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PSIQUÊ E PSICHÊ: NO ENCONTRO DOS ESPELHOS DE MACHADO E ROSA José Miguel Wisnik O objeto subjetivo Os contos “O espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana” (Papeis avulsos, 1882), de Machado de Assis, e “O espelho” (Primeiras estórias, 1962), de Guimarães Rosa, tratam sabidamente de um mesmo núcleo problemático: a constituição e a desconstituição do eu através da imagem. 1 Neles, os dois autores sondam a “natureza da alma” figurando-a, pode-se dizer, como psiquê (sopro de vida, alento, sede dos desejos, espírito, na antiga acepção grega) e psichê (grande espelho modulável segundo o ângulo de quem olha). 2 Rosa dá à sondagem da alma-espelho um destino próprio, introduzindo nela o viés metafísico neutralizado em Machado. Não é descabido postular que ele tenha escrito o conto homônimo para enfrentar a ironia cósmica do Bruxo do Cosme Velho no limite entre as figurações da crença e da descrença. E que tenha continuado o serão filosofante de Santa Teresa ao criar um personagem-narrador que conta a sua experiência de desaparição do espelho que o reflete, em contraposição à do Jacobina de Machado. Se em ambos os contos o imaginário, entendido como o jogo de imagens através do qual se constitui 1 Uma análise pioneira desse tema, de base lacaniana, é a realizada por Maria Lucia Homem, “Reflexos de espelhos. Machado de Assis e Guimarães Rosa: um estudo comparativo de dois contos”, que pode ser encontrada na internet. 2 Os dois termos, psiquê e psichê, são variantes de uma mesma origem, e convergem no nome mitológico da amada de Eros. Houaiss aventa a hipótese de que o nome dado ao espelho provenha do fato de a mulher que nele se olha sentirse bela como Psiquê/Psyché.

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PSIQUÊ E PSICHÊ: NO ENCONTRO DOS ESPELHOS DE MACHADO

E ROSA

José Miguel Wisnik

O objeto subjetivo

Os contos “O espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana”

(Papeis avulsos, 1882), de Machado de Assis, e “O espelho” (Primeiras

estórias, 1962), de Guimarães Rosa, tratam sabidamente de um mesmo

núcleo problemático: a constituição e a desconstituição do eu através da

imagem.1 Neles, os dois autores sondam a “natureza da alma” figurando-a,

pode-se dizer, como psiquê (sopro de vida, alento, sede dos desejos,

espírito, na antiga acepção grega) e psichê (grande espelho modulável

segundo o ângulo de quem olha).2 Rosa dá à sondagem da alma-espelho um

destino próprio, introduzindo nela o viés metafísico neutralizado em

Machado. Não é descabido postular que ele tenha escrito o conto

homônimo para enfrentar a ironia cósmica do Bruxo do Cosme Velho no

limite entre as figurações da crença e da descrença. E que tenha continuado

o serão filosofante de Santa Teresa ao criar um personagem-narrador que

conta a sua experiência de desaparição do espelho que o reflete, em

contraposição à do Jacobina de Machado. Se em ambos os contos o

imaginário, entendido como o jogo de imagens através do qual se constitui

                                                                                                                         1  Uma  análise  pioneira  desse  tema,  de  base  lacaniana,  é  a  realizada  por  Maria  Lucia  Homem,  “Reflexos  de  espelhos.  Machado  de  Assis  e  Guimarães  Rosa:  um  estudo  comparativo  de  dois  contos”,  que  pode  ser  encontrada  na  internet.  2  Os  dois  termos,  psiquê  e  psichê,  são  variantes  de  uma  mesma  origem,  e  convergem  no  nome  mitológico  da  amada  de  Eros.  Houaiss  aventa  a  hipótese  de  que  o  nome  dado  ao  espelho  provenha  do  fato  de  a  mulher  que  nele  se  olha  sentir-­‐se  bela  como  Psiquê/Psyché.  

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a função do eu, sofre o impacto de um real que o desarma,3 cada um deles

leva a mesma síndrome a consequências distintas, senão opostas, no

percurso simbólico da sua narratividade.

Ao introduzir, junto com o tema, as categorias real, imaginário e

simbólico, não estou pretendendo reduzir os dois contos a categorias

lacanianas, mas cotejar as suas semelhanças e diferenças com esse vértice

psicanalítico, a teoria da etapa do espelho como formadora da função do

eu.4 Sem pensar, evidentemente, em termos de influência, mas em

estabelecer relações entre paradigmas, o contraponto pode iluminar, talvez,

o modo enviesado e singular pelo qual a literatura participa da história das

ideias, guiada por um tempo próprio.

É no contexto da sua teoria da etapa do espelho que Lacan postula a imago

como o objeto constitutivo da psicologia, “na mesma medida em que a

noção galileana de ponto material inerte fundou a física”. A “paixão da

alma por excelência”, o narcisismo – vale dizer, o ponto escapadiço e

instável sobre o qual se constitui o sujeito – , investe-se aí de um caráter

fundacional, já que “impõe sua estrutura a todos os seus desejos, mesmo os

mais elevados”.5 Uma análoga centralidade das síndromes narcísicas, tendo

em “O espelho” seu foco de convergência, pode ser observada nos escritos

machadianos por ocasião da sua famosa virada em torno de 1880 e na

                                                                                                                         3  Toma-se aqui o real, em primeira instância, como um perturbador esvaziamento da representação, no sentido contrário do que se costuma entender por realidade. Luciana Serrano Pereira analisa o mesmo fenômeno como efeito de vertigem, em O conto machadiano – Uma experiência de vertigem, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2008.  4  Jacques  Lacan,  “Le  stade  du  miroir  como  formateur  de  la  fonction  du  Je  telle  qu’elle  nous  est  révélée  dans  l’expérience  psychanalytique”,  Écrits,  Paris,  Seuil,  1966,  p.  93-­‐100.  Observação:  “Communication  faite  ao  XVIe.  Congrés  International  de  Psychanalyse,  a  Zürich,  le  17  Juillet  1949”.  As  primeiras  intervenções  sobre  o  tema  datam  de  1936  e  1938.  A  questão  é  estendida  em  “L’agressivité  em  psychanalyse”  (Écrits,  p.  101-­‐124,  apresentada  ao  XI  Congresso  de  Psicanalistas  de  Língua  Francesa,  em  1948),  “Propos  sur  la  causalité  psychique”  (Écrits,  p.  151-­‐193)  e  retomada  em  O  Seminário  Livro  3  As  Psicoses  (Rio,  Jorge  Zahar,  1985).  

5  Jacques  Lacan,  “Propos  sur  la  causalité  psychique”,  op.  cit.,  p.  188.  

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própria estrutura do livro Papeis avulsos. Neles, a fixação em objetos que

se constituem em verdadeiros complementos ortopédicos da insuficiência

narcísica, indo da farda de Jacobina ao Emplasto Brás Cubas, aparece como

uma espécie de ponto arquimédico da alma, como sua muleta e alavanca

imaginária.

A necessidade inerente ao sujeito, pode-se dizer doentia, de se ver

confirmado pelo olhar do outro, necessidade que se reflete e se entranha na

autoimagem através de múltiplas modalidades da ilusão, pulula em

situações conhecidas de “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “D.

Benedicta”,“Verba testamentária”. São variações agudas sobre “este móvel

profundo e inescapável de toda e qualquer ação”, a fome de

reconhecimento, que está no miolo da vertente analítica impiedosa dos

moralistas clássicos franceses dos quais Machado de Assis se alimenta.6

Mas a demanda de reconhecimento como demanda estrutural do sujeito

investe-se nele, também, de uma dimensão nova, porque Machado a

submete ao crivo desse singular objeto subjetivo, a um tempo externo e

interno, que é o espelho, graças ao qual a análise, para além de uma

alegoria moral, penetra de maneira cerrada nas configurações propriamente

psíquicas da subjetividade. Com seu ceticismo radical quanto à estrutura

imaginária inescapável que constitui os sujeitos, os contos em torno de “O

espelho” atualizam os filósofos moralistas do século XVII pela via de uma

premonitória filosofia do inconsciente, na qual podemos reconhecer

antecipatoriamente questões da psicanálise e, em particular, da primeira

teoria lacaniana do imaginário.

                                                                                                                         6  Pedro  Meira  Monteiro,  “Machado  de  Assis  e  Pascal:  um  contraponto”,  em  Marta  de  Senna  e  Hélio  de  Seixas  Guimarães  (orgs.),  Machado  de  Assis  e  o  outro:  diálogos  possíveis,  Rio  de  Janeiro,  Móbile,  2012,  p.  62.Alfredo  Bosi  trata  do  mesmo  tema,  de  maneira  abrangente,  em  Machado  de  Assis:  O  enigma  do  olhar,  São  Paulo,  WMF  Martins  Fontes,  2007.  

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Guimarães Rosa inclui a mesma questão moderna que vemos se desenhar

em Machado, mas glosando-a simultaneamente com uma outra concepção

de espelho, corrente numa certa tradição místico-filosófica, a do

instrumento capaz de dar a ver no fundo sem fundo de suas imagens, pelo

viés de uma teologia negativa, a face resplandecente de uma dimensão

invisível. Por ora, cabe apenas dizer que o primeiro paradigma, o

machadiano-lacaniano, - se se permite a expressão -, desnuda

provocativamente a ilusão da identidade, desvelando-lhe o vazio subjacente

como marca de uma falta, enquanto o segundo, esotérico-rosiano, desvela

nesse mesmo vazio subjacente o vislumbre de uma presença inominável

que ganha aí um viés epifânico.

Um discutível e estimulante livrinho, Lacan e o espelho sofiânico de

Boehme, de Dany-Robert Dufour, carreia elementos reveladores para o

entendimento do modo como essas duas concepções de espelho se cruzam.7

O autor sustenta que entre as influências presentes na elaboração da etapa

do espelho em Lacan (o narcisimo freudiano, a neotonia neodarwinista,

com a ideia do nascimento prematuro e fetalizado do ser humano, a

psicologia da Gestalt e a dialética de senhor e escravo), é preciso

reconhecer o papel da teosofia de Jacob Boehme tal como recuperada e

pensada por Alexandre Koyré. 8 Lacan mantinha sólida amizade filosófica

com Alexandre Koyré e com Alexandre Kojève nos anos 1930 e 1940, os

mesmos anos em que lança e afirma sua litigiosa teoria da etapa do espelho

no campo psicanalítico. Os cursos de Kojève sobre a Fenomenologia do

Espírito, decisivamente influentes na construção da teoria, constituíram-se

num núcleo filosófico em torno do qual gravitaram, entre outros, Henry

Corbin, Georges Bataille, Raymond Queneau. Estudando as conexões entre

                                                                                                                         7  Dany-­‐Robert  Dufour,  Lacan  e  o  espelho  sofiânico  de  Boehme,  tradução  de  Procopio  Abreu,  Rio  de  Janeiro,  Companhia  de  Freud,  1999.  8  La  philosophie  de  Jacob  Boehme,  Paris,  J.  Vrin,  1929.  

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ciências e concepções religiosas, nos séculos XVI e XVII, Alexandre

Koyré “reintegrou na história do pensamento uma coorte de místicos

especulativos, teósofos e outros sábios como Nicolau de Cusa, Paracelso,

Giordano Bruno, Jacob Boehme”.9 No pensamento deste último a ideia de

espelho sofiânico ocupa o lugar central: o espelho é pensado como o olho

da Sabedoria divina que contém, sobre um fundo nadificante, as imagens

de todos os seres individuais, engendrando a passagem do Um, indizível e

invisível, para a multiplicidade visível do mundo. É através do espelho,

assim concebido, que o humano e o divino se deixariam entrever. Henry

Corbin, por sua vez, teria partido do ensinamento de Koyré para formular o

conceito de imaginal.10 Neste, a visão essencial de si depende de um

processo de iniciação em que o sujeito, atravessando o vazio especular,

chega a se mirar no espelho transparente de sua pura presença, que se

autoengendra ao superar tanto a abstração intelectual quanto a concretude

sensível.11

Diferentemente de Dufour, não estamos propondo hipóteses de influência

ao relacionar o núcleo Lacan-Koyré-Corbin ao caso Machado-Rosa. Em

vez disso, propondo paradigmas, de efeito comparativo, da exploração das

possibilidades cambiantes do espelho como objeto subjetivo capaz de dar a

ver, quando fracassa ou se ultrapassa o automatismo da sua função

mimética, os efeitos ilusórios por meio dos quais se constitui a identidade,

por um lado, e o vislumbre epifânico de uma alma-corpo para além da

aparência, por outro. A acreditar na hipótese de Dufour, Lacan teria tomado

a concepção teosófica do espelho como uma das matrizes sugestivas de sua

teoria do imaginário, revertida no entanto, é preciso frisar (o que Dufour

não faz), a uma perspectiva materialista e psicanalítica. Corbin, ao                                                                                                                          9  Dufour,  op.  cit.,  p.  29.  10  Dufour,  op.  cit.,  p.  41.  11  Ver    Henry  Corbin,  En  Islam  iranien  –  Aspects  spirituels  et  philosophiques,  Tome  II  Sohrawardî  et  les  Platoniciens  de  Perse,  Paris,  Gallimard,  1971.  

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contrário, teria explorado a concepção teosófica do espelho no simbolismo

do seu conceito de imaginal, metafísico e iniciático. No primeiro caso,

profana-se a ideia da unicidade da alma, desvelando-se o caráter alienante

da sua constituição, na linha da desmitificação moderna. Machado segue

agudamente nessa direção. No segundo caso, resgata-se a ideia ancestral do

poder do espelho como instrumento de acesso a um real indivisível e

divinizado, para além da sua representação em imagens. Rosa joga com

essa segunda concepção, sem abdicar da primeira.

Os espelhos

O conto machadiano é mais do que conhecido, já foi parafraseado muitas

vezes, mas não há como não retomá-lo, mesmo que sumariamente. Num

amável serão filosofante em Santa Teresa, o casmurro Jacobina, que de

início se recusava a opinar sobre os temas em debate, apresenta a certa

altura a sua teoria da alma, definida como um caminho de mão dupla onde

“cada criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,

outra que olha de fora para dentro...”. Dividida numa alma interna e noutra

externa, a constituição oscilante do eu é inseparável dos objetos com os

quais o seu desejo o confunde, e nos quais se aliena: “há casos, por

exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma

pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um

par de botas, uma cavatina, um tambor, etc.”.

Entre os aspectos escandalosos da teoria, apresentada com a petulância de

uma autoridade que não admite refutação, estão os fatos de a alma ser

concebida em parte decisiva como estando fora do sujeito, e de se

constituir numa coisa. Quebra-se sem maior cerimônia tanto o preceito da

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sua unicidade metafísica como o da sua imaterialidade, apontando para a

tendência reificante, alienada e regressiva que lhe é dada como inerente.

O modelo literário dessa operação parece estar no “cavalinho-de-pau” do

Tristram Shandy de Sterne: em inglês Hobby-Horse, “significa tanto o

brinquedo conhecido entre nós por ‘cavalinho-de-pau’ (...) quanto uma

distração ou assunto favorito”, assumindo, em sentido figurado, a acepção

de uma dedicação excessiva a um assunto, um passatempo (hobby) ou um

objeto,12 ao modo da compulsão ou da machadiana ideia fixa.13 “Conquanto

eu não possa dizer que um homem e seu CAVALINHO DE PAU ajam e

reajam exatamente da mesma maneira que a alma e o corpo entre si, existe

indubitavelmente comunicação de alguma espécie entre eles”. Essa

comunicação, explica-se no livro de Laurence Sterne, é da ordem dos

corpos eletrificados, como se uma espécie de fricção anímica continuada

acabasse por infundir as propriedades do objeto no sujeito que se apega a

ele, fazendo com que a descrição de um denuncie de maneira “bem

precisa” o “gênio e o caráter do outro”.14

Voltando à alma externa machadiana, o sujeito é apegado necessariamente

a um objeto material ou imaterial do qual não pode prescindir, que lhe

serve de suporte eternamente infantil, como o cavalinho de pau, e de

complemento ortopédico da insuficiência narcísica, a ponto de se confundir

com ele no uso continuado. É nesse ponto que entrará o espelho, na

figuração machadiana: ele é, no reino das coisas, o meta-objeto do desejo

como desejo do outro, o correspondente por excelência desse dispositivo

psíquico em que o auto-reconhecimento depende do apoio em um                                                                                                                          12  Laurence  Sterne,  A  vida  e  as  opiniões  do  cavalheiro  Tristram  Shandy,  tradução,  introdução  e  notas  José  Paulo  Paes,  São  Paulo,  Companhia  das  Letras,  1998,  p.  603,  nota  17b.  13  No romance de Sterne pergunta-se, a certa altura: “não tiveram os homens mais sábios de todas as épocas, sem exceção do próprio Salomão – seus CAVALINHOS DE PAU; - seus cavalos de corrida, - suas moedas e seus barquinhos, seus tambores e suas cornetas, seus violinos, suas paletas, - suas larvas e suas borboletas?”. Sterne, op.cit., p. 53.  14  Sterne,  op.cit.,  p.  103.  

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equivalente externo visível e ao mesmo tempo reversível – que dá a ver,

vendo. Submetida à lógica do imaginário, a alma externa se tornará

dominante, no processo, e a interna, recessiva e caudatária da externa.

A exposição teórica é seguida de um depoimento autobiográfico de cunho

exemplar sobre como a alma interna da personagem, formada por seus

difusos impulsos infantis e juvenis, no tempo em que era conhecido como

Joãozinho, veio a ser eclipsada depois de sua nomeação como alferes da

Guarda Nacional e a consequente identificação generalizada de sua pessoa

através do novo status conferido pela patente e pela farda. Esta constitui-se,

afinal, numa alma externa com a qual ele descobre ter-se identificado

irreversivelmente.

O móvel da descoberta é o grande espelho vindo para o Brasil com a corte

de D. João VI, que a tia Marcolina colocara especialmente para ele no

quarto do sítio onde o hospeda, e no qual ele descobrirá, em situação

extrema, que não vê a si mesmo se não estiver apoiado na ótica do outro. A

peripécia que o faz defrontar-se com a radical dependência do olhar do

outro para o reconhecimento de si mesmo é dada pelo fato de que a tia

Marcolina, que até então o mimava e nele se mirava narcisicamente,

ocupando nisso a posição do imaginário da mãe, é obrigada a se retirar

inesperadamente do sítio em que estavam, exigida pela súbita doença da

filha e, assim, pelo real da sua maternidade. Os escravos da propriedade,

na ausência da senhora, adulam de dia o alferes e fogem na calada da noite,

relegando-o à solidão social em que o homem livre na ordem escravocrata,

sem o anteparo de proprietários nem de escravos (a “alma ausente com a

dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos”), se vê literalmente como

um ninguém.

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Sugiro aqui uma ponte com a leitura clássica de Roberto Schwarz.15 As

questões psicanalíticas que estamos privilegiando nesse momento são

inseparáveis de questões sociais brasileiras de largo alcance, sendo umas

inseparáveis de outras, em Machado de Assis. Vale notar que a patente de

alferes era a mais baixa na hierarquia da Guarda Nacional, que esta mesma

instituição monárquica conferia, sob o manto aparente da simbologia

militar, o estatuto político de coronel, major e capitão a proprietários rurais,

sacramentando-lhes o poder local na falta de uma representação da lei de

Estado, e contribuindo para consumar a conhecida labilidade brasileira

entre interesses públicos e interesses privados. O golpe da sorte que faz do

jovem Jacobina um alferes da Guarda Nacional, abrindo-lhe perspectivas

de ascensão ao lugar do “capitalista astuto e cáustico” que ele ocupará vinte

anos mais tarde, desfazendo dos escravos como “espíritos boçais”, entre

seus pares, participa implicitamente da dinâmica do favor e do arbítrio, em

que o mercado da imagem tem um papel destacado. Esse pano de fundo dá

um caráter ironicamente derrisório e de mascarada ao embate em cena, no

conto, mas faz, por isso mesmo, entende-lo como uma análise aguda dos

mecanismos do imaginário entranhados na constituição do sujeito e na vida

coletiva, em que batalhas tremendas pelo reconhecimento são travadas em

cima de ninharias.

Destituído da reciprocidade especular do jogo social, no sítio abandonado,

Jacobina vê a paisagem familiar transformar-se num pesadelo, e ele

mesmo, sentindo-se um autômato, defrontado com o espelho que não lhe

devolve senão rastros perdidos e vagos da sua figura. A terapia dessa

síndrome de esgarçamento e anulação da autoimagem se faz através da

reiteração especular da imagem-objeto com que é visto, desejado e

invejado pelos outros: ele posa dias seguidos para o espelho, durante horas,

                                                                                                                         15  Ao  vencedor  as  batatas.  São  Paulo,  Duas  Cidades,  1977.    

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vestido da farda, e opera assim uma espécie de recomposição narcísica a

olhos nus. Tal tratamento desnuda escandalosamente o caráter alienado da

alma, num strip-tease ao contrário em que ela aparece não como uma

essência una e eterna, mas como a imagem deslocada de um outro. A

exposição descarada (e subversiva) do real da própria ilusão é seguida

pelo ato da retirada final de cena, sem comentários nem complementos

simbólicos: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as

escadas”.16

Temos aqui motivos clássicos do conto fantástico do século XIX (a

aparição ou desaparição do duplo, a perda da imagem ou da sombra),

tratados não mais segundo a hesitação entre o caráter natural ou

sobrenatural de um acontecimento (que definiria o gênero, segundo

Todorov), mas como o radicalmente estranho que veremos teorizado por

Freud em Das Umheilich, e que confina com o real lacaniano. Em suma, o

gênero fantástico, que deu largas à sondagem das esquisitices do sujeito ao

longo do século XIX, cede vez ao campo desnudado do psiquismo: “A

realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me

textualmente, com os mesmos contornos e feições (...). Mas tal não foi a

minha sensação”. A imagem perdida se recompõe na forma cínica de um

emplastro imaginário, que espelha incomodamente, por sua vez, o serão

metafísico em que se insere.

Guimarães Rosa chega ao mesmo núcleo (a perda da imagem ao espelho)

por uma via inversa: se Jacobina está como que hipnotizado pela alma

externa que ele e os outros conspiram para preservar contra a queda                                                                                                                          16  Sobre  as  várias  modalidades  do  real,  incluída  entre  elas  o  “real  da  ilusão”,  ver  Slavoj  Zizek,  “O  Real  da  ilusão  cristã:  notas  sobre  Lacan  e  a  religião”,  em  Vladimir  Safatle  (org.),  Um  limite  tenso  –  Lacan  entre  a  filosofia  e  a  psicanálise,  São  Paulo,  UNESP,  2003,  p.  181.  Ver  também  Slavoj  Zizek,  “Le  devenir-­‐lacanien  de  Deleuze”,  tradução  de  Paulo  Pimenta  Marques,  em  Iannini,  Rocha,  Pinto  e  Safatle  (org.),  O  tempo,  o  objeto  e  o  avesso  –  Ensaios  de  Filosofia  e  Psicanálise,  Belo  Horizonte,  Autêntica,  2004,  p.  39-­‐40.    

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nadificante do real, o personagem-narrador rosiano empenha-se

obsessivamente na busca vã de um imaginário sem cisão, depois de ter-se

abalado com a sua figura entrevista casualmente no jogo de espelhos

refletidos de um banheiro público como sendo a de um monstruoso outro.

O estranhamento da autoimagem está no ponto de partida da sua estória, e

não no ponto de chegada, como na de Jacobina. Um jogo de espelhos

revela a sua identidade, a partir de então, como um jogo não confiável,

feito de um ilusório efeito-cascata de imagens em que nada garante a

certeza do olho-no-olho. A partir do impacto angustiante desse

estranhamento, passa a procurar o impossível espelho perfeito que repare a

falha, na busca obsessiva e tresloucada de um registro do imaginário em

estado puro que pudesse ser atestado como real, e que o fizesse voltar a se

sentir como coincidindo consigo próprio. Pondo espelhos à prova, e

desmascarando um a um na sua falta de fidedignidade, o personagem

narrador inicia uma série mirabolante de experimentos em que lança mão

da filosofia e da para-ciência de almanaque, de técnicas de medição e

meditação, de testes demonstrativos do caráter contingente da imagem, de

táticas astuciosas para tentar driblar as camadas de ilusão (“fintas de

pálpebras”), para neutralizar as excrescências da herança fisiognômica, da

bagagem genética e seus padrões totêmicos, dos traços atávicos, até chegar

ao inconclusivo limiar em que a percepção se reduz a formas de onda, nas

quais não se distingue mais o caráter receptivo ou emissivo do olhar (“meu

esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-

flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma

esponja”).

À beira da desagregação, e depois de ter decidido suspender as

experiências, guiado pela imagem da Prudência, produz-se um efeito

inesperado: o narrador não se enxerga mais no espelho vazio, como se

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figurasse ali como “o transparente contemplador” invisível. A busca de sua

imagem plena, na forma da ideia fixa, “confundindo o físico, o hiperfísico e

o transfísico”, o conduz afinal, justamente quando desiste dela, à

contemplação involuntária e paradoxal de uma imagem zerada: “partindo

para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à

total desfigura”. No processo frenético e obsessivo em que decalca os

traços inessenciais do rosto para extirpá-los, na tentativa vã de chegar a

uma redução essencial, despojada de todo atributo, chega à liquidação

imagética de uma face em que não sobra nada.

A visão o leva à constatação perturbadora de ser (ou de sermos) uma

junção mal ajambrada de acidentes, tendo ao centro um nada, “o espírito do

viver não passando”, como nos infantes, “de ímpetos espasmódicos,

relampejados entre miragens: a esperança e a memória”.

Se a imagem especular falta a Jacobina porque ele investiu demais naquela

que os outros lhe devolviam, e que não comparece sem a fiança deles, a

imagem falta ao personagem-narrador rosiano porque ele mesmo a

submeteu a uma série implacável de provas, na ideia fixa de chegar à visão

definitiva e apaziguadora de si mesmo, em que o aparente coincidisse com

alguma essência. Um paga o preço real de ter investido no caráter

imaginário do imaginário, que se desnuda. Outro paga o preço de ter

cobrado do imaginário uma veracidade que aquele não pode dar. Por uma

via ou por outra, ambos estão expostos e regredidos, nesse ponto, a uma

identidade em farrapos, reduzidos a uma condição inconsistente que não

tem como se fixar numa autoimagem.

O sentimento de si que não forma figura, mas que só se percebe como um

feixe de impulsos desconexos, descrito nos dois textos, tem paralelo com as

vicissitudes identitárias que estão na base da já citada teoria lacaniana da

etapa do espelho como formadora da função do eu (ver nota 4). Segundo

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Lacan, a etapa do espelho, que se desenrola entre seis meses e um ano e

meio, manifesta na criança “o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se

identifica primordialmente à Gestalt visual de seu próprio corpo”, isto é, à

“unidade ideal” e à “imago salutar” que a descoberta do espelho lhe oferece

em contraposição “à descoordenação (ainda) profunda da sua própria

motricidade, à discordância intraorgânica e relacional da criança, com os

signos da sua prematuração natal fisiológica”.17 Em outras palavras, esse

neonato prematuro e fetal, que é o humano, todo feito de “ímpetos

espasmódicos, relampejados entre miragens”, para usar os termos rosianos,

encontra no objeto espelho, durante um período larvar da sua identidade, a

prefiguração exultante de um corpo próprio que lhe escapa, de uma unidade

figurada que não emana de si mesmo.

Nesse sentido, a imagem ao espelho comparece como um “complemento

ortopédico (e funcionalmente essencial no homem) dessa insuficiência

nativa, desse desconcerto, ou desacordo constitutivo, ligado à sua

prematuração no nascimento” (o destaque é meu). Como parte essencial e

complicadora do processo o infante não sabe que o objeto-imagem que lhe

promete semelhante unidade mágica é um reflexo dele mesmo, com o que

“sua unificação não será jamais completa porque é feita precisamente por

uma via alienante, sob a forma de uma imagem estranha, que constitui uma

função psíquica original”.18

Assim, “o eu humano é (...) originalmente coleção incoerente de desejos –

corpo espedaçado”, e sua “primeira síntese é (...) essencialmente alter ego”,

projeção alienada numa imagem outra. “O sujeito humano desejante se

constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá

                                                                                                                         17  Jacques  Lacan,  “L’agressivité  en  psychanalyse”,  p.  113.  

 18  Idem,  O  Seminário  Livro  3,  p.  113.  

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a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto

enquanto objeto do desejo do outro”.19

Machado de Assis intui e analisa essas síndromes, em seus próprios termos,

como quem ilumina, surpreendendo-a, a precária lógica da identidade

através do imaginário. Não precisamos colocar ênfase, aqui, no caráter

“antecipatório” de suas formulações em relação a posteriores “descobertas”

psicanalíticas. O mais importante é que ele fere cordas que ressoavam e

continuam ressoando numa interrogação de longo curso sobre a

subjetividade, com extraordinário poder de observação e com a potência

não de um saber que se deposita, mas que desloca. O interesse da relação

com a psicanálise é o de nos ajudar a reconhecer o quanto a situação

narrada não se limita ao plano da alegoria moral, na qual se mostraria o

grau extremo com que o nosso ser é influenciado pela opinião dos outros, a

ponto de as máscaras esconderem a nossa verdadeira face. O que não temos

no conto é justamente o assentamento da dicotomia moral entre uma face

autêntica e uma face inautêntica, não porque ela não se coloque, mas

porque é lançada para um outro e mais vertiginoso plano problemático.

Entre a alma interna que se esboça e se esfuma junto com os jogos infantis,

e a alma externa que se consuma na farda, há um corpo próprio cuja

inconsistência busca se garantir na mímese mimante, no efeito narcísico

que resulta da imitação de si dada pela confirmação do olhar do outro. A

retirada desse dispositivo ilusório, em situação psicossocial precisa, expõe

a nudez cósmica do sujeito e a debilidade constitutiva do eu. Temos aí a

descrição de um processo psíquico em que o sujeito entra em angústia

pânica num huis clos escravista em que o tempo se arrasta e se nulifica,

pendulando inutilmente entre o instante e a eternidade, “diálogo do abismo,

cochicho do nada”, destituído dos ritmos de espera e resolução que

                                                                                                                         19  Idem,  ibidem,  p.  50.  

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enformam as relações identificatórias do indivíduo com o seu semelhante e

que dão espessura ao tempo.

Ao contrário do conto de Guimarães Rosa, em que a busca de si está

concentrada no rosto e no olhar, a busca pela identidade através da imagem

n’” O espelho” de Machado de Assis não se concentra em nenhum

momento no rosto, mas na perda do corpo, reduzido a uma imagem “vaga,

esfumada, difusa, sombra de sombra”, resíduo de um gesto “disperso,

esgaçado, mutilado”. Para atestar o alcance desse deslocamento e dessa

inversão, vale lembrar que, ao contrário do clássico de von Chamisso,

“Peter Schlemihl”, em que o protagonista aliena sua sombra, no conto de

Machado não se trata de um corpo que perdeu a sombra, mas de uma

sombra que perdeu o corpo.20

Guimarães Rosa vai, à sua maneira, ao mesmo núcleo onde estamos. Mas

Rosa o faz como que para ultrapassá-lo, ao núcleo: a sua narrativa guarda

uma peripécia a mais, em que, por obra de uma série de experiências de

passagem – o “amor”, a “conformidade” e a “alegria” – o sujeito volta a se

reconhecer no espelho através de uma radiância que transparece como a

face de uma criança, a “flor pelágica” e abissal de um quase-rosto que

renasce. A pseudo anagnórisis produzida artificialmente em Machado pela

reposição do imaginário, com ironia corrosiva, se contrapõe à anagnórisis

espectral em Rosa, com o renascimento de um quase-rosto infantil e

luminoso que se deixa entrever no espelho.

Aqui chegamos a um ponto de inflexão no nosso roteiro: se o giro,

digamos, epifânico, acontece em Guimarães Rosa, é porque a narrativa

                                                                                                                         20  Remeto  aqui  a  uma  página  fulgurante  de  “O  18  Brumário  de  Luís  Bonaparte”,  em  que  Marx  sintetiza  as  contradições  paralisantes  da  França  imediatamente  posterior  ao  período  da  Monarquia  de  Julho,  dizendo  que  “os  homens  e  os  acontecimentos  aparecem  como  Schlemihl  invertidos,  como  sombras  que  perderam  seus  corpos”.  As  consequências  dessa  percepção  para  o  caso  brasileiro  ficam  por  desenvolver.  Karl  Marx,  Manuscritos  econômico-­‐filosóficos  e  outros  textos  escolhidos,  Seleção  por  José  Arthur  Gianotti,  Coleção  Os  Pensadores,  São  Paulo,  Abril  Cultural,  1974,  p.  352.    

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rosiana glosa secretamente uma tradição metafísica e esotérica, que

também tem o espelho como seu núcleo, e que, numa coincidência

curiosamente significativa, para prosseguirmos no paralelo, tinha vindo à

tona como questão filosófica no mesmo campo intelectual em que Lacan

produzia sua teoria inicial, em contato com Koyré e Corbin.

O espelho como complemento ortopédico da alma

Antes de voltarmos a esse ponto, no entanto, vejamos ainda como a

perspectiva machadiana é aparentada com o materialismo dessacralizador

de Lacan.

Em Lacan, a etapa do espelho se processa em três movimentos: A. O

infante prematurado é um feixe desconexo de impulsos ao qual falta uma

imagem totalizante; B. O espelho (que, mais que o objeto literal, é o olhar

do outro, e, em especial, a mãe que o mima) prefigura como imagem

gestáltica a figura exultória de alguma coisa que a criança não sabe que a é

a imagem dela mesma; C. O eu não se constitui se não for pela

identificação desse outro como ele próprio (quando se apagam ou rasuram

as marcas sofridas do processo). Em outros termos, o eu é primeiro um

nenhum, depois é dois, e só depois um, embora assombrado, na constituição

paranoide do seu tecido sempre apto a se desfazer, pelos fantasmas do

duplo e do nada. Quando sozinho no sítio de tia Marcolina, Jacobina

experimenta a passagem a um real em que o tempo se converte em “diálogo

do abismo” e “cochicho do nada”, e em que ele mesmo, mais do que pelo

medo, é tomado pela angustiosa “sensação inexplicável” de ser “um

defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”. Mas a “coisa

pior” transparece na sua relação com o espelho, que ele primeiro evitava

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olhar, num “impulso inconsciente”, por “receio de achar-me um e dois, ao

mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada

prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me na

veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei

e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo: não

me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra

de sombra”.

Em suma, Machado lê a “etapa do espelho na constituição do eu” a

contrapelo, pelo avesso do seu desmonte: se o infante lacaniano é primeiro

nenhum, depois dois e depois um, no relato de Jacobina ele é primeiro um,

depois dois e daí nenhum. Desvela-se a constituição dupla do imaginário,

remetendo-o ao nenhum do real. No seu tratamento homeopático, pela

identificação da sua imagem com a da farda, Jacobina reconstitui

(ironicamente) a ilusória unidade do imaginário, mas sua narrativa (a

narratividade é a intervenção do simbólico) deixa transparecer nela o real

da ilusão. É com esse piparote suspensivo, como numa sessão curta

lacaniana, que o conto termina.

Uma coincidência curiosa, mas não menos significativa: o grupo do serão

metafísico em Santa Teresa exibe o formato do cartel lacaniano. O cartel é

um dispositivo de trabalho a partir de um desejo de saber sobre algum

tema, clínico, teórico, político ou transdisciplinar, organizado em pequenos

grupos, de três a cinco integrantes, acrescido de um Mais-um.

Veja-se: ”Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões

de alta transcendência”, “quatro ou cinco investigadores de coisas

metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do

universo”. “Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que

falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado,

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pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro

resmungo de aprovação”.21

Sobre o lugar do Mais-um na formação do cartel, diz-se que trabalha na

contramão dos efeitos imaginários a ele conferidos, e que, “impondo um

obstáculo à soldagem imaginária do grupo, na medida em que lhe falta

(pode ser contado como Menos-um), (...) o Mais-um revela que o sujeito

(...) não é idêntico ao significante (um nome, uma obra) que o

representa”.22

Nos Escritos de Lacan o texto sobre “A etapa do espelho” é desdobrado por

ele, à maneira de um corolário, em “A agressividade em psicanálise”. A

constituição da identidade sobre a imagem, a fragilidade de sua alienação,

implica uma estrutura rivalitária em que o outro é objeto de admiração e

inveja, de amor e de ódio. “A tensão agressiva desse eu ou outro está

absolutamente integrada a toda espécie de funcionamento imaginário no

homem”.23 Assim também “O espelho – Esboço de uma nova teoria da

alma humana” pode ser visto como articulado, em Papeis avulsos, com o

conto “Verba testamentária”. Neste, uma criança ataca e rasga a fardinha de

alferes que um pequeno rival ganhou do pai, numa manobra onde entram os

já citados esquemas do favor. Esse traço de inveja e agressão, associado à

impressão de que o outro possui, no sucesso de sua imagem, algo que rouba

de si, se estende por toda a biografia da personagem, e corre em

contraponto com a história da constituição do Estado nacional.24 “A etapa

                                                                                                                         21  Encontro  a  observação  sobre  a  semelhança  entre  o  grupo  d’  “O  espelho”  e  a  estrutura  do  cartel  em  um  paper  de  Paulo  Siqueira,  “L’âme  divisée  em  deux:  un  conte  brésilien”,  registrado  na  Biblioteca  do  Campo  Freudiano  em  Salvador,  sob  o  número  INE-­‐0391,  1997.  22  Dicionário  enciclopédico  de  Psicanálise  –  O  legado  de  Freud  e  Lacan,  editado  por  Pierre  Kaufmann.  Rio  de  Janeiro,  Jorge  Zahar  Ed.  1996.    

23  Jacques  Lacan,  O  Seminário  Livro  3,  p.  113.  24  John  Gledson  já  havia  apontado  para  a  conexão  temática  entre  “O  espelho”  e  “Verba  testamentária”,  contos  ligados  a  uma  interpretação  cifrada  do  Brasil,  em  Por  um  novo  Machado  de  Assis,  São  Paulo,  Companhia  das  Letras,  2006,  p.  48-­‐49.  As  datas  de  publicação,  8  

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do espelho” está para “A agressividade em Psicanálise”, nos Escritos,

assim como “O espelho” está para “Verba testamentária”, em Papeis

avulsos, tudo girando, nos dois casos, em torno da mesma emblemática

farda de alferes da Guarda Nacional. Os dois contos foram os últimos do

livro a ser escritos, um logo depois do outro, como se fechassem o

processo, dando-lhe um arremate interno.

Rosa, Koyré e Corbin

No pensamento de Jacob Boehme, em cuja figura Hegel reconheceu “o

primeiro filósofo alemão”, Deus, o Absoluto livre de toda determinação, só

pode conhecer-se a si mesmo opondo-se a si mesmo. Deus se exprime ou

se espelha no homem, criado à sua imagem, num movimento jamais

acabado, infinito, instável. O meio desse engendramento, em que se passa

do Um, indizível e indivisível, à multiplicidade visível do mundo, não é

outro senão o espelho, olho da sabedoria divina que contém as imagens de

todos os seres individuais. “Para esse esquema de pensamento, o mundo

percebido /construído pelo homem é um vasto teatro de espelhos” enquanto

que o espelho funciona, por sua vez, “como o teatro de uma estranha

operação, que faz surgir o infinitamente grande no pequeno e, logo,

também o pequeno no grande e que converte o infinito em finito ao preço

de uma aceleração, de uma precipitação (...)” vertiginosa.25

O espelho (chamado Sofia, ou espelho sofiânico) é o mediador reversível

através do qual Deus se vê no homem e no qual o homem pode entrever o

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     de  setembro  e  8  de  outubro  de  1882,  na  Gazeta  de  Notícias,  reforçam  a  hipótese  da  proximidade  intencional  entre  os  dois  contos.  25  Dufour,  p.  50.  

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divino.26 Deus não deixaria de experimentar, assim, uma espécie de

síndrome narcisista, em que o desejo de completar-se e reconhecer-se

depende de seu vislumbrar-se incessante no Outro. Essa dialética narcísica

é notável na teofania cristã, como observa também Slavoj Zizek, em

passagem em que comenta a religião à luz da teoria lacaniana: “É

justamente porque Deus é um enigma EM SI E PARA SI MESMO, porque

ele traz uma insondável Alteridade em Si mesmo, que Cristo precisou

surgir para revelar Deus, e não apenas para a humanidade, mas PARA O

PRÓPRIO DEUS – é somente através de Cristo que Deus realizou-se

plenamente como Deus”.27

Dufour acredita que Lacan extraiu também dessa postulação filosófica do

narcisismo divino, com sua alteridade constitutiva, a teoria do espelho, e

que o espelho sofiânico habita no corpo dela, dando liga aos outros

componentes da fórmula. A hipótese é plausível, mas se é verdade que a

ideia do espelho sofiânico participa da formulação do espelho lacaniano,

me parece mais que, ao identificar na teofania cristã o núcleo narcísico do

sujeito, o espelho é programaticamente destituído por Lacan de qualquer

transcendência unitiva, tornando-se o lugar em que se acusa uma cisão.

Esse é um gesto diferencial inequívoco que Dufour não identifica, deixando

a sua original sugestão genética num estado de certa confusão conceitual. A

matriz conceitual do espelho sofiânico, tomada in natura, é próxima, mais

propriamente, do modelo junguiano, e oposta ao modelo lacaniano que, se

é que a absorve, é para invertê-la e neutralizar seu aporte místico-

arquetípico.

                                                                                                                         26  Ver  também  “Pensées  de  Dieu,  Images  de  l’Homme  (Figures,  Miroirs  et  engendrements  selon  J.  Boehme,  F.  CH.  Oetinger  e  F.  von  Baader)”,  em  Antoine  Faivre,  Accès  de  l’ésotérisme  occidental  II,  (Paris,  Gallimard,  1996,  p.  220-­‐240).  

27  Slavoj  Zizek,  “O  Real  da  ilusão  cristã:  notas  sobre  Lacan  e  a  religião”,  em  Vladimir  Safatle  (org.),  Um  limite  tenso  –  Lacan  entre  a  filosofia  e  a  psicanálise,  São  Paulo,  UNESP,  2003,  p.  181.  

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Se é para a transcendência unitiva que aponta o pensamento teosófico do

espelho sofiânico, e é isso que Lacan desloca metodologicamente, é isso

que reaparece, a seu modo e em seus próprios termos, na cartada rosiana.

Para entendê-lo, é importante retornarmos ao imaginal de Henry Corbin,

“que remete ao engendramento recíproco da imagem e de seu modelo”.28

Em contraposição às vicissitudes do imaginário, envolvido sempre com a

cisão estrutural que constitui o sujeito, e, como vimos, com as ilusões

decorrentes, o imaginal sonda, como via positiva, as possibilidades de um

sujeito que, despindo-se das representações de si, entre em contato com

dimensões ocultas, dando lugar a um virtual que quer entrar no mundo, e

que só pode fazê-lo através de um espelho reversível em que dois lados que

não se veem chegam a se entrever pela instância radiante de uma espécie de

terceira margem.

No caso do imaginal, trata-se do acesso ao não-cindido, só possível pelo

caminho esotérico (que quer dizer viagem interior, viagem da alma em

busca da alma interna) a um estado de graça onde o sujeito/objeto

transparece não na sua representação mas como a pura presença da

presença, singularidade ontológica livre de toda abstração lógica e de sua

concretização num fenômeno sensível, só possível, por sua vez, tendo-se

atravessado o vazio do espelho, a cifra em que, olhando-se o zero do seu

fundo, se vê o fundo do olhar e não mais as imagens do mundo.29

A travessia do espelho esvaziado de imagens tem história na tradição

mística. Diz Giorgio Agamben, em “Ideia da glória”: “Se eu pudesse

verdadeiramente ver o ponto cego do meu olho, não veria nada (é esta a

treva que, segundo os místicos, é a morada de Deus)”.30 Essa teologia

                                                                                                                         28  Dufour,  op.  cit.,  p.  41.  29  Cf.  Ver  Henry  Corbin,  op.  cit.,  em  especial,  a  parte  denominada  “La  théosophie  ‘orientale’”,  p.  40-­‐80.    30  Giorgio  Agamben,  “Ideia  da  glória”,  Ideia  da  prosa,  Lisboa,  Ed.  Cotovia,  1999,  p.  125.  

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negativa encontra ressonância na tradição literária como ponto de passagem

do processo criativo. Roberto Calasso mostra como o ter chegado a desver-

se no espelho veneziano de seu quarto é declarado em cartas, por

Mallarmé, como um ponto de viragem capital para o desenvolvimento de

sua obra poética.31 E Clarice Lispector, em Água viva: “Quem olha um

espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua

profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro do seu

espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – esse

alguém então percebeu o seu mistério de coisa”.32

Para Corbin, no imaginal o ser e o conhecer, a substância e a visão, se

iluminam reciprocamente: o imaginal “é a aurora da substância, mas

também a própria substância da aurora; a visão da essência, mas também a

essência da visão”.33

Rosa: “Por um certo tempo nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue

começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-

se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já

estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se

emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor

mesmo.”

Nessa passagem-chave do conto, em que uma cintilação desponta no

espelho anteriormente esvaziado, podemos constatar aquele

“engendramento recíproco entre a imagem e seu modelo” que dizíamos

definir o imaginal, e que consiste aqui nessa espécie de jogo indiscernível

entre quem vê e o que é visto, entre a onda luminosa e o ondear da emoção,

entre o sujeito e o objeto, entre – literalmente – a aurora da substância (“o                                                                                                                          31    Roberto  Calasso,  “Um  aposento  sem  ninguém  dentro”,  A  literatura  e  os  deuses,  São  Paulo,  Companhia  das  Letras,  2004,  p.  82  e  seguintes.  32  Clarice  Lispector,  Água  viva,  p.  79-­‐80.  33  Henry  Corbin,  op.cit.  p.  66.    

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tênue começo de um quanto como uma luz”, despontando esse quanto

como a substância mínima) e a substância da aurora (“aos poucos tentando-

se em débil cintilação, radiância”), entre a visão da essência e a essência da

visão, indivisas (“que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se

acolá, refletida, surpresa?”) (o destaque é meu). Como essa passagem

depende de um certo salto mortale intransferível do ser no mundo, a

questão é lançada sistematicamente pelo narrador para o outro que ocupa a

dupla posição de ouvinte interno à narrativa e de leitor: “Se quiser, infira o

senhor mesmo”.

“São coisas que se não devem entrever, pelo menos, além de um tanto. São

outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde – por último –

num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo,

isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo,

meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas

o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma

flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de

menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca

compreenderá?”

Como dissemos antes, as vicissitudes da perda da alma em “O espelho” de

Machado se colocam como a derrisão de um corpo próprio cuja imagem se

esgarça e decompõe: uma sombra que perde um corpo. Em “O espelho” de

Guimarães Rosa, em vez disso, temos uma sombra que ganha um rosto. E

isso se dá porque em Machado de Assis a ênfase irônica está na anatomia

material/imaterial do imaginário, submetido à angústia fundante da falta de

um corpo próprio. Sofrendo o golpe do real, o mecanismo do imaginário se

recompõe sabendo-se ilusório, como o real de uma ilusão em que se funda

um sujeito espectral. O trabalho simbólico que permite o relato distanciado

desse fato, a elaboração implícita pressuposta pela narração teorizante de

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Jacobina, fica posto estrategicamente em estado de suspensão, implícito na

própria narratividade. Em Guimarães Rosa a ênfase irônica está na

reparação espiritual que sobrevém à anatomia do imaginário na forma de

uma inesperada dádiva simbólica. Metendo os pés pelas mãos, “pondo os

bois atrás do carro e os chifres depois dos bois”, o sujeito faz sem saber um

percurso iniciático e chega a uma espécie de revelação à revelia, a inaudita

contemplação da essência em sua luminosa face espectral.

Duas aproximações ao real

Podemos identificar n’”O espelho” de Machado, e no de Rosa, duas

pegadas diferentes em termos de aproximação ao real, ambas passíveis de

serem localizadas no campo teórico lacaniano, mas com consequências

literárias diversas.

Numa das formulações temos o real como buraco não-semiotizável, onde o

imaginário e o simbólico fracassam, introduzindo estranheza radical na

realidade, como negatividade. Numa outra formulação, que não contradiz a

primeira, mas que diz respeito mais propriamente a uma teologia negativa

do que a um pensamento crítico da negatividade, o real como “o

absolutamente sem fissuras”,34 homólogo do Deus Absoluto indeterminado

de Boehme, que não pode ser acessado senão pela via imaginal de um salto

mortale no “desengonço e mundo (...) – intersecção de planos – onde se

completam de fazer as almas”. Insisto: espelho reversível em que dois

lados que não se veem chegam a se entrever pela instância radiante de uma

                                                                                                                         34  Jacques  Lacan,  O  Seminário  Livro  2,  ver  Bento  Prado  Junior,  “Lacan:  biologia  e  narcisismo  ou  A  costura  entre  o  real  e  o  imaginário”,  em  Vladimir  Safatle  (org.),  Um  limite  tenso  –  Lacan  entre  a  filosofia  e  a  psicanálise,  São  Paulo,  UNESP,  2003,  p.  242.  

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espécie de terceira margem. A pergunta vertiginosa por esse real, em meio

ao “vale de bobagens” em que vivemos, é : “você chegou a existir?”

Se “O espelho – Uma nova teoria da alma humana”, de Machado de Assis,

é um passo original na empreitada do Ocidente que postula a cisão

constitutiva do sujeito concentrada na fórmula rimbaudiana eu é um outro,

“O espelho” de Guimarães Rosa mobiliza o princípio igualmente

vertiginoso, colhido em tradições diversas, ou naquela que o Ocidente

esqueceu, de que outro é um eu (e o mundo a desencontrada interseção de

planos “onde se completam de fazer as almas”). Um faz a anatomia crítica

do imaginário, o outro toma o imaginário como transe da passagem ao

imaginal. Um acusa a exterioridade da alma como estando no cerne do

sujeito, outro visa a interioridade da alma como se completando de fazer no

outro.

Nos contos de Papeis avulsos, mais do que um pessimismo biológico,

temos um ceticismo radical quanto à estrutura do imaginário que constitui

os sujeitos. Machado satiriza o cientificismo de seu tempo, utiliza a antiga

teoria hipocrática dos humores, revirada pelo humor, atualiza os filósofos

moralistas do século XVII pela filosofia do inconsciente, e aponta para um

análise do imaginário que ilumina questões que serão tratadas pela

psicanálise – em particular, na perspectiva que elegemos aqui, numa

passagem específica da psicanálise lacaniana. N’ “O espelho” machadiano,

o protagonista ocupa o lugar onde se mostra de maneira flagrante o

sintoma, mas na perspectiva implícita de um autoanalisado que assume

atitude analítica, vertida sobre si mesmo e sobre o grupo, cujos expedientes

imaginários desloca (de forma análoga à da posição do Mais-um no cartel

lacaniano). A crítica do imaginário não se faz pela parábola moral, nem

pela representação de uma saída dignificante da alienação especular

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exposta, mas pela elaboração inerente à própria narratividade, fazendo-a

desembocar num ato de suspensão real, que também envolve o leitor.

A verdade é que o jovem Jacobina, que perdeu e reconstituiu

artificialmente a sua imagem ao espelho, não poderia narrar a própria

história, como a narrou o Jacobina maduro, se não tivesse se descolado

dela, em medida significativa, por um ato de autoanálise que está implícito

na narração, e que implica o simbólico como um passo além das ilusões do

imaginário. Jacobina vai além do ponto em que Simão Bacamarte estacou,

o do psiquiatra às portas da autoanálise e da virada psicanalítica, emergindo

na posição curiosa de uma espécie de Bacamarte analisado. Traços sócio-

culturais brasileiros não deixam de estar presentes nessa “dialética rarefeita

entre não-ser e ser outro” que compõe a sua figura: a oscilação entre o

silêncio evasivo e a truculência da autoridade que não admite réplica,

análoga àquela pendulação da vida brasileira, apontada por Sérgio Buarque

de Holanda em Raízes do Brasil, entre a anomia política e a quartelada: a

farda ou nada.

De maneira análoga, embora por um caminho narrativo diferente, o pai que

inicia o filho no método de cristalização da sua imagem, elevado ao

absurdo, em “Teoria do medalhão”, não poderia dizer tudo aquilo que diz,

explicitando as minúcias de um sintoma psíquico-ideológico a esconder, se

não fosse pela ótica da ironia narrativa que ele recusa como o procedimento

corrosivo máximo a ser evitado (“Somente não deves empregar a ironia,

esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum

grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire,

feição própria dos céticos e desabusados”). Em nenhum lugar, como esse,

Machado explicitou o programa levado a efeito nas obras do período,

evidentemente que através de um salto mortale irônico e elíptico.

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Diferentemente de Machado, a narrativa de Guimarães Rosa faz ver no

espelho esvaziado a quase-imagem que figura um renascimento metafísico,

que não é da ordem nem do pensamento abstrato nem do reconhecimento

empírico – em outras palavras, que não se deixa representar, mas que se

apresenta, ainda assim, como a assunção limítrofe do ser no nada em que o

existente vem a se reconhecer como espectral aparição (“o ainda-nem-

rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica,

de nascimento abissal...”). A imagem epifânica não deixa de ser

problematizada como enigma e continuado objeto de dúvida, já que

literatura, fique claro, não é religião nem doutrina. Desdobrando aquela

perspectiva dialógica em que um narrador interpela seguidamente um

ouvinte inaudível, à maneira da imensa sessão de análise que é o Grande

sertão: veredas, temos n’ “O espelho” uma espécie de autoanalisando-

selvagem que pergunta pelo quem é, e que envolve na sua pergunta o

suposto analista-leitor. Debulhando grãos de sandice a granel, esse sujeito

amalucado, tomado pela ideia fixa de ter de si a impossível visão cabal,

acaba atravessando cabalisticamente o vazio do espelho e perfazendo sem

saber um caminho iniciático desgovernado, que só se faz por obra da graça

– palavra a ser tomada, em Rosa, com a ambivalência da ironia e da

revelação.