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Magazine da SPM 2017 (6) 10.04 www.spmicrobiologia.pt 1 A Sequenciação Total do Genoma na monitorização de surtos: exemplo do grande surto da Doença dos Legionários em Vila Franca de Xira Alexandra Nunes 1 , Vítor Borges 1 , Miguel Pinto 1 , Luis Vieira 2 , João Paulo Gomes 1* 1Unidade de Bioinformática, Departamento de Doenças Infecciosas e 2 Unidade de Tecnologia e Inovação, Departamento de Genética Humana, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, Lisboa *correspondência: [email protected] O presente artigo pretende dar uma visão geral sobre a utilização da metodologia de Sequenciação Total do Genoma para o estudo de surtos infecciosos. Aborda a sua maior adequabilidade para este fim quando comparada com as metodologias tradicionais e também a sua abrangência, dando exemplos de aplicação para a identificação e caracterização de surtos infecciosos ocorridos na comunidade, em ambiente hospitalar e no âmbito de acções de bioterrorismo. Finalmente, descreve a sua aplicação no estudo do surto de grande dimensão da Doença dos Legionários que ocorreu em Vila Franca de Xira no final de 2014, bem como na identificação do primeiro caso reportado de transmissão pessoa-a-pessoa desta doença. Introdução A tecnologia de Sequenciação de Nova Geração (Next Generation Sequencing - NGS) tem sofrido, durante a última década, um desenvolvimento exponencial associado a um decréscimo considerável de custos, facilidade de procedimentos/manipulação, rapidez e capacidade de geração de sequências (reads). Para isto tem igualmente contribuído o incessante aparecimento de ferramentas para análise bioinformática, as quais têm permitido, não maior capacidade e rapidez de análise dos dados gerados, mas também análises mais detalhadas e robustas. No entanto, enquanto o processamento de amostras e a sequenciação têm progressivamente vindo a ser estandardizadas e automatizadas, a análise bioinformática é ainda considerada um importante bottleneck neste processo, fruto da enorme especialização técnica e infraestruturas que requer (actualmente, existem poucos laboratórios habilitados para tais análises), bem como da subjetividade de que por vezes é revestida. Na área da Microbiologia, os avanços na tecnologia de NGS, nomeadamente na vertente de Sequenciação Total do Genoma (vulgarmente referenciada por Whole Genome Sequencing - WGS) têm-se refletido progressivamente na substituição e/ou complemento das tradicionais metodologias laboratoriais, influenciando de forma inequívoca a deteção microbiana/diagnóstico, a monitorização epidemiológica e a análise genética detalhada de vírus, bactérias, fungos e parasitas. Atualmente, e citando a título de exemplo a tecnologia Illumina (o sequenciador MiSeq da Illumina é um dos mais representados nos laboratórios em Portugal), é possível sequenciar um genoma bacteriano a partir de 1 ng de DNA, em cerca de dois dias (incluindo já o tempo de preparação da amostra), e com custos que oscilam, grosseiramente, entre os 75 e os 200 euros (para genomas de 1 Mb a 7 Mb, respectivamente). Estas características fazem com que, nos dias de hoje, uma das maiores e mais importantes aplicações da tecnologia de WGS consista no estudo de surtos infecciosos, tendo um impacto considerável em termos de saúde pública. Neste âmbito, o presente artigo pretende dar uma visão geral sobre a utilização da

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A Sequenciação Total do Genoma na monitorização de surtos: exemplo do grande surto da Doença dos Legionários em Vila

Franca de Xira

Alexandra Nunes1, Vítor Borges1, Miguel Pinto1, Luis Vieira2, João Paulo Gomes1*

1Unidade de Bioinformática, Departamento de Doenças Infecciosas e

2 Unidade de Tecnologia e Inovação, Departamento de Genética Humana,

Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, Lisboa

*correspondência: [email protected]

O presente artigo pretende dar uma visão geral sobre a utilização da metodologia de

Sequenciação Total do Genoma para o estudo de surtos infecciosos. Aborda a sua maior

adequabilidade para este fim quando comparada com as metodologias tradicionais e

também a sua abrangência, dando exemplos de aplicação para a identificação e

caracterização de surtos infecciosos ocorridos na comunidade, em ambiente hospitalar e

no âmbito de acções de bioterrorismo. Finalmente, descreve a sua aplicação no estudo do

surto de grande dimensão da Doença dos Legionários que ocorreu em Vila Franca de Xira

no final de 2014, bem como na identificação do primeiro caso reportado de transmissão

pessoa-a-pessoa desta doença.

Introdução A tecnologia de Sequenciação de Nova Geração (Next Generation Sequencing - NGS) tem sofrido, durante a última década, um desenvolvimento exponencial associado a um decréscimo considerável de custos, facilidade de procedimentos/manipulação, rapidez e capacidade de geração de sequências (reads). Para isto tem igualmente contribuído o incessante aparecimento de ferramentas para análise bioinformática, as quais têm permitido, não só maior capacidade e rapidez de análise dos dados gerados, mas também análises mais detalhadas e robustas. No entanto, enquanto o processamento de amostras e a sequenciação têm progressivamente vindo a ser estandardizadas e automatizadas, a análise bioinformática é ainda considerada um importante bottleneck neste processo, fruto da enorme especialização técnica e infraestruturas que requer (actualmente, existem poucos laboratórios habilitados para tais análises), bem como da subjetividade de que por vezes é revestida.

Na área da Microbiologia, os avanços na tecnologia de NGS, nomeadamente na vertente de Sequenciação Total do Genoma (vulgarmente referenciada por Whole Genome Sequencing - WGS) têm-se refletido progressivamente na substituição e/ou complemento das tradicionais metodologias laboratoriais, influenciando de forma inequívoca a deteção microbiana/diagnóstico, a monitorização epidemiológica e a análise genética detalhada de vírus, bactérias, fungos e parasitas. Atualmente, e citando a título de exemplo a tecnologia Illumina (o sequenciador MiSeq da Illumina é um dos mais representados nos laboratórios em Portugal), é possível sequenciar um genoma bacteriano a partir de 1 ng de DNA, em cerca de dois dias (incluindo já o tempo de preparação da amostra), e com custos que oscilam, grosseiramente, entre os 75 e os 200 euros (para genomas de 1 Mb a 7 Mb, respectivamente). Estas características fazem com que, nos dias de hoje, uma das maiores e mais importantes aplicações da tecnologia de WGS consista no estudo de surtos infecciosos, tendo um impacto considerável em termos de saúde pública. Neste âmbito, o presente artigo pretende dar uma visão geral sobre a utilização da

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tecnologia de WGS na monitorização de surtos causados por diversos agentes microbianos a nível mundial, dando especial ênfase ao surto de grande dimensão da Doença dos Legionários que ocorreu em Vila Franca de Xira, Portugal, no final de 2014. Finalmente, abordará o seu papel essencial na identificação do primeiro caso reportado de transmissão pessoa-a-pessoa da Doença dos Legionários, bem como na caracterização genética da bactéria envolvida nestes dois eventos. A Sequenciação Total do Genoma na monitorização de surtos infeciosos Por definição, um surto infecioso consiste na ocorrência de casos de doença em excesso relativamente ao que seria expectável para uma comunidade específica, área geográfica ou estação do ano (mais informação aqui). Em Microbiologia Clínica e Epidemiologia Molecular, há assim a necessidade de proceder à identificação, caracterização e classificação a partir de amostras biológicas dos doentes, bem como de fontes alimentares ou ambientais suspeitas, do agente microbiano potencialmente causador do surto, de forma a poder responder a questões muito relevantes em termos de saúde pública, tais como: “Os casos estão relacionados?”, “Existe uma fonte comum de infecção?”, “Há transmissão pessoa-a-pessoa?” e “O que pode ser feito para limitar o número de casos?”. Tradicionalmente, este tipo de análise é feito por metodologias diversas como serotipagem, multilocus sequence typing (MLST), ou pulse-field gel electrophoresis (PFGE) (Maiden et al., 2013; Robinson et al., 2013; Sabat et al., 2013; Deng et al., 2016). No entanto, tais metodologias poderão não ter um poder discriminatório suficiente, por exemplo no caso de se tratar de um agente microbiano monomórfico (i.e., com elevado grau de conservação genética dentro da espécie), bem como apresentam limitações pois não fornecem uma perspectiva global sobre a presença de factores de virulência ou de marcadores genéticos associados à resistência a fármacos (Figura 1).

Os surtos infeciosos associados a doenças gastrointestinais são provavelmente os mais frequentes, não só pela

multiplicidade de agentes microbianos que estão na etiologia destas infecções, como também pela natureza abrangente da fonte de infecção (alimento) e pela facilidade de transmissão entre doentes (contacto directo ou indirecto com material fecal ou gástrico). Sem dúvida que o exemplo mais publicitado neste âmbito consistiu no surto de Escherichia coli enterohemorrágica O104:H4, ocorrido na Alemanha entre Maio e Junho de 2011. Causou mais de 4000 casos de diarreia hemorrágica, 850 casos de síndrome hemolítica urémica (o que é considerado invulgar para o tipo O104:H4 [Mellmann et al., 2008]) e originou 50 mortes (Bielaszewska et al., 2011). Através da utilização de metodologias tradicionais, tais como serotipagem, MLST e PFGE, não foi possível fazer a distinção entre estes isolados de E. coli O104:H4 e outros previamente isolados de surtos anteriores. No entanto, através de WGS foi possível, em menos de uma semana, perceber tratar-se de uma estirpe de E. coli enteroagregativa que tinha adquirido genes que codificam para a “Shiga toxin” e genes associados à resistência a antibióticos (Rohde et al., 2011). Este exemplo espelha bem a potencialidade única de WGS na identificação e caracterização da plasticidade genómica das bactérias gastrointestinais, que está subjacente a quadros clínicos tão severos e com consequências devastadoras em termos de saúde pública.

Outros surtos infecciosos com especial impacto na Saúde Pública têm ocorrido em ambiente hospitalar, onde a emergência de microrganismos resistentes a múltiplos antibióticos têm sido uma preocupação à escala mundial. Entre as principais bactérias causadoras de infecções nosocomiais destaca-se o agente patogénico oportunista Klebsiella pneumoniae, o qual apresenta características particulares que potenciam a sua patogenicidade em ambiente hospitalar, nomeadamente: i) a sua capacidade de causar um vasto leque de infecções (tipicamente pneumonia, bacteriemia, infecções urinárias e infecções de feridas); ii) a sua capacidade de colonizar múltiplos locais anatómicos de forma assintomática, promovendo assim a sua contínua transmissão e disseminação; iii) a sua capacidade de sobreviver e permanecer em

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material hospitalar através da formação de biofilmes, os quais são difíceis de erradicar com práticas comuns de descontaminação e, iv) o seu largo espectro de resistência a agentes antimicrobianos, tais como os antibióticos de última linha carbapenemos (Wyres & Holt, 2016). A título de exemplo destaca-se um surto hospitalar de K. pneumoniae ocorrido nos EUA em 2011, afectando 18 pacientes (11 mortes) (Snitkin et al., 2012). A tecnologia de WGS permitiu descodificar uma inesperada e complexa teia de eventos de transmissão a partir de um

único paciente (“índex”), o qual tinha recebido alta médica três semanas antes do aparecimento dos casos de infecção subsequentes. Tirando partido de uma investigação epidemiológica profunda, esta abordagem permitiu verificar que o paciente “índex” estava infectado por variantes da mesma estirpe de K. pneumoniae em locais anatómicos distintos (tracto respiratório, tracto urinário e virilhas), do qual resultaram três vias de transmissão independentes.

Fig. 1. Esquema simplificado de investigação laboratorial de um surto infeccioso. (A) Por definição, o aumento do número de casos de uma doença infecciosa relativamente ao que seria expectável para uma comunidade específica, área geográfica ou estação do ano sugere a existência de um surto infeccioso com diferentes fontes possíveis (por exemplo, ambiental, alimentar e humana). (B) Identificação laboratorial do agente infeccioso. (C) Caracterização das estirpes isoladas por métodos tradicionais de tipagem molecular e fenotípica (por exemplo, MLST, PFGE, serotipagem, antibiograma). (D) Aplicação da tecnologia de WGS seguida de análise bioinformática com os inerentes ganhos no poder discriminatório (incluindo a potencial identificação da fonte infecciosa) e no conhecimento da estrutura genómica e potencial de virulência do agente microbiano causador do surto.

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Mais recentemente, outro estudo utilizando também WGS permitiu perceber que casos de infecção por uma estirpe multirresistente de K. pneumoniae, detectados em três instituições diferentes (dois hospitais e um centro de reabilitação) em duas cidades holandesas, estavam potencialmente interligados devido à circulação de pacientes entre estas instituições (Zhou et al., 2016). Estes dois exemplos demonstram, mais uma vez, que a integração de dados genómicos e epidemiológicos potencia em larga medida o controlo de surtos nosocomiais bem como da disseminação de estirpes multirresistentes e hipervirulentas, não só em meio hospitalar, mas também na comunidade.

Outra causa de surtos infecciosos, apesar de rara, diz respeito ao bioterrorismo, no qual há libertação deliberada no meio ambiente, de agentes infecciosos ou toxinas por eles produzidos. Neste âmbito, uma das acções de bioterrorismo com mais mediatismo decorreu imediatamente após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 nos EUA, tendo envolvido o envio de cartas com esporos de Bacillus anthracis para vários senadores e jornalistas americanos. Bacillus anthracis é uma bactéria formadora de esporos que causa o carbúnculo (também conhecida por “anthrax”), afectando tanto animais como humanos, podendo causar nestes últimos manifestações clínicas graves essencialmente a nível respiratório e cutâneo (Liu et al., 2014). As cartas enviadas (cada uma com > 200 biliões de esporos) originaram 22 vítimas, cinco delas mortais, tendo-se desencadeado de imediato uma investigação, apelidada de “Amerithrax”, com vista à identificação dos responsáveis pelo seu envio (Rasko et al., 2011). No seguimento desta investigação, fez-se a análise microbiológica dos esporos e procedeu-se à sequenciação total do genoma das estirpes isoladas, tendo-se identificado padrões genéticos específicos de clones bacterianos presentes nas cartas. A equipa de investigadores desenvolveu então testes moleculares com base nestes marcadores genéticos e analisou centenas de culturas de B. anthracis espalhadas por laboratórios em todo o mundo, às quais o FBI teve acesso. Ironicamente, o único clone de B. anthracis identificado com o mesmo padrão genético ao encontrado nos esporos das cartas, pertencia à colecção de um laboratório militar

americano, cujo responsável era precisamente um dos investigadores da equipa do “Amerithrax”. No decurso desta descoberta, o investigador suspeito cometeu suicídio, impedindo assim uma conclusão definitiva sobre todo o processo. O “Amerithrax” consistiu sem dúvida num virar de página em termos de investigação de surtos associados a acções de bioterrorismo, tendo sido a primeira vez em que a tecnologia de WGS foi utilizada para tal fim.

Um caso Português: surto da Doença dos Legionários A Doença dos Legionários foi inicialmente descrita em 1976, no âmbito de um surto de grande dimensão que afectou legionários americanos que se encontravam numa convenção num hotel em Filadélfia (Fraser et al., 1977; Fields et al., 2002). É uma doença causada por bactérias do género Legionella, principalmente por Legionella pneumophila subespécie pneumophila do serogrupo 1, sendo caracterizada por uma pneumonia severa que afecta geralmente pessoas susceptíveis, tais como idosos e fumadores, através da inalação de aerossóis que contenham a bactéria (Fields et al., 2002; Phin et al., 2014). Trata-se de uma bactéria ubíqua, tendo a água como reservatório principal, pelo que as principais fontes de surtos da Doença dos Legionários vão desde as torres de refrigeração industriais, até às fontes decorativas ou piscinas (Phin et al., 2014). Desde o primeiro surto “oficial” em 1976, múltiplos surtos de larga escala têm sido descritos a nível mundial (García-Fulgueiras et al., 2003; Lévesque et al., 2012; McAdam et al., 2014; Sanchez-Buso et al., 2014), tendo o último ocorrido no final de 2014 em Vila Franca de Xira, Portugal. Este surto constituiu o segundo maior até à data, dado ter afectado mais de 400 pessoas e originado 14 mortes (Shivaji et al., 2014). A investigação epidemiológica, ambiental, microbiológica e de base molecular (SBT – Sequence base typing) permitiu apontar, como prováveis fontes de infecção, torres de refrigeração de uma fábrica na zona de Vila Franca de Xira. De facto, foi identificada uma estirpe de L. pneumophila do serogrupo 1 com o novo sequence type (ST) 1905, tanto nas amostras colhidas de doentes como numa das referidas torres de refrigeração

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industriais. No seguimento desta identificação, para um estudo mais completo do surto, foi solicitado ao Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge que procedesse a um estudo genómico exaustivo de estirpes de L. pneumophila isoladas no âmbito do surto. Assim, recorrendo à metodologia de WGS foi possível analisar detalhadamente o genoma de várias estirpes isoladas de doentes alegadamente infectados durante o período do surto, como também de estirpes ambientais isoladas de locais que potencialmente poderiam constituir as fontes de infecção. Os resultados desse estudo revelaram uma similaridade genómica de 100% entre os ~3.5 Mbp analisados entre todas as estirpes clínicas e uma estirpe ambiental (Borges et al., 2016). Concluiu-se, assim, inequivocamente tratar-se de um único clone circulante causador da Doença dos Legionários, também ele presente na provável fonte de infecção (uma torre de refrigeração duma fábrica daquela região). Esta total similaridade genómica observada entre as estirpes analisadas ganha especial relevância dada a elevada diversidade genómica característica desta espécie. Por exemplo, observou-se que, entre as estirpes isoladas mundialmente e cujo genoma está disponível no GenBank, a estirpe com maior similaridade genómica com este clone causador do surto de Vila Franca de Xira apresentava ~ 17000 diferenças nucleotídicas no core-genoma analisado. Além disso, como será abordado mais abaixo, esta estirpe apresentava singularidades genómicas que a distinguiam marcadamente de todas as outras estirpes causadoras dos outros grandes surtos reportados até à data. Este caso de surto da Doença dos Legionários em Vila Franca de Xira espelha bem a inquestionável necessidade de recorrer à tecnologia de WGS para um completo estudo microbiológico de um surto, nomeadamente quando poderá existir necessidade de apuramento de responsabilidade criminal ao abrigo do levantamento de processos judiciais, como aliás se veio a verificar.

WGS na identificação de transmissão pessoa-a-pessoa da Doença dos Legionários O surto da Doença dos Legionários ocorrido em Vila Franca de Xira ganhou também

notoriedade pelo facto de ter estado associado à primeira forte evidência de transmissão pessoa-a-pessoa da Doença dos Legionários (Correia et al., 2016). Tal nunca tinha sido demonstrado, uma vez que, durante o período de um surto em larga escala, a proximidade geográfica entre as pessoas infectadas bem como destas à provável fonte de infecção ambiental causadora do mesmo inviabiliza qualquer conclusão sobre a possibilidade de ter ocorrido transmissão pessoa-a-pessoa. De facto, as mais de 400 pessoas infectadas no período do surto revelaram ser moradoras ou trabalhadoras em Vila Franca de Xira, ou ter estado naquela região no período do surto. No entanto, uma mulher de 74 anos moradora na zona do Porto, a qual contraiu a Doença dos Legionários nesse período, revelou não sair da sua zona de residência há muitos meses. O inquérito epidemiológico permitiu saber, no entanto, que o seu filho, trabalhador em Vila Franca de Xira e um dos responsáveis pela manutenção de uma torre de refrigeração indiciada como potencial causa do surto, tinha contraído a Doença dos Legionários uns dias antes e se tinha deslocado ao Porto onde pernoitou na casa da mãe durante o período agudo da doença. Amostras respiratórias foram enviadas para o laboratório, tendo as estirpes isoladas sido sujeitas a WGS para um estudo genómico detalhado. Foi possível verificar que o genoma das estirpes de L. pneumophila isoladas dos dois doentes era idêntico e não apresentava qualquer mutação quando comparado com o das estirpes do surto de Vila Franca de Xira. A ausência, na casa, de equipamentos potencialmente geradores de aerossóis, os resultados negativos para Legionella após colheita de amostras nas torneiras e chuveiro, associados ao elevado tempo de contacto entre mãe e filho numa casa de muito reduzidas dimensões e com deficiente arejamento, permitiram concluir como única explicação possível para a infecção da mãe, a existência de transmissão pessoa-a-pessoa da Doença dos Legionários. Este caso, o qual terminou com o falecimento dos dois doentes, configura um importante marco científico e constitui um exemplo inequívoco de como a metodologia de WGS veio revolucionar a monitorização de surtos infeciosos, permitindo estudar

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cadeias de transmissão com detalhe inacessível até à data.

Curiosamente, uma análise profunda do genoma da estirpe de L. pneumophila envolvida no surto de Vila Franca de Xira e na transmissão pessoa-a-pessoa da Doença dos Legionários, revelou tratar-se de uma estirpe atípica, pertencendo à subespécie fraseri (menos frequentemente associada a esta doença do que a subespécie pneumophila), estando filogeneticamente distante de todas as estirpes de L. pneumophila causadoras dos grandes surtos mundiais (Borges et al., 2016). Além disso, revelou vários eventos de transferência genética horizontal levando à aquisição de factores de virulência (por exemplo, genes associados ao sistema de secreção Dot/Icm tipo IV), tendo algumas dessas regiões genómicas recombinantes, sido transferidas de espécies distintas (L. oakridgensis). No entanto, permanece ainda por esclarecer, se este mosaico genómico único apresentado por esta estirpe invulgar, poderá estar associado a uma potencial maior virulência ou capacidade de transmissão.

Conclusões A metodologia de WGS instalou-se definitivamente nos laboratórios de Microbiologia Clínica como sendo a ferramenta mais adequada para um rigoroso estudo de surtos infecciosos. Curiosamente,

levantam-se agora questões metodológicas associadas ao “ajuste” da análise bioinformática de acordo com o poder discriminatório necessário para a investigação de diferentes espécies microbianas, as quais apresentam dinâmicas evolutivas distintas com impacto na sua diversidade genómica. Por exemplo, durante o período de um surto causado por organismos pouco polimórficos, a ocorrência esporádica de mutações, a qual poderia conduzir à identificação errónea de agentes microbianos diferentes, poderá ser uma consequência de um simples processo evolutivo do microrganismo. Não se vislumbrando no imediato uma metodologia que possa substituir a de WGS, outro grande desafio consiste na simplificação do procedimento bioinformático de modo a tornar-se mais acessível a laboratórios com menos recursos de hardware/software e poder ser realizado por utilizadores menos qualificados. Finalmente, apesar da robustez conferida pela tecnologia de WGS, é de salientar que o sucesso da investigação de surtos infecciosos dependerá sempre de uma forte interacção entre as componentes laboratorial, clínica e epidemiológica.

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