Made in Brasil

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PROJETO UTÓPICO DE TELEVISÃO Y vana F echine Framc do prcxparr.) Armopto RmttaOa e x íx io prta Globo entre 198S 1988 com dreçAode Gu<H Arraes

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PROJETO UTÓPICO DE TELEVISÃO

Yvana Fechine

Framc do prcxparr.) Armopto RmttaOa e x íx io prta Globo entre 198S 1988 com dreçAode Gu<H Arraes

As relações entre a televisão e o vídeo no Brasil lembram a ligação tensa e instigante entre o mais famoso serial killer do cinema hollywoodiano. o Dr. Hannibal Lecter, e os obstinados agentes do FBI protagonistas da célebre trilogia inspirada nos livros de Thomas Harris.' Como não admirar a personalidade bizarra e subversiva do Dr. Hannibal Lecter. um psiquiatra forense que, depois de ajudar o FBI a traçar o perfil de inúmeros psicopatas. passa a auxiliar o agente Will Graham a desvendar uma série de assassinatos, envolvendo canibalismo, nos quais ele mesmo é o algoz? O genial e requintado psiquiatra canibal, imortalizado pelo ator Anthony Hopkins, é apresentado no último filme da série, Dragão Vermelho, como o perfeito avesso do policial que. por fim, o desmascara. No filme, é o próprio Dr. Lecter quem se encarrega de lembrar ao agente Will Graham que ele só conseguiu prendè-lo porque ambos são muito parecidos. Mesmo depois de preso, Hannibal Lecter colabora com o FBI na investigação de outro serial killer. Mas, agora, é o assassino quem impõe ao investigador os seus métodos, estimulando o policial a raciocinar como o psicopata que persegue, pautando uma das mais caras instituições americanas (o FBI) por sua lógica outsider. Como já acontecera antes com o próprio

10 Si1êndo dos Inocentes (1991). Hannibal (2001). e Dragão Vermelho (2002).

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Hannibal, a nova caçada só acaba quando se estabelece uma tal cumplicidade entre os dois, o policial e o psicopata, que o primeiro começa a pensar como o segundo: a identidade de um define-se assim, nesse processo, pela contínua contraposição ao outro. Entre o vídeo e a TV, observa-se, historicamente, a mesma reciprocidade e tensão.

Para que seja possível, ao final, sugerir o paralelismo entre os protagonistas dessa história e de outra que pretendemos aqui iniciar é preciso, no entanto, perguntar logo: de qual vídeo e de qual televisão estamos tratando? E de qual tensão estamos falando? Para começar, devemos reconhecer que seria uma missão quase impossível falar de lodo o vídeo e de toda a televisão nos limites de um artigo. Vamos então ao que nos interessa. Na televisão, a produção está concentrada nas emissoras comerciais, públicas e estatais. Por ora, deixaremos de lado o novo e vasto universo dos canais por assinatura distribuídos no país, e justificaremos isso mais adiante. No vídeo, a preocupação é com o campo da produção artística e documental. Nos dois casos, o cenário é basicamente o Brasil das duas últimas décadas, é nesse período que se instaura a tensão que perdura até hoje. Como incorporar à grade dessas emissoras de TV uma produção independente em vídeo que, mesmo ambicionando ocupar espaço em suas programações define-se, esteticamente, justo pela contraposição aos seus modelos? Eis a tensão. Porém, em que termos e em que medidas esses produtores de vídeo independentes acabaram se inserindo nesse universo reconhecidamente fechado das TVs abertas no Brasil? Eis a questão. Para respondê-la, será preciso mais uma vez delimitar a abordagem. Na impossibilidade de traçar a trajetória das centenas de produtoras que abriram e fecharam suas portas no decorrer mesmo dos anos 80 e começo dos 90. destacaremos apenas os realizadores ou grupos de realizadores que participaram mais decisivamente na dissolução dessas fronteiras entre o vídeo e a televisão pelo menos no que se refere à linguagem.

Com essa delimitação, fica claro, desde já. o pressuposto aqui adotado: a produção audiovisual em televisão no Brasil deve seus momentos mais criativos e inovadores à colaboração de profissionais que fizeram parte do movimento do vídeo independente ou que, mesmo de modo indireto, beberam na fonte do experimentalismo que o acesso aos meios eletrônicos proporcionou. Dezenas de profissionais que tiveram sua formação inicial ligada às artes plásticas, ao teatro, à música, à literatura ou ao cinema experimental migraram também para a televisão em busca de condições de produção e de público. Esses realizadores dificilmente podem ser identificados com grupos específicos porque, hoje. se espalham por diferentes emissoras de televisão — geralmente colaborando com projetos especiais (séries e minisséries, por exemplo) — ou por produtoras independentes, que, só agora e ainda timidamente, começam a estabelecer parcerias mais sistemáticas com os canais comerciais. O principal reduto desses profissionais do audiovisual, e um dos raros grupos que podem ser assim identificados, é o Núcleo Guel Arraes, que funciona desde 1991 na Rede Globo. O grupo de artistas visuais, atores e roteiristas que gira hoje em torno de um dos mais inventivos produtores e diretores de TV no Brasil, o pernambucano Guel Arraes, esteve envolvido em projetos que uniram renovação estética, experimentalismo formal e bons índices de audiência justamente na maior emissora comercial do Brasil. Não apenas nas redes abertas, como a Globo, mas também em emissoras públicas, como a Cultura e a TVE-Rede Brasil, ou em canais segmentados, como a MTV, podem ser apontadas experiências que nos permitem perguntar, hoje. até que ponto o vídeo no Brasil não estaria associado à TV que a gente gostaria de ver.

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Nâo haveria mesmo razão para a separação entre TV e vídeo em campos de atuação tão distintos. A rigor, os termos vídeo e televisão podem ser aplicados a uma mesma tecnologia, à exploração de um mesmo meio para a produção e difusão de imagens eletrônicas. A diferença entre o vídeo e a TV está, essencialmente, na sua proposta ético-estética. O sistema de televisão por broadcast definiu, com base em interesses políticos e económicos, um modelo de comunicação que se tornou hegemônico na exploração do suporte eletrônico. Este modelo é orientado, de modo geral, por uma hierarquia da transmissão sobre a recepção (unidirecionalidade), pelos cânones da representação ilusionista (TV como 'janela' do mundo), pela 'métrica' dos intervalos comerciais (interrupções que ditam a sua sintaxe). Despontando nos Estados Unidos e na Europa Ocidental 25 anos depois do advento da televisão, o campo de produção que se convencionou chamar de'vídeo'definiu-se justamente pela negação desse modelo. Ainda hoje, o vídeo é tratado por muitos críticos e realizadores como uma espécie de contratelevisão, ou, quando muito, é associado à reinvençáo da sua linguagem, à idéia de qualquer experimentalismo envolvendo seu aparato. Com razão. Desde sua primeira utilização, por artistas de vanguarda dos anos 60, toda uma geração de pioneiros do vídeo assumiu como proposta o desenvolvimento de novas formas artísticas com os recursos técnico-expressivos do seu antecedente, a TV. Procurando seu lugar entre a arte e a mídia, o vídeo acabou se afirmando, desde cedo. pela sua crítica contundente aos modos de produção tanto de uma quanto de outra. Encarado com desconfiança pela arte e pela mídia mais conservadoras, o vídeo se valeu, alternadamente,*dos postulados e procedimentos de uma para levar a termo o seu projeto crítico em relação à outra.

No Brasil, a proposta estética do vídeo foi determinada em grande parte pelo acesso à tecnologia. A produção de um video exige equipamentos de gravação e edição caros, que, ainda hoje, quando comparados, por exemplo, com os recursos exigidos pela pintura ou

mesmo pela fotografia, envolvem custos muito maiores. Em meados dos anos 70, quando se deram as primeiras experiências de artistas brasileiros com o uso de vídeo — alguns deles com acesso às novas tecnologias por viverem no exterior —, as próprias emissoras de TV não operavam ainda com sistemas portáteis de gravação, que só se tornaram disponíveis no Brasil entre 1979 e 1980. Como o investimento na aquisição dos importados era alto, a primeira geração de artistas do vídeo no Brasil produziu seus primeiros videoteipes, no Rio de Janeiro, com um equipamento disponibilizado/ Em São Paulo, as primeiras manifestações da videoarte só começam a aparecer em 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, MAC/USP, adquiriu um portapack (gravador de vídeo portátil) e coloca-o a disposição dos artistas da cidade. Até meados dos anos 80, no entanto, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo, MIS/SP, não possuía sequer um equipamento de vídeo para exibir as obras dos artistas. Sem acesso à tecnologia que lhes permitiria investir na exploração das especificidades do meio ou nos efeitos de manipulação da imagem eletrónica, a maioria dos trabalhos dessa primeira geração de realizadores utiliza o vídeo apenas como meio de registro ou como parte de manifestações performáticas concebidas para uma câmera, mas ainda sem nenhuma

2 Em 1974. uma prim eira geração de artistas brasileiros é convidada a participar de m ostra de videoteipes na Filadélfia Na época. Jom Tob Azulay colocou à disposição de um grupo de artistas cariocas (Sônia Andrade. Fernando Cocchiarale, Anna Betla Geiger e Ivens M achado) um portapock que acabara de trazer dos Estados Unidos. A produção desses videoteipes é considerada hoje. pela m aioria dos críticos, o m arco do surgim ento oficial da videoarte no Brasil (M achado, 1998 76). Cf. tam bém Zannini (1985).

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pretensão de interferir diretamente na proposta estética da própria TV. Não há, no entanto, galerias, centros ou museus especializados capazes de configurar um circuito alternativo de produção e exibição de trabalhos que exploram, antes de mais nada, a relação entre os meios e as novas subjetividades. Sem um mercado que lhes permita financiar e sobreviver do vídeo, muitos desses artistas acabam retornando ao universo de produção das artes plásticas, de onde vieram.

Enquanto, no Brasil, a primeira geração de artistas do video se debatia para conseguir ao menos um gravador de vídeo portátil, nos Estados Unidos as emissoras públicas de televisão, graças às verbas de instituições filantrópicas e aos fundos do Public Broadcasting Service, PSB,J mantiveram, ao longo de quase duas décadas, workshops, programas e laboratórios de investigação das possibilidades técnicas e potencialidades estéticas do suporte eletrónico. Nessas emissoras públicas, foram produzidos e veiculados alguns dos trabalhos mais marcantes da história da videoarte, como Global Groove (1973), de Nam June Paik, e The Médium Is lhe Médium (1969), um projeto de Fred Barzyk, que contava com a participação de vários artistas e que foi considerada a primeira antologia de videoarte transmitida pela própria TV. Abrigados, desde o fim dos anos 60, por canais como o WGBH (Boston) ou o WNET (Nova York), artistas visuais, designers, músicos, performers, entre outros, tiveram a oportunidade de trabalhar, com engenheiros e técnicos, nos equipamentos de produção e pós-produçáo das emissoras, apontando estruturas possíveis de comunicação, novos formatos e usos mais criativos do próprio aparato da televisão broadcasting. Nos anos 80, vários dos artistas que foram beneficiados

por esses programas de experimentação técnica e formal do vídeo já apresentavam seus videoteipes como'trabalhos para a televisão'.

No Brasil, o videocassete de uso doméstico, e suas pequenas câmeras com gravadores-reprodutores, só chega em 1982. Com mais acesso à tecnologia e maior convívio com a televisão, surge também nos anos 80 uma nova geração de jovens realizadores que já sai das universidades preocupada em explorar o video para mostrar o que a TV broadcasting poderia ser como sistema expressivo e agente de mudanças socioculturais (Machado, 1998: 81-82). Seu objetivo não é mais o circuito de exibição dos museus ou galerias, mas o acesso às próprias emissoras comerciais de televisão. Num primeiro momento, no entanto, seu destino imediato não pôde ser outro: a grande maioria acaba trabalhando nas chamadas produtoras independentes, que sobrevivem basicamente da publicidade e da produção para empresas (vídeos institucionais e de treinamento), mas se constituem ainda no único espaço para a realização dos projetos pessoais ou coletivos de experimentação. Para que seus trabalhos não permanecessem confinados às salas de acervo das produtoras, só restou a toda essa geração do vídeo independente, que fazia TV fora da TV. os circuitos de exibição alternativos abertos pelos primeiros festivais e ainda pelos museus. Em 1986, dez anos depois de colocar nas mãos dos artistas plásticos de São Paulo um portapack para experimentações na área, o MAC/USP é novamente uma das primeiras instituições a apontar essa reorientaçáo na trajetória do vídeo brasileiro. A organização da mostra Vídeo de Artista & Televisão.

' A criação do Public Broadcasting Service, em 1969, fez parte das ações da Corporation for Public Broadcasting, estabeleoda pelo Congresso, para garant ir verbas p ú b kas para'um a nova e im portante instituição da cultura am encana', ou seja, a televisão Veja uma discussão sobre o pape» das em issoras públicas no desenvolvim ento da videoarte nos Estados Unidos em : H.R. Huffm an, 'V ídeo A rt: W hat's TV got to do w ith it?*, in : Hall, D e S J. Fitter, nominating Video, New York. BAVC/ Aperture, 1990.

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A Televisão Vista por Artistas do Vídeo foi, antes de mais nada, um reconhecimento da inevitável convergência entre televisão e vídeo no Brasil. Na época, porém, a própria curadora da mostra. Cacilda Teixeira da Costa, não escondia sua desconfiança diante desse entrecruzamento entre TV e video, chegando mesmo a rotulá-lo como ‘uma relação perigosa'diante do 'contágio' e do fascínio exercido pela televisão comercial sobre uma jovem geração de realizadores que, obstinadamente, driblavam a escassez de recursos e oportunidades:

'Dentro desse quadro, é natural que os artistas fiquem seduzidos pela possibilidade de fazerem trabalhos para a televisão, de serem pagos e vistos por um grande público. No entanto, se o trabalho para televisão é de interesse e gratificante, liga-se ao mundo do entretenimento e da comunicação, e não ao da arte (...) Para fazer arte é preciso tempo, introspecção, e eu me pergunto como, no Brasil, um artista do vídeo, entre um teipe de treinamento de pessoal e outro de promoção de alguma empresa, pode aprofundar-se nos processos de exploração da linguagem ou dos limites humanos da percepção estética? (...) Trata-se de uma situação delicada para os artistas que usam o vídeo como meio, pois eles tém que se decidir pelo acesso à televisão e às multidões de espectadores ou pela pesquisa, criação e os compromissos que estas implicam, os quais não impedem, mas restringem o acesso' (1986:9)/

Para muitos dos jovens realizadores que participaram dessa iniciativa pioneira do MAC/USP, no entanto, não havia necessariamente uma oposição entre televisão e experimentação, e alguns trabalhos incluídos na mostra eram já uma prova dessa possibilidade de convergência.5 Não se poderia esperar, no entanto, que na programação da TV broadcasting brasileira, moldada pelos valores de uma sociedade conservadora,

pelos interesses comerciais e pelo entretenimento, houvesse um lugar privilegiado para a arte de vanguarda. Uma das primeiras e raras iniciativas de divulgação da arte eletrônica brasileira na TV se deu com o surgimento do Primeiro Plano, um programa criado em 1994 por Nelson Hoineff e realizado por sua produtora, a Comunicação Alternativa. O programa não fazia muitas concessões a um certo'didatismo'e à exigência de narrativas explicativas, existente na TV comercial. Não contava com um apresentador nem com textos explicativos sobre o trabalho ou seu autor: a exibição da obra videográfica era acompanhada por uma conversa, sem formato predefinido, mas com teor especializado, entre o realizador e um intelectual ou artista convidado. Mas o caráter inovador da veiculaçáo de programas como o Primeiro Plano, numa emissora aberta (1996-1997), não estava prioritariamente no formato, e sim na sua proposta de veicular para um grande público a arte, a produção cultural de vanguarda, e, em particular, os trabalhos produzidos contemporaneamente com os meios eletrónicos, como já havia sido feito por canais públicos nos Estados Unidos, nos anos 70-80, em plena efervescência da videoarte.

Rompendo com a trajetória dos pioneiros do vídeo no Brasil e abandonando as tendências da produção videográfica internacional, muitos dos realizadores que fizeram parte dessa geração do vídeo independente pareciam mais interessados em subverter

4 A mostra Vídeo de Artista&Tetevís$o ATelevisáo Vista por A rtistas do Video foi realizada entre 30 de setembro e 12 de outubro de 1986, com curadoria de Cacilda Teixeira da Costa e Fátim a Bercht Foram exib idos trabalhos de realizadores brasileiros — Roberto Sandoval Renato Bukráo. José Luís Nogueira e José W agner G aroa, entre outros - o do artistas jà reconhecidos internacionalm ente, corno Nam June Paik. B ill Viola. Dara Birnbaum e Antoni M ontadas.1 Entre os trabalhos brasileiros exib idos na m ostra estava o Crig-Râ, veiculado pela TV Gazeta de 5èo Paulo e realizado pela produtora independente O lhar Eletrônico. Voltarei a falar do program a m ais adiante

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o modelo dominante na TV. Sua produção já não se orientava mais pela busca de novos caminhos para a arte explorando o meio eletrónico. Muitos deles nem mais se reconheciam — ou se apresentavam — como'artistas do vídeo' mas como videomakers. Por isso mesmo, já nào havia mais a mesma preocupação da primeira geração de abrir espaço na TV para a arte que utilizava o vídeo como meio. Sua busca era, agora, por novos caminhos para a própria televisão, investindo numa produção que, segundo Arlindo Machado,'se prestava de modo perfeito à tela pequena, utilizava com adequação o tempo televisual e usava criativamente os recursos eletrónicos de estúdio" (Machado, 1998:82). Seu projeto esbarrava, no entanto, na consolidação das redes nacionais de televisão com a transmissão, a partir de 1985, através dos satélites Brasilsat, de programações padronizadas para todo o pais, a partir do modelo de emissoras "afiliadas" a uma'cabeça de rede".

A chegada dos primeiros produtores independentes à TV

A implantação das redes nacionais de televisão, que permitiu às emissoras reduzir custos e ampliar o mercado publicitário, significou também uma brutal concentração da produção e da difusão dos produtos audiovisuais entre as quatro redes comerciais com retransmissoras por todo o país (Bandeirantes, Globo, Manchete e SBT). Como o poder de distribuir e cassar as concessões dos canais de rádio e televisão estava então nas mãos do presidente da República e como o governo sempre destinou àsTVs verbas publicitárias generosas, as grandes emissoras se tornaram aliadas naturais do poder. Não era de esperar, portanto, que as TVs acenassem, nessa época, com qualquer apoio a propostas de utilização do meio com um projeto critico característico de toda produção do vídeo independente. O próprio governo quando cassou a concessão, em 1980, de

todos os canais da Tupi preferiu dividir o seu espolio com os grupos Silvio Santos e Adolfo Bloch, mais*amistosos e confiáveis*que os grupos Jornal do Brasil ou Abril, por exemplo.6 Preterido na disputa por uma concessão, o Grupo Abril (por meio da Abril Vídeo) iniciou, em agosto de 1983, uma experiência pioneira de produção independente exclusiva para a televisão. A parceria foi firmada com a TV Gazeta de São Paulo, que garantiu um espaço de 15 horas semanais na faixa do horário nobre. Para colaborar na realização dessa espécie de programação paralela dentro de uma emissora comercial já existente, a Abril Vídeo recorreu justamente a uma pequena produtora independente, que já começara timidamente a ocupar espaço na própria TV Gazeta, a Olhar Eletrônico. Em novembro de 1985, quando o déficit financeiro impossibilitou a Abril Video de renovar o contrato com a TV Gazeta, os rapazes da Olhar Eletrônico já haviam traçado um dos caminhos de convergência entre TV e vídeo mais bem-sucedidos dessa geração que começou a atuar nos anos 80, em São Paulo.

Reconhecida historicamente como uma das primeiras experiências de parceria entre a televisão comercial e a produção videográfica independente no Brasil, a produtora Olhar Eletrônico foi criada, em 1981, por um grupo de amigos, recém-saídos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU/USP, que já produziam vídeos

* O governo cassou a concessão dos canais da Rede Tupi. pertencentes aos Diários Associados, por corrupção financeúa e d ividas com a Previdência So c ia l Sotxe a política de concessões e a configuração das redes nacionais de TV, veja Capareili (1982) C M attos (1990).

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Material com direitos a

experimentais quando estudavam em São Paulo. Inicialmente, o grupo era formado por Fernando Meirelles, Paulo Morelli, Marcelo Machado e José Roberto Salatini, aos quais se juntaram pouco depois Renato Barbieri e Marcelo Tas. Atendendo a demandas básicas do vídeo (a crítica aos meios) e da televisão (o entretenimento), os trabalhos da Olhar Eletrónico propunham, antes de mais nada. uma paródia a propostas, personagens e procedimentos da própria TV. Os mesmos ingredientes que a televisão utilizava para garantir uma audiência alienada — música pop, descontração, humor, entre outros —, o grupo usava para desmistificar seus cânones e clichés, estimulando o surgimento de um público mais critico. Em 1982, os rapazes da Olhar Eletrónico ganharam os dois primeiros prêmios do 1Q Festival Videobrasil, no MIS/SP, e, com a repercussão do seu trabalho, no mesmo ano, receberam um convite de Goulart de Andrade, o veterano criador do estilo ' Vem comigo', para atuar na TV Gazeta de São Paulo. Por quatro meses, eles colocaram no ar um programa que nem nome tinha (um dos quadros era justamente Invente um nome para o programa'), até serem convidados para colaborar no 231 Hora, um programa jornalístico de variedades exibido de outubro de 1982 a março de 1983. O programa tinha como eixo uma grande reportagem de Goulart de Andrade, com longos planos- seqüència, que só eram interrompidos para a troca de fita, preconizando uma espécie de'televisão verdade’. Os rapazes da Olhar Eletrônico produziam o material intercalado nas participações de Goulart de Andrade, diretor do programa. Com a autonomia que ele lhes dava, puderam viver então uma autêntica experiência de produção independente dentro de uma TV. Como o 23a Hora encerrava a programação da Gazeta, em um dos programas eles chegaram a transformar os televisores dos espectadores num aquário até o encerramento da emissora. Num questionamento inteligente da passividade do próprio público de TV, inseriram na última hora do programa imagens fechadas de peixes ornamentais entrando e saindo da tela. A cada dez minutos entrava uma voz que convidava os espectadores a ligar para um enigmático número telefónico e, só então, eles entendiam o aue estava acontecendo.

Depois do 231 Hora, veio o convite da Abril Vídeo, com quem produziram dois programas jornalísticos de variedades, o Crig-Rá (no ar entre fevereiro e agosto de 1983) e o Olho Mágico (de abril de 1984 a novembro de 1985). Dirigido ao público jovem, o Crig-Rá tratava de temas como amor, morte e solidão, mas o que os rapazes da Olhar Eletrônico mais gostavam era de 'brincar' com a própria televisão, como já vinham fazendo desde sua entrada na TV Gazeta. Com esquetes, reportagens fictícias e personagens burlescos, eles questionavam o papel da TV, seu modelo unidirecional de comunicação, seus formatos. O programa era comandado por Bob MacJack (interpretado por Marcelo Tas), uma espécie de clown que reunia cacoetes de apresentadores famosos na época, como Chacrinha e Silvio Santos. Até o fim dos anos 80, quando o grupo se dissolveu, a Olhar Eletrônico participou ainda de vários outros projetos experimentais, como O Mundo no Ar, um telejornal fictício, "mas tão comprometido com a verdade quanto qualquer outro", que esteve no ar por quatro meses como um quadro humorístico do programa Aventura (Rede Manchete, 1986). Mesmo não atuando mais como grupo, a proposta estética da produtora Olhar Eletrônico continuou influenciando criativamente a televisão brasileira por meio da trajetória individual de alguns dos integrantes, entre os quais se destacam MarceloTas e Fernando Meirelles, que continuam no mercado audiovisual, até hoje, como uma referência de qualidade na TV, a TV inteligente que o vídeo preconizou.

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No auge da produção da Olhar Eletrônico, um personagem criado pelo grupo, e que esteve presente em todos os programas com os quais colaborou, sintetizou toda a proposta de intervenção da produtora na televisão broadcasting: o repórter Ernesto Varela. Interpretado por Marcelo Tas e protagonista de inúmeros quadros dirigidos por ele e por Fernando Meirelles, Ernesto Varela era o protótipo do anti-repórter deTV. Desengonçado, atrapalhado, com cara de boboca e comportamento aparentemente ingénuo, Varela encarnava a paródia ao formato do telejornalismo convencional. Embora não fosse um repórter “de verdade'— pois Marcelo Tas era, sobretudo, um performer — Ernesto Varela nunca participou de situações ficcionais. Pelo contrário. Suas reportagens enfocavam, numa perspectiva crítico- satírica, temas polêmicos da época, como a dívida externa brasileira {Divida Externa. 1983), a corrida ao ouro em Serra Pelada (Varela in Serra Pelada. 1984) ou a votação da emenda Dante de Oliveira, que previa a realização de eleições diretas no país {Varela no Congresso. 1984). Varela reinventou a entrevista na TV. provocando seus entrevistados com perguntas óbvias (só aparentemente) — "Sr. Nabi Abi Chedid. o senhor é brasileiro?" endereçada ao polêmico deputado federal e dirigente da CBF na Copa de 1986 — , comentários inesperados— 'Deputado, o senhor acredita no que diz?", dirigido a Nelson Marchezan, um dos líderes do PDS. na histórica sessão de votação da emenda Dante de Oliveira, em 1984 — ou mesmo com questionamentos'absurdos' como o que ele fez ao então candidato da ditadura militar à Presidência da República. Paulo Maluf, em 1984: ' é verdade. Sr. Maluf, que o senhor é um ladrão?'

Com intervenções como essas, Varela suscitava posturas igualmente inusitadas, rompendo com todo o repertório de chavões, respostas prontas e comportamentos previsíveis tão comuns, especialmente nas coberturas esportivas e políticas. Em vez

de tentar “dirigir" seus entrevistados, o papel de Varela era, ao contrário, estimulá-los a um posicionamento autônomo, autêntico, mas consciente do próprio aparato de mediação envolvido numa gravação para a TV. Varela desconstrói os discursos unívocos dos repórteres convencionais que tentam reduzir toda a diversidade sociocultural e político-ideológica, toda a pluralidade de pontos de vista à autoridade de sua própria fala. Nas situações mais diversas, Varela não apenas devolvia a palavra ao povo como se esforçava por adotar a sua perspectiva. Como quem nem se dá conta do que faz. o repórter trapalhão e cara-de-pau se insurgia, a seu modo, contra toda hierarquia: entre entrevistador e entrevistado não havia nenhuma relação de autoridade. Todo o poder critico das reportagens de Varela vinha justamente da aparente ingenuidade com que ele evidenciava, fosse na conversa com um vendedor ambulante analfabeto ou com algum renomado sociólogo da USP, os aspectos contraditórios da realidade brasileira. Essa postura crítica, mas bem-humorada; esse comportamento incisivo e, ao mesmo tempo, despojado; o “desmascaramento'deliberado dos modelos narrativos da própria TV adotados por Ernesto Varela e o inseparável Valdeci (Fernando Meirelles). cinegrafista e co-partícipe de suas performances, nada mais eram do que uma expressão dos pressupostos que orientavam a produção da Olhar Eletrónico na TV.

Como Ernesto Varela, Marcelo Tas esteve no ar entre 1983 e 1986, em programas da TV Gazeta, do SBT e da Record, voltando às telas, entre 1990 e 1991, na MTV Brasil.7 Na sua volta à TV, Varela foi o protagonista da série Netos do Amaral {1991), dirigida por ele e por

A MTV Brasil foi cnadd em »990, com o resultado de uma associação do Grupo Abril com a norte-am ericana Viacom , uma das m aores em presas de entretenim ento do m undo A MTV é hoje a m aior TV segm entada do pais.

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um dos mais respeitados artistas do vídeo no Brasil, o mineiro Eder Santos. O título já revelava por si só o espírito paródico que comandava a série. Era uma referência direta ao programa Amoral Neto, o Repórter, que, nos anos 70, aliado ao projeto ufanista e nacionalista dos governos militares, exibia em rede nacional de televisão as riquezas e belezas naturais do Brasil, recorrendo ao formato mais conservador do telejornalismo da época. Com uma postura e uma proposta radicalmente opostas às do sisudo Amaral Neto. Ernesto Varela também viajava por todo o pais, mas sua preocupação agora era justamente evidenciar, com sua irreverência, os contrastes e contradições da realidade sociocultural brasileira. O Brasil que Ernesto Varela nos mostrava, inspirado por todo o legado do vídeo independente, era um país misturado,'aculturado', a perfeita expressão daquela ‘ nação sem gravata' que Glauber Rocha já apresentara nas suas polémicas intervenções na TV no programa Abertura.8 Co-dirigido e editado por Eder Santos, um dos representantes mais legítimos de uma terceira geração de realizadores de vídeo no Brasil, o programa incorporou ao espirito crítico-satírico, consolidado pelos rapazes da Olhar Eletrónico, a habilidade dos novos realizadores com os recursos da montagem digital e seu forte apelo à simultaneidade, à manipulação (tratamento) das imagens, à exploração dos recursos gráfico-visuais (design, logotipos, letterings, animações). A bricolagem que também se observava na edição de Netos do Amaral já era, no entanto, uma característica importante do"estilo MTV' herdeiro de um legado estético construído, entre outros, pelos artistas do vídeo abrigados pelos canais norte-americanos.

No Brasil, o'estilo MTV' contagiado pelo discurso fragmentado, antinarrativo e não-linear dos videoclipes, que fizeram o sucesso da emissora, parecia perfeitamente em sintonia com a produção mais contemporânea de artistas do video, como Sandra Kogut, que também colaboraram com programas de televisão. Ao lado de Eder Santos. Kogut é um dos nomes expressivos de uma terceira geração de videomakers brasileiros que, embora já produzisse

nos anos 80, só desponta publicamente nos anos 90, com um trabalho mais pessoal, mais autoral e sem o engajamento social do movimento do vídeo independente (Machado, 1998:84-86). Retomando parte da preocupação dos pioneiros, esta geração volta a pensar a própria tela da TV como design e a explorar as propriedades plásticas da imagem eletrônica potencializadas, agora, pelo acesso fácil aos recursos de edição e processamento digital do vídeo. Parabolic People, veiculado pela MTV também em 1991, é um dos melhores exemplos do acolhimento na televisão de uma estética da saturação, do excesso e da instabilidade (ausência de sistematização temática e estilística) que Arlindo Machado identifica na produção videográfica mais contemporânea (1997:239). Produzido no Centre de Création Vidéo Montbéliard Berfort (França), Parabolic People consiste numa série de 11 segmentos, com até 3 minutos de duração, que deveriam ser inseridos aleatoriamente na programação de emissoras de TV de diferentes países. Pierre Bongiovanni define esses segmentos como ‘haicais"ptfro e sobre a televisão (1993:15): do ponto de vista da forma. Parabolic People chega ao limite das possibilidades de montagem polifônica do vídeo; no que diz respeito ao conteúdo, seu conjunto pode ser interpretado como uma autêntica manifestação da ‘aldeia global"forjada, segundo McLuhan, pelos meios eletrônicos.

* Foi o prim eiro programa jo rnalístico sobre cultura e política. criado depois da extinção do AJ-5. com quadros conhados a intelectuais assurm dam ente críticos do regim e m ilitar, com o o proprio G auber. Ziraldo. Fausto Woff. V ilasBôas Corrêa e Antônio Callado, entre outios. Fo» criado e dirigido por Fernando Barbosa Urna e exibido pela TV Tupi de fevereiro de 1979 a ju lho de 1980

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Depois dessa exploração radical dos recursos técnico-expressivos do vídeo e da televisão, Sandra Kogut tem mais uma passagem marcante por uma emissora comercial como diretora do Brasil Legal, na Rede Globo (1994-1998). Nesse trabalho, agora na maior emissora de TV do país, Sandra Kogut retoma, a seu modo. a proposta de programas que o antecederam, como a série Neios do Amaral e o Programa Legal (Rede Globo, 1991-1993), contando, este último, também com Marcelo Tas no quadro de roteiristas. No Brasil Legal, a atriz Regina Casé tinha um papel semelhante ao que já havia sido desempenhado por Tas na pele de Ernesto Varela na série da MTV: ela viajava por diferentes regiões do país, enfocando, antes de mais nada, a diversidade cultural de um imenso Brasil anónimo. As grandes estrelas do programa eram tipos divertidos e inteligentes como Mário Pezão, ex-menino de rua e cantor de rap, dona Flora, neta de índios e vendedora de ervas, ou Glauber Moscabilly, adepto do rock dos anos 60, todos contando suas histórias curiosas; histórias que revelavam metonimicamente valores e vivências de todo o povo brasileiro, que evidenciavam o grande 'caldeirão' cultural latino-americano, especialmente quando articulados ãs referências metalingüísticas e intertextuais dispersas pelos programas.9 Como Marcelo Tas, Regina Casé encarnava um misto de entrevistadora e performer, orientada pela mesma preocupação de desfazer qualquer hierarquia em relação aos seus entrevistados, deixando-os inteiramente à vontade para falar e, de certo modo, até dirigir a conversa. Aproximando-se dos convidados, fazendo-se íntima, longe de qualquer pose'de artista de televisão", Regina Casé estimulava- os a se exporem livremente, mas, no diálogo proposto, era ela também que se expunha, fazendo daquela própria interação o principal objeto a ser enfocado no programa — uma nova proposta na TV, um velho postulado do vídeo independente.

As intervenções de Sandra Kogut na TV, embora esparsas, retomam e aprofundam caminhos abertos por um outro grupo que, ao lado da Olhar Eletrônico, pode ser apontado como um dos mais influentes entre toda a geração do vídeo independente que despontou nos anos 80: oTVDO. Dispostos também a encontrar um espaço na indústria broadcasting para uma produção mais alternativa, os videomakers ligados à produtora TVDO atuaram

nas fronteiras entre a cultura popular e a erudita, incorporando certos procedimentos da montagem e do discurso mais delirante da videoarte a formatos já legitimados dentro da TV mais comercial. ATVDO começa a fazer televisão trabalhando justamente com o mais radical de seus formatos, ainda hoje: o videoclipe. Juntamente com Nelson Motta, já um produtor musical muito respeitado na época, os rapazes daTVDO dirigiam e editavam os videoclipes de um programa que abriu espaço na TV para produção mais contemporânea da música brasileira, o Mocidade Independente, veiculado pela Rede Bandeirantes, entre junho e agosto de 1981. Como grupo, oTVDO ainda colaboraria na concepção e realização do Fábrica do Som (1983-1984), na Rede Cultura, mais um programa musical que apresentou na TV bandas como Ultraje a Rigor, Paralamas do Sucesso eTitãs, além de abrir espaço, frequentemente, para outras manifestações artísticas de vanguarda, como a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. O Fábrica do Som era apresentado por Tadeu Jungle e dirigido por Pedro Vieira, dois dos nomes mais expressivos do TVDO. No grupo, também se destacou o videomaker e poeta Walter Silveira, que, depois de dirigir por anos a programação da TV Gazeta, ocupa, atualmente, o cargo de diretor de programação da Rede Cultura, garantindo na emissora um espaço para o experimentalismo.

* Veja m ais sobre a presença de Sandra Kogut na televisão em Rita L ima (1997).

9 4 • Y van a F fch in e

Material com dir

Fábrica do Som já era tão inovador para a época que acabou sendo relançado pela TV Cultura, em fevereiro de 2000, com outro nome, Musikaos, mas com o mesmo diretor e praticamente o mesmo formato e proposta. O programa esforça-se para manter, mas agora sem o mesmo impacto, um espirito anárquico que a TVDO levou, na época, para a televisão, criando a partir da precariedade, transformando defeito em efeito, apostando na 'sujeira' do material exibido como um estilo. Por suas perguntas à queima-roupa, bombardeando seus convidados com provocações; por seu comportamento agressivo, meio delirante e ‘desorganizado" diante do padrão dos apresentadores de TV, a atuação de Tadeu Jungle na Fábrica do Som chegou a ser comparada, por críticos como Arlindo Machado, a de Glauber Rocha nas suas intervenções no programa Abertura da extinta TVTupi (Machado, 1993a: 262). Machado não é o único a apontar a influência de Glauber sobre os jovens videomakers que despontaram nos anos 80. Para Regina Mota. nos meses em que manteve um quadro semanal no Abertura em 1979, dirigido por Fernando Barbosa Lima, Glauber teria apontado para toda essa geração um jeito deliberadamente mal comportado de fazer televisão: colocando na tela o material "quase bruto", abandonando roteiro e direção, apostando no acaso e na emoção ditada pelo momento da gravação, incorporando a câmera como um personagem e criando em torno dela um happening que, por fim, seria o próprio produto a ser levado ao ar. Foi Glauber também quem primeiro levou para a tela da TV, como seus entrevistados e convidados, tipos como Brizola, um negro favelado envolvido com o jogo do bicho no subúrbio carioca, ou como Severino, um nordestino semi-analfabeto que trabalhava como operador de cabos da própria Tupi. Com o Glauber despenteado e barbado do Abertura, abriu-se também um espaço na TV para todo tipo de performer que desafia a 'estética do bonitinho', vale-se de si mesmo como personagem, embaralha informação e fabulação (cf. Mota, 2001).

A produção experimental nas grandes redes

Todo o revolucionário projeto ético-estético do Cinema Novo de reinterpretar a realidade social, a situação política c a produção cultural do país a partir da perspectiva do não-oficial, do periférico e do marginal antecede no Brasil o movimento do vídeo independente. O que contribui para que, historicamente, muitos desses realizadores que despontam nos anos 80 comecem a usar o vídeo como meio, orientados no entanto, por conceitos formulados mais no campo do cinema experimental que na incipiente esfera de produção da arte eletrônica no Brasil. Se os princípios eram os mesmos, a opção pelo vídeo freqüentemente foi motivada apenas por seus menores custos de produção em relação à película. Em alguns casos, o ingresso desses realizadores na TV comercial se dá, no entanto, antes mesmo de sua participação mais efetiva na produção independente de vídeo. É o caso do pernambucano Guel Arraes, que, depois de uma formação praticamente autodidata no exterior, volta ao Brasil e migra do cinema experimental direto para a TV Globo.,0Toda a

15 Filho do ex- governador de Pernam buco M igud Arraes. deposto do cargo em 1964 pelo reg me m ilitar, Guel Arraes (M iguel Arraes de Alencar rilh o ) também foi indiretam ente condenado ao exílio , vivendo entre a Argélia (pais que abrigou Arraes e a fam ília) e a França, onde com pletou seus estudos universitários, até 1979 Cm Paris, enquanto cursava antropologia na Universidade de Paris 7, com eçou a trabalhar com produçáode film es em Super-8 no Com ité do Film e Etnográfico, dirigido por Jean Rouch. um dos 'inventores' do tínémo vetiié De volta ao Brasil, díngiu quatro curtas e um méd-.a-mctragem. em Super-8, antes de trabalhar no cinem a com ercial com o assistente de câm era e de, logo depois, com apenas 25 anos de Idade, entrar para a Rede Globo (1981).

O VÍDEO COMO UM PRO/ETO UTÓPtCO Cf TELEVISÀO • 95

produção de Guel com Super-8 estava, porém, perfeitamente em sintonia com a tentativa dos produtores independentes de conciliar, naquela mesma época, a tendência ao documentário e á temática social com a exploração dos recursos técnico-expressivos dos meios audiovisuais. Embora mal tendo utilizado o suporte videográfico antes de entrar na Globo, poucos realizadores da geraçáo do vídeo independente exercitaram tâo intensamente seus postulados quanto Guel.

Em todos os trabalhos que tiveram a participação de Guel Arraes, seja como roteirista, seja como diretor ou produtor, observam-se duas características recorrentes na produção do vídeo independente no Brasil: o apelo à paródia dos produtos e processos de produção da própria TV, num exercício profundo e permanente de metalinguagem; e a preocupação em explorar a função cultural da televisão, sem perder de vista sua profícua intertextualidade com outros meios (cinema, teatro, literatura, artes performáticas). Com o grupo reunido em torno do Núcleo Guel Arraes, a TV incorpora, de modo mais inteligente e divertido, a crítica aos meios e modos, e atenta, sem se perder do seu público, contra os próprios modelos de representação que difundiu. Programas como Armação Ilimitada (1985-1988), TV Pirata (1989-1990), Doris para Maiores (1991), e Programa Legal (1991-1993), todos dirigidos por Guel, são referências exemplares dessa televisão, que ri inclusive de si mesma, preconizada pelo vídeo independente. Foi graças à criação do Núcleo Guel Arraes que adaptações de clássicos da literatura brasileira chegaram a um grande público com uma linguagem renovada pela TV. nos episódios do Brasil Especial (desde 1993), por exemplo. Esteticamente, Guel tem trazido para a TV o que do cinema e do vídeo, da literatura e do teatro podia transformar-se em boa TV e boa audiência. Por fim, ele trouxe algumas das melhores produtoras que atuam hoje, de modo independente, no mercado do audiovisual, para trabalhar com a própria Rede Globo, vencendo a resistência da emissora a esse tipo de parceria.

Vinculadas ao Núcleo Guel Arraes. as produtoras 02, Videofilmes e Casa de Cinema de Porto Alegre estão entre os grupos que fecharam contratos com a Rede Globo para a realização de projetos exclusivos para a emissora. Não por acaso, os nomes associados hoje a tais produtoras já se destacavam também no movimento independente dos anos 80. Fernando Meirelles e Paulo Morelli. fundadores da Olhar Eletrónico, são atualmente sócios da 02, fundada no começo dos anos 90 para se dedicar inicialmente à publicidade. Hoje. a produtora também se dedica à produção para TV e cinema, estando associada a campeões recentes de bilheteria como o filme Cidade de Deus (2002). A Videofilmes, fundada em 1986 pelos irmãos Walter e João Moreira Salles, é hoje a maior produtora especializada em documentários e longas-metragens do Brasil, depois de lograr uma das mais bem-sucedidas experiências comerciais entre os produtores do video independente. Já a ligação com a Casa de Cinema de Porto Alegre se deu por intermédio de Jorge Furtado, um dos sócios da produtora e um dos mais freqüentes parceiros de Guel na roteirização e direção de minisséries. Furtado é um dos nomes mais respeitados na produção audiovisual brasileira desde os anos 80.

A aproximação da 02 Filmes com o Núcleo Guel Arraes começa com o convite a Fernando Meirelles para dirigir o episódio O que Eu Vou Ser Quando Crescer (1997), da série Comédia da Vida Privada (1995-1999). Pouco depois, veio a proposta de Guel para que a 02 produzisse um episódio para a série Brava Gente. Meirelles aceitou o convite com a condição de desenvolver uma história ligada à temática do longa-metragem que estava

96*V vana Fechíne

preparando sobre o cotidiano, a violência e o comércio de drogas na favela. Surgiu assim o episódio Palace II, exibido no fim de 2000 pela Rede Globo e transformado depois em um curta-metragem. Palace II funcionou como uma espécie de laboratório para o filme Cidade de Deus, que a 02 lançou em 2002, com um elenco formado basicamente por atores estreantes, selecionados entre jovens de comunidades carentes do Rio de Janeiro para participar das oficinas de interpretação organizadas pela 02 . Palace II foi realizado com parte dos alunos da oficina de atores que Meirelles comandava na época e que acabou se transformando no grupo Nós no Cinema, um caminho para a profissionalização desse grupo de atores negros, desconhecidos e pobres como os personagens que interpretaram em Cidade de Deus. Com a produção da 02 e a participação do elenco do Nós no Cinema, a Globo exibiu como especial da Semana da Criança, em outubro de 2002, a minissérie Cidade dos Homens, que é um desdobramento do universo de violência e desigualdade social enfocado por Palace II. com base em uma história recolhida no livro Cidade de Deus, do escritor e ex-favelado Paulo Lins. o mesmo que inspirou o filme de Meirelles.

Os quatro episódios de Cidade dos Homens, sob a responsabilidade de roteiristas e diretores diferentes, apresentam como protagonistas dois garotos de 13 anos, Laranjinha (Darlan Cunha) e Acerola (Douglas Silva), que enfrentam problemas comuns a qualquer favela no Rio de Janeiro: a falta de dinheiro e de oportunidades, as guerras entre os traficantes de drogas e a submissão aos donos do morro, o preconceito social e o desrespeito da polícia. A minissérie produzida pela 02 colocou na tela da Globo gente

fumando maconha, apontando armas para a câmera, falando palavrões, apanhando da polícia. Mesmo com um produto ficcional, o grupo comandado por Fernando Meirelles acabou levando para a maior emissora comercial do país uma das propostas mais caras ao vídeo independente: a de discutir temas incómodos na TV adotando a perspectiva dos próprios sujeitos enfocados. Nessa favela genérica, criada pela 02 e pela Rede Globo, o cotidiano é abordado a partir do olhar do favelado, e, para isso, a participação de um elenco oriundo da periferia contribuiu decisivamente. No primeiro episódio da série, A Coroa do Imperador, a história vivida pelos personagens Acerola e Laranjinha chegou a ser entrecortada por depoimentos dos atores Darlan Cunha e Douglas Silva, testemunhas da mesma violência que, agora, interpretavam. Da produção em vídeo, Cidade dos Homens também incorporou os procedimentos da montagem digital, explorando, de modo pouco usual nos gêneros ficcionais correntes da TV, a manipulação eletrónica das imagens (texturas, controle de cor etc.) e os recursos da edição não-linear (design de telas, lettering, controle de velocidade das sequências etc.).

Com seu nome associado hoje à própria retomada da produção cinematográfica brasileira, a Videofilmes se manteve, na televisão, no mesmo caminho aberto nos anos 80 pelos irmãos Salles. Eles foram uns dos pioneiros na produção independente de programas de qualidade para a TV. As séries televisivas Japão, uma Viagem no Tempo (1985), China, o Império do Centro (1987) e América (1989), exibidas pela extinta Rede Manchete, estão associadas à própria renovação estética dos documentários produzidos por realizadores brasileiros. Desde então, a Videofilmes tem sido parceira constante de emissoras de televisão europeias e de canais oferecidos pelo serviço de TV paga no Brasil, como a GNT (co-produtora dos documentários Mar Sem Fim e Casa-Grande e Senzala, e das séries 6 Histórias Brasileiras e Futebol, entre outras). Para a TV, um dos documentários de maior

O V PtO COMO UM PROJETO UTOPKIO DE TtlEVISAO » 97

repercussão produzidos pela Videofilmes foi Notícias de uma Guerra Particular, dirigido por João Salles e Kátia Lund (parceira de Meirelles em Cidade de Deus), exibido em 1999 pela GNT. Notícias de uma Guerra Particular mostrou as relações entre os traficantes, a polícia e os moradores dos morros do Rio de Janeiro com um realismo e uma diversidade de "vozes' nunca vistos na TV no tratamento jornalístico do tema. O exemplo não é único nem isolado. A produção independente do vídeo também pode ser associada a alguns dos raros momentos de renovação com qualidade no telejornalismo brasileiro.

Não foi por acaso que, nos anos 80, quando decidiu sustentar uma maior segmentação do seu público nas classes A e B, a Rede Manchete investiu no jornalismo e na parceria com as produtoras para a realização de programas, séries e documentários exclusivos, apostando nos novos realizadores que despontavam, como os irmãos Salles. Na mesma época em que se juntou à Videofilmes, a Manchete também realizou com outra produtora independente, a Intervideo. de Fernando Barbosa Lima, uma série histórica: Xingu, a Terra Mágica dos índios. Dirigidos por Washington Novaes, os 11 episódios da série, exibidos entre março e junho de 1985, mostravam a visão de mundo dos índios xinguanos do nascimento à morte, aliando um minucioso trabalho de pesquisa a um profundo respeito à comunidade retratada.11 Com a Intervideo, que foi fundada em 1982, a Manchete iniciara antes a produção do programa jornalístico de entrevistas Conexão Internacional (1983), supervisionado pelo próprio Fernando Barbosa Lima e dirigido primeiramente por Walter Salles Júnior. O Conexão Internacional, que chegou a receber o Prémio Rei da Espanha, em 1986, era apresentado pelo jornalista Roberto D'Ávila, que acabou depois assumindo e dando seu nome ao programa {Conexão Roberto D'Ávila). levado ao ar agora pelaTVE - Rede Brasil. A mesma Intervideo produziu ainda para a Manchete, entre agosto e novembro

de 1986, o programa jornalístico de variedades chamado Aventura. Dirigido por Barbosa Lima, o programa tentava retomar, em outra emissora e em outro contexto sodopolítico, a estrutura e o projeto crítico do histórico Abertura. Os rapazes da Olhar Eletrônico também participaram do Aventura com completa autonomia para produzir um dos quadros do programa, o já mencionado 0 Mundo no Ar.

Insistindo em fazer um jornalismo com mais profundidade na TV, a Manchete lançou ainda o DocumentoEspeciat. Televisão Verdade, criado por Nelson Hoineff, e também assumido depois como uma produção independente pela Comunicação Alternativa. O Documento Especial levou para a TV o 'mundo-cão' com a seriedade e equilíbrio, sem qualquer visão depreciativa sobre os problemas e personagens enfocados. O programa tratou de temas como a prostituição, os travestis, a droga, o suicídio, a marginalidade das ruas e a criminalidade no melhor estilo do cinéma verité europeu herdado, no Brasil, por parte dos produtores de video dos anos 80. Produzido de 1989 a 1992 com a Rede Manchete, de 1992 a 1995 com o SBT e de 1997 a 1998 com a Rede Bandeirantes, o Documento Especial tornou-se um marco no jornalismo investigativo brasileiro, colecionando prêmios nacionais e internacionais e inspirando vários outros programas realizados depois pelas próprias emissoras. Neste começo de milênio, até mesmo Comunicação Alternativa, de Hoineff, depois de passar por emissoras abertas comerciais e públicas, tem atuado mais sistematicamente produzindo programas

" O m esmo W ashington Novaes com andaria depois, a convite da M anchete, a série Os Cammhoi da Sobrevivénaa (outubro de 1936 a fevereiro de 1987). com cinco episódios sobre m eo am biente a cargo de diretores convidados, entre e les os docum entanstas Eduardo Coutinho e S ilvio Tendkr. Ainda em 1987. Novaes dirig iu rv» em issora a série Kuarup Adeui ao Chefe Malúkuyawd.

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brasileiros para canais por assinatura internacionais, como o Discovery Channel (CyberKids e Vidaon Une, por exemplo).,; A produção de documentários e projetos especiais para canais de televisão europeus foi, ainda que de modo esparso, um caminho encontrado, já a partir dos anos 80, por muitos dos produtores independentes, e, nos anos 90, por videomakers da última geração, como Carlos Nader e a própria Sandra Kogut.

Mercado paralelo

Ao lado dessas produtoras que se organizaram, apesar da proposta diferenciada, em torno de estratégias de comercialização dos seus produtos para a TV e para o mercado publicitário (este foi o principal meio de sobrevivência da maioria delas), surgiram ainda, dentro da produção independente, grupos ligados à atuação de organizações não-governamentais, sindicatos e centrais de trabalhadores, às associações de bairros, aos movimentos de mulheres, dos negros, dos índios e dos sem-terra, entre outros. Ao longo dos anos 80 e até o começo dos anos 90, o vídeo foi utilizado como uma rede alternativa de comunicação aliada à luta pela redemocratizaçáo, às ações de educação e conscientização nas comunidades, à mobilização dos trabalhadores. A maior parte dessa produção tinha uma circulação restrita, sendo exibida basicamente em espaços abertos por esses setores organizados da sociedade civil. Apesar da influência formal e temática dos precursores da guerrila video, movimento que teve seu auge na década de 1970, o vídeo popular independente no Brasil já não se pautava, como faziam os realizadores europeus, canadenses e americanos, pela contestação assumida ao discurso hegemônico da televisão comercial. Paralelamente ao trabalho com os movimentos sociais, alguns desses grupos realizaram programas para emissoras de TV, até mesmo

como uma forma de captar recursos para aquisição de novos equipamentos. A TV Viva, radicada em Olinda (PE), é um dos melhores exemplos desse convívio: realizou, desde a sua criação em 1984, dezenas de reportagens, documentários, quadros ou programas para emissoras nacionais e internacionais.

Ligada institucionalmente ao Centro Luiz Freire, uma ONG que desenvolve trabalhos nas áreas de comunicação, educação e políticas públicas, a TV Viva destacou-se no movimento do video popular brasileiro pela originalidade do material produzido e pelo próprio modo de exibição. A TV Viva foi a primeira televisão de rua do país direcionada aos movimentos sociais. Contando com uma equipe fixa, que chegou a ter 25 pessoas em meados dos anos 90, a TV Viva produzia, a cada 15 dias, um programa de variedades que era exibido em telões nos bairros mais populares e populosos do Grande Recife. Nesses programas, popularizou-se a figura de outro conhecido repórter trapalhão, o Brivaldo, interpretado pelo ator Cláudio Ferrário. Na mesma linha do anti-repórter adotada pelo Ernesto Varela, criado pela Olhar Eletrónico,'Brivaldo. o seu repórter de vídeo e áudio’, era um tipo gozador que se fantasiava de acordo com o tema da reportagem e não se acanhava em disparar perguntas desconcertantes aos entrevistados. Brivaldo investia mais em abordagens brincalhonas e em performances debochadas no meio da rua, convocando pessoas anônimas para participar da discussão de temas polêmicosM Cytxrkids, no ar desde 1996, mostra o m undo da inform ática para crianças. Vida on Une é produzido, desde 1995, com o segm ento brasileiro de um programa de inform ática para adultos no D^covcry Channel

O VlDEO COMO UM PROJETO UTÓPICO DE lElEVISAO • 99

da época, como o confisco da poupança pelo governo Collor. Os mais de 300 vídeos e documentários que já realizou, colaboraram ainda na divulgação de inúmeros artistas populares pernambucanos quando esses não tinham espaço na mídia institucionalizada.

Sem deixar de priorizar as atividades de produção e exibição de programas nos bairros, a TV Viva fez ainda documentários para emissoras estrangeiras (Channel 4/lnglaterra. WRD/Alemanha, FR3/França) e colaborou com programas nas emissoras comerciais de televisão, tais como Casseta& Planeta Urgente e Faustão, na Globo, Plantão da Madrugada, no SBT, e Documento Especial, na Manchete, entre outros. Depois de contribuir também com coberturas jornalísticas daTV Jornal (afiliada do SBT),TV Gazeta eTV Cultura, a TV Viva decidiu investir numa produção autônoma em duas emissoras públicas, a TV Universitária e a TV Pernambuco, no Recife. Em 1994, a produtora concentrou todos os seus esforços na realização do Tela Viva, um programa semanal de debates com e para adolescentes, que logo saiu do ar por falta de patrocínio. Em parceria com a TV Jornal, a produtora realizou ainda o Som da Nota, uma revista cultural semanal, exibida por seis meses em 1998. As tentativas da TV Viva de conquistar um espaço regular nos canais abertos coincidem, e, não por acaso, com a suspensão do trabalho de rua, em 1993, depois de uma crise provocada por divergências internas e pela escassez de recursos. As verbas dos programas de cooperação internacional, que viabilizaram por anos projetos dc conscientização popular e mobilização política por meio do vídeo, como o daTV Viva. começaram a minguar sob a alegação de que o Brasil já havia conquistado a democracia. Alia-se a essa conjuntura de financiamento internacional desfavorável uma maior abertura de espaço nas emissoras de TV para as questões sociais, o que leva as ONGs a rever suas próprias estratégias de comunicação.'- A prioridade agora não é mais produzir seus próprios programas, mas se inserir nesses espaços já existentes. Fecha-se assim um ciclo de produção no video independente do qual o declínio da TV Viva, que já foi uma referência obrigatória no movimento popular, é o maior indicativo. A produtora só retomou as exibições de rua. e ainda assim timidamente, no segundo semestre de

foi uma referência obrigatória no movimento popular, é o maior indicativo. A produtora só retomou as exibições de rua, e ainda assim timidamente, no segundo semestre de 2001, com a TV Matraca, projeto realizado com o apoio financeiro da prefeitura do Recife, administrada na época pelo Partido dos Trabalhadores, PT.

Com seus aspectos positivos e negativos, experiências como a da TV Viva sintetizam perfeitamente o grande projeto político do movimento do vídeo independente no Brasil: representam, de um lado, toda a aposta de nova geração de realizadores na possibilidade de democratização dos meios e quebra dos monopólios na comunicação; revelam, por outro lado, como é limitada a repercussão de suas iniciativas, por mais inovadoras que sejam, diante do quadro nacional de concentracionismo da teledifusão, consolidado no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos os canais de televisão broadcasting são obrigados legalmente a exibir, em horário nobre, produções independentes, no Brasil, as grandes emissoras comerciais definem suas grades praticamente sem restrições,'4 produzem quase tudo que veiculam ou compram a preços vantajosos filmes e seriados enlatados produzidos pelas redes americanas, especialmente, e mexicanas, ultimamente. Nesse

"Veja mais sobre o espaço ocupado pela produção do video popular em Bezerra (2001)14 Nos Estados Unidos, por exemplo, a legislação só perm ite que as emissoras de televisão produzam 30% do que veiculam, obogando-as a mcorporar a produção independente às suas programações. No Brasil, a única exigência feita aos concessionários dos canais de TV é a transmissão de cinco horas semanais de programação educativa (Decreto-Lei 236/67), mas, ccm o náo há uma regulamentação sobre o que é um programa educativo, as próprias emissoras decidem, de acordo com seus critérios e interesses, o que se enquadra nessa categoria.

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mercado fechado, a decisão da Rede Globo de incorporar à sua grade produções independentes de maior fôlego, não deixa de ser motivo de celebração. Mas é pouco. Não há mesmo muito o que comemorar quando um diagnóstico sobre a relação entre vídeo e TV, feito por diretor Sérgio Waismann, num painel sobre a produção independente realizado em 25 de setembro de 1986. pelo Centro Cultural Cândido Mendes (Rio de Janeiro), permanece ainda dolorosamente atual:

"No Brasil, existem dois tipos de produtor: os que fazem TV e os que fazem VT. Os que fazem TV são uma pequena minoria e talvez apenas 10% consigam chegar à televisão. Os 90% restantes permanecem na 'periferia' produzindo comerciais e programas institucionais para empresas. Essa é uma realidade muito triste, mas é a realidade brasileira'.15

Quando foi feita essa avaliação, não havia ainda no Brasil a TV por assinatura, que só chegou aqui em 1990, operando com a Banda C e o sistema MMDS, e a partir de 1991 com cabo. Mais uma vez, a exploração da nova tecnologia concentra-se em poucas mãos: dois grandes grupos, NET Brasil (Globo, Multicanal, RBS), e TVA (Abril), operam como distribuidores comercializando os canais das programadoras para as operadoras do mercado brasileiro. Tanto no que diz respeito a sua regulamentação quanto à expansão da rede física de transmissão e ao desenvolvimento dos pacotes de programação, a TV paga é também ainda um setor em fase de implantação no Brasil. Com 15 anos de atraso em relação ao mercado internacional, contando hoje com pouco mais de 3,5 milhões de assinantes (números de julho de 2001),16 e tendo a grande maioria dos

produtos audiovisuais oferecidos importados, a chegada dos canais por assinatura ao mercado brasileiro ainda não modificou significativamente a relação das produtoras independentes brasileiras com a televisão., ; Comercialmente. o governo esperou mais de dez anos para tomar uma iniciativa capaz de alterar esse quadro: a legislação que entrou em vigor em maio de 2002 (Lei 10.454/02) prevê uma taxação de 11% para os canais internacionais de TV por assinatura, que operam no Brasil, a cada remessa de receita para o exterior. Os canais internacionais podem, no entanto, aplicar 3% desse montante na aquisição de produções independentes de cinema e TV voltadas para sua grade de programação, o que deve ampliar o seu espaço , ao menos nas TVs por assinatura.

O legado conceituai do vídeo

Historicamente, a tímida presença das produtoras independentes nas emissoras comerciais só nos leva a concluir que a sua influência na televisão aberta no Brasil se deu — e ainda se dã — mais em termos de 'circulação de idéias', que, em maior ou menor medida, acabaram sendo absorvidas pelos profissionais da própria TV. Nada mais natural visto que muitos realizadores acabaram se incorporando aos quadros das próprias emissoras comerciais depois de experiências diversificadas com a produção audiovisual no vídeo e

’ * Depoimento recolhido no capitulo Troduçào independente - idéias e propostas* TV ao Vivo, 1938 ’* Números do site da Associação Brasileira de Telecomunicações por Assinatura, A8TA ,f Veja mais sobre a segrrventaçào da TV no Brasrl em Hoineff (1996)

O VIDEO COMO UM PPOJETO UTÔPtCO DÉ TELEVISÃO *101

cinema mais experimental. Se nos desprendermos das relações políticas, econômicas e institucionais entre os meios, pensando agora apenas no video como linguagem, provavelmente nos depararemos com a sua dissolução nas mais distintas manifestações do que se reconhece hoje como qualidade estética na TV. Se, mesmo correndo o risco de um certo reducionismo inerente às sistematizações, inserirmos a produção em vídeo num quadro de influências mais amplo que abrange o experimentalismo no audiovisual brasileiro, identificaremos hoje muitos dos seus postulados, procedimentos e processos diluídos nos programas populares de TV. Genericamente, essas estratégias e formas expressivas que perpassam hoje o vídeo e a televisão estão associadas a todo tipo de uso daquilo que aqui se designa como montagem expressiva, apelo à auto-referencialidade, apresentação do processo como produto e estética da inversão. Vamos descrever então o que significa exatamente tudo isso retomando, quando necessário, os programas já mencionados como exemplos dessa relação TV/vídeo.

Montagem expressiva

Sob a designação de montagem expressiva, podem ser reunidos todos os procedimentos e elementos responsáveis pela construção do discurso na ilha de edição, explorando os recursos técnico-expressivos disponíveis, inicialmente, nos sistemas lineares (cortes, fades, fusões, superposições, congelamentos, acelerações e desacelerações etc.), e somados, hoje, ao processamento digital da imagem nos sistemas não-lineares (controle de cor e alterações da textura de imagem, seccionamentos de tomadas, de quadros e da tela, recortes e colagens de todo tipo etc.). As inúmeras possibilidades de manipulação da imagem eletrónica e de intervenção no interior do

quadro, levadas ao limite pelo processamento digital dos sinais de vídeo, resultaram no que Arlindo Machado'8 aponta como uma das principais formas expressivas da contemporaneidade: a multiplicidade. Na televisão, como no vídeo, esta multiplicidade está associada à concentração — ou mesmo excesso — de informações verbais, visuais e sonoras num mesmo espaço de representação, num mesmo momento de exibição. Se antes os discursos se articulavam apenas numa ordem sintagmática (eixo do ou... ou), hoje, os diferentes elementos se articulam na tela a partir de uma organização paradigmática (eixo do e... e): não se trata mais de organizar as unidades audiovisuais considerando apenas a sua seqüencialidade, mas de concebê-las a partir da lógica da simultaneidade. Assim como coube ao vídeo dar conseqüências ao conceito eisensteiniano de montagem 'vertical'e polifônica, compete agora à TV, num exercício de síntese das influências de um meio sobre o outro, dar maior legibilidade a essas narrativas desenvolvidas a partir das tecnologias disponíveis, tornando-as acessíveis e compreensíveis a um grande público.

Quais são, exatamente, os princípios dessa "montagem vertical' preconizada pelo cineasta russo Serguei Eisenstein, já nos anos 20? Justamente a com binação, a superposição, num mesmo quadro (tomada) de diferentes sistemas semióticos. Como nos lembra Machado, na época em que Eisenstein viveu, essa acumulação de elementos

" Veja mais a respeito em Machado (1997).

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só podia dar-se a partir de contrapontos entre imagens e som, à exploração da própria mise-en-scène dos atores ou da composição do quadro (cenários, angulaçòes, diferentes profundidades de campo da imagem, entre outras possibilidades). Hoje. essa montagem vertical pode ser traduzida na linguagem mais contemporânea do vídeo e de determinados formatos da televisão pela tentativa de dar o "máximo de informações num mínimo de tempo', a partir dos recursos de pós-produçáo disponíveis (Machado, 1997: 239). O que implica, de um lado, a construção de diferentes pontos de vista narrativos num mesmo momento (segmento) ou mesmo no surgimento de formas não narrativas comandadas por uma gramática puramente visual, polissêmica e polifônica. A TV começa a romper, aos poucos, com a narrativa linear, unívoca e predominantemente verbo-vocal dos seus gêneros discursivos mais tradicionais. Por outro lado, a maioria das emissoras de televisão parece ter aprendido, com base nessa aproximação do vídeo com o computador, a tratar a própria tela da TV como um produto de design e a explorar com mais frequência as propriedades plásticas e signifkantes da sua imagem.

Na TV, o primeiro e mais eloqüente exemplo desse tipo de montagem foi o videoclipe, um gênero ao qual são dedicados hoje programas inteiros na maioria das emissoras de TV comerciais. O que muitos identificam hoje na TV como um "estilo videoclipe", que contamina e se integra à sua programação como um todo, nada mais é do que a manifestação desse tipo de montagem presente em quadros e sequências inteiras ou pontuais inseridas tanto em gêneros ficcionais quanto não-ficcionais. E esse também o tipo de montagem por excelência da publicidade televisiva. A influência dessa montagem 'vertical'baseada nos recursos da edição chega até um dos redutos mais conservadores da

linguagem televisual, o telejornalismo. Basta sintonizar canais dedicados exclusivamente ao jornalismo, como a Band News, no Brasil, ou como a CNN, nos Estados Unidos, para ter acesso, simultaneamente, a uma multiplicidade de informações visuais, verbais e sonoras, dispostas numa tela principal, em 'janelas' recortadas dentro dela, ou em letterings que 'rolam' sobrepostos às imagens. Como conjunto, a melhor manifestação dessa montagem expressiva, preconizada pelo cinema e desenvolvida pelo vídeo, é a programação da MTV. Nada mais natural já que o próprio"estilo MTV'é tributário do hibridismo, da fragmentação, da saturação e da intercambialidade entre elementos, característicos da montagem do videoclipe. A própria identidade visual da MTVé baseada nessa acumulação e articulação de elementos gráfico-plásticos sobre imagens que, na sua tela, parecem sempre instáveis e maleáveis (alteradas, deformadas, corroídas). O princípio dessa montagem expressiva começou a se difundir na TV a partir das aberturas dos programas, vinhetas e spots espalhados na programação, justamente os segmentos nos quais hoje se observa uma maior sofisticação no uso dos recursos digitais.

Auto-referencialidade

Esta é provavelmente a característica mais evidente em toda a programação televisiva contemporânea. A televisão fala de si mesma todo o tempo. A definição da própria grade da programação é auto-remissiva e autopromocional. Não poderia mesmo ser diferente, já que a televisão se tornou a principal aliada da atual sociedade de consumo e, para tanto, precisa estimular, antes de mais nada, o consumo de si mesma. A manifestação

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mais explícita dessa auto-referencialidade pode ser vista nos programas especializados em revelar os bastidores e exibir making of dos próprios programas de TV. Também não faltam na programação das TVs os game shows nos quais o que os candidatos colocam à prova são seus conhecimentos sobre as atrações e astros da televisão. Para fazer frente à concorrência gerada pela multiplicação de canais (canais a cabo, por exemplo) e pelas inovações tecnológicas (Internet etc.), as emissoras apelam cada vez mais a todos os tipos de forma discursiva que lhes permitam falar menos do mundo externo e mais do próprio universo por elas criado ou do contato que estabelecem com seu público. A proposta estética de auto-referencialidade que o vídeo legou àTV não tem, no entanto, nada a ver com esse “narcisismo televisual" avesso a qualquer projeto critico em relação ao próprio meio. Nos anos 70-80, quando o vídeo falava de si mesmo o fazia na tentativa de evidenciar — e problematizar, como fez Walter Benjamin — a imagem na era da sua reprodutibilidade técnica. A auto-referencialidade era então uma estratégia de desmascaramento dos mecanismos de mediação e dos artifícios da nova linguagem inaugurada pelas inovações tecnológicas. Consistia, sobretudo, no exercício de uma metalinguagem e de uma prática desconstrutivista em relação aos modelos de representação da própria TV, em contraposição ã qual grande parte da produção em vídeo se definiu.

A televisão não estava — e parece ainda não estar — preparada, porém, para incorporar como procedimento geral essa crítica mais profunda a si mesma exercitada, de fora, pelo vídeo. Prova disso foi o veto da direção de jornalismo da Rede Globo ao projeto Fora doAr { 1998), protagonizado por Marcelo Tas, logo depois da apresentação do piloto do episódio de estréia como um quadro do Fantástico. A proposta do Fora do A r , um quadro do Núcleo Guel Arraes, era mostrar como a TV diz o que diz, focando

especialmente a produção dos géneros jornalísticos. A série retomava, com uma produção mais requintada, um formato já explorado por Tas na produção de esquetes paródicos. nos quais assume papéis de repórter, professor ou cientista, como nos bons tempos da Olhar Eletrônico. O episódio de estréia, O Teleprompter. dá a dimensão do caráter revelador e subversivo do projeto. Com uma edição dinâmica e criativa, um texto bem elaborado e a ironia sutil de Marcelo Tas, Fora do Ar elegeu como tema o aparelho que permite aos apresentadores de TV fazer a leitura de textos sem olhar para o papel, mostrando-o de uma perspectiva completamente diferente: com a ajuda do teleprompter a mulata Globeleza da Rede Globo, Valéria Valenssa, falou com desenvoltura sobre globalização e a loiríssima Carla Perez, dançarina de axé-music, mostrou-se uma especialista na Lei da Gravidade. Tas também foi às ruas e provou que, com a TV e o teleprompter à sua disposição, qualquer um pode se tornar um político. Fora do Ar foi mais um projeto apresentado à Rede Globo por Guel Arraes, que também participou da sua produção (supervisão geral), ao lado de Luís Felipe de Sá (diretor), de José Roberto Torero e Maurício Arruda (roteiristas), além do próprio Tas (também roteirista).

Se a televisão resiste ainda hoje a falar a sério de si mesma, só restou aos seus críticos, inconformados a começar com seus formatos, os programas assumidamente humorísticos. No caminho aberto pelos rapazes da Olhar Eletrônico na televisão, ou, fora dela, pelasTVs comunitárias, como a TV Viva, o TV Pirata (1989-1990), dirigido por Guel, foi um marco dessa televisão que fala e ri de si mesma, mas que faz isso orientada por uma postura crítica em relação às suas próprias matrizes organizativas. Com o TV Pirata, pela primeira vez

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a Rede Globo colocou no ar um programa que'brincava'com sua própria programação: pura metalinguagem. TV Pirata era um programa de humor sem os temas e sem os profissionais reconhecidos nos programas de humor da época. Na forma de esquetes, cada edição semanal do TV Pirata recriava parodicamente os principais formatos da programação diária da TV: novelas, telejornais, os próprios programas humorísticos, até mesmo os intervalos comerciais. No programa, o riso era sempre conseqüente e inteligente: a grande piada era, em última instância, o próprio modo de produção da televisão, seus tipos e estereótipos, seus formatos já institucionalizados (gêneros por assim dizer consolidados). A proposta declaradamente metalingüística do TV Pirata introduziu, no discurso cómico na e sobre a TV. matrizes organizativas que podem ser observadas hoje em programas como o Casseta & Planeta Urgente, exibido pela Rede Globo desde 1992. Com o slogan 'jornalismo mentira, humorismo verdade', o grupo Casseta & Planeta,’9 que já participara da redação do TV Pirata, mantém hoje no ar a mais inteligente crítica à "fabricaçáo'de valores, de produtos e personalidades pela TV. No formato, o Casseta & Planeta Urgente não é, no entanto, muito diferente do TV Pirata ou do pioneiro O Mundo no Ar, da Olhar Eletrônico.

O processo como produto

Por trás desse procedimento, reoperado de forma redutora pela televisão, estão alguns dos postulados que orientaram trabalhos seminais na videoarte. Mais próximos, no campo das artes visuais, da pintura de vanguarda, os primeiros artistas do vídeo se insurgiram contra o modelo de representação ilusionista criado pelo cinema clássico, mas herdado e massificado pela TV na maioria dos seus gêneros ficcionais (telefilmes,

telenovelas etc.). Negaram, com isso, os gêneros narrativo-representativos sustentados pela 'janela' renascentista, pela 'transparência* da imagem, pelo efeito de realidade que a TV, mesmo sem a qualidade do cinema, esforça-se por manter, incorporando seus artifícios de linguagem. Como o cinema clássico e, depois, a dramaturgia na TV construíram essa representação naturalista do mundo? Basicamente, à custa do ocultamento do aparato da mediação e de suas estratégias de enunciação. Nos filmes hollywoodianos. como nas telenovelas da Globo, a história se apresenta como se fosse contada por ninguém e para ninguém, como se a tela fosse essa 'janela' pela qual temos acesso direto ao real. No vídeo de criação, ao contrário, a tela é apenas uma tela, os discursos são simplesmente discursos, as imagens são cada vez mais imagens — imagens-objeto tão disponíveis à manipulação que só podem ser assumidas como um produto de "máquinas semióticas'.

Essas descrições correspondem, em outros termos, a dois tipos básicos de discurso: há um tipo de discurso que se esforça para ocultar sua condição de discurso e há um outro que, ao contrário, revela-se deliberadamente como tal. Se, genericamente, a enunciação está para o enunciado, assim como a produção está para o produto, pode-se entender” O grupo é formado por Beto Silva. Hubert, Reinaldo, Hélio de la Peé-a. Cláudio M anoel Marcelo Madureira e Bussunda. Como grupo, o Casseta & Planeta fez sua estréia na TV em 1990. na cobertura ao vivo do carnaval pda Rede Globo No ano segumte. o grupo estava escrevendo e atuando no progrurrvs de variedades mensal Doris paiaMokxts (1991). dirigido por G uel individualmente, os integrantes do Casseta & Planeta já atuavam como roteiristas em programas como o TV Pirata e Programa Legal

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associar tais discursos a dois grandes modelos enunciativos: um q ue 'm ascara i outro que “desmascara“ as ‘marcas’ do ato de realização naquilo que foi realizado. O primeiro pode ser associado ao cinema clássico e o segundo, mais diretamente, ao vídeo de criação. Entre os dois. interpõe-se o discurso televisivo que desliza, por meio dos seus diferentes gêneros ou dentro de um mesmo gênero, entre um e outro modelo enunciativo. Na TV, o ‘desmascaramento’ dos mecanismos de mediação está, via de regra, associado ao próprio reconhecimento do espectador como um interlocutor (o que se dá no simples olhar de um apresentador dirigido direto para a câmera ou na sua interpelação mais direta), à exibição do aparato técnico de gravaçáo/transmissào (câmeras, microfones etc.) ou à inclusão a qualquer referência que nos dê acesso, a partir daquilo que se vê na tela, ao seu próprio processo de produção como um produto de linguagem. De modo corrente, os enunciados televisuais enunciam a sua própria enunciação (câmeras que se deslocam pelo palco, microfones na frente dos entrevistados, apresentadores que pedem ajuda aos diretores no ar etc.) e, no extremo, a TV, como o vídeo, faz do próprio ato de enunciação aquilo que há para ser enunciado. No vídeo, essa configuração enunciativa vem sendo explorada desde a década de 1970 nos experimentos com circuitos fechados de gravação e exibição, nas instalações e performances dos artistas pioneiros. Na TV, quando isso acontece, estamos diante, geralmente, de programas que fazem do seu próprio processo de produção um produto a ser exibido.

Em maior ou menor medida, essa configuração enunciativa dilui-se hoje pelos mais diversos gêneros televisuais, dos programas de auditório aos telejornais, das revistas eletrónicas aos reality shows. Na história recente da TV brasileira há. no entanto, um

programa que assumiu explicitamente a proposta de fazer do seu processo de produção o produto a ser exibido semanalmente na TV. Trata-se do Muvuca (1998-2000), um programa que. talvez por isso mesmo, tenha resistido na época a qualquer tentativa de classificação num gênero preexistente na TV. O que era o Muvuca? Era uma espécie de 'reality show metatelevisual': reality show porque já apostava na atração que câmeras ligadas 24 horas por dia, registrando as situações vividas por um grupo que convivia intensamente, podiam despertar sobre o público;í0 metatelevisual porque o material registrado e exibido eram as próprias situações de produção do programa. No Muvuca, todas as ações se concentravam num casarão preparado pela Globo em Botafogo, no Rio, onde a equipe de 30 integrantes do programa praticamente passou a morar. A proposta era transformar os relacionamentos e as atividades dos próprios profissionais encarregados do programa em parte do 'espetáculo' a ser mostrado. Para isso, havia pelo menos uma câmera sempre pronta para gravar no casarão. O equipamento era, na medida do possível, camuflado para deixar todo mundo bem ã vontade. Tudo o que acontecia no casarão podia transformar-se numa seqüência do programa porque nele não havia, a rigor,'bastidores'. A muvuca em Botafogo era comandada por Regina Casé,

No formato comercializado pela empresa holandesa Endomol para vários paises. os participantes do reality Show sáo confinados numa casa. sem d ireto a qualquer contato com o mundo exterior, e observados por câmeras 24 horas por dia A rotina, os relacionamentos e as atividades dos participantes sáo gravados ininterruptamente, editados e transformados em episôdos diários para a TV Os participantes vào sendo progressvamente indicados pelo público para deixar a casa e o último a permanecer ganha o jogo. Na televisáo brasileira, o formato foi inaugurado peto Caia doi Artatoi (2001). do S8T. que inovou ao co'ocar como participantes artistas já conhecidos do público em vez de pessoas anônimas. No ano seguinte (2002), a Gtobo colocou no ar duas versões do reality Show. o B q Brother Bratíl I e 2. enquanto o SBT exibia a Casa 2. Todos os programas foram estrondosos fenômenos de audiôncia

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que dispõe dos meios para transmitir tende a ter domínio sobre a maioria que pode apenas receber ou nâo o que lhe é transmitido. O modelo de televisão por broadcast é, evidentemente, um modelo econômico e político que se reflete também, em última instância, na programação das emissoras de TV. O que faz, então, o vídeo independente? Na impossibilidade de intervir nos modelos de teledifusào, atenta contra os modelos de representação que pautam tais programações, questionando, de um lado, as relações de poder e “saber'entre produtor e receptor, e, de outro, a hierarquia entre o sujeito que representa e o outro que é representado (o sujeito enfocado).

É justamente esta proposta que orienta a grande ênfase dada à participação popular em programas como Brasil Legal, Programa Legal e Netos do Amaral, responsáveis por uma inversão 'do foco' na TV brasileira. O Brasil Legal é o exemplo mais evidente. Sua proposta básica era mostrar que situações banais do cotidiano de pessoas comuns podiam transformar-se em objeto de um programa de televisão. Nos 10 a 15 minutos em que se dava a sua aparição em um dos cinco blocos do programa, vendedores ambulantes, biscateiros, costureiras, agricultores, donas de casa, entre tantos brasileiros anônimos espalhados por todas as regiões do país. ocupavam, na tela. o lugar das celebridades fabricadas também pela própria televisão. O objetivo do Brasil Legal era revelar as pessoas. Mostrar quem são, o que fazem e o porque vale a pena conversar e conhecer Mário Pezão, Dona Flora ou Glauber Moscabilly. Na montagem polifónica* Em depoimento concedido ao Grupo de Pesquisa em Cultura e Mídia Contemporânea da Unrversidade Católica de Pernambuco, em agosto de 2002.

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a quem cabia também, no papel de 'dona da casa" recepcionar e entrevistar os visitantes que, 'casualmente* por lá apareciam (geralmente atores, jornalistas e apresentadores da Globo que estavam em evidência na época). Um dos mentores do novo formato. Guel Arraes reconhece agora que o Muvuca "chegou antes da hora'21 e atribui à sua alta dose de inovação a baixa audiência, que acabou forçando o programa a modificar sua proposta original (Regina passou a viajar como no Brasil Legal), até, finalmente, sair do ar.

Estética da inversão

A pretensão de questionar o modelo hegemónico da televisão broadcasting predispôs a produção independente em vídeo a todo tipo de inversão de formas e conteúdos da TV. Os temas que não tinham lugar nos programas das emissoras comerciais eram justamente os que mais interessavam à produção independente; os formatos que na TV broadcasting já estavam consolidados se transformaram em matéria-prima privilegiada dentro do projeto desconstrutivista do vídeo (o telejornal, por exemplo). Na produção independente, esse apelo à inversão como um dos pilares da sua proposta ético-estética teve como motivação principal a própria assimetria na qual se assentava o modelo de produção, transmissão e recepção da televisão broadcasting. No fundo, o problema básico era: a tecnologia não impunha por si só o modelo unidirecional e hierárquico da comunicação, no qual todo o poder sobre o que era produzido e transmitido estava concentrado nas mãos do emissor, ou seja, dos canais de TV. O rádio e a televisão são tecnologias bidirecionais: quem recebe pode, em tese, transmitir, mas essa etapa é mais complexa, dispendiosa e especializada. Por isso. a minoria

O êxito de critica e de audiência do Programa Legal acabou legitimando dentro da TV a inversão de formatos que o vídeo independente preconizou com suas primeiras experiências de articulação de elementos ficcionais e não-ficcionais, uma marca, por exemplo, da produção da Olhar Eletrónico. Hoje, essa mistura entre o documentarismo e a dramaturgia foi incorporada até mesmo pelos programas assumidamente jornalísticos. Tornou-se também um distintivo, na TV, da própria produção de séries e quadros produzidos recentemente pelo Núcleo Guel Arraes para o Fantástico, o mais importante programa de variedades da Globo, a exemplo de Retrato Falado (no ar desde março de 2000) e Copas de Mel (2002), ambos protagonizados pela atriz Denise Fraga. No primeiro, a proposta é recriar histórias engraçadas e reais vividas por pessoas comuns. O personagem é escolhido entre as mais de 700 cartas que o quadro recebe por semana de anônimos interessados em ver sua história dramatizada na TV. O protagonista dessa história real é então convidado a gravar um depoimento e, na montagem, seu relato vai sendo entrecortado com a reconstituição bem-humorada das situações descritas. Na reconstituição, Denise Fraga desempenha sempre o papel principal e, depois de estudar o comportamento e o modo de falar do pretendente, faz uma espécie de imitação.

W e/evoSrai/éuinquadro dinqidoeprotagcrü/adopelojoinaüsta Maurício Kubrusly. desde 2000. como parte do Fantástico Com um formato mais próximo do telejornalismo. mas ainda bem-humorado, o quadro apresenta personagens curiosos e histônas pitorescas recolhidas pelas d-versas regiões brasileiras

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feita por Sandra Kogut. o Brasil Legal constrói um inesperado painel de valores e pontos de vista; instaura uma rede de conversação a distância entre pessoas que nunca se viram e que a TV nunca mostrou, mas que parecem, no entanto, estranhamente familiares para nós e entre si. Toda essa criativa'colagem'de histórias, pessoas, lugares e universos os mais variados nada mais é do que a tentativa de abrir espaço na TV para outras vozes e outras imagens da realidade brasileira, sem nenhuma pretensão de construir um discurso unificador ou autoritário a partir delas.

Com Regina Casé e Sandra Kogut, o Brasil Legal — que abriu caminhos para projetos como o Me Leva Brasil (também exibido pela Rede Globo)“ — aprofundou a experiência anterior do Programa Legal. Em ambos, os entrevistados eram as'estrelas'e o grande atrativo, as histórias recolhidas, em sua maioria, num Brasil periférico, geralmente fora de pauta. A diferença básica entre as duas propostas era a articulação ou não em torno de um eixo temático. O Programa Legal notabilizou-se justamente pelo modo como elegeu e tratou temas de natureza mais antropológica que, apesar de amplamente explorados no vídeo independente, permaneciam fora da TV. Com o Programa Legal, apresentado também por Regina Casé em parceria com Luiz Fernando Guimarães, a TV passou a tratar dos bailes funks às festas de débutantes. O formato também era original: uma profusão de gêneros às avessas. No Programo Legal já não se reconheciam nem as formas organizativas do documentário clássico da TV nem as do chamado docudrama (mistura do ficcional com o não-ficcional). O programa levou para a TV temáticas sérias e densas, com eminente apelo e conteúdo documentais, mas abordadas sempre com irreverência e humor: recorria-se tanto ao jornalístico, com intervenções envolvendo personagens 'reais* quanto à dramaturgia, com esquetes protagonizados por Regina Casé e Luiz Fernando. Eram também frequentes os quadros nos quais os dois atuavam, ao mesmo tempo, como um misto de repórteres (entrevistando pessoas, por exemplo) e comediantes (protagonizando cenas de 'teatro de rua'com a participação de populares).

Com a série de cinco episódios veiculada por ocasião da Copa Fifa 2002, a experiência foi ainda mais radical em Copas de Mel, quadro também dirigido por Luiz Vilaça. As histórias das conquistas dos títulos mundiais de futebol pelo Brasil são contadas com a ajuda de imagens raras de arquivo, do depoimento de técnicos e jogadores de futebol, que participaram das conquistas, e da participação de dois personagens ficcionais, Amélia (Mel) e Jiló (interpretados por Denise Fraga e Selton Mello). Na série, Mel é uma torcedora fanática que se infiltra na delegação brasileira, acaba se casando com Jiló, o roupeiro da seleção, e passa a interferir nos acontecimentos que. supostamente, teriam determinado o sucesso do Brasil nas Copas de futebol. Profunda conhecedora do esporte, é Mel, por exemplo, quem 'sopra' para o técnico Zagallo a escalação da vitoriosa seleção de 1970.0 mais curioso é que, na série, personagens reais, como o próprio Zagallo e o comentarista esportivo Galváo Bueno, gravaram depoimentos confirmando a influência da fanática torcedora sobre as decisões da seleção, o que fez com que muitos espectadores chegassem a acreditar que Mel havia existido de verdade. Outra importante proposta de inversão apresentada pelo vídeo se deu no modo de dirigir as entrevistas. Os já mencionados personagens Ernesto Varela e Brivaldo são os melhores exemplos disso: interagindo com seus interlocutores sem o distanciamento e sem a aparente isenção do jornalismo convencional, demolindo os'discursos prontos'tão freqüentes nas entrevistas de TV.

A busca por pontos de vista inusitados e por uma realidade que nunca aparecia na tela da televisão também esteve presente no trabalho dos rapazes da TVDO. Segundo Machado, a TVDO começou produzindo justamente o que ele chamou de 'reportagens

invertidas', porque, em vez de dirigir o foco para o evento propriamente dito, privilegiavam os aspectos marginais ou as situações paralelas que as emissoras comerciais não mostravam (Machado, 1993: 257). Entre os trabalhos pioneiros nessa proposta de inversão, Machado destaca Teleshow de Bola (1983), um vídeo no qual a câmera se detém nas manifestações da torcida em vez da partida de futebol, e Quem Kiss TV (1983), um documentário que deixa de lado o Show de um famoso grupo de rock norte-americano para se concentrar no 'espetáculo'proporcionado pelos seus milhares de fãs, vendedores ambulantes, cambistas e tipos anônimos atraídos pelo evento. Como um aprofundamento dessa proposta, a TVDO chegou a elaborar o projeto de um programa para TV, Avesso (1984), que nunca chegou a ser levado ao ar. Toda essa estética da inversão do vídeo independente no Brasil surge justamente em um momento em que, no cenário internacional, até ícones da produção audiovisual mais experimental, como Jean-Luc Godard,23 já haviam apostado na possibilidade de, explorando a tecnologia do vídeo, contribuir, ao menos no que concerne à linguagem, para a invenção de uma anti-TV.

Chegamos aqui ao paradoxo final. Seria possível existir esteticam ente esse modelo de anti-TV sem que a televisão deixasse de ser o que, histórica, econômica e institucionalmente, foi projetada para ser? A resposta aparentemente é apenas uma questão de lógica. Mas passa também pelo paralelismo com uma outra história a que, no início do artigo, prometeu-se depois retomar. Voltemos então aos personagens deThomas Harris. agora em condições de sugerir que, como na relação entre Hannibal Lecter e Will Graham, a TV inteligente que aprendeu a pensar como o video o fez tão-somente para,” Godard ptoduziu para a TV séries como SúrFoii Deux { 1976), FtanceAour/d&our/deux/enfants (1978) e Hiitotrefi) du Cinéma (1989).

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depois,'domesticá-lo*. Atualmente, a maioria dos produtores independentes de video não se situa mais à sua margem, mas se orienta e colabora para a criação de novos gêneros para a TV. Ainda que em arranjos mais fechados e dotados de menor ambigüidade, muitos dos experimentos e procedimentos estéticos empreendidos pelo vídeo independente também já estão hoje tão incorporados aos formatos, às aberturas e às vinhetas das grandes emissoras comerciais de TV que nem são mais reconhecidos como tais. Gradativamente, o vídeo legou à TV novas sensibilidades e muito da sua visualidade. Pode-se dizer, com isso, que o video, enfim, virou TV? Claro que não. Se a televisão é o modelo, o vídeo será sempre, esteticamente, seu contramodelo — o vídeo experimentando novas formas, a TV institucionalizando-as num incessante jogo dialético. Se. como foi sugerido antes, a TV está para Will Graham como o vídeo para Hannibal Lecter, estamos então agora diante de uma outra história com um desfecho surpreendente. Nela, revela-se, no final, que o verdadeiro canibal é o agente do FBI, e que ao vídeo talvez esteja reservado o destino de ser permanentemente o nosso projeto utópico de TV.