Machado, M - Eu sou é uma onça

download Machado, M - Eu sou é uma onça

of 21

Transcript of Machado, M - Eu sou é uma onça

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    1/21

    Eu sou uma onaou um recorte sobre a dignidade e a desigualdade entre os homens

    Por Mnica Machado, aluna especial

    Trabalho apresentado ao professor Ronaldo Lima

    Lins, no curso de mestrado, em alunato especial,

    na disciplina As crises da tica e os impasses

    da esttica, de Literatura e formas de

    conscincia, de Teoria Literria, cdigo LEL720.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Faculdade de Letras 2 semestre de 2008

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    2/21

    Sat wuguga sat ju benga sat si pata pata

    Hahi ha mama, hi-a-mam

    Sat si pata pata

    (Pata pata, 1956)

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    3/21

    3

    1.A teoria aimor

    Est no captulo 43 do livro de Hans Staden artilheiro

    alemo que serviu no forte de Bertioga a cena clebre em

    que este interpela Cunhambebe sobre a legitimidade tica da

    antropofagia. Staden, feito prisioneiro pelos tupinamb e s

    vsperas de ser devorado, no tinha compreendido a festacanibal e argumentava que mesmo os seres irracionais no se

    alimentavam de seus prprios semelhantes. Cunhambebe,

    mordendo a perna de um tapuia, respondeu:

    Jaguara ix. Icbae .1

    Trinta anos depois da publicao deste relato, Gabriel

    Soares de Sousa j no se mostra to intolerante com o

    costume tupinamb. No captulo 32 do Tratado, parece aceitar

    bem a idia de que vingar-se do inimigo , necessariamente,

    com-lo.Inadmissvel, para Gabriel Soares, era ingerir carne humana

    por mantimento, prtica que atribui aos legendrios aimor

    adversrios ferrenhos dos tupinamb, tupiniquim, tupina,

    maracaj, teminim, tamoio, tabajara, amoipira, caet e

    potiguar.

    Os aimor teriam sido to brbaros, to traioeiros, teriam

    provocado tanta devastao no litoral, que chegaram a ser

    tomados, literalmente, por animais selvagens.

    1Conforme original, Eu sou uma ona. E isto est gostoso. MUSSA, Alberto. O

    movimento pendular. Rio de Janeiro: Record, 2006.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    4/21

    4

    At hoje se especula sobre a identidade desses terrveis

    ndios. H quem os associe aos botocudos, ou aos coroados,

    ou aos mongoi, ou aos patax hhhe. Mas um equvoco. Os

    verdadeiros aimor que nunca formaram uma tribo no sentido

    clssico estavam totalmente extintos no sculo XVI.

    Se Gabriel Soares de Sousa tivesse lido Hans Staden, talvez

    houvesse percebido essa contradio: se os tupinamb comiam

    seus inimigos por vingana e por isso eram superiores aos

    aimor, que tinham a carne humana por alimento bsico como

    explicar aquela frase, um tanto irnica, de Cunhambebe?

    o que transcrevo aqui do original, o leitor interessado deve

    tomar O movimento pendulare ler o caso na ntegra. Tudo o que fao,

    daqui para adiante, imerecido e menor.2Continuo.

    Ilha de Maraj, de 401 a 1024. Os pajs ordenaram que fossem

    construdos tesos para marcar o centro do universo, o lugar da terra

    sem males; a partir dali teriam estabelecido o local sagrado para uma

    aliana de tribos. Institua-se, democraticamente, que cada uma das

    tribos congraadas fizesse, a seu modo, suas prprias cerimnias

    religiosas. Cada teso abrigaria um culto, o privilgio relativo ao

    culto era do grupo fundador, os outros grupos poderiam ser iniciados,

    mas eram apenas participantes dos cultos de tesos vizinhos. Em pouco

    tempo as hostilidades tribais foram se aplacando, novos tesos eram

    construdos para os povos que aderiam aliana, desde que seu ritual

    fosse aprovado pelos j congraados. Era a expanso da terra sem

    males, os tesos abrigavam as tribos e suas cerimnias sagradas, osgrupos conviviam pacificamente. Dessa forma conseguiram que o mal (as

    guerras e os medos naturais) ficasse reduzido metfora,

    representao.

    Foz do Tocantins, 881. Uma das ltimas cerimnias admitidas nos

    tesos era a da pixuna: homens e mulheres passavam trs dias

    jejuando, fumando e ingerindo chicha, depois incorporavam o

    esprito de um animal ancestral. A cerimnia teve rpida aceitao

    entre os j congraados porque celebrava a soberania do homem sobre a

    natureza, era a metfora do universo selvagem, do mal superado. Cada

    um dos participantes da pixuna exibia atributos segundo o animalincorporado. Esporadicamente apareciam onas, que matavam e devoravam

    um ou outros bichos; e at mesmo homens, quando escapavam para

    outros tesos.

    Ilha de Maraj, de 1024 a 1089. Cadveres foram achados no dia

    seguinte a uma cerimnia da pixuna, no teso de outra tribo. Mas no

    foram comidos. Era a primeira grande contradio: at ento, o nico

    ser que no matava apenas para comer era o ndio. Entendeu-se que as

    noites de pixuna atraam tambm espritos humanos; entendeu-se que os

    ndios, humanos, tinham a mesma essncia dos animais ancestrais,

    bichos. O nmero de mortos crescia a cada dia.

    2(V, leia Alberto Mussa. Depois, se ainda desejar, retorne a este relato

    cronolgico dos acontecimentos que nos interessam, especificamente.)

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    5/21

    5

    Ilha de Maraj, de 1089 a 1173. Os corpos mortos comearam

    novamente a aparecer dilacerados. Acreditou-se que a pixuna voltara a

    convocar, ento, apenas animais. Em pouco tempo a teoria antiga, de

    que homens eram diferentes de animais retornou. Os congraados

    ficaram aliviados com esta distino. Porm, estavam enganados, Em

    segredo, ndios que vinham incorporando espritos humanos passaram ase reconhecer e a discutir a estranha relao que mantinham com o

    mundo sobrenatural. No fundo, se sentiam diferentes. De certa forma,

    superiores. At se convencerem de que s eles eram ndios

    propriamente ditos. Os outros eram bichos. () E ndio come bicho.

    Foi quando comearam a matar apenas para comer.

    Ilha de Maraj, de 1173 a 1465. Formou-se um grupo grande,

    secreto, organizado e multitnico, eram os aimor. Conversando,

    perceberam que compartilhar da vida cotidiana com os outros ndios

    era ainda mais estranho, j que eram diferentes. Foi quando se deu a

    inverso. Os aimor decidiram que eles mesmos eram os bichos, os

    outros que eram ndios. E bichos comem ndios. Embora a deciso no

    mudasse a configurao das noites de pixuna, o novo grupo precisava

    sair do convvio com suas tribos originais. Foi quando se revelaram e

    se isolaram no interior da floresta. Deixaram de usar adornos, de

    cozinhar, de ter nomes, famlia e abrigo. Permitiam-se apenas

    pequenos modos e ferramentas semelhantes s que usavam tambm os

    bichos. Criaram, inclusive, de um modo diferente de falar; resolveram

    aplicar uma maneira aleatria de sintaxe.

    Ilha de Maraj, 1335. Em um teso, uma virgem que participaria de

    um ritual djarumunj apavora-se por um barulho estranho; profana as

    urnas dos ancestrais para escapar de um ataque de onas aimor sobre um grande grupo de ndios congraados; ela ouve tudo. Mais

    chacinas ocorreram em seguida, talvez elas tenham marcado o fim da

    civilizao marajoara.

    Cabeceiras do Xingu, 1428. Os aimor j eram perseguidos. Algumas

    tribos do Xingu e ex-congraados marajoaras organizaram-se para

    extermin-los. Foi um tempo de trgua geral, exceto contra os aimor.

    Em funo de suas prprias caractersticas, [os aimor] eram

    incapazes de grandes articulaes internas e [logo] sucumbiram. O

    acontecido destruiu a crena indgena na terra sem males. Apenas os

    tupi e os guarani a reservaram, num aspecto idealizado, num sentidosobrenatural, somente.

    Praia de Atafona, 1437. Uma emboscada dos goitac contra os tamoio

    e os tupiniquim deu maior gs ao mito aimor. Os perdedores,

    orgulhosos, inventaram uma lenda para justificar seu fiasco,

    inventaram que tinham perdido para os ferozes aimor.

    Vale do So Francisco, 1461. Um bando de trs indivduos aimor,

    remanescentes da horda primitiva, fugia represso e, por distores

    de comportamento; tinha conscincia de que eram me, pai e filho.

    Chapada dos Veadeiros, 1462. Outro grupo aimor, dois homens e

    duas mulheres, tambm sobreviventes remanescentes, j apresentavam

    distores de comportamento: tinham cimes.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    6/21

    6

    Serra da Capivara, 1465. ltimo bando aimor. Duas mulheres e um

    homem. Uma delas, mais velha, tinha os peitos cados e a pele

    enrugada. A outra era jovem e no tivera crias. O homem,

    naturalmente, desprezava a primeira. Em uma situao de descanso,

    uma pausa na fuga constante, a mulher mais velha fala ao homem uma

    frase sem qualquer finalidade, mas de sentido claro; O arco-ris de penas de arara. O homem e a mulher mais velha passaram a

    conversar sem qualquer propsito; com isto provocaram a revolta da

    mais jovem, que foi logo abandonada e morreu comendo terra. As

    frases da mulher mais velha despertaram instintos recalcados. Bastou

    um estmulo e eles readquiriram o gosto pelo intil. E estavam

    [novamente] degradados, como animais. Passaram a cobrir-se com penas

    e a falar sobre as coisas que viam e que sentiam. Mais tarde foram

    absorvidos por ndios solidrios que no os reconheceram por aimors.

    Foram reintegrados comunidade indgena. No se sabe se foram os

    responsveis pela difuso do conceito implcito na fala de Cunhambebe

    para Hans Staden.

    O relato original no cronolgico, afasta de princpio qualquer

    inteno classificatria. Se o escrito de Alberto Mussa tem alguma

    funo, alm do ensaio puro, deve ser a elaborao artstica, terica

    e esttica, no ser explicativo, nem analtico como sugere o ttulo.

    No se trata de um ensaio acadmico em torno da sociologia.

    O que A teoria aimor faz investigar as origens da frase de

    Cunhambebe. Suas premissas so tambm sugestes e tm bases

    histricas, arqueolgicas, sociais e etnogrficas. Certamente, o

    autor usou da criatividade para intuir certos aspectos da teoria,assim como Cunhambebe o fez provavelmente para intuir o gosto

    pela carne humana.

    Os ndios aimor precisaram, na verdade, disfarar sua

    superioridade intelectual e evolutiva para sobreviver em um meio

    menor, filosoficamente atrasado. Depois se afastaram do convvio dos

    seus ou foram banidos, porque no se adaptaram vida do segredo ou

    da degradao de seus ancestrais, no puderam ocultar suas

    capacidades. No fim, a redescoberta da metfora possibilitou a

    reintegrao ou terminou por corromper os modos dos aimor

    remanescentes. Estes sim, conquistaram sua cidadania por baixo.No procuro neles um sentido etnogrfico nem sociolgico qualquer.

    Encontrei na histria aimor apenas a reverberao de uma

    desconfiana antiga, minha, sobre a representao de identidades em

    rituais e cultos.

    A cerimnia da pixuna , alm de convocao e transe, ameaa aos

    observadores; os tesos so lugares em que se realizam eventos

    influenciados por aspectos especiais de criao, de representao e

    de sociedades, adiante comentados. Os tesos eram o palco da pixuna na

    convocao de bichos. Quando vinham onas, quem fosse observador

    estaria encantado pela beleza do rito ao mesmo tempo em que estaria

    ameaado pela ferocidade dos ndios, incorporados de seus espritos

    animais ancestrais.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    7/21

    7

    2.Miriam Makeba

    Zenzile nasceu em 4 de maro de 1932, em Johanesburgo, filha de

    me suazi e pai xhosa, comeou a cantar ainda criana; aos 13, j

    cantava na escola, depois em casamentos. Tornou-se conhecida, pelo

    talento e pela fora de sua voz, firme e poderosa. Aos 20 anos,

    comeou a cantar com The Manhattan Brothers, comeou sua carreirainternacional. Em 1956, comps "Pata Pata".

    Adotou o nome Miriam, abandonando seu nome zulu. Pouco depois

    formou seu prprio grupo, o Skylarks, integrado exclusivamente por

    mulheres. Seu primeiro marido foi o trompetista de jazz sul-africano

    Hugh Masekela. Miriam Makeba saiu da frica do Sul para um turn, em

    1959, ciente de que era visada pelo governo nacionalista, por causa

    de sua atuao poltica. Na Europa, denunciou o regime racista sul-

    africano, denunciou a situao dos povos negros na frica do Sul sob

    o regime do apartheid. Tornou-se conhecida, pelo ativismo poltico e

    pela fora de sua voz, firme e poderosa, novamente. Quando tentouvoltar a Johanesburgo o governo no s impediu seu regresso como

    revogou seu passaporte. Tornou-se aptrida, pelo talento, pelo

    ativismo poltico e pela fora de sua voz. J era 1959. Suas msicas

    foram proibidas na frica do Sul, devido repercusso de suas

    denncias perante a ONU, em 1963.

    A cantora viveu exilada em vrios pases. Morou em Londres, depois

    nos Estados Unidos. Em 1969, casou-se com o lder dos Panteras

    Negras, Stokey Carmichael (de quem viria a se separar, em 1973). O

    casal foi considerado personna non grata nos EUA, por isso emigrou

    para a Guin. Miriam participou de diversos concertos na vizinha

    Serra Leoa.

    Reconhecida por sua capacidade de misturar o blues, o gospel e o

    jazz com ritmos tradicionais africanos, a cantora gravou The Click

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    8/21

    8

    Songe Malaika, dois dos mais de 30 discos que lanou ao longo de sua

    extensa carreira.

    Em 1966, Makeba recebeu um Grammy pelo lbum An evening with Harry

    Belafonte and Miriam Makeba. Durante os anos 70 e 80, ela cantou em

    todo o mundo, participou de vrios festivais de jazz. Em 1987,

    participou da turn Graceland, do cantor Paul Simon. Pouco depoispublicou a autobiografia Makeba: minha histria. Viveu no exlio

    durante 31 anos, durante este tempo perdeu a me (1960) e a filha

    (1985).

    Foi embaixadora da Boa Vontade da Organizao Mundial para a

    Alimentao e a Agricultura (FAO), j era conhecida como Mama frica,

    lutava para reduzir a fome e melhorar as condies de vida das

    pessoas mais pobres no mundo, celebrou todas as independncias do

    continente africano.

    Nunca entendi por que que no podia voltar ao meu pas", disse

    Makeba quando regressou: "Nunca cometi nenhum crime".

    Convencida por Nelson Mandela, em 1992, foi recebida com honrarias

    e homenagens, voltou a Johanesburgo. Instalou-se no subrbio,

    continuou lutando contra as injustias e fundou um centro de

    reabilitao para adolescentes.

    Em 2005, cansada de viajar, Makeba iniciou sua ltima turn. "Devo

    passar pelo mundo todo para dizer obrigada e adeus", explicou, na

    poca, em uma entrevista concedida AFP, na qual tambm expressou o

    desejo de que suas cinzas fossem jogadas no Oceano ndico. "Assim eu

    vou poder viajar de novo para todos os pases", justificou. Dizia no

    ter cantado nunca "para a poltica, mas para a verdade".

    Teve a coragem de viver fazendo de sua msica e de si mesmaadvogada da pobreza, contra o racismo e pela soberania do povo

    africano. Mais, numa cidadela perto de Npoles, na Itlia, Zenzile

    Miriam Makeba Mama frica, faleceu. Tinha 76 anos. Sentiu-se mal

    depois de cantar Pata pata, saiu do palco e desmaiou nos

    bastidores. Morreu defendendo a liberdade do escritor, Roberto

    Saviano, autor de Gomorra, sucesso em livro e em filme.

    Era 10 de novembro de 2008.

    A expresso de seus olhos acompanhava a voz. Especialmente no DVD

    Live at Berns Salonger, gravado em 1967, relanado em 2003. Nainternet, na pgina do Youtube, h esta apresentao ao vivo na

    ntegra, mas em arquivos de uma ou duas canes de cada vez.

    Na platia, em Estocolmo, o espao parece lotado; o que se d a

    perceber pelas palmas e pelas luzes de frente e fundo.

    No palco, sem falar, Miriam Makeba comanda o pblico, seus olhos

    invariavelmente esto arregalados, as sobrancelhas levantadas e o

    corpo retesado num movimento, pronto; sua boca parece tambm

    preparada para um urro ou uma gargalhada, o que vem melodia e

    sorriso.

    Seus msicos so apresentados durante uma cano, das mais

    onomatopaicas, Amampondo (2:33) Leopoldo na percusso, vindo de

    Saint Thomas, Bill no baixo acstico dos Estados Unidos e Sivuca no

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    9/21

    9

    violo e no acordeo, o nosso brasileiro. Eles no saem do palco,

    apenas Miriam entra e sai.

    Cada momento de silncio seu necessrio ao estabelecimento de um

    novo movimento de encanto, isso tanto nas artes como nas sociedades.

    A tenso e os movimentos de Miriam Makeba propiciam tanto o ataque

    quanto o deleite. Ela parece, a cada vez que termina uma cano,mudar; sua expresso passa da ferocidade e da seduo seriedade do

    silncio.

    Como se percebe, o silncio que ela exige antes de cada nova

    msica a marca maior de seu domnio sobre os espectadores. O

    encanto que provoca no s resultado da qualidade de sua msica,

    tambm resultado de uma ferocidade da prpria cantora; por ser jovem

    e forte ela parece especialmente letal. A qualquer momento a mulher

    pode atacar a platia hipnotizada.

    um animal selvagem. uma ona. uma mulher cantando como se

    invocasse nas artes a cultura africana e a lngua, em favor de

    mostrar-se naturalmente, em dana e voz. uma cantora vestida de

    ona, o que, neste contexto, interessa muitssimo.3

    4

    Em uma leitura simples da biografia de Miriam Makeba, vemos logo

    que seu sucesso a destacou de sua prpria gente. A partir desta

    diferenciao primeira (baseada na arte), sua ao poltica se fez

    notria internacionalmente. O ativismo poltico que a caracterizou

    alm de sua voz, se desenvolveu alm do que seria admissvel para o

    governo nacionalista dos africneres. A mulher teve uma vida longa,

    durante toda ela, cantou por liberdade, por identidade, por sua

    cultura, por defender o direito de usar sua prpria voz em defesa dooprimido. Cantava para que o povo, oprimido pelo apartheid,

    reencontrasse o aprendizado da luta, reencontrasse a si mesmo, isso

    de incio. O canto africano rearranjado nos moldes do blues, do soul

    e at da bossa nova, era a expresso dos medos e a difuso dos lemas

    e bandeiras entre oprimidos, era canto de comunho, propunha a f na

    capacidade de resistncia dos povos, resistncia e luta, sempre.

    Nesse sentido, seu canto quase religioso, o mais amplo possvel.5

    3(Sim, admito que a estampa possa ser tambm a de um leopardo, o caso aqui que

    prefiro e pretendo referir-me apenas a onas.)4A capa do DVD, com a apresentao de 1967, em Estocolmo.5( o caso de Kawuleza, segundo a apresentao de Miriam, era cantada por crianas

    perseguidas pela polcia, era um grito dirigido s mes, em casa, para que as

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    10/21

    10

    Sua voz era a arte que elevava espadas, a mesma que lhe rendeu o

    banimento da sociedade natal.

    No procuro nela um sentido etnogrfico nem sociolgico qualquer.

    Encontrei na biografia de Miriam Makeba eventos que se assemelham s

    discusses sobre a ao poltica, a convivncia em sociedade e a

    capacidade de readaptao ao mundo estabelecido pelo exerccioesttico, artstico.

    Encontrei na apresentao, ao vivo, em Estocolmo, uma reverberao

    de uma desconfiana antiga, minha, sobre a capacidade encantatria de

    um discurso poltico potencializado pela atitude do corpo, no sentido

    alegrico. Os elementos que compem esta especfica apresentao de

    Miriam Makeba me alertam para a ferocidade contida em sua

    representao, tambm interpretao. Seu canto alm de convocao,

    uma ameaa; o palco onde ela est um lugar em que se realizam

    eventos influenciados por aspectos especiais de criao artstica.

    I will sing until the last day of my life e continuar tambm

    depois, por gravaes e pela memria, pelo talento, pelo ativismo

    poltico e pela fora de sua voz. Mama frica permanece na msica e

    na histria, hoje ela lembrana e lenda, mito.

    protegessem. o caso de A luta continua, cantada em louvor independncia de

    Moambique e a Zamora Machel. o caso da ltima apresentao, Pata pata, cantada

    em defesa de Roberto Saviano, contra a mfia e a segregao racial.)

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    11/21

    11

    3.Recorte

    A proposta deste pequeno estudo compara a apresentao de Miriam

    Makeba, Live at Berns Salonger, e A teoria aimor, de Alberto

    Mussa; partindo da arte e do homem: da dignidade do gesto de

    revoluo e de reconhecimento de identidade, a seduo da msica e as

    desigualdades sociais e de pertencimento por que passaram os aimor eMiriam Makeba.

    Se for necessrio expor razes, alm de meu prprio desejo

    intelectual, para falar sobre onas, destaco dois acontecimentos

    recentes. O primeiro deles, a eleio de Barack Obama para a

    Presidncia dos EUA. O segundo, uma edio especial do Suplemento

    Literrio de Minas Gerais(SLMG), com um estudo sobre os Vissungos,

    cantos afro-descendentes em lngua africana, cantados outrora nos

    servios de minerao e publicados em O negro e o garimpo em Minas

    Gerais, de Aires da Mata Machado Filho (Editora Itatiaia, 1985).

    Estas so, juntas, a justificativa para minha procura; o fato derepresentantes polticos e mestres de cultura serem ainda hoje

    desejados pelas sociedades-platia. Minha busca no solitria.

    Mesmo numa parfrase de nossa ementa, as crises da tica

    resultadas da atual configurao das sociedades modernas influenciam

    no s a literatura de agora presente em O movimento pendular, de

    Alberto Mussa como nosso entendimento da msica africana

    popularizada desde os anos 60aqui falamos de Miriam Makeba e suas

    experimentaes entre blues, o gospel e o jazz com ritmos africanos,

    brasileiros, caribenhos

    Entre as caractersticas da literatura contempornea est se

    evidenciando um entendimento da arte que nos precede, da tradio.

    uma tentativa de entender a contemporaneidade sob uma leitura de

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    12/21

    12

    fluidez, uma aproximao entre tempos, em interpenetrao da tradio

    com o novo. Nos termos de T. S. Elliot,

    Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significao

    sozinho. Seu significado e a apreciao que dele fazemos

    constituem a apreciao de sua relao com os poetas eos artistas mortos. No se pode estim-lo em si;

    preciso situ-lo, para contraste e comparao, entre os

    mortos.6

    O crtico fala de uma compreenso em princpio, de esttica, no

    histrica, mas no sentido de que a significao da obra de arte

    tradicional, integrante do todo cannico, coeso, fica alterada quando

    outra obra de arte surge e se revela integrante da tradio, revela

    em si traos, elementos e ressonncias que lhe conferem a

    participao no cnone. A obra de arte nova reconhecida pelo

    cnone.

    Os monumentos existentes formaram uma ordem ideal entre

    si, e esta s se modifica pelo aparecimento de uma nova

    (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente

    completa antes que a nova obra aparea; para que a ordem

    persista aps a introduo da novidade, a totalidadeda

    ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer

    levemente, alterada: e desse modo as relaes,

    propores, valores de cada obra de arte rumo ao todo,

    so reajustados; e a reside a harmonia entre o antigo eo novo.7

    Essa reintegrao do novo ao tradicional que o reconhece que

    rearranja toda a tradio. Cada obra pertencente deve novamente

    reencontrar seu lugar.

    Os elementos que compem a teoria de Alberto Mussa me alertam para

    a identidade entre onas. As competncias e experincias

    compartilhadas dentro do ritual, pela arte representativa, so

    caractersticas ancestrais. Chego suposio de que, por uma viabastante imaginosa, a histria de Miriam Makeba seja um desdobramento

    do instinto recalcado de ona do povo aimor, assim como foi a fala

    de Cunhambebe. Grosseiramente, a animalidade de Miriam se revelaria

    no vestido e nas atitudes da cantora.

    O recebimento dessa idia permite que eu faa agora um estudo em

    torno do parentesco de Miriam Makeba com o apresentado na teoria

    aimor, inclusive sob as influncias do que ocorreu no passado,

    repetindo-se na histria dos aimor e na biografia da cantora.

    6ELLIOT, Tomas Stearns. Tradio e talento individual. In Ensaios. Traduo de Ivan

    Junqueira. So Paulo: Art Editora, 1989.7ELLIOT, Idem.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    13/21

    13

    Refiro-me ao banimento de entre os seus, que expe a semelhana,

    tambm, da fragilidade do poder constitudo (por no ser entendido, o

    diferente foi banido, atacado, destrudo) tanto dos africneres de

    Johanesburgo quanto com os ndios congraados nos tesos marajoaras.

    A reintegrao do ltimo grupo aimor remanescente a uma tribo

    reconhecidamente solidria revela mais uma sutileza desta comparao:os diferentes, ambos, muitos anos depois do desacordo, so

    reintegrados ao convvio entre os seus povos sem que acontecesse uma

    situao de aceitao do diferente. Ao contrrio, quase se pode dizer

    que os remanescentes aimor foram reintegrados por um fechar de

    olhos, no seria por mrito nem por piedade, mas por que a sociedade

    no quis mais enxergar neles nenhum trao da ferocidade que lhes

    destacou e que impossibilitava o convvio.

    Ancestralidade

    Na particular coincidncia das onas, posso falar que as

    personalidades construdas permitiram aos ndios incorporados e

    cantora, identificar-se em representao; as peles de ona permitiram

    agir como quem mostra o gesto ancestral e o torna particular, como se

    fosse uma reapropriao do poder ancestral.

    No exerccio filosfico seguinte ao reconhecimento das

    competncias especiais, o povo aimor aprendeu seu lugar no mundo dos

    tesos. Hannah Arendt diz:

    J que eu no sou um ser criador de mundo, talvez minha

    natureza seja a de um ser destruidor do mundo.8

    A professora falava sobre as bases do niilismo. Podemos aqui

    enxergar o embate que promoveu a compreenso do ndio que incorporava

    um esprito ancestral antropofgico de sua prpria essncia animal. A

    ancestralidade, neste caso de reconhecimento de identidade, foi

    fundamental para formar-se a ruptura, o ndio percebeu que ele mesmo

    era especial porque seus ancestrais no eram como os ancestrais dos

    outros. Eles tinham um poder diferente.

    O poder era tambm um segredo, como uma compreenso de que a

    ancestralidade, assim representada, dava ao ndio que incorporava

    onas algo que no podia ser compartilhado de modo raso, simples,direto e fcil. S pde ser sugerida a diferena, at que se tornasse

    presena palpvel, no sentido que nos d Gumbrecht,9da produo de

    presena, no por inferncia de sentido, no por interpretao, mas

    por manifestao mgica, de possesso, de consubstanciao.

    Conhecimento tradicional e ancestralidade so essenciais a este

    aprendizado, sem melindres nem ressentimentos, o escritor de hoje

    pode dar-se a teorias do que foi antes e no que parece ter-se

    configurado agora.

    8ARENDT, Hannah. A dignidade da poltica.Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1993.9GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de presena, perpassada de ausncia, sobre msica,

    libreto e encenao. In: Como falar de literatura hoje? Revista Palavra, n7. Rio de

    Janeiro: PUC-Rio, 2001.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    14/21

    14

    Invocao

    Necessariamente, para a aproximao com os ancestrais, a tradio

    deve ser invocada. O ritual envolve alguns aspectos de gesto de

    autoridade, de encanto musical e de rito (as regras do culto

    mantinham a ordem e as prioridades, e parecem ser invocadas a cadanecessidade). Neste ritual de invocao haveria um apaziguamento da

    natureza primitiva, nos sacrifcios rituais e no desenrolar da

    cerimnia, os aspectos de invocao so ferramentas de uso, manuseio

    e artifcio legado apenas a iniciados, as onas eram eventos raros.

    Ao pensar nas situaes-limite de Jaspers

    Em que o homem levado a filosofar tais como a morte,

    a culpa, o destino, o acaso, uma vez que em todas essas

    experincias a realidade mostra-se como algo que no

    pode ser evitado, que no pode ser dissolvido pelo

    pensamento. O homem chega conscincia de que

    dependente no de algo em particular nem de alguma

    limitao em geral, mas do fato de que ele .10

    Percebemos a invocao em lugar de gatilho para que os ndios

    especiais, incorporados de onas devoradoras de homens, reconhecessem

    a si mesmos e admitissem a irreversibilidade de seu estado

    diferenciado, como irreversvel a descendncia.

    Nas palavras de Gumbrecht, na cultura de presena, do ponto de

    vista ideal, o corpo possudo pelo esprito, pelo demnio, pelo

    deus; A possesso, no cotidiano, no rasura, nfase,11pois enftico que o ancestral seja uma ona, o iniciado no tinha como

    fugir a sua natureza de ona, ao contrrio, o caso de assumir a

    diferena. Foi o que fizeram, os ndios e Mama frica, ela tambm,

    provvel descendente.

    O deus da transformao aquele que pode transitar entre o vivo e

    o morto, entre os lugares que no h verdade nem bem, no h mal; o

    que h a contingncia.12Uma dada configurao de coisas que est

    colocada e com a qual lidamos.

    Segundo Arendt, o ritual de invocao dos ancestrais permitia uma

    tal reconstruo do mundo a partir da conscincia [que

    se igualaria] a uma segunda criao, j que nessa

    reconstruo seu carter contingente, que ao mesmo

    tempo seu carter de realidade, seria removido, e o

    mundo no mais apareceria como algo dado ao homem, mas

    como algo criado por ele.

    10ARENDT, op.cit.11GUMBRECHT, op. cit.12LINS, Ronaldo Lima. Anotaes de aula. Rio de Janeiro, 2 semestre de 2008.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    15/21

    15

    A grande estranheza advm da coisa diferente, da situao das

    onas: mais antiga, primitiva, instintiva.

    Ainda segundo Gumbrecht, o ritual sagrado um tipo especial de

    encenao cujo papel central no tem um s ocupante. um tipo de

    experincia que no pode ser justamente analisada segundo a dimenso

    da produo de sentido (no mbito interpretativo) ou segundo aidentificao de sentido (da hermenutica). O fascinante o que

    permanece excludo e ainda assim postulado (uma sugesto, apenas): o

    esprito invocado.

    No esporte, a substncia dada pela presena dos

    jogadores no campo, toda a ateno e tenso dirigem-se

    possibilidade de emergir uma forma a partir da interao

    dos corpos presentes. Na pera, j que o libreto anuncia

    antes a ao, a ateno e a tenso do pblico, dos

    cantores e dos msicos est voltada para a emergncia da

    substncia sonora.13

    Na invocao, o ancestral ona , perante o esforo ritual dos

    aimor e o canto de Mama frica, o que reflete e representa as

    situaes de identidade nas sociedades.

    14

    Identidade

    A teoria aimor se adequa ao que fez Miriam Makeba durante seu

    exlio e depois, quando finalmente retornou ao pas em que nasceu.

    Miriam passou 31 anos aprendendo a defender sua cultura de ona em um

    mundo que teme e admira onas. Depois, j envelhecida, reintegrou-se

    ao modus vivendida frica do Sul apenas porque pretendia viver ainda

    mais. Tentava, com um centro de reabilitao para jovens, cultivar na

    13GUMBRECHT, op. cit.14 De BRY, Theodor. Gravura em cobre, dana ritual dos Tupinamb. No centro, trs

    pajs com mantos de penas, cintos e diademas. s/d.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    16/21

    16

    memria a histria e a msica de seus ancestrais, pela educao. Sua

    prpria imagem na ao poltica, na constante atividade para o

    resguardo dos direitos humanos, mantm a Miriam Makeba em pleno

    combate. Seu legado foi a msica, a fora e a persistncia com que

    atuou, incessantemente. Assim como os aimor deixaram seu legado

    cultural pelo sangue, pela herana, cujo fiel indicador depermanncia foi o apetite de Cunhambebe.

    Na pretenso de esboar um entendimento de aspectos na histria e

    na identidade de onas, analiso brevemente a situao de violncia em

    que ocorrem tanto o rompimento do espao dos tesos (quando ndios

    atacam e matam em outros tesos), quanto o banimento de Miriam Makeba

    e dos ndios aimor. A marca da luta pela fundao de um povo livre

    seria tambm a revelao da

    Teoria do poder poltico de Maquiavel, segundo a qual o

    ato de fundao em si, isto , o incio consciente de

    algo novo, requer e justifica o uso da violncia. 15

    Num jogo de cumprir e esquivar-se a regras, vo os aimor e a

    cantora criando e ajustando sua identidade, suas ferramentas so a

    arte e algum pensamento filosfico e intuitivo. Meio sob a vigilncia

    das sociedades com que conviviam, muito por inveno e alegoria. Essa

    situao de isolamento desencadeou um processo de acirramento de

    diferenas.

    A propsito da solido, do isolamento, do banimento, penso na

    concepo de Lucien Goldmann,16 comentando sobre Lukcs, da

    necessidade dos homens de manter contatos concretos com outroshomens, porque, sem isso, no seriam capazes de manter sua prpria

    humanidade.

    Servido

    Uma situao especial se coloca sobre o pblico (os ndios

    congraados que apenas assistiam s cerimnias da pixuna e a platia

    de Miriam Makeba), a do fetichismo da ona, do poder e da

    ferocidade contidas e provveis, na representao musical e na

    incorporao significativa para o contexto religioso dos tesos.Em comentrio sobre Memrias pstumas de Brs Cubas, Abel Baptista

    fala da situao de perda de platia em relao a um narrador morto;

    porque no tem platia ou porque no lhe importa o que pensa a

    platia. Destaco.

    A metfora da platia descreve essa perda: no so os

    mortos que perdem a platia, so os vivos que perdem a

    possibilidade de se constiturem platia relativamente

    aos mortos. No h platia descreve a situao anmala

    15ARENDT, op. cit.16GOLDMANN, Lucien. O novo romance e a realidade. InA sociologia do romance. Rio de

    Janeiro: Paz e Terra, 1976.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    17/21

    17

    em que os espectadores olham, assistem, apreciam; mas

    aos atores, sabendo que eles olham, assistem, apreciam,

    lhes indiferente o resultado da assistncia e da

    apreciao. A platia responde, talvez aplauda os

    atores que em caso algum regressam ao palco para

    agradecer.17

    A situao da platia de entrega ao narrador morto, o pblico

    est meio em lugar desprezvel porque tambm desimportante para o

    desenrolar da histria. Assim como parece acessrio cantora e aos

    aimor. O caso que lembra bastante a servido voluntria,

    estabelecida nos termos de Etinne de la Botie,18pela evidncia de

    que a relao entre a platia e o ditador-cantor-sacerdote de

    submisso, de jugo, com a permisso e o consentimento do submetido,

    do dominado: a prpria platia. S a capacidade de um sacerdote-

    cantor pode autorizar esta servido. A cada gesto a situao

    domintante do ritual vai-se construindo.

    Os objetos iluminados perdem seus nomes: sombras e

    claridades formam sistemas e problemas particulares que

    no dependem de cincia, que no aludem prtica, mas

    que recebem toda sua existncia e todo o seu valor de

    certas afinidades singulares, entre a alma, o olho e a

    mo de uma pessoa nascida para surpreender tais

    afinidades em si mesma, e para as reproduzir. A mo

    intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na

    experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras ofluxo do que dito.19

    Assim, tambm entra o narrador benjaminiano na construo da

    audincia para espetculo e representao de onas. A platia,

    encantada, sem reconhecer nada no entorno, quase em total escurido

    (o espetculo s ilumina o palco, as cerimnias da pixuna acontecem

    noite), entrega-se ao domnio do narrador, naturalmente capaz de

    recriar no espectador a imagem alegrica necessria e condutora do

    ritual.

    Ora, o caso do encanto na apresentao musical ou no ritual,depende tremendamente dos momentos de silncio, da chamada em

    ateno. As pausas, como a despertar para o seguinte momento, refazem

    os entrechos da pera, novamente como j destacava Gumbrecht, o

    momento de silncio antes da abertura cria a descontinuidade entre o

    cotidiano e a encenao.20

    17BAPTISTA, Abel Barros. Liberdade da forma.In Suplemento Literrio. Belo

    Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, abril de 2008.18BOTIE, Etienne de la. Discurso da servido voluntria. So Paulo: Brasiliense,

    2008.19BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo:

    Brasiliense, 1994.20GUMBRECHT, op. cit.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    18/21

    18

    A voz dos ndios e da mulher comanda; o gesto que oferece em

    ritual e apresentao, em retorno, recebe a ateno dedicada e

    rendida do pblico; o ato que seria de paz termina com a conquista, a

    libertao, a unio do homem com Deus, do homem com a natureza, o

    sensualismo e as canes ancestrais.21

    Herana

    O corpo em relao com o contexto que propicia os estatutos de

    autoridade. Se o corpo estiver ausente, se no experimentar nem

    desejar, no influir no contexto, se no produzir nem compreender as

    metforas produzidas, no ser capaz de compreender o prprio

    contexto.22Falamos aqui de herana e de como as competncias herdadas

    possibilitam s onas a permanncia nos instintos descendentes.

    As regras de convivncia em comunidade so estabelecidas neste

    contexto ritual que, por fim, fundamenta ou representa a moral

    entre os homens. Esse conjunto de regras garante a convivncia entre

    os diferentes povos; asseguram essa convivncia; sustentam as

    relaes entre os homens. De outro modo, isolados ou corrompidos,

    todos os homens seriam to frgeis quando os aimor remanescentes.

    Os elementos desagregadores, que afastaram as onas da sociedade

    em que viviam, foram suas competncias especiais, foi o

    reconhecimento da diferena dos aimor e de Miriam Makeba H uma

    sugesto de que ser preservado o conhecimento em herana. Esta sim,

    obra de inveno e tcnica, mais que de inspirao:23

    Se a essncia de toda ao, e em particular a da ao

    poltica, fazer um novo comeo, ento a compreensotorna-se o outro lado da ao, a saber, aquela forma de

    cognio, diferente das muitas outras, que permite aos

    homens de ao (e no aos que se engajam na contemplao

    de um curso progressivo ou amaldioado da histria), no

    final das contas, aprender a lidar com o que

    irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que

    inevitavelmente existe.24

    A cantora e os aimor passaram provavelmente por esta compreenso

    e resolveram, numa atitude de inteligncia e de preservao,reintegrar-se. Um, porque tenha disfarado sua natureza, a outra,

    porque tenha admitido que precisava educar para restaurar a natureza

    das crianas. Garantindo o futuro, pelo menos. A promessa de Mama

    frica sobre cantar at o fim da vida demonstra ainda mais sua

    persistncia em permanecer. As percepes da mulher mais velha (na

    teoria aimor), primeiro em manter consigo o homem para provvel

    reprodutor, depois em reencontrar a fala e a capacidade de apreciar a

    21MARCUSE, Paul. Eros e civilizao.

    22GUMBRECHT,op. cit.23SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. So Paulo: Novas Metas, 1986.24ARENDT, op. cit.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    19/21

    19

    metfora, conseguir disfarar sua prpria identidade em linguagem

    para reintegrar-se ainda sabedora de sua natureza. O modo convicto

    com que Cunhambebe aprecia a gostosa carne de isso, todos estes

    indcios so reveladores da permanncia cultural.

    Novamente o caminho, assim como o tempo, cclico. Neste lugar doestudo necessria uma pausa, porque estamos de volta ao comeo e o

    recorte agora se detm.

    O crculo que os lgicos denominam vicioso; sob este

    aspecto, talvez, a compreenso se assemelhe filosofia,

    cujos grandes pensamentos sempre giram em crculos,

    engajando o esprito humano em algo que no passa de um

    interminvel dilogo entre ele mesmo e a essncia de

    tudo o que .25

    Seria admitir que camos num dos desenhos de Escher. Seria uma

    passagem quase em brincadeira (circularidade) porque seriam um

    esforo em reconhecer e aprender com a tradio. A recomear o

    crculo desse raciocnio, precisaria convocar meus ancestrais,

    evidentemente em um ritual sagrado, musical, alegrico, at que

    pudesse, vislumbrando a mim mesma no que herdei e intu, reconhecer

    meus mestres e aprender com eles, novamente reescrever sua herana,

    minhas tradiesE termino assim mesmo, em contnuo.

    26

    25ARENDT, idem.26ESCHER, Mauritus Cornelis. Rpteis. Litogravura do lbum Back in Holland, 1943.

    Em http://www.mcescher.com.

  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    20/21

    20

    4.Referncias bibliogrficas

    Agncia de Notcias AFP. Miriam Makeba, a lendria voz do continente

    africano. 10 de novembro de 2008. Em HTTP://apf.google.com.

    ARENDT, Hannah. A dignidade da poltica. Rio de Janeiro: Relume

    Dumar, 1993.

    BAPTISTA, Abel Barros. Liberdade da forma. In Suplemento Literrio.Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,

    abril de 2008.

    BENJAMIN, Walter. O narrador. In Magia e tcnica, arte e poltica.

    So Paulo: Brasiliense, 1994.

    BOTIE, Etienne de la. Discurso da servido voluntria. So Paulo:

    Brasiliense, 2008.

    DE BRY, Theodor. Gravura em cobre, dana ritual dos Tupinamb. No

    centro, trs pajs com mantos de penas, cintos e diademas. s/d.

    ELLIOT, Tomas Stearns. Tradio e talento individual. In Ensaios.

    Traduo de Ivan Junqueira. So Paulo: Art Editora, 1989.ESCHER, Mauritus Cornelis. Rpteis. Litogravura do lbum Back in

    Holland, 1943. Em http://www.mcescher.com.

    GOLDMANN, Lucien. O novo romance e a realidade. InA sociologia do

    romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

    GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de presena, perpassada de

    ausncia, sobre msica, libreto e encenao. In Como falar de

    literatura hoje?Revista Palavra, n 7. Rio de Janeiro: PUC-Rio,

    2001.

    LINS, Ronaldo Lima. A construo e a destruio da esttica.

    Palestra de abertura do seminrio Ps-modernismo: a arte na cena

    contempornea. Em 3 de outubro de 2007.

    LINS, Ronaldo Lima. Anotaes de aula. Rio de Janeiro, 2 semestre de

    2008.

    http://apf.google.com/http://apf.google.com/
  • 8/12/2019 Machado, M - Eu sou uma ona

    21/21

    MAKEBA, Miriam. Live at Berns Salonger. DVD com a apresentao na

    ntegra, de 1967. Estocolmo: 2003.

    MUSSA, Alberto. O movimento pendular. Rio de Janeiro: Record, 2006.

    SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. So Paulo: Novas Metas,

    1986.

    ZUMA, Jacob. Miriam Makeba: uma patriota. Johanesburgo: LUSA Agncia de Notcias de Portugal, em 11 de novembro de 2008.