Magnólia - PerSe · 4 meu pai escondeu tudo, e o segredo nunca teve fim – apenas dizia que se...

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Magnólia uma mulher em silêncio Pedro Rosas Primeira Edição São Paulo / 2014 Capa: Rodrigo Toledo

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Magnólia uma mulher em silêncio

Pedro Rosas

Primeira Edição

São Paulo / 2014

Capa: Rodrigo Toledo

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Capítulo 1

Nas madrugadas frias, ou mesmo ardentes, recusava-me

a pseudônimos. Impossível evitar. Sempre atendi por Adriana. Recordo como tudo começou, e como minhas lembranças brotaram, após a morte de minha mãe. Tinha dois anos de idade e passei a morar com minha irmã Luiza, e meu pai, Guido, num casebre de alvenaria nua, em Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. Era uma rua quieta, sem saída. No final, um muro alto e uma escolinha infantil, onde meninos escondiam drogas para vender do outro lado da viela. Foi assim que cresci. Muro de um lado, drogas de outro, e um pai ausente, trancado em sua vida bandida – o que nos permitia correr pelas ruas, tomar chuva, saltar portões, brincar com cachorros e quintais. Fui uma criança bonita, todos diziam, mas os fatos se perdem ao longe de minha memória. Não sei, até hoje, o que aconteceu à minha mãe. Trabalhava como costureira e passou a vida debruçada sobre uma antiga Singer. Do mais,

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meu pai escondeu tudo, e o segredo nunca teve fim – apenas dizia que se pudesse voltar no tempo, faria tudo diferente. Ser uma criança órfã é como ficar sem um anjo da guarda, uma fada madrinha. É sentir culpa, medo, por ser entregue à própria sorte. Às vezes chorava, em soluço, esperando alguém aparecer ao meu lado dizendo: - A partir de amanhã, serei sua mãe. Mas volto à realidade, e recomeço, antes da estaca zero. Tive que aprender tudo sozinha. Nada de orfanatos. Nada de avós. Nada de padres salesianos. Comigo, apenas minha luta. Acordava muitas noites com os berros de minha irmã e as ameaças de meu pai, na lógica insolente de um pesadelo. Minha infância, tão intensa quanto breve, acabou quando Guido, ex-operário da GM, assassinou um policial e foi preso, no dia 7 de outubro de 1988. Tive que abandonar a escola para vender balas e amendoins nos trens metropolitanos de São Paulo, tomando pancada de polícia, que apreendia a mercadoria e nos levava a um canto escuro, com cassetete e pedaços de pau. Sempre amei meu pai, apesar de tudo. Nunca deixei de levar grana, comida e cigarros para ele na prisão. Lembro que me contavam coisas, crimes nos quais meu pai poderia estar envolvido. Nesta época, passei a sentir a obrigação de imaginar um futuro pra mim, já mirando as putas adolescentes que passavam por mim com suas almas de caroço, se

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equilibrando no salto. Era dinheiro fácil e, em pouco tempo, lá estava eu, como odalisca num paraíso de mercado, sem orientação alguma, envergonhada e assustada, frequentando bordeis apinhados de ninfetas e cocaína – o que me levou à primeira internação, com 13 anos de idade. Não há recompensa para quem usa cocaína. Seu êxtase é breve, e seu preço, longo demais. Os caminhos do excesso não levam a lugar algum, mas como era uma garotinha cobiçada e enchia os olhos da cafetinagem, me pagaram uma clínica de recuperação. Depois de dois dias andando em círculos, no silêncio dos corredores, os enfermeiros vieram com a notícia. - Vamos te levar a um médico, Adriana. Você está grávida. Mesmo tendo comida e médicos à disposição, decidi fugir e juntar uma grana para meu filho. Em plena luz do dia, corri para o fundo do hospital, arranquei a escadinha da piscina e usei-a como gancho para pular o muro. Era uma criança de 13 anos e minha gravidez não foi nada fácil. Quando nasceu Gabriel, sem pai, pelas luvas de um médico, pude então criá-lo, com ajuda de minha irmã e de minha pequena poupança. Com Gabriel, minha vida se tornou mais verdadeira, o que me ajudou a manter a sanidade e os pés no chão. Sentia que algo radicalmente novo fora colocado no mundo, e brotado de mim. Nunca tive amigas da minha idade e, nesta época, comecei a trabalhar em um prostíbulo na Mooca, numa rua longa e barulhenta. Os dias eram tensos. Cheios de inveja e

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competição. As feias queriam matar suas colegas bonitas. As relações eram histéricas. Uma tinha 11 anos. A outra 12. Rolavam sobre homens de oitenta, e ninguém se importava. Topavam tudo. Às vezes diziam: - Fazer sexo é como dar uma mijada. Do lado de fora, estendida em sua poltrona carcomida, a cafetina, monstruosamente balofa, fazia barulho com o molho de chaves. Hora de dormir. Qualquer prorrogação equivalia a um aumento proporcional no preço do aluguel. Sempre com a mesma inalterável paciência, eu sofria a mesma inalterável desilusão. O mais doloroso, no entanto, era salvar a ternura que sentia pelo mundo, mesmo vivendo do lado de fora, na liberdade da fome e da sede. Vivia sem nada. Risos me foram proibidos. De qualquer modo, até o aço de minha alma sabia aquela vida não pertencia a mim. Eu não era o caos vivo, e aquele mundo não era meu, uma criança de mãos ásperas e realistas, punhos secos como fibra, que tinha que se jogar como menininha de segunda classe, inferior e opaca. Podia ser inconformada, ou conformista, mas viver era cavar a vida e nada mais. Não tive tempo para ser educada, nesta vertigem social chamada Brasil. Caminhava pelo mundo a serviço dos homens, como libidinoso cartão postal, como sugestão fantasiosa, nas periferias confusas e perturbadas que nunca estiveram em meu sangue, nunca estiveram atrás do véu banal de jovem prostituta. Neste mundo obsceno e forasteiro, embolsei vários homens. Engenheiros apressados e pais de família, de

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esquadro e compasso nas mãos, falando de edifícios que cresciam com suas forças simples. Homens que não me viram andando com sacos de balas por entre os carros, me sentindo um cão sujo. Citavam até o evangelho, dizendo que as putas entrariam antes de todos no reino dos céus. Cristo disse isso para quem? Essa vida roubou minha identidade, minha genealogia, meu endereço, minha infância de dedos sujos, meu silêncio, meu medo da morte. Só não levaram minha ternura, e o segredo das flores que fechavam suas pétalas ao início de cada programa, que eu encarava com dura energia, em carne viva, como produto premiado, como estátua inaugurada tentando expor o melhor de sua fatalidade e submissão. Nada me pertencia. Os caras batiam em minha porta, sem parar. No começo, não sabia se estava num filme, ou coisa parecida. Sabia que estava espremendo meu tempo, minha história, entre festas e mendicâncias. Um dia perguntei a um cliente: “porque não posso ir ao céu no lugar de outras pessoas?”. Mas os homens jamais me escutavam. Surdos e solitários, sempre emendavam um assunto no outro, até perceberem que deveriam perguntar alguma coisa por educação. Quando eu tentava abrir a boca para falar, voltavam-se novamente para seus assuntos preferidos: eles mesmos. Falavam alto. Diziam um monte de bobagens e saíam batendo a porta. O que realmente importava para eles? O escândalo ou a desgraça? Claro, havia os que fingiam me

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ouvir. Havia os que só ouviam, mas enquanto eu falava, eles me fodiam. Não sabiam que escutar, ou fazer silêncio, também são atos de erotismo. Enchiam suas vidas de barulho por medo do que o silêncio pudesse lhes dizer. Aos 15 anos, por fim, comecei um namoro regular ou algo bem próximo disso, mas acho impressionante como estragamos tudo tentando fazer o amor durar para sempre. Além do mais, Will tinha um jeito no olhar que parecia pedir e recusar ao mesmo tempo, insistir e exigir, adiar e aceitar, querer, fugir e voltar. Era um daqueles surdos que, de repente, percebia que deveria perguntar alguma coisa, por educação, ou obrigação. Acho que, por isso, não conseguia me envolver com ninguém. Depois de Will, fiz sexo com dezenas, mas demorei a ter alguém realmente especial. Todos queriam se apaixonar doentiamente e eu achava aquilo uma pobreza. A única pessoa que sempre gostei de conhecer e me relacionar foi eu mesma. No inverno de 1991, numa explosão de cansaço, enfiei roupas, fotografias e quinquilharias na mala, e parti para São José dos Campos, cidade que diziam ser tranquila e cheia de dólares. Além disso, era muito próxima a São Paulo. Parti porque as coisas pareciam distantes do meu controle, como se o sangue que corria em meu coração estivesse obstruído. Deixei meu filho, Gabriel, com minha irmã. Ainda era uma criança de colo, e chorava muito. Luiza me olhava assombrada, com os lábios trêmulos, em profunda angústia. - Você sabe o que faz. Rezarei por você e cuidarei do seu filho.

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Beijei-os longamente e parti sob a chuva fina, sem dizer uma palavra. O vento saía do túnel e varria o longo asfalto, vomitando carros e buzinas, que surgiam em histeria, e se esparramava ao longe. Não estamos todos do mesmo lado, cansados, atirando um contra o outro? Decidi partir em busca de tranquilidade e dinheiro, por mais um caminho que escolhi sem ter escolhido. E lá estava, me sentindo pequena, pequena, pequena. Chegando a São José, fui direto a uma hospedaria que acomodava garotas de programa por 20 reais ao dia, mais comissão. Conheci também Monique, cafetina que se tornaria uma espécie de segunda mãe para mim. Apesar da idade, Monique era muito forte e bonita. Conhecia a clientela pessoalmente. Eram homens de rosto duro, que ela convidava pra fumar cigarro e tomar birita em sua sala. Trabalhava muito e fumar era seu jeito de descansar e relaxar. Era viúva e não havia nenhum parente por perto. Monique ensinou a proteger-me. - Seu corpo deve dominar qualquer situação, dizia. Era uma tarde abrasante, início de primavera. Os pássaros cantavam anunciando bom tempo e o prenúncio das noites, de onde chegavam os analfabetos do sexo, sem pontos nem vírgulas. Em meu primeiro programa, o cara deitou-me na cama e me lambeu com ingenuidade. Acariciou-me o peito, cruzou os olhos sobre meu corpo.

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- Você tem namorado? - Que pergunta é essa, para uma prostituta? - Nunca tive um amor de verdade. Ou sexo de verdade. Sei lá onde está a separação das coisas. Tinha um nariz descomunal, olhos saltados, o rosto grande e redondo. Insistia em dizer que sua vida fora muito dura, que só teve tempo para namoros passageiros. Precisava de alguma distração ou ia acabar se matando. Não havia qualquer sensualidade naquele homem, mas a dor fazia dele um cara gentil. - Tenho que falar sobre dinheiro o tempo todo. Quando era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje, quando alguém diz que levo vida de rico, me sinto mal, me ofendo. - Todos fazem tudo por dinheiro, até mesmo calar a boca. - Você faz tudo por dinheiro? - Minha vida é essa. Preciso de homens e do dinheiro deles, porque quero ser livre, quero abrir uma empresa junto a meu filho. Tenho ambições e o dinheiro é minha única chance. Até ali eu tinha feito tudo pela minha recuperação, mas aprisionada naquele ambiente desprotegido, era muito difícil me manter limpa. Não demorou três meses, fui internada, novamente por uso de cocaína. Dentro de uma clínica, as coisas são quase como nos filmes. A diferença vem do cheiro das roupas, da fumaça dos cigarros, da naftalina solvendo pelos corredores. Pessoas amarradas na cama, limpando suas fezes com as mãos, cortando seus corpos em busca de purificação.

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Guardo, até hoje, as queixas que encaminhei à direção do hospital: * O Sr. Luiz Carlos Santana deixa suas roupas sujas pelo chão do meu quarto, causando um cheiro horrível, já que suas peças íntimas (ou mesmo calças) estão sempre cheias de fezes. * O Sr. Jessé Rodrigues fala compulsivamente, palavras obscenas, em alto volume, durante momentos solenes, que pedem serenidade, como refeições, grupos de terapia, reuniões e palestras. Além disso, me persegue e invade minhas conversas com psicólogos, médicos e enfermeiros. * A Sra. Tereza Vidal entra fumando em meu quarto pela madrugada, geralmente 4h da manhã, interrompendo meu sono de maneira agressiva. * O Sra. Ivani Silva canta hinos evangélicos pelos corredores dos quartos, todos os dias durante o amanhecer, perturbando o sono dos internos. * O Sr. Jeferson Pereira esfrega sua genitália com as mãos, depois alisa minha cabeça e meus cabelos. Peço intervenção imediata. Sem mais, Adriana Eu mal podia suportar tão inóspito tratamento, mas queria ser curada e seguir tudo à risca. A droga sempre será

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um objeto que carrega falsas promessas. Então é melhor abandoná-la logo e viver em paz. Dentro de um hospital psiquiátrico, de nada vale sua origem, casta ou cultura. Os valores já estão pré-definidos. A atitude é a medida de todas as coisas. Mesmo como prostituta, jamais estive tão nua na capacidade de me sentir igual a todos. Se um cara tinha uma mania, dava pra ler nas linhas de sua boca, na curva de suas pálpebras, na forma de suas mãos. Num mundo tão verdadeiro como esse, descobrimos que não somos donos de nós mesmos, caso contrário acabaríamos logo com nossas angústias e nos encheríamos de prazer. “Tudo que faço tem um parque de diversões no meio”, dizia Marco, um interno que sofria de esquizofrenia e que vivia dopado pelos cantos. Em meu terceiro dia, tinha passado a noite sonhando com Will, magoada por recordações e lembranças. Sentei-me à mesa do café, chorando muito, e lá estava Marco, fuzilando novamente: “Não nascemos para estar nessa vida.” Ainda deprimida, respondi. “Mas também existe beleza em estar nessa vida”. O cara deu dois passos e voltou. “É verdade, Adriana. Museu é bonito, restaurante de praia é bonito, amigo é bonito. Inimigo é bonito. Mas as mulheres são criaturas do futuro. Fazem bem para a alma, para o coração, mas são criaturas do futuro”. Estão vendo? Na aventura de nos sentirmos iguais aos outros, sempre há algo de belo e brutal. Foi assim que comecei meu grande trabalho terapêutico. Voltar a ser Adriana. Perceber que não existe “aquilo que não

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pode ser dito, mas que o homem insiste em dizer”. Perceber que existe uma loucura muito mais vulgar e honesta. Perceber que os pecados são privilégio daqueles que podem disfarçar seus rostos. Perceber que, para uma pobre menina, resta fazer das pequenas coisas uma grande experiência transformadora. Foi assim que a vida me fez acreditar num futuro melhor para Gabriel. Filhos são soberanos. Têm o direito exigir qualquer coisa de nós.

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Capítulo 2

Quando voltei a São Paulo, não tive dificuldades em me

readaptar. A clausura, porém, me fez perceber que eu nunca, de fato, pude escrever minha própria história. Outros a fizeram, independente à minha vontade. Teria sido uma boneca de engonço, modelada de esperança, sofrimento e vulgaridade? Estava claro que sim. Desde que meu pai fora preso e fui obrigada a trabalhar nos guetos, tornei-me uma pessoa sem história. E ainda tinha que ouvir pessoas achando minha vida heroica, pela forma que resisti às coisas. Ninguém percebe que, quando não há saída, qualquer um pode se tornar herói, querendo ou não. Herói com seu único brado: “Veja o quanto sofri em silêncio!” O sofrimento, ao contrário do que dizem, não tem lado bom, e a dor não pode ser prestigiada ou romantizada, em momento algum. Tinha pressa e a vida inteira por viver, por isso continuei de pé, como uma muralha. Continuei enchendo as ruas com minha dor e meu orgulho. Continuei me servindo aos homens, e deles arrancando o pão de meu filho.

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Toca a campainha. Olho o relógio. Uma da manhã. A rua inteira calada. Dirijo-me ao espelho. Nada para vestir. Maquiei os olhos e a boca. Olhei para Gabriel dormindo no sofá e dirigi-me à porta, na ponta dos pés. Era Duda. Havia anos que não o via. Entrou em silêncio e me abraçou suave. - Vamos sair, dar uma volta... - Gabriel está dormindo! - É rápido. Levei Gabriel para a cama. - Filho, mamãe vai sair e mais tarde volta... Qualquer coisa me telefona, ok? Corremos para o Bela Vista. As calçadas apinhadas de gente, o tempo castigando as ruas, praças e escadarões do velho Bexiga. - Foi tudo bem na clínica? - Um lugar reparador, mas acho que muitos médicos não souberam lidar comigo. Quem sabe eu mesma me tratei. Quem sabe? - Você parece muito bem! Adorava saber de minha vida e se interessava pela minha experiência como “mulher da vida”. Escolhemos um motel com roupões e gel de banho, champanhe gelada e um sossego que parecia nos esperar. Duda se livrou das roupas e