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1 III FÓRUM DE PESQUISA FAU.MACKENZIE I 2007 UMA ANTROPOLOGIA DO SI: REFLEXÃO SOBRE O USO DO AUTO-RETRATO NA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA Leila Reinert 4 “De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de que existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou. Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele. Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.” Livro do Desassossego – Fernando Pessoa Não por acaso, as palavras de Fernando Pessoa na voz de Bernardo Soares, introduzem a reflexão proposta sobre o uso do corpo próprio na fotografia contemporânea. Quem, na modernidade, soube outrar-se tão bem assim? Soube não existir, e ser tão irreal quanto os heterônimos que inventou 1 ? Por outro lado, que prática artística, para além da fotografia, propicia uma relação tão contraditória, constitutiva, entre realidades e ficções do existir? Muito mais do que um índice do real, ou o registro de um fato, a fotografia, na sua indiscrição necessária, como afirma Damisch 2 , faz multiplicar os ângulos de visão e escolher os pontos de vista sempre mais improváveis para dar-nos a ver a história, eventualmente nossa própria história para excitar em nós a inquietação e até o desejo. Mas vamos devagar. Será preciso desacelerar um pouco o pensamento para pontuar as questões aqui apresentadas. Talvez se possa inverter o discurso e “tomar” 3 a fala do Pessoa, como um clichê fotográfico, e ao olharmos para ela pudéssemos ver, um pouco que seja, sobre um retrato do Si. A foto imprime uma presença – sua condição de indice, e exprime uma ausência – ela é sempre o que não mais está lá. A foto-retrato, a minha foto, deixa-me claro que existo, mas 4 Artista Visual e Professora do Curso de Design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Formada em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba/PR, e em Artes Plásticas pela Universidade de Paris I – Pantheon-Sorbonne, Paris/França. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidadse Católica de São Paulo – PUC/SP

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1 III FÓRUM DE PESQUISA FAU.MACKENZIE I 2007

UMA ANTROPOLOGIA DO SI: REFLEXÃO SOBRE O USO DO AUTO-RETRATO NA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA

Leila Reinert4

“De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de que existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.”

Livro do Desassossego – Fernando Pessoa

Não por acaso, as palavras de Fernando Pessoa na voz de Bernardo Soares, introduzem a reflexão proposta sobre o uso do corpo próprio na fotografia contemporânea. Quem, na modernidade, soube outrar-se tão bem assim? Soube não existir, e ser tão irreal quanto os heterônimos que inventou1? Por outro lado, que prática artística, para além da fotografia, propicia uma relação tão contraditória, constitutiva, entre realidades e ficções do existir? Muito mais do que um índice do real, ou o registro de um fato, a fotografia, na sua indiscrição necessária, como afirma Damisch2, faz multiplicar os ângulos de visão e escolher os pontos de vista sempre mais improváveis para dar-nos a ver a história, eventualmente nossa própria história para excitar em nós a inquietação e até o desejo. Mas vamos devagar. Será preciso desacelerar um pouco o pensamento para pontuar as questões aqui apresentadas. Talvez se possa inverter o discurso e “tomar”3 a fala do Pessoa, como um clichê fotográfico, e ao olharmos para ela pudéssemos ver, um pouco que seja, sobre um retrato do Si.

A foto imprime uma presença – sua condição de indice, e exprime uma ausência – ela é sempre o que não mais está lá. A foto-retrato, a minha foto, deixa-me claro que existo, mas

4 Artista Visual e Professora do Curso de Design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Formada em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba/PR, e em Artes Plásticas pela Universidade de Paris I – Pantheon-Sorbonne, Paris/França. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidadse Católica de São Paulo – PUC/SP

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como advento de mim mesmo como outro4. Barthes fala de uma dissociação astuciosa da consciência de identidade, que só é possível na fotografia – nunca no espelho e menos ainda no retrato pintado, desenhado ou miniaturizado. (Difícil não imaginarmos, neste momento, Bernardo Soares falando de si diante do seus próprios retratos) Se a fotografia foi, na sua origem, definida como o automático da verdade, “a prova”, e ao mesmo tempo é a forma de representação capaz de dissociar o “eu” do “mim”, de produzir-me como outrem, não seria a foto-retrato a prova de que não sou, nem fui? Ou como diria Pessoa: Nem sequer representei.

A dissolução do eu como uma identidade estável é constituinte da linguagem fotográfica, e propicia experiências de despersonalização, isso faz da fotografia uma prática que suporta muitas questões da produção artística contemporânea, que foram já inseridas pela arte moderna do século XX, como, por exemplo, a busca de uma arte que se manifesta não mais na expressão subjetiva de um “eu”, na representação formal de um dentro, mas na construção, ou produção, de modos de subjetivação do ser, e/ou de novos territórios existenciais. Daí a presença do corpo como ferramenta, suporte, ou veículo da obra estar tão em evidência a partir dos anos 60. O corpo, como objeto histórico, é visto como uma realidade multifacetada e seu conhecimento processual, tanto quanto é processual a constituição do sujeito social, e tão diversificado quanto as bases culturais que o constituem e transformam. Se antes ele era a fronteira do eu, fundado no fechamento da carne sobre ela mesma, hoje, capturado5, o corpo é manifestação “aparente” de um estado de ser. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua saúde, a sua longevidade6. Ou seja, é como se ele não portasse mais uma intimidade psíquica, tornando-se uma pura exterioridade.

A partir do pós-guerra, muito se falou do corpo-objeto-mercadoria, da espetacularização da vida, do devir imagem do mundo “real”, ou das enormes mudanças provocadas pela proliferação das “antigamente” chamadas novas tecnologias da informação, idéias que tangem direta ou indiretamente a constituição identitária na atualidade; e inúmeros artistas produziram obras apontando, questionando, evidenciando, ou criticando essas condições de existiência nas mais variadas práticas artísticas.

Francesca Woodman – Verticale, 1976/78 and Roma, 1977/78.

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Cindy Sherman – Untitled Film Still #21, 1978 and Untitled #93, 1981.

O corpo e a fotografia estão presentes em boa parte dessas produções, não só o corpo em geral, mas o corpo próprio (do artista) e seus impasses – o retrato, o auto-retrato, ou o fals(t)o-retrato. Por que usar fals(t)o-retrato? Vladimir Safatle7, aponta para múltiplos regimes de despersonalização em operação na arte contemporânea, em que a dissolução do Eu enquanto potência expressiva significa reconstruir a possibilidade de algo parecido a uma experiência não-narcísica de objeto.

Neste momento, introduzo meu trabalho a partir de um ensaio fotográfico intitulado “E se Duchamp soubesse de Clarice…”8. A reflexão sobre ele encontra-se no texto apresentado a seguir.

Leila Reinert – “e se Duchamp soubesse de Clarice”, 2001.

Quando a fotografia é um encontro de peles

“É nas imagens que parece residir o princípio da visão, e sem elas nenhum objeto nos pode aparecer.” Lucrécio

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Uma luz é algo mais que um fato curioso.

Experiência:

1. materiais: caixa preta, papel fotosensível e um corpo.

2. aglutinante: luz.

Questão: fotografar elimonando o meaximo de aparatos teecnicos e dispositivos óticos.

Fotografia que se dá pelo troque da luz.

Uma luz capaz de agir diretamente sobre a matéria organizada para lhe modificar a estrutura e adaptá-la. A vida procede por insinuação (Henri Bergson).

E uma mancha de pigmento se faz olho.

O olho tendo sido afetado pela luz reage ativamente para poder enxergar. Seria o ver um puro capricho da luz?

Ou são os corpora – partículas cintilantes destacadas da superfície dos corpos – que entrando por nossas pupilas adentro e impressionando as nossas retinas ferem nossos olhos produzindo o fenômeno da visão (Lucrécio)?

Sempre radiações de luz que tocam.

E uma caixa preta se faz olho.

(Quem sabe para compensar a cegueira dos meus olhos feridos.)

Fotografar é trocar carícias por meio da luz – …uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado (Roland Barthes).

A luz toca o corpo e toca o papel.

Um corpo intermediário graduando a luminosidade. Um desenhar com a luz. São 2, 3 ou 5 minutos de parada do corpo para que o pequeno orifício na caixa de papel preto permita a justa entrada da luz.

Acordar o corpo para acordar a mente, disse Bill Viola.

Um despertar no repouso, na imobilidade (concentração) e jamais na exitação da velocidade.

Não há olhar recortando e/ou compondo a cena. Não há nem mesmo cena. Há somente reverência. Uma cerimônia.

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A concentração nas posturas de um yogue.

“E se Duchamp soubesse de Clarice…” são chamados os trabalhos.

Corpo de Mulher desnudo que Duchamp nos legou um dia.

Étant donné…

1. a dimensão corporal do ver que a luz iniciou.

2. a imagem de um corpo que se dá num mundo sem outrem.

Outrem é um estranho desvio, ele baixa meus desejos sobre os objetos, meus amores sobre os mundos. Outrem era isso: um possível que se obstina em passar por real (Michel Tournier).

É primeiro em outrem, por outrem, que a diferença dos sexos é fundada, estabelecida (Deleuze).

Considerando a estrutura outrem como aquilo que condiciona o conjunto do campo perceptivo (Deleuze), o que se pode dar a ver de um mundo sem outrem? Nem sujeito que olha, nem objeto olhado mas um eterno presente onde a consciência e seu objeto não fazem mais do que um.

A foto aqui não ee registro de um fato. Ela é a atualização da luz. Uma fosforecência. Luz/pele partilhada entre os olhos de quem vê e o corpo fotografado.

Fotografar com uma caixa preta é, no fazer, eliminar outrem. Não há desejos, não há outros mundos possíveis mas somente abandono e/ou desapego.

A possibilidade do estar.

Um pensamento se constrói a partir da experiência: não mais a manipulação da imagem, faz-se necessário manipular o próprio olhar. Para além da imagem de um corpo é o corpo da imagem que se apresenta.

A experiência não-narcísica de objeto é concebida aqui a partir da vivência de um mundo sem outrem. Nem sujeito que olha nem objeto olhado. O olhar maquínico da caixa preta, nesse caso, é quem escolhe a imagem e produz um ver sem olhar, que só acontece na revelação. Então, podemos falar de um fals(t)o-retrato porque não há um “eu” (auto), não há o sujeito de uma ação, a do ato de fotografar, e nem um olhar que objetiva a coisa fotografada. A imagem revelada dá-nos a ver não a aparência de um corpo mas a aparição de um; não a configuração de um eu, mas um ser-imagem autônomo, que existe em si, e por si, na imagem corporal produzida. Um habitar o eterno presente – do fotográfico – onde a consciência e seu objeto não fazem mais do que um. Uma das personagens de Clarice Lispector9, Joana, propõe-se criar um intervalo entre ela e ela mesma, ou seja, estabelecer

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uma distância, para poder mais tarde reencontrar-se. O intervalo aqui, numa afirmação bastante óbvia, que possibilita a separação, é o tempo – o instante fotográfico destas fotos dura minutos. Entre a preparação do dispositivo óptico e a disposição do corpo no espaço há silêncio, e ele acorda o corpo para despertar a mente.

Mas a conquista do saber/poder outrar-se não é tão simples assim. A tranquilidade de um eu estável, reconhecível, controlável, que coincide com o “mim mesmo” é muito sedutora. Ou ainda, o vestir-se de personagens, representar-se em determinados papéis, apresentar-se como outro, não quer dizer outrar-se. No meu trabalho, isso aconteceu a partir de exercícios fotográficos, sem que a consciência soubesse exatamente qual era a busca. Havia somente uma vaga idéia sobrevoando o processo de elaboração das imagens, embora o corpo tenha estado sempre em evidência nos meus trabalhos. Quando a fotografia se tornou parte da minha prática artística, corpos, ou melhor, metáforas ou moldes de pedaços de corpos – em geral – eram articulados aos mais variados materiais. A fotografia possibilitou o registro das articulações do corpo “real” nos gestos mais habituais, como no ritual diário do banho. Vistas parciais do corpo eram fotografadas na banheira pelo olhar cego da câmera – não havia nunca um olho no visor, mas já havia a vontade de poder engendrar novas identidades, ou dissolver as existentes, e o exercício fotográfico era um bom modo de descobrir sempre um novo corpo nas "revelações"(as surpresas da película). Difícil não se surpreender ao ver na imagem o que não havíamos, ainda, visto no gesto fotografado. A busca era por uma corporeidade fugidia, que se constrói e reconstrói nas relações, pois as vistas parciais do nosso corpo é que constituem nossa identidade corporal, não o espelho. Essa produção ganhou muitas formas: grandes formatos, livros, cadernos de notações, e foi articulada a objetos em exposições realizadas.

Leila Reinert – 1996/98

O dissolver identidades não é aqui aniquilamento, mas encontro, afectibilidade. É preciso investir vitalidade no corpo capturado, que não aguenta mais tudo aquilo que o coage, por

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fora e por dentro10. É colocar o corpo em estado embrionário para abrir espaço “aos seres ainda por nascer”, onde a forma ainda não “pegou” inteiramente, afirma Pelbart. Colocar o corpo em contato. Ou melhor seria dizer, atentar para o afetar e ser afetado do corpo. Encontros que se dão na superfície da imagem, na imagem-corpo produzida – um corpo que não é nem aquele do espetáculo nem o corpo-objeto, pois onde nada mais pesa, onde não existe gravidade, e longe da sua materialidade, o corpo desfaz-se da sua insistência em significar . 11

No exercício fotográfico do outrar-se, muitas vezes, o corpo nem mesmo se faz presente, como na série “A casa é o habitat do hábito” – fotos com longo período de exposição, em que o diafragma da câmera permanece aberto, em média, por uma hora. A casa abriga repetições diárias, manias, e o corpo caminha pelos hábitos do espaço já conhecido. Fotografar a casa no escuro da noite é uma estratégia para provocar rupturas no cotidiano, para escapar do mesmo. Na distensão do tempo a casa ilumina-se reinventando o espaço habitual. O corpo enxerga e circula diferentemente nesta outra casa que a fotografia fez surgir.

Leila Reinert – “A Casa é o Habitat do Hábito”, 2003/06

É do fotográfico recortar o espaço e decaptar o tempo transformando a duração do instante numa eternidade. Fernando Pessoa, ainda na voz de Bernardo Soares, vai dizer:

“Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónoda íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.”

O lapso do instante fotográfico, ínfimo ou distendido, porta esse momento de consciência, em que a consciência é consciente de tudo aquilo de que tem consciência12. É quando vinga a existência de um Si sem que haja um eu que o corporifique. Mas essa luz súbita cresta tudo, cosume tudo. E sou novamente aquele que não fui, e nem sequer representei.

Roland Barthes13 afirma que na fotografia meu corpo jamais encontra seu grau zero, que somente o amor, o amor extremo – o da mãe dele, no caso – é capaz de tirar o peso condenatório da imagem. É evidente que o pensamento de Barthes está conectado ao reconhecimento do Eu no retrato, especialmente daquele em que o outro, o fotógrafo, tomou de mim. Mas há, sim, algo que o olhar amoroso produz. Se a estrutura outrem é

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aquilo que condiciona o conjunto do campo perceptivo, se é em outrem, por outrem, que a diferença dos sexos é fundada, qual a relação de amor possível contida na imagem fotográfica? Deleuze afirma que devemos pois distiguir Outem-a priori, que designa esta estrutura e este-outrem-aqui, aquele-outrem- lá, que designam os termos reais efetuando a estrutura neste ou naquele campo14. O outrem-a-priori, enfim, para Deleuze, é condição de possibilidade, e não necessariamente o carrasco do “meu eu”, que me condiciona como sujeito ou objeto na relação. Este-outrem-aqui, aquele-outrem-lá como amplificador dos(mundos) possíveis, pode receber-me na multiplicidade do Si – nos “meus seres” larvares, ainda por nascer.

Mas qual a razão para invocar o amor nos fals(t)os-retratos, especialmente num mundo em que as urgências parecem ser coletivas, globalizadas e/ou tecno-políticas? Parece ser bem démodé. No entanto, se falamos dos afetos do corpo, imediatamente falamos de amor, de sentimentos de dor e prazer que sustentam nossa existência. Susan Sontag15 afirma ser a fotografia um tipo de hipérbole, uma cópula heróica com o mundo material, e seu etos é adestrar-nos para uma “visão intensiva”. Nos trabalhos apresentados a seguir, o amor fotográfico passa pela evocação do trágico, pois segundo Jean-Luc Godard, no filme o Detetive, “a catástrofe é a primeira estrófe de um poema de amor”. (Mesmo que tudo se dê de uma forma muito banal nas imagens produzidas.) Os corpos são quase ausentes, misturam-se ao entorno, e articulam-se a fotos de rosas e de um quarto vermelho – “temas” até clichés da fotografia. Esse trabalho foi exposto junto com um vídeo experimental, onde a linha resultante do perfil de um casal beijando-se, anima-se ao som de um extrato de texto do livro “Tratado do Amor Cortês”, de André Capelão – escrito por volta de 1.180. O ponto de partida da imagem animada, é uma foto tomada de um filme qualquer na televisão.

Leila Reinert – “Fals(t)o”, 2003/06.

Leila Reinert – “Amor e Fals(t)o”, 2006.

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“Amor e Fals(t)o”, (detalhes)

Para concluir, novamente Pessoa pode nos ajudar a pensar quando diz: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.”

Mais do que qualquer outra prática artística, a fotografia encarna essa potência do falso, ou, paradoxalmente, a tentação vencedora do Demônio da Realidade.

REFERÊNCIAS

1

PERRONE-MOISÉS, L. Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p.12. 2

KRAUSS, R. O Fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 12. 3

O verbo tomar é usado aqui no sentido de tirar, usado na lingua portuguesa para designar o ato fotográfico – tomar uma foto. 4

BARTHES, R. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 25. 5

No artigo Vida nua, vida besta, uma vida, Peter Pál Pelbart aponta para como o “poder tomou de assalto a vida”. O corpo superinvestido da atualidade é capturado pelo poder, que hoje não se exerce desde o fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo.

Disponível em: < http://p.php.uol.com.br/tropico/html/ > Acesso em: 27.02.2007. 6

Ibid.

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SAFATLE, V. O que vem após a imagem do si?. Disponível em: < http://p.php.uol.com.br/tropico/html/ > Acesso em: 01.08.2007. 8

As referências do título do ensaio são Marcel Duchamp, em especial a obra Etant donnés; e Clarice Lispector, importante escritora da moderna ficção brasileira. 9

LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. 10

Pál Pelbart, P. op.cit. 11

Senra, S. Corpos, cinema e vídeo. In Políticas do Corpo. Denise Bernuzzi de Sant’Anna, org. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 187. 12

“Sofffri sempre mais com a consciência de estar soffrendo que com o soffrimento de que tinha consciência.” Para Pessoa, intelectualizar a sensãção é abstrair dela um perfil, uma linha que permite ligá-la a outros conteúdos psíquicos. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. José Gil. Lisboa: Relógio d’Água, ?. 13

BARTHES, R. op.cit, p. 24. 14

Tournier, M. Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico. Posfácio, Gilles Deleuze. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 2001. 15

SONTAG, S. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 43.