma esposa amorvel e sria, capaz de compreender uma natureza que era um enigma para a sua prpria irm... Pedia tambm pela pequena Tecla, que sofria silenciosamente, sem que ningum, a no ser sua prima, pudesse adivinhar o que se passava naquele terno corao. Tecla desempenhava pontualmente os pequenos servios que lhe incumbiam na casa, punha o mesmo cuidado que antes nos trabalhos de costura, suportava

com a mesma pacincia resignada as palavras contundentes que nunca lhe poupara sua tia-av e tambm no deixava de ir, como de costume, todas as quintas-feiras, a casa dos Viannes. Mas fazia esforos para falar; o seu sorriso era triste e forado... E agora, acompanhava muitas vezes sua prima igreja. A condessa Otlia havia escrito senhora Harbreuze uma carta bem redigida, muito correcta, mas excessivamente fria. Quando Gualberto partiu para a cerimnia, Manuela entregou-lhe para a sua noiva algumas linhas em que punha todo seu corao. Recebeu em resposta, no prprio dia do casamento, um bilhete menos estudado do que a carta dirigida a sua tia-av, mas em cujas palavras 50 rebuscadas Manuela descobriu uma espcie de constrangimento, que a penalizou e inquietou. No dia seguinte ao da cerimnia, chegaram as malas que continham o enxoval da noiva. Eram magnficas e muito numerosas. Entre elas, porm, vinha uma pequena, muito velha, que ostentava sobre uma chapa de cobre, cuidadosamente polido, uma coroa condal. - Se no fosse esse distintivo, julgaria que era a da criada, disse a senhora Harbreuze, que se fizera conduzir at ao vestbulo para examinar a bagagem. Mas quanto no custariam estas malas! Se isto vai por semelhante caminho, essa mulher h-de levar Gualberto runa... E diz ele que sria! - E depois, como havemos de entender-nos com essa criada de quarto? resmungou Gertrudes, a quem preocupava muito a idea de ver uma estrangeira pr os ps na cozinha. Uma austraca qusi uma alem... com certeza no fala francs. - E teria, acaso, essa senhora necessidade duma criada de quarto s para ela ? acrescentou Vitorina, a cozinheira, i No nos tinham a ns, porventura? O senhor Gualberto faz mal em consentir semelhante coisa. Mas Gualberto, sem se preocupar com o que 51 se pensava em sua casa a respeito dos seus actos, fazia agora a sua viagem de npcias pela Itlia. Trs semanas depois, um telegrama anunciava a chegada dos jovens esposos. Era um belo dia de Julho, muito quente. Manuela, ao comeo da tarde, abriu as duas janelas do quarto da recm-casada, para fazer penetrar o sol no aposento que at ali se conservara fechado, para que as melindrosas pinturas no perdessem a sua viveza. O olhar da donzela percorreu esse quarto elegante e que formava um estranho contraste com o resto da velha casa. Demorou longamente a vista no esplndido crucifixo de marfim colocado cabeceira da cama... iQue seria, na verdade, essa jovem senhora? Gualberto afirmara que ela fora educada cristmente. Mas teria conservado os hbitos de outrora? Seria a mulher sria e piedosa que Manuela pedia a Deus para seu irmo? Suspirou ao pensar em Tecla. Porque no teria Gualberto escolhido a encantadora priminha, to amorvel e penetrada de slidos princpios? Mas ele considera-a sempre como uma rapariga insignificante, e as reflexes da av mais o tinham fortificado nessa opinio, a despeito dos esforos 52 empregados por Manuela para atenuar o efeito produzido. A donzela foi lanar tambm uma ltima vista de olhos sobre o aposento vizinho, transformado em gabinete de vestir e instalado com todo o conforto moderno. Desceu depois e dirigiu-se cozinha onde Vitorina esfregava a loua de cobre, vigiando o inevitvel bife da grelha, que estava preparando, a fogo lento com todas as regras, e que espalhava um cheiro delicioso. -Gertrudes no est a?... Ainda no acabou a limpeza da sala de jantar ?

interrogou Manuela. - Ainda de l no saiu! Eu bem lhe disse que a jovem senhora no veria noite se aquilo brilhava mais ou menos e que teria tempo de concluir amanh, mas no quis ouvir-me, Manuela. As duas velhas criadas, que tinham visto nascer a jovem ama, tratavam-na sempre pelo seu nome prprio, o que era alis costume imemorial entre as criadas da famlia Harbreuze. Sim, eu bem sei que Gertrudes a teimosia em pessoa, replicou Manuela, sorrindo. vou ver se serei mais feliz do que tu, mas duvido... Parece-me que o teu bife, Vitorina, cheira melhor que de costume! 53 - preciso que ele faa honra nova esposa, gracejou Vitorina, lisonjeada pela reflexo. Na sala de jantar, Gertrudes limpava os mveis com furor. Tinha o rosto afogueado, e os cabelos grisalhos, escapando-se-lhe duma touca encanudada, colavam-se-lhe nas fontes. - Gertrudes, no vale a pena fatigares-te assim, disse Manuela em tom de censura. Deixa agora isso e descansa um pouco. - Descansar? No ser hoje com certeza! Quero que tudo fique a brilhar. para mostrar a essa austraca a maneira como ns sabemos arranjar uma casa. E, mais furiosamente que nunca, ps-se a pulir os mveis j luzidios. Aps alguns esforos infrutuosos, Manuela renunciou ao trabalho de convencer a obstinada criada e dirigiu-se ao jardim para colher algumas rosas, que desejava colocar no quarto de sua cunhada. Aquilo tambm no estava nos hbitos da casa Harbreuze. Manuela nunca se recordava de ter visto uma flor dentro da habitao, a no ser aquelas com que Tecla e ela adornavam os pequenos oratrios dos seus quartos. Mas, com a intuio delicada que a caracterizava, lembrou-se 54 de que uma mulher nova, de gostos apurados, como o fazia prever a instalao organizada por Gualberto, devia gostar de flores e sentiria satisfao em v-las no seu aposento, para lhe desejarem boas-vindas. O jardim da casa Harbreuze era extenso e disposto moda antiga. Continha apenas roseiras, de espcies soberbas, de que se orgulhara muito outrora Amadeu Harbreuze, que as fizera pagar por alto preo, sendo essa, afinal, a nica extravagncia da sua vida. Gualberto que desdenhava as flores, conservava-as e mandava-as tratar por hbito, no substituindo, contudo, as que eram destrudas pela geada ou por qualquer outra causa. Sobre um velho banco carcomido, colocado sombra duma tlia magnfica, estava sentada Tecla a bordar cuidadosamente. Ergueu a cabea ao sentir os passos de sua prima, e disse em tom de censura: - i Ento andas a p, Manuela? i O doutor no recomendou que te no fatigasses? - No ralhes, minha Tecla, vou descansar dentro em breve. Quero apenas colher algumas rosas, para colocar no quarto da mulher de Gualberto. 55 -Bem, nesse caso, eu vou busc-las. Senta-te aqui e continua o meu bordado, se quiseres. Levantou-se, pegou na tesoura e no cestinho que lhe estendeu Manuela e retirou-se ao longo dos arruamentos estreitos, orlados de buxo. Foi colhendo rapidamente as mais belas rosas que lanava na cestinha, a qual ficou rapidamente cheia. - Isso demais, minha querida, exclamou Manuela, quando Tecla reapareceu: o perfume seria demasiadamente forte no quarto. - Levaremos para a capela as que sobrarem. Escolhe as que quiseres, Manuela.

- Bem: esta amarela cr-de-enxfre... estas rosas plidas... e esta branca nacarada que soberba. Tambm podias ter cortado alguns botes, Tecla. - No gosto de cortar botes, disse gravemente Tecla. Isso faz-me mal, parece-me que suspendo o desabrochar duma vida. O corao de Manuela apertou-se. Pobre botozinho de rosa, que se entreabria com timidez, como tam rpida e dolorosamente foi cortado! cessaria tambm para ele o seu desabrochar ? -vou agora colocar isto no quarto, disse Manuela, reunindo as rosas escolhidas. Pors as outras 56 em gua, a-fim-de as levarmos amanh para a capela. - Mas tens de subir outra vez, Manuela! Afirmo-te que ests a abusar. O teu p ainda no mostra estar completamente curado. - verdade que tenho sentido esta tarde uma ligeira dor; mas estou empenhada em levar estas rosas. O olhar de Tecla poisou por momentos na pequena cruz que ornava o modesto anel de prata que tinha enfiado no dedo, depois dirigiu-se para as flores que segurava Manuela. - Deixa ver, irei eu lev-las, disse com meiguice, estendendo a mo. Manuela no pde evitar um movimento de protesto. - Tu, lev-las ? Isso nunca! - Ento julgas que no sou capaz de as dispor convenientemente? Esforava-se por sorrir e os seus olhos azues, os seus olhos meigos e melanclicos, exprimiam uma resoluo tam firme, que Manuela teve um estremecimento de admirao diante da inconcebvel coragem da sua amiguinha. - Sim, bem sei que tens mais gosto do que eu... mas parece-me que posso subir sem inconveniente. 57 -Deixa-mas levar, Manuela. -Desta vez Manuela no resistiu. Entregou as rosas a Tecla, que se afastou rapidamente, no seu passo leve que nunca se fazia ouvir na velha casa. Subiu as escadas devagar e dirigiu-se para o quarto da nova senhora Harbreuze. Ainda ali no tinha entrado, e parou um instante porta, surpreendida por tanto luxo, que lhe era completamente desconhecido. Avanou por fim, e percorreu o quarto com um olhar. Sobre uma elegante pequena cmoda, dois vasos de cristal elevavam o seu comprido colo. Os dedos trmulos de Tecla colocaram neles as flores com um cuidado meticuloso e fino gosto. No se apressou e, depois de concluir, ficou ainda ali alguns momentos, de feies contradas, como se estivesse empregando um esforo prodigioso. Passou a mo pela fronte, e, como tinha feito Manuela pouco antes, levantou os olhos para o crucifixo de marfim. - Meu Deus, farei todo o possvel para a estimar! murmurou ela, juntando as pequenas mos geladas. Como se estas palavras lhe tivessem quebrado a coragem, as lgrimas saltaram-lhe dos olhos, e 58 uma delas foi cair no espesso tapete branco de largos desenhos azulcinzento, que cobria o soalho. Refugiou-se no seu quarto, limpou os olhos e passou-os com gua fresca. Os viajantes no deviam tardar e tinha de preparar-se para aparecer diante deles. Desceu lentamente. No vestbulo, sempre escuro, havia agora um pouco de luz que vinha da porta aberta da sala, de jantar, onde Gertrudes acabava

de pr a mesa. quela vaga claridade, Tecla distinguiu na banqueta de madeira encerada o cestinho em que se amontoavam as rosas colhidas a mais. Manuela tinha-as deixado ali sem dvida para que sua prima pusesse as flores na gua. A donzela entrou na sala de jantar e percorreu a mesa com a vista. Em frente de Gualberto, encontrava-se o logar da estrangeira, dessa que seria agora a dona-de-casa. Em sua honra, haviam tirado naquela noite uma parte da porcelana dos dias solenes, e um dos soberbos servios adamascados que tinham sido o orgulho das senhoras Harbreuzes, bem como as pesadas pratas da famlia. Todo o servio de mesa era duma correco perfeita, duma incontestvel riqueza, mas tambm duma frieza no menos indiscutvel. 59 Os olhos de Tecla abaixaram-se sobre o logar da nova senhora Harbreuze e as suas mos apertaram-se-lhe sobre o peito, como para reprimir uma luta que se travava dentro dela. Saiu de-repente, mas voltou dez minutos depois. Deslizou at junto da mesa, ps rapidamente diante do talher da jovem senhora um solitrio com trs admirveis rosas e desapareceu tam suavemente como tinha entrado. Qusi ao mesmo tempo, porta da casa, parava a carruagem com os recmcasados. A velha senhora Harbreuze ouviu-a na sala em que se encontrava com Manuela e ajeitou com a mo febril os folhos da touca de renda preta que lhe tinha posto sua neta. Esta levantou-se rapidamente e dirigiu-se para o vestbulo. entrada da casa apareceu Gualberto e junto dele uma senhora alta, muito esbelta, com um elegante vestido cinzento. - Mas ento no acendem a luz? Para que serviu pr a electricidade, se no se servem dela para iluminar este vestbulo horrivelmente escuro? disse a voz impaciente de Gualberto. - Oh! senhor, ainda no conheo essas manigncias! respondeu Gertrudes que aparecia, trazendo cinta um largo avental branco. 60 Manuela, porm, estendeu prontamente a mo para o comutador, e o sombrio vestbulo ficou subitamente iluminado em toda a sua extenso. - Ora ainda bem!... Boa tarde, Manuela... Emquanto falava, ia avanando e estendeu a mo a sua irm. - Otlia, apresento-te minha irm, acrescentou, voltando-se para a jovem senhora. O rosto da recm-chegada estava oculto num vu de gaze branca, muito espesso, que o no deixava distinguir. Ofereceu a Manuela a sua mo fina, bem enluvada, dizendo com voz harmoniosa, mas fria, com uma leve acentuao: - Sinto o maior prazer em conhec-la. Gualberto falou-me muitas vezes da menina dizendo quanto lhe era dedicada. O entusiasmo que arrastava Manuela para aquela mulher, que se tornara sua cunhada, esmoreceu rapidamente, e apenas encontrou, para lhe responder, algumas palavras sem calor, embora correctas e harmonizando-se perfeitamente com a atitude da recm-vinda. - Venha, Otlia, pois quero apresent-la a minha av, disse Gualberto. Entraram na sala, onde, cerimoniosamente, Otlia cumprimentou a velha senhora, que lhe 61 estendeu as mos com uma solicitude amvel, em que ela no era prdiga. - Beije-me, querida filha. No imagina a alegria que sinto em acolh-la! Otlia inclinou a sua bela estatura delicada, e, levantando o vu, ofereceu a face ao beijo da velha senhora. Mas no respondeu que tambm

se sentia satisfeita por entrar naquela casa. - Ora deixe-me contempl-la bem! disse a senhora Harbreuze, conservando-a inclinada para ela. Verdadeiramente, a sua fotografia estava muito parecida. Mas melhor v-la em pessoa, no verdade ? A jovem senhora endireitou-se, e, com um movimento suave mas firme, retirou a mo vagarosamente. Sem responder pregunta de sua av, Gualberto curvou-se para ela, a-fimde lhe dar o beijo frio que era tambm de tradio sempre que vinha de viagem. -iNo h nada de novo por aqui, av? O seu sofrimento no aumentou ?... Agora vamos subir aos nossos quartos, para que o jantar no demore. Otlia precisa de se deitar cedo. Otlia havia recuado um pouco, para no perturbar as expanses que supunha se iriam dar 62 entre a av e o neto. Nesse movimento, encontrou-se junto de Tecla, que acabava de entrar. Os seus olhos de azul-escuro, magnficos sob a franja dos clios doirados, envolveram o meigo rosto empalidecido e encontraram as pupilas cr-de-violeta que a fitavam com uma espcie de admirao tmida, e algo dolorosa. A bela fisionomia fria e altiva pareceu distender-se levemente. Otlia inclinou-se para a donzela, a quem dominava com a sua estatura elegante, e preguntou com uma voz em que perpassavam inflexes carinhosas: - a minha Tecla? - Sou, minha senhora. - Minha senhora?!... Deves chamar-lhe Otlia, Tecla; ela agora tua prima, disse Gualberto. Os lbios de Otlia tiveram uma rpida contraco. - Evidentemente, deve chamar-me Otlia, disse num tom contrafeito, em que pareceu a Manuela que acabava de perpassar num sopro gelado. A sua mo pegou na de Tecla e apertou-a frouxamente. -Vamos para os nossos quartos Otlia, 63 acrescentou Gualberto, apertando por sua vez a pequenina mo ardente de sua prima. A jovem senhora inclinou afirmativamente a cabea e dirigiu-se para a porta. Gualberto passou-lhe frente para a abrir e seguiu-a ao vestbulo, onde deu algumas ordens, em alemo, sem dvida, criada de quarto de sua mulher. - ainda mais bela do que eu julgava! murmurou a velha. E que modos tam distintos, tam graciosos! Acho-a, apenas, muito altiva. - Talvez no esteja vontade, por se encontrar no meio de pessoas estranhas, desculpou Manuela. - Sim, talvez seja um efeito do acanhamento. ainda muito nova, e vivia isolada no seu castelo... mas far honra a Gualberto, e a todos ns, acrescentou vaidosamente a velha Harbreuze. Que te parece, Tecla ? Tecla tinha ficado imvel, de olhos fitos na porta por onde haviam desaparecido Otlia e Gualberto. pregunta da tia-av, voltou-se levemente. - Digo que me agrada muito, minha tia, respondeu com a maior tranquilidade. - O contrrio que seria para estranhar... com um pouco menos de... sim... de friesa, de 64 reserva, julgo que poderia ser verdadeiramente encantadora... Manuela, vai agora ver se tudo est pronto na cozinha. Gualberto ficaria muito descontente se o jantar sofresse qualquer demora, depois de descer.

Manuela saiu da sala. No vestbulo, Gertrudes fiscalizava o servio de dois homens que transportavam a mala de Gualberto. A velha criada voltou para a jovem ama o seu rosto aborrecido. - Que lhe dizia eu Manuela? Esta criada de quarto no sabe duas palavras de francs! Deve ser muito impertinente! E, alm disso, no deve ter menos de sessenta anos. - Isso no tem importncia, Gertrudes, pois no impede que seja porventura uma excelente pessoa. - No, no, Manuela; digo-lhe que isto no correr bem com ela! A jovem senhora realmente muito bonita, mas tem um ar!... Parece qusi uma princesa! Quadra perfeitamente com o senhor Gualberto, que tambm sabe conservar a gente a distncia. Manuela foi cumprir a sua misso junto de Vitorina, depois voltou para a sala onde retomou o trabalho interrompido com a chegada dos viajantes. 65 Inactiva, contra o seu costume, Tecla sentou-se junto dela. Mas Otlia e Gualberto no tardaram a aparecer e dirigiram-se todos para a sala de jantar. - A velha Harbreuze, embora tivesse perdido o uso das suas pernas, conservava, contudo, a vista pronta e aguda, que a fazia temida, dos criados. Mal a sua poltrona se instalou direita do neto, descobriu logo as rosas colocadas em frente de Otlia. - Que vem a ser isso ? Quem ps a essas flores? exclamou num tom de surpresa e de descontentamento. Tecla, muito ruborizada, balbuciou : - Fui eu, minha tia. - Mas tu sers tola? Que idea foi essa? - Uma linda idea, pela qual estou reconhecida a Tecla, disse a voz harmoniosa de Otlia. E os seus belos olhos azues, subitamente enternecidos, fitaram a fisionomia confusa de Tecla. - Fizeste bem, Tecla acrescentou Gualberto olhando sua prima com ar de aprovao. Adivinhaste que Otlia gostava muito de flores. Manuela, cujo olhar discretamente penetrante examinava sua cunhada, viu desvanecer-se de 66 sbito o brilho da emoo que em seus olhos provocara a delicada lembrana de Tecla. Em face da manifesta aprovao de Gualberto, a velha Harbreuze ps termo s suas recriminaes, mas fixou com indignao aquela pequena tola, que se atrevera a infringir os hbitos da casa. Durante o jantar, falou-se apenas da viagem que acabavam de fazer Gualberto e sua mulher. Esta, inteligente e artista, aproveitara muito com essa viagem, e contava as suas impresses numa linguagem atraente e profunda. O seu rosto animava-se por vezes e a sua beleza tornava-se ainda mais notvel. Porque ela era realmente bela. As suas feies eram duma delicadeza rara, a brancura rosada da ctis podia considerar-se incomparvel, e a vaporosa cabeleira, dum loiro doirado, penteada com muita simplicidade, completava harmoniosamente aquele conjunto delicioso. Possua, alm disso, como pouco antes o observara a velha Harbreuze, uma distino soberana e uma graa extrema em todos os seus movimentos. E parecia no haver nela, a-pesar disso, um tomo de afectao, nem de garridismo, embora se mostrasse duma suprema elegncia 67 com a sua blusa de seda azul-marinho, guarnecida apenas com uma soberba gola de renda.

Gualberto pensava, sem dvida talvez por delicadeza para com sua mulher, que devia vencer o seu laconismo habitual, porque se mostrava muito cavaqueador. No entanto, aproveitava todos os pretextos para deixar falar Otlia, a quem replicava com prazer Manuela, dotada duma certa soma de conhecimentos literrios e artsticos, que faltavam por completo a sua av. Quanto a Tecla, essa ouvia, esquecendo-se de comer. No entanto, Gualberto, naquela noite, no mostrava, a pressa habitual. Otlia comia lentamente, e ele esperava com uma pacincia pouco vulgar. - impossvel que o senhor Gualberto no esteja doente! disse Gertrudes a Vitorina, quando levava para a cozinha o famoso bife de grelha. Consente que sua mulher coma devagar e nem ao menos lhe diz: Vamos um pouco mais depressa! E sabes que nem sequer provou o teu famoso bife? Ela no gosta... e o senhor Gualberto recomendou: No tornem a fazer este prato, porque Otlia no gosta dele. - E cheirava tam bem! suspirou Vitorina. 68 Parece-me muito exquisita essa senhora!... No gostar do nosso bife de grelha!... O senhor Gualberto no deveria ter casado com essa delambida, que, com certeza, vai voltar a casa do avesso. No contando ainda com a arrelia que me causa essa espcie de alem; E o olhar desconfiado de Vitorina dirigia-se para a mulher alta e magra que estava sentada ao canto da grande mesa, diante duma tigela de sopa, a que no parecia fazer grande honra. Segundo o seu hbito, depois do jantar, Gualberto reconduziu para a sala a poltrona da velha Harbreuze. Apresentou uma cadeira a sua mulher junto da av, foi abrir a segunda janela, que geralmente se conservava fechada, por ver Otlia a fazer com o leno, o gesto de se abanar, depois veio sentar-se em frente da jovem senhora. - Tu no fumas, Gualberto? preguntou sua av com surpresa. - Otlia no gosta do cheiro do tabaco. - Mas no quero que, por causa de mim, se prive desse prazer, disse a jovem senhora num tom calmo e frio. - No um prazer, um hbito de que me desfarei sem dificuldade. Demais, se no pudesse passar sem isso, iria fumar para outra parte. 69 Tecla, que se sentara um pouco a distncia, recordou-se involuntariamente de que Gualberto havia dito num dia, falando com o sr. Viannes: No posso dispensar um charuto depois de jantar; uma satisfao de que me custaria muito a desfazer. Os viajantes demoraram-se pouco na sala. Otlia estava visivelmente fatigada, parecia incomod-la muito o calor. Despediram-se da velha Harbreuze e das donzelas, e afastaram-se, depois de Gualberto haver chamado a criada de quarto. Tecla tambm estava cansada, embora no tivesse viajado, e recolheu cedo. Depois de fazer as suas oraes e de arranjar os cabelos, abriu a porta que dava comunicao para o quarto de Manuela, no intuito de pedir a sua prima um livro piedoso em que esta lhe falara. O quarto estava deserto; mas a porta que dava para o corredor encontravase aberta, e Tecla descobriu Manuela, que, de vela na mo e um embrulho de roupa debaixo do brao, vinha do lado dos aposentos de Gualberto. - A caminhar ainda, Manuela! O teu pobre p amanh deve estar inchado, com certeza! Que tinhas a fazer com tanta urgncia ? - Quando subia, Gualberto chamou-me para 70 me entregar estes fatos. Tenho de os pr ao ar, para que desaparea todo o cheiro de tabaco que poderia, incomodar sua mulher. vou estend-los no

quarto amarelo e deixar as janelas abertas. Deu alguns passos, mas Tecla aproximou-se e ps-lhe a mo no ombro. - Que tal a achas tu, Manuela? - Muito bela... mas muito fria. - Fria? disse Tecla com certa admirao. Sim, talvez seja... no entanto, ela atrai. - No me parece! disse espontaneamente Manuela. - Tecla encarou-a com surpresa. - No te parece ?... Pois acredita ; notei qualquer coisa nos seus olhos, quando me fitou, pela primeira vez. Compreendi ento que ela era boa... e vi tambm que ela sofria. - Que ela sofria ?... Que ideas so essas, minha Tecla? - Sim, vi-o nos seus olhos, disse Tecla gravemente. E foi por isso que imediatamente gostei dela, sem ter de fazer esforo, como receava, para... para a no detestar, concluiu ela num bafejo qusi imperceptvel. IV Tecla, no dia seguinte, ficou admirada por ver que Manuela prolongava a sua meditao depois da missa. Seno possua a observao arguta de sua prima, tinha ao menos essa perspiccia que vem do corao, e, na vspera, compreendera que qualquer coisa, na jovem senhora Harbreuze, impressionara desagradvelmente e inquietava talvez Manuela. Deram sete horas e meia, quando as duas primas voltaram para casa. No vestbulo, encontraram Gualberto a repreender Gertrudes, que se conservava muito penalizada diante dele. - Que nunca se repita semelhante coisa, Gertrudes, dizia ele em tom spero, porque embora me custe muito separar-me das criadas fiis, como tu e Vitorina, no hesitaria em faz-lo, se visse que Josefa tornara a ser desagradvelmente tratada por vs. 72 Voltou-se ao ouvir no lajedo os passos das donzelas e avanou, estendendo-lhes a mo. -i Tua mulher passou bem a noite? interrogou Manuela. - Nem por isso. Tem uma sade muito delicada, e esta viagem de trs semanas, as demoras nos museus principalmente, fatigaram-na muito. Precisa de se refazer na tranquilidade da nossa casa... Mas Josefa apareceu esta manh com uma terrvel enxaqueca, e Otlia mandou recolher cama a pobre mulher, que, a-pezar-de tudo, queria fazer o servio. - i Poderei acaso ser-lhe til ? disse Manuela. Talvez. Est neste momento a vestir-se; poders ir bater-lhe porta daqui a pouco. No est acostumada a utilizar-se de algum para o seu servio pessoal, mas talvez aceite o teu auxlio, como lhe pedi, se quiser desfazer as malas... Agora, vou para a fbrica. tempo de ver como as coisas por l caminham. Quando Manuela, momentos depois, bateu porta de sua cunhada, e entrou acedendo ao convite que esta lhe fez, teve uma exclamao de surpresa ao v-la ocupada a fazer a cama. - Mas o que vem a ser isso? deixe ficar esse trabalho para Gertrudes. 73 - No, obrigada, no quero incomodar ningum ; disse Otlia com a maior tranquilidade, oferecendo a mo a Manuela. Alm disso, estou j acostumada a este gnero de servio. Em nossa casa, s havia Josefa e um velho criado, e ningum punha a mo na minha cama. - Mas consinta ao menos que a ajude! - Est qusi pronta. Precisava apenas de saber onde poderei encontrar uma vassoura. - Eu vou procurar uma, disse Manuela. A despeito dos protestos de sua cunhada, foi ela quem varreu o quarto,

depois Otlia passou sobre os mveis um pano de flanela com um cuidado que mostrava, com efeito, a sua longa prtica. - E E que poderei fazer eu agora? preguntou Manuela, percorrendo o quarto com a vista. - Oh ! nada, muito obrigada! vou comear a desfazer as malas que esto ao lado, para arrumar com isso de-pressa. - Mas muito fatigante para si. Gualberto no quere que o faa sozinha. As belas plpebras loiras franziram-se levemente. - Ele no quere? Nunca me disse semelhante coisa. Aconselhou-me simplesmente que esperasse 74 o restabelecimento de Josefa. Mas as enxaquecas da pobre mulher duram s vezes dois dias e acho prefervel desembaraar-me disto o mais de-pressa possvel. - Se me permite que a ajude... - No desejava roubar-lhe o seu tempo. - Oh! no se incomode! Nada tenho agora de urgente a fazer. - Nesse caso, aceito, disse Otlia dirigindo-se para o compartimento onde estavam dispostas as numerosas malas. De passagem, Manuela viu num canto do quarto a velha malinha aberta. Dentro encontrava-se um antigo missal cuja capa desbotada tinha impressa uma coroa de conde. Otlia abriu ao acaso a primeira caixa que encontrou. E Manuela secretamente admirada, viu passar sob seus olhos todas as maravilhas dos presentes oferecidos por Gualberto sua noiva, todos os objectos preciosos, de requintado gosto, com que a havia cumulado. Essa prodigalidade era to inverosmil, por parte dum Harbreuze, que Manuela julgou-se joguete dum sonho. Mais estranha, contudo, talvez, lhe pareceu a indiferena, - no poderia dizer 75 mesmo o desdm?-com que Otlia tratava todos esses esplendores. - Ponha para a onde quiser, respondeu ela, quando Manuela em cima dum escabelo a interrogava sobre a maneira de dispor nos armrios as pelias magnficas, os cartes cheios de rendas, os escrnios, que a original criatura nem sequer tinha curiosidade de abrir, para mostrar a sua cunhada e contemplar mais uma vez, ao menos, as jias e adornos que continham, como em seu logar o teria feito outra jovem casada. Havia nela, evidentemente, um desprendimento absoluto por todos esses objectos preciosos que as suas mos finas e brancas, em que cintilava, junto da aliana, o diamante de noivado, manejavam com uma espcie de impacincia. Manuela teve at por momentos no esprito a palavra repulso. Vestia tambm com muita simplicidade, nada fazendo supor nela o desejo de ostentao e de luxo, que seria natural reconhecer em quem usava o garboso ttulo de condessa. - Emfim, est concludo! exclamou com um suspiro de satisfao, quando viu o fundo da derradeira mala. Os meus agradecimentos, Manuela. Se me no tivesse ajudado, ficaria realmente fatigada. 76 Voltaram ao quarto da jovem esposa, e Manuela preguntou: - Na verdade, j no precisa mais de mim, Otlia ? - No, obrigada, Manuela. Agora vou arrumar a minha mala devagar, mas essa d-me pouco trabalho. Indicava a velha malinha. E aquele gesto meigo, qusi respeitoso contrastava por tal forma com a sem-cerimnia que presidira arrumao do contedo das outras, que Manuela ficou visivelmente impressionada. Quando descia, a donzela encontrou no fundo das escadas Tecla, que levava

para as guas furtadas uma cesta de folhas de tlia, colhidas de fresco. - Gertrudes est ainda a chorar por causa da repreenso que lhe deu Gualberto, disse ela a sua prima, de passagem. Parece que ouviu a criada de quarto a queixar-se patroa da forma desagradvel como a tratavam na cozinha, e mostrou-se muito irritado. - As nossas velhas criadas, e principalmente Gertrudes, so speras de gnio, e procederam mal, acolhendo a essa estrangeira, j de opinio antecipada. Mas parece-me que Gualberto devia 77 poupar um pouco essas fiis criaturas. Quando Gertrudes estiver mais calma, tambm lhe direi algumas palavras a esse respeito. Gertrudes, porm, no era de feio a esquecer facilmente a spera admoestao que recebera de seu amo. E, quando Otlia, pouco antes do almoo, apareceu na sala a criada, que ento recebia instrues da velha Harbreuze, lanou-lhe um olhar rspido, e nem sequer lhe deu o arrogante bom-dia que costumava dirigir a suas patroas. - Gualberto ainda no veio, disse a senhora Harbreuze, apertando afectuosamente a mo de Otlia. Deve-se ter demorado na fbrica, um pouco abandonada nestes ltimos dias. Passou pelo rosto da jovem senhora uma rpida contraco, emquanto a av continuava. - Os negcios so a sua preocupao constante. Mas tambm por isso que eles correm admiravelmente, aumentando os lucros todos os anos. Os lbios de Otlia crisparam-se. com um movimento que parecia provocado por uma surda irritao, recuou um pouco, e avanou depois para a segunda janela. - Parece-me que tem rosas muito bonitas no 78 seu jardim, disse ela, inclinando-se um pouco, numa voz que vibrava uma certa impacincia. - Sim, so muito bonitas. Era uma fantasia de meu marido... Mas porque diz seu jardim minha querida filha ? nosso que deve dizer agora. Aflorou aos lbios plidos de Otlia um sorriso forado. - Ainda no estou habituada... H-de desculpar-me, minha senh ... av. - Pareceu a Manuela, que entrava com Tecla, que a garganta de sua cunhada se contraa, quando pronunciava aquela palavra. Tecla informou-se, timidamente, da sade de Otlia. Esta, a quem positivamente havia penhorado a gentileza da sua nova prima, mostrou-se qusi afectuosa para ela e conservou demoradamente entre as suas mos a mozinha nervosa de Tecla. - Terei tambm esta manh rosas junto do meu talher? preguntou a jovem senhora com um sorriso. - No tive coragem. Mas, se Gualberto der licena, de bom grado as porei l todos os dias. - Ah! i preciso pedir licena para isso a seu 79 primo? disse Otlia, num tom de surpresa e ironia, ao mesmo tempo. Nesse caso, no vale a pena pedir-lha por coisa tam insignificante... - Pedir-me o qu ? inquiriu a voz de Gualberto. Aparecia no limiar da porta, de cabea descoberta. Avanando para Otlia, pegou-lhe na mo, que ela lhe abandonou com um gesto ao mesmo tempo gracioso e altivo, e levou-a aos lbios. Eram maneiras tambm desconhecidas na bur guesia de Rocalndia, onde se beijavam sem cerimnia, mesmo entre casados. Mas tal homenagem parecia ainda mais extraordinria por partir de Gualberto, tam cioso da sua superioridade masculina.

- E Que me querem ento pedir? repetiu ele, olhando alternadamente para sua esposa e para Tecla. - Oh! nada de importante, disse Otlia com indiferena. Sua prima diziame que no poria todos os dias flores junto do meu talher, sem lhe pedir licena. -Que gracejo, Tecla! Ento no aprovei ontem a sua lembrana? Ponha todas as flores que quiser, e mande compr-las, se as do jardim se 80 esgotarem... terei de plantar novas roseiras no ano que vem, porque estas comeam a envelhecer. Tambm plantaremos clematites, como aquelas que tanto admirou na Itlia, Otlia. ...J no tero aqui o mesmo encanto que nas fachadas dos velhos palcios em que as vimos ; disse friamente a jovem senhora. - J no sero, com efeito, aristocrticas, mas simples flores burguesas. O tom de Gualberto era levemente mordaz... Mas, no olhar que dirigiu para sua mulher, Manuela julgou surpreender uma inquietao. Sobre o rosto de Otlia derramou-se uma palidez sbita. Desviou os olhos, fingindo absorver-se na contemplao do jardim inundado de sol. Gertrudes veio anunciar o almoo, que decorreu silencioso. Gualberto parecia ter readquirido a sua taciturnidade, e Otlia mostrou-se duma friesa excessiva, que envolvia todos como um manto de gelo. - Deseja sair de tarde, Otlia? preguntou Gualberto ao levantar-se da mesa. - Oh! de nenhum modo! Quero descansar e tenho ainda que arrumar algumas coisas. - Como quiser. Nesse caso, volto para a 81 fbrica. No dia em que estiver disposta, lev-la-ei a tomar conhecimento com a Rocalndia. - No preciso incomodar-se por minha causa, disse tranquilamente. - No ser um incmodo, mas um prazer, mostrar-lhe a nossa velha cidade, que ainda encerra alguns curiosos restos de arquitectura antiga, respondeu num tom calmo e cortez. Acompanhou Otlia ao quarto e retirou-se logo, na carruagem que o esperava para o conduzir fbrica, que distava da casa alguns quilmetros. -Como so cerimoniosos! disse a velha Harbreuze, quando sua neta veio sentar-se junto dela com o seu lavor. Teu av tinha um carcter semelhante ao de Gualberto. Eu tambm no era muito sentimental; mas, ainda assim, ramos muito diferentes nos primeiros tempos do casamento ! Provavelmente, essa a moda na sociedade em que ela tem vivido. Mas, nesse caso, Gualberto no devia ter ido l procurar sua mulher. preciso que os hbitos se harmonizem, para que o casamento seja feliz. - Gualberto tambm muito reservado, e tam frio que no provoca a expanso por parte doutrem, e por isso, talvez, que sua esposa 82 no sai daquela reserva cerimoniosa que nos parece muito singular, disse Manuela. Mas dizia estas coisas sem convico. No podia repelir a idea de que semelhante reserva, sistemtica e glacial, no era motivada pela atitude de Roberto, mais solcito com sua mulher do que se poderia esperar dum homem do seu carcter; mas provinha qusi inteiramente, para no dizer unicamente, dessa mulher enigmtica e altiva, que lanava no corao de Manuela uma inquietao indefinvel, que no podia afastar, porque via seriamente comprometida a felicidade de seu irmo. Desde que sua av se encontrava imobilizada pela enfermidade, era Manuela quem dirigia a casa. Tarefa rdua, porque a velha Harbreuze, mexeriqueira

e minuciosa, tinha sempre que censurar e no poupava sua neta com observaes bem acrimoniosas. Agora porm, com a transmisso de poderes nova dona-de-casa, tudo ia mudar. E Manuela regozijava-se com o facto, porque lhe sobraria assim mais tempo, que poderia consagrar s obras de caridade. No dia seguinte de manh, subiu, pois, ao quarto de sua cunhada Otlia, que estava a escrever na sua pequena secretria elegante, e a acolheu com a delicadeza reservada que parecia constituir o fundo do seu carcter. Mas, quando Manuela lhe indicou o fim da sua visita, fez um gesto impetuoso de recusa, muito para estranhar numa natureza aparentemente calma. -Eu, dirigia esta casa?... De modo nenhum! isso continuar a seu cargo, Manuela. - Mas impossvel, Otlia. A cunhada agora a dona-de-casa. com as feies contradas e muito plidas, a jovem esposa disse em voz alterada, em que havia vibraes de impacincia. - No quero, repito, Manuela. Tudo corria bem, sem mim, at aqui. Continua, pois. No estou ao corrente dos hbitos e usos, e nunca o estarei, de-certo... i Porque julgaria Manuela surpreender nestas ltimas palavras um travo de desdm? A donzela tentou ainda demover sua cunhada de tal resoluo, mas esbarrou com uma vontade inquebrantvel. - Parece-me que Gualberto no permitir semelhante coisa, disse por fim Manuela. Otlia teve um arrogante movimento de cabea. - Veremos. Hei-de falar-lhe, disse rapidamente. Quando voltava daquela palestra com sua cunhada, Manuela encontrou no vestbulo Gualberto, que regressava da fbrica mais cedo que 85 de costume. Ao dar-lhe parte da reserva de Otlia, manifestou uma grande surpresa e um movimento de desgosto. Mas que idea! ela no pode invocar a sua inexperincia, porque era quem dirigia todos os servios na casa de seu pai. Espero convenc-la, Manuela. Esta no duvidou de que assim fosse, pois Gualberto tinha por costume impor a sua vontade e faz-la triunfar sem dificuldade. E foi por isso, com viva surpresa, que a donzela ouviu dizer a seu irmo, quando ele desceu, antes do almoo: - Otlia prefere que tu continues com a direco da casa, Manuela. Diz que esse trabalho a fatigaria muito, porque se sente excessivamente fraca de h um ano para c. Era realmente verdade que a jovem esposa apresentava um aspecto de m sade. Ia perdendo a cor pouco a pouco, orlava-lhe os olhos um crculo escuro e o seu apetite era dos mais caprichosos. - preciso deixar-lhe fazer o que for apenas do seu agrado, tinha dito Gualberto, que parecia interessar-se pela sade de sua mulher. Que Vitorina, principalmente, no procure fazer economias 86 como tem por costume. Que compre o que houver de melhor, no se importando com o preo. Um Harbreuze a queixar-se da economia de sua criada! Um Harbreuze a declarar, com a mais completa desenvoltura, que o preo pouco importava ! A velha senhora estava verdadeiramente espantada e confidenciou a sua neta: - Quando me lembro do que o mdico ordenou que me desse um pouco de champanhe, no decorrer duma doena, e teu av mandou comprar uma tisana

por baixo preo, para no tocar nas velhas garrafas de Clicquot que possua na sua adega e apenas reservara para o grande jantar anual! Gualberto sente-se tam orgulhoso com sua mulher, por causa da sua beleza e alta origem, que a trata como um objecto precioso. H-de acabar por torn-la insuportvel, se continua a praticar tais exageros. Mas a verdade que, ao menos por emquanto, a jovem senhora Harbreuze no incomodava ningum. Mal se chegava a perceber que ela existia. Fora das refeies e duma pequena parte do sero, estava continuamente encerrada no seu quarto, onde lia, arrumava, fazia trabalhos de agulha. 87 Rompendo definitivamente com as tradies de famlia que proscreviam a leitura como ocupao feminina, Gualberto mandava vir numerosas revistas e livros, que se dava ao cuidado de percorrer, a-pesar-das suas ocupaes, antes de os entregar a Otlia. A jovem esposa era uma excelente aguarelista, como o observou Manuela um dia em que, entrando no quarto de sua cunhada para lhe pedir uma informao, ela lhe mostrou uma vista do castelo de Rennubrunn, colocada sobre o fogo da sua chamin. - Tem muitas saudades dele? preguntou Manuela, depois de olhar demoradamente para a habitao senhorial, de aspecto um pouco pesado, mas imponente, em meio das altas florestas que a rodeavam. - Se tenho pena do meu Rennubrunn!... murmurou Otlia, desviando os olhos em que tinha perpassado um lampejo de sofrimento e de indignao. Os rocalandeses, a-pesar-da curiosidade que tinham de conhecer a esposa de Gualberto, apenas haviam conseguido v-la missa de domingo e durante uns trs ou quatro passeios que dera com seu marido. Os recm-casados ainda no tinham 88 comeado as suas visitas de npcias, e no se mostravam muito solcitos em submeter-se quela praxe. No entanto, Gualberto disse um dia: - Temos que resolver-nos esta semana, Otlia, se no est cansada. - Estou sua disposio, respondeu ela, com a soberana indiferena que punha em todos os seus actos. E, a partir do dia seguinte, os esposos Harbreuze comearam as suas visitas, servindo-se duma elegante vitria nova, que Gualberto havia comprado recentemente, bem como os dois belos cavalos baios que a puxavam. Otlia era deliciosamente linda, com seu vestido de crepe da China cinzento-prata, sobriamente guarnecido de renda branca, e o seu grande chapu escuro ornado com uma longa pluma que condizia admiravelmente com a sua fina cabea loira. Ensombrava -lhe, porm, o rosto uma singular expresso de fadiga ou de aborrecimento. Gualberto, que at ali pouco se importava com a questo de vesturio e usava geralmente fatos largos e mal feitos, vestia agora com extrema correco e at elegncia, o que fazia ressaltar a sua distino natural. Decididamente, ele 89 metia-se em despesas por causa da bela condessa, que fora buscar ao seu velho castelo, onde provavelmente morria de fome, como declarou um dia a sr.a Boutrin s suas amigas. No decorrer das suas visitas, a jovem senhora Harbreuze foi a admirao de todos. Achavam-na, contudo, orgulhosa e fria, bem como a seu marido, o que j no era pouco, embora no pudessem deixar de reconhecer a sua distino e beleza. - O senhor Harbreuze deve ser frio por natureza, ao passo que sua esposa me parece capaz de se tornar afvel, disse um dia a senhora Viannes, resumindo assim um pouco a impresso geral. De facto, se a mulher do notrio tivesse assistido s visitas feitas a

trs ou quatro famlias nobres da regio, com as quais os Harbreuze mantinham longnquas relaes, teria compreendido que acertara ao fazer a sua reflexo. Na verdade, afastando o vu de altivez que geralmente a envolvia, Otlia mostrara-se muito amvel e at encantadora, como ainda ningum a tinha visto, mesmo em casa dos Harbreuze. pena que esta deliciosa criatura tenha cado 90 na burguesia! suspirou a condessa Porbelin, depois da sua visita. O marido replicou a meia-voz, lanando um olhar pesaroso para a sua filha Adelaide: - Minha amiga, assim preciso s vezes!... Teramos sido felizes, bem felizes, se Gualberto Harbreuze tivesse querido unir-se nossa famlia. O conde suspirou tambm de mgua e pesar, por que os tempos eram duros, a fortuna dos Porbelin, composta de terras, diminua de ano para ano, e o velho castelo desfazia-se por todos os lados, sem que ningum pudesse pensar em fazer as necessrias reparaes. Concludas as visitas, Otlia instalou-se no seu salo para receber por sua vez. O grande compartimento hmido e sombrio, que no tornara a servir depois que a velha Harbreuze cara enferma, fora agora arejado e limpo de alto a baixo. Gertrudes escovou com respeito as velhas cadeiras de acaju e damasco amarelo-canrio, que a seus olhos representavam o supra-sumo da magnificncia. Esfregou vigorosamente os mveis desengraados, que se encostavam s paredes guarnecidas com um horroroso papel de ramagens, e perseguiu encarniadamente os ltimos 91 resqucios de p que se incrustava no pesado e feio relgio, nas molduras desdouradas que encerravam pinturas horrveis, sobre as flores artificiais colocadas numa grande jardineira de barbotina, obra feita pela velha Harbreuze na sua mocidade. Quando Otlia entrou no salo pela primeira vez, no pde ocultar a penalizante impresso que nela produziram todas aquelas horrorosas e feias coisas. Gualberto, que a acompanhava, adivinhou a sua repugnncia e disse com vivacidade: - Se quiser, Otlia, transformaremos tudo isto. J senhora de si, ela respondeu com indiferena : - intil: desde que este salo lhe agrada assim, para mim tambm serve. -No, bem sei que este mobilirio hediondo. Os meus antepassados tinham o gosto pouco desenvolvido. At aqui, porm, nunca me preocupei com o salo, porque no punha aqui os ps. Quando formos a Paris, escolheremos coisa melhor... Entretanto, mande-o transformar sua vontade pelo estofador de Rocalndia. - No, afirmo-lhe que intil, Gualberto; est muito bem assim, disse ela com o maior desprendimento. 92 As famlias de Rocalndia esto habituadas a este salo e no tm, portanto, que fazer reparos. Gualberto percorreu o salo com o olhar e depois fitou sua esposa, tam delicadamente elegante e aristocrtica no seu vestido de flanela branca, muito simples, que trazia naquela manh. - Mas no moldura prpria para si! murmurou ele. Os lbios de Otlia fecharam-se nervosamente, e desviou os olhos, em cujas pupilas se notara um lampejo de admirao. - Tal como est, parece-me suficiente, disse num tom de voz em que havia vibraes qusi duras. - Mande pr ao