Machado der Assis

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NO ALTO O DESFECHO Prometeu sacudiu os braços manietados E súplice pediu a eterna compaixão, Ao ver o desfilar dos séculos que vão Pausadamente, como um dobre de finados. Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião, Uns cingidos de luz, outros ensangüentados... Súbito, sacudindo as asas de tufão, Fita-lhe a água em cima os olhos espantados. Pela primeira vez a víscera do herói, Que a imensa ave do céu perpetuamente rói, Deixou de renascer às raivas que a consomem. Uma invisível mão as cadeias dilui; Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui; Acabara o suplício e acabara o homem. CÍRCULO VICIOSO Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: — "Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: — "Pudesse eu copiar o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!" Mas a lua, fitando o sol, com azedume: — "Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: — "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?" UMA CRIATURA Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

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Poesias

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  • NO ALTO

    O DESFECHO Prometeu sacudiu os braos manietadosE splice pediu a eterna compaixo,Ao ver o desfilar dos sculos que voPausadamente, como um dobre de finados. Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilio, Uns cingidos de luz, outros ensangentados...Sbito, sacudindo as asas de tufo,Fita-lhe a gua em cima os olhos espantados. Pela primeira vez a vscera do heri,Que a imensa ave do cu perpetuamente ri,Deixou de renascer s raivas que a consomem. Uma invisvel mo as cadeias dilui;Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;Acabara o suplcio e acabara o homem. CRCULO VICIOSO Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"Mas a estrela, fitando a lua, com cime: "Pudesse eu copiar o transparente lume,Que, da grega coluna gtica janela,Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"Mas a lua, fitando o sol, com azedume: "Msera! tivesse eu aquela enorme, quelaClaridade imortal, que toda a luz resume!"Mas o sol, inclinando a rtila capela: "Pesa-me esta brilhante aurola de nume...Enfara-me esta azul e desmedida umbela...Por que no nasci eu um simples vaga-lume?" UMA CRIATURA Sei de uma criatura antiga e formidvel,Que a si mesma devora os membros e as entranhasCom a sofreguido da fome insacivel. Habita juntamente os vales e as montanhas;E no mar, que se rasga, maneira de abismo,Espreguia-se toda em convulses estranhas.

  • Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,Parece uma expanso de amor e de egosmo. Friamente contempla o desespero e o gozo,Gosta do colibri, como gosta do verme,E cinge ao corao o belo e o monstruoso. Para ela o chacal , como a rola, inerme;E caminha na terra imperturbvel, comoPelo vasto areal um vasto paquiderme. Na rvore que rebenta o seu primeiro gomoVem a folha, que lento e lento se desdobra,Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois essa criatura est em toda a obra:Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;E nesse destruir que as suas foras dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto;Comea e recomea uma perptua lida,E sorrindo obedece ao divino estatuto.Tu dirs que a Morte; eu direi que a Vida. A ARTUR DE OLIVEIRA, ENFERMO Sabes tu de um poeta enorme

    Que andar no usaNo cho, e cuja estranha musa,

    Que nunca dorme, Cala o p, melindroso e leve,

    Como uma pluma,De folha e flor, de sol e neve,

    Cristal e espuma; E mergulha, como Leandro,

    A forma raraNo P, no Sena, em Guanabara

    E no Escamandro; Ouve a Tup e escuta a Momo,

    Sem controvrsia,E tanto ama o trabalho, como

    Adora a inrcia; Ora do fuste, ora da ogiva,

    Sair parece;Ora o Deus do ocidente esquece

    Pelo deus Siva; Gosta do estrpito infinito,

    Gosta das longasSolides em que se ouve o grito

    Das arapongas; E, se ama o lpido besouro,

  • Que zumbe, zumbe,E a mariposa que sucumbe

    Na flama de ouro, Vaga-lumes e borboletas,

    Da cor da chama,Roxas, brancas, rajadas, pretas,

    No menos ama Os hipoptamos tranqilos,

    E os elefantes,E mais os bfalos nadantes

    E os crocodilos, Como as girafas e as panteras,

    Onas, condores,Toda a casta de bestas-feras

    E voadores. Se no sabes quem ele seja

    Trepa de um salto,Azul acima, onde mais alto A guia negreja; Onde morre o clamor inquo Dos violentos,Onde no chega o riso oblquo Dos fraudulentos; Ento, olha de cima posto Para o oceano,Vers num longo rosto humano Teu prprio rosto. E hs de rir, no do riso antigo, Potente e largo,Riso de eterno moo amigo, Mas de outro amargo, Como o riso de um deus enfermo Que se aborreceDa divindade, e que apetece Tambm um termo... MUNDO INTERIOR Ouo que a Natureza uma lauda eternaDe pompa, de fulgor, de movimento e lida,Uma escala de luz, uma escala de vida De sol nfima luzerna. Ouo que a natureza, a natureza externa, Tem o olhar que namora, e o gesto que intimidaFeiticeira que ceva uma hidra de Lerna Entre as flores da bela Armida. E contudo, se fecho os olhos, e mergulhoDentro em mim, vejo luz de outro sol, outro abismoEm que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

  • Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,E, como o outro, guarda em seu mbito enorme,Um segredo que atrai, que desafia e dorme. O CORVO

    (EDGAR POE)

    Em certo dia, hora, hora Da meia-noite que apavora,Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, Ao p de muita lauda antiga, De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi porta Do meu quarto um soar devagarinho, E disse estas palavras tais:" algum que me bate porta de mansinho; H de ser isso e nada mais." Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial dezembro;Cada brasa do lar sobre o cho refletia A sua ltima agonia.

    Eu, ansioso pelo sol, buscavaSacar daqueles livros que estudavaRepouso (em vo!) dor esmagadora

    Destas saudades imortaisPela que ora nos cus anjos chamam Lenora. E que ningum chamar mais. E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordandoDentro em meu corao um rumor no sabido, Nunca por ele padecido. Enfim, por aplac-lo aqui no peito, Levantei-me de pronto, e: "Com efeito, (Disse) visita amiga e retardada Que bate a estas horas tais. visita que pede minha porta entrada: H de ser isso e nada mais." Minh'alma ento sentiu-se forte; No mais vacilo e desta sorteFalo: "Imploro de vs, ou senhor ou senhora, Me desculpeis tanta demora. Mas como eu, precisando de descanso, J cochilava, e to de manso e manso Batestes, no fui logo, prestemente, Certificar-me que a estais."Disse; a porta escancaro, acho a noite somente, Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra,E sonho o que nenhum mortal h j sonhado, Mas o silncio amplo e calado, Calado fica; a quietao quieta; S tu, palavra nica e dileta,

  • Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca sais;E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espao; Foi isso apenas, nada mais. Entro coa alma incendiada. Logo depois outra pancadaSoa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: "Seguramente, h na janela Alguma cousa que sussurra. Abramos,Eia, fora o temor, eia, vejamos A explicao do caso misterioso

    Dessas duas pancadas tais. Devolvamos a paz ao corao medroso, Obra do vento e nada mais."

    Abro a janela, e de repente, Vejo tumultuosamente

    Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. No despendeu em cortesias Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, Movendo no ar as suas negras alas, Acima voa dos portais,

    Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas; Trepado fica, e nada mais. Diante da ave feia e escura, Naquela rgida postura,Com o gesto severo, o triste pensamento Sorriu-me ali por um momento,E eu disse: "O tu que das noturnas plagas Vens, embora a cabea nua tragas, Sem topete, no s ave medrosa, Dize os teus nomes senhoriais;Como te chamas tu na grande noite umbrosa?" E o corvo disse: "Nunca mais". Vendo que o pssaro entendia A pergunta que lhe eu fazia,Fico atnito, embora a resposta que dera Dificilmente lha entendera. Na verdade, jamais homem h visto Cousa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta Num busto, acima dos portais,Ouvir uma pergunta e dizer em resposta Que este seu nome: "Nunca mais". No entanto, o corvo solitrio No teve outro vocabulrio,Como se essa palavra escassa que ali disse Toda a sua alma resumisse. Nenhuma outra proferiu, nenhuma, No chegou a mexer uma s pluma, At que eu murmurei: "Perdi outrora Tantos amigos to leais!Perderei tambm este em regressando a aurora." E o corvo disse: "Nunca mais!"

  • Estremeo. A resposta ouvida to exata! to cabida!"Certamente, digo eu, essa toda a cincia Que ele trouxe da convivncia De algum mestre infeliz e acabrunhado Que o implacvel destino h castigado To tenaz, to sem pausa, nem fadiga, Que dos seus cantos usuaisS lhe ficou, na amarga e ltima cantiga, Esse estribilho: "Nunca mais". Segunda vez, nesse momento, Sorriu-me o triste pensamento;Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; E mergulhando no veludo Da poltrona que eu mesmo ali trouxera Achar procuro a lgubre quimera, A alma, o sentido, o pvido segredo Daquelas slabas fatais,Entender o que quis dizer a ave do medo Grasnando a frase: "Nunca mais". Assim posto, devaneando, Meditando, conjeturando,No lhe falava mais; mas, se lhe no falava, Sentia o olhar que me abrasava. Conjeturando fui, tranqilo a gosto, Com a cabea no macio encosto Onde os raios da lmpada caam, Onde as tranas angelicaisDe outra cabea outrora ali se desparziam, E agora no se esparzem mais. Supus ento que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso,Obra de serafins que, pelo cho roando Do quarto, estavam meneando Um ligeiro turbulo invisvel; E eu exclamei ento: "Um Deus sensvel Manda repouso dor que te devora Destas saudades imortais.Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora." E o corvo disse: "Nunca mais". Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demnio que negrejas!Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno Onde reside o mal eterno, Ou simplesmente nufrago escapado Venhas do temporal que te h lanado Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo Tem os seus lares triunfais,Dize-me: existe acaso um blsamo no mundo?" E o corvo disse: "Nunca mais". Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demnio que negrejas!Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! Por esse cu que alm se estende, Pelo Deus que ambos adoramos, fala,

  • Dize a esta alma se dado inda escut-la No den celeste a virgem que ela chora Nestes retiros sepulcrais,Essa que ora nos cus anjos chamam Lenora! E o corvo disse: "Nunca mais". Ave ou demnio que negrejas! Profeta, ou o que quer que sejas!Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa! Regressa ao temporal, regressa tua noite, deixa-me comigo. Vai-te, no fique no meu casto abrigo Pluma que lembre essa mentira tua. Tira-me ao peito essas fataisGarras que abrindo vo a minha dor j crua." E o corvo disse: "Nunca mais". E o corvo a fica; ei-lo trepado No branco mrmore lavradoDa antiga Palas; ei-lo imutvel, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demnio sonhando. A luz cada Do lampio sobre a ave aborrecida No cho espraia a triste sombra; e, fora Daquelas linhas funeraisQue flutuam no cho, a minha alma que chora No sai mais, nunca, nunca mais! PERGUNTAS SEM RESPOSTA Vnus Formosa, Vnus fulguravaNo azul do cu da tarde que morria,Quando janela os braos encostava Plida Maria. Ao ver o noivo pela rua umbrosa,Os longos olhos vidos enfia,E fica de repente cor-de-rosa Plida Maria. Correndo vinha no cavalo baio,Que ela de longe apenas distinguia,Correndo vinha o noivo, como um raio... Plida Maria! Trs dias so, trs dias so apenas,Antes que chegue o suspirado dia,Em que eles poro termo s longas penas... Plida Maria! De confusa, naquele sobressalto,Que a presena do amado lhe trazia,Olhos acesos levantou ao alto Plida Maria. E foi subindo, foi subindo acimaNo azul do cu da tarde que morria,A ver se achava uma sonora rima... Plida Maria!

  • Rima de amor, ou rima de ventura,As mesmas so na escala da harmonia.Pousa os olhos em Vnus que fulgura Plida Maria. E o corao, que de prazer lhe bate,Acha no astro a fraterna melodiaQue natureza inteira d rebate... Plida Maria! Maria pensa: "Tambm tu, decerto,Esperas ver, neste final do dia,Um noivo amado que cavalga perto, Plida Maria? Isto dizendo, sbito escutavaUm estrpito, um grito e vozeria,E logo a frente em nsias inclinava Plida Maria. Era o cavalo, rbido, arrastandoPelas pedras o noivo que morria;Maria o viu e desmaiou gritando... Plida Maria! Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,E a mesma noiva, semimorta e fria,Sobre ele as folhas do noivado espalha. Plida Maria! Cruzam-se as mos, na derradeira preceMuda que o homem para cima envia,Antes que desa terra em que apodrece. Plida Maria! Seis homens tomam do caixo fechadoE vo lev-lo cova que se abria;Terra e cal e um responso recitado... Plida Maria! Quando, trs sis passados, rutilavaA mesma Vnus, no morrer do dia,Tristes olhos ao alto levantava Plida Maria. E murmurou: "Tens a expresso do goivo,Tens a mesma roaz melancolia;Certamente perdeste o amor e o noivo, Plida Maria? Vnus, porm, Vnus brilhante e bela,Que nada ouvia, nada respondia,Deixa rir ou chorar numa janela Plida Maria. TO BE OR NOT TO BE

  • (SHAKESPEARE)

    Ser ou no ser, eis a questo. Acaso mais nobre a cerviz curvar aos golpesDa ultrajosa fortuna, ou j lutandoExtenso mar vencer de acerbos males?Morrer, dormir, no mais. E um sono apenas,Que as angstias extingue e carne a heranaDa nossa dor eternamente acaba,Sim, cabe ao homem suspirar por ele.Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!Ai, eis a dvida. Ao perptuo sono,Quando o lodo mortal despido houvermos,Que sonhos ho de vir? Pes-lo cumpre.Essa a razo que os lutuosos diasAlonga do infortnio. Quem do tempoSofrer quisera ultrajes e castigos,Injrias da opresso, baldes do orgulho,Do mal prezado amor choradas mgoas,Das leis a inrcia, dos mandes a afronta,E o vo desdm que de rasteiras almasO paciente mrito recebe,Quem, se na ponta da despida lminaLhe acenara o descanso? Quem ao pesoDe uma vida de enfados e misriasQuereria gemer, se no sentiraTerror de alguma no sabida cousaQue aguarda o homem para l da morte,Esse eterno pas misteriosoDonde um viajor sequer h regressado?Este s pensamento enleia o homem;Este nos leva a suportar as doresJ sabidas de ns, em vez de abrirmosCaminho aos males que o futuro esconde,E a todos acovarda a conscincia.Assim da reflexo luz mortiaA viva cor da deciso desmaia;E o firme, essencial cometimento,Que esta idia abalou, desvia o curso,Perde-se, at de ao perder o nome. LINDIA Vem, vem das guas, msera Moema,Senta-te aqui. As vozes lastimosasTroca pelas cantigas deleitosas,Ao p da doce e plida Coema. Vs, sombras de Iguau e de Iracema,Trazei nas mos, trazei no colo as rosasQue o amor desabrochou e fez viosasNas laudas de um poema e outro poema. Chegai, folgai, cantai. esta, estaDe Lindia, que a voz suave e forteDo vate celebrou, a alegre festa. Alm do amvel, gracioso porte,Vede o mimo, a ternura que lhe resta.

  • Tanto inda bela no seu rosto a morte! SUAVE MARI MAGNO Lembra-me que, em certo dia,Na rua, ao sol de vero,Envenenado morria Um pobre co. Arfava, espumava e ria,De um riso esprio e bufo,Ventre e pernas sacudia Na convulso. Nenhum, nenhum curiosoPassava, sem se deter, Silencioso, Junto ao co que ia morrer,Como se lhe desse gozo Ver padecer. A MOSCA AZUL Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indosto,Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada, Em certa noite de vero. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia Refulgindo ao claro do solE da lua, melhor do que refulgiria Um brilhante do Gro-Mogol. Um pole que a viu, espantado e tristonho, Um pole lhe perguntou:"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que to ensinou?" Ento ela, voando, e revoando, disse: "Eu sou a vida, eu sou a florDas graas, o padro da eterna meninice, E mais a glria, e mais o amor". E ele deixou-se estar a contempl-la, mudo, E tranqilo, como um faquir,Como algum que ficou deslembrado de tudo, Sem comparar, nem refletir. Entre as asas do inseto, a voltear no espao, Uma cousa lhe pareceuQue surdia, com todo o resplendor de um pao E viu um rosto, que era o seu. Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o colo nuUm imenso colar de opala, e uma safira Tirada do corpo de Vichnu.

  • Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, Aos ps dele, no liso cho,Espreguiam sorrindo as suas graas finas, E todo o amor que tm lhe do. Mudos, graves, de p, cem etopes feios, Com grandes leques de avestruz,Refrescam-lhes de manso os aromados seios, Voluptuosamente nus. Vinha a glria depois; quatorze reis vencidos, E enfim as preas triunfaisDe trezentas naes, e os parabns unidos Das coroas ocidentais. Mas o melhor de tudo que no rosto aberto Das mulheres e dos vares,Como em gua que deixa o fundo descoberto, Via limpos os coraes. Ento ele, estende a mo calosa e tosca, Afeita a s carpintejar,Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quis v-la, quis saber a causa do mistrio. E, fechando-a na mo, sorriuDe contente, ao pensar que ali tinha um imprio, E para casa se partiu. Alvoroado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupaoMiudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua iluso. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baa, nojenta, vil,Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Viso fantstica e sutil. Hoje, quando ele a vai, de alo e cardamomo Na cabea, com ar taful,Dizem que ensandeceu, e que no sabe como Perdeu a sua mosca azul. ANTNIO JOS

    (21 de outubro de 1739) Antnio, a sapincia da EscrituraClama que h para a humana criaturaTempo de rir e tempo de chorar,Como h um sol no ocaso, e outro na aurora.Tu, sangue de Efraim e de Issacar, Pois que j riste, chora.

  • ESPINOSA Gosto de ver-te, grave e solitrio,Sob o fumo de esqulida candeia,Nas mos a ferramenta de operrio,E na cabea a coruscante idia. E enquanto o pensamento delineiaUma filosofia, o po dirioA tua mo a labutar granjeiaE achas na independncia o teu salrio. Soem c fora agitaes e lutas,Sibile o bafo asprrimo do inverno,Tu trabalhas, tu pensas, e executas Sbrio, tranqilo, desvelado e terno,A lei comum, e morres, e transmutasO suado labor no prmio eterno. GONALVES CRESPO Esta musa da ptria, esta saudosa Niobe dolorida, Esquece acaso a vida,Mas no esquece a morte gloriosa. E plida, e chorosa,Ao Tejo voa, onde no cho cada Jaz aquela evadidaLira da nossa Amrica viosa. Com ela torna, e, dividindo os ares,Trpido, mole, doce movimentoSente nas frouxas cordas singulares. No a asa do vento,Mas a sombra do filho, no momentoDe entrar perpetuamente os ptrios lares. ALENCAR Ho de anos volver, no como as nevesDe alheios climas, de geladas cores;Ho de os anos volver, mas como as flores,Sobre o teu nome, vvidos e leves... Tu, cearense musa, que os amoresMeigos e tristes, rsticos e breves,Da indiana escreveste, ora os escrevesNo volume dos ptrios esplendores. E ao tornar este sol, que te h levado,J no acha a tristeza. Extinto o diaDa nossa dor, do nosso amargo espanto.

  • Porque o tempo implacvel e pausado,Que o homem consumiu na terra fria,No consumiu o engenho, a flor, o encanto... CAMES I Tu quem s? Sou o sculo que passa.Quem somos ns? A multido fremente.Que cantamos? A glria resplendente.De quem? De quem mais soube a fora e a graa. Que cantou ele? A vossa mesma raa.De que modo? Na lira alta e potente.A quem amou? A sua forte gente.Que lhe deram? Penria, ermo, desgraa. Nobremente sofreu? Como homem forte.Esta imensa oblao?... -lhe devida.Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte. Chama-se a isto? A glria apetecida.Ns, que o cantamos?... Volvereis morte.Ele, que morto?... Vive a eterna vida. II Quando, transposta a lgubre moradaDos castigos, ascende o florentino regio onde o claro divinoEnche de intensa luz a alma nublada, A saudosa Beatriz, a antiga amada,A mo lhe estende e guia o peregrino,E aquele olhar etreo e cristalinoRompe agora da plpebra sagrada. Tu, que tambm o Purgatrio andaste,Tu, que rompeste os crculos do Inferno,Cames, se o teu amor fugir deixaste, Ora o tens, como um guia alto e supernoQue a Natrcia da vida que chorasteChama-se Glria e tem o amor eterno. III Quando, torcendo a chave misteriosaQue os cancelos fechava do Oriente,O Gama abriu a nova terra ardenteAos olhos da companha valorosa, Talvez uma viso resplandecenteLhe amostrou no futuro a sonorosaTuba, que cantaria a ao famosaAos ouvidos da prpria e estranha gente.

  • E disse: "Se j noutra, antiga idade,Tria bastou aos homens, ora queroMostrar que mais humana a humanidade. Pois no sers heri de um canto fero,Mas vencers o tempo e a imensidadeNa voz de outro moderno e brando Homero." IV Um dia, junto foz de brando e amigoRio de estranhas gentes habitado,Pelos mares asprrimos levado,Salvaste o livro que viveu contigo. E esse que foi s ondas arrancado,J livre agora do mortal perigo,Serve de arca imortal, de eterno abrigo,No s a ti, mas ao teu bero amado. Assim, um homem s, naquele dia,Naquele escasso ponto do universo,Lngua, histria, nao, armas, poesia, Salva das frias mos do tempo adverso.E tudo aquilo agora o desafia.E to sublime preo cabe em verso. 1802-1885 Um dia, celebrando o gnio e a eterna vida,Victor Hugo escreveu numa pgina forteEstes nomes que vo galgando a eterna morte,Isaas, a voz de bronze, alma sadaDa coxa de Davi; squilo que a OrestesE a Prometeu, que sofre as vinganas celestesDeu a nota imortal que abala e persuade,E transmite o terror, como excita a piedade.Homero, que cantou a clera potenteDe Aquiles, e colheu as lgrimas troianasPara glria maior da sua amada gente,E com ele Virglio e as graas virgilianas;Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombroDos tiranos, e o velho e grave florentino,Que mergulha no abismo, e caminha no assombro,Baixa humano ao inferno e regressa divino;Logo aps Caldern, e logo aps Cervantes;Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria;E, para coroar esses nomes vibrantes,Shakespeare, que resume a universal poesia. E agora que ele a vai, galgando a eterna morte,Pega a Histria da pena e na pgina forte,Para continuar a srie interrompida,Escreve o nome dele, e d-lhe a eterna vida.

  • JOS DE ANCHIETA Esse que as vestes speras cingia,E a viva flor da ardente juventudeDentro do peito a todos escondia; Que em pginas de areia vasta e rudeOs versos escrevia e encomendava mente, como esforo de virtude; Esse nos rios de Babel achava,Jerusalm, os cantos primitivos,E novamente aos ares os cantava. No procedia ento como os cativosDe Sio, consumidos de saudade,Velados de tristeza, e pensativos. Os cantos de outro clima e de outra idadeEnsinava sorrindo s novas gentes,Pela lngua do amor e da piedade. E iam caindo os versos excelentesNo abenoado cho, e iam caindoDo mesmo modo as msticas sementes. Nas florestas os pssaros, ouvindoO nome de Jesus e os seus louvores,Iam cantando o mesmo canto lindo. Eram as notas como alheias floresQue verdejam no meio de verdurasDe diversas origens e primores. Anchieta, soltando as vozes puras,Achas outra Sio neste hemisfrio,E a mesma f e igual amor apuras. Certo, ferindo as cordas do saltrio,Unicamente contas divulg-laA palavra crist e o seu mistrio. Trepar no cuidas a luzente escalaQue os heris cabe e leva clara esferaOnde eterna se faz a humana fala. Onde os tempos no so esta quimeraQue apenas brilha e logo se esvaece,Como folhas de escassa primavera. Onde nada se perde nem se esquece,E no dorso dos sculos trazidoO nome de Anchieta resplandeceAo vivo nome do Brasil unido. SONETO DE NATAL

  • Um homem, era aquela noite amiga,Noite crist, bero do Nazareno, Ao relembrar os dias de pequeno,E a viva dana, e a lpida cantiga, Quis transportar ao verso doce e amenoAs sensaes da sua idade antiga,Naquela mesma velha noite amiga,Noite crist, bero do Nazareno. Escolheu o soneto... A folha brancaPede-lhe a inspirao; mas, frouxa e manca.A pena no acode ao gesto seu. E, em vo lutando contra o metro adverso,S lhe saiu este pequeno verso:"Mudaria o Natal ou mudei eu?" OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE

    (LA FONTAINE) Mal que espalha o terror e que a ira celeste Inventou para castigarOs pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,Capaz de abastecer o Aqueronte num dia, Veio entre os animais lavrar; E, se nem tudo sucumbia, Certo que tudo adoecia.J nenhum, por dar mate ao moribundo alento, Catava mais nenhum sustento.No havia manjar que o apetite abrisse, Raposa ou lobo que sasse Contra a presa inocente e mansa, Rola que rola no fugisse, E onde amor falta, adeus, folgana!O leo convocou uma assemblia e disse:"Scios meus, certamente este infortnio veio A castigar-nos de pecados. Que o mais culpado entre os culpadosMorra por aplacar a clera divina.Para a comum sade esse , talvez, o meio.Em casos tais de uso haver sacrificados; Assim a histria no-lo ensina.Sem nenhuma iluso, sem nenhuma indulgncia, Pesquisemos a conscincia.Quanto a mim, por dar mate ao mpeto gluto, Devorei muita carneirada. Em que que me ofendera? em nada. E tive mesmo ocasioDe comer igualmente o guarda da manada.Portanto, se mister sacrificar-me, pronto. Mas, assim como me acusei,Bom que cada um se acuse, de tal sorteQue (devemos quer-lo, e de todo pontoJusto) caiba ao maior dos culpados a morte."" Meu senhor, acudiu a raposa, ser reiBom demais; provar melindre exagerado.

  • Pois ento devorar carneiros,Raa lorpa e vil, pode l ser pecado? No. Vs fizestes-lhes, senhor, Em os comer, muito favor. E no que toca aos pegureiros,Toda a calamidade era bem merecida, Pois so daquelas gentes taisQue imaginaram ter posio mais subida Que a de ns outros animais".Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso. Ningum do tigre nem do urso,Ningum de outras iguais senhorias do mato, Inda entre os atos mais daninhos, Ousava esmerilhar um ato; E at os ltimos rafeiros, Todos os bichos rezingueiros,No eram, no entender geral, mais que uns santinhos.Eis chega o burro: "Tenho idia que no pradoDe um convento, indo eu a passar, e picadoDa ocasio, da fome e do capim vioso, E pode ser que do tinhoso, Um bocadinho lambisqueiDa plantao. Foi um abuso, isso verdade."Mal o ouviu, a assemblia exclama: "Aqui del-rei!"Um lobo, algo letrado, arenga e persuadeQue era fora imolar esse bicho nefando,Empesteado autor de tal calamidade; E o pecadilho foi julgado Um atentado.Pois comer erva alheia! crime abominando! Era visto que s a mortePoderia purgar um pecado to duro. E o burro foi ao reino escuro. Segundo sejas tu miservel ou forteulicos te faro detestvel ou puro. DANTE

    (INFERNO, canto XXV) Acabara o ladro, e, ao ar erguendoAs mos em figas, deste modo brada:"Olha, Deus, para ti o estou fazendo!" E desde ento me foi a serpe amada,Pois uma vi que o colo lhe prendia,Como a dizer: "no falars mais nada!" Outra os braos na frente lhe cingiaCom tantas voltas e de tal maneiraQue ele fazer um gesto no podia. Ah! Pistia, por que numa fogueiraNo ardes tu, se a mais e mais impuros,Teus filhos vo nessa mortal carreira? Eu, em todos os crculos escuros

  • Do inferno, alma no vi to rebelada.Nem a que em Tebas resvalou dos muros. E ele fugiu sem proferir mais nada.Logo um centauro furioso assomaA bradar: "Onde, aonde a alma danada? Marema no ter tamanha somaDe reptis quanta vi que lhe ouriavaO dorso inteiro desde a humana coma. Junto nuca do monstro se elevavaDe asas abertas um drago que enchiaDe fogo a quanto ali se aproximava. "Aquele Caco, o Mestre me dizia, Que, sob as rochas do Aventino, ousadoLagos de sangue tanta vez abria. No vai de seus irmos acompanhadoPorque roubou malicioso o armentoQue ali pascia na campanha ao lado. Hrcules com a maa e golpes cento,Sem lhe doer um dcimo ao nefando,Ps remate a tamanho atrevimento." Ele falava, e o outro foi andando.No entanto embaixo vinham para nsTrs espritos que s vimos quando Atroara este grito: "Quem sois vs?"Nisto a conversa nossa interrompendoEle, como eu, no grupo os olhos ps. Eu no os conheci, mas sucedendo,Como outras vezes suceder certo,Que o nome de um estava outro dizendo, "Cianfa aonde ficou?" Eu, por que espertoE atento fosse o Mestre em escut-lo,Pus sobre a minha boca o dedo aberto. Leitor, no maravilha que aceit-loOra te custe o que vais ter presente,Pois eu, que o vi, mal ouso acredit-lo. Eu contemplava, quando uma serpenteDe seis ps temerosa se lhe atiraA um dos trs e o colhe de repente. Com os ps do meio o ventre lhe cingira,Com os da frente os braos lhe peava,E ambas as faces lhe mordeu com ira. Os outros dous s coxas lhe alongava,E entre elas insinua a cauda que iaTocar-lhes os rins e dura os apertava. A hera no se enrosca nem se enfia

  • Pela rvore, como a horrvel feraAo pecador os membros envolvia. Como se fossem derretida cera,Um s vulto, uma cor iam tomando,Quais tinham sido nenhum deles era. Tal o papel, se o fogo o vai queimando,Antes de negro estar, e j depoisQue o branco perde, fusco vai ficando. Os outros dous bradavam: "Ora pois,Agnel, ai triste, que mudana essa?Olha que j no s nem um nem dous!" Faziam ambas uma s cabea,E na nica face um rosto misto,Onde eram dous, a aparecer comea. Dos quatro braos dous restavam, e isto,Pernas, coxas e o mais ia mudadoNum tal composto que jamais foi visto. Todo o primeiro aspecto era acabado;Dous e nenhum era a cruel figura,E tal se foi a passo demorado. Qual camaleo, que variar procuraDe sebe s horas em que o sol esquenta,E correndo parece que fulgura, Tal uma curta serpe se apresenta,Para o ventre dos dous corre acendida,Lvida e cor de um bago de pimenta. E essa parte por onde foi nutridaTenra criana antes que luz sasse,Num deles morde, e cai toda estendida. O ferido a encarou, mas nada disse;Firme nos ps, apenas bocejava,Qual se de febre ou sono ali casse. Frente a frente, um ao outro contemplava,E chaga de um, e boca de outro, forteFumo saa e no ar se misturava. Cale agora Lucano a triste morteDe Sabelo e Nasdio, e atento estejaQue o que lhe vou dizer de outra sorte. Cale-se Ovdio e neste quadro vejaQue, se Aretusa em fonte nos h postoE Cadmo em serpe, no lhe tenho inveja. Pois duas naturezas rosto a rostoNo transmudou, com que elas de repenteTrocassem a matria e o ser oposto. Tal era o acordo entre ambas que a serpente

  • A cauda em duas caudas fez partidas,E a alma os ps ajuntava estreitamente. Pernas e coxas vi-as to unidasQue nem leve sinal dava a junturaDe que tivessem sido divididas. Imita a cauda bfida a figuraQue ali se perde, e a pele abranda, ao passoQue a pele do homem se tornava dura. Em cada axila vi entrar um brao,A tempo que iam esticando feraOs dous ps que eram de tamanho escasso. Os ps de trs a serpe os retorceraAt formarem-lhe a encoberta parte,Que no infeliz em ps se convertera. Enquanto o fumo os cobre, e de tal arteA cor lhes muda e pe serpe o veloQue j da pele do homem se lhe parte, Um caiu, o outro ergueu-se, sem torc-loAquele torvo olhar com que ambos iamA trocar entre si o rosto e a v-lo. Ao que era em p as carnes lhe fugiamPara as fontes, e ali do que abundavaDuas orelhas de homem lhe saam. E o que de sobra ainda lhe ficavaO nariz lhe compe e lhe perfazE o lbio lhe engrossou quanto bastava. A boca estende o que por terra jazE as orelhas recolhe na cabea,Bem como o caracol s pontas faz. A lngua, que era ento de uma s pea,E prestes a falar, fendida vi-a,Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa. A alma, que assim tornado em serpe havia,Pelo vale fugiu assobiando,E esta lhe ia falando e lhe cuspia. Logo a recente espdua lhe foi dandoE outra disse: "Ora com Buoso mudo,Rasteje, como eu vinha rastejando!" Assim na cova stima vi tudoMudar e transmudar; a novidadeMe absolva o estilo desornado e rudo. Mas que um tanto perdesse a claridadeDos olhos meus, e turva a mente houvesse,No fugiram com tanta brevidade, Nem to ocultos, que eu no conhecesse

  • Puccio Sciancato, nica ali vindaAlma que a forma prpria no perdesse;O outro chor-lo tu, Gaville, ainda. A FELCIO DOS SANTOS Felcio amigo, se eu disser que os anosPassam correndo ou passam vagarosos,Segundo so alegres ou penosos,Tecidos de afeies ou desenganos, "Filosofia esta de ranosos!"Dirs. Mas no h outra entre os humanos.No se contam sorrisos pelos danos,Nem das tristezas desabrocham gozos. Banal, confesso. O precioso e o raro, seja o cu nublado ou seja claro,Tragam os tempos amargura ou gosto, No desdizer do mesmo velho amigo,Ser com os teus o que eles so contigo,Ter um s corao, ter um s rosto. MARIA Maria, h no seu gesto airoso e nobre,Nos olhos meigos e no andar to brando,Um no sei qu suave que descobre,Que lembra um grande pssaro marchando. Quero, s vezes, pedir-lhe que desdobreAs asas, mas no peo, reparandoQue, desdobradas, podem ir voandoLev-la ao teto azul que a terra cobre. E penso ento, e digo ento comigo:"Ao cu, que v passar todas as gentesBastem outros primores de valia. Pssaro ou moa, fique o olhar amigo,O nobre gesto e as graas excelentesDa nossa cara e lpida Maria." A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS Pensa em ti mesma, achars Melhor poesia,Viveza, graa, alegria, Doura e paz. Se j dei flores um dia, Quando rapaz,As que ora dou tm assaz

  • Melancolia. Uma s das horas tuas Valem um msDas almas j ressequidas. Os sis e as luasCreio bem que Deus os fez Para outras vidas. CLDIA Era Cldia a vergntea ilustre e raraDe uma famlia antiga. Tez morena,Como a casca do pssego, deixavaTransparecer o sangue e a juventude.Era a romana ardente e imperiosaQue os ecos fatigou de Roma inteiraCoa narrao das longas aventuras.Nunca mais gentil fronte o sol da ItliaAmoroso beijou, nem mais graciosoCorpo envolveram tnicas de Tiro.Sombrios, como a morte, os olhos eram.A vermelha botina em si guardavaBreve, divino p. mida boca,Como a rosa que os zfiros convida,Os beijos convidava. Era o modeloDa luxuosa Lmia, aquela moaQue o marido esqueceu, e amou sem pejoO msico Polio. De mais, faziaA ilustre Cldia trabalhados versos;A cabea curvava pensativaSobre as tabelas nuas; invocavaDo clssico Parnaso as musas belas,E, se no mente linguaruda fama,Davam-lhe inspirao vadias musas.O ideal da matrona austera e fria,Caseira e nada mais, esse acabava.Bem hajas tu, patrcia desligadaDe preconceitos vos, tu que presidesAo festim dos rapazes, tu que estendesSobre verdes coxins airosas formas,Enquanto o esposo, consultando os dados,Perde risonho vlidos sestrcios...E tu, viva msera, deixadaNa flor dos anos, merencria e triste,Que seria de ti, se o gozo e o luxoNo te alegrassem a alma? Cedo esqueceA memria de um bito. E bem hajas,Discreto esposo, que morreste a tempo.Perdes, bem sei, dos teus rivais sem contaOs custosos presentes, as ceatas,Os jantares opparos. Contudo,No vers cheia a casa de crianasLoiras obras de artfices estranhos. Baias recebe a celebrada moaEntre festins e jbilos. Faltava

  • Ao pomposo jardim das lcias floresEsta rosa de Paestum. Chega; ela, ela, a amvel dona. O cu ostentaA larga face azul, que o sol no ocasoCoos frouxos raios desmaiado tinge.Terno e brando abre o mar o espmeo seio;Moles respiram viraes do golfo.Cldia chega. Tremei, moas amadas;Ovelhinhas dos plcidos idlios,Roma vos manda esta faminta loba.Prendei, prendei com vnculos de ferro,Os volveis amantes, que os no vejaEsta formosa Pris. Inventai-lhesUm filtro protetor, um filtro ardente,Que o fogo leve aos coraes rendidos,E aos vossos ps eternamente os prenda;Cldia... Mas, quem pudera, a frio e a salvo,Um requebro afrontar daqueles olhosVer-lhe o trgido seio, as mos, o talhe,O andar, a voz, ficar mrmore frioAnte as splices graas? Menor pasmoFora, se ao gladiador, em pleno circo,A pantera africana os ps lambesse,Ou se, cauda de indmito cavalo,Ovantes hostes arrastassem Csar. Coroados de rosas os convivasEntram. Trajam com graa vestes novasTafuis de Itlia, finos e galhardosPatrcios da repblica expirante,E madamas faceiras. Vem entre elesClio, a flor dos vadios, nobre moo,E opulento, o que mais. AmbiciosoQuer triunfar na clssica tribunaE honras aspira at do consulado.Mais custoso lavor no vestem damas,Nem aroma melhor do seio exalam.Tem na altivez do olhar sincero orgulho,E certo que o merece. Entre os rapazesQue noite correm solitrias ruas,Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam,Nenhum como ele, com mais ternas falas,Galanteou, vencendo, as raparigas. Entra: pregam-se nele cobiososOlhos que amor venceu, que amor domina,Olhos fiis ao frvido Catulo.O poeta estremece. Brando e frio,O marido de Cldia os olhos lanaAo mancebo, e um sorriso complacenteA boca lhe abre. Imparcial na luta,Vena Catulo ou Clio, ou venam ambos.No se lhe ope o dono: o aresto aceita. Vistes j como as ondas tumultuosas,Uma aps outra, vm morrer praia,E mal se rompe o espmeo seio quela.J esta corre e expira? Tal no peitoDa calorosa Lsbia nascem, morremAs volveis paixes. Vestal do crime,

  • Dos amores vigia a chama eterna,No a deixa apagar; pronto lhe lanaleo com que a alimente. EnrubescidoDe ternura e desejo o rosto volveAo mancebo gentil. Baldado empenho!Indiferente aos mgicos encantos,Clio contempla a moa. Olhar mais frio,Ningum deitou jamais a graas tantas.Ela insiste; ele foge-lhe. Vexada,A moa inclina lnguida a cabea...Tu nada vs, desapegado esposo,Mas o amante v tudo. Cldia arrancaUma rosa da fronte, e as folhas deitaNa taa que enche generoso vinho."Clio, um brinde aos amores!" diz, e entrega-lha.O cortejado moo os olhos lana,No Cldia, que a taa lhe oferece,Mas a outra no menos afamada,Dama de igual prospia e iguais campanhas,E taa igual lhe aceita. Afronta estaQue moa faz subir o sangue s faces,Aquele sangue antigo, e raro, e ilustre,Que atravessou purssimo e sem mesclaA corrente dos tempos... Uma Cldia!Tamanha injria! Ai, no! mais que a vaidade,Mais que o orgulho de raa, o que te pesa,O que te faz doer, viciosa dama, ver que um rival merece o zeloDeste pimpo de amores e aventuras.Pega na taa o nscio esposo e bebe,Com o vinho, a vergonha. Sombra triste,Sombra de ocultas e profundas mgoas,Tolda a fronte ao poeta. Os mais, alegres,Vo ruminando a saborosa ceia;Circula o dito equvoco e chistoso,Comentam-se os decretos do Senado,O molho mais da moda, os versos ltimosDe Catulo, os lees mandados de fricaE as vitrias de Csar. O epigramaRasga a pele ao caudilho triunfante;Chama-lhe este: "O larpio endividado",Aquele: "Vnus calva", outro: "O bitnio..."Oposio de ceias e jantares,Que a marcha no impede ao crime e glria. Sem liteira, nem lbicos escravos,Cldia vai consultar armnio arspice.Quer saber se h de Clio am-la um diaOu desprez-la sempre. O armnio estavaMeditabundo, luz escassa e incertaDe uma candeia etrusca; aos ombros deleDecrpita coruja os olhos abre."Velho, aqui tens dinheiro (a moa fala),Se tua inspirao dado agoraAdivinhar as cousas do futuro,Conta-me..." O resto expe. Ergue-se o velho

  • Sbito. Os olhos lana cobiosos fulgente moeda. "Saber queresSe te h de amar esse mancebo esquivo?" "Sim". Cochilava a um canto descuidadaA avezinha de Vnus, branca pomba.Lana mo dela o arspice, e de um golpeDas entranhas lhe arranca o sangue e a vida.Olhos fitos no velho a moa aguardaA sentena da sorte; empalideceOu ri, conforme do ancio no rostoOcultas impresses vem debuxar-se."Bem haja Vnus! a vitria tua!O corao da vtima palpitaInda que morto j..." No eram ditas.Estas palavras, entra um vulto... ele?s tu, cioso amante! A voz lhes faltaAos dous (contemplam-se ambos, interrogam-se);Rompe afinal o lgubre silncio... Quando o vate acabou, tinha nos braosA namorada moa. Lacrimosa,Tudo confessa. Tudo lhe perdoaO desvairado amante. "Nuvem leveIsto foi; deixa l memrias tristes,Erros que te perdo; amemos, Lsbia;A vida nossa; nossa a juventude.""Oh! tu s bom!" "No sei; amo e mais nada.Foge o mal donde amor plantou seus lares.Amar ser do cu". Splices olhosQue a dor umedecera e que umedecemLgrimas de ternura, os olhos buscamDo poeta; um sorriso lhes responde,E um beijo sela esta aliana nova. Quem jamais construiu slida torreSobre a areia volvel? Poucos diasDecorreram; viosas esperanasSbito renascidas, folha a folha,Alastraram a terra. Ingrata e fria,Lsbia esqueceu Catulo. Outro lhe pedePrmio recente, abrasadora chama;Faz-se agora importuno o que era esquivo.Vitria dela; o arspice acertara. NO ALTO O poeta chegara ao alto da montanha,E quando ia a descer a vertente do oeste, Viu uma cousa estranha, Uma figura m. Ento, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, Num tom medroso e agreste Pergunta o que ser.

  • Como se perde no ar um som festivo e doce, Ou bem como se fosse Um pensamento vo, Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. Para descer a encosta O outro estendeu-lhe a mo.

    FIM