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Sumário

Abertura .............................................................................................................. 11

DIZERES 1 – Os pesquisadoresPelo direito à memória e à verdade na Unesp .......................................... 13Clodoaldo Meneguello Cardoso

A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressão ............................................................................. 27Antonio Celso Ferreira

Institutos Isolados, Unesp e a ditadura .................................................... 41Anna Maria Martinez Corrêa

Tenho algo a dizer sobre a ditadura na Unesp......................................... 55Maria Ribeiro do Valle

DIZERES 2 – Os depoentesDepoimento 1 – Onosor Fonseca ............................................................. 69

Depoimento 2 – Ulisses Telles Guariba Neto .......................................... 75

Depoimento 3 – José Roberto Tozoni Reis ............................................... 93

Depoimento 4 – João Francisco Tidei Lima............................................. 113

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A UNIVERSIDADE NOS TEMPOS DA GUERRA FRIA E DA DITADURA MILITAR:

CONTESTAÇÃO E REPRESSÃO

Antonio Celso Ferreira

Os impactos da ditadura militar nos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo e na Unesp1, além do contexto nacional, devem

ser compreendidos no complexo quadro internacional do pós-guerra, coinci-dente com os anos da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Eric Hobsbawm designou esse período como a Era do Ouro (1945-1990), marcada tanto por uma enorme expansão das economias capitalistas centrais, quanto por movimentos de descolonização, revolução e modernização nos países então considerados pertencentes ao Terceiro Mundo, entre eles o Brasil2.

A Era do Ouro foi caracterizada por um conjunto de processos que abalaram os modos de vida das sociedades locais, embora de maneira desigual nos vários continentes e nações. Os mais importantes foram a grande explosão demográ-fica, a “morte do campesinato”, a urbanização acelerada e a expansão da alfabe-tização básica – ainda que se mantivessem índices alarmantes de analfabetis-

1 Os Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo foram criados nas décadas de 1950 e 1960, tendo sido integrados à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, implantada em 1976 com a junção daquelas faculdades e de novos campi fundados pelo governo do Estado. O assunto é desenvolvido no próximo capítulo, por Anna Maria Martinez Correa.

2 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1995. Ver, especialmente, a parte dois: A Era do Ouro, p. 223-392.

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mo nos países pobres –, aumentando significativamente a demanda pelo ensino médio e pela educação superior. Como diz o historiador britânico no livro Era dos Extremos, “hoje é evidente que a Era do Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos, que, por todas essas décadas, representaram cerca de três quartos da produção do mundo e mais de 80% de suas exportações manufaturadas [...]. Apesar disso, a Era do Ouro foi um fenômeno mundial, em-bora a riqueza geral jamais chegasse à vista da maioria da população do mundo”3.

Em escala global, a educação despontou como valor universal e o principal meio para aumentar a renda familiar e elevar o status social, especialmente para as camadas sociais médias. Como decorrência da expansão do sistema educacional, ampliou-se o número de estudantes e professores nos diversos níveis de ensino, multiplicaram-se os cursos superiores, inclusive nos países dependentes, como Brasil, nos quais a criação de universidades passou a ser vista como símbolo de independência nacional. Foi nessas circunstâncias que a juventude, sobretudo estudantil, emergiu como camada social relativamente autônoma nas várias partes do globo, ainda que “numa posição meio incômoda em relação ao resto da sociedade”, uma vez que “ao contrário de outras classes ou agrupamentos sociais mais velhos e estabelecidos, eles não tinham, nela, um lugar determinado nem um padrão de relações”.4

As universidades tornaram-se lócus de uma cultura própria – aquilo que se chamou de uma cultura jovem transnacional –, bastante impactada pelas novas tecnologias de comunicação e pela nascente indústria cultural do cinema e da música, ainda em sua fase de vanguarda. Nesse ambiente confrontaram-se valores tradicionais e modernos no tocante aos comportamentos, conflitos geracionais e relações entre os sexos, como também se difundiram vários pro-jetos de transformação da ordem social, em diferentes graus de radicalidade e abrangência. Nelas também repercutiram fortemente os sucessos das revolu-ções cubana e chinesa, bem como das lutas anticoloniais das nações africanas, asiáticas e latino-americanas, levando milhares de jovens ao redor do mundo a se identificarem, embora muitas vezes de forma difusa, com valores anticapita-listas e contrários à organização tecnocrática da sociedade.

3 HOBSBAWM, E., op. cit., p. 255.

4 Idem, p. 295

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29A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

Dos fins da década de 1950 a 1968, ano que marcaria simbolicamente o ápi-ce da contestação juvenil, proliferaram mundo afora diversas formas de protes-to e resistência, em sua maioria, reprimidos com violência. Os campi e cidades universitárias tornaram-se lugares de novos modos de reflexão, expressão e práticas políticas. Em países da Europa Ocidental, como a França, foram radi-calmente questionadas as estruturas centenárias e obsoletas da universidade, incapazes de corresponder às expectativas dos jovens. Em alguns deles, como na própria França e na Itália, o movimento estudantil chegou a impulsionar o movimento operário, tendo sido construídas algumas alianças esporádicas entre esses dois setores. Nos Estados Unidos, os movimentos estudantis assu-miram formas de resistência às guerras imperialistas, como a do Vietnã, e de apoio às lutas pelos direitos civis dos negros, das mulheres e dos homossexuais.

No Brasil, as lutas travadas na universidade pautaram-se, sobretudo, pelo ideário do desenvolvimento nacional autônomo e das reformas sociais e, a par-tir de 1964, representaram o mais importante foco de resistência à ditadura mi-litar instalada no país. Uma parte significativa da população estudantil iden-tificou-se com os projetos de transformação defendidos por organizações da esquerda socialista e comunista ou pelos católicos de esquerda, mobilizando-se em torno das propostas da reforma universitária e de outras reformas estrutu-rais, mormente a reforma agrária e o movimento pela erradicação do analfabe-tismo. Ainda que as expressões artísticas, políticas e culturais das vanguardas europeias e norte-americanas também encontrassem eco na vida universitária brasileira, foram mais valorizadas as manifestações da cultura nacional-po-pular que, desde os anos 50, eram temas centrais do Cinema Novo, do teatro politicamente engajado e da música popular brasileira, em franca expansão. A partir de meados dos anos 60, alguns setores do movimento estudantil se radicalizaram aderindo à luta armada contra a ditadura militar, no que foram respondidos por brutal repressão policial e militar.

Não é preciso dizer que, dos finais dos anos 60 a meados da década seguin-te, tais movimentos, no Brasil e no exterior, já haviam sido duramente penali-zados ou mesmo dizimados, marcando o ocaso das rebeliões dos jovens e o fim de uma era universitária.

Nesse contexto, as universidades, o movimento estudantil e a rebelião dos jovens tornaram-se objeto de reflexão intelectual de pensadores vindos de dife-

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rentes linhas e tradições teóricas, tais como Herbert Marcuse, Hannah Arendt5, Guy Debord, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault e até mesmo Jean-Paul Sartre, filósofo já então consagrado como o mais importante pensador engaja-do nas causas revolucionárias. O maoísmo e o guevarismo também ganharam a simpatia de muitos desses movimentos, sem falar das ideias contraculturais que se expandiram com força notadamente nos Estados Unidos6.

No caso brasileiro, o pensamento de Sartre, muito mais do que os outros au-tores citados, teve grande repercussão na universidade, assim como o maoísmo, o guevarismo e as obras dos teóricos marxistas, tanto os clássicos – Marx, Lenin, Trotsky, Gramsci – quanto os pensadores marxistas estruturalistas Althusser e Poulantzas. Os pensadores e líderes da contracultura, entretanto, somente al-cançariam alguma influência, entre nós, mais tarde, à altura da década de 1970.

Desde a década de 1930, intelectuais brasileiros como Anísio Teixeira, Fer-nando de Azevedo e Lourenço Filho, entre outros, fundaram o movimento da Escola Nova que colocou em debate a necessidade da reforma da educação nacional nos níveis fundamental e médio. O movimento tinha como meta a construção de um sistema estatal de ensino público, laico, livre e aberto – o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. Suas propos-tas tiveram desdobramento a partir dos anos 50 nas obras e na atuação política de pensadores como Darcy Ribeiro, Álvaro Vieira Pinto, Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa – para citar apenas alguns dos mais importantes intelec-tuais que então se envolveram na luta pela reforma universitária. Essa questão passou a ser considerada prioritária para o desenvolvimento nacional autôno-mo no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) e, sobretudo, no de João Goulart (1961-1964), quando integrou a pauta das Reformas de Base, combati-das pelas forças conservadoras e que levariam à queda de Goulart. Nesses anos, o debate sobre a reforma universitária teria grande ressonância não só entre intelectuais progressistas como também entre os estudantes.

Não era para menos, uma vez que a universidade brasileira surgiu tardia-mente e desvinculada de projetos nacionais consistentes: no período monár-

5 A propósito desses dois autores, consultar VALLE, Maria Ribeiro. A violência revolu-cionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

6 A respeito do assunto, consultar ROSZAK, Theodore. A Contracultura. 2. ed. Rio de Janei-ro: Vozes, 1972.

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31A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

quico (1808-1989), a Coroa implantou algumas escolas superiores autônomas para a formação de profissionais liberais, especialmente nos campos da medi-cina, do direito e da engenharia; e na Primeira República (1889-1930), o siste-ma foi descentralizado, o que possibilitou o surgimento de algumas faculdades públicas e privadas – estas geralmente confessionais – nos estados economica-mente mais dinâmicos. Somente depois de 1930 é que foram criadas as primei-ras universidades públicas no país: A Universidade Nacional do Rio de Janeiro, a efêmera Universidade do Distrito Federal – ambas pelo governo federal – e a Universidade de São Paulo, implantada pelo governo estadual.

Nos anos 50 e 60 ampliou-se o número de faculdades estaduais ou munici-pais, como, por exemplo, os já referidos Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo. Nos primeiros anos da década de 1960, sob o governo Goulart, e como parte das tentativas de remodelação das estruturas universitárias nacionais, foi criada a Universidade de Brasília, projetada por Darcy Ribeiro, que seria seu primeiro reitor. Concebida de maneira inovadora, integrada e voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, a UnB foi uma das pri-meiras a sofrer um processo de desmontagem desde o golpe civil-militar de 19647.

À altura da década de 1960, os principais diagnósticos dos educadores in-dicavam a incapacidade do sistema em absorver as novas gerações de estudan-tes saídos do ensino médio, bem como o arcaísmo, os modelos copiados do exterior e a fragmentação das estruturas universitárias existentes. Em seu livro A universidade necessária, escrito no período do exílio e publicado em 1969, Darcy Ribeiro sintetiza com rara lucidez os dilemas da universidade brasileira e latino-americana nos tempos da Guerra Fria, bem como a submissão das eli-tes políticas e intelectuais do continente ao Império norte-americano:

Nas nações historicamente atrasadas, os sintomas desta crise conjuntural, surgem como efeitos reflexos, entre os quais so-bressai o de desafiar suas universidades – que fracassaram na tarefa de absorver, aplicar e difundir o saber humano atingido nas últimas décadas – a realizar a missão quase impraticável de auto-superar suas deficiências para dominar um saber novo que se amplia cada vez mais, ou ver aumentar progressivamente sua

7 Consultar RIBEIRO, Darcy. UnB: invenção e descaminho. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1978.

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defasagem histórica em relação às nações adiantadas. [...] A polí-tica de desenvolvimento autônomo exige [...] o máximo de lucidez e intencionalidade, tanto em relação à sociedade nacional como em relação à universidade. E só pode ser executada através de um diagnóstico cuidadoso de seus problemas, uma planificação ri-gorosa de seu crescimento e uma escolha estratégica de objetivos necessariamente opostos aos de uma modernização reflexa. [...] A política autonomista aspira a transfigurar a universidade como um passo em direção à transformação da própria sociedade, a fim de lhe permitir, dentro de prazos possíveis, evoluir da condição de um ‘proletário externo’ destinado a atender as condições de vida e de prosperidade de outras nações, à condição de um povo para si, dono do comando de seu destino e disposto a integrar-se na civilização emergente como uma nação autônoma”8.

Tal diagnóstico resultara da experiência do autor no exílio como convi-dado por diversos governos para analisar e propor reformas universitárias em países como o Uruguai, Costa Rica, Venezuela, Peru e Argélia. Nessa época, contudo, um a um, os países da América Latina seguiriam o mesmo destino do Brasil, com seus governos populares derrubados pelo imperialismo norte-ame-ricano em aliança com os setores nacionais retrógrados e ultradireitistas. Essa escalada não se deu pacificamente, ao contrário, encontrou forte resistência de setores nacionalistas e socialistas, particularmente nos movimentos estudan-tis. Ao longo dos anos 60 e meados de 70, as universidades foram os principais bastiões de luta contra os regimes ditatoriais.

O movimento estudantil brasileiro organizou-se a partir da década de 1930, com significativa presença no interior das faculdades e das entidades estudantis – como as casas de estudantes, centros e diretórios acadêmicos –, desaguan-do na fundação da UNE em 1937/1938, durante o Estado Novo, com apoio de Getúlio Vargas. Desde então, participou ativamente da mobilização da opinião pública na luta contra o nazi-fascismo e da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial para combater aqueles regimes. Apesar disso, as relações com Getú-lio nem sempre foram consensuais, sobretudo nos anos finais do Estado Novo,

8 RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 8-10.

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33A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

quando vários setores estudantis passaram a defender a redemocratização do país. Nessa época, os comunistas perderam a hegemonia no movimento, que passou também a ser disputado por estudantes ligados às vertentes liberais capi-taneadas pela UDN, e por simpatizantes do socialismo democrático9.

Malgrado as acirradas disputas políticas no interior da UNE, no decorrer dos decênios de 1940 e 1950, a militância estudantil exerceu grande protago-nismo político, ampliado ainda mais pelo surgimento de entidades estudantis secundaristas por todo o país. A época foi marcada por numerosas manifesta-ções – greves, passeatas, comícios, quebra-quebras – que reivindicavam tanto a melhoria das condições de vida dos alunos – como a diminuição dos preços das passagens de bonde e outras pautas de natureza econômica e assistencial –, quanto questões diretamente políticas, como a democracia interna nas escolas, as reformas curriculares e a maior presença dos estudantes na vida pública. Em fins dos anos 40, sob a direção das tendências comunistas, a UNE liderou campanhas nacionais contra a alta do custo de vida, pela indústria siderúrgica nacional e pelo monopólio estatal do petróleo.

A mobilização estudantil cresceu ainda mais a partir do final dos anos 50, numa conjuntura ideológica e político-partidária cada vez mais tensionada. Com a vitória dos setores de esquerda – comunistas e católicos progressistas – na direção da entidade, ganhou corpo o discurso anti-imperialista e favorável a reformas estruturais do país. Em contrapartida, disseminou-se também o discurso anticomunista no movimento estudantil, alinhado à UDN e apoiado por entidades empresariais.

Na época também foram fundados alguns institutos formados por intelec-tuais, empresários e representantes da sociedade civil, cujas teses polarizavam os debates e repercutiam fortemente no meio estudantil. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, criado em 1955 e vinculado ao MEC, aglutinou os intelectuais progressistas – comunistas e nacionalistas –, defensores do desen-volvimento nacional autônomo e das reformas estruturais do país. No campo liberal e conservador surgiram o Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD (1959) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPÊS (1961), financia-

9 Um panorama amplo e bem documentado das disputas políticas no interior da UNE até a derrubada do governo Jango é exposto no livro recentemente publicado de MATTOS, André L. R. Uma história da UNE (1945-1964). Campinas, SP: Pontes Editora, 2014.

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dos por agências e fundações norte-americanas, que pregavam o alinhamento e a subordinação do Brasil às políticas norte-americanas. Além destes, a Escola Superior de Guerra já funcionava desde 1949, expressando o anticomunismo da Guerra Fria que se disseminava a partir dos Estados Unidos10.

A UNE teria presença marcante na campanha pela posse de João Goulart, em 1961 e, durante seu governo, desenvolveu nacionalmente ações pela Reforma Universitária, pensada nos termos de uma universidade popular, democrática e nacional. Em alguns estados, os estudantes apoiaram as Ligas Camponesas em sua luta contra o latifúndio e também participaram dos movimentos de alfabe-tização de adultos e educação popular, orientados pelo método de Paulo Freire. Além disso, a UNE organizou uma greve nacional reivindicando participação paritária nos colegiados das faculdades, o que despertou forte reação da hie-rarquia universitária. A mobilização estudantil foi ainda muito expressiva no campo cultural, com a criação do Centro Popular de Cultura e a UNE Volante, que percorreram o país em caravanas de teatro, literatura, música e artes11.

Entretanto, como observa Rodrigo Patto Sá Motta em seu recente livro:

[...] entre os professores universitários a situação não era a mes-ma, e as ideias de esquerda não encontravam tanta receptivi-dade. Nos meios acadêmicos eram fortes os laços com valores conservadores, em alguns casos até com a extrema direita. Em geral as faculdades de direito e medicina eram baluartes con-servadores, apesar de certas exceções, e, de maneira geral, o corpo docente pendia politicamente para o centro12.

Desfechado o golpe civil-militar de 1964, o ambiente universitário foi se-riamente abalado. Faculdades seriam invadidas pelos agentes da repressão, a

10 Sobre o assunto, consultar TOLEDO, Caio N. ISEB fábrica de ideologias. Campinas, SP: Unicamp. 1997, e DREIFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. 6. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

11 De uma vasta bibliografia, consultar BERLINCK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. São Paulo: Papirus, 1984.

12 MOTTA, Rodrigo P. S. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 25.

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perseguição aos estudantes ocorreria de maneira implacável com a participa-ção paramilitar de militantes do CCC – Comando de Caça aos Comunistas, tendo sido incendiada e depredada a sede da UNE, no Rio de Janeiro, e sua direção posta na ilegalidade.

Inicia-se a Operação Limpeza das universidades – expressão traduzida da Operation Clean-up que revela a participação direta dos organismos da inteli-gência militar dos EUA em parceria com os militares brasileiros na repressão. A operação, que ganhou ares de um verdadeiro terrorismo cultural, desencadeou uma onda de prisões de cientistas e intelectuais de esquerda, intervenção nas reitorias de várias instituições (UFPB, URGS, URRJ, UFES, UFG, entre outras), invasão de editoras e expurgos de livros considerados subversivos. As ações re-pressivas mais intensas atingiram inicialmente a Faculdade Nacional de Filoso-fia, no Rio de Janeiro, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, algumas unida-des da USP, e, sobretudo a UnB, cujo câmpus foi transformado num verdadeiro cenário de guerra. Dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, a Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto foi a mais afetada13. Das áreas mais prejudicadas pelos expurgos, além das Ciências Humanas, destacou-se a Física, fato que revela as estratégias imperiais norte-americanas, contrárias ao desenvolvimento científico autônomo brasileiro, respaldadas pelo silêncio omisso, ou mesmo pela franca adesão dos acadêmicos conservadores locais.

É preciso dizer, portanto, que “houve grande apoio à derrubada de Goulart entre professores e intelectuais, que, afinal, eram membros dos grupos sociais atemorizados pelos riscos de ‘comunização’, e que se aproveitaram da situação para garantir seus interesses e espaços de poder na hierarquia universitária”14.

13 O assunto será melhor analisado nos capítulos seguintes deste livro.

14 Uma boa síntese da escalada repressiva logo após o Golpe de 64, com documentação inédita pesquisada nos Estados Unidos, é dada por Motta, Rodrigo P. S. (op. cit., p. 23-64). O autor relata a perseguição a vários cientistas, como os físicos Mário Schenberg, José Leite Lopes e Plínio Sussekind, além de educadores e intelectuais como Perseu Abramo, José Albertino Rodrigues, Paulo Freire, Luiz Costa Lima, entre muitos outros. Em contraponto, não foram poucas as manifestações de solidariedade ao golpe e às intervenções na universidade por parte de professores universitários que passariam a servir de esteio ao novo regime, como Eremildo Viana, Djacir Menezes, Zeferino Vaz, Roque Spencer Maciel de Barros, Luiz An-

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O novo capítulo da repressão e da resistência nas universidades brasileiras iria se desenrolar até 1968, ou ainda estendendo-se a 1973, período turbulento em que o novo regime tentou, com enormes titubeios, viabilizar seu projeto de modernização conservadora do país, que incluía também a modificação da estrutura do ensino superior conforme um modelo tecnocrático norte-ame-ricano. Na primeira fase do regime, durante o governo de Castello Branco e início da administração de Costa e Silva, a orientação federal oscilou “entre assumir-se claramente como ditadura e respeitar alguns preceitos das institui-ções liberais”15. Tal oscilação perdurou até dezembro de 1968, quando a edição do AI-5 mostrou de modo incontornável sua face ditatorial.

Mas, apesar do controle imposto pelo MEC nos primeiros anos dos gover-nos militares, a UNE e as UEEs continuaram a atuar na clandestinidade, mobi-lizando-se pela abertura de mais vagas nas universidades a fim de solucionar o problema dos excedentes (candidatos aprovados nos vestibulares, para os quais não havia vagas suficientes, especialmente nos cursos mais procurados, como medicina e direito) e contra o projeto de reforma universitária da ditadura, for-mulado pelo convênio MEC-USAID16. De 1965 a 1968, as passeatas e os protes-tos estudantis retomaram as ruas, ganhando contornos explosivos nesse último ano, a par do levante internacional da juventude, como já foi dito. Essa época foi marcada, ademais, por grande efervescência cultural e pelo engajamento políti-co dos artistas do teatro, do cinema e da música popular, sobretudo, que anga-riaram crescente apoio dos setores médios urbanos, cada vez mais descontentes com os rumos do novo regime. A música de protesto tornou-se a expressão mais eloquente da contrariedade desses setores em relação aos governos militares17.

tônio Gama e Silva, Alfredo Buzaid, Esther Ferraz, Gilberto Freyre e Manuel Nunes Dias, muitos dos quais ocupariam altos cargos de direção na estrutura universitária desde então.

15 Motta, Rodrigo P. S., op. cit., p. 27.

16 Acordos negociados secretamente e vindos a público em novembro de 1966 após intensa pressão política e popular, estabelecidos entre o MEC a United States Agency for In-ternational Development  (USAID) para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões importados dos EUA.

17 De uma profusa bibliografia sobre o tema, ver: HOLLANDA, Heloisa B. de; GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 2. ed. 1982; MELLO, Zuza H. de. A era dos festivais: uma parábola. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003; e RIDENTI,

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37A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

A morte do estudante do estudante Edson Luís de Lima Souto, em março de 1968, durante uma manifestação contra o fechamento do restaurante universi-tário Calabouço, no Rio de Janeiro, comoveu os estudantes nacionalmente e boa parte da opinião pública, desencadeando uma nova onda de mobilização. Desde então, sucessivas passeatas e protestos alastraram-se pelas principais capitais do país, chegando mesmo a ameaçar a estabilidade do governo Costa e Silva, de resto já debilitado, além disso, por disputas internas pelo poder no aparelho mi-litar. Em outubro do mesmo ano, o cerco ao XXX Congresso da UNE, realizado clandestinamente em Ibiúna (SP), levaria a uma nova vaga de prisões que tiraria de circulação as principais lideranças do movimento estudantil, entre eles José Dirceu, Vladimir Palmeira, Franklin Martins e Jean Marc van der Weid.

Com o cerceamento das liberdades imposto pelo AI-5, já referido, e pelo decreto 477, de fevereiro de 1969, o ambiente universitário se tornou irrespirá-vel. Além dos novos expurgos de professores e alunos, as universidades passa-ram a ser diuturnamente vigiadas por espiões das agências de informações do regime (SNI, DSI e ASI), ao mesmo tempo em que a censura se abateu sobre a imprensa, dificultando a denúncia dos atos arbitrários dos governos. De 1970 a 1973, sob o governo do general Médici, a ainda no governo Geisel, no qua-driênio seguinte, o aparato repressivo se fortaleceu levando ao encarceramento e ao assassinato de diversos militantes comunistas, muitos deles provenientes dos movimentos estudantis.

Criaram-se assim as condições para a implantação definitiva da reforma uni-versitária da ditadura, concebida de maneira tecnocrática e em grande parte fiel aos planos estabelecidos pelos acordos MEC-USAID. A nova legislação, colocada em prática mediante sucessivos decretos, orientou-se pela ideia de racionalização dos recursos públicos e pela centralização das decisões no MEC, que passou a ser gerido por técnicos e empresários leais ao regime ditatorial. Objetivava-se, fun-damentalmente, transformar a universidade em formadora de recursos huma-nos para a modernização do país conforme os preceitos capitalistas do Império.

Para isso, o sistema de ingresso dos estudantes nas universidades foi uni-ficado sob o modelo do vestibular classificatório, pondo fim ao problema dos excedentes. A partir de então, ampliaram-se as vagas para os cursos superiores

Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas brasileiros, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

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com a abertura de um grande número de universidades federais e outras esta-duais – muitas das quais criadas para atender à clientela política dos governos -, sem falar do setor educacional privado que cresceria desmedidamente nas décadas seguintes. No ensino fundamental e médio foram implantadas as dis-ciplinas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, assim como a disciplina de Estudos dos Problemas Brasileiros nos cursos su-periores, que funcionariam como formas de propaganda do regime e de com-bate ao pensamento da esquerda. A criação das licenciaturas curtas foi outra medida destinada a formar recursos humanos em ampla escala para o ensino fundamental e médio. A expansão do sistema universitário serviu para minar o descontentamento de amplas parcelas das classes médias, o que contribuiu ain-da mais para a derrocada do movimento estudantil, que só retornaria à cena, com novas lutas e novos impasses no final dos anos 70.

A reforma universitária extinguiu as cátedras e implantou o sistema de de-partamentos, conforme o modelo das universidades norte-americanas, crian-do também uma nova carreira docente, que, em muitos aspectos, correspondeu aos antigos pleitos dos professores universitários, neutralizando posturas opo-sicionistas. Tais medidas foram fartamente divulgadas na imprensa juntamen-te com a intensa propaganda dos sucessos dos governos militares à época do chamado Milagre Brasileiro18.

Desde a década de 1970, os novos planos federais incluíram também o estímu-lo à pós-graduação, financiada por agências de fomento e fundações privadas nor-te-americanas, que cresceria exponencialmente nos decênios subsequentes, igual-mente de modo centralizado, passando a moldar a universidade dos nossos dias19.

A Unesp, criada em 1976, e da qual trata este livro, entre várias outras instituições, foi uma das criações da ditadura, como se poderá depreender da leitura dos próximos capítulos. Da sua criação aos anos oitenta, não foram pou-

18 Um quadro expressivo dessa conjuntura é dado por ALMEIDA, Maria H. T. NOVAIS. “Carro--zero e pau-de-arara: O cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In. Novaes, Fernando e SCHWARZ, Lilian. A história da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, Vol.4.

19 Motta, Rodrigo P. S., op. Cit., especialmente o capítulo 6 – “Os resultados das reformas”, p. 242-287.

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39A universidade nos tempos da Guerra Fria e da Ditadura Militar: contestação e repressãoAntonio Celso Ferreira

cos nem irrelevantes os esforços dos movimentos universitários no sentido de democratizá-la, mas esses objetivos foram apenas parcialmente alcançados.

Nascia então a assim chamada universidade operacional, tão bem caracte-rizada por Marilena Chauí20, modelo que se alargaria nacionalmente nas déca-das de 1980 e 1990, época de apogeu do neoliberalismo. Esse modelo de univer-sidade, apesar de já esgotado, ainda vige e nos vigia no presente.

Antonio Celso Ferreira

É professor titular de História do Brasil pela Unesp, câmpus de Assis. Mestre e Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Coordenou do Centro de Documentação e Memória da Unesp – CEDEM –, de 2011 a 2014. É autor dos livros “Um eldorado errante: São Paulo na ficção histórica de Oswald de Andrade” e “A epopeia bandeirante: letrados, instituições e invenção histórica (1870-1940)”, ambos pela Editora Unesp, além de outros livros, capítulos de livros e artigos em revistas especializadas.

20 Chauí, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora Unesp, 2001.