Madrugada

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Crônica de Túlio Madson Galvão

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Madrugada

Túlio Madson Galvão1

Sempre estudei no período da tarde, a conveniência da mensalidade mais barata se

aliava com minha dificuldade em dormir cedo. Quando criança não havia televisão em

meu quarto, tampouco haviam computadores pessoais disponíveis naquela época.

Quando os brinquedos não satisfaziam mais era a janela meu maior entretenimento.

Tarde da noite, todos dormindo, era a ela que eu recorria, olhava os carros, o vigia, o

caminhão do lixo, os gatos brigando, as escapadas do vizinho. Me atraiam

especialmente os transeuntes: de onde vinham? Para onde iriam tão tarde da noite? Me

indagava com aflição e inveja. Se meus olhos pudessem segui-los quando dobrassem a

esquina, lamentava. Talvez venha daí o desejo insaciável de um dia ser invisível. Cresci

e cá estou, na sombra dessa árvore, homem invisível, velando o sono da cidade.

Na cabeça pensamentos leves, um coração paralítico e uma alma envolta em um manto

cinza, desbotado, ausente de vontade e paixões, sou todo olhos e ouvidos. Não podia

perceber, naquele tempo de menino, que um dia seria invisível, mas por dentro. Aprendi

desde cedo a me cobrir com o manto da madrugada, discreto, silencioso, sorrateiro.

Olhando da janela do apartamento via a rua vazia, os carros escassos, como era bela a

cidade adormecida, quando crescesse queria ter essa serenidade, esse ritmo.

A madrugada é o reino da calma, quando a cidade cala, quando a alma fala. Talvez eu

tenha lido na adolescência que madrugada compartilha do mesmo radical latino de

maturar. Maturo, maduro, madrugo desde então em noites como essa. Se eu madrugo ou

Seu Madruga, não importa, é vagabundo, me fizeram crer. Não adiantou muito. Vago o

mundo quando posso, vaga-lume sem luz, vou de poste em poste, de rua em rua, sem

ser notado.

Já não há mais sonhos, planos, o coração já não bate mais em ritmo juvenil, o que me

resta é a madrugada apaziguadora, silenciosa, melancólica. O sinal de trânsito insiste em

piscar o mesmo aviso amarelo, lembrando aos poucos que se aventuram que na

madrugada não há regras. Aqui, no bucolismo desse terreno baldio, impera o som do

1 E-mail: [email protected] Página: facebook.com/tulio.madson.galvao

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vento e dos grilos que calam os carros, abrigando a luz da lua da artificialidade laranja

dos postes, brilhando teimosamente para ninguém. Esse terreno sou eu, podado pela

cidade.

Já não sei há quanto tempo estou aqui, o tempo parece não existir quando é ignorado.

Daqui tenho outra perspectiva, a rua, a árvore, os apartamentos, os quais enxergo todos

os dias sem vê-los, me parecem outros, o vigilante com seu apito em riste vigia sem

notar que está sendo vigiado. Madrugadas assim sempre fizeram parte de mim, aliás,

apenas sou na madrugada, vou mais longe: só me sinto parte afetiva e moral de uma dita

humanidade na solidão e nesses momentos de extrema individuação. É na distância que

me aproximo das pessoas, é na solidão que me encontro com o humano que há em mim.

Talvez a vida não seja para ser vivida, apenas assistida. Toda vez que tento ser o

protagonista as coisas deixam de ter sentido. Assisto então. O tempo passa, as marcas

aparecem sem que eu note. Talvez eu tenha parado no tempo, menino arredio que

sempre fui, ando escondido em rosto de homem para poder olhar sossegado, sem causar

espanto, sem tirar o manto.

Volto à rua acompanhado por carrapichos na calça, moro há duas quadras daqui, a

tensão é latente e preciso aflorar meus instintos, não sou mais invisível, sou alvo. Há um

jeito certo de se portar na madrugada, uma certa linguagem corporal, uma firmeza no

olhar, a madrugada não aceita forasteiros. Principalmente agora que fui delatado pelo

latido feroz e flagrante do cão que me ameaça na segurança de sua grade, encarno então

a indiferença desse gato preto que imprudentemente rasga os sacos de lixo, alheio ao

barulho, afinal a madrugada o protege e ele assim como eu é parte da fauna que habita

madrugadas como essa.

Publicado originalmente na Carta Potiguar em 22/08/2014

http://www.cartapotiguar.com.br/2014/08/22/madrugada/