Machado de assis a mão e a luva

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  • 1. A mo e a luva, de Machado de Assis Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Virtual Bookstore - a livraria virtual da Internet Brasileira. Texto scanneado e passado por processo de reconhecimento ptico de caracteres (OCR) por Renato Lima , graas a doao a partir da Cognitive Software do seu excelente Cuneiform . Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para . Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso possvel.A Mo e a Luva Machado de Assis I - O FIM DA CARTA. Mas que pretendes fazer agora? Morrer. Morrer? Que idia! Deixa-te disso, Estvo. No se morre por to pouco... Morre-se. Quem no padece estas dores no as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu corao pusilnime; por mais aborrecvel que parea a idia da morte, pior, muito pior do que ela, a de viver. Ah! tu no sabes o que isto ? Sei: um namoro gorado... Lus! ... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha j diminudo

2. muito o gnero humano, e Malthus perderia o latim. Anda, sobe. Estvo meteu a mo nos cabelos com um gesto de angstia; Lus Alves sacudiu a cabea e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Lus Alves, rua da Constituio, que ento se chamava dos Ciganos; ento, isto , em 1853, uma bagatela de vinte anos que l vo, levando talvez consigo as iluses do leitor, e deixando-lhe em troca (usurrios!) uma triste, crua e desconsolada experincia. Eram nove horas da noite; Lus Alves recolhia-se para casa, justamente na ocasio em que Estvo o ia procurar; encontraram-se porta. Ali mesmo lhe confiou Estvo tudo o que havia, e que o leitor saber daqui a pouco, caso no aborrea estas historias de amor, velhas como Ado, e eternas como o cu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, to tenazes ambos, que no haveria meio de os vencer, se a Lus no ocorresse uma transao. Pois sim, disse ele, convenho em que deves morrer, mas h de ser amanh. Cede da tua parte, e vem passar a noite comigo. Nestas ltimas horas que tens de viver na terra dar-me-s uma lio de amor, que eu te pagarei com outra de filosofia. Dizendo isto, Lus Alves travou do brao de Estvo, que no resistiu dessa vez, ou porque a idia da morte no se lhe houvesse entranhado deveras no crebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que mais provvel, por esses dois motivos juntos. Vamos ns com eles, escada acima, at a sala de visitas, onde Lus foi beijar a mo de sua me. Mame, disse ele, h de fazer-me o favor de mandar o ch ao meu quarto; o Estvo passa a noite comigo. Estvo murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram fnebres como um cipreste. Lus viu-lhe ento, luz das estearinas, alguma vermelhido nos olhos, e adivinhou, no era difcil, que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou ele mentalmente. Dali foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com trs camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretria, vindo a ser ao mesmo tempo, alcova e gabinete de estudo. O ch subiu da a pouco. Estvo, a muito rogo do hspede, bebeu dois goles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, enquanto Lus Alves, preferindo um charuto e um sof, acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mos sobre o ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se no gorou nenhum namoro. O silncio no era completo; ouviase o rodar de carros que passavam fora; no aposento, porm, o nico rumor era dos botins de Estvo na palhinha do cho. 3. Cursavam estes dois moos a academia de S. Paulo, estando Lus Alves no quarto ano e Estvo no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos ntimos, tanto quanto podiam s-lo dois espritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estvo, dotado de extrema sensibilidade, e no menor fraqueza de nimo, afetuoso e bom, no daquela bondade varonil, que apangio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai merc de todas as circunstncias, tinha, alm de tudo isso, o infortnio de trazer ainda sobre o nariz os culos cor-de-rosa de suas virginais iluses. Lus Alves via bem com os olhos da cara. No era mau rapaz, mas tinha o seu gro de egosmo, e se no era incapaz de afeies, sabia reg-las, moder-las, e sobretudo gui-las ao seu prprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade ntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferena que Lus Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiana. Estvo referira ao amigo, desde tempos, toda a histria do amor, agora malogrado, suas esperanas, desalentos e glrias, e, enfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o captulo mais delicioso do romance no sentir dele caiu de toda a altura das iluses na mais dura, prosaica e miservel realidade. A namorada de Estvo, tempo de dizer alguma coisa dela, era uma moa de dezessete anos, e, por ora, simples aluna-professora no colgio de uma tia do nosso estudante, rua dos Invlidos. Estvo tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiuse preso por ela, "at morte", disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de to estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porm, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade que Estvo no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estvo dizia que sim, e devia cr-lo; alguns olhares ternos, meia dzia de apertos de mo significativos, embora a largos intervalos, davam a entender que o corao de Guiomar chamava-se Guiomar no era surdo paixo do acadmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais. O pouco mais foi uma flor, no colhida do p em toda a original frescura, mas j murcha e sem cheiro, e no dada, seno pedida. Faz-me um favor? disse um dia Estvo apontando para a flor que ela trazia nos cabelos; esta flor est murcha, e, naturalmente, vai deit-la fora ao despentear-se; eu desejava que ma desse. Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estvo recebeu-a com igual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinho do cu. Alm da flor, e para suprir as cartas, que no havia, nada mais obtivera Estvo durante aqueles seis compridos meses, a no serem os tais olhares, que afinal so olhares, e vo-se com os olhos donde vieram. Era aquilo amor, capricho, passatempo ou que outra coisa era? Naquela tarde, a tarde fatal, estando ambos a ss, o que era raro e difcil, disse-lhe ele que em breve ia voltar para S. Paulo, levando consigo a imagem dela, e pedindo-lhe em cmbio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nele o seu magnfico par de olhos castanhos, com tanta irritao e dignidade, que o pobre rapaz ficou atnito e perplexo. Imagina-se a angstia dele diante do silncio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que 4. se no imagina a dor que o prostrou, a dor e o espanto, quando ela, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo: Esquea-se disso. Pois quanto a mim, disse Lus Alves ouvindo pela terceira vez a narrao de to cru desenlace; quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me em cima dos compndios; Direito Romano e Filosofia, no conheo remdio melhor para tais achaques. Estvo no ouvia as palavras do amigo; estava ento assentado na cama, com os cotovelos fincados nas pernas, e a cabea metida nas mos, parecendo que chorava. A principio chorou em silncio; mas no tardou que Lus Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a soluar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saam do peito, a puxar os cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, to d'alma tudo aquilo, to lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e no houve remdio seno dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolao veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lgrimas estancaram, ao menos por algum tempo. Sei que tudo isto h de parecer-te ridculo, disse Estvo sentandose na cama; mas que queres tu? Eu vivia na persuaso de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo no entendo o que se passou hoje, Ou o que eu supunha ser amor, no passava talvez de passatempo ou zombaria... Talvez, talvez, interrompeu Lus Alves, compreendendo que o melhor meio de o curar do amor era meter-lhe em brios o amor-prprio. Estvo ficou alguns instantes pensativo. No, no possvel, contestou ele. Tu no a conheces. uma grave e nobre criatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel. As mulheres... J pensei se aquilo de hoje no seria uma maneira de experimentar-me, de ver at que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Lus; eu nada afirmo; digo que pode ser. No admira que ela fizesse esse clculo, - um bom clculo, nesse caso, todo filho do corao... A imaginao de Estvo desceu por este declvio de floridas conjecturas, e Lus Alves entendeu que era de bom aviso no espantar-lhe os cavalos. Ela foi, foi, foi por ali abaixo, rdea frouxa e riso nos lbios. Boa viagem! exclamou mentalmente o colega voltando a estirar-se no sof. A viagem no foi longa, mas produziu efeito salutar no nimo do namorado, adoando-lhe as penas, circunstncia que Lus Alves aproveitou para lhe falar de cem coisas alheias ao corao e diverti-lo do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, porque fez com que o colega risse, a princpio de um riso amargo e dbio, depois de um riso jovial e franco 5. incompatvel com intuitos trgicos. Mas, ai triste! a dor dele era uma espcie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa s vezes, s vezes mais fraca, mas sempre infalvel. O rapaz acertara de abrir uma pgina de Werther, leu meia dzia de linhas, e o acesso voltou mais forte que nunca. Lus Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consolao; o acesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relgio da sala de jantar batia seca e regularmente, como a lembrar aos dois amigos que as nossas paixes no aceleram nem moderam o passo do tempo. A aurora para os dois acadmicos coincidiu com as badaladas do meio-dia, o que no admira, pois s adormeceram quando ela comeava a apagar as estrelas. Estvo passou a noite, a manh, quero dizer, muito sossegada e livre de sonhos maus. Quando abriu os olhos estranhou o aposento e os objetos que o rodeavam. Logo que os reconheceu, despertou-se-lhe, com a memria, o corao, onde j no havia aquela dor aguda da vspera. Os sucessos, embora recentes, comeavam a envolver-se na sombra crepuscular do passado. A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive no s do que ama, mas tambm (fora diz-lo) do que come. Sirva isto de escusa ao nosso estudante, que almoou nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o no fez com lgrimas, tambm o no fez alegre. Mas o certo que a tempestade serenara; o que havia era uma ressaca, ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Lus Alves evitou falar-lhe de Guiomar; Estvo foi o primeiro a recordar-se dela. D tempo ao tempo, respondeu Lus Alves, e ainda te hs de rir dos teus planos de ontem. Sobretudo, agradece ao destino o haveres escapado to depressa. E queres um conselho? Dize. O amor uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, corte dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabns quando se l, carta de psames quando se acabou de ler. Tu que chegaste ao fim, pe a epstola no fundo da gaveta, e no te lembres de ir ver se ela tem um post-scriptum... Estvo aplaudiu a metfora com um sorriso de bom agouro. Duas vezes viu ele a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo. Da primeira sentiu-se ainda abalado, porque a ferida no cicatrizara de todo; da segunda, pde encar-la sem perturbao. Era melhor, mais romntico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da academia, com o desespero no corao, lavado em lgrimas, ou a beb-las em silncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui com os olhos enxutos, distraindo-se dos tdios da viagem com alguma pilhria de rapaz, rapaz outra vez, como dantes.II - UM ROUPO 6. Um ms depois de chegar Estvo a S. Paulo, achava-se a sua paixo definitivamente morta e enterrada, cantando ele mesmo um responso, a vozes alternadas, com duas ou trs moas da capital, todas elas, por passatempo. Claro que dois anos depois, quando tomou o grau de bacharel, nenhuma idia lhe restava do namoro da rua dos Invlidos. Demais, a bela Guiomar desde muito tempo deixara o colgio e fora morar com a madrinha. J ele a no vira da primeira vez que veio corte. Agora voltava graduado em cincias jurdicas e sociais, como fica dito, mais desejoso de devassar o futuro que de reler o passado. A corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que transpuseram a linha dos cinqenta divertia-se mais do que hoje, eterno reparo dos que j no do vida toda a flor dos seus primeiros anos. Para os vares maduros, nunca a mocidade folga como no tempo deles, o que natural dizer, porque cada homem v as coisas com os olhos da sua idade. Os recreios da juventude no so decerto igualmente nobres, nem igualmente frvolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o merecimento no dela, a pobre juventude, sim do tempo que lhe cai em sorte. A corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do clera -; bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os seus sales, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos trs fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homricos do teatro lrico, a quadra memorvel daquelas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu, Deus lhe perdoe, a coisas de menor tomo. Quem se no lembra, ou quem no ouviu falar das batalhas feridas naquela clssica platia do Campo da Aclamao, entre a legio casalnica e a falange chartnica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagrusta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, e maduras tambm, apercebidas de flores, de versos, de coroas, e at de estalinhos. Uma noite a ao travou-se entre o campo lagrusta e o campo chartonista, com tal violncia, que parecia uma pgina da Ilada. Desta vez, a Vnus da situao saiu ferida do combate; um estalo rebentara no rosto da Charton. O furor, o delrio, a confuso foram indescritveis; o aplauso e a pateada deram-se as mos, e os ps. A peleja passou aos jornais. "Vergonha terna (dizia um aos cavalheiros que cuspiram na face de uma dama!" "Se for mister (replicava outro) daremos os nomes dos aristarcos que no saguo do teatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua." "Patulia desenfreada! - "Fidalguice balofa! Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona ho de sentir hoje, aps dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em coisas que pediam repouso de espirito e lio de gosto. Estvo uma das relquias daquela Troia, e foi um dos mais fervorosos lagrustas, antes e depois do grau. A causa principal das suas preferncias, era decerto o talento da cantora; mas a que ele costumava dar, nas horas de bom humor, que eram todas as vinte e quatro do dia, tirantes as do sono, essa causa que mais que tudo o ligava aos "arraiais do bom gosto" dizia ele, era, imaginem l, era o buo de Mlle. Lagrua. Talvez no fosse ele o nico amador do buo; mas outro mais frvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um chartonista maquiavlico, alis escritor elegante, elevava o tal buo categoria de bigode, compreendendo sagazmente que, se o buo era graa, o bigode era excrescncia; e ele nem ao lbio da Lagrua 7. queria perdoar. Oh! aquele buo! exclamava Estvo nos intervalos de uma pera, aquele delicioso buo h de ser a perdio da gente de bem! Quem me dera ir encaracolado por ali acima, at ficar mais prximo do cu, quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ela, que me no descobre na turba inumervel dos seus adoradores! Querem saber uma coisa? Ali que ela h de ter a alma, e eu quisera entreter-me com a alma dela, e dizer-lhe muita coisinha que tenho c dentro espera de um buo que as queira ouvir. Estvo era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor, aliando em si, como em idade de transio, o estouvamento de um com a dignidade do outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de corao; s no as mostrara nos versos que imprimiu em jornais acadmicos, os quais eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. Neles confessava o rapaz cidade e ao mundo a profurida incredulidade do seu esprito, e o seu fastio puramente literrio. A colao de grau interrompeu, ou talvez acabou, aquela vocao potica; o ltimo suspiro desse gnero que lhe saiu do peito foram umas sextilhas sua juventude perdida. Felizmente, que s a perdeu em verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos. Posto fizesse boa figura na academia, mais prezava do que amava a cincia do Direito. Suas preferncias intelectuais dividiam-se, ou antes abrangiam a Poltica e a Literatura, e ainda assim, a Poltica s lhe acenava com o que podia haver literrio nela. Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e flor das pginas. Estvo no compreenderia nunca este axioma de lorde Macaulay que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. No digeria nada; e da vinha o seu nenhum apego s cincias que estudara. Venceu a repugnncia por amorprprio; mas, uma vez dobrado o Cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o cuidado de aproar ndia. Suas aspiraes polticas deviam naturalmente morrer em grmen, no s porque lhe minguava o apoio necessrio para as arvorecer e frutificar, mas ainda porque ele no tinha em si a fora indispensvel a todo o homem que pe a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspiraes vagas, intermitentes, vaporosas, umas vises legislativas e ministeriais, que to depressa lhe namoravam a imaginao, como logo se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim, amava-os ele deveras. Opinies no as tinha; alguns escritos que publicara durante a quadra acadmica eram um complexo de doutrinas de toda casta, que lhe flutuavam no esprito, sem se fixarem nunca, indo e vindo, alando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a atual disposio de esprito. Por agora militava nas fileiras do lagrusmo, com ardor, dedicao e fidelidade de bom apstolo. No era abastado para pagar o luxo de uma opinio lrica; nascera pobre e no tinha parente em boa posio. Alguns poucos recursos possua, provenientes do seu ofcio de advogado, que exer-cia com o amigo Lus Alves. 8. Uma noite assistira representao de 0telo, palmeando at romper as luvas, aclamando at cansar-lhe a voz, mas acabando a noite satisfeito dos seus e de si. Terminado o espetculo, foi ele, segundo costumava, assistir sada das senhoras, uma procisso de rendas, e sedas, e leques, e vus, e diamantes, e olhos de todas as cores e linguagens. Estvo era pontual nessas ocasies de espera, e raro deixava de ser o ltimo que saa. Tinha agora os olhos pregados em outros olhos, no pardos como os dele, mas azuis, de um azul-ferrete, infelizmente uns olhos casados, quando sentiu algum bater-lhe no ombro, e dizer-lhe baixinho estas palavras: Larga o pinto, que das almas. Estvo voltou-se. Ah! s tu! disse ele vendo Lus Alves. Quando chegaste? Hoje mesmo, respondeu o colega; venho sequioso de msica. Vassouras no tem Lagrua nem Otelo... Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estvo que, ainda falando em prosa, cultivava as suas metforas poticas. Fizeste bem; no te perdoaria se preferisses a outra, a lambisgia, que aqui nos querem impingir por grande coisa, e que no chega aos calcanhares do buo... Interrompeu-se. Lus Alves acabava de cumprimentar cerimoniosamente algum que passava; Estvo volveu a cabea para ver quem era. Era uma moa, que ele no chegou a ver, porque j descia as escadas; mas to elegante e gentil que os olhos lhe fuzilaram de admirao. Algum namoro? perguntou ao amigo. No; uma vizinha. A desfilada acabou; saram os dois e foram dali cear a um hotel, seguindo depois para Botafogo, onde morava Lus Alves, desde que perdera a me, alguns meses antes. A casa de Lus Alves ficava quase no fim da Praia de Botafogo, tendo ao lado direito outra casa, muito maior e de aparncia rica. A noite estava bela, como as mais belas noites daquele arrabalde. Havia luar, cu lmpido, infinidade de estrelas e a vaga a bater molemente na praia, todo o material, em suma, de uma boa composio potica, em vinte estrofes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns esdrxulos rebuscados nos dicionrios. Estvo poetou, mas poetou em prosa, com um entusiasmo legitimo e sincero. Lus Alves, menos propenso s coisas belas, preferia a mais til de todas naquela ocasio, que era ir dormir. No o conseguiu sem ouvir ao hspede tudo quanto ele pensava acerca daquele "pinto, que era das almas", aqueles olhos azuis, "profundos como o cu", exclamava Estvo. 9. Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os tais olhos o perseguissem, ainda em sonhos, ou porque estranhasse a carna, ou porque o destino assim o resolvera, a verdade que Estvo dormiu pouco, e, coisa rara, acordou logo depois de aparecer a arraiada. A manh estava fresca e serena; era tudo silncio, mal quebrado pelo bater do mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chcaras da vizinhana. Estvo, amuado por no poder conciliar o sono, resolvera-se a ir ver a manh, de mais perto. Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem caf ao jardim, para onde foi sobraando um livro que acaso topou ao p da cama. O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chcara vizinha por uma cerca. Relanceando os olhos pela chcara, viu Estvo que era plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas retas. Uma destas comeava das escadas de pedra da casa e ia at o fim da chcara; a outra ia da cerca de Lus Alves at extremidade oposta, cortando a primeira no centro. Do lugar em que ficava Estvo s a segunda rua podia ser vista de ponta a ponta. Sentou-se o bacharel em um banco que ali achou, recebeu a xcara de caf, que o escravo lhe trouxe da a pouco, acendeu um charuto e abriu o livro. O livro era uma Prtica forense. Demos-lhe razo ao despeito com o que o fechou e atirou ao cho, contentando-se com o canto dos pssaros e o cheiro das flores, e a sua imaginao tambm, que valia as flores e os pssaros. Deus sabe at onde iria ela, com as asas fceis que tinha, se um incidente lhas no colhera e fizera descer terra. Da casa vizinha sara um roupo, ele no viu mais que um roupo, e seguira pela rua que enfrentava com a casa, a passo lento e meditativo. Estvo, que adorava todos os roupes, fossem ou no meditativos, deu as graas Providncia, pela boa fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para contemplar aquela graciosa madrugadora. Graciosa, ainda ele no sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava que o fosse. A deliciosa paisagem ia ter enfim uma alma; o elemento humano vinha coroar a natureza. Ergueu-se Estvo, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor, e ser visto, digamos a verdade toda, aquela desconhecida vizinha, que devia ser por fora a que Lus Alves cumprimentara no teatro, Acteon cristo e modesto, no surpreendia Diana no banho, mas ao sair dele; todavia, no palpitava menos de comoo e curiosidade. O roupo ia andando.III - AO P DA CERCA A primeira coisa que Estvo pde descobrir que a vizinha era moa. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as rvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via- 10. lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, no penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabea, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. O roupo, de musselina branca, finamente bordado, no deixava ver toda a graa do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegncia que nasce com a criatura ou se apura com a educao, sem nada pedir, ou pedindo pouco tesoura da costureira. Todo o colo ia coberto at o pescoo, onde o roupo era preso por um pequeno broche de safira. Um boto, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda. Estvo, da distncia e na posio em que se achava, no podia ver todas estas mincias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histrias. O que ele viu, alm do perfil, dos cabelos, e da tez branca, foi a estatura da moa, que era alta, talvez um pouco menos do que parecia com o vestido roagante que levava. Pde ver-lhe tambm um livrinho, aberto nas mos, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espao a espao, quando lhe era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura. Ia assim andando, sem cuidar que a visse algum, to serena e grave, como se atravessara um salo. Estvo, que no tirava os olhos dela, mentalmente pedia ao cu a fortuna de a ter mais prxima, e ansiava por vla chegar rua que lhe ficava diante. Contudo, era difcil que lhe parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar por entre as rvores. O jovem bacharel, por no perder o sestro dos primeiros tempos, avocava todas as suas reminiscncias literrias; a desconhecida foi sucessivamente comparada a um serafim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memria dele havia mais areo, transparente, ideal. Enquanto ele trabalhava o esprito nestas comparaes poticas, no descabidas, se quiserem, em tal lugar, e ao p de to graciosa criatura, ela seguia lentamente e chegara encruzilhada das duas grandes ruas da chcara. Estvo esperava que voltasse direita, isto , que viesse para o lado dele, mas sobretudo receava que seguisse pela mesma rua adiante e se perdesse no fundo da chcara. A moa escolheu um meio-termo, voltou esquerda, dando as costas ao seu curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular. A chcara no era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo da madrugadora, no gastaria ela imenso tempo em percorrer at o fim aquela poro da rua em que entrara. Mas ali, ao p daquele corao juvenil e impaciente, cada minuto parecia, no direi um sculo, seria abusar dos direitos do estilo, mas uma hora, uma hora lhe parecia, com certeza. A moa entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a mo nas costas de um banco rstico que ali havia e enfrentava com outro, colocado na extremidade oposta. A outra mo descara-lhe, e os olhos tambm, o que magoou o seu curioso observador. Seriam saudades de algum? Estvo sentiu uma coisa, a que chamarei cime antecipado, mas que na realidade eram invejas da alheia fortuna. A inveja um sentimento mau; mas nele, que nascera para amar, e que, alm disso, tinha em si o contraste do nascimento com o instinto, um bero obscuro e umas aspiraes vida elegante, nele a inveja era quase um sentimento desculpvel. 11. A moa voltou e veio pela rua adiante. Enfim, disse consigo Estvo, vou contempl-la de mais perto. Ao mesmo tempo, receoso de que, descobrindo ali um estranho, guiasse os passos para casa, Estvo afastou-se do lugar em que ficara, resoluto a aparecer, quando ela estivesse prxima cerca do jardim. A moa vinha andando com o livro fechado, e os olhos ora no cho, ora nas andorinhas e camaxilras que esvoaavam na chcara. Se trazia saudades, no se lhe podiam ler no rosto, que era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sobra de pena ou de tristeza. Estvo do lugar onde estava podia examinar-lhe as feies, sem ser visto por ela; mas foi justamente do que no cuidou, desde que lhas pde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aqueles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, no maviosos nem quebrados, como ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como eles comunicavam a todo o rosto e a toda a figura um ar de majestade tranqila e senhora de si. No era ela uma dessas belezas que, ao mesmo tempo que subjugam o corao, acendem os sentidos; falava inteligncia primeiro do que ao corao, tanto a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia esttua e meia mulher. Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porm, que a nenhuma destas coisas atendeu. Desde que distinguira as feies da moa, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a boca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o corao. A moa chegara cerca; esteve de p algum tempo, olhou em derredor e por fim sentouse no banco que ali havia, dando as costas para o jardim de Lus Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura do ponto em que a deixara to s consigo, to embebida no livro que tinha diante, que no a despertou o rumor, alis sumido, dos passos de Estvo nas folhas secas do cho. Teria percorrido meia pgina, quando Estvo, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para que s chegasse aos ouvidos dela, proferiu este simples nome: Guiomar! A moa soltou um grito de surpresa e de susto, e voltou-se sobressaltada para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantara-se. A impresso que lhe produzira, e no sei se tambm algum ar de clera que lhe notasse no rosto; e alm de tudo, o remorso de no haver sufocado aquele grito de seu corao, fez com que Estvo, quase no mesmo instante, murmurasse em tom de splica: Perdoe-me; foi uma centelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo. Guiomar, sabemos agora que era este o seu nome, olhou sria e quieta para o seu mal-aventurado interruptor, dois longos e mortais minutos. Estvo, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o corao palpitava-lhe com fora, como a despedir-se da vida. A situao era em demasia aflitiva e embaraosa para que se pudesse prolongar mais. Estvo ia cortej-la e despedir-se; mas a moa, com um sorriso de mais piedade que afeto, murmurou: 12. Est perdoado. Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mo, que ele apertou, - apertou no bem dito, em que ele tocou apenas, o mais cerimoniosamente que podia e devia naquela situao. E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dali, a verem ambos o espectro do passado, aquele to amargo passado para um deles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silncio, fazendo a Estvo uma pergunta natural, como no podia deixar de ser naquelas circunstncias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que ele podia ouvir: H dois anos que nos no vemos, creio eu? H dois anos, murmurou Estvo abafando um suspiro. J est formado, no? Lembra-me ter lido o seu nome... Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tia... No a vejo h muito tempo, interrompeu Guiomar; eu sa do colgio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Sa a convite da baronesa, minha madrinha, que l foi buscar-me um dia, alegando que eu j no tinha que aprender, e que me no convinha ensinar. Decerto, assentiu Estvo. Minha tia que no deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no ofcio. Acabou? Morreu. Ah! Morreu h cerca de um ano. Era uma boa criatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silncio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi... Est admirando esta flor? Estvo, apanhado em flagrante delito de admirao, no da flor mas da mo que a sustinha, uma deliciosa mo, que devia ser por fora a que se perdeu da Vnus de Milo, Estvo balbuciou: Com efeito, linda! H muita flor bonita aqui na chcara. A baronesa tem imenso gosto a estas coisas, e o nosso jardineiro homem que sabe do seu ofcio. Aquele natural acanhamento da primeira ocasio foi desaparecendo aos poucos, e a conversa veio a ser, no to familiar, como outrora, mas em todo o caso menos fria do que a princpio estivera. Havia, contudo, uma diferena entre os dois: ele, sem embargo do 13. desembarao, sentia-se abalado e comovido; ela, porm, vencido o sobressalto do princpio, mostrava-se tranqila e fria, sempre polida e grave, risonha s vezes, mas de um risonho flor do rosto, que no lhe alterava a serenidade e compostura. O stio e a hora eram mais prprios de um idlio, que de uma fria e descolorida prtica. Um cu claro e lmpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tpida, a vegetao em derredor, todo aquele reviver das coisas parecia estar pedindo uma igual aurora nas almas. Estas que deviam falar ali a sua lngua delas, amorosa e cndida, em vez da outra, corts, elegante e rgida, que a nenhum deles desprazia, decerto, mas que era muito menos voluntria nos lbios de Estvo. Guiomar falava com certa graa, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor. Estvo, que a maior parte do tempo ficara a ouvi-la, observava entre si que as maneiras da moa no lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situao. A Guiomar que ele conhecera e amara era o embrio da Guiomar de hoje, o esboo do painel agora perfeito; faltava-lhe outrora o colorido, mas j se lhe viam as linhas do desenho. A conversa durou cerca de trs quartos de hora, uma migalha de tempo para ele, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ela foi a primeira a dizer-lho. O senhor fez-me perder muito tempo. H talvez uma hora que estamos aqui a conversar. Era natural, depois de dois anos. Dois anos! Mas o que no era natural, continuou ela mudando de tom, era atreverme a falar com um estranho neste deshabill to pouco elegante... Elegantssimo, pelo contrrio. O senhor tem sempre um cumprimento de reserva: vejo que no perdeu o tempo na academia, Vou-me embora. So horas da baronesa dar o seu passeio pela chcara. Ser aquela senhora que ali est no alto da escada? perguntou Estvo. ela mesma, respondeu Guiomar. Est espera que lhe v dar o brao. E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mo a Estvo, dizendo: Passe bem, senhor doutor, estimei v-lo. Estvo tocou-lhe levemente na mo, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moa caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta vez a passo acelerado, resvalava por entre as rvores at subir as escadas da casa. Viu-a dar o brao madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez. Estvo ainda ficou algum tempo encostado cerca, na esperana de que ela olhasse ou dirigisse os passos para aquele lado; ela porm, passou indiferente, como se nem da existncia 14. dele soubera. Estvo retirouse dali cabisbaixo e triste, batido de contrrios sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e surdo desta interrogao: Entro num drama ou saio de uma comdia?IV - LATET ANGUIS O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol comeava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chcara, o calor aconselhava boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o brao, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa. Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos. E , madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chcara. Um encontro? Um homem. Algum ladro? perguntou a madrinha parando. No, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, no era ladro. A minha mestra de colgio... sabe que morreu? Quem disse isso? O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje. Voc est zombando comigo! Um homem na chcara? No era bem na chcara, mas no jardim do Dr. Lus Alves. Estava encostado cerca; trocamos algumas palavras. A baronesa olhou para ela alguns segundos. Mas, menina, isso no bonito. Que diriam se os vissem?... Eu no diria nada, porque conheo o que voc vale, e sei a discrio que Deus lhe deu. Mas as aparncias... Que qualidade de homem esse sobrinho? Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e magra, cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra. Oswald, ou mais britanicamente, Mrs. Oswald, dama de companhia da baronesa, desde alguns anos. Mrs. Oswald conhecera a baronesa em 1846; viva e sem famlia, aceitou as propostas que esta lhe fez. Era mulher inteligente e sagaz, dotada de boa ndole e servial. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presena de Guiomar, que a 15. baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situao. So nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje no queriam voltar para casa. O calor est forte; e a senhora baronesa sabe que no conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias. Tem razo, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio comeou tarde. Por que me no mandou chamar? Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott... Milton, emendou gravemente a inglesa; esta manh foi dedicada a Milton. Que imenso poeta, D. Guiomar! Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e l dentro a ouviremos com melhor disposio. Foram as trs andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janelas para a chcara. Dali seguiram para uma saleta, onde a baronesa sentou-se na sua poltrona, a escapar a hora do almoo. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baronesa que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. Oswald, sem dizer palavra. Era ela uma senhora de cinqenta anos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que um resto da elegncia da mocidade. Os cabelos, cor de prata fosca, emolduravamlhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, no por desgostos, que os no tivera, mas pelos anos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto. Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia do noivado at o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas j l iam alguns anos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consolao da saudade. Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a ss, disse ela inglesa, que se achava a alguns passos de distncia. Mrs. Oswald foi at a porta espreitar se viria algum e voltou a sentar-se ao p da baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mos cruzadas no regao e os olhos no cho. Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou trs minutos. A baronesa despertou enfim das reflexes, e voltou-se para a inglesa: Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que no serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, porm, no passar de sonho, e era o mais belo de minha velhice. 16. Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha nimo, e tudo se h de arranjar. Pela minha parte, oxal pudesse contribuir para a completa felicidade desta famlia, a quem devo tantos e tamanhos benefcios. Benefcios! E que outra coisa so os seus carinhos, a proteo que me tem dado, a confiana... Est bom, est bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra coisa. Dela, no ? Diz-me o corao que com alguma pacincia tudo se alcanar. Todos os meios se ho de tentar; e todos eles so bons se se trata de fazer a felicidade sua e dela. Bem est o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juzo. Por enquanto s vejo um obstculo: a pouca disposio... S esse? Que outro mais? Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que no, mas to infeliz sou neste meu desejo, que h de vir a ser obstculo, talvez. Mas que ? Um homem, um moo, no sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ela mesma contou-me tudo h pouco. Tudo o qu? No sei se tudo; mas enfim disse-me que, estando a passear na chcara, vira o tal sobrinho da mestra, junto cerca do Dr. Lus Alves, e ficara a conversar com ele. Que ser isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomea agora, agora, que ela j no a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu corao. A comoo da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. Oswald pegou-lhe afetuosamente das mos e procurou confort-la com outras palavras de esperana e confiana. Disse-lhe, alm disso, que o simples conversar com esse homem, que alis nenhuma delas conhecia, no era razo para supor uma paixo anterior. Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a algum neste mundo. Por enquanto estou que no gosta de ningum, e a nossa vantagem no outra seno essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo frieza, e da confiana ao retraimento. H de vir a amar, mas no creio que tenha grandes paixes, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe atualmente pelo seu corao, como se tivesse a chave na minha algibeira. A baronesa abanou a cabea. 17. Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem ele, e que relaes de afeto houve no passado. Parece-lhe possvel? Naturalmente! A inglesa proferiu esta nica palavra com a segurana necessria para serenar o nimo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasnada para ela, como quem refletia. H ocasies, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silncio, h ocasies em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ela veio preencher na minha vida o vcuo deixado por aquela pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou consigo, para mal de sua me. Se havia de ser infeliz, melhor que a chore morta, com a esperana de a ir encontrar no cu. Mas no lhe quis mais, nem talvez tanto, como a esta criana, que levei pia, e de quem Deus me fez me... A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor. Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com to singelos meios o fizera, que no desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no captulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para realar a um tempo a abundncia dos cabelos e a senhoril beleza da testa. As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glac, talhado e ornado com uma simplicidade artstica. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, um dos mais belos painis que havia por aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo. Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar porta da saleta. E Guiomar sorriu com tanta satisfao e gozo ao ouvir-lhe esta saudao familiar, que um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de moa, ou se alguma coisa mais. A baronesa ps os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moa reparou, e que a tornaram sria durante alguns rpidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das mos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto, com tanta ternura e to sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento. No precisa falar, disse Guiomar, j sei que me acha bonita. o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encomendas, ningum mais poder comigo. Guiomar disse isto com tanta graa e singeleza, que a madrinha no pde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoo chamou-as a outros cuidados, e a ns tambm, amigo leitor. Enquanto as trs almoam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, to gentil, to buscada e to singular, como dizia Mrs. Oswald. 18. V - MENINICE Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno no sei de que repartio do Estado, homem probo, que morreu quando ela contava apenas sete anos, legando viva o cuidado de a educar e manter. A viva era mulher enrgica e resoluta, enxugou as lgrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situao e determinou-se luta e vitria. A madrinha de Guiomar no lhe faltou naquele duro transe, e olhou por elas, como entendia que era seu dever. A solicitude, porm, no foi to constante a princpio como veio a ser depois; outros cuidados de famlia lhe chamavam a ateno. Guiomar anunciava desde pequena as graas que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco travessa, decerto, mas muito menos do que usual na infncia. Sua me, depois que lhe morrera o marido, no tinha outro cuidado na terra, nem outra ambio mais, que a de v-la prendada e feliz. Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela sabia, e a coser e bordar, e o pouco mais que possua de seu ofcio de mulher. Guiomar no tinha dificuldade nenhuma em reter o que a me lhe ensinava, e com tal afinco lidava por aprender, que a viva, ao menos nessa parte, sentia-se venturosa. Hs de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expresso de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo aplicao. A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infncia, mas solitria, o que um pouco mais grave. A me, quando a via embebida nos jogos prprios da idade, infantilmente alegre, mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de me, to fundo lhe doa aquele viver, - a me sentia s vezes pularem-lhe as lgrimas dos olhos fora. A filha no as via, porque ela sabia escond-las; mas adivinhava-as atravs da tristeza que lhe ficava no rosto. S no adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mgoas de sua me, para lhe descair tambm a alegria. Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de concentrao e mudez, uma seriedade, a princpio intermitente e rara, depois freqente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer me que eram prenncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que no eram. Seria acaso efeito daquela vida solitria e austera, que j lhe ia afeioando a alma e como que apurando as foras para as pugnas da vida? A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chcara pertencente a uma casa da vizinhana. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os olhos, j srios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecerlhe diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moas, todas bonitas, 19. que arrastavam por entre as rvores os seus vestidos, e faziam luzir aos ltimos raios do sol poente as jias que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memria o quadro que passara. A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melanclica, sem nada explicar solcita curiosidade da me. Que explicaria ela, se mal podia compreender a impresso que as coisas lhe deixavam? Mas, como a me entristecesse com aquilo, Guiomar domou o prprio esprito e fezse to jovial como nos melhores dias. Esta era ainda outra feio da menina; tinha uma fora de vontade superior aos seus anos. Com ela, e a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a me lhe ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo lhe permitiu desenvolver os primeiros elementos. Aos treze anos ficou rf; este fundo golpe em seu corao, foi o primeiro que ela verdadeiramente pde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. J ento a madrinha a fizera entrar para um colgio, onde aperfeioava o que sabia e onde lhe ensinavam muita coisa mais. Vivia ainda ento a filha da baronesa, uma interessante criana de treze anos, que era toda a alma e encanto de sua me. Guiomar visitava a casa da madrinha; a idade quase igual das duas meninas, a afeio que as ligava, a beleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laos puramente espirituais que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda me; havia talvez em seu afeto, alis sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulao. O afeto era espontneo; o encarecimento que seria voluntrio. Tinha a moa dezesseis anos quando passou para o colgio da tia de Estvo, onde pareceu baronesa se lhe poderia dar mais apurada educao. Guiomar manifestara ento o desejo de ser professora. No h outro recurso, disse ela baronesa quando lhe confiou esta aspirao. Como assim? perguntou a madrinha. No h, repetiu Guiomar. No duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigao, que se deve cumprir. A minha ... ganhar o po. Estas ltimas palavras passaram-lhe pelos lbios como que fora. O rubor subiu-lhe s faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha. Guiomar! exclamou a baronesa. Peo-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade. A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, assentimento de boca, a que j o corao no respondia, e que o destino devia mudar. 20. Pouco tempo depois padeceu a baronesa o golpe quase mortal a que aludiu no captulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quase levou a me sepultura. A afeio de Guiomar no se desmentiu nessa dolorosa situao. Ningum mostrou sentir mais do que ela a morte de Henriqueta, ningum consolou to dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus anos; todavia revelou ela a posse de uma alma igualmente terna e enrgica, afetuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catstrofe abatera a prpria Mrs. Oswald. O corao da pobre me ficara to vazio, e a vida lhe pareceu to agra e deserta sem a filha, que ela morreria talvez de saudade, se no fora a presena de Guiomar. Nenhuma outra criatura poderia preencher, como esta, o lugar de Henriqueta. Guiomar era j meia filha da baronesa; as circunstncias, no menos que o corao, tinham-nas destinado uma para a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para sua casa. Voc ser a filha que eu perdi; ela no me amou mais, nem eu j agora teria outra consolao. Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mos. A baronesa estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos ps e ps-lhe a cabea no regao. A boa me curvou-se e beijou-lha ternamente, com os olhos naquela filha que os sucessos lhe haviam dado, e o pensamento no cu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si. Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, graas nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e no breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar ps todo o seu esforo em reproduzir pelo mesmo teor os hbitos de outro tempo, de maneira que a baronesa mal pudesse sentir a ausncia da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu, e se em algum ponto os alterou foi para aumentar-lhe novos. Esta inteno no escapou ao esprito da baronesa, e suprfluo dizer que deste modo os vnculos do afeto mais se apertaram entre ambas. Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu corao, revelava a moa, no menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que entrara. A educao, que nos ltimos tempos recebera, fez muito, mas no fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra, - melhor diremos, come-la. Ningum adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moa, a origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crislida.VI - O POST-SCRIPTUM Aquele conselho de Lus Alves, na fatal noite de dois anos antes, no h dvida que era judicioso e devera ter ficado no esprito de Estvo. 21. No convinha reler a carta, sob pena de lhe achar um post-scriptum. Estvo era curioso de epstolas; no pde ter-se que no abrisse aquela. O post-scriptum la estava no fim. Vindo linguagem natural, Estvo saiu do jardim de Lus Alves com o corao meio inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera padecer um dia. Daqui concluir algum que ele verdadeiramente no deixara de a amar. Pode ser; havia talvez debaixo da cinza uma fasca, uma s, e essa bastava a repetir o incndio. Mas fosse de um ou de outro modo, o certo que Estvo saiu dali com o princpio do amor no corao. Todo aquele dia foi de alvoroo e agitao para ele, que no se resignou logo, antes buscou reagir contra a entrada da paixo nova. A tentativa era sincera; as foras que eram escassas. Ele desviava de si a imagem da moa; ela, porm, perseguia-o, tenaz, como se fora um remorso, fatal como a voz de seu destino, Estvo nada disse a Lus Alves do encontro e da conversa que tivera com a moa no jardim; e no lho escondeu por desconfiana, mas por vergonha, Que lhe diria porm ele que o no tivesse visto e percebido Lus Alves? Da janela de seu quarto, que dava para o jardim, enfiando os olhos pela fresta das cortinas pde observ-los durante aqueles trs quartos de hora de inocente palestra. O espetculo no o divertiu muito; Lus Alves achou um pouco atrevida a escolha do lugar. A circunstncia de os ver juntos chamou-lhe a ateno para a coincidncia do nome da vizinha com o da antiga namorada do colega; era naturalmente a mesma pessoa. Vai contar-me tudo, pensou Lus Alves quando viu o colega afastar-se da cerca e dirigir os passos para casa. Estvo, como disse, foi discreto. Vinha preocupado, muito outro do que entrara na vspera, a ler-se-lhe no rosto alguma coisa mais sria do que ele prprio costumava ser. Tinha Estvo contra si o passado e o futuro. O presente, sim, defendia-o; ele sentia que alguma coisa o distanciava de Guiomar. Mas o passado falava-lhe de todas as doces recordaes, as menos amargas, e a memria quase no sabe de outras quando relembra o que foi. O futuro acenava-lhe com as suas esperanas todas, e basta dizer que eram infinitas. Alm disso, a Guiomar que ele via agora, surgia-lhe no meio de outra atmosfera, a mesma que o seu esprito almejava respirar; e aparecia-lhe para fugir logo. Sobre tudo isto o obstculo, aquela porta fechada, que bem podia ser a da citt dolente, mas que em todo o caso ele quisera ver franqueada s suas ambies. Os dias correram alternados de confiana e desnimo, tecidos de ouro e fio negro, um lutar de todas as horas, que acabou como era de prever e devia acabar. O corao levou Estvo atrs de si. Nenhum meio, dos que tinha mo, lhe esqueceu para ver Guiomar. As janelas da casa estavam quase sempre desertas. Duas ou trs vezes aconteceu v-la de longe; ao aproximar-se-lhe, sumira-se o vulto na sombra do salo. No perdia teatro; mas s duas vezes teve o gosto de a ver: uma no Lrico, onde se cantava Sonmbula, outra no Ginsio, onde se representavam os Parisienses, sem que ele ouvisse uma nota da pera, nem uma palavra 22. da comdia. Todo ele, olhos e pensamento, estava no camarote de Guiomar. No Lrico foi baldada essa contemplao; a moa no deu por ele. No Ginsio, sim; o teatro era pequeno; contudo, antes no fora visto, to tenazmente desviou ela os olhos do lugar em que ele ficara. Nem por isso deixou Estvo de ir esper-la sada, colocar-se francamente no seu caminho, solicitar-lhe audazmente os olhos e ateno. A famlia desceu da segunda ordem pela escada do lado de S. Francisco; a estreiteza do lugar era excelente. Dava o brao baronesa um moo de vinte e cinco anos, figura elegante, ainda que um tanto afetada. Desceram todos trs e ficaram espera do carro alguns minutos. Na meia sombra que ali havia destacava-se o rosto marmreo de Guiomar e a gentileza de seu talhe. Seus grandes olhos vagavam pela multido, mas no fitavam ningum. Ela possua, como nenhuma outra, a arte de gozar, sem as ver, as homenagens da admirao pblica. Irritado com a indiferena da moa, vagou Estvo toda aquela noite, a ss com o seu despeito e o seu amor, tecendo e destecendo mil planos, todos mais absurdos uns que outros. A taa enchera de todo; era mister entorn-la no seio de um amigo, de um amigo que houvesse nas suas mos o nico remdio que ele nessa ocasio pedia; a chave daquela porta. Lus Alves era esse homem. Outra vez cado! exclamou ele rindo quando Estvo lhe contou tudo. Eu j o havia percebido. Isto de mulheres... Queres ento que te leve l? Quero. Lus Alves refletiu alguns instantes. E uma viagem, no te seria bom fazer uma viagem? J sei o que me vais dizer; mas tambm no te proponho uma viagem de recreio, Europa. Olha, arranjo-te, se queres, um lugar de juiz municipal... A proposta era sincera; Estvo cuidou ver-lhe uma ponta de zombaria e ergueu os ombros com enfado. A proposta, entretanto, merecia ser examinada; era uma carreira, e vinha de um homem que estava a entrar na vida poltica, que esperava da a algumas semanas o resultado de uma eleio, com a certeza, ou quase, de haver triunfado. Era influncia que nascia, e de fora viria a crescer. Mas para Estvo, naquela ocasio, toda a carreira pblica, influncia, futuro, leis, tudo estava nos olhos castanhos de Guiomar. Eu amo-a, disse ele enfim, isto para mim tudo. Pode bem ser que tenhas razo; talvez me espere algum grande desgosto; mas so reflexes, e eu no reflito agora, eu sinto... Em todo o caso, acudiu Lus Alves, desempenho o meu dever de amigo; digo-te que vocs no nasceram um para outro; que, se ela te no amou naquele tempo, muito menos te amar hoje, e que enfim... Lus Alves estacou, Enfim? perguntou Estvo. Enfim pedes-me um sacrifcio, concluiu rindo o advogado, porque tambm eu j a 23. namorisquei... No preciso carregares o sobrolho; foi namoro de vizinho, tentativa que durou pouco mais de vinte e quatro horas. Com vergonha o digo, ela no me prestou uma migalha de ateno sequer, e eu voltei aos meus autos. Ento... gostas dela? perguntou Estvo. Acho-a bonita e nada mais. Aquilo foi um lanar barro parede; se aceitasse, casavame; no aceitou... J vs que somos diferentes. Queres, ento?... Um servio de amigo. Bem, disse por fim Lus Alves, faa-se a tua vontade. A baronesa vai cuidar agora de um processo e mandou-me falar. Eu passo-te a prebenda; entraras ali, como advogado, o que de alguma maneira me tira um peso da conscincia. Estvo, que s pedia um pretexto, aceitou a oferta com ambas as mos, e agradeceu-lha com to expansiva ternura, que fez sorrir o outro. A promessa cumpriu-se pontualmente. Lus Alves apresentou Estvo baronesa, na seguinte noite, como seu companheiro e amigo, como advogado capaz de zelar os interesses da ilustre cliente. A recepo foi geralmente boa, salvo por parte de Guiomar, que pareceu aborrecida de o ver naquela casa. Quando Estvo a saudou, como quem a conhecia de longo tempo, ela mal pde retribuir-lhe o cumprimento; em todo o resto da noite no lhe deu palavra. Daquela parte o acolhimento no podia ser pior; mas Estvo sentia-se feliz, desde que podia vla, respirar o mesmo ar, nada mais pedindo por ora, e deixando o resto fortuna. De todas as pessoas da casa da baronesa, a primeira que reparou na indiferena com que Guiomar tratara Estvo, foi Mrs. Oswald. A sagaz inglesa afivelou a mscara mais impassvel que trouxera das ilhas britnicas e no os perdeu de vista. Nem da primeira nem da segunda vez viu nada mais que os olhos dele, que solicitavam os dela, e os dela que pareciam surdos. Havia decerto uma paixo, solitria e desatendida. Sabe que descobri um namorado seu? perguntou ela alguns dias depois a Guiomar. Guiomar fez um gesto de estranheza. Entendamo-nos, observou a inglesa; no digo que a senhora o namore tambm; digo que ele quem anda apaixonado. No adivinha? Talvez. O Dr. Estvo. Guiomar fez um gesto de desdm. 24. Vejo que tinha adivinhado, disse Mrs. Oswald; tambm no era difcil. Quem tem alguma prtica destas coisas fareja uma paixo a cem lguas de distncia, por mais que ela busque recatar-se dos olhos estranhos. Os namorados geralmente supem que ningum os v; uma lstima. Olhe, da senhora posso eu jurar que no est namorada de pessoa nenhuma. Que sabe disso? perguntou Guiomar deitando os olhos para o espelho de seu guardavestidos. Pois estou, mas de mim mesma. Mrs. Oswald desatou a rir, de um riso grave e pausado. Ela sabia que a moa tinha orgulho de suas graas; era bom caminho afagar-lhe o sentimento. Disse-lhe muita coisa bonita, que no vem para aqui, e concluiu pondo-lhe as mos nos ombros, encarando-a fito a fito, e enfim rompendo nestas palavras, meias suspiradas: A senhora a flor desta sua terra. Quem a colher? Algum sei eu que a merece... Guiomar ficou sria, e desviou brandamente as mos da inglesa, murmurando: Mrs. Oswald, falemos de outra coisa.VII - UM RIVAL No era a primeira vez que Mrs. Oswald aludia a alguma coisa que desagradava a Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequido que o leitor viu no fim do capitulo anterior. A boa inglesa ficou sria e calada alguns dois ou trs minutos, a olhar para Guiomar, aparentemente buscando interrogar-lhe o pensamento, mas na realidade sem saber como sair da situao. A moa rompeu o silncio: Est bom, disse ela sorrindo, no vejo razo para que se zangue comigo. No estou zangada, acudiu prontamente Mrs. Oswald. Zangada por qu? Pesa-me, decerto, que a natureza me no d razo, e que uma aliana to conveniente, para ambos, seja repelida pela senhora; mas se isto motivo de desgosto, no pode s-lo de zanga... Desgosto? Para mim... e naturalmente para ele. Guiomar respondeu com um simples sacudir de ombros, seco e rpido, como quem se lhe no dava do mal ou no acreditava nele. Mrs. Oswald no atinou qual destas impresses seria, e concluiu que fossem ambas. A moa, entretanto, pareceu arrepender-se daquele movimento; travou das mos da inglesa, e com uma voz ainda mais doce e macia que de costume, lhe disse: Veja o que ser criana! No parece que ainda em cima me zango com a senhora? 25. Parece. Pois no exato. Isto so caprichos de menina mal-educada. Dei para no gostar que me adorem... Minto; disso gosto eu; mas quisera que me adorassem somente, no lhe parece? E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos de criana travessa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual. J sei, gosta de uma adorao como a do Dr. Estvo, silenciosa e resignada, uma adorao... E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na ponta dos dedos, continuou por este modo, acentuando as palavras: Uma adorao como a que devia inspirar Jos, filho de Jac, que era belo como a senhora: "por ele as moas andavam por cima da cerca"... Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se seria. Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei por qu. No core! Olhe que se denuncia. Guiomar corara deveras; mas era a altivez e o pundonor ofendido que lhe falavam no rosto. Olhou fria e longamente para a inglesa, com um desses olhares, que so, por assim dizer, um gesto da alma indignada. O que a irritava no era a aluso, que no valia muito, era a pessoa que a fazia, inferior e mercenria. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do lbio, mas transigiu com a moa. Meu Deus! disse ela. Parece que se zangou por uma brincadeira -toa. Bem sabe que eu no podia querer agrav-la; sup-lo ofender-me a mim, a mim, que tambm lhe tenho afeto de me... A ltima palavra aquietou o nimo de Guiomar; ela tinha cedido ao impulso do seu carter altivo, mas a razo veio depois, e o corao tambm, que no era mau. A inglesa, que possua longa prtica da vida e sabia ceder a tempo, uniu o gesto palavra e chamou-a com os braos para si. Guiomar deixou-se ir, um pouco de m vontade, e a conversa teria acabado ali, se Mrs. Oswald no lhe dissesse com a mais doce voz que daquela garganta podia sair: Convena-se de que eu sou importuna e indiscreta por afeio, e que a felicidade desta famlia toda a ambio da minha alma. No pode haver inteno melhor do que esta. Um conselho ltimo, ltimo se me no consentir mais falar-lhe nisto; eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhar uns amores de romance, quase impossveis? digo-lhe que faz mal, que melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela no brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir. 26. Guiomar cravara desta vez os olhos no cho, com a expresso vaga e morta de quem os apagou para as coisas externas. As palavras de Mrs. Oswald responder-lhe-iam acaso a alguma voz ntima? A inglesa prosseguiu na mesma ordem de idias, sem que ela a interrompesse ou desse sinal de si. Quando ela acabou, Guiomar estremeceu, como se acordasse; levantou a cabea, e lenta, e comovida, proferiu esta nica resposta: Talvez tenha razo, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos so to bons! Mrs. Oswald abanou a cabea e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar to baixo que mal a ouvia o seu prprio corao: Sonhos no, realidade pura. Suponho que o leitor estar curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no dilogo que precede, se que j no suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, - aquele moo que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginsio. Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis anos. Jorge chamava-se ele; no era feio mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e esta mxima no s aplicvel poesia, mas tambm ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais belos, se ele no os movesse com afetao, s vezes feminina. O mesmo direi dos modos, que seriam fceis e naturais, se os no tornasse to alinhados e medidos. As palavras saam-lhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificncia do autor. No as proferia como as demais pessoas; cada slaba era por assim dizer espremida, sendo fcil ver ao cabo de alguns minutos, que ele fazia consistir toda a beleza de elocuo nesse alongar do vocbulo. As idias oravam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma cdea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas leves e folgazs. Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um pecado mortal, o stimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influncia da tia podiam servir-lhe nas mos para fazer carreira em alguma coisa pblica; ele, porm, preferia vegetar toa, vivendo do peclio que dos pais herdara e das esperanas que tinha na afeio da baronesa. No se lhe conhecia outra ocupao. No obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicar-se, era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor velha parenta. A baronesa, pela sua parte, queria-lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas afeies principais, quase exclusivas. Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e no menos de si prpria. A baronesa tambm tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses eram deixar felizes aquelas duas crianas. Jorge pela sua parte estava disposto a estender o colo ao sacrifcio; e, bem examinadas as coisas, talvez amasse sinceramente a moa. A diferena entre 27. ele e Estvo que o seu amor era to medido como os seus gestos, e to superficial como as suas outras impresses. Do que a fica dito, facilmente compreender o leitor que, dos dois namorados, s um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estvo andava-lhe nos olhos, enchendo-os de maneira que ele no podia ver nada mais alm de Guiomar. Ao cabo de duas semanas a situao de Estvo podia dizer-se menos m; na opinio dele era excelente. A baronesa soube quem ele era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a inglesa, no menos que a observao prpria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e excludo o perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em graa. Mrs. Oswald navegou nas mesmas guas mansas, O prprio Jorge, naturalmente porque confiava em si, no temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancelos da sua gravidade. Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez? Aquele bom rapaz tinha a salutar crendice da esperana, em que muita vez se resumem todas as bnos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco bastava a content-lo. A imaginao multiplicava os zeros; com um gro de areia construiria um mundo. A afabilidade de uns e a cortesia de outros, tanto bastou para que ele se julgasse quase no termo de suas aspiraes; e posto no lhe desse Guiomar uma s das animaes de outro tempo, que alis to frgeis eram, ainda assim acreditou ele piamente que o amor nascia, ou renascia, naquele rebelde corao. Guiomar, no meio das afeioes que a cercavam, sabia manter-se superior s esperanas de uns e s suspeitas de outros. Igualmente corts, mas igualmente impassvel para todos, movia os olhos com a serenidade da iseno, no namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se quisesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os coraes, conforme eles fossem impacientes ou tbios; faltava-lhe porm o gosto, ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que ela achava que era a sua dignidade pessoal.VIII - GOLPE Um dia de manh acordou Estvo com a resoluo feita de dar o golpe decisivo. Os coraes frouxos tm destas energias sbitas, e prprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma. Ele confessava que nada havia feito, e que a situao exigia alguma coisa mais. Nunca as circunstncias foram mais propcias do que hoje, pensava o rapaz; Guiomar trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, h nela esprito elevado; h de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala. A resoluo estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estvo hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmitilo por via do papel. Qualquer dos modos tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele receava ser frio na declarao escrita ou incompleto na confuso oral. Irresoluto e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos 28. intervalos; enfim, diferiu a escolha para outra ocasio. O acaso supriu a resoluo, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito. Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram passear chcara. Estvo que, como Lus Alves, era dos convivas, afastou-se gradualmente dos outros grupos, e aproximou-se daquela cerca histrica onde, aps dois anos de ausncia e esquecimento, vira, j transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os olhos nesse stio, depois da conversa, que a tivera com ela. A comoo que sentiu foi naturalmente grande, ressurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o cu brilhante, o doce alento da manh, e por fim a figura da moa, que ali apareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recordaes, que ele julgava mortas, esperanas que supunha impossveis. Estvo curvou a cabea ao doce peso daquelas memrias, a alma bebeu, a largos haustos, a vida toda que a imaginao lhe criava e talvez a noite o tomasse na mesma atitude, se a voz maviosa de Guiomar, lhe no dissesse a poucos passos de distncia: Sr. doutor, perdeu alguma coisa? O rapaz volveu rapidamente a cabea, e viu a moa, que atravessava uma das calhes prximas, a olhar e a sorrir para ele. Estvo sorriu tambm, e com uma presena de esprito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como ele era, prontamente respondeu: No perdi nada, mas achei uma coisa. Vejamos o que foi. E Guiomar aproximou-se, a passo firme e seguro, e Estvo, sem muito vacilar, ali mesmo forjou uma reflexo filosfica a respeito de um inseto que casualmente passava por cima de uma folha seca. A reflexo no valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forada e de acarreto; a moa sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando ele, colhendo as foras todas, a fez deter com estas palavras: E se eu tivesse achado outra coisa? Ainda mais! exclamou ela voltando-se risonha. Estvo deu dois passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moa fez-se sria e disps-se a ouvi-lo. Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperana e de saudade, um passado que eu julgara no reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na solido, nutrida e consolada de minhas prprias lgrimas? Se eu tivesse achado aqui a pgina rota de uma histria comeada e interrompida, no por culpa de ningum na terra, mas da estrela sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no cu, e que, talvez, talvez ningum nunca apagar? Estvo calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar. 29. Aquela declarao repentina e rosto a rosto estava to longe do temperamento do rapaz, que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Ele prprio admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia dos lbios da moa, repassava na memria, alis confusamente, o que to a frouxo lhe sara do peito naquela hora de abenoada temeridade. Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, natural que preferisse achar outra coisa menos melanclica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta ocasio de falar, com a viva imaginao que Deus lhe deu; num ou noutro caso, porm, posso decerto lastim-lo ou admir-lo, mas no me dado ouvi-lo. E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estvo, receando perder a ocasio que a fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e splice: Atenda-me um s minuto! No um, mas dez respondeu a moa estacando o passo e voltando o rosto para ele e sero provavelmente os ltimos em que falaremos a ss. Cedo comiserao que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silncio em que se tem conservado at hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma s palavra. A moa falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impacincia do que a comiserao a que vinha de aludir. O corao de Estvo batia-lhe como nunca, como o corao costuma bater nas crises de uma angstia suprema. Todo aquele castelo de vento, laboriosamente construdo nos seus dias de iluso, todo ele se esboroava e desfazia, como vento que era. Estvo arrependera-se do impulso que o levara a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos ntimos, a abrir mo de tantas esperanas, alimentadas com o melhor do seu sangue juvenil. Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medirse, ela serena e quieta, ele trmulo e gelado. Uma s palavra, repetiu Estvo, e essa adivinho que ser de desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma coisa, fora que lhe diga tudo, feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a que j agora posso aspirar, o seu remorso. Guiomar ouvira-o tranqilamente; a ltima palavra f-la estremecer. Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntrio e esperou. A narrao foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasio, o lugar e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estvo nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera outrora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanas que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar de perto, de gozar naquele escasso ponto da terra a maior de todas as bem-aventuranas. Tal a transcrio, no literal, mas fiel, do que disse Estvo durante esses dez minutos. As palavras caam-lhe trmulas e a voz saia-lhe sumida, em parte porque ele forcejava em a 30. abafar, a fim de que o no ouvissem, em parte porque a comoo lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloqncia vinha do corao. Guiomar no ouvira tudo com a mesma expresso; a princpio um meio riso parecia desabrochar-lhe os lbios, mas no tardou que pelo rosto abaixo lhe casse um vu mais compassivo e humano. Havia nela impacincia e ansiedade de acabar, de sair dali; era, sem dvida, o receio de que a ausncia se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia tambm comiserao e piedade. Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estvo concluindo; sobretudo agora, s eu, s a minha cabea a causa nica de tudo. Parecia-me ver o contrrio do que existia; cheguei a supor que havia em seu corao alguma coisa que no era a total indiferena; vejo que foi tudo iluso. O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que a ficam, todas humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submisso assim devia por fora comover a uma mulher amada. Guiomar falou-lhe sem azedume: Era iluso, disse ela. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ningum o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso? Nenhuma. Nem o senhor tambm, e espero que esta mtua justia avigore o sentimento de estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, no pode haver outra coisa, da minha parte ao menos. pouco, decerto... No pouco, coisa diferente, interrompeu Estvo. Mas no espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupo. Estvo abriu a boca para falar, mas no achou palavra que lhe dissesse o que sentia; levou a mo ao corao, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela com os olhos secos e parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquele desengano, que lhe cumpria no voltar ali mais, pelo menos com a assiduidade da esperana; e assim era que a nica e amarga satisfao de a ver, nem essa j agora se lhe consentia. Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vena-se a si prprio; seu grande defeito ter ficado com a alma criana. Talvez, respondeu o moo suspirando. E adeus. Falamos a ss, mais do que convinha; no sei se outra consentiria nisto. Mas eu no s reconheo os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspiraes impossveis. 31. Guiomar estendeu-lhe a mo, em que ele tocou levemente. A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braas de distncia; vinha encostada ao brao do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela j no ouvia. Tinha os olhos cravados nos dois interlocutores de h pouco. A moa, apenas vira de longe a madrinha, deu afoitamente o brao a Estvo, e seguiram ambos a encontrar-se com ela; o rosto de Guiomar no revelava nada; o de Estvo vinha perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa: Jorge, disse ela em voz baixa, precisamos conversar.IX - CONSPIRACO A baronesa, quando se lhe aproximaram os dois interlocutores da cerca, mais receosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e at gracejadora; mas o abatimento de Estvo era to mal disfarado, que de duas uma, ou ela acabava de lhe dar o ltimo desengano, ou aquilo era apenas um arrufo srio, que o moo no podia ou no queria esconder de olhos estranhos. Isto o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma coisa em favor do maior, do nico sonho da sua velhice. Jorge no percebeu a verdadeira razo por que a tia lhe dissera ser necessrio conversar com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevo, mas estava longe de supor todo o alcance da entrevista. A entrevista no pde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali at tarde, e a noite foi a mais agradvel e distrada de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto, tantas vezes pensativo, mas agora to frio e to nu. No ser preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque mister hav-la, e muita, para vir at aqui, e seguir at o fim, uma histria, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns sentinentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa no se animaria a fazer; no ser preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estvo. Ele no podia sup-la abatida; mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e quisera sair. Na alcova, se ele pudesse v-la mais tarde na alcova, solitria e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mos no regao e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali no s ele a adoraria de joelhos, mas at poderia supor que alguma preocupao lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele prprio. Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar no tinha um corao to mau, que 32. lhe no doessem as mgoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupao, a verdade que ela durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona janela, que abriu toda, para contemplar a noite, o luar que batia nas guas, o cu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que a mais desconsoladora lio que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitaes, lutas, nsias, paixes insaciveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassvel e muda como a morte. Pensaria nisto Guiomar? No, no pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o corao, vivia em plena aurora. Que lhe importava, ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e rida? Ela vivia do presente e do futuro e, tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambies que lho enchiam, tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido. A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acord-la, na forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo dedicao filial de que j dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi diferente do dos outros dias. Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saram a uma visita. A baronesa ficou s; Jorge no a deixou ficar s por muito tempo, porque chegou da a pouco. A baronesa no perdeu tempo em circunlquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o diretamente. Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar. Jorge no contava muito com semelhante interrogao; todavia, no era to ingnuo que corasse, nem to apaixonado que lhe tremesse a voz. Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente: No me atrevia a falar-lhe destas coisas... Por que no? interrompeu a baronesa; so assuntos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nenhum de ns. ento verdade o que me disse Mrs. Oswald? . Amas deveras, ou... Deveras. Recuaria, se visse que uma aliana entre ns ficava mal ao lustre de nossa famlia; mas, posto que ela seja... Guiomar minha filha, apressou-se a dizer a baronesa. Justamente; no pode haver melhor ttulo. 33. Tem ainda outro, continuou a baronesa; uma alma anglica e pura. Henriqueta no teve melhor corao nem mais amor aos seus. Alm disso, a natureza deu-lhe um esprito superior, de maneira que a fortuna no fez mais do que emendar o equvoco do nascimento. Finalmente de uma beleza pouco comum... Rara, titia, pode dizer que de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma coisa, que no era a gravidade de costume. J vs, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e mo de um homem, como tu. A baronesa tinha um corao ingnuo e liso, sem desvios nem astcias; contudo, h ocasies em que o mais reto esprito emprega, como por instinto, finuras diplomticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquela unio do sobrinho com a afilhada, que no confiava s do amor; procurava interessar-lhe tambm o amor-prprio. Jorge curvou-se com afetada modstia. Um homem, como eu, disse ele vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam. S uma, Jorge, s uma qualidade santssima: a de am-los, a ti e a ela. Por isso foi imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que se eu tivesse a fortuna de ver a vocs unidos e felizes, morreria contente. Oh! isso! disse Jorge com ar de dvida. Julgas impossvel o casamento? Impossvel, no; impossvel, nada h. Mas... mas suponho que a vontade dela indispensvel, to indispensvel como duvidosa. Duvidosa! Ests certo disso? Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, no agitado de todo, mas um pouco fora da impassibilidade usual. A idia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais possvel e exeqvel, desde que a tia francamente lhe propusesse aliana. Ests certo disso? repetiu a baronesa. Certo no; mas h toda a razo para a dvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e contudo no me d o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos. Jorge exps longamente todas as razes que tinha para crer que a vontade de Guiomar no correspondia dele; referiu-lhe, com a maior exao e fidelidade, uns trs ou quatro episdios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa no ouvia tudo com igual ateno. Quando ele acabou: Guiomar ser muito vexada, disse ela e s vezes, e por isso mesmo, tem essas 34. aparncias frias. Nada impede, porm, a que venha a amar-te, se que j te no ama. H nela certa altivez natural, que pode explicar tambm essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de algum que julgasse levant-la at si. Isso, talvez... Mas esse sentimento, que pode ser e honroso, no decerto invencvel. Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lbios pairava agora um sorriso de ntima satisfao. De quando em quando no ouvia ele nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si prprio. O amor de Guiomar comeava a parecer-lhe possvel; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razovel, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situao. Demais, at que ponto a baronesa conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no corao da moa. Estas reflexes f-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a idia que ultimamente indicara. At aquele dia havia ele limitado toda a sua ao a alguns olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animao; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquela paz armada. Guiomar chegou da a pouco e achou-os na "saleta de trabalho", eufemismo elegante, que queria dizer literalmente saleta de conversao entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ela; ambas riam alegremente de no sei que episdio visto no caminho. Jorge erguerase, pausado mas risonho, apertou a mo de Guiomar, apertou-a deveras, mais do que era usual e corts. Guiomar no pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela sade, transmitiu madrinha as lembranas que lhe mandavam e dispsse a sair. Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplao de toda aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possvel a aliana h muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestgios lbricos, donde se podia colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcdico, editaria pela milionsima vez a comparao da Vnus e dos seus infalveis amorinhos; comparao detestvel, sobretudo, porque a casta beleza de moa, se alguma coisa pag lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho. Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa deralhe nervo e resoluo, e o quadro do casamento comeou a desenhar-se-lhe no esprito, como o relgio que o menino tem de usar pela primeira vez. At ali deixara-se ele ir feio das guas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar riba feliz do matrimnio. As dvidas de Jorge no lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da pena, e lanou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confisso elegante e polida, que todavia refundiu duas ou trs vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redao final, transcreveu aquela prosa do corao na mais ntida folha que havia em casa, dobrou o escrito e meteu-o na algibeira. 35. De noite foi casa da tia. Achou as senhoras volta de uma mesa; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francs, recentemente publicado em Paris e trazido pelo ltimo paquete. Mrs. Oswald lia tambm, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edio Constable, de Edimburgo. Jorge veio interromp-las um pouco, mas s interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando ele prprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o ch, veio depois a hora de recolher, e a baronesa deu por findo o sero, ainda que o livro estava quase findo. Um captulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mos. A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lanou aquela dedicao do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono. Eu que no me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro comigo. Ah! disse Jorge com um gesto de satisfao. E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha at porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a pgina e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender inglesa. Se ela chegou a entender, v-lo-emos depois; o certo que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a pgina marcada, no com a fita que l estava pendente, mas com um pedacinho de papel. O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centmetros de altura; mas por mais exguas que tivesse as dimenses, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que uma tempestade prxima.X - A REVELACO Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de Jorge. No tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, recendendo a amores. O esprito de Guiomar estava to longe daquilo que no suspeitou nada e distraidamente o abriu. A primeira palavra escrita era o seu nome; a lti