Macrae guiado pela lua

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EDWARD MACRAE XAMANISMO E USO RITUAL DA AYAHUASCA NO CULTO DO SANTO DAIME

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EDWARD MACRAE

XAMANISMO E USO RITUAL DA AYAHUASCANO CULTO DO SANTO DAIME

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GUIADO PELA LUA

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EDWARD MACRAE

GUIADO PELA LUA

XAMANISMO E USO RITUALDA AYAHUASCA

NO CULTO DO SANTO DAIME

editora brasiliense

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Copyright © by Edward MacRae, 1992Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada,armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada,

reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquersem autorizacdo previa do editor.

ISBN: 85-11-07035-4Primeira edicao, 1992

Preparacao de originais: Ruth K. RosaRevisdo: Ana Maria M. Barbosa e Carmem T. S. Costa

Capa: Claudio Leme

.C

Av. Marques de Sao Vicente, 177101139 - Sao Paulo - SP

Fone (011) 825-0122 - Fax 67-3024Telex (11) 33271 DBLM BR

IMPRESSO NO BRASIL

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A memoria de

Padrinho Sebastiao Mota de Melo, guiae ensinador na forca de Sao Joao

Alan Godfrey Gonsalves MacRae,irmao querido e companheiro de todas as horas

Glauco Rodrigues Bueno,que deu testemunho de fe

Severino do Ramo,poeta do cotidiano

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Mestre Irineu

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Agradecimentos

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0 presente trabalho e fruto de uma pesquisa financiadapelo CNPq (bolsa de recem-doutor e de pesquisador visitante)e pela Fapesp (bolsa de auxlio a pesquisa). Durante o tempode trabalho de campo inicial contei com o valioso apoio deMaria Etelvina Reis de Toledo Barros, a querida Telva; CarlosViccari Jr. e Cristina Flora de Oliveira, do Instituto de Medi-cina Social e de Criminologia de Sao Paulo - Imesc.

A elaboracao do primeiro relatorio de pesquisa se deu emum periodo em que eu atravessava serios problemas familiaresdevido a doenca e ao falecimento de um irmao. Nessas horasde grande dor pude contar com o carinho e impressionan-te forca de minha mae Dulce Baptista das Neves GonsalvesMacRae. Tambem foi crucial a colaboracao e o apoio que re-cebi de amigos que me acompanharam em retiros academicospara longe de Sao Paulo, quando, aos poucos, fui montandoaquele texto: Julio Assis SimOes, Oswaldo Lobo Fernandez,Ulisses Ferraz de Oliveira, Pedro de Souza, Lorivaldo P. Rochae Nestor Perlongher.

Agradeco tambem o auxflio de Suzana Cabral e dos profes-sores Eduardo Luna, Clodomir Monteiro da Silva, Carlos Euge-nio Marcondes de Moura, Anthony Henman, Marion Aubree,Fernando de la Roque Couto, Andre Lazaro, Walter Dias Junior,Alberto Groisman, Vera FrOes e Hirochika Nakamaki, que mederam acesso a material de pesquisa assim como aos seus pro-prios escritos sobre o terra. Claudio Leme, comandante da

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musica na igreja Flor das Aguas, alem de dar encorajamentoconstante e enriquecer as sessoes de Daime com sua bela flau-ta, ajudou com as partituras dos hinos.

Uma vez completada a primeira versao em estilo pesada-mente academico, contei com a ajuda inestimavel de JulioDias Gaspar, que releu o texto diversas vezes apontando modi-ficacoes necessarias para sua publicacao. Esta reelaboracao sedeu enquanto eu participava do Programa de Orientacao e Aten-dimento a Dependencia da Escola Paulista de Medicina, a cujodiretor - Dartiu Xavier da Silveira - e demais participantesagradeco pelas estimulantes discussoes a respeito de drogade-pendencia e pela confianca que depositaram no meu trabalho,propondo ao Departamento de Psiquiatria que sediasse a con-tinuacao de minha pesquisa sobre o Santo Daime. Agradecotambem ao trabalho de secretario prestado por Paulo Bettinellie Joao Garcia Neto, assim como aos seus comentarios sobrealguns dos meus textos. Foram tambem muito uteis as suges-toes de alteracao de certas passagens do original oferecidaspor Caio Graco da Silva Prado, da Editora Brasiliense.

Em 1991, durante uma viagem ao Ceu do Mapia, sofrium alarmante acidente no igarape. Fui acompanhado, no longopercurso de volta a Boca do Acre, por Fernando Orvath, quemuito me ajudou a manter elevados o animo e a esperancano restabelecimento. Quero tambem ressaltar a amizade e asolidariedade de Ulisses Ferraz de Oliveira que, apos minhamelhora, prontificou-se a acompanhar-me numa viagem devolta a regiao, a qual eu nao teria realizado sem um compa-nheiro de tal confianca.

Por fim, desejo agradecer aos membros do culto do SantoDaime, que compartilharam comigo seus conhecimentos sobreo use da ayabuasca e sobre as Santas Doutrinas, abrindo paramim a possibilidade de realizar nao so um trabalho academico,mas tambem de desenvolver um maior autoconhecimento eum contato com as questoes da espiritualidade. Maria CristinaCunha Bueno, a Madrinha Kiki, deu importante apoio psiquicodurante esse periodo e concedeu uma rica e valiosa entrevistapara meus estudos. Padrinho Alex Polari de Alverga se disposvarias vezes a conversar comigo sobre meu trabalho e tambemforneceu um valioso incentivo para a continuacao de minhas

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AGRADECIMENTOS 9

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pesquisas, assim como fez Clara lura. Nao posso esquecer aacolhida que me deram os demais irmaos daimistas, especial-mente os da igreja Flor das Aguas e os do Ceu do Mapia. Aospadrinhos Sebastiao Mota de Melo, Manuel Corrente, AlfredoGregorio de Melo e Wilson Carneiro devo ensinamentos e ins-piracoes que ultrapassam em muito o campo do interessemeramente academico.

1992

Ano do centendrio de nascimento de Raimundo Irineu Serra,Mestre Imperio Juramidam.

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Ia guiado pela Lua

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la guiado pela LuaE as estrelas de uma bandaQuando eu cheguei em cima de um monteEu escutei um grande estrondo

Esse estrondo que eu ouviFoi Deus do Ceu foi quern ralhouDizendo para todos nosQue tern poder superior

Eu estava passeandoNa praia do marEscutei uma vozMandaram me buscar

Al eu botei os olhosAl vem uma canoaFeita de ouro e prataE uma senhora na proa

Quando ela chegouMandou eu embarcarEla disse para mimNos vamos viajar

Nos vamos viajarPara o ponto destinadoDeus e a Virgem MaeQue vai ao nosso lado

Quando nos chegamosNas campinas desta FlorEsta e a riquezaDo nosso Pai Criador

Mestre Irineu

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Sumario

Introducao - Psicoativos e xamanismo ......................... 15

1 - Xamanismo na Amazonia ocidental ....................... 27

2 - Concepcoes caboclas de doenca e o use daayahuasca ........................................................... 47

3 - 0 desenvolvimento do culto do Santo Daime ....... 59

4 - Os rituais do culto do Santo Daime ....................... 95

5 - 0 use controlado da ayahuasca e seus efeitosestruturantes nos rituais do Santo Daime .............. 115

6 - Dos solitarios vegetalistas ao "xamanismocoletivo" do Santo Daime .................................... 127

Conclusao .................................................................... 141

Anexo - 0 Cruzeirinho de Mestre Irineu ................... 147

Bibliografia .................................................................. 161

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IntroducaoPsicoativos e xamanismo '

O culto do Santo Daime surgiu durante os anos 30 na Ama-z6nia e, nas dltimas duas decadas, tem conhecido um ruidosocrescimento. De fato, esse crescimento pode ser consideradopequeno se comparado ao de outras seitas que vem se insta-lando no Brasil. Mas a projecao social de alguns dos seus adep-tos e o use sacramental da ayahuasca, urn cha de proprieda-des psicoativas, tern contribuido para despertar um grande inte-resse dos meios de comunicacao - que frequentemente tratamo assunto de forma parcial e sensacionalista.

A proposta deste trabalho e examinar mais profundamenteas origens desta seita, investigando tambem o use da sua bebe-ragem sagrada. Vou analisar os valores que a norteiam e ostipos de controle social que exerce sobre seus adeptos.

Hoje fala-se muito sobre os perigos do use nao medica-mentoso de substancias psicoativas. Elas sao demonizadas,

consideradas causadoras de degeneracao ffsica e moral. Qual-quer opiniao discordante a respeito tende a ser cuidadosa-mente ignorada , quando nao atrai a ira ou a ridicularizacao.Mas aqui you tratar justamente de urn exemplo contrario: aayahuasca , cha tecnicamente rotulado como alucin6geno, foco

Pesquisa sediada no Instituto de Medicina Social e de Criminologiade Sao Paulo - Imesc - e no Programa de Orientacao e Atendimentoa Dependencia - Proad - do Departamento de Psiquiatria da EscolaPaulista de Medicina, financiada pelo CNPq e Fapesp.

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de um culto urbano que mescla elementos de praticas indfge-nas, africanas e esotericas sob uma capa crista. Segundo osdiversos trabalhos academicos sobre este culto, os adeptossao individuos comuns, que s6 se distinguem por seu fervorreligioso e pela rigidez de sua adesao aos padroes eticos funda-mentais de nossa cultura.

Para entender melhor esse fen6meno em que uma substan-cia psicoativa parece ter efeito contrario aquele geralmenteenfatizado pelos propagandistas da "guerra as drogas", torna-se importante refletir inicialmente sobre as implicacoes do usede certos termos empregados neste tipo de discussao. Comisso, evito conotacoes que transmitam um significado contra-rio ao pretendido.

Por exemplo, neste trabalho you evitar o termo droga, jademasiadamente contaminado pela carga pejorativa que o levaa ser empregado como sinonimo de algo que nao presta. Emseu Lugar, opto por substancia psicoativa ou psicoativo, indi-cando uma substancia que ativa a psique ou age sobre ela.

Ao tratar de contextos rituals, tambem prefiro evitar o termoalucin6geno, pelo forte juizo de valor a respeito da naturezadas percepcoes que uma substancia possa produzir - alucinarsignifica errar, enganar-se, privar da razao, do entendimento,desvairar, aloucar. Tal palavra nao permite comentar comimparcialidade os beatificos e transcendentes estados de comu-nhao com as divindades que, segundo a crenca de muitospovos, determinados individuos podem alcancar mediante aingestao de certos psicoativos.

Estas consideracoes tern levado varios estudiosos a pro-por termos alternativos como psicodelico 1 e fanerotismo.2Prefiro ente6geno, derivada de entheos, palavra do gregoantigo que significa literalmente "deus dentro" e era utili-zada para descrever o estado em que alguem se encontraquando inspirado ou possuido por um deus que entrou emseu corpo. Era aplicada aos transes profeticos, a paixao er6-tica e a criacao artistica, assim como aos ritos religiosos ondeestados misticos eram experienciados atraves da ingestao desubstancias que partilhavam da essencia divina. Portanto,ente6geno significa aquilo que leva alguem a ter o divino den-tro de si.3

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0 estudo dos efeitos do use tradicional de enteogenos

Ao abordar a relacao entre as substancias psicoativas, ousuario e o meio social em que ele vive, e preciso levar emconta tres fatores:

1. A substancia e sua atuacao na fisiologia do corpo humano.2. 0 set, estado psicol6gico do individuo no momento do useda substancia, incluindo-se ai a estrutura de sua personalidadee expectativas a respeito dos efeitos da substancia.3. 0 setting, meio fisico, social e cultural onde ocorre o useda substancia.

Os estudos feitos por medicos e psic6logos costumam pri-vilegiar os dois primeiros fatores. Neste trabalho, porem, o set-ting sera alvo de maior atencao, considerado a base a partirda qual e possivel compreender as experiencias vividas pelosindividuos que consomem o ente6geno.

Esta visao tripartida da atuacao dos psicoativos, hoje co-mumente aceita, comecou a ser amplamente difundida nadecada de 60. Urn dos seus grandes divulgadores iniciais foi opsic6logo norte-americano Timothy Leary, o papa do psicode-lismo e do use do acido lisergico (LSD). Em suas pregacoes,Leary enfatizava que, ao embarcar numa "viagem de acido",era necessdrio atentar para que tanto o estado de espirito doviajante (set) quanto o meio ambience (setting) fossem adequa-dos para proporcionar uma experiencia tranquila e harmoniosa.

Leary e seu colaborador Ralph Metzner chegararn ate a pro-por experiencias psicodelicas programadas, em contraste corno use desregrado de drogas. Tomavam por base prdticas xama-nisticas como o use ritual do cacto peyote pelos indios mexica-nos ou mesmo a recitacao do texto funerdrio tibetano conhe-cido como 0 livro dos mortos. Essas experiencias davam aten-cao a detalhes como a musica de fundo, a comida apropriadae enfatizavam a necessidade de uma pessoa mais experienteassumir o papel de guia, exercendo a funcao de xama, condu-zindo a sessao e evitando as bad trips (viagens ruins). 0 pr6-prio conceito da experiencia alucin6gena como viagem tinhaorigens no modelo xamanfstico.

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Para entender o conceito antropol6gico de xama, e pre-ciso lembrar que a palavra teve origem na tribo dos Tungs daSiberia, mas denota praticas largamente difundidas em todo 0planeta. Durante um rito xamanistico, um visionario inspirado,o xama, entra em transe profundo e, em nome da sociedade aqual serve e corn a ajuda de espiritos protetores, estabelece rela-coes com as entidades espirituais.4 0 xama, entao, viaja emdirecao a uma realidade extraordinaria para ajudar os mem-bros de sua comunidade. Isso pode set feito com a intencaode diagnosticar/tratar certos males ou com o prop6sito de adi-vinhacao/profecia, ou ainda com o objetivo de conseguir forcaatraves do contato com espiritos, animais de poder, aliadostutelares e outras entidades espirituais.5

Tal transe, ou viagem, acontece durante o que se costumachamar de "estado alterado de consciencia", r6tulo que agrupaexperiencias em que o sujeito tem a impressao de que o funcio-namento habitual de sua consciencia se modifica e que elevive uma outra relacao com o mundo, consigo mesmo, comseu corpo, com sua identidade.6 Estes estados podem ocorrerespontaneamente, ou sao induzidos atraves de tecnicas de medi-tacao, exercicios de respiracao, jejuns ou pela ingestao de subs-tancias psicoativas.

Os trabalhos de Leary serviram para reativar o interessepelo xamanismo e os estados alterados de consciencia duranteas decadas de 60 e 70. Assim Como ele, varios outros estudio-sos safram a Campo para observar rituais indigenas, principal-mente nas Americas Central e do Sul, onde estados de transeeram produzidos pelo use de substancias psicoativas ou instru-mentos de percussao. Outros pesquisadores adotaram ummetodo inverso, procurando reproduzir o fen6meno sob con-dicoes mais controladas, geralmente ministrando alucin6genosa voluntarios em ambientes hospitalares ou em laborat6rios.

Alem da observacao das praticas indigenas e dos relatosetnograficos, coube aos antrop6logos fazer comparacoestransculturais, documentando as diversas maneiras de usar assubstancias e determinar o papel desempenhado por variaveisculturais, Como as crencas, as atitudes, as expectativas e osvalores que contribuem para a estruturacao da experienciacom ente6genos.

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Figura I

Esquema antropologico das visoes induzidaspor drogas de origem vegetal

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Uma teoria de efeitos de substancias psicoativas consiste em:

A interacao de As variaveisvariaveis antecedentes com consecutivas

Biol6gico Mudancas consecutivasda droga

peso Ex.: sinestesia , desper-dietas especiais sonalizacao, mudancascondicao fisica somaticas e psicol6gicas etc.abstinencia sexual

Psicol6gico

Set (motivacao, atitudes,personalidade, humor,experiencias anteriores)

Social e de interacao

Participacao individuo/grupoestrutura do gruporitualpresenca de um guia

Cultural

Sistema simb6lico compartilhadopelo grupo e aprendido na juventude:a expectativa do conteudo visionario,adjuntos nao-verbais. Ex.: musica,perfumes etc., crencas e valores.

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Marlene Dobkin de Rios, antrop6loga norte-americana que

estudou o use da ayabuasca por curandeiros peruanos, sugereque os efeitos seriam condicionados tanto pelo arranjo e pelaordem do meio ambienie iinediato quanto por fatores adicio-nais. Como crencas e valores relacionados ao use das plantas.

Tais variaveis podem ser antecedentes ou consecutivas a admi-

nistracao da substancia. 0 antrop6logo em trabalho de campono tern condicoes de medir variaveis do tipo reacoes somati-cas. habilidade inteiectual ou motora, mudancas na percepcaovisual e outros efeitos consecutivos. Pode, porem, contribuirpara o estudo das variaveis antecedentes, uma area pouco siste-matizada em seus aspectos te6ricos. Ele pode enfocar o sis-tema de crencas que circunda o grupo usuario e a utilizacaodo conteudo visionario, assim Como as expectativas dos mem-bros da comunidade que esperam determinadas visoes e de

fato as relatam corn frequencia.Assim, Dobkin de Rios propoe o esquema da pagina 19

[figura 11 para um entendimento antropol6gico das experien-cias induzidas por ente6genos.7

0 use de psicoativos em culturas tradicionais geralmenteocorre no contexto de um ritual. Estudiosos atribuem a essapeculiaridade o fato de esse use raramente ser nocivo aos quedele participam. Para entender melhor esse fenomeno, e dtillevar em conta o esquema desenvolvido pelo medico norte-americano Norman Zinberg, quando pesquisou o use de psico-ativos ilicitos em sua sociedade. Segundo ele, o controle exer-cido pelo meio social tern grande eficacia sobre os resultadosproduzidos pela utilizacao de psicoativos, tanto em termos dapercepcao de efeitos por quern os ingere quanto em relacaoas consequencias sociais dessa pratica.

Para entender melhor como se da esse controle social,pode-se pensar no seguinte esquema:8

Controles sociais informais

1. Sancoes sociais. Determinam se e como certa substan-cia deve ser usada. Podem ser informais, compartilhadas porum grupo ou formalizadas por leis e regulamentos. Elas consis-tem em valores e regras de comportamento.

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2. Rituais sociais . Sao os padroes estilizados de comporta-mento esperados em relacao ao uso do psicoativos. Servemcomo reforco e simbolo das sancoes sociais. Os rituais sociaisestao diretamente ligados a:

• metodos de aquisicao e consumo da substancia;• a escolha do meio fisico e social para o uso;• as atividades desenvolvidas ap6s o uso;• as maneiras de evitar ou de lidar com os efeitos negativos.

Esse esquema foi inicialmente elaborado para estudar ouso da Cannabis e do LSD, na decada de 70, com o objetivode entender por que o rapido alastramento desse costumeentre a populacao norte-americana nao vinha sendo acompa-nhado dos efeitos catastr6ficos previstos pelos observadoresmais alarmistas. No decorrer da pesquisa, porem, o foco deatencao voltou-se para o uso da heroina. Para surpresa dos pes-quisadores, mesmo entre os usuarios dessa substancia, not6riapela rapidez e intensidade com que provoca dependencia fisicae psfquica, havia um pequeno grupo que nao sucumbia adependencia devido a atuacao entre eles de efetivos controlessociais do tipo delineado acima.9

Como se pode notar, os esquemas propostos por Dobkinde Rios e Zinberg contem basicamente os mesmos elementos.Dessa forma, os antecedentes biol6gicos atuariam sobre osaspectos farmacol6gicos da substancia em si; os psicol6gicosdelimitam o set; e as variaveis sociais, de interacao e culturaiscorrespondem ao setting. As sancoes e os rituais sociais de Zin-berg se encaixariam no quadro de variaveis culturais.

Dobkin de Rios, alem de dar importancia a aspectos sociaiscomo o ritual e a presenca de um guia experiente no uso dasubstancia, considera crucial a existencia de um sistema cultu-ral compartilhado por todos para o exito do xama. Dessa for-ma, ele pode guiar os individuos por suas experiencias particu-lares em direcao as metas consideradas desejaveis.

Estes dois esquemas norteiam minha analise. Procurareiestabelecer as relacoes entre as experiencias que se seguem aingestao ritualizada da ayahuasca e suas bases culturais. Porem,nao podemos esquecer por completo constatacoes freg0entes,

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de que certos temas apresentam uma inesperada regularidadenas experiencias de individuos pertencentes a culturas tradicio-nais muito diferentes. Sao comuns os relatos de percepcao alte-rada do tempo, o papel dos animais em revelar ao homem aspropriedades das plantas enteogenas, o papel da misica emevocar as visoes, a atribuicao de vida espiritual as plantas, astransformacoes xamanicas em animais "familiares" e fenome-nos paranormais como telepatia e precognicao.10

De forma similar, experimentos cientfficos realizados comindividuos pertencentes a uma cultura moderna, e que naosabiam qual substancia Ihes estava sendo administrada, resulta-ram em relatos de experiencias semelhantes as dos indfgenas.Isso ocorreu corn 35 chilenos brancos que, apos tomarem har-malina, o alcaloide ativo da ayahuasca, relataram uma grandevariedade de experiencias, que inclufa voos ou visoes a partirde um ponto de vista muito alto, encontros com serpentes,crocodilos, repteis em geral, tigres, leopardos, gatos, passaros,vampiros. Quinze dessas pessoas tambem relataram imagens,sentimentos ou preocupacoes religiosas: diabos, anjos, a Vir-gem, Cristo, o Parafso e extases mfsticos. Outras visoes tinhamqualidade mfstica, com ambientacoes tfpicas de contos de fadas,incluindo castelos, reis, trajes medievais etc.11

Para o medico Claudio Naranjo, autor desse trabalho, taisexperiencias parecem ser representacoes do ser e do vir a ser,da liberdade e da necessidade, do espfrito e da materia, quearmam o cenario para o drama humano corn sua luta entre obem e o mal e sua reconciliacao e fusao final, depois de cedera morte e a destruicao. E urn processo essencialmente religioso,em que sao levantados os temas centrais da vida humana, eisso leva o pesquisador a considerar alguns dos conceitos xama-nisticos mais como expressao de experiencias universais doque em termos de cultura ou tradicoes locais.12

Outros pesquisadores, usando diferentes alucinogenos,tambem relatam uma qualidade mfstico-religiosa nas experien-cias de seus sujeitos. Isso me remete a ideia de que o conteudodas visoes apresenta tracos facilmente atribufveis a cultura dequern as vivencia. Porem, alguma coisa nessas visoes pareceatingir nfveis mais profundos da psique e se manifestam atra-

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ves do que posso chamar de um sentimento mistico peranteo cosmos, que seria, ao menos potencialmente, comum a todaa humanidade.

Seguindo a visto teoriaa esbocada acima, onde se enfatizaa importancia do setting , este trabalho procura inicialmenteestabelecer o contexto sociocultural do use da ayahuasca nosrituais do Santo Daime. Para tanto, recuamos aos antecedentescaboclos e indigenas dessas praticas na Amazonia. Embora amaior parte do material etnografico citado nos dois capitulosa esse respeito se refira a Amazonia peruana e boliviana , consi-dero que a homogeneidade cultural da regiao, a qual muitosautores aludem , torna essa informacao relevante ao estudo daseita brasileira.

As origens e o desenvolvimento do Santo Daime, suas rela-cOes com o processo cultural e social da Amazonia e do Brasilno seculo XX sao o tema do terceiro capitulo. 0 capituloseguinte aprofunda a descricao e a discussao de varios rituaisem que o cha ente6geno e utilizado. 0 quinto capitulo pro-cura aplicar de forma sistematica as teorias de Zinberg sobreo controle social informal que se desenvolve entre os adeptosdo culto no seu dia -a-dia, especialmente durante os rituais.Concluindo , o sexto capitulo busca entender as relacoes entreessas praticas de origem cabocla e a sociedade urbana das gran-des metr6poles do Sudeste do Brasil, onde essa seita vem exer-cendo um especial fascinio entre a juventude culta e libertariadas camadas medias . Apesar de parecer surpreendente a pri-meira vista, este interesse se relaciona ao que ja foi chamadode "a nova consciencia religiosa ", atualmente bastante difun-dida nesse segmento da populacao , e visivel na crescente impor-tancia atribuida aos aspectos misticos , orientalistas ou esoteri-cos que compoem a chamada Cultura da Nova Era.

Para finalizar , gostaria de fazer uma consideracao metodo-l6gica sobre o conceito de observacao participante adotadonesta pesquisa e minha relacao pessoal com a seita.

Trabalhando ha alguns anos em pesquisas sobre o use depsicoativos e na prevencao de seu abuso no Centro de Estu-dos do Instituto de Medicina Social e Criminologia de SaoPaulo, tive minha atencao despertada para o culto em 1988.

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Considerando-o interessante, tanto do ponto de vista acade-mico quanto existencial, participei da implantacao da IgrejaFlor das Aguas em Sao Paulo, naquele mesmo ano. Desde entao,tenho comparecido a um grande ndmero de sessoes, duranteas quais tomo a bebida com outros participantes.

Nesse compartilhar do use da substancia, situo-me dentroda mesma vertente de pesquisadores que vem realizando estu-dos academicos sobre o Santo Daime, a ayahuasca ou o useritual de outros psicoativos. Essa mesma sistematica de pes-quisa norteou, por exemplo, dissertacoes de mestrado e dedoutorado, livros, artigos e obras classicas, brasileiras e estran-geiras, a respeito de assuntos correlatos.

A objecao de que, para o adepto do Santo Daime, a inges-tao da beberagem pressupoe uma disposicao, mesmo queminima, de conversao - isto e, de participacao na vida reli-giosa do grupo - aplicar-se-ia a quase qualquer participacaoem rituais por parte de antrop6logos que estejam estudandodeterminados grupos religiosos, incluindo-se ai ate Comunida-des Eclesiais de Base. Obviamente, a necessario evitar que cate-gories nativas contaminem o trabalho do pesquisador, mas elenao pode manter-se demasiadamente afastado das praticas coti-dianas dos sujeitos de seu estudo, sob pena de perder impor-tantes informacoes e insights. Para manter a objetividade, con-tei com os diversos recursos normalmente utilizados peloantrop6logo em Campo, assim Como minha experiencia adqui-rida em pesquisas anteriores, que, alem da tese de doutorado,incluem quatro anos de trabalho com usuarios de diversospsicoativos.

Quanto ao impacto pessoal deste trabalho, considero quetive experiencias nem sempre prazerosas, mas que, em diver-sas ocasioes, me forcaram a encarar aspectos de minha vida ede minha personalidade que ate entao tendia a evitar. S into tam-bem ter entrado em melhor sintonia com uma especie de vozinterior, capaz de me apontar atitudes e condutas apropriadasem certos momentos de confusao e incerteza. Assim, a partirde minha pr6pria vivencia, considero positiva a participacaonesses rituais, que sempre me lembram a importancia de pau-tar a vida pelos principios do Amor, da Harmonia, da Verdadee da Justice.

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Neste livro, pordm, procuro deixar.de lado tais quest6essubjetivas e espero ter conseguido dar um panorama do cultodo Santo Daime que seja condizente com os mdtodos e con-ceitos correntes da disciplina da antropologia social.

Notas

1. Humphry Osmond prop6s este termo, divulgado posteriormente porTimothy Leary e Ralph Metzner.2. Termo proposto por Aldous Huxley para a mescalina.3. Ver Carl A. P. Ruck, Jeremy Bigwood, Danny Staples, Jonathan Ott

e Gordon Wasson - "Ente6genos", in: Journal of Psychedelic Drugs,vol. 2, nI e 2, janeiro e junho de 1969.

4. Hultkrantz 1989:47.5. Harper 1989:14.6. Lapassade 1987:5.7. Dobkin de Rios 1977:299.8. Zinberg 1984:5.9. Zinberg 1984:152.

10. Dobkin de Rios 1977:297.H. Naranjo 1976:201.12. Naranjo 1976:204.

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1 - Xamanismo na Amazonia ocidental

A ayabuasca , o xama e o vegetalista

Antes de iniciar a discussao sobre o culto do Santo Daime,e conveniente examinar os antecedentes do use da ayahuascana Amazonia ocidental . Naquela regiao , ha muito tempo essabeberagem vem sendo utilizada cerimonialmente, nao s6entre grupos indigenas, mas tambdm pela populacao mesticaou cabocla.

0 relato que farei sobre esse use tradicional da ayahuascabaseia -se principalmente nos estudos detalhados feitos, emseparado , pelos antrop6logos Eduardo Luna e Marlene Dobkinde Rios. 0 foco de atencao desses estudos foram as atividadesdos curandeiros mesticos que atuarn entre a populacao daAmazonia peruana, principalmente nas cidades de Iquitos ePucalpa . 0 fato de terem sido realizadas no Peru no diminuisua importancia para o entendimento do culto do Santo Dai-me. Afinal , o fundador da seita brasileira, Raimundo IrineuSerra , teve sua iniciacao com o ente6geno na selva fronteiricaentre o Brasil e o Peru . Aldm disso, a Amazonia forma umaarea cultural de notavel homogeneidade , que transcende a suadivisao entre diversos paises.

Entre os povos indigenas dessa regiao , encontra-se umafigura com funcoes , tdcnicas e atributos bastante uniformes:o xama . Este personagem , como seus equivalentes em outraspartes do mundo, encarrega-se de estabelecer contato com o

diogo
Marcador de texto
diogo
Marcador de texto
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mundo sobrenatural, buscando influir na cura de doencas, ser-vir de oriculo, proporcionar bons resultados em cacadas, evi-tar catistrofes naturais e organizar cerim6nias religiosas.

Corn excecao de poucas tribos, o papel e exercido por ho-mens. Considera-se que seus poderes sao adquiridos por voca-cao pessoal, pela vontade de agentes supernaturais, ou, as vezes,por heranca. As circunstancias em que acontece a descobertadesse dom variam, mas podem incluir a aparicao repentina deurn ancestral ou de urn espirito animal, ou a ocorrencia de algumtipo de crise psicossomitica.

O xama recebe seus poderes a partir de contatos com espi-ritos. Isso acontece diretamente, atraves de inspiracao ou ap6sa iniciacao, sob a direcao de um mestre. Esta iniciacao consistede urn periodo de isolamento, corn dieta especial e abstinenciasexual. A ingestao de preparados feitos com a casca de certasirvores e tabaco o colocarn em contato com o mundo espiri-tual. Nesse estado, seu espfrito e capaz de voar e de ter percep-coes inusitadas. Ele deve obedecer as instrucoes dos espiritose prestar atencao aos cantos e melodias que the sao sussurra-dos, para aprender os seus segredos.

O poder do xama a concebido como uma substinciamigica, que pode estar contida numa serie de objetos: espi-nhos, setas, cristais de quartzo - quanto mais objetos, maioro poder. Ele sempre carrega esses objetos consigo, e os identi-fica corn seus espiritos auxiliares. A figura do xama 6 vista,porem, corn ambivalencia: atribui-se a ele tanto o poder decurar quanto o de fazer mal.1

Os xamas sao grandes conhecedores da floresta e das pro-priedades das plantas, que usarn com fregiiencia, especial-mente para atividades de cura. Sao tambem especialistas nautilizacao de ente6genos, principalmente para entrar em con-tato corn o mundo espiritual. Uma das substincias usadascorn mais fregiiencia e o chi produzido a partir da combi-nacao do cip6 Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria vi-ridis, ao qual podem ser adicionadas virias outras plantas.Este preparado recebe uma gama de nomes, como natema,yaje, nepe, kabi, caapi. Mas a genericamente conhecidopelo terrno quichua ayabuasca, que significa "cip6 dosespiritos".

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Antropologos e botanicos listaram uma serie de usos dessepreparado:

1. A ayabuasca e o sobrenatural

a. Rituais magicos e religiosos . Para receber orientacao divinae se comunicar com os espfritos que animam as plantas; parareceber um espfrito protetor.

b. Adivinhacao. Para saber se estao vindo estranhos; desco-brir o paradeiro de inimigos e quais os seus pianos; para saberse um conjuge foi infiel; prever o futuro com clareza.

c. Feiticaria . Causar doencas por meios psfquicos; prevencaocontra as mas intencoes de terceiros.

2. A ayabuasca e o tratamento de doencas

Para determinar a causa de uma molestia e/ou curg-la.

3. Ayabuasca, prazer e interacao social

Para produzir estados prazerosos ou afrodisfacos, para refor-car a atividade sexual, para atingir o extase ou um estado deintoxicacao; para facilitar a interacao social entre os homens.2

Atualmente, a populacao indigena a minoritaria na regiao;predominam rnesticos descendendo geralmente de indios, por-tugueses, espanhois e negros. Entretanto, apesar de a coloniza-cao iberica, a atividade missionaria e a economia da borrachaterem produzido mudancas radicais na regiao e do exodo dehabitantes da floresta em direcao aos grandes centros urbanoslocais, as praticas xamanisticas continuam ate hoje. E verdadeque apresentam alteracoes consideraveis e estao submetidas amuitas e novas influencias. Mas, entre os curandeiros mesticos,ou vegetalistas, como sao conhecidos, elas ainda mantem ele-mentos dos antigos conhecimentos indigenas sobre plantas,seu use e sua relacao com o mundo espiritual.

A caracterizaCao dessa populacao como mestica deve serentendida mais do ponto de vista social e cultural do que racial.Entre os vegetalistas, muitos seriam capazes de se fazer passarpor espanhois, portugueses ou italianos, enquanto outros ternfeicoes indigenas. Mas, embora todos tenham o castelhano como

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lingua materna, em termos ideologicos eles operam segundoos padroes do difuso complexo cultural do alto Amazonas.Dessa forma, o termo mestico equivale ao caboclo brasileiro.O grupo em funcao do qual eles mantem contato com o mundoespiritual nao a uma comunidade tao definida quanto uma tribo,nem mesmo um grupo etnico. Mas a uma comunidade de con-tornos bastante definidos e, nela, esses tipos de curandeirosdesempenham um papel importante.

0 termo vegetalista nao se refere ao fato de essas pessoasusarem muitas plantas em seu trabalho, mas a origem de seusconhecimentos, atribuida aos espiritos de certas plantas, queseriarn os verdadeiros professores dos xamas. Estas plantassao chamadas de doutoras, e a elas sao atribuidos os conheci-mentos de medicina e os elementos magicos - cantos, melo-dias e a baba -, ferramentas de trabalho dos xamas. 0 pro-fessor vegetal mais importante e a ayabuasca, mas variosoutros sao utilizados, geralmente adicionados a mistura basicado cipo e da folha, pois acredita-se que atraves dela pode-sealcancar o espirito das plantas para usufruir de seus poderescuradores.

Esse xamanismo mestico a herdeiro direto do xamanismoindigena, cujos segredos foram aprendidos pelos seringueiros,que viviam isolados da sociedade ocidental e tinham de se valerdos conhecimentos medicos dos indigenas. 0 principal traba-lho desses xamas e voltado para a cura, incluindo-se af a mani-pulacao de forcas espirituais para o alivio de problemas finan-ceiros e emocionais.

Entre a populacao mestica, encontram-se varios tipos depraticantes, conhecidos genericamente como curandeiros ouempiricos. Os vegetalistas formam uma subcategoria destestiltimos, e sao fregiientemente chamados de mestre, doutor,medico, velhinho ou vovozinho. Em certos casos, vegetalistasaltamente considerados por seu vasto conhecimento e podersao tratados pelo termo "banco". Eles deitam-se com a facevoltada para o chao e deixam-se possuir por espiritos. Nestecaso, banco poderia se referir a um assento de poder. OutrasdenominacOes para os vegetalistas sao bruxo ou feiticeiro,geralmente com conotacao pejorativa, usados para os conside-rados praticantes do mal.3

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Os vegetalistas tendem a ser marginalizados e desprezadospelas classes dominantes. Isso nao os preocupa, pois sao muitorespeitados em sua propria comunidade. Sua insercao nessesgrupos a muito maior do que a de autoridades medicas locais,frequentemente incapazes de perceber ou compreender os pro-blemas cotidianos de sua clientele.

A faixa etaria dos vegetalistas cobre um grande leque,embora Luna tenha escolhido como informantes individuosmais velhos, geralmente acima de sessenta anos de vida. Ape-sar da idade avancada, o antropOlogo considerou que eles dis-punham de forca fisica, satide e lucidez notaveis, estando pro-vavelmente entre os individuos mais brilhantes de suas comu-nidades. Luna diz ter ficado impressionado com o conheci-mento geral desses vegetalistas. Eram frequentemente grandescontadores de historias, dotados de talento artistico e de memO-ria extraordinaria. Isso esta de acordo com as observacOes fei-tas em outras partes do mundo, e desmente a nocao do xamacomo um individuo psicotico e desequilibrado, como as vezesainda veicula a literatura.4

Esses velhos sao representantes de um xamanismo transi-cional, em fase de extincao, onde ainda se preserva o conheci-mento indigena das plantas. Os mais novos, embora continuema utilizar a ayahuasca, ja sao mais voltados para a vida urbana,substituindo o conhecimento detalhado das plantas por tradi-cOes esotericas de origem europeia. Do ponto de vista econO-mico, os mais velhos tambem encontram-se numa posicaointermediaria: entre o sistema de agricultura de subsistencia,com pequenas propriedades de terra, e a economia de mer-cado. Em sua juventude, tiveram um contato estreito com a flo-resta, conhecendo bern sua flora e fauna. Mas testemunharamsua recente depredacao e tiveram uma prolongada exposicaoa vida urbana.

A iniciacao do vegetalista

Em todo o mundo, ha muitos exemplos de culturas comtradic6es xamanicas, e sao varias as formas de se adquirir o sta-tus de xama . As vezes, 6 um chamado num sonho ou numa

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visao. Outras vezes, o individuo e escolhido por um xamamais velho, para set treinado como seu sucessor. Em algunscasos, ao final da etapa preparatoria, cerimonias pdblicas mar-cam a iniciacao do neofito, embora essa talvez nao seja a inicia-cao propriamente dita, que ja teria ocorrido, antes do reconhe-cimento formal pelo mestre e pela comunidade.5

No caso dos vegetalistas, Como eles nao se identificam comnenhum grupo tribal especifico, nem contam com o apoio dacomunidade, tambem nao ha um ritual pdblico em que se tor-nem vegetalistas reconhecidos. Sua iniciacao a uma questaode escolha pessoal ou de vocacao, e sua aceitacao como vege-talista, por parte da comunidade ou por si mesmos, so acon-tece gradualmente. E um processo bastante individual e, maisdo que aprender de um mestre experiente, o ne6fito sente querecebe ensinamentos diretamente das plantas e de seus espiritos.6

A iniciacao geralmente acontece atraves do use do tabacoe da ayahuasca. E a disposicao pessoal do individuo, sua habi-lidade para suportar o duro treinamento e os perigos fisicos epsicologicos inerentes a iniciacao xamanica que determinamo seu grau de desenvolvimento.7 Quando ha um xama maisexperiente por perto, ele deve proteger o aprendiz contramaus espfritos e bruxos, assim Como instrui-lo a respeito dadicta e dos preceitos a serem seguidos.

A utilizacao correta das plantas permite entao o aprendizadodo conhecimento que sera necessario para suas futuras praticasxamanicas. Sua mente esta "aberta" para que ele possa entaoexplorar adequadamente a fauna, a flora e a sua localizacao geo-grafica, assim Como lembrar-se de tudo isso mais tarde. As plan-tas comunicam-se com ele atraves de visoes e sonhos e, alemda "sabedoria", transmitem-1he tambem "forca", ou seja, quali-dades fisicas como resistencia a ventos, chuvas e inundacoes.

Nas historias de vida dos vegetalistas, certos padroes pare-

cem se repetir, como no caso dos xamas indigenas. Geralmente0'

comecam sofrendo de doenca grave, com sintomas de natu-reza fisiologica, que a medicina oficial nao consegue curar.Recorrem, entao, a um vegetalista, ou tomam ayabuasca porconta pr6pria e, alem de curarem a si mesmos, desenvolvema habilidade de curar outras pessoas. Ocorreria entao um pro-cesso observado por Mircea Eliade, estudioso das religioes

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em geral e do xamanismo em particular. Segundo ele, a dessaforma que os xamas aprendem o mecanismo ou a teoria dadoenca.8 Nem sempre, porem, aquele que recebe os ensina-mentos das plantas torna-se curador. Possivelmente seu inte-resse seja de natureza mais filosofica que humanitaria, ja queo conhecimento das artes da cura e so urn dos aspectos dosensinamentos transmitidos nesse processo.

Um dos principais aspectos desse periodo de aprendi-zagem/iniciacao sao os preceitos dieteticos e sexuais, cujaobservanao e considerada por todos os informantes de Lunacomo essencial para que as plantas revelem suas licoes. Elaspodem ser transmitidas ao neofito por urn instrutor mais expe-riente ou diretamente pelas plantas.

O tempo de observancia desses preceitos e variado, com-preendendo um periodo minimo de seis meses, podendo seprolongar, em certos casos, por ate doze anos. Frequentemente,implica tambem um afastamento do local de moradia e a ida afloresta ou outro lugar ermo, onde os ensinamentos podernser recebidos mais diretamente da natureza. Passado algumtempo, a dieta pode ser interrompida, sendo retomada maisadiante. Em certos casos, mesmo vegetalistas experientesseguem essas regras por espacos de tempo mais curtos, a fimde renovarem suas energias e aumentarern seus conhecimen-tos. Em geral, considera-se que esse tempo de observanciadetermina o conhecimento corn as diferentes plantas e incor-pora seus poderes.

As principais funcoes da dieta sao a limpeza do organismo,que permite a atuacao integral das plantas e protege contra osefeitos adversos produzidos pela mistura de certos alimentoscom esses vegetais. Geralmente, considera-se que a dieta idealconsiste de banana Sao Tome cozida, alguns tipos de peixedefumado e a carne de certos animais da floresta. Alguns aya-

huasqueros aceitam tambem o use de arroz e mandioca. Devemser evitados sal, acticar e outros condimentos, gorduras, alcool,carne de porco e de galinha, frutas, legumes e hchidas frias.Todos os xamas insistem na importancia de nao sc cc,mer carnede porco.

Outros preceitos regulam os contatos de aprendizes como sexo oposto. Deve haver uma abstinencia sexual completa

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e, no caso dos homens, evitar totalmente mulheres em idadefertil. A comida deve ser preparada por uma menina que aindanao tenha menstruado ou por uma mulher que ja tenha pas-sado da menopausa.

Restricoes similares devem ser seguidas durante a prepara-cao de certos remedios, filtros de amor e outras atividades xama-nicas, assim Como antes e depois do use da ayahuasca e de

outras plantas professoras.Todos os vegetalistas afirmam que seguir a dieta e o cami-

nho da sabedoria.9 Dizem que ela nao os enfraquece e que,apesar de perderem peso, seus corpos se tornam mais fortes eresistentes e ate mudam de cheiro. Afirmam, tambem, queenquanto a seguem, suas mentes funcionam de forma diferente,a observacao e memorizacao tornam-se mais faceis. E a pr6-pria natureza que Ihes revela, entao, seus pr6prios segredos.Seus sonhos tornam-se claros e instrutivos. Assim, a dietapode ter a funcao de desencadear um estado de conscienciaalterada durante o periodo de aprendizagem.

Certas proibicoes sao dificeis de entender, e talvez a suaorigem deva ser buscada junto aos tabus alimentares e sexuaiscomuns entre os indigenas, que os prescrevern para diversasocasioes da vida individual ou social. Os jivaros, povo indi-gena da Amazonia, por exemplo, jejuam e se abstem de sexodurante a epoca de preparo do veneno para as suas setas.10

Os preceitos dieteticos e comportamentais devem serseguidos pelo vegetalista e pelos seus clientes que vao ingerira bebida. Para estes, diz-se que a desobediencia leva a umainterrupcao no efeito das plantas, que vai diminuindo ate per-der totalmente a forca. Alem disso, certas plantas professorassao consideradas muito "ciumentas" e podem punir o desres-peito com doencas e ate com a morte.

A existencia de tabus envolvendo o use de remedios,mesmo os que fazem parte da farmacopeia oficial, parece bas-tante generalizado em toda a regiao amaz6nica. Raymundo H.Maues, antrop6logo paraense, pesquisando uma comunidadede pescadores na regiao do estuario do Amazonas, observouque o praticante de medicina popular, ao receitar um remedio,deve "dar sua fineza", ou seja, prescrever o resguardo alimen-tar ou de outra natureza que o doente deve seguir durante o

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periodo de ingestao do medicamento. Os remedios sao cha-mados "finos", que significa "perigosos", pois sao "venenosque matam a doenca". Esse resguardo parece exercer uma fun-cao importante na experiencia de tratamento, pois Mausafirma ter ouvido queixas fregOentes contra terapias feitaspor medicos que muitas vezes "nao davam a fineza" dos reme-dios que prescreviam.I I

Essa concepcao pode talvez ser relacionada a ideia de quecertos alimentos nao podem ser misturados. Um entendimentopleno da questao torna necessaria uma abordagem que ultra-passe considerag6es meramente fisiolOgicas, para levar emconta tambem o significado atribuido aos tabus dentro do sis-tema cultural da regiao.

As plantas professoras e a ayahuasca

0 use de psicoativos para variados fins, mas principal-mente na busca de cura e contato com o divino, ocorre histo-ricamente em muitas regioes do mundo. Os textos sagradosda f ndia e os poemas epicos de Homero, na Grecia, trazem rela-tos sobre o use de plantas e outras substancias naturais paraprovocar alterac6es de consciencia. Ate em regioes tao ermasquanto a Siberia usou-se cogumelos alucin6genos para finsxamanicos.

Entretanto, a nas Americas que se concentra o maiornumero dessas substancias, e onde ate hoje mais freqUente-mente se faz use delas. Seu emprego nesta regiao do mundoesta mais ligado a fins sagrados, nao recreacionais, para validarou reificar a cultura, e nao como uma maneira de temporaria-mente escapar dela. E possivel que a maioria das tribos indige-nas da regiao das bacias do Amazonas e do Orenoco use prepa-rados feitos de uma ou mais plantas psicotr6picas em fung6escentrais da sua vida religiosa e cultural.

De todas essas plantas, a que tem seu use mais difundidoe a Banisteriopsis, cujas variedades caapi, quitensis e ine-brians sao utilizadas no preparo da ayahuasca. As receitasdessa bebida variam, e os diversos grupos adicionam a ela dife-rentes ervas, dependendo de suas tradicOes e dos fins a que

A

diogo
Manuscrito
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ela se destina. Geralmente incluern a Diploterys cabrerana, aPsychotria carthaginensis ou, mais comumente, a Psychotriaviridis, que se cre eficientes em reforcar e sustentar as visoesprovocadas.12

Alem de buscar seus efeitos medicinais, os fndios da Ama-z&nia dizem tomar ayahuasca para conhecer o "mundo verda-deiro", o mundo dos espiritos de onde vem todo conheci-mento. Os vegetalistas consideram-na uma "doutora", um serinteligente, de espirito forte, com o qual e possivel estabelecerrelacoes. Acredita-se que dela pode-se aprender muito, umavez seguidos seus preceitos.

A ayahuasca pertence a classe de plantas que tem "maes"ou espiritos protetores, uma ideia comum entre varios gruposindigenas da regiao.

As plantas "doutoras" ou "plantas que ensinam" sao aque-las que:

1. produzem estados alterados de consciencia;

2. alteram o efeito da ayahuasca, de alguma forma, quandocozidas com ela;

3. produzem tontura;

4. tem fortes qualidades emeticas ou catarticas;

5. provocam sonhos especialmente vividos.

Sobre a ayahuasca, diz-se que traz ensinamentos a respeitoda flora e da fauna, e ajuda a memorizacao desse conhecimento.Como outras plantas professoras, diz-se que ela ensina cantosem varias linguas indigenas, alem do espanhol, e que tambemensina esses idiomas. Ela tambem aumentaria as habilidadesartisticas e intelectuais de quem a ingere. Alguns vegetalistasalegam que as plantas professoras lhes ensinaram longas rezas.13

Existe uma gama de aproximadamente cingbenta plantasque sao misturadas a ayahuasca - seja pelos povos indige-nas ou pelos curandeiros mesticos. Os vegetalistas que dese-jam conhecer os efeitos de certas plantas adicionam partesdelas durante o preparo da ayahuasca, observando entao asalteracoes que provocam e as visoes e sonhos que lhes advem.Interpretando esse material, desenvolvem conceitos sobrepropriedades e aplicacoes. Assim, certas plantas permitem

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"ver", outras "viajar", "curar", "prejudicar", outras "daoforca" etc. Tambem aprendem que certas plantas podem serutilizadas juntas, pois "se conhecem entre si", enquantooutras " nao se dao bem". 14

0 mundo dos espiritos na Amazonia

Grande parte da populacao amazOnica envolvida com ouse da ayahuasca ainda vive em pequenos povoados ribeiri-

nhos , em proximidade com a natureza . Mesmo os informantesde Dobkin de Rios ou de Luna , que moram em cidades comoIquitos ou Pucallpa, ainda mantem contato com a vida ruralou conservarn pequenos rocados. Muitos alternam periodosentre o campo e a cidade ou sao recem -chegados a regiao urbana.

No lado brasileiro da Amazonia , a situacao social e pareci-da: uma considerdvel parte da populacao das pequenas comu-nidades agricolas e de cidades , como Rio Branco , no Acre, eformada por antigos seringueiros expulsos das suas "coloca-coes" na floresta pelas alteracoes socio-economicas que vemafetando a regiao ao longo deste seculo.15 Persistem , porem,velhas crencas de origem indigena , em seres espirituais quehabitariam a floresta , a dgua e o ar . Resultando da fusao dascosmologias dos vdrios grupos culturais indigenas e do sincre-tismo com concepcoes europeias como o catolicismo , o espi-

ritismo , o esoterismo, alem da influencia de religioes de origemafricana , essas crencas frequentemente dao a impressao deserem um amontoado pouco coerente de fragmentos de outrossistemas . Mas a diversidade e a forma como sao integrados oselementos dispares refletem as mudancas brutais que vem ocor-rendo na regiao - rdpidas incorporacoes de novos contingen-tes populacionais , que trazem consigo diversificadas institui-coes sociais e econOmicas, tecnologias e ideias religiosas.

Da mesma forma que o caboclo amazonico sente-se amerce de forcas sociais que mal compreende , ele concebe suavida influenciada para o bern ou para o mal por entidades super-naturais. Tais entidades podem adotar a forma de animais,xamas indios ou mesticos , negros , empresdrios estrangeiros

brancos , seringalistas , princesas saidas dos contos de fadas

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europeus, anjos armados de espadas da iconografia crista, ofi-ciais do exercito, medicos celebres ou ate seres extraterrestresprovenientes de outros planetas.16

Apesar de receberem nomes diferentes no lado peruano eno brasileiro, repetem-se as ideias de seres como as sereias quevivem em "reinos encantados" no fundo dos rios, cobras gran-des, currupiras, anhangas, bichos visagentos etc. Cada especieanimal tem sua "mae", entidade protetora capaz de castigar,roubando a sombra de cacadores que matam animais em dema-sia ou de uma s6 especie, por exemplo. Tambem tern "mdes"os peixes, certos rios, igarapes, pocos e ate os portos onde atra-cam as canoas. Para evitar a "malineza" dessas "maes", o cabo-clo adota uma seree de precaucoes e evita atitudes que possamser provocativas. Essas entidades talvez sejam o resultado dafusao de conceitos indigenas (sobre seres que seriarn "donos"de certas partes do ambiente e dos bichos) com lendas euro-peias sobre fadas, sereias, mouras encantadas e as inumeras iden-tificacoes de Nossa Senhora, do agiol6gico cat6lico.17 Ja vimosque os xamas mesticos peruanos tambem atribuem "maes" acertas plantas. Para o caboclo amazOnico, ate as zonas urbanassao habitadas por Beres sobrenaturais, mesmo que em menorndmero. Sao lobisomens, matintapereras e outras entidades re-sultantes da transformacao de seres humanos em animais.

Apesar dessas crentcas, o caboclo da Amazonia brasileira,como o peruano, geralmente se considera cat6lico, emborarecentemente outros sistemas religiosos como o protestantismoe o espiritismo venham arregimentando inumeros adeptos.Na regiao brasileira, e especialmente nos centros urbanos,onde foi maior a presenca de escravos ou a migracao origina-ria de outras regioes do pals com forte contingente negro, des-tacam-se tambem as influencias africanas: casas de mina, cul-tos de caboclos e certas praticas de feiticaria. Mas, em geral,a religiosidade amazOnica se manifesta sobretudo no cultodos santos ou, mais propriamente, de suas imagens locais, quesao investidas com carter de divindade corn poderes de acaoimediata.18

0 culto aos santos a uma manifestacao coletiva, e cadapovoado tern seu calendario pr6prio para a realizacao de ladai-

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nhas, novenas e festas. Nos pequenos sitios e povoados, aestrutura principal e mais bem-sucedida e a capela. Ao seulado, muitas vezes se ergue a ramada, grande barracao ondese realizam os bailes que sempre se seguem a ladainha nacapela e que constituern uma das principais atracoes da festa.As vezes, capela e ramada sao combinadas em uma dnica estru-tura. Nesse caso, o altar e isolado do espaco reservado ao bai-lado por uma cortina, aberta durante as oracoes.

Os santos sao concebidos como entidades domesticasbenevolences que protegem o indivfduo e a comunidade, asse-gurando o bem-estar geral, a cura de doencas, o sucesso nacolheita ou na atividade a que o individuo se dedica. A pro-messa e o ponto focal das relacoes entre homens e santos ehA pouca elaboracao sobre a vida depois da morte, dada a segu-ranca que o individuo possui de que tudo correrA bern se elenao faltar corn o respeito e cumprir as promessas aos santos.19

Mesmo poderosos, os santos sao considerados impotentescontra os bichos visagentos, entidades espirituais protetorasda natureza relativamente inofensivas, que se tornam malignaspara o homem diante de qualquer abuso. Os santos sao criatu-ras benevolas, mais ligadas ao homem que ao ambience fisico.Assim, devern diferir os modos de lidar corn esses dois tiposde entidade espiritual. Enquanto os santos sao invocados atra-ves de oracoes, promessas e festas, os bichos visagentos saoevitados ou afastados atraves de certas praticas magicas e derezas que, mais do que mein de comunicacao corn o divino,servem como formulas de encantamento.

Mas essas duas ordens espirituais nao resultam em duasordens de religiao, nem levarn a criacao de categorias distintas:religiao e supersticoes populares. No imaginario do caboclo,compoem apenas sua religiao, que define seu universo proprio,povoado de santos e de bichos visagentos. Tecnicas especifi-cas sao empregadas para lidar com uns e com os outros, e seuconjunto compoe uma "ciencia utilizada pelo caboclo paradominar o seu meio ambiente".20

Os povoados amazonicos sao geralmente isolados e distan-tes dos centros urbanos, ficando por longos perfodos de tempopouco expostos a inovacoes e a tutela das instituicoes nacio-nais . Nessas situacoes, a vida social acaba sendo em grande

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parte estruturada em torno das irmandades religiosas, queextrapolam suas fung6es especificas , imiscuindo-se nos assun-

tos da vida profana.A diretoria dessas irmandades, composta pelos homens

de maior prestfgio local, acaba por se apresentar e funcionarcomo o "governo " do povoado . Mas as rapidas transforma-

c6es socio -economicas da Amazonia tendem a quebrar esse iso-lamento. Nos centros urbanos e semi -urbanos, para onde con-vergem esses povoados , quebra-se a antiga homogeneidadesocio-economica de quando todos eram roceiros ou seringuei-ros, e as irmandades perdem sua coesao ao transformarem-seem 6rgaos subsidiarios da igreja oficial , sob a tutela do paroco

ou vigario residente . A novena distingue -se entao do baile porcategorias de sagrado e de profano , e ate o culto aos Santospassa a exprimir, de certo modo, preconceitos de classe oude cor, revelando o processo de diferenciacao social.

Ocorrem modificacOes tambem no sistema de crencas,especialmente em relacao as entidades espirituais nao-cat6licas,que deixam de ser a expressao de realidades que o caboclo acre-dita dominarem seu meio ambiente natural, para adquiriremo carater de superstigbes ou de crencas de pouca importanciapars o homem urbano.

Assim, tambem os vegetalistas da Amazonia peruana estu-dados por Luna mostram -se profundamente influenciados pelaurbanizacao e pelo cristianismo . Mas o grau de importanciado elemento cristao nas sessoes de ayahuasca varia conforme

o vegetalista . Apesar de todos concordarem que Jesus e o sersupremo, e que todo o mal vem de Sata , os xamas peruanosmais velhos raramente invocam elementos cristaos , relacio-nando-se mais com as cosmologias amazonicas. Ja outros come-cam a sessao invocando Jesus e a Virgem Maria e, entre osmais mocos, e comum realizarem sessoes em torno de umacruz, e de serem recitadas as rezas cat6licas costumeiras, alemde outras extraidas do livro La Santa Cruz de Caravaca. Saotambem frequentes as alusoes ao catolicismo popular. Entreos mais jovens, nota -se um interesse pela Ordem da Rosa-cruze outros ramos do esoterismo de tradicao europeia.

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Dddivas dos espiritos

A empreitada xamanica a geralmente concebida comouma viagem ou uma batalha onde o indivfduo se expoe a variose graves perigos, como ataques de espiritos malignos ou devegetalistas invejosos e ciumentos. Os inimigos assumem aforma de cobras e outros animais perigosos , ou setas magicas

(virotes, para os peruanos ). Assim , o vegetalista deve cuidarde suas defesas. Uma das principais e a arkana (do quichuaarkay, que significa impedir , bloquear , fechar), geralmenteconcebida como sendo uma armadura criada a partir da fumacado tabaco . Pode tambem tomar a forma de animais , passaros,anjos brandindo espadas, soldados com armas de fogo e ateavioes de guerra . Em seu auxlio, podem vir espiritos antropo-morficos de plantas professoras , mestres curadores (xamas indi-

genas ou mesticos ), medicos ocidentais celebres , sabios de paf-ses distantes e ate seres de outros planetas . Em alguns casos,durante as sessoes, os xamas sao possuidos por espiritos querealizam as curas . Em outras ocasioes , os vegetalistas dialogamem voz alta com os espfritos.21

Alem de tais auxlios das entidades espirituais , o vegetalistatambem recebe certas dadivas, entre elas as melodias magicas,ou icaros , a baba yachay e os virotes . Este e o arsenal de suaarte, que the e entregue durante o periodo iniciatico , quandoesta em isolamento e sob dieta especial.

Icaros . A associacao do use de alucinogenos com melo-dias ou cantos magicos a comum em todas as Americas, desem-penhando papel importantissimo nas cerimonias em torno docacto peyote, do cacto San Pedrito, do rape epena , a erva Santa

Rosa e o tabaco. Acredita -se que cada planta professora ensineao vegetalista um canto ou uma melodia que represente a essen-cia de seu poder e que pode ser usado por ele para curar e seproteger , assim como para atacar e fazer mal aos outros. Essescantos, chamados icaros (do quichua yakaray, que significa

assoprar fumaca para curar ), sao usados em todas as atividades

xamanicas , com ou sem substancias psicoativas.Servem para evocar o espirito de uma plants professora

ou de um xama morto, viajar por outros mundos, curar , cacar,

pescar etc . Certos icaros servem para apurar ou modificar as

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visoes produzidas pelos enteogenos, podendo aumentar oudiminuir sua intensidade, alterar a percepcao das cores, dirigiros conteudos emotivos etc.

Assim, os icaros exercem uma funcao importante na estru-turacao das visoes. Suas qualidades especiais so podem ser per-cebidas durante os rituais. As letras sao frequentemente poeti-cas e evocativas, e as melodias sao reproduzidas atraves de can-tos ou assobios, podendo conter esses dois elementos. Atravesdos icaros, diz-se que bons vegetalistas sao ate capazes de criaruma visao coletiva, percebida por todos os participantes dasessao, e a habilidade de produzir visoes belas e marcantes eurn dos fatores de distincao entre eles. Em alguns casos, issopode levar a manifestacao de rivalidades durante uma sessao,quando ha varios vegetalistas presentes e alguns entre eles ten-tam controlar a qualidade das visoes produzidas.

Luna afirma nunca ter ouvido duas pessoas cantarem exa-tamente o mesmo icaro e, de fato, quando varios mestres par-ticipam de uma cerimonia, frequentemente cantam seus icarosao mesmo tempo, produzindo um efeito muito sugestivo, quecontribui para aprofundar o estado emocional dos presentes,afetando-lhes as visoes.

Mesmo na ausencia da ayahuasca ou outro psicoativo, osicaros podern produzir um estado de transe. Luna conta queum de seus informantes tomava ayahuasca somente uma vezpor semana, mas realizava tres ou quatro sessoes de cura nesseperiodo de tempo. Nessas ocasioes, ele entrava em transe sim-plesmente cantando o icaro e fumando um ou dois cigarrosmapacho, feitos corn urn tipo de tabaco da regiao, muito usa-dos pelos xamas. Como ele nao inalava grandes quantidadesde fumaca, o transe nao podia ser atribuido ao tabaco, e e pro-vavel que fosse auto-induzido atraves da concentracao e doassobiar das melodias magicas.

Icaros sao considerados importantes meios de cura e prote-cao. Alem de serem dotados de poderes curativos em si, ser-vindo para tratar picadas de cobra, por exemplo, tambem saoeficientes Como armas no combate ao poder de um feiticeiromalefico, que esteja provocando males a uma pessoa. Nessecaso, se o icaro do vegetalista curador nao for mais forte queo do seu adversario, ele corre o risco de ser morto.

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Na Amazonia, devido as condicoes s6cio-econ6micas, avida emocional dos seus habitantes tende a ser muito instavel,e e muito comum o rompimento de casais e a desagregacaode familias. Nessas situacoes, uma das principais funcoes doxama e a de dar uma solucao para conflitos afetivos. Para isso,recorre-se costumeiramente a banhos de ervas e a icaros espe-cificos para suscitar o amor.

Portanto, o repert6rio de icaros de um vegetalista a um

dos principais determinantes de seu poder e de sua posicao

na hierarquia de prestigio dos xamas. Quanto mais dessas melo-

dias magicas ele possuir, maior o respeito que impora aos

outros.22

A baba e as setas mdgicas . Os outros dois instrumentosbasicos do xama vegetalista, embora considerados de grandeimportancia, receberao menor atencao neste relato, por. seremtracos culturais relegados ao esquecimento na tradicao do cultodo Santo Daime. Aqui limitar-nos-emos a dizer que todos osvegetalistas estudados por Luna afirmavarn possuir em seupeito uma substancia conhecida pelos nomes de yachay, yausa

ou mariri, que seria uma especie de baba ou gosma grossa,presenteada pelos espiritos. Ela funcionaria como um ima capazde extrair virotes e outros objetos magicos usados por feiticei-ros ou vegetalistas malignos para invadir o corpo das pessoase fazer-lhes mal. Geralmente o vegetalista regurgita a baba e autiliza para chupar certas partes do corpo de seus pacientes,onde estariam alojados os objetos causadores do mal. Ap6schupar, separa do seu yachay o objeto extraido e cospe-o em

algum lugar fora da casa.Os virotes, que alem de agentes patogenicos sao tambem

dadivas dos espiritos, sao descritos como uma especie de gosmaque os xamas mal-intencionados mantem suspensos em seuyachay e que podem atirar por suas bocas para atingir o corpode suas vitimas. Entao eles adquirem formas variadas, transfor-mando-se em setas, ossos, espinhos, giletes, insetos etc.

O yachay e os virotes tern em comum a caracteristica devoltarem a quern os desferiu. Sao seres vivos as ordens do vege-talista e podem ser colocados na categoria geral de espfritos

auxiliares.23

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Finalmente, Cabe aqui levantar a questao da existencia devegetalistas benignos e malignos. Como geralmente acontecenos casos de magia, a distincao entre essas categorias e muitodificil. Os vegetalistas costumam dizer que, durante seu periodode iniciacao, os espiritos das plantas lhes apareceram ofere-cendo presentes de varios tipos: icaros com poderes variados,

perfumes para pocoes de amor, yachay, virotes, cobras e

outros animais de defesa e ataque etc. Cabe ao neofito esco-lher os presentes que vai aceitar. Diz-se que e mais facil tornar-se um feiticeiro maldfico que um xama curador, ja que os espi-ritos primeiro oferecem grandes poderes e presentes que podemcausar o mal. Se o iniciado for fraco e os aceitar, se tornaraum feiticeiro. So mais tarde os espiritos apresentam os presen-tes com os quais podera realizar curas ou magias de amor.

Vale ressaltar que, quando a influencia crista d fraca, naoexiste uma distincao Clara entre vegetalistas voltados para obern ou para o mal. Nesse ponto, entra em jogo a personali-dade e as decisoes de cada indivfduo. A tentacao de virar parao mal parece set constante, pois, quanto maiores o poder e oconhecimento adquiridos, maiores sao as possibilidades deusa-los incorretamente. Certos habitos, Como o costume de to-mar bebidas alcoolicas, tambdm podem levar para o mal. Assim,um vegetalista, mesmo que tenha praticado o bern durantemuito tempo, pode terminar por se tornar um feiticeiro maligno.

Notas

1. Luna 1986:30.

2. Dobkin de Rios 1972:45.3. Luna 1986:33.4. Luna 1986:34.5. Eliade 1982:105.6. Luna 1986:43.7. McKenna, Luna e Towers 1986:80.

8. Eliade 1982:43.9. Luna 1986:160.

10. Luna 1986:52.11. Maus 1990:205.

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XAMANISMO NA AMAZONIA OCIDENTAL 45

12. Anilises qufmicas revelaram que a Banisteriopsis caapi contem os alca-16ides de beta-carbolina : harmina , harmalina e tetrahidroharmina . A Diplo-teys cabreana e as Psychotrias cons@m o alcal6ide alucin6geno N-dimetil-triptamina (DMT). Esta substancia, tomada sozinha e por via oral, a inativa,mesmo em altas doses, devido a atuacao da monoamina oxidase (MAO).As anilises mostram que, embora as beta -carbolinas encontradas nos prepa-ros estejam em doses demasiadamente baixas para manifestarem suas pro-priedades alucinogenas , elas parecem desempenhar um papel na inibicaoda MAO, livrando assim o DMT de sua acao e permitindo -Ihe manifestarsuas propriedades psicotr6picas . Esse processo a explicado pelos usuiriosdo chi, que entendem que o cip6 (Banisteriopsis) di a forca e a folha(Psychotria) traz a luz. Estes entendimentos da forma de atuacao do chitornam -se mais complicados quando se leva em conta alguns relatos doefeito alucin6geno da Banisteriopsis quando usada pura na forma de chis,fumo ou ate mascada . A1em dos seus efeitos psicotr6picos , foi demonstradoque os componentes desse chi tern um grande leque de atuacoes emeticas,antimicrobianas e anti -helmfnticas, o que os torna efetivos no combate avermes asciridos, assim como a protozoirios como os tripanossomos e asamebas . Essa seria a explicacao para o use do chi como em@tico e purgante,na limpeza do organismo , contra todo tipo de impureza . Alega-se tambemque o chi a dtil no combate a malaria (Luna 1986 :57-59).13. Luna 1986 :62-64.14. McKenna , Luna e Towers 1986:78.15. Monteiro da Silva 1983:23 e 41.16. Luna 1986:73.17. Galvao 1983:8.18. Galvao 1983:4.19. Galvao 1983:4 e 5.20. Galvao 1983:6.21. Luna 1986:94.22. Luna 1986:97-109.23. Luna 1986:110:113.

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2 - Concepcoes caboclas de doencae o use da ayabuasca

Em muitas partes do mundo, onde predominam concep-coes magicas a respeito de sadde e doenca, as questoes que secolocam quando alguem adoece sao diferentes das formuladaspela medicina ocidental. Enquanto esta procura entender comoa doenca ocorre, se desenvolve e se transmite, entre os adep-tos do pensamento magico, o que interessa e saber por quealguem foi acometido por determinado mal. Vale lembrar que,para mim , o termo doenca abrange uma categoria ampla,incluindo no so problemas de ordem somatica, mas tambemdistdrbios psicol6gicos e dificuldades emocionais ou economicas.

Operando dentro deste esquema, os vegetalistas elaboramsuas concepcoes sobre as causas de doencas e suas possiveisformas de cura de um modo que parece ser bastante difundidopor toda a Amaz6nia.1 Os problemas com que se defrontamenquadram-se em duas grandes categorias:

1. Doencas naturais ou enviadas por Deus . Males sim-ples como resfriados, dor de garganta, problemas de pele etc.,que podem ser tratados com remedios de farmacia, injecoes(preferivelmente as dolorosas) etc.

2. Doenfas mdgicas . Quando uma doenca natural naopode ser resolvida pelos metodos da medicina oficial, suspeita-se que seja causada por razoes sobrenaturais. A suspeita e refor-cada se ocorrerem dotes repentinas em partes especificas docorpo. Nesse caso. torna-se necessario consultar um vegetalista.Essas doencas magicas podem ser provocadas por pessoas

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mal-intencionadas, que atuam movidas por despeito e inveja,usando virotes magicos ou roubando a alma de sua vitima,alem de outras formas de bruxaria.

Outros agentes causadores podem ser as prOprias entida-des espirituais, ja que seu mundo e percebido Como repletode perigos e basicamente hostil ao homem. Luna comenta,porem, que, devido a mudancas no meio ambiente e ao pro-cesso de urbanizacao, os males hoje em dia sao mais comu-mente atribuidos a outros indivfduos, que agiriam diretamenteou recorreriam aos prestimos de um especialista em feiticaria.

Quando consultado, uma das principais incumbencias dovegetalista e determinar a causa do mal que aflige seu consu-lente; se e de origem natural ou magica. Nesse ultimo caso,deve primeiro buscar a sua razao, para depois elaborar umaestrategia de tratamento.

Para tanto, e costumeiro indagar ao paciente a respeito deseus sintomas e sua vida afetiva e financeira. Tambem e feitoum exame do seu corpo, e sente-se o pulso. As vezes, tal con-duta e suficiente para que o vegetalista diagnostique o mal e re-ceite um tratamento. Em outros casos, torna-se necessario recor-rer a ayahuasca, que podera ser tomada s6 pelo vegetalista,ou entao por ele e seu paciente. Poderao entao ocorrer visoesvivamente coloridas e dotadas de um forte conteudo emocio-nal, onde sao comuns as manifestag6es de figuras humanas oude animais, conhecidas ou desconhecidas e, em alguns casos,ate com a imagem do pr6prio sujeito da experiencia. Ha tam-bem relatos de autocospia, ou seja, uma viagem por dentro docorpo e uma inspecao de seu funcionamento. Poderao tambemocorrer manifestag6es corporais das mais variadas, Como tre-medeiras, sentimento de frio, nausea, v6mito,2 diarreia e, emalguns casos, ate o vivenciamento do processo de morrer.

Tais experiencias e as interpretac6es feitas pelo vegetalistatendem a ter grande impacto, levando o doente a uma reflexaosobre sua vida Como um todo e as varias tensoes a que estaexposto. A partir disso, muitas vezes e possivel chegar a umadeterminacao de causa do mal. Pode-se atribuf-lo a influenciamalefica de determinada pessoa, cuja identidade se manifestounas visOes. Nesse caso, o xama vai travar uma batalha espiri-tual para reverter tal atuacao, e a nocao de que o feitico pode

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ser voltado contra o feiticeiro a mais um elemento trangi.iiliza-dor para o consulente, ja que contribui para satisfazer seu sen-timento de justica e de ordem c6smica.

Por outro lado, o estado de doenca e geralmente conce-bido como sendo causado por uma condicao de impureza doindivfduo, e a doenca como uma cochinada (porcaria) que thetomou o organismo. Acredita-se que o acumulo interno deimpurezas se deva a desobediencia das regras de dieta e con-duta consideradas apropriadas. Entende-se assim a eficacia daayahuasca e de outras plantas que sao usadas nesses casos,onde suas propriedades emeticas/catarticas produzem sensa-cbes de limpeza e alfvio.

Os tratamentos receitados pelos vegetalistas sao conheci-dos por sua forca e pelos abalos temporarios que produzemem seus pacientes. Por essa razao, os consulentes costumamit as consultas acompanhados de alguem do seu cfrculo maisfntimo, que possa lhes dar seguranca e ajuda-los a voltar paracasa. Isso acaba contribuindo para que o trabalho do vegeta-lista muitas vezes assuma as caracteristicas de uma terapia familiar.

Entre as opcOes de tratamento que se apresentam as mas-sas pauperizadas da regiao, os vegetalistas sao dos mais presti-giados.3 Isso a facilmente compreensfvel, ja que os profissio-nais de saude oficiais da regiao tendem a ser despreparados eindiferentes, quando nao preconceituosos em relacao a essapopulacao. Por outro lado, os vegetalistas, alem de estaremmais pr6ximos desse publico, em termos culturais e economi-cos, oferecem um tratamento mais personalizado, capaz deproduzir efeitos psfquicos de grande profundidade, atravesde metodos cujos pressupostos basicos sao mais faceis de com-preender, uma vez que se fundamentam num corpo de cren-cas mais compartilhado pela populacao cabocla da regiao. Sao,portanto, mais acessfveis e, em muitos casos, percebidos comosendo mais eficazes que os medicos e seus auxiliares.

As sessoes de ayahuasca

Nao ha uma unica maneira considerada correta para a orga-nizauao de sessoes de ayahuasca, embora sempre seja mantido

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um clima de encantamento, proprio ao manuseio de substan-cias sagradas e a preparacao do espirito para experiencias trans-cendentais.

As sessoes podem acontecer tanto em localizacoes urba-nas quanto em areas da floresta de acesso relativamente facilpara os habitantes da cidade. Nas areas urbanas, elas geralmenteacontecem dentro de uma casa, onde e mais facil se isolar dossons externos, aos quais o individuo que toma a bebida ficaextremamente sensivel. E tambem necessario manter umminimo de discricao em relacao a vizinhanca e as autoridades,uma vez que, no Peru, embora seja permitido o use da aya-huasca, ha leis que proibem a pratica do curandeirismo. Essassessoes geralmente sao presididas por vegetalistas profissio-nais ou semiprofissionais, que podem realiza-las varias vezespor semana ou ate diariamente. Sao reunidos grupos de atevinte pessoas, que frequentemente nao se conhecem e nemsao apresentadas durante a sessao.

Em alguns casos, esses mesmos vegetalistas podem resol-ver levar grupos menores para uma floresta proxima, realizandosessoes ao ar livre, geralmente em noites sem lua. Nessas oca-sioes, a sessao perde urn pouco da rigidez ritualistica, adqui-rindo urn clima mais informal. Luna cita tambem diferencasentre as sessoes realizadas por vegetalistas das cidades de Iqui-tos e Pucalpa e as das regioes menos urbanas, onde seriammenos freqUentes as referencias cristas. Mas ele mesmo advertepara o fato de isso ser uma generalizacao grosseira, lembrandoa grande mobilidade dos vegetalistas e a extensa rede de conta-tos que une os praticantes urbanos aos moradores do Campoe vice-versa. Chama tambem atencao para o fato de existiruma grande tolerancia, e ate curiosidade, a respeito das varia-,coes nos rituais presididos por diferentes vegetalistas.

Essas sessoes, conhecidas como "trabalhos", nao precisamser dedicadas exclusivamente para a questao da cura. E comumvegetalistas se reunirem entre si de duas a quatro vezes pormes, para beberem ayahuasca juntos, aprenderem corn suasvisoes e renovarem suas forcas.

O ritual pode ser considerado como tendo seu inicio como preparo da bebida. Em alguns casos, o ayabuasquero ja aadquire pronta, mas geralmente ele procura organizar seu pre-

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paro pessoalmente, a partir de plantas retiradas da floresta ouentao cultivadas em pequenas areas de terra de sua proprie-dade, conhecidas como "chacras". Luna relata um caso ondeo vegetalista comeca na alvorada do dia anterior ao do preparo,colhendo ramos do cip6 com grande cerimonia. Depois de lim-pos e cortados em pedacos de trinta a quarenta centimetrossao reunidos em feixes de trinta pedacos. Em seguida, sao colo-cados em local sombreado e cobertos de folhas, para aumen-tar a protecao. Simultaneamente, sao colhidas as folhas da cha-crona (Psychotria viridis).4

A bebida e feita em um local reservado unicamente paraesse fim e, no caso especifico relatado, o processo e executadopor uma mulher e seu irmao. 0 preparo comeca as 6 horas,quando, com o auxflio de uma pedra ou de uma madeira dura,os pedacos de cip6 sao macetados. Camadas alternadas defolhas e de cip6 sao arrumadas numa grande panela de alumi-nio - as de barro sao consideradas mais adequadas, mas asde aluminio sao mais faceis de adquirir e, portanto, mais usa-das. A cada camada, o vegetalista assopra dentro da panela bafo-radas de fumaca de tabaco. Em seguida, sao colocados de dozea quinze litros de agua na panela, reduzidos por fervura a ape-nas um litro, que e transferido para outra panela. A operacaoe repetida sete vezes. 0 extrato coletado e fervido novamente,sendo reduzido a meio litro, e o produto finale um liquidoespesso de cor terrosa.

A cerimonia, sessao, ou trabalho, comeca por volta das 9horas da noite, embora os participantes costumem chegar comvarias horas de antecedencia. Os participantes sao:

a. pacientes que tomam ou nao a bebida;b. pessoas sadias em busca de "limpeza" ou de visoes;c. acompanhantes dos pacientes ou observadores curiosos quepermanecem em seus lugares, participando pouco da sessao.

Todos os que vao tomar ayahuasca devern ter se abstidode ingerir alcool, condimentos, sal, doces, gordura e certas Car-nes pelo periodo minimo de 24 horas que antecedem a sessao.A dieta deve ser mantida por mais 24 horas apos o termino dasessao.

A sessao e dirigida pelo vegetalista, que pode ser ajudadopela sua mulher. Durante algumas horas, ele fala sobre inume-

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ros assuntos, profanos e espirituais, conta hist6rias, algumasate de natureza picaresca, pergunta a respeito de familiares ouamigos dos presentes etc. Esta conversa e considerada impor-tante para preparar os presentes para as experiencias que estaopor vir.

Quando o xama ayahuasquero considera que e chegadaa hora de comecar, todos procuram uma forma confort ivelde se acomodar, sentando-se em sacos de pano, no chao, ouem bancos. Procura-se formar um circulo em torno do aya-buasquero como forma de protecao contra as forcas maleficasque poderao se aproximar durante a sessao.

Numa das cerim6nias descritas por Luna, o vegetalista terna sua frente sua schacapa, uma especie de maraca feito cornfolhas de uma certa graminea, usado para acompanhar algunsicaros, e tambem chacoalhado sobre a cabeca ou em torno docorpo dos participantes para evocar visoes ou livra-1os de doen-cas e espiritos malignos. Ao seu lado ha uma garrafa de aya-huasca, uma outra com cristais de canfora em alcool, varioscigarros de tabaco mapacho, para serem usados durante a ceri-monia, um pequeno frasco de perfume para acalmar aquelesque se assustarem e, para os que sentirem nausea ou diarreia,papel e lanterna. Em certas ocasioes, ha tambem fotografiasou papeis, com os nomes e enderecos de pessoas ausentes,para quern pretende invocar ajuda. 0 vegetalista, assim comoos demais participantes, no usa nenhum tipo de roupa espe-cial. Em alguns casos, podem estar presentes elementos nitida-mente cristaos, como a cruz e imagens de santos.

A cerim6nia comeca com uma serie de oracoes. Uma delas,muito usada nessas ocasioes, comeca por invocar "Cristo, oPai Celestial, Criador do Ceu e da Terra", pedindo permissaopara usar a planta e protecao contra maus espiritos que queirampenetrar no cfrculo. A oracao termina da seguinte forma:

"Pai, neste Vosso cfrculo nao ha ciume, vinganca, bruxaria,nada de mau. Tudo esta de acordo com as Vossas leis. Noscuramos os doentes como melhor podemos. Obedecemosao Vosso comando, Pai".

Varias outras oracoes podem ser rezadas, incluindo o Credocat6lico e invocacoes a Virgem. E tambem muito usado o livro

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La Santa Cruz de Caravaca - Tesoro de Oraciones. Esta cole-tanea e conhecida em toda a America Latina e Espanha. Muitoassociada a rituais de magia, foi publicada inicialmente emValencia, Espanha, no seculo XIX. Contem uma serie de ora-coes em torno da cruz de Caravaca, uma Cruz dupla, relacio-nada em certas lendas a visita realizada por Santa Helena aTerra Santa, no ano de 326. Outros relatos falam de sua atua-cao milagrosa na conversao de um lider muculmano durantea ocupacao moura da Espanha.

0 ayahuasquero pega entao a garrafa com a bebida, asso-pra fumaca de tabaco sobre ela e invoca o espfrito da aya-buasca, pedindo que envie determinadas visoes aos participan-tes. Ele pode pedir que alguem veja seu futuro, quem e o res-ponsavel por uma doenca magica, ou ainda que the aparecaum passaro como o beija-flor, por. exemplo, ou que the sejamostrada uma visao subterranea das raizes das arvores, paraque um paciente veja como elas absorvem alimentos e forcada terra.5

A bebida e servida em uma pequena cabaca. Nem todosos presentes bebem, e alguns, como as mulheres e os que estaotomando pela primeira vez, recebem menos. Antes de beber,os participantes assopram um pouco de fumaca sobre a cabacae fazern uma rapida oracao. Uma vez que todos tenham sidoservidos, o vegetalista toma sua dose e manda que se apaguernas luzes, com excecao de uma, no altar, por exemplo.

Faz-se silencio por urn periodo de vinte a trinta minutos,ate que o vegetalista, sentindo a chegada da mareacidn (deno-minat;ao do efeito da bebida; em castelhano, tontura, nausea),comeca a tocar maraca e a assobiar ou cantar icaros para aumen-tar os efeitos. De quando em quando, ele se dirige a algunsdos participantes, perguntando se estao mareados, ou paraassoprar fumaca de tabaco sobre seus corpos. Aqueles que estaodoentes recebem atencao especffica, e o xama eventualmentechupa certas partes de seus corpos, apresentando depois umespinho ou outro objeto malefico que estaria alojado no corpodo paciente, causando o problema. Os outros participantespermanecem em silencio, absortos em suas visoes. De vez emquando alguem podera se retirar momentaneamente para vomi-tar ou defecar.

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O efeito da bebida parece vir em ondas. A cada quarenta,sessenta minutos pode ocorrer um intervalo, quando cessamos icaros e os participantes fazem comentarios e ate piadas sobreas visoes. Apos um espaco de tempo, os efeitos retornam e osparticipantes se calam. Se houver outros vegetalistas presentes,eles estarao tocando seus maracas e cantando seus icaros a qual-quer momento, sem nenhum tipo de coordenacao. As letrasdas cancoes tambem podem ser em linguas diferentes: caste-lhano ou aimara, sendo o quichua muito utilizado nessas ocasioes.

Apos quatro ou cinco horas, os efeitos da bebida comecama amainar. Mesmo que os participantes tenham comecado asessao como estranhos entre si, reina agora um sentimento calo-roso de amizade. Aos poucos, vao comecando conversas ecomentarios sobre a sessao. Ao final, alguns retornam parasuas casas, enquanto outros ficam fumando e conversando ateadormecerem.

Tomar ayabuasca, que tambem e conhecida como lapurga, e concebido como uma maneira de "por Para fora" asdoencas, estados de espirito negativos e outras fontes de pro-blemas e infortt nios. A confianca nas qualidades profilaticasque the sao atribuidas, aliada a experiencia do seu efeito eme-tico e catartico, sem duvida contribui muito para a criacao deuma sensacao de "limpeza" e o clima de alegria e descontra-cao que reina entre os participantes apos a sessao.

Uma das maneiras de julgar o ayahuasquero e pela forcada bebida que ele serve. Esta, alem de produzir "limpeza" atra-ves do vomito e da diarreia, deve produzir visoes nitidas eboas. Muitos participantes dessas sessoes vao la justamente aprocura de visoes: as vezes de parentes ou amigos que estaodistantes, as vezes para descobrir o causador de um infortunio.Frequentemente sao relatados casos de visoes com forte con-teddo erotico: mulheres nuas, sereias etc. Mas a atividade se-xual, antes, durante ou imediatamente depois da sessao a rigi-damente proibida, alegando-se que, de outra forma, a bebidapoderia causar grande mal a pessoa.

O bom ayahuasquero deve tambem ser capaz de contro-lar as visoes dos outros participantes, fazendo com que cadaurn responda suas proprias questoes e afastando as experien-cias mais desagradaveis. Para isso, ele conta com diversos recur-

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sos, como o use de diferentes tipos de ayahuasca, propriospara fins especfficos, o use de certos icaros de seu repertorio,perfumes e som do maraca.

Para uma sessao de trabalho xamanico, considera-se neces-sario atingir um born gran de concentracao, que torna as visoesmais claras. Um clima de harmonia entre os presentes tambeme considerado importante, e cre-se que, nesses casos, os icaroscantados por diversos participantes servem para reforcar asvisoes coletivas, "juntando las mareaciones". Assim, e bus-cando esse clima de harmonia, tranquilidade e confianca quecertos grupos de vegetalistas amigos se rednem regularmentepara renovar suas forcas. Igualmente, considera-se perigosotomar a bebida corn estranhos, pois nao se sabe qual sera a suaatuacao sob influencia da ayabuasca.

Em suas visoes, os ayahuasqueros procuram explorar areasde diffcil acesso durante o estado de vigilia da consciencia,assim como outros "mundos supra-sensfveis". Ao tomar abebida, eles sentem que rompem barreiras ffsicas normais econseguem acesso a outros nfveis de realidade. A esse respeito,sao constantes os relatos que lembram as experiencias deoutros tipos de xamas em outras areas do mundo e que falamde viagens e vdos a lugares distantes. Estas viagens podem sedar das mais variadas maneiras, seja assumindo a forma de ani-mais, seja transportando-se por espfritos auxiliadores, poravioes ou ate por Beres extraterrestres em discos voadores. Asexperiencias vividas durante esses momentos tambem saomuito variadas. Alguns podem sentir que vao a mundos subter-raneos, povoados por monstros assustadores. Outros vao ametropoles distantes, onde tern a prosaica experiencia de andarde carro ou de elevador. As vezes, essas experiencias podernser bastante assustadoras - pessoas sao atacadas ou transfor-madas em animais, jiboias Ihes entram pela boca etc. Nessesmomentos, torna-se valiosa a ajuda de urn mestre experiente,que lembre a importancia de se manter a calma e de nao se termedo. Tais experiencias desagradaveis podem ser atribufdas afaltas cometidas pelo indivfduo, como a quebra da dieta ali-mentar ou o rompimento dos tabus de sexo, por exemplo.Ou entao sao atribufdos a espfritos malignos ou ao descuidono preparo da bebida. Contra esse tipo de efeito, um dos infor-

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mantes de Luna, por exemplo, disse ser importante colocartres ou quatro cigarros de tabaco entre as raizes do cip6, duranteo plantio.

Alem da Bannisteriopsis e da Psychotria, muitas outrasplantas podem ser usadas no preparo da bebida. 0 mimeronao tem limite, pois a ayahuasca e considerada urn meio paraa pesquisa das propriedades de novas plantas e substancias, atra-ves das modificacoes que provocarn na experiencia e no con-teudo das visoes.

Existem muitas plantas professoras e, segundo Luna, otabaco pode, de certa forma, ser considerado ate mais impor-tante que a ayahuasca, pois ele atua como um mediador entreo vegetalista e os espiritos das plantas. Como diz urn de seusinformantes: "Sin el tabaco no se puede usar ningun vege-tal... ". 0 tabaco e tido como purificador do corpo e expulsaa doenca. E tambem considerado a comida dos espiritos. 0dominio do use do tabaco, fumado, ingerido ou inalado pelasnarinas a urn aspecto da iniciacao xamanica de todos os seusinformantes. 0 tabaco esta sempre presente nas sessoes de aya-huasca realizadas pelos mesticos peruanos.6

A sensacao de compreender as causas de doencas ou outrosproblemas que afligem os individuos pode ser um poderosoauxiliar no alivio de tensoes, permitindo ern muitos casos queo organismo encontre por si pr6prio o caminho do restabele-cimento. Como ja vimos, o tratamento dado pelo vegetalistae geralmente mais cuidadoso e atencioso para corn a personali-dade do paciente do que aquele ao qual as populacoes pobrestern acesso junto aos praticantes da medicina oficial. Compre-ende-se assim que muitos recorram a esses curandeiros, bus-cando tratamento para seus males. Entre estes, urn dos maiscomuns e o alcoolismo, urn dos grandes problemas sociais daAmazonia.

Para ser eficaz, o vegetalista deve ser capaz de transmitiruma aura de onipotencia, convencendo seus pacientes de queele realmente e capaz de fregiientar mundos aos quais poucostern acesso. E la, enfrentar e derrotar os ferozes seres malignos,responsaveis por suas mazelas. Para criar e manter essa aura,o vegetalista costuma relatar suas facanhas, nao poupando auto-elogios. Em certos casos, o pr6prio sucesso economico e poli-

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tico pode ser invocado como reflexo do poder xaminico. Dob-kin de Rios relata casos de curandeiros bastante ricos e podero-sos. Cita, por exemplo, um famoso curandeiro de Pucalpa,preso pela pritica ilegal de medicina, que teve de ser soltopelas autoridades devido as manifestac6es politicas que se segui-ram a sua prisao.7

O vegetalista fregiientemente pode tornar-se urn impor-tante irbitro moral da sociedade ao atribuir a causa de certosmaleficios a condutas inadequadas e ao promover a nocao deque certas pessoas sao capazes de causar o mal, sendo , portanto,merecedoras de castigos. Estes podem acontecer atraves deatos de contrafeiticaria ou de outras formas mais diretas de acao.

Uma das constatag6es que sobressai desses relatos a que,embora mantenha suas raizes nas tradic6es indigenas, o vegeta-lismo caboclo da Amazonia e dotado de grande dinamismo eplasticidade, adaptando-se as novas condicOes criadas pela urba-nizacao e a paulatina destruicao das culturas indigenas.

Apesar de os velhos xamas deixarem poucos sucessoresdotados do mesmo grau de conhecimento a respeito de plan-tas e da cosmologia do povo da floresta , o use da ayahuascapersiste. Surgem novos tipos de xamas, menos individualistasem suas priticas e mais voltados para os aspectos coletivos daexperiencia xaminica . Luna e Dobkin de Rios fazem ripidasrefercncias a uma nova geracao de ayahuasqueros em cujostrabalhos os icaros deixam de ser cantados por um s6 indivf-duo, sendo entoados em coro por todos os participantes - oque a uma pritica da seita do Santo Daime.

0 declinio do saber amazonico tradicional e compensadopela aquisicao de novos elementos tornados de tradicOes euro-peias , africanas e ate orientais . Hoje proliferam, entre os xamasamazonicos , o rosa-crucianismo , o gnosticismo , o espiritismo,o umbandismo etc. No lugar dos solitirios curandeiros, surgeminstituicoes organizadas hierarquicamente na forma de seitas.E as antigas nocOes espiritualistas a respeito da natureza convi-vem corn um ecologismo vanguardeiro.

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Notas

1. Essas concepcoes guardam, por exemplo, numerosas similaridades comos esquemas estudados por Maues (1990) numa regiao proxima ao estuariodo Amazonas.2. 0 medico americano Andrew Weil afirma que o reflexo que produz o

ato de vomitar se origina no setor do cerebro chamado de medula oblon-gata, cujas mensagens sao transmitidas ao canal alimentar atraves do nervovago - um dos principais componentes do sistema nervoso parassimpi-tico. Durante o ato de vomitar ocorrem descargas de grande potencia nonervo vago, produzindo diversos outros efeitos fisiologicos, alem da expul-sao dos contetidos do estomago. Well especula que, dessa forma, o vomitopode trazer a consciencia diversos processos inconscientes e talvez possaservir para estender a influencia do cortex ate o centro da area inconscientedo cerebro, a medula. Weil considera que a acao de vomitar pode mudardramaticamente as experiencias conscientes do individuo de tres maneiras:a. expulsando do corpo materia indesejada;b. expulsando sensacoes desagradaveis, como dores de cabeca e enjoos;c. apps o use de psicoativos, expulsando emocoes indesejadas resultantesda ansiedade e da resistencia a se deixar levar pelos efeitos da substancia.A concentracao dessas resistencias e ansiedades sob o aspecto de sensa-coes fisicas no estomago e a sua expulsao atraves do vomito serve comoimportante forma de alivio dessas emocoes desagradaveis (Weil 1980:8-13).Entende-se dessa forma a concepcao positiva que os usuarios da ayahuasca

tern a respeito do vomito, que e visto como forma de "limpeza" e podeate ser estimulado.

3. Dobkin de Rios 1972:67.4. Luna 1986:144.5. Luna 1986:147.6. Luna 1986:159.7. Dobkin de Rios 1972:135.

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3 - 0 desenvolvimento do cultodo Santo Daime

Origens

A selva tropical sul-americana ocupa uma area de 6,5milhoes de quilometros quadrados, onde predominam plani-cies e a maior parte da bacia amazonica , estendendo-se em dire-4;5o ao norte das Guianas ate a foz do Orenoco. Apesar dessaextensao , a regiao constitui uma unidade extraordinariamentehomogenea , devido a sua historia geologica , ao clima uniformee a posicao equatorial. No seu livro sobre a adaptac5o dohomem a ecologia amazonica , a antropologa Betty Meggerscomenta que uma das caracteristicas mais surpreendentes davida na Amazonia de hoje e a ausencia de diferenciacao regio-nal. Segundo ela constata, ao longo de todos os rios principaise de alguns tributarios menores, o povo come a mesma comida,veste roupas semelhantes, vive no mesmo tipo de casa e parti-cipa das mesmas crencas e aspiracoes.I

Muitos outros estudiosos tem feito afirmacoes semelhan-tes e, no tocante a uniformidade dos costumes e das crencasdos caboclos amazonicos de hoje, o antropologo brasileiroEduardo Galvao os atribui a atuacao dos missionarios e colo-nos que, a partir do seculo XVII, impuseram o catolicismo atra-ves do desmembramento das sociedades indigenas e sua incor-poracao as aldeias missionarias. Apesar de os indios darem seuproprio cunho a esses novos padroes e concepcoes, predomi-naram as instituicoes catolicas - em parte porque nas cultural

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nativas no se desenvolvera um ritual complexo, capaz de bar-rar as novas praticas. Subsistiram as crencas mais diretamenteligadas ao meio ambiente, que nao tinham substituto ou equi-valente no cristianismo. Alm disso, a difusao de uma "linguageral", variante do tupi-guarani, contribuiu tambem para nive-lar diferentes formas de expressao. Isso, segundo Galvao, levoua uma tendencia de se atribuir importancia talvez exagerada acontribuicao indigena na cultura cabocla, numa regiao tambemexposta a outras fortes influencias.2

O antrop6logo Clodomir Monteiro da Silva, discutindomais especificamente a Amazonia ocidental, chama atencaopara momentos de efervescencia social ocorridos duranteos fluxos migrat6rios inter e intra-regionais. Inicialmente, opovoamento da regiao se dava com a chegada em massa deflagelados e retirantes que vinham ocupar os seringais, ateque a depressao econdmica dos anos 20 e 30 estancou o fluxo.A perda de importancia da borracha amazonica, diante daascensao dos seringais cultivados na Malasia, provocou umaqueda substancial da populacao na area. Um novo fluxo migra-t6rio para a Amazonia comecou a partir de 1940, quando aSegunda Guerra recuperou a importancia mundial da borra-cha amazonica.

Mas as mudancas s6cio-econ6micas tambem desencadea-ram urn acelerado processo de urbanizacao, iniciado por aque-les que haviam conseguido capitalizar recursos e que procura-vam as capitais em busca de uma vida mais confortavel. Foramseguidos pela massa rural de caboclos e de antigos migrantesnordestinos dos anos 40 e seus descendentes que, vendo frus-tradas as ambicoes de melhoria de vida, passararn a inchar aspequenas e medias cidades do interior. Ap6s um estagio maisou menos curto, constatavam que la tampouco encontrariamas condicoes desejadas e direcionavam seu exodo para as cida-des grandes, principalmente as capitais. Nas ultimas decadas,esse processo de urbanizacao se acelerou, agravando a situa^aodas cidades, que passam por um processo de inchaco popula-

cional e favelizacao.0 regime militar instaurado em 1964 adotou entre suas

metas prioritarias a "integracao do territ6rio nacional" e a inser-cao plena da Amazonia brasileira na economia mundial. As

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mudancas s6cio-econ6micas decorrentes dessa decisao apre-sentam Como reverso da medalha a desorganizacAo das popula-c6es primitivas rusticas e a alteracao da ordem urbana. Esseprocesso de substituicao de antigas relac6es socioculturais deumargem a uma serie de fen6menos caracteristicos, entre osquais o desenvolvimento da utilizacAo ritual da ayahuasca den-tro do culto do Santo Daime, que vamos discutir aqui.

Mestre Irineu

Os adeptos do culto do Santo Daime costumam conside-rar 1930 Como a data de fundacao de sua doutrina. Nesse ano,ap6s um perfodo de iniciadao, e depois de virios anos de con-tato com o use da ayahuasca na regiao fronteirica do Brasil,Peru e Bolivia, o Cabo da Guarda Territorial Raimundo IrineuSerra, ou Mestre Irineu, Como viria a ser conhecido, deu poriniciados seus trabalhos espirituais em Rio Branco, capital doentao territ6rio do Acre.

Descrito Como negro, alto e forte, nasceu em 15 de dezem-bro de 1892, em Sao Vicente de Ferre, no Maranh5o,3 e mor-reu em 6 de julho de 1971, em Rio Branco. Em 1912 migroupara a Amaz6nia ocidental, junto com o fluxo de pessoas quevinham para a regiao atraidas pela quimera do ganho ficil coma extracao do litex.

Fixou-se inicialmente em Xapuri, onde residiu durantedois anos, passando depois tres anos de trabalho nos seringaisde Brasileia e outro tanto em Sena Madureira. Nessa epoca, tra-balhou tambem Como funcionirio da Comissao de Limites,criada pelo governo federal para servicos de delimitacao dafronteira do Acre com a Bolivia e o Peru.

Nos anos em que passou trabalhando na floresta amaz6ni-ca, aprofundou seu conhecimento a respeito da populacaocabocla local e da sua cultura. Travou contato corn os gruposCaxinawi brasileiros e peruanos, que, na epoca, ji estavamem acelerado processo de assimilacao dos valores das culturashegem6nicas desses paises.4

Durance algum tempo, teve Como companheiros os irmaosAntonio e Andre Costa, tambem negros e conterraneos seus

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de Sao Vicente de Ferre. Com eles, conheceu o use da aya-

huasca na regiao de Cobija, na Bolivia. Relatos colhidos porMonteiro pia Silva e pelo antropologo Fernando de la RoqueCouto indicam que um certo ayahuasquero peruano, conhe-cido como Dom Crescencio Pizango, cujos conhecimentoseram atribufdos a um rei inca de nome Huascar, foi quem ini-cialmente convidou Antonio Costa a tomar a bebida. Este, porsua vez, a apresentou a Raimundo Irineu Serra.5

Embora os detalhes disponfveis sejam parcos, ha indica-coes de que, a partir de tais experiencias, os irmaos Costa abri-ram um centro, na decada de 20, chamado Cfrculo de Regene-racao e Fe (CRF), instalado na cidade de Brasileia, no Acre.Do grupo participava tambem Raimundo Irineu Serra.

A organizacao do centro, considerado hoje precursor doDaime, obedecia a uma hierarquia de modelo militar, indo de"soldado" a "marechal" e, durante certa epoca, parece terhavido uma disputa entre Antonio Costa e Raimundo IrineuSerra pelo seu comando efetivo.

Os relatos sobre esse perfodo sao poucos e adquirem urncerto tom de mito fundador. Isso poderia comprometer suaconfiabilidade, nao fosse o fato de esses relatos se adequarembastante bern as tradicoes costumeiramente associadas ao useda bebida. Mestre Irineu parece ter se submetido ao processotradicional de iniciacao e desenvolvimento xamanico ja descri-tos para ayabuasqueros e vegetalistas da Amazonia.

Suas primeiras experiencias teriam inclufdo a visao de luga-res distantes, como o seu Maranhao natal, Belem do Para eoutros locais. Mas a principal seria a aparicao repetida de umaentidade feminina, chamada Clara, e que veio a ser identifi-cada com Nossa Senhora da Conceicao, ou com a Rainha daFloresta. Durante essas aparicoes, ela the teria dado instrucoesa respeito de uma dieta que deveria seguir, preparando-se parao recebimento de uma missao especial e tornar-se urn grandecurador.

Obedecendo a essas recomendacoes, Raimundo IrineuSerra se embrenhou na mata, onde ficou oito dias tomandoayabuasca, sem conversar com ninguem, evitando especial-mente mulheres, pois as instrucoes eram de que ele nao deve-ria ve-las nem pensar a respeito.

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Mestre Irineu, no centro da foto, ladeado por seguidores.

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A alimentacao restringiu-se a "macaxeira insossa", ou seja,mandioca cozida sem condimentos, nem sal nem acucar. Res-salto esse fato pois conta-se que um companheiro seu (as vezesidentificado Como Antonio Costa) is colocar sal na macaxeira,mudando de ideia na ultima hora. Mestre Irineu, que nao estavapresente naquele momento, foi avisado do fato por uma voz.Mais tarde, comentou o incidente com seu companheiro, queconfirmou a veracidade e ficou impressionado com os pode-res que Mestre Irineu vinha adquirindo.

Outro epis6dio que costurna ser relatado sobre seu periodode iniciacao e a visao que ele teve da lua aproximando-se dele,trazendo em seu Centro uma aguia. Era Nossa Senhora da Con-ceicao, ou a Rainha da Floresta, que vinha the "entregar osseus ensinos". Essa "miracao" teve importancia fundamentalno posterior desenvolvimento do trabalho de Mestre Irineu,passando a constituir o terra do seu primeiro hino, alem defornecer urn dos principais simbolos do culto do Santo Daime,onde a lua represents a ideia de essa doutrina ter sido ensinadapela Virgem Mae e a aguia faz alusao ao grande poder de visaoque e dado aos seus seguidores.

Portanto, vemos que Mestre Irineu, como outros vegetalis-tas da regiao, ap6s passar uma temporada afastado do conviviosocial e seguindo uma dieta restrita, recebeu valiosos ensina-mentos diretamente da planta professora, ou do espirito asso-ciado a ela. Tambem o tratamento de "Mestre" que the foi con-ferido parece apontar a sua filiacao a tradicao vegetalista, ondeos mais graduados sao chamados desta forma.

Ap6s urn perfodo de participacao ativa e disputas com Anto-nio Costa pela lideranca do CRF, Mestre Irineu mudou-se paraSena Madureira, transferindo-se em 1920 para a cidade de RioBranco, no Acre, onde ingressou na Guarda Florestal. Permane-ceu nessa corporacao ate 1932, quando deu baixa com a gra-duacao de Cabo.

Em 1930, radicado no bairro de Vila Ivonete, que entaofazia parte da zona rural de Rio Branco, iniciou os trabalhospublicos com a ayahuasca, que veio a chamar de Daime. Ini-cialmente tornou-se conhecido entre a pequena comunidadenegra local, cujos membros formavam a maior parte de suaclientela. Corr o passar dos anos, sua doutrina foi se consoli-

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dando, e as sessoes comecaram a ser freqUentadas por pessoasde outras racas, ate seus poderes de cura tornarem-se tao conhe-cidos em toda a regiao que as pr6prias autoridades tiveramdespertada a sua atencao.

Nessa epoca estava em vigencia uma politica oficial derepressao a feiticaria, baseada no decreto de 11 de outubrode 1890, que introduzira no C6digo Penal os artigos 156, 157e 158, referentes a pratica ilegal da medicina, da magia e queproibia o curandeirismo e o use de "substancias venenosas".Todos esses artigos poderiam ser usados contra Mestre Irineue, de fato, foram. Mas a perseguicao movida contra terreirose outros centros nao era homogenea, e certas casas conseguiama protecao das elites locais: suas atividades eram alcadas aostatus de religiao, ficando fora do alcance da pol cia.6

A antrop6loga Yvonne Maggie, estudiosa das perseguicoesoficiais ao espiritismo, trabalhando com material do Rio deJaneiro, que, Segundo ela permite formular generalizacoes, pro-cura demonstrar como os mecanismos reguladores criadospelo Estado, em vez de extirpar a crenca, foram fundamentaispara a constituicao das -formas atuais, incentivando certas carac-teristicas e desencorajando outras. Assim, mais do que liquidara pratica da magia em geral, o que se buscava era identificarfeiticeiros, autores de magia malefica.7

Assim, conservando-se dentro de certos parametros e enfa-tizando seu "compromisso com o Bern", esses terreiros chega-vam a estabelecer proveitosas relacoes com membros das eli-tes politicas e intelectuais. Estes, por sua vez, usavam suas liga-coes com essas casas para variados fins. Alguns recorriam a ser-vicos de magia propriamente dita, outros procuravam usufruirum pouco do prestigio que elas tinham junto a massa de eleitores.

Mestre Irineu tambem contava com esse tipo de amizadee tinha o apoio de personagens influentes na politica local:um certo coronel Fontanelle de Castro e o governador doAcre, Guiomard dos Santos. Essas autoridades, Segundo Couto,embora nao tomassem Daime, gostavam de aparecer ao seulado em epocas eleitorais.8 0 antrop6logo paulistano WalterDias Jr. especula que em funcao desse tipo de apoio, e da neces-sidade de conseguir respeitabilidade, Mestre Irineu teria bus-cado em sua nova doutrina dar maior importancia aos elemen-

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tos rituais "brancos" cat6licos ou do espiritismo esoterico,minimizando a questao da possessao, as vezes associada ao useda ayahuasca na tradicao dos curandeiros amazonicos.

Seguindo a mesma logica de Dias, eu poderia tambem con-siderar essa a razao pela qual, na doutrina, nao ha resqufciode antigas concepcoes e praticas xamanfsticas e vegetalistasque permitam o use da forca mfstica de forma moralmenteambfgua - como no ataque a inimigos ou na fabricacao de fil-tros de amor, por exemplo.

Com a influencia do governador Guiomard dos Santos,Mestre Irineu obteve, na decada de 40, a doacao da ColoniaCust6dio de Freitas, situada na zona rural de Rio Branco, cujasterras foram divididas entre as famflias frequentadoras do culto.

Nessa colonia, que passou a ser conhecida como Alto Santo,foi construfda uma igreja-sede do culto, batizada de Centrode Iluminacao Crista Luz Universal - CICLU, com uma grandeCruz de Caravaca em cimentb, de cinco metros de altura. Afama do CICLU se espalhou e, em certos dias, ate seiscentaspessoas vinham participar dos seus rituais.

As terras, divididas informalmente entre mais de quarentafamflias, eram exploradas em sistema de mutirao, muito comumna regiao, e possibilitavam uma producao agrfcola suficientepara o sustento de todos.

Entre seus seguidores, Mestre Irineu desempenhava opapel do patriarca benevolente e, no dia-a-dia de sua comuni-dade, servia ora como advogado, ora como juiz, e ate comodelegado nas disputas que surgiam. Considerava a si pr6priouma "arvore sombreira"; seu temperamento alegre e hospita-leiro atrafa visitas de todos os lados e, em certas epocas, suacasa reunia diariamente de 25 a 30 visitantes. A todos acolhiade maneira afavel e nao discriminatoria. Mesmo discordando dealguem, era cuidadoso na forma de expressar sua divergencia,adotando um tom amigavel e paternal.9

Dessa forma, conseguiu manter urn espfrito de cooperacaoe fraternidade entre seus seguidores durante os ultimos anosde sua vida. Mas a importancia do seu carisma pessoal tornou-se ainda mais evidente depois de sua morte, quando a comuni-dade passou a ser dividida por disputas envolvendo a liderancaespiritual, a posse das glebas de terra e divergencias pessoaisentre seus membros.

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As Santas Doutrinas

Conforme ja relatei , apos conhecer o use da ayahuascaatravds de Antonio Costa, que por sua vez fora iniciado nessapratica pelo peruano Dom Crescencio, Mestre Irineu passoua ter miracoes , onde uma figura feminina identificada como aRainha da Floresta ou Nossa Senhora da Conceicao the faziauma serie de revelacoes . Foi assim que aprendeu a chamar abebida de Daime , relacionando -a ao verbo dar e as invocacoes"Dai-me amor", " Dai-me luz" e "Dai-me forca ", que seriamcaracteristicas da doutrina que surgia . A Rainha da Florestateria the dado tambem o titulo de "Chefe Impdrio Jurami-dam", identificando-o com outras entidades espirituais incai-cas, precursoras na utilizacao da ayahuasca , como o rei Huas-car. Assim como a Rainha da Floresta se identificava com a lua,tambem outros astros, o sol e as estrelas seriam manifestacoesde seres divinos. 0 proprio Daime seria o sol ou Deus.

Conforme diz Vera Fro es , pesquisadora e lider de umn6cleo daimista : "A missao do Mestre Irineu d a missao dejura-midam , entidade divina que representa Cristo, revelando osensinamentos da doutrina atravds dos hinos, que correspon-dem a Biblia Sagrada".10

Os hinos sao versos musicados simples, consideradoscomo "recebidos " por uma pessoa atravds de captacao divi-na. Apesar de inicialmente receber chamadas, melodias semletra que executava assobiando , depois de certo tempo MestreIrineu comecou a receber os hinos que iriam compor seu Hind-rio do Cruzeiro , considerado a formulacao basica da doutrinado Santo Daime. La sao descritas as miracoes de Mestre Irineu,onde estariam presentes "seres divinos" da "corte celestial",englobando entidades cristas, indigenas e africanas.

Nao se conhecem relatos detalhados do desenvolvimentoespiritual de Mestre Irineu nos anos que se seguiram as suasprimeiras experiencias com o Daime. Sabe-se que em 1931, jadefinitivamente afastado dos irmaos Costa , comecou a realizarsessoes de ayahuasca com algumas poucas pessoas. As princi-pais atividades consistiam em concentracoes e prelecoes ondetransmitia as licoes que o Daime the ensinara. Sabe-se que, inte-ressado por diversos aspectos da busca espiritual , Mestre Iri-

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neu era filiado ao Circulo Esoterico da Comunhao do Pensa-mento, sediado em Sao Paulo, assim como a Ordem Rosa-cruz.A influencia dessas duas organizacoes sobre o seu pensamentofoi bastante pronunciada, e alguns dos principios basicos dasua doutrina, como a enfase nas qualidades de harmonia,amor, verdade e justica sao reflexos diretos dos ensinamentosdo Comunhao do Pensamento.

Entre 1935 e 1940, a nova doutrina foi adquirindo tracosmais caracteristicos, e o Hindrio do Cruzeiro ganhou corpo.Alguns de seus seguidores tambem receberam hinos, igual-mente considerados expressoes das Santas Doutrinas, na me-dida em que confirmavam os ensinamentos do mestre. Saohinos de cura, disciplina, louvacao e aconselhamento, fregiien-temente voltados para o momento especifico vivido pela comu-nidade ou por certos individuos. Formam um vasto corpo, difi-cil de sistematizar, mas onde se distingue a tendencia a consi-derar o aspecto material da vida como secundario e ilus6rio,valorizando a vida espiritual e os principios basicos de harmo-nia, amor, verdade e justica. Tornam-se, assim, o substrato eticoque norteia o dia-a-dia dos seguidores da doutrina.

0 sistema se ap6ia tambem sobre a ideologia do parentesco,repetindo-se frequentemente os termos referentes a pai, mae,filho. 0 conjunto dos adeptos e visto como uma irmandade,e urn parentesco simb6lico e estendido aos elementos da natu-reza e a seres espirituais da floresta e das aguas, assim comoao sol, a lua e as estrelas.

Nesses relacionamentos enfatiza-se tambem o principioda dualidade manifestado pelos pares sol/lua, pai/mae, Deus/Nossa Senhora, homem/mulher e o cip6 jagube/folha chacrona(componentes da ayahuasca). Mais que a Trindade Crista (em-bora esta nao seja totalmente ignorada), esse dualismo servecomo o eixo em torno do qual gravitam as principais ideias eritos do culto do Santo Daime. Assim, considera-se que duranteos trabalhos circula entre os participantes uma "energia"dotada de polaridade masculina e feminina, suscetivel a altera-coes em sua forca ou em seu fluxo, dependendo do estadode equilibrio existente entre a parcela masculina e femininado grupo presente. Coerente com essa visto, ha uma tenden-cia a estimular a adocao dos papeis de genero tradicionais, enfa-

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Cerimdnia (hint rio official) com a presences de Mestre Irineu

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tizando-se a responsabilidade das mulheres por atividadesComo cozinhar, costurar, cuidar de criancas, enquanto Cabeaos homens os trabalhos que exigem mais forca fisica e grandeparte das posicoes de maior poder de decisao e prestigio.

O mundo estaria sob a influencia constante de espiritos,em diferentes estagios de evolucao. Alem de seu corpo ou"aparelho", todo ser humano e composto de um Eu Inferiore um Eu Superior. 0 primeiro seria relacionado a materia eteria natureza transitoria, sendo, porem, importante para oaperfeicoamento da sua outra metade, seu duplo. 0 "trabalhono astral" consistiria em boa parte no desvendamento progres-sivo deste duplo e na descoberta da verdadeira identidade decada um atraves das miracoes. Assim, o duplo passa a ser a fontede inspiracao para a atuacao do eu inferior no mundo da mate-ria. As doencas, consideradas Como marca de transgressao daordem divina, proporcionam, atraves da possibilidade de suaexpiacao, uma oportunidade para a reconquista do equilibrio.11

Para os daimistas, o mundo dos espiritos e cheio de confli-tos que extravasam para o plano fisico, onde os espiritos preci-sam se materializar para estabelecer aliancas. Ha assim uma cons-tante interacao entre o mundo espiritual e o fisico. Estes doismundos, apesar de serem duas "dimensoes" diferentes, seriarnindivisiveis no cosmos e mutuamente dependentes.12

Os trabalhos no astral sao concebidos como guerras oubatalhas contra a fraqueza, a impureza, a duvida ou a doenca.Os adeptos sao os soldados ou os midam que, ao lado de Jura(Deus), formam o Imperio Juramidam, que da forca aos obedien-tes, humildes e limpos de coracao. Assim, Juramidam significatanto Deus quanto Deus e seus soldados, indicando uma nocaoao mesmo tempo individualizada e coletiva da divindade.

Padrinbo Sebastiao

Organizacoes Como esta, dependentes em grande parteda forca carismatica de um lider, tornam-se notoriamente insta-veis em epocas de sucessao. Assim, como ja se disse, apps amorte de Mestre Irineu, ocorrida em 1971, surgiu uma seriede disputas entre seus seguidores.

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Inicialmente, o comando dos trabalhos passou para Le6n-cio Gomes , filho de um antigo colaborador de Mestre Irineue do de sua ultima esposa . Mas ele nao conseguiu manter auniao do grupo, o que ocasionou muitas defecc6es - a maisimportante foi liderada por Sebastiao Mota de Melo que, em1974, se retirou acompanhado por mais de cern pessoas. A par-tir de entao, embora mantendo fidelidade aos ensinamentosde Mestre Irineu, passou a realizar suas sessbes em separado,incorporando aos poucos novos elementos ao culto.

Apos a morte de Le6ncio Gomes, ele foi substituido porFrancisco Fernandez Filho (Teteu), que logo se desentendeucom a viuva de Mestre Irineu , dona Peregrina, que o expulsouda casa . Teteu, entao, fundou um novo centro , a menos deum quilometro da sede original, e passou a reivindicar para sio registro original do CICLU. Essa disputa continua ate hoje.Em sua nova localizacao, Francisco Fernandez Filho foi suce-dido por Luis Mendes, e o antigo centro fundado por MestreIrineu , onde esta seu tumulo, local de veneracao de todos osdaimistas , a agora comandado por Peregrina Gomes Serra.

Existe tambem em Porto Velho, Rondonia, outra igreja,aut6noma , mas com relac6es de irmandade com o CICLU, quee o Centro Ecletico de Correntes da Luz Universal (CECLU),fundada por volta de 1964 por VirgIlio Nogueira do Amaral, eseguindo as linhas basicas da doutrina legada por Mestre Irineu(Nakamaki , s.d.:6).

Hoje, a vertente mais influente, e sobre a qual este livrose concentrara, e a comandada por Sebastiao Mota de Melo atesua morte , em 20 de janeiro de 1990.

Este, atualmente conhecido como Padrinho Sebastiao, nas-ceu no Amazonas , em 7 de outubro de 1920, num seringal asmargens do rio Jurua . Desde cedo comecou a ter vis6es e aouvir vozes, e dizia que antes mesmo de morar no Acre ja esti-vera 14 em uma " viagem astral". Aprendeu a trabalhar emmesa de atuacao espirita , sem ayahuasca, com um negro nas-cido em Sao Paulo , conhecido como Mestre Oswaldo . Nessestrabalhos , Padrinho Sebastiao era incorporado por conhecidosguias da linha do espiritismo kardecista , como o medico JoseBezerra de Menezes e o professor Antonio Jorge, atendendodoentes e realizando curas espirituais.

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Em 1959 mudou-se corn a familia para uma area na perife-ria de Rio Branco, conhecida como Colonia 5000, onde ja resi-diam parentes de sua mulher Rita Gregorio. Durante variosanos continuou a fazer la seus trabalhos de mesa espirita, e soveio a tomar Daime em 1965, quando procurou Mestre Irineubuscando curar uma doenca de figado. Sentindo-se restabele-cido, passou a fregiientar o Alto Santo, recebendo hinos e vindorapidamente a ocupar uma posicao de destaque na comunidade.

Depois de algum tempo, foi autorizado por Mestre Irineua produzir Daime na Colonia 5000, destinando metade da pro-ducao ao Alto Santo. 0 acordo foi cumprido ate a morte deMestre Irineu. A partir dai, Leoncio Gomes, com quern dispu-tava a lideranca do centro, colocou em questao a continuidadeda autorizacao.

Em 1974, por ocasiao de uma das esporadicas investidaspoliciais contra o culto, Padrinho Sebastiao, para demonstrarseu apego a ordem, propos fazer um trabalho para as autorida-des que incluiria o hasteamento solene da bandeira brasileira.Leoncio Gomes nao concordou com a ideia, dizendo que seele queria introduzir modificacoes no ritual que fosse levantarbandeira em sua propria casa. Esse atrito foi o estopim para aseparacao definitiva. Segundo relatos, Padrinho Sebastiao reti-rou-se, acompanhado de sua numerosa familia e de significa-tive parcela dos adeptos do Alto Santo, realizando a partir daisessoes independentes na Colonia 5000.

Nesse mesmo ano, a organizacao comunitaria da ColOniafoi intensificada, e o antigo sistema tradicional de mutiroes foisubstitufdo por trabalho de cultivo totalmente coletivizado.0 novo centro comecou a atrair nao so os colonos da vizi-nhanca, como tambem membros da classe media de Rio Brancoe jovens vindos de diversas partes do Brasil e do exterior.

Marcando sua posicao autonoma perante o Alto Santo,mas mantendo-se fiel as antigas tradicoes dos vegetalistas aya-huasqueros, Padrinho Sebastiao incorporou aos seus trabalhospor diversas vezes o use de outras plantas professoras. Enfati-zava, porem, a necessidade de use-las de forma correta, paraobter acesso aos segredos do astral, e nunca como mera diver-sao profana. Destes outros enteogenos, aquele cujo use melhorse firmou foi a Cannabis, conhecida ritualmente como Santa

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Padrinho Sebastido e Padrinho Wilson Carneiro

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Maria, e que corresponde no piano simb6lico-espiritual dai-mista a Virgem Mae, a energia feminina que faz contrapontoao Daime, o Pai, a energia masculina.

Durante algum tempo, a Santa Maria foi usada em trabalhosde concentracao, com um ritual especifico voltado para a reali-zacao de curas. Paralelamente a esse use religioso, estigmati-zava-se a "maconha", que era considerada como use inade-quado e abusivo de uma planta sagrada. Apesar desse cuidado,a Colonia 5000 foi invadida em outubro de 1981 pela PoliciaFederal, que destruiu os Jardins de Santa Maria, como eram cha-madas as plantacoes sagradas de Cannabis, e indiciou algumasliderancas da Colonia, incluindo Padrinho Sebastiao. Iniciou-se assim uma serie de medidas persecut6rias contra todos oscentros usuarios de ayahuasca, mesmo aqueles que nao apro-vavam o use de Cannabis. A perseguicao culminou com a proi-bicao explicita do use da ayahuasca, colocada durante algumtempo na lista das substancias proscritas. Frente a essa reacao,a Colonia 5000 optou por suspender o use da Santa Maria emseus rituais, instando seus seguidores a fazerem o mesmo.

Durante os ultimos anos da decada de 70, a Colonia 5000passou por um processo de crescimento acelerado, atraindonovos membros e simpatizantes de todas as classes sociais, vin-dos de diversas areas do Brasil e do exterior. Pelo final dadecada, a area comecava a se mostrar pequena para abrigar oscerca de trezentos a quatrocentos moradores. 0 desmatamentointensivo da regiao pr6xima de Rio Branco comecava a mani-festar consegiiencias nefastas, como alteracoes no clima e pra-gas na agricultura. Isto se somou a falta de recursos financei-ros necessarios para mecanizar a agricultura, levando a umaqueda da produtividade. Padrinho Sebastiao comecou a falarem mudar a comunidade para um local mais afastado da cidadee, em 1980, com a anuencia do Instituto de Colonizacao e Re-forma Agraria - Incra, comecou o assentamento de uma glebade tetras consideradas devolutas no municfpio de Boca doAcre (Amazonas). Durante dois anos, a comunidade trabalhouimplantando um seringal, denominado Rio do Ouro, que emmaio de 1982 jA ocupava uma Area de aproximadamente 13mil hectares, com 22 colocacoes de seringa, 12,5 mil seringuei-ras exploradas, 215 pessoas assentadas e uma producao anualentre 10 e 15 toneladas de borracha.13

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Nessa epoca, porem, as terras passaram a ser contestadaspor uma empresa do Sul do pals, que se dizia dona da area.Paralelamente, Padrinho Sebastiao comecou a anunciar queaquele ainda nao era o local determinado pelo astral para acomunidade construir sua Nova Jerusalem.

Assim, em janeiro de 1983, a comunidade mudou-se paranova area indicada pelo Incra, localizada as margens do iga-rape do Mapia, afluente do rio Purus, no municipio de Pauini,Amazonas. Mais uma vez, dispondo apenas de sua forca de tra-balho, sem contar com nenhum tipo de ajuda financeira, acomunidade empenhou-se na aventura de colonizar um trechoda floresta amaz6nica, isolada da civilizacao, corn a qual aindahoje so pode se comunicar ap6s dois dias de viagem de canoa.

Apesar de apoiada pelo Incra, a colonizacao dessa novaarea, batizada de Ceu do Mapia, foge dos esquemas costumei-ros de assentamentos previstos por aquele 6rgao, uma vez queo grupo funcionava de forma totalmente comunitarista, en-quanto o Instituto costurna considerar seus lotes como arren-dados a individuos especificos.

Essas atividades dos daimistas tem muitos tracos em comumcorn os chamados movimentos messianicos, "em que a reorga-nizaoao de uma sociedade, ou a producao de uma nova socie-dade, se da no encontro e na acao conjunta de um grupo sociale de um personagern de tipo carism9tico".14 Tanto Monteiroda Silva quanto Fr6es atribuem caracteristicas messianicas aesses movimentos daimistas, devido a sua composicao, a estru-tura de sua lideranca e a sua tentativa de dar uma resposta decunho religioso aos problemas de privacao e anomia social.Reforcando esse argumento, o pr6prio Padrinho Sebastiao eseu filho Alfredo anunciavam Mestre Irineu como o novo Mes-sias que, sob o nome de Jura ou Juramidam, trouxera o Ter-ceiro Testamento. Ele teria como tarefa construir o verdadeiroreino de Deus, a Nova Jerusalem na floresta, a unica a sobrevi-ver ao "tombo que esta preparado ai para o mundo, atravesde fogo, atraves de estiolacao at6mica, atraves de poluic5o".15Embora inicialmente nern todos seus seguidores fossem morarno Mapia, chegaria a hora, as vesperas do grande "balanco",em que todos seriam convocados a se mudar para la, tinicaarea onde estariam a salvo.

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Couto discorda dessa analise, dizendo nao encontrar nessamovimentacao de pessoas a existencia de um contexto deII exaltacao social" de deprivation e de destruicao da famlia,geralmente tornados como caracteristicos de movimentos mes-sianicos.16 Esse antropologo certamente tern razao ao chamaratencao para o valor da famlia e a sua importancia na organiza-cao da transferencia da comunidade em direcao a floresta.Pois, embora se crie um relacionamento familiar mitico entreos membros das varias vertentes do culto, que Couto chega adenominar Famlia Juramidam, as relacoes entre os membrosdas famlias de sangue mantem-se dentro dos padroes tradicio-nalmente preconizados na sociedade envolvente. Mesmo nocaso de indivfduos cujos familiares nao participem da seita, naoha a exigencia de uma adesao total ao novo culto e nem umaradicalizacao extrema corn relacao as suas famlias de origemou outras pessoas que nao facam parte da irmandade. Em todosos casos, costuma-se preconizar a harmonia das relacoes.

Conforme ja se disse, existe uma tendencia a reforcar ospapeis de genero tradicionais, cujas diferentes sao sacramenta-das no ritual. As mulheres cabe, por exemplo, o cuidado cornas folhas da Psychotria viridis; os homens ficam corn a coleta,a limpeza e a macetacao do cipo, assim como o preparo, o arma-zenamento e a distribuicao da bebida. Sao tambem mantidostabus tradicionais, que preveem a exclusao de mulheres mens-truadas de certas fases dos rituais de feitio, assim como a valo-rizacao da virgindade, que se expressa nas diferentes indumen-tarias e diferentes espacos atribuidos as "mulheres casadas" eas "mocas".

Mas assim como ocorre entre a populacao em geral, oesquema tradicional nem sempre e seguido rigidamente, conhe-cendo-se mesmo varios casos de bigamia e de relacionamentohomossexual entre os adeptos. Especialmente entre aquelesprovenientes da classe mddia urbana, e comum o questiona-mento de normas tidas como "machistas", e alguns centrossao comandados por mulheres.

Conforme a antropologa Alba Zaluar ja observara entreos camponeses praticantes do "catolicismo popular", a segre-gacao de papeis cria tambem afastamentos dentro da famlia,permitindo que seus componentes estabelecam lacos de solida-

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riedade com pessoas do mesmo sexo pertencentes a outrosgrupos.17 E marcante, entre os adeptos do culto, a existenciade um "mundo das mulheres", sendo costumeira a separacaoentre os sexos mesmo na vida profana. Embora o comandanteou padrinho do centro tenha autoridade sobre o grupo comoum todo, existe sempre uma madrinha, considerada responsa-vel pela ala feminina.

Os mochileiros e as novas igrejas

Na decada de 70, atraves de urna repressao brutal, o sis-tema ditatorial vigente no Brasil conseguiu derrotar os movi-mentos armados e todo tipo de resistencia politica organizada.Por outro lado, com um certo atraso, chegava ao pals a ideolo-gia de paz e amor, promulgada pelo movimento hippie norte-americano e europeu. Nessas regioes mais desenvolvidas, essaideologia vicejava como contestacao aos valores de uma socie-dade que esbanjava recursos no consumo de futilidades, masse via incapaz de evitar os horrores e a estupidez de uma guerrado Vietna ou a miseria e a marginalizacao de certos grupos mino-ritarios em seu proprio meio.

Tornava-se entao comum a nocao de que nao havia possi-bilidade de ocorrer uma transformacao social que nao fosseprecedida de uma revolucao interna dos individuos. Surgiaassim um grande interesse por meios ou tecnicas que ajudas-sem a realizacao desse tipo de mudanca interior, que liberasseos individuos de concepcoes de vida demasiadamente materia-listas ou racionalistas. Buscavam-se valores alternativos em cul-turas concebidas como menos "burguesas", surgindo urn inte-resse por filosofias e praticas religiosas orientais, afro-brasilei-ras e indigenas.

0 use de certas substancias psicoativas como a Cannabis,o LSD e certos cogumelos apresentava-se tambem para muitaspessoas como um caminho possivel para o desenvolvimentoda espiritualidade. Como nao se conhecia, entre nos, nenhumatradicao que pudesse fornecer parametros para garantir a segu-ranca e eficacia dessa via, o consumo dessas substancias logoperdeu a seriedade de busca espiritual, tendendo a tornar-seum mero escapismo hedonista.

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Algumas pessoas, em sua recusa aos ideais de ascensaosocial, deixavam estudos ou empregos, procurando implantarcomunidades rurais baseadas na agricultura de subsistencia eno trabalho artesanal ou artfstico. Outras, aproveitando-se dosresultados da politica oficial de integracao do territorio brasi-leiro atraves da construcao de rodovias, punham o pe na estradaem busca da utopia de uma vida de paz e amor, de preferenciaproxima da natureza.

Nessa epoca, grandes contingentes de jovens da classemedia, provenientes principalmente do prospero Sudoestedo Brasil , partiam regularmente para as regioes andinas, tendocomo meta quase invariavel as ruinas incaicas de Machu Pic-chu, no Peru . 0 percurso levava alguns a se interessarem tam-bem pelos povos e costumes da regiao fronteirica e da Amazo-nia em especial.

Uma pequena parcela desse contingente de jovens mochi-leiros acabou indo para o Acre, conhecendo la a fama do Daimee, em certos casos, provando a beberagem . Para esses indivi-duos, a Colonia 5000 certamente se apresentava como res-posta aos seus anseios mais profundos . Encontravam la umacomunidade agricola implantada , liderada pelo veneravel ehospitaleiro Padrinho Sebastiao, que lhes acenava corn suaecletica doutrina de origem indigena e apontava para uma berndemarcada senda de conhecimento iniciatico. Atraves do useda ayabuasca , desde o inicio se poderia ter acesso a experien-cias de extase e iluminacao que os seguidores de outras esco-las espiritualistas so pensam em alcancar no fim de suas vidas.

Desse modo Padrinho Sebastiao foi conquistando adeptosde varias partes do Brasil e do exterior . Frequentemente, aposuma estadia mais ou menos prolongada na regiao, os visitantesretornavam aos seus locais de origem , levando consigo novosideais de vida , e fazendo proselitismo entre colegas , amigos efamiliares da fe recem -adotada.

Aos poucos foram se estabelecendo pequenos nucleos dai-mistas em grandes cidades do Sudeste do Brasil e ate no exte-rior . Embora mantivessem fidelidade aos principios e praticasaprendidas , a insercao da doutrina em urn novo contexto pro-vocou agumas alteracoes. A distancia que separa o Acre des-ses centros urbanos ja impunha uma selecao de fundo econ6-

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mico entre aqueles que logravarn realizar a viagem inicial. Por-tanto, ao chegar a essas regioes, a doutrina acabou sendo difun-dida principalmente entre as camadas medias, especialmenteentre jovens e adultos com interesses anteriores por questoesespirituais ou pelo use de alucin6genos.

Em novembro de 1982 a formalmente instalada a primeiraigreja do Daime fora da regiao amazonica. Chamou-se CentroEcletico Fluente Luz Universal Sebastiao Mota de Melo -CEFLUSME, mais conhecido pelo nome Ceu do Mar, construidona cidade do Rio de Janeiro, sob o comando do psic6logoPaulo Roberto Silva e Souza. A area a urbana, mas tombadapelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal comoreserva forestal.

Algum tempo depois criou-se uma comunidade daimistarural, em Visconde de Maui, Rio de Janeiro, sob a liderancado escritor, poeta e ex-guerrilheiro Alex Polari de Alverga. Apartir de entao, novos centros foram sendo criados: Pedra deGuaratiba e Friburgo, Rio de Janeiro; Brasilia, Distrito Federal;Belo Horizonte, Santa Luzia, Caxambu, Aiuruoca, Minas Gerais;Florian6polis, Santa Catarina; Sao Paulo, Sao Paulo.

0 Confen e os novos estatutos

0 ripido crescimento da seita em Areas metropolitanas,com a adesao de segmentos conhecidos como formadores deopiniao, acontece em uma epoca em que as autoridades gover-namentais preocupavam-se crescentemente com o use de psi-coativos. Em 1985, a Divisao de Medicamentos do Ministerioda Sadde - Dimed, por conta pr6pria e sem a devida anuen-cia do Conselho Federal de Entorpecentes - Confen, incluiuo Banisteriopsis caapi na lista de produtos de use proscritono territ6rio nacional.

Pouco depois, uma seita usuiria da ayahuasca que naoera filiada a vertente de Mestre Irineu, o Centro Espirita Bene-ficente Uniao do Vegetal, com sede em Brasilia, dirigiu umapeticao ao Confen pedindo a anulacao da medida. Em resposta,o jurista Tecio Lins e Silva, entao presidente do Confen, deter-minou a formacao de um grupo de trabalho para fornecer sub-sidios para as deliberacoes sobre o assunto.

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Inicialmente, dois conselheiros, os medicos e professoresIsaac Karniol e Sergio Seibel, foram a Rio Branco coletar infor-macoes. 0 parecer que apresentaram na sessao do Confen de31 de janeiro de 1986 foi aprovado por unanimidade. 0 docu-mento ressalta que:

a. a ayahuasca tem sido usada ha varias decadas pelas seitassem que tenha sido observado nenhum prejuizo social;b. entre os usuarios da bebida predominam padroes morais eeticos de comportamento "em tudo semelhantes aos existen-tes e recomendados em nossa sociedade, por vezes ate de modobastante rigido".c. e necessario examinar de forma global o use ritual da bebidafeito por comunidades religiosas ou indigenas, levando emconta aspectos sociol6gicos, antropol6gicos, quimicos, medi-cos, psicol6gicos e da sa6de em geral.d. a portaria 02/85 da Dimed havia incluido a Banisteriopsis

caapi entre as drogas proibidas sem observancia do paragrafo14, artigo 39 do Decreto 85.110, de 2 de setembro de 1980,que determina a previa audiencia do Confen, a quem Cabe aorientacao normativa e a quem compete a supervisao tecnicadas atividades disciplinadas pelo Sistema Nacional de Preven-cao, Fiscalizacao e Repressao de Entorpecentes.

Nessa mesma ocasiao, o grupo de trabalho foi reestrutu-rado e, ao lado de Suely Rosenfeld (Dimed e Ministerio daFazenda), Isaac Karniol (Associacao Medica Brasileira), SergioSeibel (Ministerio da Previdencia e Assistencia Social) e PauloG. Magalhaes Pinto (Divisao de Repressao a Entorpecentes daPolicia Federal) foram incluidos como assessores:

• Francisco Cartaxo Rolim, professor-adjunto de Sociologiada Universidade Federal Fluminense;

• Joao Manoel de Albuquerque Lins, professor de Filosofia daPontificia Universidade Cat6lica do Rio de Janeiro e doutorem Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana deRoma, Italia;

• Joao Romildo Bueno, professor titular do Departamento dePsiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federaldo Rio de Janeiro;

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• Gilberto Alves Velho, professor e antrop6logo do MuseuNacional, conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progressoda Ciencia - SBPC e ex-presidente da Associacao Brasileirade Antropologia;

• Regina Maria do Rego M.onteiro de Abreu, professora e antro-p6loga;

• Clara Lucia de Oliveira Inem, psic6loga clfnica, membro daSociedade de Psicanilise de Grupo do Rio de Janeiro e asses-sora tecnica da Fundacao Nacional de Bem-Estar do Menor -Funabem.

Uma das expedicoes a Rio Branco, Boca do Acre e Ceudo Mapia contou tambem com a presenca de Sergio Sakon,conselheiro do Confen e delegado da Polfcia Federal.

Para presidir o grupo de trabalho foi nomeado o juristado Rio. de Janeiro, Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Si.

Seguindo as recomendacoes do parecer aprovado, foi emi-tida uma resolucao do Confen que suspendia a inclusao doBanisteriopsis caapi na lista de drogas proibidas ate que ogrupo de trabalho conclufsse seus estudos.

A pesquisa demorou dois anos e incluiu entrevistas, acom-panhamento de usuirios, exame do noticiirio a respeito e visi-tas a varias comunidades.

Foram observadas comunidades da Uniao do Vegetal e asdaimistas Colonia 5000, Alto Santo, Boca do Acre e Ceu doMapia, na regiao amaz6nica. No estado do Rio de Janeiro, foramestudadas as igrejas daimistas Ceu do Mar, em Sao Conrado,Ceu da Montanha, em Maui, alem do Centro Espfrita Benefi-cente Uniao do Vegetal, em Jacarepagua. Em varias ocasioes,os conselheiros provaram a ayabuasca, experienciando miratoes e, em alguns casos, sendo acometidos por v6mitos e diar-reia. Invariavelmente foram bem aceitos e tiveram tratamentohospitaleiro pelas comunidades.

Dessas atividades resultou uma serie de constatacoes sobreos modos de use e os efeitos da bebida.

Efeitos orgcanicos. 0 medico e professor Karniol considerouque a atuacao farmacol6gica da ayahuasca a coloca na catego-ria dos alucin6genos. Alem dos efeitos comuns a essa categoria,

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ha outras atuacoes perifericas, como vomito, diarreia etc. Deacordo corn ele, ainda no existern elementos que permitamuma avaliacao mais adequada das awes clinicas ou mentaisdo use prolongado ou agudo, tanto entre adultos quanto entrecriancas, mulheres gravidas e fetos. Mas observacoes no con-troladas, feitas durante as visitas do grupo de trabalho, naoregistrararn anormalidades.

Outra constatacao: a ayabuasca e feita sempre com espe-cies nativas. Formas sinteticas e concentradas do produto,caso existissem, deveriarn receber outro tratamento desses pes-quisadores.

Efeitos sociais. Os efeitos sociais observados no podem seratribuidos somente a atuacao do cha sobre o organismo, mastambdm ao ambiente como um todo, incluidas as musicas eas dancas.

As comunidades rurais foram consideradas muito bern inte-gradas ao seu contexto natural, e observou-se uma interacaoharmoniosa entre indivfduos de diferentes idades e classessociais vindos de diversas regioes e culturas.

Apesar da distancia geografica e cultural das comunidadesda Amazonia e do Rio de Janeiro, notou-se grande uniformidadeem termos doutrinarios e de praticas dentro das duas grandestradicoes estudadas, o Santo Daime e a Uniao do Vegetal.

O feitio ou preparo, por sua dificuldade, e necessariamentecomunitario, envolvendo divisao dos papeis de genero e ceri-monias especiais de alto significado simbolico religioso. As rea-coes comuns de vomito e diarreia tambdm levarn a supor quea ayahuasca nao se presta para o use facil, indiscriminado erecreativo pelo publico em geral.

O grupo de trabalho nao apurou um unico registro objeti-vamente comprovado que levasse a demonstracao inequi-voca de prejuizos sociais causados pelo use que vem sendofeito da ayahuasca. Ao contrario, os padroes morais manti-dos foram julgados severos, os seguidores da seita pareciamtrangiiilos e felizes, sendo orientados pelo use ritual do chaa procurar felicidade social dentro de urn contexto ordeiro etrabalhador.

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O relat6rio final apresentado pelo presidente do grupo

de trabalho, ao abordar a questao das experiencias provoca-

das pela natureza psicoativa da ayahuasca diz: "o que e possi-

vel afirmar e que a busca de uma forma peculiar de percepcao,

empreendida pelos usuarios da ayabuasca em seus diversos

trabalhos nao parece alucinacao, se tornado o termo na acep-

cao de desvario ou insanidade mental. Houve sim, em todos

os grupos visitados, a constatacao de um projeto rigorosa-

mente comunitario a todos eles: a busca do sagrado e do auto-

conhecimento. Nao Cabe tambem ao grupo de trabalho defi-

nir se a forma de experienciar o sagrado ou o autoconheci-

mento e ilusao, devaneio ou fantasia - acepcoes outras de alu-

cinacao".18

Mais adiante, citando Santo Tomas de Aquino, o relatorioprocura demonstrar que "tantas vezes, de forma ligeira, classi-ficamos como alucinacao a utilizacao de faculdades que todospossuimos ao menos radicalmente".19 Segundo o relatorio,adotar o conceito de alucinacao para definir a experiencia aya-husquera dificulta o exame do problema, principalmentequando associado a histeria da "guerra total contra as drogas"promovida pela American Drug Enforcement Administration(DEA) nos meios de comunicacao mundial.

Outra questao considerada de grande importancia pelogrupo de trabalho do Confen foi determinar se os grupos aya-huasqueros da Amazonia e do Rio de Janeiro compartilhavarnou nao da mesma cultura, pois e frequente dizer-se que prati-cas validas para o Acre nao o sao para as grandes metr6poles.

Isso pressuporia uma estanqueidade entre a cultura dasduas areas, fato negado pelo grupo de trabalho, que constatoua presenca constante no Mapia de "romeiros" vindos das regioesurbanas e pelas frequentes visitas do Padrinho Sebastiao e desua famiia ao Rio de Janeiro. Embora a doutrina adquira certascaracteristicas pr6prias das metr6poles, no Rio de Janeiro man-tem-se praticas rituais e da vida cotidiana vigentes na Amazo-nia, assim como os valores basicos que enfatizam a importan-cia da comunidade acima do individualismo.

Seguindo as recomendacoes do relatorio final, datado de26.8.87, a ayabuasca foi excluida da lista de produtos proibi-dos e liberada para use ritual.

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0 rapido crescimento dos novos centros filiados a vertentedo Padrinho Sebastiao e a instalacao de outros, a revelia dealgumas das principais autoridades da seita, juntamente corna constante preocupacao em demonstrar as autoridades que ouse da ayahuasca restringia-se a fins ritualisticos rigidamentecontrolados, levou ao esforco de formalizar uma nova estru-tura para a seita que melhor correspondesse as necessidadesadvindas do novo porte que adquiria.

Significativamente, a elaboracao de propostas de novos esta-tutos ficou sob a responsabilidade de um dos lideres surgidosno Sudeste, Alex Polari, padrinho da comunidade daimista deVisconde de Maua, Rio de Janeiro. Ele convocou representan-tes dos demais centros para varios encontros preliminares, e aproposta, aldm de contar com a anuencia do proprio PadrinhoSebastiao, foi discutida e aprovada em uma reuniao de represen-tantes de todas as igrejas, em maio de 1989, no Ceu do Mapia.

Por esse estatuto foi criada uma nova instituicao chamadaCentro Ecletico de Fluente Luz Universal Raimundo IrineuSerra - CEFLURIS, de ambito nacional e internacional, a qualse filiariam todos as igrejas da vertente do Padrinho Sebastiao.Elas foram classificadas em quatro categorias, de acordo comseu grau de desenvolvimento. Em ordem decrescente de impor-tancia, estariam as igrejas com patente especial (unicas autoriza-das a gerar novos ndcleos), igrejas com licenca definitiva, igre-jas com licenca provisoria, e os pronto-socorros espirituais(compostos por um minimo de tres adeptos, totalmente vincu-lados e controlados por uma igreja com patente especial).

No momento de sua ratificacao, esse estatuto ainda pareciaum canto utopico, devido a complexidade das relacoes entreos varios centros, que frequentemente fugiam da ordenacaoburocratica da proposta.

E notoria a tendencia a segmentacao de organizacoes reli-giosas com estrutura semelhante as dos centros daimistas. Mas,diferentemente das seitas onde o chefe espiritual pode cons-truir a autonomia de seu Centro a partir do momento quecomeca a reunir seus proprios seguidores, as igrejas daimistas,especialmente as localizadas em areas urbanas fora da Amaz6-nia, dependem para a sua existencia da obtencao regular desuprimentos do cha. Atualmente isto so pode set feito pela orga-

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nizacao da instituicao central. As plantacoes de Bannisteriop-sis caapi e de Psychotria viridis sao pouco desenvolvidas, ea colheita na floresta amaz6nica, alem de extremamente traba-lhosa, demanda urn conhecimento da regiao e de seus miste-rios raramente acessivel a forasteiros. Portanto, apesar de todasas tendencias a fragmentacao que possam estar em acao, e pro-vavel que, em ambito nacional, as organizacoes daimistas man-tenham unidade organizacional e a consequente uniformidaderitualistica e doutrinaria, muito maior que as das seitas•afro-bra-sileiras, por exemplo.

Antes de falecer, Padrinho Sebastiao deixou nomeadocomo sucessor seu filho Alfredo Greg6rio de Melo, com umalonga hist6ria de lideranca exercida tanto na Colonia 5000quanto por ocasiao dos assentamentos no Rio do Ouro e noMapia. Dotado do carisma de ser filho e herdeiro nomeado doPadrinho Sebastiao, um dos fundadores do Mapia e "dono"de um dos hinarios considerados oficiais, Alfredo Greg6rio deMelo tern muito a seu favor na consolidacao de sua lideranca.Entretanto, precisara conciliar desafios advindos da sua relativajuventude e o poder politico de alguns lideres do Sul. A impor-tancia desses lideres certamente crescera, pelo seu traquejoem tratar com grandes instituicoes da vida politica e econ6-mica nacional, areas com que os daimistas terao de se relacio-nar cada vez mais. Mas ja se diz que, enquanto ao seu pai coubeconstruir a "comunidade", a ele cabera a consolidacao da "ir-mandade", ou seja, a organizacao da seita em nivel nacional.

Embora este livro tenha como tema basico o culto do SantoDaime, cabe aqui lembrar a existencia, tanto na Amazonia oci-dental quanto em outras regioes do Brasil, de outras seitas usua-rias da ayahuasca e tambdm de origem predominantementeurbana, apesar de suas fregiientes alusoes a floresta.

A seita ayabuasquera com maior numero de adeptos emais difundida pelo Brasil d o Centro Espirita BeneficenteUniao do Vegetal (UDV), fundado em 1961 pelo seringueiroJose Gabriel da Costa em Placido de Castro, no Acre, tendoPorto Velho, Rondonia, como seu principal centro de ativida-des. Na ddcada de 70 a sede do grupo foi transferida para Bra-silia, onde, atualmente, esta sob o comando de Mestre Braga.Segundo o pesquisador Hirochika Nakamaki (Nakamaki s.d.:9),

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a principal influencia sobre essa seita vem do espiritismo, evi-tando-se episodios do possessao, apesar da ligacao original deMestre Gabriel com a umbanda. Embora nao negue as proprie-dades terapeuticas da "miracao", a Uniao do Vegetal nao uti-liza o chi com essa finalidade, preferindo se concentrar nabusca de evolucao espiritual do ser humano. Em tempos maisrecentes, a UDV sofreu duas cisoes.

Outra tradicao doutriniria ayahuasquera e aquela fun-dada pelo maranhense Manoel Pereira de Matos. Este, aposviver seis meses no Alto Santo, sob a orientacao de Mestre Iri-neu, iniciou em 1947 uma atividade independente em Vila Ivo-nete, sob o nome de Centro Espirita Culto de Oracao Casa deJesus Fonte de Luz. Matos faleceu em 1958 e, em funcaode uma disputa interna, alguns de seus seguidores abriram nomesmo bairro, em 1979, uma nova igreja, chamada Centro Espi-rita Daniel Pereira de Matos. A lideranca da igreja inicial ficounas maos de Manoel Arat.ijo. Essas duas seitas enfatizarn bas-tante os aspectos africanos da religiosidade popular brasileira,dando, portanto, destaque a episodios de possessao junto asmiracles provocadas pelo chi e voltando-se a questao da curafisica e espiritual dos homens.

Couto menciona tambem a existencia de um terreiro um-bandista, onde se faz use da ayahuasca, o Centro Espirita Fe,Luz, Amor e Caridade - Terreiro de Maria Baiana -, locali-zado na zona rural de Rio Branco, a margem esquerda do rioAcre. Infelizmente, dispoe-se de poucas informacoes a respeito(Couto, 1989:244).

Novo parecer do Confen20 - junho de 1992:Como se viu, o relatorio produzido pelo grupo de trabalho

do Confen em 1987 foi aprovado, e o use da ayabuasca foi libe-rado como nao constituindo crime de forma alguma. Mesmoassim , contrariando o principio da reserva legal, uma denunciaanonima de 1988 instruiu um inquerito policial na cidade doRio de Janeiro, levando a um novo exame do use da ayahuascano Brasil .21 Posteriormente foram anexados a esses autos oparecer do Dr. Alberto Furtado Rahde, como elemento do"novo estudo do caso".

A abertura desse inquerito causou bastante estranhezadevido a leviandade da denuncia que a motivou. Alem de ano-nima, fazia alegacoes totalmente disparatadas, merecedoras

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do descredito de qualquer pessoa medianamente informadasobre a questao. Entre outros despropositos, o anonimo denun-

ciante dizia que:

• os adeptos das seitas ayahuasqueras "sao calculados nos

grandes centros urbanos em mais de 10 milhoes de fanaticos";

• "a maioria dos dirigentes sao todos toxicomanos e ex-guer-

rilheiros";

• apos a ingestao do chi, "o adepto cai em exaustao e ai entaocomeca a queima de ervas a titulo de incenso, com portas ejanelas fechadas do templo, que os entendidos dizem ser

maconha";

• "fato identico sucedeu-se na Uniao do Vegetal... La o vege-tal e misturado na hora da ingestao, sem que ninguem perce-

ba, ao LSD ou droga semelhante";

• os adeptos sao "induzidos ao trabalho escravo" e a doacoespolpudas. E como explicacao disso tudo, dizia o fantasiosodenunciante: "De quern e a culpa de tudo isso?... De um con-tra-ataque das guerrilhas urbanas, acho esse o pensamento

mais viavel".22

Em decorrencia dessa denuncia, a presidencia do Confendesignou o autor do relatorio anterior, Dr. Domingos BernardoGialluisi da Silva SA, para atualizar os dados dos pareceres ante-riores, com as verificacoes locais que se fizessem necessarias.

SA realizou entao novas visitas aos locais de culto e as comu-nidades das diversas seitas usuarias de ayahuasca, conversou

com seus lideres, recolheu depoimentos de adeptos e provi-denciou um completo levantamento fotografico das diversascomunidades visitadas.

Analisando os fatos e levando em conta outras denunciassimilares, mas de autoria conhecida, SA chama atencao para oseu ndmero reduzido (ele so tomou conhecimento de tres nossete anos em que o Confen lidava com o assunto). Afirma tam-bem que sao geralmente feitas por pais inconformados com aopcao religiosa de seus filhos e pela escolha que estes, geral-mente ainda jovens, fizeram pela busca de novas experienciasde Vida em comunidades rurais dos seguidores do PadrinhoSebastiao. Assim, o problema geralmente tratava-se da radicaldivergencia entre pais e filhos quanto a projetos de vida e a

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modelos que os pais tinham para seus filhos, muito mais doque as repercussoes das praticas rituais no seu sistema nervosocentral. Tais dificuldades sao consideradas por Sa como seme-ihantes ao que outros pais tem tido em aceitar a opcao pela clau-sura ou vida monastica de seus filhos.

Alem da denuncia anonima, o Confen apreciou tambemuma andlise tecnica preparada pelo Dr. Alberto Furtado Rahde,da Coordenacao do Sistema Nacional de Informacoes TOxico-farmacologicas, sobre o relatorio apresentado em 1987 peloDr. Domingos Bernardo G. S. S. Nessa analise tecnica, Rahdeprioriza os aspectos toxico-farmacologicos da questao. Emboranao apresente nenhuma informacao nova a esse respeito, elereitera os dados ja conhecidos sobre os alcaloides que com-poem o chd.

Diz ele que do cipo Banisteriopsis caapi (jagube ou mari-ri) foram isolados varios alcaloides, sendo os mais importantesos seguintes:a. Harmina (sinonimia: 7 metoxi-]-metil-9H-pirido (3,4b)-indol;banisterina, yageina, telepatina, leucoharmina)b. Harmalina (sinonimia: 4,9 dihidro-7-metoxi-l-metil-3H-pi-rido (3,4-b)indol; 1-metil-7-metoxi-3,4 dihidro-betacarboli-na; 3,4 dihidroharmina; harmidina; eter mettlico do harmalol;0-metilharmalol)

Da Psychotria viridis (folha rainha ou chacrona) sao isola-dos os seguintes principios ativos:a. Dimetiltriptamina (sinonimia: N,N-dimetiltriptamina; DMT;N-Dimetil-1 H-indol 3-etanamina; 3-(2-dimetilamino)etil)indol)b. monometiltriptaminac. tetrahidro-B-carbolina.

Em seguida, o parecer chama atencao para o fato de queharmina e harmalina, alem de reconhecidamente causadoresde efeitos alucinogenos, juntamente com a tetra-hidro-B-carbo-lina, sao classificados Como inibidores da monoamino-ocidase.Sua ingestao com substancias do tipo da triptamina provoca apreservacao da acao da triptamina. Tanto a harmina quantoa harmalina e a dimetiltriptamina sao classificados como aluci-nogenos, e como tal tern a caracterfstica de produzir estadosalterados de percepcao, animo e comportamento, sendo as alte-racoes na percepcao visual as mais significativas. Segundo Rahde,poderiam tambem provocar alteracoes severas da personalidade.

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O DESENVOLVIMENTO DO CULTO DO SANTO DAIME 89

0 parecer continua lembrando que a dimetiltriptamina estiincluida na lista de substancias proscritas tanto da Organizacaoda Nacoes Unidas quanto da Dimed (que tambem inclui a har-mina entre as substancias proibidas no Brasil). 0 aparecimentodo que Rahde denomina de "estados alucinatorios" e de mani-festacoes fisicas como vomitos e diarreias demonstra para eleque a bebida no e apenas uma substancia placebo, mas apre-senta acao intensa nos usuirios ainda que ate agora nao se te-nham concentracoes mensuriveis dos seus princfpios ativos.

Rahde termina seu parecer tecendo consideracoes sobrea atual disseminacao do uso do chi por todo o pals, excedendoo "uso local de origem, na selva amazonica". Para ele, a pos-tura das Nacoes Unidas, de respeito as tradicoes indfgenas deuso de alucinogenos e estimulantes proscritos, nao se aplicarianesse caso. Ele tambem indaga a respeito da existencia ou naode plantacoes do cipo e da folha, da maneira que a bebida edistribuida pelo Brasil e da constancia de sua composicao. Con-clui sugerindo que as respostas a essas perguntas sejam forne-cidas ao Confen para o que ele considera a caracterizacao deuso ritual e restrito do Daime. No caso de ser caracterizadoum uso que exclui este significado, ele propoe a colocacao dabebida na lista de substancias proscritas, ji que seus efeitosseriam claramente semelhantes aos componentes proscritos.

Ressaltando que o entendimento mais evolufdo da questaodas drogas nao pode se basear numa visao mecanicista, emque predomina o determinismo farmacologico, Si diz em seurelatorio final preferir adotar uma perspectiva holfstica dotema . Nesta seria necessirio analisar tres fatores: o indivfduo,o ambiente e o produto. Em decorrencia dessa postura foramsolicitados pareceres ao Dr. Elisaldo Carlini, professor -titularde Psicofarmacologia, Escola Paulista de Medicina, Dr. IsacKarniol , professor- titular , Departamento de Psicologia Medicae Psiquiatria da Unicamp, Dr. Clodomir Monteiro da Silva,antropologo, diretor do Departamento de Filosofia e CienciasSociais da Universidade Federal do Acre, assim como do autordeste Iivro, Edward MacRae, doutor em antropologia social epesquisador no Departamento de Psiquiatria e Psicologia Me-dica da Escola Paulista de Medicina.

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A Carlini e Karniol foi solicitada a opiniao sobre o assunto,com especial referencia aos itens: possiveis reacoes prejudiciaisao organismo, modificacoes da personalidade e se os estadosalterados da percepcao, animo e comportamento citados porRahde significariam necessariamente situacoes negativas, preju-diciais ou patologicas.

A resposta de Carlini enfatiza que os possfveis prejuizospara o organismo dependeriam da liberadao macica de noradre-nalina, cujo agente liberador mais conhecido seria a tiraminae que poderia resultar em crises de hipertensao. Mas, para ocor-rer essa liberadao, seria necessirio que o consumidor da bebidaviesse a ingerir certos queijos altamente fermentados (tipoCamembert) ou doses elevadas de certos vinhos, priticas poucocomuns entre os adeptos das seitas. Quanto as alteracoes namente do usuario, estas nao significam modificacao de perso-nalidade, mas sim alteracoes temporarias de seus sensorios.Tais alteracoes mentais sao, alem do mais, passiveis de seremcanalizadas para um lado positivo da vida social e individual enao significam, necessariamente, situacoes negativas, prejudi-ciais ou patologicas.

Em sua resposta, Karniol considera que a proibicao do usereligioso do chi seria uma violencia muito maior que a produ-zida por eventuais efeitos colaterais das mesmas. Quanto a pos-sibilidade de reacoes muito prejudiciais ao organismo, ele asconsidera como nao comprovadas, assim como nao o foramas alegadas modificacoes severas de personalidade. Tampoucosignificariam necessariamente situacoes negativas prejudiciaisou patologicas os estados alterados de percepcao, animo ecomportamento provocadas pela ingestao da ayahuasca.

Ao meu parecer antropol6gico coube lidar com outrasquestoes, de natureza sociocultural. Estas diziam respeito aointeresse cultural do fato de a ayahuasca set utilizada no Bra-sil ha mais de sessenta anos. Pedia-se tambem uma avaliacaodas consegiiencias da afirmacao de que a ayahuasca haveriaexcedido o use local de origem (sic) na selva amazonica, assimcomo da nocao de "uso ritual e restrito" proposto no parecerde Rahde. Em resposta ressaltei que, tal como mostrara Clodo-mir Monteiro da Silva, entre outros, ha decadas a bebida vemsendo utilizada no Brasil em praticas rituais com funcoes inte-

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O DESENVOLVIMENTO DO CULTO DO SANTO DAIME 91

gradoras dos usuarios ao meio em que vivem, promovendoassim a conduta pacifica e ordeira dos adeptos das diversas sei-tas. Ja o confinamento das praticas rituais a Amazonia nao teriasentido e seria equivalente a proscricao dos servicos religiososmais importantes das diversas seitas, que, alias, sao e sempreforam predominantemente urbanas. Tal proscricao seria con-traproducente, uma vez que acarretaria o enfraquecimento dasestruturas das seitas fundamentais ao controle do use do cha.Alem disso, seria uma violencia contra milhares de pessoasque investiram suas vidas nesses cultos, tornando-os centraispara suas identidades sociais, individuais e espirituais. Chameitambem a atencao para o triste exemplo oferecido pela poli-tica de repressao aos cultos afro-brasileiros durante o iniciodeste seculo. Alem de enfatizar que as origens do Santo Daimesao contemporaneas da sistematizacao da doutrina umbandista(inicio da decada de 20), e que as seitas ayahuasqueras sao taodignas de respeito quanto esta.

O parecer antropolOgico de Clodomir Monteiro da Silva,cuja pesquisa foi uma das fontes nas quais me apoiei ao escre-ver o meu, aponta na mesma direcao, enfatizando a naturezasocial e ritual do use da bebida, implicando determinadas se-giiencias de atos ou ritos a observar-se. 0 ritual de use e quaseimprescindivel, devido, entre outros fatores, aos efeitos provo-cados pela bebida.

O relatorio finaliza por considerar acertada a acao do Con-fen em suspender a interdicao da ayahuasca, apos sua proibi-cao de 1985, ja que a comunidade havia sabido exercer osseus controles de forma plenamente adequada, sem qualquerinterferencia do Estado, que, de outra forma, apenas criariaproblemas corn desnecessaria e indebita intervencao. Em decor-rencia disso sao feitas as seguintes recomendacOes ao plenariodo Confen:

a. a ayahuasca, cujos principais nomes brasileiros sao "SantoDaime" e "Vegetal", e as especies vegetais que a integram,o Banisteriopsis caapi, vulgarmente chamado de cipO, jagubeou mariri e a Psychotria viridis conhecida como folha, rai-nha ou chacrona, devem permanecer excluidos das listas doDimed ou do Orgao que tenha a responsabilidade de cumprir

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o que determina o artigo 36, da Lei n9 6.368, de 21.10.1976,

atendida, assim, a anilise multidisciplinar constante do relato-

rio final, de setembro de 1987 e do presente parecer;

b. podera ser objeto de reexame o use ilegitimo de ayahuas-

ca, aqui reconhecido, bern comp, alias, de qualquer outra subs-

tancia com atuacao no sistema nervoso central, desde que com

base em fatos novos, cujos aspectos substantivos ou essen-

ciais nao tenham lido, ainda, apreciadospelo Confen, tendo

em vista que o acatamento a decisoes relativas a materias sobre

as quais ja se haja pronunciado o colegiado, e fator de estabili-

dade das relacoes no ambito da pr6pria administracao p6blica

e perante os interesses individuais envolvidos;

c. deve ser organizada uma comissao mista, integrada peloConfen, que podera convidar assessores, e por representantesde entidades que observam o use da ayahuasca em seus ritos,com o objetivo de consolidar os principios e regras basicas,comuns as diversas entidades referidas, para fins, entre outros,de acompanhamento da administracao p6blica.

Essas e outras duas recomendacoes de ordem mais regi-mental foram finalmente aprovadas por unanimidade pelo ple-nario do Confen em junho de 1992.

Notas

1. Meggers 1977:185.2. Galvao 1983:6.3. 0 periodo inicial da vida de Mestre Irineu ainda apresenta muitos aspec-

tos desconhecidos . Os relatos a respeito sao frequentemente contradit6-rios ou ate equivocados . Um exemplo da confusao que cerca o assunto ea diversidade de nomes atribuidos a sua terra natal . Informes pessoais levam-me a crer que o correto e Sao Vicente de Ferre e nao Sao Luis de Ferre,conforme dizem alguns autores.4. Monteiro da Silva 1983:54.5. Mais uma vez os dados disponiveis sao contradit6rios . Alguns dizem

que o nome do ayahuasquero era Dom Crescencio , atraves de quem atua-ria uma entidade espiritual denominada Pizango.6. Ver B. G. Dantas 1983 e Y. Maggie 1988 sobre a perseguicao movida

contra os cultos afro -brasileiros.

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O DESENVOLVIMENTO DO CULTO DO SANTO DAIME 93

7. Maggie 1988:5 e 6.8. Couto 1989:58.

9. Couto 1989:59.10. Fr6es 1986:25.11. Monteiro da Silva 1985:20.

12. Groissman 1991:13.13. Couto 1989:106.14. Oro 1989:11.15. Fr6es 1986:123-5.16. Couto 1989:108.

17. Zaluar 1983:110.18. Relatbrio do grupo de trabalho do Confen p. 29.19. Relatbrio do grupo de trabalho do Confen p. 30.20. Pelas informacoes sobre os pareceres do Confen, agraderio muito aoDr. Domingos Bernardo Fialluisi da Silva Sa, relator do grupo que estudouo use ritual da ayahuasca no Brasil e cujo trabalho a frequentemente para-fraseado neste item do livro.21. Inquerito policial 09.89 -DRE/SR/DPF/RJ , mandado instaurar pela MM.

Dra. Juiza da 13' Vara Federal da Cidade do Rio de Janeiro.22. Parecer do grupo de trabalho do Confen, emitido em 2 de julho de1992, pp. 1 e 2.

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4 - Os rituais do culto do Santo Daime

O surgimento e o desenvolvimento inicial da doutrina doSanto Daime aconteceu num momento caracterizado pela deca-dencia da cultura da borracha e pela migracao para as areasurbanas dos antigos moradores da floresta. Os componentesbasicos da seita tem suas matrizes na cultura rtistica nordestinae na tradicao amerindia, recentemente alcancada pelas frentesextrativistas. Tomadas nesse contexto, as experiencias com oDaime constituiam estados atipicos de consciencia e percep-cao, responsaveis pela construcao social de uma realidade pro-pria, de um estagio de passagern entre civilizacoes distintas.

Monteiro da Silva considera que os transes e voos xamani-cos individuais ou coletivos nao podem ser reduzidos a sim-ples liberacao de tensoes ou a sublimacao de pulsoes libidino-sas, como querem algumas analises mais superficiais da questao.Mais frutifero, segundo ele, seria situar esses fenomenos psiqui-cos no contexto da passagern da floresta para a cidade, conce-bendo o culto do Santo Daime como um ritual de passagerncoletivo. Seria uma tentativa de dar conta das ambiguidadesdo novo projeto de ordem: a expansao capitalista desorganizao antigo modo de vida, mas, ao ter que conviver com os resul-tados dessa nova desordem, reencontra a natureza dionisfacaperdida pelo positivismo e utilitarismo da civilizacao ocidental.1

0 culto e o resultado de um processo de sincretismo envol-vendo elementos de formacoes sociais rdsticas e urbanizadas.Assim, encontram-se lado a lado tracos da cultura amerindia e

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tecnicas de concentracao proprias da religiosidade popularocidental. Ha tambem uma estreita relacao entre os rituais e odia-a-dia dos devotos. 0 proprio processo sincretico de desen-volvimento do culto tern em sua base uma articulacao corn asnecessidades e pressoes do contexto em que ocorre. 0 con-sumo da ayabuasca durante os rituais do culto nao pode, por-tanto, ser descrito Como simples manifestacao patologica deindividuos ou delirio coletivo.

Seguindo esse raciocinio, Monteiro da Silva analisa a impor-tancia dos ritos Para a permanente criacao e legitimacao do dis-curso doutrinario da seita. Termina por considerar que ha umacorrelacao entre a iddia matriz de limpeza - busca de ordeme harmonia que perpassa todos os ritos da seita na forma deum vasto ritual de transcendencia e despoluicao - e as' estru-turas de plausibilidade" do culto - entendidas no sentido de"expedientes atraves dos quais grupos humanos procuram tor-nar explicavel a realidade empirica aceitavel".z

Conclusoes similares sao possiveis quando se utiliza o con-ceito desenvolvido pelo antropologo ingles Victor Turner,que considerava haver na sociedade uma permanente tensaoentre as tendencias a estrutura ou ordem e a antiestrutura oucomunitas. Para Turner, ha uma necessidade humana de parti-cipar de ambas as modalidades, e as pessoas famintas de umadelas em suas atividades diarias procuram-na na liminaridaderitual . Assim, enquanto os individuos que ocupam posicoes infe-riores na estrutura social aspiram a uma superioridade simbo-lica no ritual, os que estao em posicoes superiores podem aspi-rar a simbolica fraternidade universal da comunitas, subme-tendo-se ate a penitencias Para conquista-la. Partindo dessesconceitos, pode-se considerar os rituais do culto do Santo Daimecomo awes que deslocam a vida social e, consequentemente,a sociedade Para o lado de sua estrutura, do seu ordenamento.

Esse argumento e de Couto, Para quern o culto do SantoDaime difere dos rituais de inversao (por exemplo, o carnaval)ou dos rituais de rebeliao no Sudeste da Africa, ambos estuda-dos por Turner, em que o equilibrio se desloca Para o polocomunitas . Ja os rituais ' daimistas deslocam o sistema Para opolo da estrutura, reforcando a ordem cosmologica, intensa-mente vivida, saindo de um estado latente, inconsciente e mani-

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 97

festando-se durante os rituais. A ordem interna e constante-

mente reafirmada pelo empenho de cada adepto durante sua

performance ritual, ao se submeter as exigencias do Impdrio

Juramidam. E atravds dessa praxis que o fiel acredita receber

os "ensinos" e, principalmente, o ordenamento simb6lico

tido como eficaz. Nessa ordenacao simb6lica, vao-se limpando

e desobstruindo os canais invisfveis que ligam os neofitos a

ordem c6smica, levando todo o sistema a uma ascese ou a

uma estruturacao.3

Estes aspectos dos rituais como reforcadores da ordemforam observados pelos integrantes do grupo de trabalho desig-nado pelo Confen para estudar as seitas usuarias da ayabuasca.Segundo eles, os adeptos das seitas sao ate mais respeitadoresda ordem que o resto da populacao e frequentemente atribuema sua adesao aquelas doutrinas uma reorganizacao de suas vidasque os torna mais tranquilos e felizes.4

Vale lembrar tambdm as concepcoes de Dobkin de Riossobre a importancia da interacao de variaveis antecedentes econsecutivas a ingestao de um psicoativo na determinacaodos efeitos percebidos (ver Figura 1 da Introducao). E espe-cialmente relevante aqui a enfase dada ao sistema simbolicocompartilhado e as expectativas do conteudo visionario quefazem parte das variaveis "culturais". Ao lado dos aspectosbiol6gicos e sociais, eles levam grande parte dos adeptos aperceber suas experiencias corn o ente6geno de forma similar.Interpretando suas experiencias a partir de urn repert6riocomum de simbolos veiculados pelos hinos, os daimistas temreforcados e confirmados para si pr6prios os valores implici-tos nas Santas Doutrinas.

Os trabalhos de Daime na vertente doPadrinho Sebastiao 5

Segundo a terminologia usada em muitos centros espiritas,assim como entre os vegetalistas, os ritos daimistas sao chama-dos de "trabalhos" e pressupoem uma atividade psiquica porvezes intensa e exaustiva do participante, mesmo quando estese encontra em postura de aparente relaxamento e repousonas sessoes de concentracao.

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Acredita-se que, corn o auxlio da ayahuasca, o adeptopode realizar diversas atividades no "mundo espiritual" ou "as-tral". De acordo com o objetivo, existem diversos tipos deritual, cuja forma e quase invariavelmente atribuida a inspira-cao de Mestre Irineu. Ele teria recebido instrucoes a esse res-peito diretamente da Rainha da Floresta, a Virgem da Concei-cao, fonte de todos os ensinamentos daimistas.

Portanto, existe uma grande enfase na fidelidade as formasrituais legadas por Mestre Irineu. Conforme apuraram o grupode trabalho do Confen e outros estudiosos, onde me incluo,e notavel a uniformidade mantida na maioria das praticas ritua-listicas realizadas nos nticleos do CEFLURIS, considerando suadiversidade geografica. Ao mesmo tempo, e frequente a insis-tencia em mindcias aparentemente pouco importantes e agrande irritacao dos adeptos corn os que querem "inventarmoda", propondo alteracoes no ritual. A seriedade com quese ve a questao e refletida nos estatutos da organizacao que,alem de preverem instancias de fiscalizacao para assegurar ocorreto desempenho dos trabalhos, especificam, no item 2.4:

"Consideramos como parte integrante da nossa Ritualis-tica todos os preceitos herdados diretamente do Mestre Irineue os acrescimos feitos por ordem do Padrinho Sebastiao e doPadrinho Alfredo Gregorio de Melo. Apenas a estes o Estatutopermite poder para legislar e regulamentar materia doutrinariade ritualistica.

Qualquer outro tipo de sugestao ou proposta de mudancade normas ou procedimentos de ritual deve passar pela apre-ciacao da Comissao de Ritual e Cura do Conselho Supremodas Igrejas, o orgao colegiado maximo de orientacao e coorde-nacao executiva das entidades filiadas ao CEFLURIS".

Os principais tipos de trabalho sao: hinarios, concentra-coes, missas, trabalhos de cura e feitios.

0 hindrio

Os hinarios sao considerados festejos comemorativos decertos dias santos, aniversarios dos padrinhos ou simples cele-bracoes de comunhao e fraternidade. Existe um calendario

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME

Distribuicao dos adeptos durance os hinarios

Figura 2

HOMENS

MULHERES

Disposicao dos bailarinos, conforme o sexo e a idade, nasigrejas com mesa em forma de estrela.

Figura 3

MOCHAS E MENINAS

MENINOS E RAPAZES

99

Disposicao dos bailarinos, conforme o sexo e a idade, nasigrejas com mesa retangular.

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de hinarios oficiais seguido por todas as igrejas, do mesmomodo e na mesma data. Nessas ocasioes, os participantes ves-ted uma roupa de gala, chamada "farda branca", onde predo-mina o branco e enfeites de fitas coloridas. As mulheres usamtambem uma coroa de material brilhante. Em outras ocasioespodem se realizar hinarios mais simples, que requerern umaroupa menos elaborada, conhecida como "farda azul", pelacor das calcas e saias usadas.

Dependendo da ocasiao, cantam-se os hinarios oficiais,"recebidos" por Mestre Irineu, Padrinho Sebastiao ou Padri-nho Alfredo, ou os hinos recebidos por outros adeptos daseita. Os participantes se mantem em pe, agrupando-se enfilei-rados por ordem de tamanho, em torno da mesa onde se encon-tra a Cruz de Caravaca e o rosario, sfmbolos da doutrina. Con-forme o formato da mesa e a quantidade de participantes, elesse distribuem em quatro ou seis grupos distintos: homens, mu-iheres, rapazes e mocas; ou homens, rapazes, meninos, mulhe-res, mocas e meninas. (Veja quadros na pagina 99).

Muitos participantes acompanham corn maracas o cantounfssono dos hinos, o que ajuda a marcar o tempo do "baila-do", uma coreografia simples, executada por todos, com tresvariacoes possfveis, dependendo do ritmo do hino. 0 cantotambem pode ser acompanhado por uma pequena orquestradisposta em volta da mesa. Ela se compoe normalmente de vio-loes, flautas e instrumentos de percussao, mas qualquer outroinstrumento tambem pode ser usado. 0 ritual comeca numahora predeterminada, geralmente ao cair da tarde, com a recita-cao do terco catolico ou, mais simplesmente, de tres Pais-nos-sos, tres Ave-marias e um Salve-rainha, seguidos por oracoesde origem espfrita ou especificamente daimista.6

Segue-se entao o "despacho", que e a distribuicao do Daime:urn copo pequeno para os adultos e uma quantidade menorpara as criancas. Isto sera repetido varias vezes durante o traba-lho, a intervalos de aproximadamente duas horas.

Dependendo da ocasiao e do hinario que esta sendo can-tado, o ritual pode durar de seis a doze horas. Durante esseperfodo, os participantes devem manter seu Lugar na fila dobailado, evitando qualquer tipo de conversa ou outro compor-tamento que possa interferir na concentracao dos outros. No

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OS RITUALS DO CULTO DO SANTO DAIME 101

meio do ritual, ha geralmente um intervalo de mais ou menosuma Nora, unica ocasiao em que a conversa e permitida. Asvezes, ainda sob a acao do cha, algumas pessoas preferem man-ter silencio.

Durante esses intervalos, os adeptos podem sair do re-cinto e ate aproveitar a ocasiao para comer algo leve oubeber um pouco de agua. Tambem e permitido fumar cigar-ros, mas de forma que a fumaca do tabaco nao chegue ao sa-lao de trabalhos.

Ao termino da sessao, recitam-se novamente algumas pre-ces cristas e, por fim, o comandante dos trabalhos pronunciauma ultima formula invocando Deus Pai, a Virgem SoberanaMae, Nosso Senhor Jesus Cristo, o Patriarca Sao Jose e todosos seres divinos da corte celestial. Tanto no final da sessao,quanto apOs ingerir uma dose de bebida, todos os adeptos fazemo sinal-da-cruz, enfatizando assim o compromisso com os prin-cipios cristaos durante seus trabalhos no astral.

Alex Polari explica o significado desse ritual:

"0 hinario e o espelho da vida e das relacOes humanasno interior da comunidade. E a grande possibilidade de lim-peza e transformacao onde todos, irmanados e ombreados nacorrente, passarao ate doze horas cantando e viajando interior-mente sob a conducao dos hinos e da miracao do Daime.Durante esse tempo, cantamos e bailamos hinos, evocamos elembramos a origem de tudo. Adoramos a Deus, prestando-lhetodos os louvores e, naquela noite que se transforma em dia,selamos novos compromissos com o amor, a verdade e a cari-dade. Nos sentimos parte do Todo, aptos a compreender nos-sas faltas e a nos reconciliarmos com nossos irmaos. Estimula-dos a nos transformar e evoluir, com mais fe, para nao desacre-ditarmos do nosso caminho, e com mais firmeza para conti-nuer nele. Ao final, a alegria, o Sol nascendo, o abraco, a ben-cao, o aperto de mao, muitas quest6es resolvidas

Durante o ritual, alguns participantes, movidos pelas suasvisoes ou mirac6es, ou passando por etapas dificeis no seu pro-cesso de introspeccao, poderao apresentar sinais de agitacaoou ate de perda de controle dos movimentos. Outros manifes-tam reag6es fisiol6gicas a ingestao da ayabuasca, sentindoansias de vomito ou, menos fregiientemente, sofrendo diarreia.

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Para lidar com esses casos, manter a ordem no salao e refor-car o cumprimento das normas rituais, diversos indivfduos saonomeados "fiscais". A eles Cabe manter o alinhamento corretodas filas, o fluir do bailado, a correcao de algum foco de desar-monia que possa surgir, o atendimento aqueles que manifestemdificuldades, o controle de entrada e saida do salao etc.

Os hinarios bailados sao considerados momentos de ale-gria e confraternizacao. Sao, portanto, abertos a participacaode todos, fardados ou nao, contanto que tenham observadoos preceitos de abstencao de atividades sexuais e de bebidaalcoolica nos tres dias anteriores e se comprometam com asmesmas restricoes nos tres dias seguintes. Qualquer outro impe-dimento a participacao nos trabalhos deve atender simples-mente a questoes de ordem pratica, como evitar a superlota-cao do salao ou um numero de novatos desproporcional aode fardados, por exemplo.

A concentracao

Nos outros rituais, a participacao a geralmente vedada aosnao-fardados. E o caso dos trabalhos de concentracao, realiza-dos por todos os fardados, nos dias 15 e 30 de cada mcs. Comduracao de duas a quatro horas, este ritual de desenvolvimentoespiritual e realizado em silencio na maior parte do tempo, comos participantes sentados e mantendo a espinha ereta. Os parti-cipantes devem inicialmente buscar a canalizacao de sua menteem uma so direcao, com o progressivo aquietamento das on-das e cadeias de associacao de pensamento. Num Segundo mo-mento, passam a meditacao e a identificacao com o "Eu Internoe Superior" e o "poder divino", que transcende todas as iddias,nomes e formas. Esta cerimonia, que pode tambdm incluir aleitura dos evangelhos, escrituras sagradas de outras grandesreligioes ou instrucoes e prelecoes do comandante dos traba-Ihos, deve terminar com o canto em pd dos ultimos onze hinosdo Mestre Irineu, considerados a stimula de sua doutrina.

Nessas sessoes nao d permitida a entrada de retardatarios,e o Daime d servido apenas no inicio. A finalidade dessas regrasd manter um ambiente de calma e silencio total, necessariosao exercicio da concentracao.

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 103

A missa

0 mais solene dos ritos do Daime e a missa para os mor-tos. Nessas ocasioes, cantam-se dez hinos do Mestre Irineu,reservados exclusivamente para esse fim. 0 trabalho e abertocorn a reza de um terco e, entre cada hino, recitam-se tresPais-nossos e tres Ave-marias. Marcando a gravidade da oca-siao, os hinos nao sao bailados e o canto nao e acompanhadopor instrumentos.

Os trabalhos de cura

Como ja vimos, a ayahuasca e frequentemente aplicadapara combater males fisicos e espirituais. E tambem atravesde curas atribuidas a suas atividades xamanicas que os mestresayahuasqueros conquistam fama e consolidam influencia emsuas comunidades. Talvez seja este o ponto em que mais seintroduzem variacOes ritualisticas, uma vez que o dom da curae geralmente considerado urn atributo individual. Portanto,aqueles que se distinguem como curadores tendern a desen-volver as praticas que melhor se coadunam corn seus poderesespecificos e com suas individualidades. No caso dos vegetalis-tas caboclos do Peru, por exemplo, apesar de existir urn subs-trato conceitual comum a respeito da natureza das doencas edos principios de cura, cada xama tern suas proprias cancoes,espiritos auxiliadores e praticas curativas especificas.

Entre os seguidores do Santo Daime, podemos lembrarque Mestre Irineu era conhecido antes de tudo como um pode-roso curador, assim como Padrinho Sebastiao e alguns outrosdaimistas. Os curadores daimistas operam dentro de um campode conceitos religiosos muito mais delimitado que o dos curan-deiros caboclos, acostumados a transitar entre varias culturas,apropriando-se de praticas e refundindo-as da maneira quemelhor lhes convenha. Mas mesmo tendo que se ater a doutrina,os curadores daimistas seguidores da vertente do PadrinhoSebastiao consideram que seu centro e livre e ecletico, admi-tindo outras influencias em seus trabalhos e, portanto, umcerto grau de flexibilidade ritualistica.

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Assim, paralelamente a realizacao dos ritos tradicionaisensinados por Mestre Irineu, os adeptos da doutrina tern umagrande gama de praticas que buscam a cura.

Embora todos os ritos que envolvem a ingestao da bebidasejam, de certa forma, potencialmente curativos,8 tradicional-mente dois deles parecem ser especfficos para esse fim. 0 prin-cfpio basico e buscar a salvacao dos participantes atraves dadoutrinacao de almas e caridade para com espiritos sofredores.

a. Abertura de mesa, trabalho de oraFao, trabalbo de mesaou trabalho de cruzes . Monteiro da Silva (1985) considera queseja voltado ao diagnostico da causa dos disturbios e aos pri-meiros socorros. JA FrOes e Couto e as Normas de Ritual doCEFLURIS consideram que servem para a "desobsessao" e o"afastamento de fluidos negativos ". Esta cerimonia pode ounao contar com a presenca do paciente, mas em sua ausenciadeve-se saber seu nome completo.

Para que este trabalho seja realizado , e necessaria a pre-

senca de um ntimero impar de participantes, que pode variarentre tres e nove. Cada um deve segurar uma Cruz na mao

esquerda e uma vela na direita (independentemente do ntimero

de participantes, sao necessarias nove cruzes; na falta de quern

as segure, as que sobram ficam sobre a mesa). A cerimonia e

relativamente curta, e deve ser repetida tres dias seguidos. Ape-

sar de todos os participantes terem que observar os interditos

costumeiros e buscar um estado de harmonia e limpeza inte-

rior, a porcao de Daime servida nessas ocasioes e pequena e

nem sempre extensiva a todos. A1em da concentracao, recita-

se a prece catolica Salve-rainha e uma oracao contra encostos

e maleficios. Sao tambem cantados hinos predeterminados,

que parecern substituir as "chamadas de cura" feitas nos pri-

mordios do desenvolvimento da doutrina para invocar entida-

des curadoras Como Tupequapa, um ser da floresta conhece-dor das ervas.9

b. Trabalbos de concentracao com hinos de cura . Conside-radas um tipo de terapia intensiva, estas cerimonias prezamComo fundamental a limpeza do corpo e da mente. Para tanto,servem-se quantidades maiores da bebida, resultando frequen-

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 105

temente num marcado processo de purgacao por vomitos ediarreias, considerado por alguns estudiosos como catarticoe ab-reativo.10

Os trabalhos consistem em oracao do Pai-nosso, da Ave-maria e da Salve-rainha, e na leitura de uma prece de consagra-mao do aposento. Ha uma concentracao de aproximadamenteuma Nora e cantam-se hinos especificos para esse fim.

Em sua forma basica, estes dois tipos de trabalho mantem-se bastante fieis as indicacoes originais de Mestre Irineu,embora no CEFLURIS incluam o canto de hinos recebidospelo Padrinho Sebastiao e alguns de seus seguidores. Nos cen-tros adeptos dessa vertente, e comum a denominacao "traba-Iho de estrela", devido ao formato da mesa em torno da qualsao realizados, e a forma hexagonal do recinto especialmenteconstruido para esse fim, conhecido como "Casa da Estrela".

Mas existe tambem uma outra linha de trabalhos, de desen-volvimento mais recente, que demonstra forte influencia um-bandista. Sao os trabalhos "de banca" e "de Sao Miguel naMata", realizados para a "doutrinacao de espiritos sofredores","desobsessao" e outras atividades de "caridade espirita", pre-vendo-se durante a sua realizadao a ocorrencia de comunica-coes e incorporacoes de entidades espirituais. Estes trabalhosconstam de oracoes, concentracao, hinos e ingestao de Daime.Nessas ocasioes, varios participantes podem ser "atuados" (pos-suidos) por entidades espirituais, tornando-se menos previsi-vel o desenrolar da sessao. Mesmo nesses casos, o comandantedos trabalhos exerce o controle, pois o medium atuado pre-cisa de sua permissao para se manifestar, e esta tambem e neces-saria na puxada de hinos e chamadas.

Recentemente, essa linha de trabalho corn mediuns incor-porados por entidades espirituais vem se consolidando e, ap6sa instalacao de um terreiro no Ceu do Mapia, devidamente pre-parado para a realizadoo de giras umbandistas, outros centrosprovavelmente seguirao o exemplo. Em Sao Paulo ja se esbocaate o inicio de sessoes conjuntas de Daime e candomble. Dessemodo, comeca a diminuir a distancia que, Segundo Dias Jr.,Mestre Irineu buscava manter entre sua doutrina e as religioesde possessao de origem afro-brasileira.I I

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Em relacao aos recursos empregados pelos daimistas, faz-se as vezes uma distincao entre as tecnicas terapeuticas diretas(uso de plantas medicinais, emplastros, massagens etc.) e as indi-retas (sonhos, miracoes, trabalhos astrais etc.). Mas o instru-mento basico e o Daime e seus auxiliares principais: os seresdivinos das linhas da agua, da floresta e do astral; certos hind-rios; o espirito de irmandade (nos bailados, no reforco duranteos ritos de cura etc.); outros auxiliares seriam as plantas medi-cinais e as dietas "de boca", "de cama" e "de ambiente".12

As tecnicas terapeuticas empregadas pelos curadores duranteos trabalhos podem ser classificadas da seguinte forma:13

Miracao . Quando o curandeiro recebe informacoes detaiha-das dos seres divinos a serem transmitidas aos enfermos.

Autoscopia. Caminhar dentro do pr6prio corpo acompanhadopor um guia que vai diagnosticando o estado fisico e mental.

Co-autoscopia. Quando mais de urn participante caminhamjuntos no interior de determinado organismo, recinto ou emambientes abertos. Eles se sentern juntos durante a miracao.

Voo extdtico. Viagem por diferentes lugares do mundo commissao especifica.

Possessa`o. Fen6meno identico a incorporacao meditinica doscultos afro-brasileiros.

Alem destas tecnicas mais costumeiras, os curadores dai-mistas podem recorrer a outras, provenientes de diferentes tra-dicoes ou de sua pr6pria inspiracao. Assim, e comum o recursoa rezadores, tanto no Ceu do Mapia quanto na Colonia 5000,e e sabido que Padrinho Sebastiao, no final de sua vida, naohesitou em recorrer a xamas de outras linhas, em busca deum alivio para sua enfermidade. Conta-se que ele foi atendidopor um destes na regiao de Boca do Acre, que teria extraidoobjetos e insetos de seu corpo. Posteriormente, esse materialfoi guardado em uma garrafa e exibido aos curiosos. PadrinhoSebastiao morreu pouco depois de um trabalho realizado noCentro daimista Rainha do Mar, em Pedra de Guaratiba, Riode Janeiro, durante o qual submeteu-se ao tratamento de umacurandeira umbandista.

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 107

Relata-se tambem corn frequencia outro epis6dio, em queum rapaz foi levado acorrentado ao Padrinho Sebastiao no Ceudo Mapia. Pediram-lhe para tratar do rapaz, que estava "coma personalidade completamente desestruturada; era visivel adesordem mental e emocional". Padrinho Sebastiao iniciouuma segiiencia de tres trabalhos de Sao Miguel em dias conse-cutivos. No terceiro dia, em vez do trabalho tradicional, man-dou que o rapaz participasse da matanca e do esquartejamentode um boi, utilizando um perigoso facao e sujando-se com san-gue. No dia seguinte, o ciclo de trabalhos foi retomado em suaforma tradicional e, ao final, o rapaz apresentava sinais impres-sionantes de melhora e ja era capaz de conversar normalmen-te, atribuindo seu surto a uma ameaca de morte que receberade um amigo, 14

Entre as tecnicas mais recentemente incorporadas ao reper-t6rio dos daimistas, a que talvez mais se destaque e o use decristais para restabelecer o "equilibrio energetico" dos partici-pantes que passarn por dificuldades durante os trabalhos. EmSao Paulo, por exemplo, a madrinha da igreja Flor das Aguasja desenvolvia uma tecnica de use curativo de cristais de variostipos antes mesmo de se filiar a doutrina. Atualmente, sob orien-tacao dela, essa pratica vem adquirindo consideravel importan-cia ate no dia-a-dia dos daimistas paulistas.

Ofeitio

0 mais fundamental de todos os rituais do culto e o feitio,nome dado pelos daimistas ao processo de preparo da bebida.Prescrito nos minimos detalhes, deve ser executado correta-mente para assegurar a eficacia dos ritos subsequentes, queacontecerao em torno do seu produto, o Daime. Cabe lembrarque a bebida e considerada como urn ser divino, algo analogoa h6stia consagrada da Igreja Cat6lica. Portanto, o feitio e acimade tudo um ato de encantamento e consagracao, exigindo dosseus participantes urn rigoroso preparo anterior fisico e espiritual.

Esse processo e tambem extremamente trabalhoso e des-gastante em termos fisicos. Implica privacoes para aqueles quevao fazer a coleta de plantas na floresta, e trabalho bracal

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pesado para os homens encarregados de macetar o cip6 e tra-balhar na fornalha. Mas o ritual e considerado um momentoprivilegiado de purificacao e desenvolvimento interior, exigindosilencio e grande compenetracao. Este a tambem o dnico ritualem que o suprimento de Daime e livre, estando a bebida dispo-nfvel para os participantes tomarem quantas vezes quiserem.

Durante este rito, o cansaco e o Daime levam os participan-tes a se deparar com suas fraquezas e dificuldades pessoais.Mais do que nunca, mostram-se relevantes as qualidades espiri-tuais apregoadas pela seita: firmeza, pureza de coracao, humil-dade, disciplina, harmonia, amor, justica, verdade. Os traba-lhos sao realizados na Casa do feitio, construida especialmentepara esse fim, onde estao sempre presentes uma Cruz de Ca-ravaca e uma imagem da Virgem. Sao tambem comuns repre-sentacoes do sol, da lua e das estrelas.

Da mesma forma que os outros rituais, o feitio tambem temum comandante dos trabalhos, geralmente o padrinho local.Mas, em certos casos, pode ser um especialista, com larga expe-riencia, vindo de outra igreja.

Assim como nos outros ritos, os homens e as mulheres saomantidos separados e encarregados das tarefas consideradasmais apropriadas as suas naturezas. Mais do que nunca devernser mantidos os preceitos costumeiros de abstinencia sexual,de bebidas alco6licas e de alimentacao. Aos homens sao reser-vados os trabalhos mais pesados, como coleta, transporte, lim-peza e macetacao do cip6, alem do preparo propriamente dito,que envolve a lida com enormes caldeiroes de liquido ferventee a manutencao da fornalha. Quando a igreja tem plantacaopr6pria, as mulheres colhem as folhas da Psychotria viridis e

as limpam, uma a uma. Caso contrario, os homens colhem asfolhas na floresta, mas a limpeza continua sendo uma atribui-cao das mulheres.

A busca do cip6 e da folha e provavelmente a parte maisdificil e requer ampla experiencia e conhecimento da floresta.Atualmente esta etapa tende a ser reservada a equipes especia-lizadas de mateiros. Algumas igrejas, porem, ja comecam a tersuas pr6prias plantacoes e, neste caso, o trabalho a mais sim-ples e pode ser realizado por todos. Talvez porque os daimis-tas costumem preparar grandes quantidades da bebida de uma

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OS RITUALS DO CULTO DO SANTO DAIME 109

so vez (entre cem e quinhentos litros), o seu processo decoiheita e mais simples que o adotado pelos vegetalistas estuda-dos por Luna e Dobkin de Rios. Em vez da conduta cerimo-niosa dos peruanos, os daimistas simplesmente arrancam ocip6 das arvores, cortando-o no local em pedacos de vinte cen-timetros de comprimento, acondicionado-os em sacos de atecingiienta quilos.

A pr6xima etapa acontece na casa do feitio, onde oshomens limparn os pedacos de cip6, retirando a casca e qual-quer sujeira ou imperfeicao que possam apresentar. Duranteesse trabalho, os participantes devem se manter concentradose buscar sua pr6pria limpeza interior. Em seguida, vem a "bate-cao", macetadoo do cip6, costumeiramente iniciada as 2 damadrugada e realizada por turmas de doze homens, que se reve-zam a cada duas horas. Os pedacos de jagube sao colocadossobre tocos de arvores fixos no chao, sendo macetados commarretas de madeira dura. Geralmente as batidas das marretasseguem o ritmo do hino que estiver sendo cantado.

Segue-se entao o cozimento, geralmente utilizando trespanelas de sessenta litros em uma grande fornaiha de lenhacom tres bocas. Na panela sao colocadas camadas alternadasde cip6 macetado e folhas, ate se alcancar as bordas. Calcula-se que, para cada saco de jagube, deva-se colocar meio sacode folhas. Da correta dosagem desses ingredientes depende oequilibrio das propriedades de "fort:a" e de "luz" da bebidapreparada.

Em seguida, enche-se a panela com agua cristalina, dando-se inicio ao cozimento, que dura varias horas. 0 liquido daspanelas e reduzido a um terco. Esta e a etapa mais delicada,pois, como diz Fr6es:

"Nao se deve conversar com a pessoa encarregada, poisela controls o ponto da fervura da bebida que e indicado poruma entidade do Santo Daime presente no piano astral, mani-festando-se no momento em que se completa o cozimentopara que a panela seja retirada da fornalha".15

Uma vez atingido o ponto, as panelas sao afastadas do fogo,e o liquido, agora chamado de "cozimento", 6 coado e guar-

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dado. As panelas sao novamente enchidas com cipo e folhas,mas no lugar de agua desta vez levarn o cozimento ja prepa-rado. Mais uma vez reduz-se sessenta litros a vinte litros, conse-guindo-se assim o chamado Daime de primeiro grau. Colocandomais cozimento e aproveitando o mesmo jagube e folha, obtem-se Daime de segundo grau; aproveitando-se mais uma vezobtem-se o de terceiro grau.

Ao fim, a bebida pronta e esfriada e arejada atraves de ummovimento continuo de cuias e jarras, retirando o l quido dapanela e despejando-o novamente. 0 Daime e entao colocadoem garrafoes limpos e secos, vedados com rolhas de madeiraou cortica, eliminando-se o ar para evitar a fermentacao e asse-gurar a sua qualidade por ate varios anos.

Em se tratando de um processo de encantamento e de pro-ducao de uma bebida sagrada, varios tabus devem ser observa-dos. Assim como a observacao dos preceitos dieteticos esexuais pelos participantes, deve-se atentar para que nenhumadas participantes esteja menstruada. 0 manuseio da bebidarequer cuidados especiais, como evitar rigorosamente qual-quer mistura de agua ao cozimento, assim como um grandecuidado para nao permitir que uma gota sequer do Daime sejaperdida ou derramada no chao.

Ha epocas do mes consideradas mais adequadas, especial-mente a da lua nova, e tambem horarios certos para comecaras diversas etapas, geralmente de madrugada.

Dependendo de todos esses fatores e da quantidade e qua-lidade dos ingredientes e do grau de harmonia e perfeicao espi-ritual dos participantes, cada batelada da bebida tera caracteris-ticas especificas. Por isso, cada garrafao deve ser etiquetadocom o dia do feitio, fase da lua e grau da bebida.

Embora haja formas diferentes de se preparar a ayahuasca,sendo ate possivel variar ingredientes basicos, os seguidoresdo Santo Daime costumam seguir a risca as indicacoes rigoro-sas que Mestre Irineu deixou sobre o assunto. 0 processo deveser sempre o mesmo e, alem do cipo, da folha de chacrona eda agua, nenhum outro ingrediente pode ser acrescentado.

Os vegetalistas e os primeiros seguidores de Mestre Irineu,os seringueiros, viviam em estreito contato com a floresta,de onde costumavam extrair quase tudo o que usavam em seu

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 111

cotidiano, inclusive o jagube e a folha da chacrona. Atual-mente, mesmo aqueles que ainda conhecem os segredos dafloresta tem grande dificuldade em encontrar "reinados",areas em que o cipo cresce em abundancia. Seja devido aodesmatamento generalizado, seja devido a extracao demasiadado cipo, hoje e preciso passar varios dias e ate semanas embre-nhado na floresta para obter a quantidade de cipo suficientepara um feitio.

Alem disso, a seita vem se desenvolvendo em varias regioesdo Brasil, onde nao existem os ingredientes necessarios parafazer o Daime e onde os novos adeptos, comumente de classemedia, nao tem o preparo fisico ou o conhecimento necessariopara a execucao de um feitio. Assim, esses grupos tornam-sedependentes de remessas da bebida, que e feita por especialis-tas que trabalham nisso quase em tempo integral na Colonia5000 e no Ceu do Mapia.

Pela importancia desse ritual no desenvolvimento espiri-tual dos daimistas, ocasionalmente sao realizados alguns feitiosnas igrejas do Sudeste. Mas of o processo torna-se mais traba-lhoso ainda, exigindo a importacao in natura das folhas e docipo, alem da supervisao de um especialista, geralmente vindoda Amazonia para esse fim. Dessa forma, parece improvavelque possam a medio prazo, desenvolver uma producao auto-noma em quantidade suficiente para abastecer suas necessida-des. Isto, convem lembrar, significa que, tambem em nfveldoutrinario, eles continuarao fortemente dependentes dasideias dos seus irmaos amazonicos, que podem punir desviosda ortodoxia cortando o suprimento da bebida sagrada.

Notas

1. Monteiro da Silva 1988:37.2. Monteiro da Silva 1985:1 e 2.3. Couto 1989:132 e 133.4. Conforme relatam os hens IV e IX:

IV - Padroes morais e eticos de comportamento, em tudo semelhantesaos existentes e recomendados na nossa sociedade, por vezes ate deum modo bastante rigido, sao observados nas diversas seitas . Obedien-cia a lei pareceu sempre ser ressaltada.

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IX - Findas as cerimonias, todos, de uma maneira aparentemente nor-mal e ordeira, voltam aos seus lares.

Os seguidores das seitas parecem set pessoas tranquilas e felizes.Muitas atribuem reorganizacoes familiares, retorno de interesse no traba-Iho, encontro consigo proprio e com Deus etc., atraves da religiao e do cha.(Relatorio final das atividades desenvolvidas pelo grupo de trabalhodesignado pelo Confen com a finalidade de examinar a questao da pro-ducao e consumo das substancias derivadas de especies vegetais, p. 7.)Embora todos os ramos da Doutrina do Santo Daime mantenham

grande uniformidade em seus rituais, concentro-me aqui nos seguidoresda vertente liderada pelo Padrinho Sebastiao, a tinica que observei em deta-lhes e a mais importante em nivel nacional devido as numerosas igrejas afi-liadas que possui fora da Amazonia.6. Dois exemplos sao a Prece de Caritas, proveniente do repertorio espi-

rita, e a oracao onde se apresentam os temas de harmonia, amor, verdadee justica, oriundos da Comunhao do Pensamento.

Prece de Caritas

Deus Nosso Pai, que sois todo Poder e Bondade, Dai forca aquelesque passam pela provacao, Dai luz aqueles que procuram a verdade,Ponde no coracao do homern a compaixao e a caridade.

Deus, Dai ao viajor a estrela guia, ao aflito a consolacao, ao doenteo repouso.

Pai, Dai ao culpado o arrependimento, ao espirito a Verdade, a criancao guia, ao orfao o pai.

Senhor, que Vossa bondade se estenda sobre tudo o que Criastes.Piedade, Senhor, para aqueles que Vos nao conhecem, esperanca

para aqueles que sofrem.Que Vossa Bondade permita aos espiritos consoladores derramarem

por toda a parte a Paz, a Esperanca e a H.Deus, urn raio, uma faisca de Vosso amor pode abrasar a Terra. Dei-

xai-a beber na fonte desta Bondade Fecunda e Infinita e todas as lagri-mas secarao e todas as dotes se acalmarlo.

Um so coracao sobre a montanha, nos Vos esperamos com os bravosabertos.

6 Poder, o Bondade, o Beleza, o Perfeicao, e queremos de algumasorte merecer a vossa infinita misericordia.

Deus, Dai-nos Forca de ajudar o progresso a firn de subirmos ate Vos.Dai-nos a caridade pura, Dai-nos a Fe e a razao, Dai-nos a simplici-

dade que fara de nossas almas o espelho onde se deve refletir a Vossa

Imagem. Amem.

Oracao

Agradeco-Te o Deus, porque este recinto esta cheio da Tua Presenca.AgradeGo-te, porque vivo em Tua Vida, Verdade, Sadde, Prosperi-

dade, Paz, Sabedoria, Alegria, e Amor.Agradeco-te, porque todos que aqui entrarem sentirao a Tua Presenca.Agradeco-te, porque estou em Harmonia, Amor, Verdade e Justica

com todos os seres.

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OS RITUAIS DO CULTO DO SANTO DAIME 113

7. Polari de Alverga, sem data:6.8. Couto 1989:158.9. Couto 1989:154.

10. Ver nota 2, capitulo 2.11. Walter Dias Jr. 1990.

12. Monteiro da Silva 1985.13. Monteiro da Silva 1985.14. Walter Dias Jr. 1990.15. Frdes 1986:69.

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5 - 0 uso controlado da ayabuascae seus efeitos estruturantes nosrituais do Santo Daime

"A primeira coisa que o Daime exige a que voce abandone qual-quer pretensao de considerd-lo uma beberagem alucinOgenaque vai The ocasionar 'baratos '. Quem for por esse caminho,

escorrega e cai . E o tombo as vexes e feio. "

Alex Polari de Alverga , 0 Livro das Miracoes

Atualmente e comum afirmar-se que o uso de substanciasde efeito psicoativo constitui pratica difundida por toda a huma-nidade, desde seus primordios. Uma pratica que alguns estudio-sos associam a uma necessidade inata ao homem de provocarperiodicas alteracoes em sua consciencia. I

Pesquisadores, interessados nos efeitos dessas praticas,enfatizam a importancia de se considerar diferentes padroesde uso: praticas "pesadas" e "leves".

Para Martine Xiberras, antropologa francesa, por exemplo,as "pesadas" constituem um estilo de consurno desenfreadode produtos e de modos de absorcao violentos. Implicam umabusca de anestesia tanto para o corpo quanto para a alma,levando a uma concentracao em si mesmo e a um fechamentoao mundo externo. Isto redunda numa submissao total a forcadas substancias, conduzindo ao isolamento caracteristico dastoxicomanias solitarias e individuais, como a heroinomania.

Ja as praticas "leves" provocam um estado de efervescen-cia e uso, mesmo que caotico, das faculdades cognitivas e emo-tivas. Esse estado a similar ao do "transe", onde todas as capa-cidades do sujeito estao em alerta, prestes a reagir ao menorestimulo interno ou externo. Nesse estado de extrema sensibi-lidade ou extrema vigilancia, o individuo a precipitado numasituacao de excitacao que o obriga a tentar ultrapassar as limita-coes costumeiras do seu desempenho.

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116 EDWARD MACRAE

Todas essas praticas implicam uma busca de si, no domi-nio do uso, assim como no comportamento a set mantidodurante os efeitos da efervescencia. Embora Xiberras desen-volva suas observacoes num contexto europeu, dominado porconcepcoes laicizantes e materialistas, ela afirma que o termoe a experiencia especifica do transe remetem a outros contex-tos culturais onde esse estado alterado de consciencia e essaexperiencia sensorial sao usados como meios de perceber ede se comunicar com o alem, com forcas divinas ou ocultas.

Entre usuarios europeus de psicoativos ilicitos, as praticas"leves" e o estado de efervescencia parecem caracterizar umdesejo de abertura para o mundo exterior. Os usuarios buscamestar em controle, participando plenamente do seu meio, pro-ximo ou distante. Os produtos levam a euforia extrovertida eo principio da pratica se constroi sobre um desejo de comuni-cacao ampliada; o consumo acontece de forma comunitaria.Embora repelida pelo conj unto do corpo social, a pratica e valo-rizada por pequenos grupos de usuarios, em cujo seio a expe-riencia de transe e guiada e modelada de forma a ampliar ascapacidades de comunicacao e de compartilhar sensacoes.Assim, essa pratica adquire o valor de uma iniciacao ou de umaintegracao ao grupo, e constitui um aprendizado real de usoda droga como dominio de si e como um novo processo desocializacao no interior de um grupo de afinidade.

Enquanto as praticas pesadas se constroem a partir de umasubmissao as substancias, nao requerendo nenhum aprendi-zado, as praticas leves exigem um conhecimento, um dominioe uma iniciacao. Esse aprendizado de outro estado de conscien-cia nao desaparece tampouco com o fim dos efeitos psicotro-picos. Perdura uma memoria biologica e psicol6gica da sensi-bilidade alternativa, que continua a funcionar no estado natu-ral. Aos poucos essa experiencia vai afetando toda a vida dosusuarios, modificando nao so suas categorias de percepcaomas ate suas visoes de mundo.2

Outra distincao comum e entre o "uso" e o "abuso" desubstancias psicoativas. Estudando usuirios de psicoativos nosEstados Unidos, o medico Norman Zinberg discute a questao,referindo-se ao uso "controlado" e "compulsivo". 0 primeiroteria baixos custos sociais enquanto o segundo, disfuncionale intenso, parece ter efeito contrario.

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O USO CONTROLADO DA A YAHUASCA 117

Apesar de pequenas diferencas que possam surgir entre osconceitos de Xiberras e Zinberg, o que ha de comum entreas praticas leves do primeiro e o uso controlado e que ambossao regidos por regras, valores e padroes de comportamentoveiculados por uma subculture desenvolvida entre grupos deusuarios. Segundo Zinberg, estes controles sociais funcionarnde quatro maneiras:

a. Definem o que seja uso aceitavel e condenam o que fogea esse padrao.b. Limitam o uso a meios fisicos e sociais que possibilitemexperiencias positivas e seguras.c. Identificam efeitos potencialmente negativos. Os padroesde comportamento ditam precaucoes a serem tomadas antes,durante e depois do uso.d. Distinguem os diferentes tipos de uso das substancias; res-paldam as obrigacoes e relacoes que os usuarios mantem emesferas nao diretamente associadas aos psicoativos.3

Ve-se, portanto, que o uso da ayabuasca no culto doSanto Daime surge quase como uma instancia paradigmaticadas praticas leves de Xiberras ou do uso controlado de Zin-berg. Entre os membros da seita, o efeito da bebida e tradicio-nalmente entendido como um transe em que o sujeito expandeseus poderes de percepcao, tornando-se consciente de fe-nomenos de um piano espiritual que, por sua sutileza, nor-malmente escapam aos sentidos. Alm disso, como ja foi visto,essa pratica e rigorosamente prescrita em seus menores deta-lhes, tornando-se um born exemplo do uso controlado deum psicoativo.

A titulo de exemplo, analiso alguns dos mecanismos decontrole de um ritual de hinario na igreja de Sao Paulo, CentroEcletico Fluente Luz Universal Flor das Aguas.

Tomo inicialmente o que Zinberg chama de "sancoessociais", que compreendem valores e regras de conduta. Acimade tudo, mostrarei que o ritual e considerado uma celebracaosagrada, acarretando atitudes pessoais e formas de comporta-mento de profundo respeito. Nessa celebracao, os principaisalvos de veneracao sao a bebida e os simbolos sagrados dispos-tos sobre a mesa em forma de estrela, no meio do salao.

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118 EDWARD MACRAE

Para que todos os participantes estejam cientes da sacrali-dade da ocasiao, os que vem pela primeira vez devem assistirantes a uma palestra, onde recebem explicacoes e sao informa-dos de alguns preceitos basicos, Como evitar bebidas alcooli-cas e atividades sexuais tres dias antes e tres dias depois da ceri-monia. Todos devem manter uma atitude respeitosa, evitar cru-zar os bravos ou as pernas durante a sessao - isto "cortaria acorrente". Explica-se tambem que a sessao esta sob o comandodo padrinho e que ele e seus auxiliares devern ser respeitadose obedecidos no decorrer do rito.

Durante toda a sessao sao cantados hinos cujas letras e me-lodias sao simples e de facil compreensao, mesmo quando oindividuo se encontra em estado de transe. Nesses hinos saoveiculadas as Santas Doutrinas da seita e constantemente evo-cados seus valores principais: harmonia, amor, verdade, jus-tica, irmandade, "limpeza de coracao", firmeza, humildade,disciplina. A fregiiente alusao a Deus Pai, a Virgem Mae, a JesusCristo e varias outras entidades espirituais serve para reforcara todo momento o carater sagrado das atividades.

As cerimonias sao frequentemente caracterizadas Como"batalhas no astral", em que o conjunto dos participantes formao "exercito de Juramidam na luta contra o mal". Como bonssoldados, devern usar "fardas" que, embora nao sigam ummodelo militar, sao bastante austeras, cobrindo os corpos deforma a minimizar seus apelos eroticos e a evocar um forma-lismo reminiscente de trajes domingueiros, envergados emocasioes que pedem comportamentos solenes e comedidos.

Os trabalhos sao precedidos de defumacoes. Durante o seudecorrer, mantem-se acesos incensos e velas, colocados emdiversos pontos, dentro e fora do recinto. A bebida, conce-bida tambem Como o "sangue de Cristo", fica em uma talhade louca, sobre uma mesa alta, num canto do salao. Embaixodessa mesa, sao guardadas garrafas com reservas suplementa-res. Para sinalizar a sacralidade do cha, coloca-se uma das velasacesas ao lado da talha. Regras severas dispoem sobre o trans-porte e a armazenagem do Daime. Se alguma gota e derramada,o local e imediatamente regado com agua. Outra indicacao dasacralidade do chi: antes de levar o copo a boca, o adeptodeve fazer o sinal-da-cruz.

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O USO CONTROLADO DA A YAHUASCA 119

Os principais simbolos colocados na mesa central sao umacruz de Caravaca, com um terco enrolado em seus bravos, euma imagem da Virgem. Ao redor da cruz, sao dispostas tresvelas acesas e objetos variados, como incensos, cristais, flores,guias de umbanda, imagens de santos, espiritos ou personalida-des consideradas de elevado grau de espiritualidade. Esta mesa,especie de altar, e considerada o fulcro das atividades. Deveser tratada com respeito, evitando-se esbarrar nela ou alterara sua disposicao.

Alem desses preceitos, que, para utilizar os termos de Zin-berg, poderiamos chamar de "sancOes sociais", ha tambem aobservancia de "rituais sociais": padroes de comportamentoprescritos em relacao a aspectos do use "controlado" de subs-tAncias psicoativas, como os metodos de aquisicao e uso, a sele-(ao do meio fisico e social do seu consumo, as atividadesempreendidas sob seu efeito e as maneiras de evitar consequen-cias prejudiciais.4

Sob a rubrica de "aquisicao e administracao", lembra-mos que o Daime geralmente e produzido na Colonia 5000ou no Ceu do MapiA, no Acre, de onde e enviado para ospadrinhos das outras igrejas, que tern permissao do mandatA-rio maximo da seita para receber e distribuir a bebida sagrada.O Daime deve ser guardado respeitosamente na casa do padri-nho local, e, alem dele, somente dois ou tres adeptos pode-rAo lidar com o chA.

Corn excecao de alguns raros casos de enfermos autoriza-dos a tomar Daime em suas proprias casas, a bebida so deveser ingerida durante os trabalhos. Estes tern de ser presididospor um padrinho, ou alguem por ele designado, marcando-seo inicio e o fim com formulas e oracOes predeterminadas.

Durante os ritos, a quantidade de chA consumida varia deacordo com o tipo de trabalho. 0 despacho (distribuicao docha) e comumente realizado por um assistente do padrinho,mas a este quern determina o momento e a quantidade a serservida. Nos rituais mais comuns, normalmente cada partici-pante recebe dois tercos de cAlice da bebida a cada duas horas.

Em relacao ao meio fisico em que se dA o consumo, deve-se lembrar que o documento Normas de Ritual do CEFLURISespecifica as disposicoes arquitetonicas ideais para abrigar os

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120 EDWARD MACRAE

diversos tipos de trabalhos . Como a igreja de Sao Paulo aindae relativamente nova e dispoe de poucos recursos materiais,ha uma certa improvisacao nas suas instalacoes . Os hiniriossao realizados em salas emprestadas por adeptos, em aposen-tos na casa do padrinho , quando nao na igreja em construcao.

Recentemente conseguiu -se a permissao para o use deum sitio, nas cercanias de Sao Paulo, onde esta sendo cons-truida a igreja . No momento , os hinarios tem sido geralmenterealizados numa estrutura hexagonal coberta de sape, abertade todos os lados, possibilitando um contato proximo com anatureza, situacao condizente com as tetras de muitos dos hinosque falam do sol, da lua , das estrelas e da floresta.

O meio social em que se da o use da bebida tambem e regu-lamentado. Com excecao de alguns trabalhos de cura, os outrosritos sao franqueados a todos os fardados , ou seja, aqueles queconfirmaram oficialmente sua adesao as Santas Doutrinas, rece-bendo do padrinho local um distintivo: uma estrela de seispontas, ornada com uma aguia pousada sobre uma meia lua.Estes adeptos devem nortear suas vidas pelos princfpios dou-trinirios , assumindo o compromisso de nao faltar aos catorzehinarios oficiais do ano e a participar de todos os trabalhosvestindo a farda prescrita para a ocasiao.

Participantes eventuais, ou nao-fardados, precisam de per-missao especifica para cada trabalho . Essa permissao leva emconta que o participante esteja ciente dos principios basicosda seita, a necessidade de equilibrar a participacao masculinae feminina , e o cuidado para nao lotar demasiadamente o recin-to. Alem disso, a permissao para nao-fardados costurna valerapenas para os hinarios. Trabalhos de concentracao e de curasao geralmente reservados aos adeptos confirmados.

Os nao-fardados acabam se comportando de acordo comos parametros esperados , ja que, na palestra que antecede acerimonia, alem de s'er explicitado o comportamento que devem

ter, e feita uma prelecao sobre os efeitos do chi. Afirma-se queesses efeitos tem natureza essencialmente benefica e ensinam-se as melhores maneiras de lidar com mal -estares fisicos ou psi-quicos que venham a surgir durante a sessao. Alem disso, essesnovos participantes geralmente vem na companhia de adeptos

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mais experientes, responsaveis por sua apresentacao inicialao culto. Durante a sessao, eles podem exercer o papel de mode-los de conduta e de agentes de conforto e controle.

Ate a disposicao dos participantes dos trabalhos dentrodo salao e predeterminada. Como em todas as atividades daseita, e feita uma separacao, considerada fundamental, entreos homens e as mulheres. A partir de uma linha imaginaria queatravessa diagonalmente o salao e a mesa, o espaco e divididoem dois campos, e cada sexo deve permanecer no seu, tomandocuidado para nao penetrar no outro, "misturando as energias".

Dentro de cada campo, os participantes se alinham emfilas, obedecendo a criterios de altura (os mais altos atras) ede grau de comprometimento com a doutrina (os nao-farda-dos atras). Dividem-se casados e solteiros, e algumas igrejascontam com filas exciusivamente para criancas. Assim, obede-cendo a criterios razoavelmente objetivos, cada um pode deter-minar o lugar que the pertence e deve procurar manter-se neledurante todo o trabalho, cuidando para nao invadir o espacode seus vizinhos. As vezes, chama-se a isto de "se compor emseu Lugar", uma expressao que ocorre frequentemente nos hinos.

Em caso de cansaco ou de mal-estar, o participante terndireito de se ausentar durante tres hinos, apos os quais deveretornar ao seu lugar ou pedir permissao para prolongar a suaausencia.

Os adeptos acreditam que durante o bailado forma-se uma"corrente de energia", que circula pelo salao, tendo a mesacomo centro. Devern tomar cuidado para nao "corta-la" ou"bloquea-la". Assim, ao sair de seu Lugar, o participante devepercorrer um caminho predeterminado, sem atravessar nenhumadas filas. Tambem por isso, seu lugar nao deve ficar vago muitotempo; caso sua ausencia se prolongue, esse "buraco na cor-rente" deve set preenchido por outro participante, acarretandoas vezes uma complicada operacao de realocacao de varias pes-soas. Nos trabalhos em que os adeptos permanecem sentados,os criterios sao menos rigorosos, embora seja mantida a separa-cao entre homens e mulheres.

Assim, acima de tudo, sao rigorosamente controladas asatividades em que se engajam os individuos quando sob oefeito da bebida. Como ja vimos, isto sempre acontece sob

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a forma de um ritual religioso. Podem ser hinarios, em que agrande maioria dos participantes e obrigada a permanecerem lugar predeterminado, bailando por periodos que variamde seis a treze horas. Ou sao os trabalhos de concentracaoou de cura, que duram de duas a seis horas, com os participan-tes sentados, em concentracao silenciosa ou cantando umasegiiencia de hinos preestabelecida.

Se o trabalho for bailado, todos executam a mesma coreo-grafia, simples, e seus movimentos se harmonizam em tornodo ritmo marcado pelos instrumentos da pequena orquestraagrupada em volta da mesa , especialmente a batida dos mara-cas empunhados por muitos dos presentes. Se os participantesestiverem sentados, o comportamento e a postura fisica a seremmantidos tambem obedecem a prescricoes rigidas: a cabecafica erguida e as gesticulacoes sao reduzidas ao minimo. Sejaqual for o tipo de trabalho, deve-se evitar qualquer especiede perturbacao aos outros: e vedado conversar, tocar ou ateolhar demasiadamente para os demais participantes.

Embora, Como ja se sugeriu , a disposicao fisica dos partici-pantes dos rituais, a composicao estetica dos simbolos religio-sos e a letra dos hinos cantados sirvarn para manter viva namente de todos a ordem solene apropriada para essas ocasioes,ha individuos designados pelo padrinho para manter a ordeme assegurar o correto desenrolar do rito. Sao os chamados "fis-cais", tambem organizados hierarquicamente e encarregadosde varias tarefas especificas, que devem tender mais a assisten-cia aos que passam mal e facilitacao das atividades que ao poli-ciamento repressivo. Isto, porem, torna-se necessario em cer-tas ocasioes, geralmente em relacao a individuos inexperientesque, sob o efeito do cha, venham a quebrar a ordem vigente,adotando formas de comportamento consideradas perturbado-ras ou rebeldes.

Portanto, o consumo do Santo Daime e altamente con-trolado, sendo revestido de valores e regras de conduta religio-sos muito semelhantes aos do catolicismo popular, que saoconstantemente reiterados e relembrados - de forma expli-cita nas oracoes e nos hinos e implicita na estetica religiosaque organiza a composicao do espaco, dos simbolos e dos par-ticipantes. Reforcando esses valores e implementando-os na

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pratica, ha prescricoes de comportamento que chegam a minu-cia de determinar a postura corporal dos participantes e cujocumprimento e observado pela equipe de fiscais. Assim, mesmoque a acao da ayahuasca venha a provocar um momentaneoafrouxamento dos conceitos e regras de comportamento social,responsaveis pelo senso de identidade, o indivfduo tem a seufavor uma serie de mecanismos para orienta-lo, evitando quese prejudique psfquica ou socialmente.

Embora, em dltima instancia, nao discorde dessas observa-coes, o antrop6logo Nestor Perlongher prefere utilizar outrosargumentos para interpretar o que acontece. Critica a nocaode "controle ritual" da utilizacao de psicoativos, que the pa-rece demasiadamente "exterior". Prefere tomar emprestadade Nietzsche a ideia da tensao entre o dionisiaco e o apolineoque leva o homem no movimento da danca e do canto "a sesentir Deus". Para Perlongher, o culto do Santo Daime dauma forma apolinea a forca extatica que desperta e suscita,impedindo-a assim de se dissipar em vas fantasmagorias. Acorn-panhada de diversas restricoes comportamentais, impede queo trabalho com essa forca descambe para o lado potencial-mente escuro e destrutivo que a cultura branca ocidentalgeralmente condena.5

Perlongher afirma que no se trata do dionisiaco no sen-tido de um carnaval pagao ou de um excesso voluptuoso, ediz que a experiencia dionisfaca, em lugar da individuacao, asse-gura justamente uma ruptura com o principium individuatio-

nis, assim como uma reconciliacao total do homem com a natu-reza e os outros homens, numa harmonia universal e num sen-timento mistico de unidade; em lugar de uma consciencia desi pr6pria, ela significa uma desintegracao do eu, que e superfi-cial, e uma emocao que abole a subjetividade ate o ponto deum total esquecimento de si.

Algumas pessoas no plenamente familiarizadas com as pri-ticas da seita ainda questionam a inocuidade desse use ritualda ayahuasca. Continuam receando que o consumo do SantoDaime seja um fator que tende a levar os indivfduos a loucurae a sociedade ao desregramento. Cabe aqui lembrar mais deuma vez as observacoes do grupo de trabalho estabelecidopelo Confen, que considerou os adeptos do culto pessoas feli-

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-IT

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zes e tranquilas, seguidoras de padroes morais e eticos de com-portamento semelhantes aos existentes e recomendados emnossa sociedade, "por vezes ate de urn modo bastante rigido".

Buscando uma elucidacao para essa rigidez, recorro aCouto, para quern os rituais do Santo Daime tendern a reforcaros mecanismos estruturadores da sociedade. Para ele, nessesrituais sao reforcados dois elementos estruturantes: a coesaohierarquica e a harmonia ecol6gica corn a floresta, atraves damobilizacao de entidades protetoras que tern origem naquele

meio.6A participacao regular nos rituais do Santo Daime freqUen-

temente leva a notaveis mudancas entre seus seguidores. Estessao muitas vezes recrutados entre individuos socialmente estig-matizados, por sua condicao pauperizada, como na Amazonia,ou por sua adesao a valores da contracultura, como use de dro-gas e o livre exercicio da sexualidade, mais caracteristicos dosgrupos do Sul do pals. Para todos, os rituais apresentarn umavalorizacao e incitacao a autodisciplina, possibilitando direcio-narern suas vidas e tornarem-se mais eficazes nas atividadesdo dia-a-dia.

Essa constatacao encontra consonancia nas ideias de Tur-ner, para quern os rituais periodicamente convertern o obriga-t6rio no desejavel, colocando as normas eticas e juridicas dasociedade em contato corn fortes estimulos emocionais. Suasconsideracoes se adequam muito bern ao caso das cerimoniasdo Santo Daime:

No ritual em acao, corn a excitacao social e os estimulosdiretamente fisiol6gicos - mt sica, canto, danca, alcool, dro-gas, incenso -, poderiamos dizer que o simbolo ritual efetuaum intercambio de qualidade entre seus dois p6los de sentido:as normal e valores se carregam de emocao, enquanto as emo-coes basicas e grosseiras se enobrecem atraves de seu contatocorn os valores sociais.

0 fastidio da repressao moral se converte no "amor pelavirtude".7

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Notas

1. Weil 1986:26.2. Xiberras 1989:132-159.3. Zinberg 1984:17.4. Zinberg 1984:5.5. Perlongher 1990:26.6. Couto 1989:133 e 134.7. Turner 1980:33.

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6 - Dos solitarios vegetalistas ao"xamanismo coletivo"do Santo Daime

O xamanismo, tambem conhecido como pajelanca, e a ins-tituicao religiosa mais importante que o caboclo da Amazoniaconservou da cultura amerindia. Apesar de ter adotado ora-coes cristas, colocando santos catolicos na categoria de espfri-tos familiares, ao lado das entidades sobrenaturais da agua ouda mata, o xamanismo ainda e um dos legados culturais indige-nas menos modificados. I

No xamanismo praticado pelos adeptos do culto do SantoDaime e possivel detectar inumeros resquicios das tradicoesindigenas e caboclas.

Conforme ja foi mencionado, o individuo, as vezes cha-mado Dom Crescencio, a quem se atribui a iniciacao de MestreIrineu no use da ayahuasca, provavelmente era um vegetalistaque tinha muito em comum com aqueles estudados por Lunae Dobkin de Rios. Nessa comparacao, Mestre Irineu se asseme-lha aos xamas mais urbanizados, em cujas crencas e praticas ainfluencia indfgena convive intensamente corn elementos dastradicoes catolica, espirita, esoterica e africana. 0 proprio titulode Mestre, que the foi popularmente outorgado, lembra o maes-

tro dos ayahuasqueros peruanos, sendo empregado tambempelos usuarios da bebida em outra seita brasileira, a Uniao doVegetal, cujo primeiro lider era conhecido como Mestre Gabriel.

Os relatos da iniciacao de Mestre Irineu contem os elemen-tos basicos presentes na tradicao xamanica, em especial o seuretiro solitario na floresta, onde seguia uma serie de rigorosos

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preceitos de dieta e conduta. Embora o espaco de tempo nor-malmente reportado para seu retiro seja curto (somente oitodias, em comparacao com o minimo de seis meses dos vegeta-listas estudados), devemos lembrar de como o seringueiro eraobrigado a passar muito tempo sozinho na mata e que, apesarde suas primeiras experiencias com a bebida se darem porvolta do final da decada de 10 ou inicio da de 20, foi somentenos anos 30 que ele se sentiu apto a realizar trabalhos publicos,desenvolvendo entao a sua doutrina. Portanto, talvez seja justi-ficado especular que seu periodo de iniciacao tenha se esten-dido por diversos anos e que, na decada de 20, ele tenha pas-sado varios outros periodos de retiro na mata aprendendo ossegredos da bebida que chamou de "Daime".

Para o caboclo amazonico, a floresta e as aguas dos riossao os dominios de uma grande variedade de seres espirituaismalignos, os anhangas. Existem tambem espiritos protetoresde determinadas especies animais, vegetais ou acidentes geo-graficos e rios. Sao geralmente concebidos como espiritos femi-ninos, chamados de "maes", devendo ser propiciados de diver-sas formas por cacadores, pescadores ou outros que por algumarazao se embrenhem em seus dominios. Eles ocupam um lugarna religiosidade cabocla, mas embora possam ser propiciadosem certas ocasioes, nao recebem culto. Este e reservado aossantos concebidos como provedores dos meios de atingir obem-estar, boas colheitas, boa saude etc.

No caso das "plantas professoras", sao as suas maes asverdadeiras donas do conhecimento que e passado aquelesque sabem usa-las. Uma das principais substancias vegetaisdotadas de mae e a ayahuasca. Portanto, ao ter miracoesonde uma "senhora", a "Rainha da Floresta", vinha the entre-gar seus "ensinos", Mestre Irineu mantinha-se estritamentedentro da tradicao dos xamas ayahuasqueros. Mas Como cabo-clo, fortemente influenciado pelas tradicoes ocidentais e cris-tas, ele a percebe nao como uma entidade indigena, mascomo o grande arquetipo catolico da maternidade, NossaSenhora da Conceicao, largamente cultuada em toda a regiao.Dessa forma, a tradicao de origem indigena e paga pode serincorporada ao culto aos Santos, tornando-se tambem maislegitima e socialmente aceitavel.

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A adocao da cruz de Caravaca, sob a denominacao de Cru-zeiro, obrigat6ria em todos os trabalhos da seita, e mais umimportante esteio simb6lico a cristianizacao das antigas tradi-c6es ayabuasqueras. Esta versao da cruz de Cristo, emborapouco comum nas cerim6nias cat6licas, jA era bastante conhe-cida pelo povo amazonico. Em toda a America Latina a geral-mente associada a magia e ao esoterismo, devido ao use que ospraticantes dessas artes fazem da coletanea de orag6es que levaseu nome e que tern sua imagem estampada na capa.

Talvez a principal consegiiencia desse processo tenha sidoa incorporacao dos valores basicos da etica crista, afastando aantiga ambivalencia moral que dificultava a distincao entre vege-talistas benignos e malignos. Assim, uma doutrina ensinadapela Virgem Mae nao teria lugar para o use de virotes e outrosmetodos magicos de agressao usados pelos vegetalistas. Talvezem decorrencia desse processo de cristianizacao, o trabalhoxamanico daimista tenha perdido muitas de suas caracteristi-cas de luta contra determinados espiritos ou feiticeiros inimi-gos. Adotou, em vez disso, ideais mais difusos e generalizantesde "luta pelo Bem", alfvio de sofrimento etc. Nesse caso, a pro-tecao do xama passava a depender mais de sua retidao morale de sua obediencia aos preceitos da boa conduta do que dearmaduras defensivas como as arkanas dos vegetalistas.

Os virotes e a baba mAgica yachay, usada pelos vegetalis-tas para guards-los ou retirA-los do corpo dos pacientes, saoconcebidos como feitos da mesma substancia, simultanea-mente material e espiritual. A substancia espiritual tambempode ser o conhecimento ritual que dA forca espiritual ou ateo pr6prio espirito. Assim, o termo generico para xama em qui-chua e yacbak, que significa "dono de um yachay".2 JA no pro-cesso de cristianizacao, esse conceito complexo e moralmenteambivalente que inclui a ideia de ser "dono de um espirito"parece ter sido substituido pelo conceito da protecao de cer-tas entidades santas, como a Virgern Mae, o Pai Celestial, JesusCristo e outros seres divinos da corte celestial. E a eles que saodirigidos os pedidos por forca, firmeza, luz, ensinamento eamor, com os quais o daimista realiza seus trabalhos.

Seria temerario a esta distancia atribuir causas ou inten-cOes especificas a certos aspectos da doutrina ensinada por

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Mestre Irineu. A dificuldade torna-se especialmente grandedevido a natureza inspirada dessa obra, nao se desejando aquisugerir que tenha decorrido de um planejamento consciente,voltado exclusivamente a obtencao de certos resultados mate-rialmente vantajosos. E mais provavel que as doutrinas sim-plesmente sejam fruto da vivencia e percepcao religiosa deMestre Irineu. Se ele veio a obter o apoio de certas autorida-des, isso reflete a adequacao dos seus ensinos as necessidadesdo meio. Deve-se tambem cuidar de nao exagerar a respeitodesse apoio, lembrando que em outras ocasioes ele e sua comu-nidade de adeptos tambem foram alvo de perseguicoes oficiais.

Embora os trabalhos da seita mantenham-se dentro dosparametros das tradicoes xamanicas, vale retomar a observa-cao, feita por Couto, de que aqui desenvolve-se o que ele deno-mina de "xamanismo coletivo". Embora o comando dos traba-lhos seja exercido por xamas mais experientes, a atividadexamanica no e exclusividade de alguns iniciados, e todos osparticipantes desse sistema religioso sao considerados aprendi-zes de xama ou mesmo xamas em potencial. A pratica ritual ede certa forma um aprendizado dessa arte, e, a parte a vocacaoxamanica, todos os que participarn do ritual podem manifestaressa qualidade, considerada latente na natureza humana.3

Talvez seja esse aspecto democratico do Daime, que abrea todos os interessados o acesso aos seus segredos, a razao dofascinio que a seita vem exercendo junto a um novo contin-gente de adeptos, bastante diferente dos habitantes da perife-ria de Rio Branco, onde se formaram os primeiros ndcleos. 0antrop6logo Luis Eduardo Soares informa que, desde 1988,sob sua coordenacao, pesquisadores do Instituto de Estudosda Religiao - Iser, do Rio de Janeiro, vem estudando um feno-meno que convencionaram chamar de "nova consciencia reli-giosa". Esta nova consciencia tem se mostrado significativado ponto de vista sociol6gico e antropol6gico, na medida emque problematiza os rumos do desenvolvimento cultural damodernidade, de um modo mais amplo, e da sociedade brasi-leira em particular.4

Resumindo a caracterizacao que ele faz desse fenomeno,pode-se dizer que abrange individuos das camadas medias urba-nas com alto grau de escolaridade, representativos de trajet6-

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rias identificadas com o programa etico-politico moderno tfpico,"liberados", " libertarios ", "abertos" e crfticos da tradicao,especialmente do "fardo repressivo" das tradicoes religiosas.Estes sujeitos exemplares do modelo individualista -laicizantevem se mostrando crescentemente atraidos pela fe religiosa,pelos misterios do extase mfstico, pela redescoberta da comu-nhao comunitaria , pelo desafio de saberes esotericos , pela efi-cacia de terapias alternativas e da alimentacao " natural". 0holismo mfstico-ecologico substitui para eles o clamor das revo-lucoes sociais e sexuais.

Conforme ja mencionei no capftulo 3, a partir da decadade 70 , mochileiros apresentando muitas dessas caracterfsticaspassaram a frequentar a Colonia 5000. Eles tiveram papel deci-sivo na difusao dos ideais de Mestre Irineu , de Padrinho Sebas-tiao e na criacao de centros daimistas em varias areas urbanase rurais do Sudeste brasileiro, congregando um novo tipo deadeptos, provenientes das camadas medias urbanas, relativa-mente jovens e cultos . Embora mantivessern os rituais quaseinalterados , cantando os mesmos hinarios, as diferencas decontexto ffsico e social acabam se refletindo em certas praticase concepcoes.

Uma diferenca importante e a forma de conceber e se rela-cionar com a natureza . Como ja se viu , grande parte dos anti-gos fregiientadores do Alto Santo e da Colonia 5000 tinhamexperiencia direta de morar perto da floresta , da qual geral-mente dependiarn para sua sobrevivencia . Dessa vivencia, guar-davam a memoria do isolamento da sociedade maior, da conse-giiente necessidade de auto-suficiencia e da organizacao comu-nitaria dos povoados , onde era forte a influencia das irmanda-des religiosas.

A mata era simultaneamente ameacadora e dadivosa, exi-gindo de quern vivia proximo a ela a aprendizagem de muitosde seus segredos . Isto poderia incluir desde o conhecimentodetalhado das diferentes especies vegetais e animais que a com-punham quanto a maneira correta de aplacar os espfritos oubichos visagentos que a habitavam . 0 contato dessa populacaocom os indfgenas era complicado . Como civilizados , conside-ravam -se superiores . Mas reconheciam a riqueza do conheci-mento indfgena sobre a natureza , e constantemente recorriam

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a ele, adotando muitos elementos das culturas nativas. Na ausen-cia de qualquer infra-estrutura mddica, as praticas xamanisticas,por exemplo, eram frequentemente a t nica possibilidade decura de que dispunham.

0 processo de urbanizacao teve forte impacto sobre essesindividuos. Surgem diferencas de classe, as irmandades perdemseu prestigio. Certas crencas, que na mata constituem a expres-sao de realidades do caboclo, tornam-se distantes ou viramsupersticao de pouca importancia na cidade. Monteiro da Silvasitua o culto do Santo Daime nesse contexto e o considerauma espdcie de rito de passagem entre duas culturas.

JA o adepto proveniente das camadas mddias urbanas doSudeste tem outra visao. Para ele, a floresta e a natureza, emseu estado bruto, nao preparado para o lazer, sao quase desco-nhecidas. Frequentemente educado em boas escolas, dentrode padroes racionalistas e iluministas, ignora completamentea cultura amazonica e suas concepcoes sobre o sobrenatural.Em vez de seres da floresta, seu repert6rio espiritual d povoadopor discos voadores, seres extraterrestres, cristais, piramides,chamas violetas, lamas tibetanos, iogues, orixas, os ensinamen-tos de Don Juan relatados por Carlos Castaneda, e outros exo-tismos. A natureza d concebida como intrinsecamente boa,contanto que se respeite o "equilibrio ecol6gico"; e os indiossao os bons selvagens, que detem segredos capazes de salvaro planeta.

Suas concepcoes romanticas e idealizadas podem ser enten-didas como frustracao e desgaste resultantes da convivenciacom uma cultura altamente tecnologizada, mas incapaz de res-ponder adequadamente as grandes questoes existenciais quea vida sempre apresenta no confronto com a doenca, a dor, adesagregacao, a inseguranca e a morte. Por isso, a doutrinado Santo Daime pode se apresentar como muito atraente. Con-forme diz Soares:

"0 modelo parece forte, atraente, sedutor, mantdm did-logo com tradicoes teol6gicas, apesar da assumida filiacao aocristianismo, com as incertezas do tempo, com as fragilidadese os grandes sonhos humanos; aldm disso, opera no registrosensivel, facultando uma experidncia extatica de tipo muito

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particular e significativamente sintonizada com o estoqueconhecido de vivencias das geracoes que ousaram alterar, pormeios artificiais , o fluxo da consciencia no afa de buscar, entreoutros fins - e nao raro - o que os anos 60 denominaramde `autoconhecimento' ".5

O culto e a frequencia com que esses adeptos urbanos doSanto Daime falam em iniciacao supre para alguns deles a neces-sidade de se distanciar da sociedade por algum tempo paramelhor compreende -la. Esse afastamento ocorre de certa formadurante todos os rituais , quando os efeitos da bebida, o cantoe o bailado instauram durante algum tempo a vivencia de umaoutra realidade.

Mas os que desejam aprofundar esse processo acabam rea-lizando uma viagem ao Ceu do Mapia, no que e, muitas vezes,o primeiro contato com a Amazonia. As distancias a seremtranspostas , a precariedade dos meios de transporte, a acomo-dacao pauperrima e a estranheza do meio amazonico tornamesta experiencia um verdadeiro ritual iniciatico . 0 ponto altoe a participacao em cerimOnias , tomando Daime ao lado dosgrandes sabios da tradicao , no coracao da floresta . Muitos des-crevem ter a impressao de estarem num mosteiro, onde todosos atos ou pensamentos sao voltados ao mundo espiritual. 0mundo do dia -a-dia e abandonado quando se inicia a viagemde canoa , de aproximadamente dois dias de duracao . Sao rarosos que nao se sentem profunda e irremediavelmente mudadospela experiencia.

Os daimistas do Sul tem uma forma de perceber a florestaque e eivada de um romantismo prbprio ao estranhamento,enquanto que, para os daimistas habitantes da regiao , a florestae tambem fonte de dificuldades com que eles se defrontamno seu dia-a-dia . Participando de uma expedicao ao Mapia,em 1989, observei detalhes que mostram essas diferencas.Durante o percurso realizado no rio Purus, por exemplo, obarco era constantemente rodeado por botos . Os sulistas, quea cada momento se manifestavam maravilhados com a natu-reza que os cercava, ficavam extasiados com esses animais.Sua admiracao tornava -se ainda maior ao avistarem o boto cor-de-rosa. Ja entre a populacao cabocla , estes animais sao consi-

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derados especialmente nefastos, recorrendo-se com frequen-cia ate a trabalhos xamanicos para combater o que perceberncomo sendo sua acao maligna. Nao disponho de depoimentosde velhos daimistas amazonicos sobre esse mamffero aquatico,mas parece razoavel supor que, compartilhando de outras cren-cas regionais, tambem eles devern sentir uma certa indisposi-cao contra o boto.

Outro exemplo de diferenca de atitudes pode ser detec-tado em relacao a dieta alimentor. Os sulistas, em grande parteadeptos da alimentacao natural, ficavam quase escandalizadoscom o use no Mapia de arroz branco, acucar refinado, enlata-dos, cigarros etc. Exceto pelo fato de abjurarem o alcool, oshabitantes locais tendem a seguir os padroes alimenticios vigen-tes entre os caboclos da regiao. Estes sao marcados pela escas-sez generalizada de mantimentos e pelo consumo regular dearroz, feijao e mandioca. Mas, havendo disponibilidade, rara-mente recusam alimentos processados pela tecnologiamoderna. Quando os daimistas do Sul tentam ensinar-lhesoutros conceitos alimentares mais "naturais", sao fregiiente-mente ridicularizados. Naquela ocasiao, corria a historia deque no Mapia o termo para qualificar alguem como irritanteera "macrobiotico".

Mestre Irineu era, antes de tudo, conhecido como pode-roso curador, e este aspecto e de importancia central na dou-trina que ensinou. Em todas as igrejas sao realizados regular-mente trabalhos de cura, e participar das "equipes de cura"muitas vezes e tornado como sinal de presugio entre os daimis-tas. Como ja se disse, a realizadoo de curas e, porem, uma habi-lidade individual distribuida de forma bastante heterogeneaentre a populacao. Aqueles que a possuem em grau elevado fre-quentemente realizam essa atividade de modo idiossincratico,utilizando rezas especificas, ou ate metodos aparentemente inu-sitados - como o empregado pelo Padrinho Sebastiao, quandofez urn rapaz acometido de um surto de violencia limpar a car-caca de um boi com o auxilio de uma perigosa faca.

Porem, na rotina do dia-a-dia, os rituais de cura realizadosnas diversas igrejas daimistas seguem de perto as normas deritual do CEFLURIS. Os resultados sao geralmente pouco espe-taculares, servindo mais como fonte de conforto e de estimulo

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ao paciente. Em certas ocasioes, no ha nem mesmo umpaciente especifico, e diz-se que o trabalho a para assegurar obem-estar coletivo.

Essas concepcoes fluidas, pouco voltadas para resultadosde eficacia imediatamente aparente, no desestimulam os adep-tos da seita, como alguns poderiam imaginar. De fato, elas estaoem sintonia com as concepcoes de corpo e saude correntesentre os adeptos da chamada "nova consciencia religiosa".Para esses individuos, o corpo, a psique e o espirito estao inex-tricavelmente articulados, e o conceito de saude inclui elemen-tos nem sempre percebidos como ligados ao funcionamentodo corpo humano, como por exemplo escala de valores,maneira de se relacionar com os outros ou com o meio ambiente.Entre essas pessoas, a saude e concebida como um equilibriocom a unidade harmonica do todo, quase sinonimo de virtude,beleza e verdade.6

Assim, no se espera necessariamente um resultado ffsicodetectavel de irnediato nessas "sessoes de cura". Seu funciona-mento e concebido como analogo a outras formas "alternati-vas" de tratamento, como o use de cristais, piramides, massa-gens psiquicas etc. Ressalte-se tambem que as lidexancas daseita raramente pregam essa como sendo a unica via de trata-mento a set utilizada, admitindo que o paciente siga concomi-tantemente um tratamento Segundo as tecnicas de medicinaoficial.

Mais uma vez destacam-se as diferencas individuais entrexamas ayahuasqueros. Os daimistas com uma maior familiari-dade com as tradicoes da floresta frequentemente utilizamervas medicinais como auxiliares no tratamento que prescre-vem a seus clientes. JA os mais urbanizados as vezes so tem opr6prio Daime como recurso proprio a.oferecer.

Em relacao a questao da cura, outra diferenca entre asmodernas praticas daimistas e o xamanismo caboclo dos vege-talistas e a classificacao dos males que podem se abater sobrealguem. Tradicionalmente, a ayahuasca era utilizada comoinstrumento de diagnostico, para determinar se a causa dadoenca era natural ou magica. Sendo natural, receitava-se umtratamento a base de plantas medicinais. Se a causa fossemagica, o recurso a ayahuasca seria auxiliar num trabalho

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xamanistico desempenhado diretamente no mundo espiri-tual, para desfazer feiticos e combater os agentes responsa-veis por eles.

Atualmente , entre a populacao urbanizada adepta do SantoDaime, sao em grande escala aceitas as categorizacoes oficiaisdas doencas e suas causas diretas. Essa populacao tern, em suamaior parte, acesso aos servicos de atendimento medico, e fre-gUentemente recorre a eles. 0 proprio Padrinho Sebastiao rece-beu tratamento medico varias vezes, viajando em diversas oca-sioes para o Rio de Janeiro com essa finalidade.

Muitos daimistas , enquanto individuos urbanos, cultos egeralmente dotados de atitudes positivas para com a naturezae a humanidade em geral , nao acreditam muito na atuacao male-vola de entidades espirituais hostis e tampouco em feiticos fei-tos para prejudice-1os. Acreditam, porem, em reacoes psicosso-maticas, e sao capazes de entender nesse sentido os versos deurn dos hinos fregiientemente cantados em trabalhos de curaque dizem:

"As doencas que aparecerE disciplina para quern faz por merecer".7

Nesse contexto, embora o use do Daime perca um poucode sua especificidade diagnosticadora , passa a servir como ins-trumento na busca de uma restituicao do equilibrio do pacientecom o cosmos, na esperanca de evocar, dessa forma, forcasautocurativas que estariam latentes em todos.

Cabe aqui chamar atencao para outra manifestacao dainfluencia de concepcoes da classe media urbana que atual-mente exercem influencia na seita . Trata-se da questao do usedo tabaco. Entre os daimistas do Sudeste brasileiro, o habitode fumar cigarros tende a ser visto com grandes reservas.Embora nao seja proscrito , se durante um ritual alguem dese-jar fumar , deve faze -lo em local afastado , atribuindo -se as vezesa fumaca produzida um efeito contrario ao do incenso abun-dantemente usado nessas ocasioes. Menos malvisto que oalcool, o tabaco tornou-se porem, na concepcao de muitosdaimistas, quase uma antitese do Daime. Porem , vale lembrarque em numerosos relatos o use traditional da ayahuasca se

f

1

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DOS VEGETALISTAS AO "XAMANISMO COLETIVO" 137

da em conjunto com o tabaco . Conforme ja se viu , a iniciacaodos vegetalistas acontece geralmente pelo dominio do uso daayahuasca e do tabaco . Entre eles o tabaco e fumado na formade cigarros durante as sessoes de cura, e fregiientementedesempenha papel importante no preparo da bebida , quandosua fumaca a ritualmente assoprada sobre o liquido que estasendo cozido.

Mesmo dentro da tradicao do Santo Daime, o tabaco teveum papel importante . Conforme relata o antropologo Monteiroda Silva:

"Os informantes testemunham o uso do tabaco (Nicotinatabacum ) por Mestre Irineu para fins terapeuticos topicos edurante o ritual de consumo . Seu uso, portanto, relacionadocom a imemorial historia religiosa de toda a Amazonia, e per-manente, nem sempre ocupando o lugar principal da cerimo-nia. Entretanto , na ColOnia 5 000, seu uso vem se intensificandonas duas especies de aplicacao . Conta um informante (ChicoCorrente ) que utiliza o tabaco torrado na forma de rape,quando realiza o 'trabalho de viagem a floresta ', pois o tabacoserve de equilibrio dos seres que compoem a Corte da Rainhada Floresta . Trata -se de uma planta sagrada trazida 'por curan-deiros que, antes de desencarnarem , ja o utilizavam nas aldeias'.Meu informante diz que seus curandeiros aparecem para ins-trui- lo como usar o tabaco".s

Nunca presenciei esse tipo de uso em nenhum dos rituaisde que participei . Tambem nao discuti o assunto quandoestive na Colonia 5000 ou no Mapia, pois desconhecia entaoo teor do artigo citado . Ao levantar a questao com daimistasdo Sudeste do pals, tenho notado que tambem eles geral-mente desconhecem o assunto . Mas, apos um momento deperplexidade , argumentam que o tabaco usado em cigarroscomerciais seria diferente devido ao tratamento qufmico quesofrem . Nao dispondo de opinioes emitidas pelos daimistasda Amazonia , torna-se impossivel fazer um julgamento defini-tivo sobre a questao. Vale lembrar , porem , que a preocupa-cao com os efeitos negativos decorrentes de tratamentos qui-micos sao uma caracteristica do pensamento de certos estra-tos da classe media urbana , que possivelmente seriam recebi-

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dos na Amazonia com o mesmo ceticismo reservado para ainsistencia na adocao de uma dieta "natural".

Para o antropologo acostumado ao relativismo cultural, aquestao da dieta e de outros tipos de preceitos comportamen-tais deve sempre ser vista dentro de um contexto mais geral.Vemos assim que entre todos os povos que a usam, certos tiposde alimentacao sao considerados completamente inadequadospara quem for tomar ayahuasca. Porem, ao se examinar essasprescricoes detalhadamente, torna-se quase impossivel encon-trar um consenso (a proibicao ao use da carne de porco e umadas raras unanimidades). Isso pode levar a hipotese de que aexistencia de regras e, neste caso, mais importante que seuconteudo, ou seja, tomar essa bebida deve sempre ser uma ati-vidade especial que foge da rotina do dia-a-dia.

Esta diferenca deve, portanto, ser marcada de maneira aatingir intensamente o indivfduo, nao so em termos de sua com-preensao racional, mas tambem em niveis mais basicos e fisio-logicos. Uma boa maneira de conseguir isso seria atraves daadocao de uma diets especial. Outra forma igualmente funda-mental e a mudanca nos padroes de comportamento sexual.Talvez isso ajude a entender a informacao de Couto, de que,segundo alguns de seus informantes, inicialmente os seguido-res de Mestre Irineu ainda tomavam cachaca e frequentavamprostitutas.9 Isso o leva a especular que o interdito sexual detres dias antes e tres dias depois e a abstinencia de alcool, quefazem parte do preparo recomendado aos que vao ingerir abebida, tenha surgido como um meio de afastar os seguidoresda bebida e da vida mundana.

Provavelmente as intencoes do fundador da doutrina iamalem do simples moralismo:10 ao perceber que esta era umadas principais alteracoes dos padroes de vida e de identidadecotidianos que se poderia exigir, ja que esse comportamentoera central as nocoes correntes na epoca em relacao a virili-dade e a livre expressao individual. Vale ressaltar que, ate hoje,seguir esses preceitos se apresenta como uma grande dificul-dade, e muitos daimistas so logram compreende-los e aceita-los plenamente apos tomarem a bebida muitas vezes.

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Notas

1. Galvao 1976:137.2. Luna 1986:112.3. Couto 1989:221.4. Soares 1990:265.5. Soares 1990:270.6. Soares 1990:266.7. Os padroes gramaticos dos hinos refletem sua origem popular e rara-

mente seguem a norma culta.8. Monteiro da Silva 1985:11.9. Couto 1989:57.

10. A importancia da precaucao contra o abuso do alcool entre a popula-cao cabocla pode set avaliada a partir da observacao dos indios colombia-nos habitantes do Vale do Sibundoy que atd a ddcada de 60 detinham umamplo saber a respeito do use de plantas medicinais e entebgenas. Atual-mente, devido a influ@ncia do homem branco, o alcoolismo impera nessaregiao, e os antigos rituals foram degradados, tornando-se "arapucas paraturista". Nessas ocasioes, junto com a ayabuasca bebe-se aguardente, pro-vocando embriaguez e mal-estar. Ver Well 1980:99-131.

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Conclusao

Neste trabalho, foi visto que a origem das praticas e con-cepcoes do Santo Daime remontam a antigas tradicoes dospovos indigenas deste continente. Viu-se tambem que MestreIrineu teria aprendido os segredos da bebida com alguem datradicao dos vegetalistas, pessoas que ainda hoje praticam ocurandeirismo entre a populacao mestica da Amazonia peruana.

Mestre Irineu, porem, vinha de um contexto um poucodiferente. Era um negro brasileiro, sem nenhuma ascendenciaindigena. Embora familiarizado com a mata, passou muitotempo de sua vida na periferia das areas urbanas do Acre. Mas,como diz Chaumeil, o carater nao-dogmatico e interrogadordo xamanismo facilita a incorporanao progressiva de novosmodelos nos seus quadros conceituais tradicionais.I Assim,em resposta a uma realidade sociocultural, foram introduzidasimportantes mudancas conceituais e praticas. A principal delastalvez tenha sido a enfase dada a elementos de origem crista,incorporando seu panteao e, mais importante, a sua erica.

Atendendo a uma clientela vinda das camadas pobres daregiao de Rio Branco, Mestre Irineu exercia uma influtnciareconfortante e asseguradora. Os rituais que presidia manti-nham-se na tradicao xamanica do use de enteogenos, em queestes nunca eram utilizados com fins recreacionais, servindoexclusivamente para estabelecer contato com o sagrado. Nesseprocesso, em vez de proporcionar um escape das pressoes dodia-a-dia, acabava por validar e reafirmar os valores culturaisvigentes em seu meio.

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Mais recentemente, a doutrina do Santo Daime tern sidodifundida por outras areas do pals, conquistando adeptos, fre-quentemente jovens adultos, em camadas sociais mais privile-giadas e portadores da chamada nova consciencia religiosa.Tal difusao tem provocado reacoes preocupadas e ate represso-ras, como ocorreu no caso da tentativa de proibicao do usoda bebida. Alega-se que os seus efeitos a Longo prazo sao desco-nhecidos, podendo acarretar males fisicos e psiquicos, e con-tribuir para a desintegracao social.

Em resposta, estudiosos do assunto tern demonstrado cornfregiiencia que o uso dessa bebida ocorre num contexto ri-tual, dotado de uma etica bastante conservadora e privile-giando entre seus objetivos uma melhor integracao do indi-viduo ao seu meio fisico e social. Quanto a possiveis efeitosnegativos sobre a saude decorrente do uso a Longo prazo,tem-se ressaltado repetidamente o vigor fisico e psiquicoexcepcional dos xamas, mesmo em sua velhice. Constata-seuma ausencia de problemas que possam ser atribuidos direta-mente ao uso da ayahuasca entre as populacoes adeptas dasseitas que a cultuam.

Quando tais posicoes tornam-se dificeis de refutar, algunscriticos mudam seus argumentos, passando a considerar abebida admissivel na Amazonia, "entre os indios", mas ale-gando que as sociedades civilizadas e urbanizadas nao dispoemdos mecanismos culturais necessarios para o controle do uso.

A ignorancia que tal visao demonstra a respeito das popula-coes amazonicas muitas vezes parece ser decorrente de umapostura de descaso corn os aspectos socioculturais da questaoe o privilegiamento exclusivo dos toxico-farmacologicos. Co-mentando o parecer produzido pelo Confen em 1992, quenovamente dava enfase aos aspectos psico-socioculturais douso ritual da ayabuasca, o medico e deputado federal JoseElias Murad, por exemplo, fez constar dos anais da Camarados Deputados urn officio em que criticava aquele documen-to.2 Suas criticas sao todas de natureza farmacologica, e demons-tram urn pensamento bastante estereotipado quando se voltapara consideracoes de cunho mais antropologico. Assim, elese diz partidario de nao interferir no uso cultural, folcloricoe/ou religioso dos nativos (sic) da regiao amazonica, em cujas

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CONCLUSAO 143

tradicoes qualquer proibitivo poderia significar um processode aculturacao, alem das dificuldades intransponiveis de talprocedimento.

"Mas", prossegue Murad, "daf partir para a afirmativa deque a beberagem 'Cha do Santo Daime' nao a alucinOgena,sendo um produto inofensivo e que deve permanecer liberadoe nao listado entre as drogas psicotr6picas vai uma grande dis-tancia. "

Esse tipo de argumentacao ja foi refutado em varias oca-sioes, inclusive pelo relat6rio de 1987, apresentado pelo grupode trabalho do Confen que estudou a questao. La, por exem-plo, mostrou-se que, mesmo nao se encontrando na cidadecertas atividades pr6prias ao meio rural, a conversao a doutrinado Santo Daime pode levar a praticas rituais e de vida que guar-dam as caracteristicas basicas das comunidades religiosas ama-z6nicas, suprindo nesse contexto suas necessidades espirituaise materiais.

Tentar restringir o use ritual da ayabuasca aos habitantesda floresta amazonica seria o equivalence a proscricao das ceri-monias religiosas mais importantes das diversas seitas ayabuas-queras, todas como o Santo Daime, de natureza predominan-temente urbana. Alm de ter um efeito contraproducente deenfraquecer as estruturas centralizadoras que tem demonstradoate agora notavel sucesso no controle do use do cha, feria tam-bem um efeito altamente pernicioso na vida de seus adeptos.

Deve ser lembrado que a fundacao do Circulo de Regene-racao e Fe, importante marco na hist6ria do Santo Daime, sedeu na decada de 20, aproximadamente na mesma epoca emque no Rio de Janeiro comecava a se estruturar a doutrinaumbandista. Assim como no caso desse e de outros cultosafro-brasileiros, tambem nas seitas ayabuasqueras, cujo usedo cha tem sido considerado legitimo ate agora, encontram-se inumeros individuos que investiram nela suas vidas, tor-nando-as centrais para suas identidades individuais, sociais eespirituais.

A hist6ria da humanidade e pr6diga em exemplos da insen-satez em que implicam a intolerancia e a perseguicao religiosa,cujos principais efeitos parecem ser a exacerbacao do fanatismode uns e da prepotencia arbitraria de outros. No Brasil, isso

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144 EDWARD MACRAE

pode ser constatado durante as primeiras quatro decadas desteseculo, quando a repressao aos cultos afro-brasileiros causouserios problemas sociais, deixando evidente a natureza precon-ceituosa e injusta do regime. A propria tradicao crista e ricaem modelos de martirio pela fe, que poderiam servir de exem-plo para os adeptos das seitas ayahuasqueras, em seus protes-

tor contra qualquer proscricao de seus rituais.0 grupo de trabalho termina seu relatorio de 1987 criti-

cando a alegacao de que o use ritual do Daime nas grandes cida-des do Sul implicaria urn perigo de choque de culturas. Deacordo corn Levi-Strauss, citado no trabalho, "nenhuma cul-tura esta so; ela sempre e capaz de coligacoes corn outras cultu-ras, e e isto que the permite edificar series cumulativas".3 Naose deve considerar a cultura como algo completo e de frontei-ras estanques. Em vez disso, creio que talvez seja melhor con-siderar a cultura como acao significante, concebendo-a comourn processo atraves do qual os homens, para poderem atuarem sociedade, devem constantemente produzir e utilizar bensculturais.4 Dessa forma, pode-se dizer que este processo incluia readaptacao e a atribuicao de novos significados a velhospadroes de comportamento, assim como a absorcao de padroesprovenientes de outras sociedades. Nesse caso nao haveria apriori uma incompatibilidade entre praticas xamanicas indige-nas e a moderna sociedade urbana e industrializada, bastandoexercer urn "trabalho cultural" sobre elas para que adquiramnovos usos e novas significacoes, em consonancia corn o restodo sistema de valores e significados vigente.

Maria Isaura Pereira de Queiroz, a partir de urn enfoquesociologico sobre a religiosidade popular no Brasil, faz umacritica ao costume de estabelecer uma dicotomia entre o cato-licismo popular e o oficial, que tambem pode nos ajudar apensar sobre a questao da diferenca supostamente intranspo-nivel entre praticas religiosas na Amazonia e no Sudeste brasi-leiro. Segundo ela, o dualismo parece nao repousar em defini-coes precisas, mas em juizos de valor. Essa dificuldade se esten-deria a toda a utilizacao de conceitos dicotomicos em sociolo-gic, que parecem se originar de urn raciocinio sistematico eteorico que tern como ponto de partida concepcoes ideologi-cas de bern e de mal e nao uma consulta direta a realidade estu-

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CONCLUSAO 145

dada. Como resultado, em lugar de serern apropriadas a ana-lise da realidade social, deformam-na no sentido que melhorconvem a ideologia do pesquisador.5

Confirmando essa sugestao, ve-se que as criticas ao useurbano do Daime pattern de uma concepcao fantasiosa do seuuse na Amazonia, ignorando o fato de que, desde seu inicio,a doutrina de Mestre Irineu se dirigiu a populacoes urbanasou em processo de urbanizacao. As adaptacoes necessarias aseu estabelecimento nas areas urbanas maiores seriam, portanto,relativamente simples, analogas as necessarias para a implanta-cao do candomble da Bahia em Sao Paulo, por exemplo. Acres-cente-se a isso o fato de que, mesmo na regiao Sudeste, muitasdas igrejas sao estabelecidas em areas rurais, como Viscondede Maud, Rio de Janeiro, ou Aiuruoca, Minas Gerais, onde setenta reproduzir os padroes de vida comunitaria da Colonia5000 ou do Ceu do Mapia.

Desta forma, resta a possibilidade de que esse raciociniodicotomico tenha como ponto de partida a intencao de vali-dar concepcoes de bern e de mat predeterminadas. Tais con-cepcoes parecem estar diretamente relacionadas a questao dosestados de consciencia reconhecidos como sadios ou normais.Basta lembrar que a medicina e a psicanalise freqUentementetendem a rotular experiencias espirituais de quaisquer tiposcomo fendmenos patologicos.

Assim, importante corrente da psicanalise, seguindo oexemplo do proprio Freud, interpreta os estados unificadorese oceanicos dos misticos como regressao a um narcisismo pri-mario e ao desamparo infantil, e encara a religiao como umaneurose coletiva obsessivo-compulsiva. Os xamas sao fregiien-temente descritos como esquizofrenicos ou epilepticos e ategrandes santos, profetas e mestres religiosos, como Buda, Jesuse Maome, tern sido ocasionalmente agraciados com os maisvariados rotulos psiquiatricos.6

De tal tratamento, dificilmente escapariam os daimistas,mesmo professando ideais tao identificados corn o sistema devalores espirituais e sociais considerados emblematicos danossa sociedade quanto os expressos na formula utilizada paraencerrar os rituais da seita:

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"Em nome de Deus PaiDa Virgem Soberana MaeDe Nosso Senhor Jesus CristoDo Patriarca Sao JoseE de todos os Seres DivinosDa Corte Celestial,Com a ordem doNosso Chefe Imperio JuramidamEstao encerrados os nossos trabalhos,Meus irmaos e minhas irmasLouvado seja Deus nas alturasPara que sempre seja louvadaNossa Mae Maria SantissimaSobre toda a Humanidade".

Notas

1. Chaumeil 1983.2. Discurso pronunciado na Camara dos Deputados pelo deputado Jose

Elias Murad (PSDB -MG), 23.6.92.3. Levi-Strauss 1970:262.4. Durham 1984:28.5. Queiroz 1983:91-2.6. Grof 1987:243.

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ANEXO

0 Cruzeirinho de Mestre Irineu

Os adeptos do culto do Santo Daime consideram que assuas Santas Doutrinas se encontram resumidas nos ultimostreze hinos que compoem o hinario de Mestre Irineu. Agrupa-dos sob o nome de Cruzeirinho , sao cantados frequentementedurante os cultos da seita.

Ao le-los aqui , o leitor deve lembrar que os daimistas con-sideram -se seguidores de uma "doutrina musical" e que oshinos sb revelam forca plena quando cantados , com acompa-nhamento de maracas e sob o efeito da bebida sagrada.

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O CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU 149

117 • Dou viva a Deus nas alturas

-.!

Dou viva a Deus nas alturasE a Virgem Mae nosso Amor

Viva a todos Seres DivinosE Jesus Cristo Redentor.

Eu peco a Deus nas alturasPara vos me iluminarBotai-me no bom caminhoE livrai-me de todo mal.

Eu vivo zqui neste mundoEncostado a este CruzeiroVejo tanta iluminariaDo nosso Deus Verdadeiro.

Esta iluminaria que eu vejoAlegra o meu coracaoEstas flores que recebemosPara nossa Salvacao.

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150 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

118 • Todos querem ser irmaos

e

Todos querem ser irmaosMas no tern a lealdadePara seguir na vida EspiritaQue e o Reino da Verdade.

E o Reino da Verdade,E a Estrada do amor,E todos prestar atencaoAos ensinos do Professor.

Os ensinos do ProfessorE quem nos traz belas licoesPara todos se unitE respeitar os seus irmaos.

Respeitar os seus irmaosCom alegria e com amorPara todos conhecerE saber dar o seu valor.

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O CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU 151

119 • Confia

CY 7 I

Confia , confiaConfia no Poder , confia no SaberConfia na ForcaAonde pode set.

Esta forca a muito simplesTodo mundo ve,Mas passa por elaE no procura compreender.

Estamos todos reunidosCorn a nossa chave na maoA limpar mentalidadePara entrar neste salao.

Estee o salao douradoDo nosso Pai VerdadeiroTodos nos somos filhosE todos nos somos herdeiros.

Nos todos somos filhosE e preciso trabalhar,Amar ao Pai EternoE quern tern para nos dar.

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152 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

120 • Eu peco

e

4•

Eu peco, eu pecoEu peco ao Pai DivinoQue me de a Santa LuzPara iluminar o meu caminho.

Eu peco a Virgem Mae

E a Jesus Cristo RedentorIluminai o meu caminhoNessa estrada do amor.

Essa estrada do amorDentro do meu coracao,Eu peco a Jesus CristoQue nos de a salvacao.

f

Eu peco a salvacaoQue so vos pode me darPerdoai-nos neste mundoE na vida Espiritual.

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O CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU 153

121 • Esta forca

yI

4 f

Esta Forca, este PoderEu devo amar no meu coracaoTrabalhar no mundo terraA beneficio dos meus irmaos.

Estou aqui neste lugarFoi minha Mae quem me mandouEstamos dentro desta casaOnde afirmamos a fe e o amor.

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154 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

122 • Quem procurar esta casa

A 6s

Quern procurar esta CasaQue aqui nela chegar,Encontra corn a Virgem Maria

Sua saude Ela dd.

Minha sempre Virgem MariaPerdoai os filhos seusV6s como Mae SoberanaA Divina Mae de Deus.

Eu peco a v6s bern contrito,Fazendo as minhas oracoes,Peco a V6s a Santa LuzPara iluminar o meu perdao.

fiz a. I

Aqui dentro desta CasaTern tudo que procurarSeguindo o born caminhoFazer bern nao fazer mal.

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O CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU 155

123 • Andei na Casa Santa

Eu andei na Casa SantaTrouxe muitas coisas boasTudo vive neste mundoParece umas coisas a-toa.

Pedi licenca ao DivinoPara estas palavras eu narrarPerante a meus irmaosPara todos escutarem.

Depois que todos escutaremE que vao reconhecerTudo vive neste mundoMuito longe do Poder.

Para estar junto ao PoderDa Virgem da ConceicaoE ter fe e ter amorDar valor aos seus irmaos.

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156 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

124 • Eu tomo esta bebida

Eu torno esta bebidaEta tern poder inacreditavelEta mostra todos nosAqui dentro desta verdade.

Subi , subi, subi,Subi foi com alegriaQuando eu cheguei nas alturasEncontrei com a Virgem Maria.

Subi, subi, subiSubi foi com amorEncontrei com o Pai EternoE Jesus Cristo Redentor.

Subi , subi, subi,Conforme os meus ensinosViva o Pai EternoE viva todos Seres Divinos.

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O CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU 157

125 • Aqui estou dizendo

Aqui estou dizendoAqui estou cantandoEu digo para todosE hinos estao ensinando.

Aqueles que compreender,Que quiser seguir comigo,Tendo fe e tendo amorNo deve encarar perigo.

Sigo os meus passos em frenteCom alegria e com amorPorque Deus e SoberanoE nesta firmeza estou.

A Virgem Mae e SoberanaFoi Ela quem me ensinou,Ela me mandou pra caPara eu ser um professor.

0

I3

Vamos seguir, vamos seguir,Vamos seguir, vamos emboraQue nos somos filhos eternosFilhos de Nossa Senhora.

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158 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

126 • Flor das Aguas

Flor das Aguas,Da onde vem, para onde vais.Vou fazer minha limpezaNo coracao esta meu Pai.

A morada do meu PaiE no coracao do mundoAonde existe todo amorE tem um segredo profundo.

Este segredo profundoEsta em toda humanidadeSe todos se conheceremAqui dentro da verdade.

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0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

127 • Eu pedi

•0

D

0 ar

Eu pedi, eu pedi, eu pedi,Eu pedi Mamae me deuPara me apresentarAo Divino Senhor Deus.

Meu Divino Senhor DeusE Pai de todo amorPerdoai os vossos filhosNeste mundo pecador.

I

0

159

Jesus Cristo RedentorSenhor do meu coracaoDefendei os vossos filhosNeste mundo de ilusao.

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160 0 CRUZEIRINHO DE MESTRE IRINEU

128 • Eu cheguei nessa Casa

Eu cheguei nesta CasaEu entrei por esta portaEu venho dar os agradecimentosA quem rogou por minha volta.

Eu estou dentro desta CasaAqui no meio deste salaoEstou alegre e satisfeitoJunto aqui com os meus irmaos.

Ia fazendo uma viagemla pensando em nao voltarOs pedidos foram tantosMe mandararn eu voltar.

Me mandaram eu voltarEu estou firme, you trabalharEnsinar os meus irmaosAqueles que me escutar.

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Sobre o autor

Nasci em Sao Paulo a 15 de abril de 1946, filho de pai escoc8s e mae brasileira.

Fui criado bilingue desde a infancia e dividi minha educasao entre o Brasil e a Gra-

Bretanha, onde me graduei em psicologia social pela universidade de Sussex (1968)

e recebi o titulo de mestre em sociologia na universidade de Essex (1971).

Coerentemente com minha educasao transcultural, acabei me doutorando na USP

em Antropologia social (1986). Publiquei o livro A construcdo da igualdade

(Unicamp), uma reelaboracao da minha tese de doutorado, assim como diversos

artigos cientificos e obras de divulgacao sobre sexualidade, use de drogas e Aids.

Apbs terminar meus estudos na USP, passei a trabalhar no lnstituto de Medicina

Social e de Criminologia de Sao Paulo - IMESC, corn financiamento do CNPq, pars

realizar esrudos sobre usuarios de substancias psicoativas. Fiz uma primeira

pesquisa sobre usuarios nao marginais de maconha e, posteriormente, o trabalho

no qual o presence livro se baseia.

Atualmente, al@m de ser membro do Conselho Estadual de Entorpecentes

(Conen-SP), sou pesquisador visitante no Programa de Orientacao e Atendimento

a Dependencia - PROAD, na Escola Paulista de Medicina, onde continuo a estudar

ouso da ayahuasca, assim como a pesquisar e desenvolver esquemas de prevencao

a AIDS entre usuarios de drogas injetSveis.

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EDWARD MACRAE

GUIADO PELA WAO CULTO DO SANTO DAIME SURGIU NOS ANOS30 NA AMAZONIA. MAIS RECENTEMENTE, VEM

CONQUISTANDO NOVOS ADEPTOSPRINCIPALMENTE ENTRE AS CAMADAS

SOCIAIS PORTADORAS DA CHAMADA "NOVACONSCIENCIA RELIGIOSA". A PROJECAO

SOCIAL DE ALGUNS DE SEUS MEMBROS E AINGESTAO DA AYAHUASCA (UM CHA DE

PROPRIEDADES PSICOATIVAS) TEMCONTRIBUIDO PARA DESPERTAR UM

GRANDE INTERESSE PELA SEITA.

GUTADO PELA LUA EXAMINA AS ORIGENS DODAIME E MOSTRA COMO OS MECANISMOS DE

CONTROLE SOCIAL INCIDEM SOBRE 0 USORITUAL DA AYAHUASCA, PORTANDO-O DE

QUALIDADES SOCIALMENTE INTEGRADORASE ESTRUTURANTES.

AREAS DE INTERESSE:ANTROPOLOGIA, PSICOLOGIA, RELIGIAO