Maína e Capitoa - Labirintos Do Universo Feminino Nos Contos de Josefina Plá e Helio Serejo

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MAÍNA E CAPITOA : LABIRINTOS DO UNIVERSO FEMININO NOS CONTOS DE JOSEFINA PLÁ E HÉLIO SEREJO Suely Aparecida de Souza Mendonça Pós-graduação UNESP/ASSIS RESUMO: O artigo apresenta uma leitura comparativa da diversidade de situações vividas pela mulher paraguaia no conto “Maína”, de Josefina Plá, e da mulher brasi- leira na narrativa “Capitoa”, de Hélio Serejo. Busca-se ressaltar o papel da mulher na sociedade e na formação da identidade local e regional, pois na saga das personagens Maristela, de “Maína”, e Maria Aparecida Belmonte, de “Capitoa , ilustrada pela imagem do labirinto, são considerados os espaços geográficos de Assunção e Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul. A mulher brasileira representada por Maria Aparecida Belmonte é a oposição da mulher idealizada no início do século XX, assim como a personagem Maristela configura o inverso do universo feminino paraguaio desta mesma época. PALAVRAS-CHAVE : mulher; literatura sul-mato-grossense; literatura paraguaia; Josefina Plá; Hélio Serejo ABSTRACT : The aim of this article is to present a comparative reading of the diversity of situations lived for the represented paraguayan woman in the “Maína” story, of Josefina Plá, and the brazilian woman in the narrative “Capitoa”, of Hélio Serejo. In other words, it is longed for to stand out the paper of the woman in the society and the formation of the local and regional identity, therefore in the Saga of the Maristela personages, of “Maína”, and Maria Aparecida Belmonte, of “Capitoa”, illustrated for the image of the labyrinth, the geographic spaces of Assunção and Mato Grosso are considered. The Brazilian woman represented by Apareacida Maria Belmonte is the opposition of the idealized woman at the beginning of century XX, as well as the Maristela, personage configures inverse of the paraguayan feminine universe of this the same time. She also matters to add that, to if establishing possible relations between both the narratives, searched in this work to recognize the implications that comparation of both the stories can bring for paraguayan literature and sul-mato-grossense literature. KEYWORDS : woman; sul-mato-grossense literature; paraguayan literature; Josefina Plá; Hélio Serejo INTRODUÇÃO Este artigo é parte de um projeto de pesquisa que estuda o universo feminino na literatura paraguaia, de modo especial na narrativa contista da escritora Josefina Plá. Um dos objetivos desse projeto é cotejar os diversos caminhos e descaminhos da mulher paraguaia assinalada como protagonista em dez contos de Plá, considerando Raído, Dourados, MS, v. 2, n. 3, p. 91-98, jan./jun. 2008.

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  • MANA E CAPITOA: LABIRINTOS DOUNIVERSO FEMININO NOS CONTOS DE

    JOSEFINA PL E HLIO SEREJO

    Suely Aparecida de Souza MendonaPs-graduao UNESP/ASSIS

    RESUMO: O artigo apresenta uma leitura comparativa da diversidade de situaesvividas pela mulher paraguaia no conto Mana, de Josefina Pl, e da mulher brasi-leira na narrativa Capitoa, de Hlio Serejo. Busca-se ressaltar o papel da mulher nasociedade e na formao da identidade local e regional, pois na saga das personagensMaristela, de Mana, e Maria Aparecida Belmonte, de Capitoa, ilustrada pelaimagem do labirinto, so considerados os espaos geogrficos de Assuno e MatoGrosso, hoje Mato Grosso do Sul. A mulher brasileira representada por Maria AparecidaBelmonte a oposio da mulher idealizada no incio do sculo XX, assim como apersonagem Maristela configura o inverso do universo feminino paraguaio destamesma poca.

    PALAVRAS-CHAVE : mulher; literatura sul-mato-grossense; literatura paraguaia;Josefina Pl; Hlio Serejo

    ABSTRACT : The aim of this article is to present a comparative reading of thediversity of situations lived for the represented paraguayan woman in the Manastory, of Josefina Pl, and the brazilian woman in the narrative Capitoa, of HlioSerejo. In other words, it is longed for to stand out the paper of the woman in thesociety and the formation of the local and regional identity, therefore in the Saga ofthe Maristela personages, of Mana, and Maria Aparecida Belmonte, of Capitoa,illustrated for the image of the labyrinth, the geographic spaces of Assuno andMato Grosso are considered. The Brazilian woman represented by Apareacida MariaBelmonte is the opposition of the idealized woman at the beginning of century XX,as well as the Maristela, personage configures inverse of the paraguayan feminineuniverse of this the same time. She also matters to add that, to if establishingpossible relations between both the narratives, searched in this work to recognize theimplications that comparation of both the stories can bring for paraguayan literatureand sul-mato-grossense literature.

    KEYWORDS : woman; sul-mato-grossense literature; paraguayan literature; JosefinaPl; Hlio Serejo

    INTRODUO

    Este artigo parte de um projeto de pesquisa que estuda o universo femininona literatura paraguaia, de modo especial na narrativa contista da escritora Josefina Pl.Um dos objetivos desse projeto cotejar os diversos caminhos e descaminhos damulher paraguaia assinalada como protagonista em dez contos de Pl, considerando

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    tambm os aspectos scio-geogrficos da narrativa, reconhecendo e cruzando as fron-teiras discursivas e estticas do fenmeno literrio paraguaio.

    Em relao aos fenmenos literrios intrnsecos no conto de Pl, proponhoaqui um estudo comparativo, sistemtico e peculiar para resgatar as vozes de grupossociais que, na maioria das vezes, no tm voz frente s vozes hegemnicas: asmulheres. Por outro lado, pressupondo que as identidades nacionais possam serformadas e transformadas no interior da representao literria e que a raa seja apenasuma categoria discursiva, balizaremos, simultaneamente, o universo da mulher bra-sileira na literatura sul-mato-grossense, pois um dos pases que mais influenciou naformao da identidade cultural de Mato Grosso de Sul foi o Paraguai, seja peloconsumo da erva-mate, em forma de terer e mate, seja msica, polcas paraguaias,guarnias e chamams, ou pela gastronomia com a chipas, a sopa paraguaia, dentreoutras influncias culturais. Assim, o objetivo desta comunicao analisar e compa-rar a diversidade de situaes da mulher paraguaia representada no conto Mana, deJosefina Pl, e da mulher brasileira na narrativa Capitoa, de Hlio Serejo.

    As sagas das personagens Maristela, de Mana, e Maria Aparecida Belmonte,de Capitoa, sero ilustradas pela imagem do labirinto, considerando os espaosgeogrficos apresentados nas narrativas: Assuno e Mato Grosso. Importa tambmacrescentar que, ao se estabelecer possveis relaes entre ambas as narrativas, busca-senessa comunicao reconhecer as implicaes que o cotejo de ambos os contos po-dem trazer para as literaturas paraguaia e sul-mato-grossense.

    JOSEFINA PL E HLIO SEREJO: VOZES E FRONTEIRAS

    Josefina Pl nasceu na Espanha, em Isla de Lobos, Canrias, em 1909 e morreuem Assuno em 1999. Pl foi jornalista na imprensa escrita e radiofnica de Assun-o e organizou algumas exposies de arte, at mesmo durante a Guerra do Chaco(1932-1935), em Assuno e Buenos Aires. Poemas, peas teatrais e contos formamo universo literrio de Pl. Multifacetada por natureza, alm de belos poemas, Pl sedestacou na crtica, no teatro e na prosa paraguaia. Escreveu vrios livros de contos: Lamano en la tierra (1963), Es espejo y el canasto (1981), La pierna de Severina (1983) e Lamuralla robada (1989), alm de contos publicados na revista Juventud, em 1926, narevista Alcor, em 1960, e contos infantis.

    Dos contos de Pl pode-se dizer que sua maioria prima pelo carter regional,realista e crtico, o que torna o discurso da artista hispano-paraguaia um fenmenoliterrio mediador de culturas e literaturas, revelando fronteiras visveis e invisveisentre as culturas assimiladas pela artista.

    Quando Josefina Pl chega ao Paraguai, traz consigo umaslida cultura literria e uma experincia vital definida porsua inclinao primeira, a de sua ptria de origem. No pasde seu marido se encontra uma situao diferente em mui-tos aspectos, e aqui, neste meio, onde extrai sua criaoliterria e artstica. Parece-me pertinente assinalar que este

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    trabalho vem dar-se num ponto de encontro de dois siste-mas: a cultura hispnica peninsular e a cultura hispano-mestia paraguaia [...]. (FERNANDEZ, 2000, p. 9).1

    Sob esse prisma, a literatura paraguaia pode ser abordada num contexto deconfrontos culturais, cujos sujeitos, aqui representados pelo universo feminino, confi-guram-se pela diversidade identitria, norteada por valores histricos, polticos, religio-sos e sociais que merecem ser resgatados. De acordo com Peir Barco e Rodrguez-Alcal (1995, p. 325), tinha que se esperar a chegada de Josefina Pl ao Paraguai, nofinal dos anos vinte, para encontrar uma narradora que fosse capaz de abordar o temada marginalizao da mulher na vida paraguaia2. Do outro lado da fronteira, nocontexto sul-mato-grossense, Josefina Pl apontada como uma artista cuja

    histria se escreve margem, porque sua vida decorreunum tempo e lugar hostis, principalmente e sobretudo por-que, apesar de ser a mais importante intelectual espanholano Paraguai, ela era uma mulher escritora e paraguaia, comdificuldades para competir num mundo exclusivamentemasculino [...]. (SANTOS, 2006, p. 58).

    Assim, a mulher passa a ser representada como elemento importante no pro-cesso construtivo da identidade literria paraguaia, nao que transita pela conquistade um lugar no espao cultural mundial, seja pela polarizao de raas nativas eespanholas, sejam nos discursos representativos da sociedade paraguaia, marcadapelas conseqncias das devastadoras guerras fronterias, duas guerras civis e um rolde tiranias militares. De acordo com Rodrigues-Alcal e Carugati,

    Sem ser precisamente uma feminista resoluta, JosefinaPl sempre externou sua preocupao pela condio exis-tencial das mulheres, especialmente das paraguaias, fartasde ingratides, que nem sequer sonhos tiveram, e as fezprotagonistas de suas fices.3

    Hlio Serejo nasceu em 1o de junho de 1812, no municpio de Nioaque, naFazenda So Joo, mas passou a residir em Ponta Por aos dois anos de idade.Considerado um profundo conhecedor da histria e dos costumes da regio de

    1 Cuando Josefina Pl llega ao Paraguay trae consigo una slida cultura literaria y una experienciavital definida por su entorno primario, la de su patria de origem. En el pais de su marido seencuentra uma situacion diferente em muchos aspectos, y aqui, em este mdio, es dondearranca su tarea de creacin literria y artstica. Me parece pertinente senlar que esta labor vienea darse em el punto de encuentro de dos sistemas: la cultura hispnica peninsular y la culturahispano-mestiza paraguaya [...]2 Hay que esperar a la llegada de Josefina Pla al Paraguay, a finales de los aos veinte, paraencontrar una narradora que sea capaz de abordar el tema de la marginacin de determinadostipos de mujer en la vida paraguaya.3 Sin ser precisamente uma feminista a ultranza, Josefina Pl siempre exteriorizo supreocupacin por la condicin existencial de ls mujeres, especialmente de ls paraguayas,saciadas de ingratitudes, que ni siquiera suenos tuvieron, y ls hizo protagonistas de susficciones.

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    fronteira, Ponta Por-Paraguai, Serejo relata em forma de narrativas suas experinciasna fronteira, documentando e transformando em fico a paisagem geogrfica e hu-mana da fronteira e de Mato Grosso do Sul. Considerados como verdadeiras obras-de-arte literrias, os contos deste sul-mato-grossense mostram a literatura comomodulaes de um mesmo espao filosfico [...] paralelamente apresentam outrasfaces, dessemelhantes entre si, histricas, mas sem cortar o cordo umbilical que asprende fico (PIRES, apud SEREJO, 1998, p. 20).

    A temtica da mulher, em Serejo, no se limita apenas na representao da figurafeminina brasileira, mas tambm da paraguaia, idealizadas pelo escritor nos contosNh Cham e Capitoa. Tanto a mulher paraguaia quanto a mulher brasileira, represen-tadas no conto de Serejo, fazem parte de um contexto no qual o machismo e opreconceito contra a mulher esto latentes.

    UNIVERSO FEMININO NOS ESTUDOS CULTURAIS E LITERRIOS

    O universo feminino abordado pelo vis dos Estudos Culturais com a pos-sibilidade de questionar no apenas a noo de gnero, mas mulheres fazem partes damesma identidade. Sobre esse aspecto, Culler (1999, p. 51) afirma que por um lado,a razo para estudar a cultura popular entrar em contato com o que importantepara as vidas das pessoas comuns- sua cultura- por outro lado h um forte mpeto demostrar como as pessoas so conformadas ou manipuladas por foras culturais.

    Por esta perspectiva, podemos abordar o termo identidade como um pro-cesso flexvel, mutvel, principalmente pela corrida desenfreada da informao com aInternet, a televiso, o celular, e outros meios de comunicao, hoje em larga escaladisponveis. Flexvel porque, de acordo com Stuart Hall (2004, p. 13), a identidadeplenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia; mutvel porqueo sujeito assume identidade diferentes em diferentes momentos, identidades queno so unificadas ao redor de um eu coerente.

    No entanto, muitas mulheres, no decorrer do tempo, tornaram-se protagonis-tas de suas prprias histrias e da histria da formao da identidade nacional dosseus pases de origem. Por mais que fossem tratadas como seres inferiores em algu-mas sociedades, muitas mulheres se destacaram e deixaram seus nomes marcadosnas pginas da histria do mundo, ou serviram de inspirao para grandes pintores,nas mais belas canes, ou imortalizaram-se nas obras dos grandes escritores detextos literrios: Clepatra, Joana Darc, Ins de Castro, Anita Garibaldi, Evita Pern,Mona Lisa, Garota de Ipanema, Iracema, Capitu, dentre outras.

    MANA E CAPITOA : LABIRINTOS DO UNIVERSO FEMININO

    Mana, que em portugus significa madrinha, um conto de Josefina Plescrito entre 1948 e 1950, publicado no livro El espejo y el Canasto, em 1981 e reeditadona coletnea Cuentos Completos, organizada por Miguel ngel Fernndez. Neste conto,a mulher tem caractersticas paradoxais, que perpassam por toda a narrativa, avivando

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    sua trajetria labirntica: rebelde e resignada, sonhadora e racional, frvola e tmida,independente e carente, forte e frgil.

    No conto Mana, para as mulheres paraguaias, principalmente aquelas dasclasses menos favorecidas, ou at mesmo para as que pertenciam s classes dominan-tes e foram despojadas de seus bens, restavam poucas alternativas de sobrevivncia.Ou procurar retomar a vida em meio aos escombros e trabalhar em atividades mlti-plas, como o comrcio, a produo agrcola ou subsistncia, ou, ento, partir e se casarcom militares estrangeiros, com quem conviveram, ora tendo-os como carrascos, oracomo companheiros. Partir e retomar a vida em outro pas e/ou regio como o Brasile Mato Grosso.

    Narrado em terceira pessoa, o ncleo do conto situa-se em Assuno, capital doParaguai, na poca da Guerra do Chaco, e tem como protagonista a personagemMaristela, nascida em Encarnacin, interior do Paraguai, uma mulher desprovida debelezas naturais e com um aspecto mrbido. Na infncia agia com um menino, poisgostava de brincadeiras de subir em rvores e atirar tudo o que vinha pela frentequando se irritava com algum. A protagonista de Mana possuidora de umsorriso ambguo, composto por uma forte leviandade e uma relevante timidez, almde ser o seu nico atrativo como mulher. Maltratada pela famlia, o filho que Maristelaespera do primo Atlio nasce e morre. Cansada de sofrer, foge de Encarnacin e vaitentar sobreviver em Assuno. Maristela acaba se prostituindo, at que, cansada destavida, resolve mudar e se dedicar a um homem s. Mas tarde. Aos trinta anos, odestino lhe reserva uma surpresa: uma fatalidade pe fim ambgua figura de Maristela.

    Capitoa, escrito por Hlio Serejo em 1939, est inserido na coletnea decontos Contos Crioulos, publicado pela Editora da UFMS em 1998. De acordo comMoreti, no ensaio A representao feminina em 4 contos de Hlio Serejo, especial-mente dedicado a anlise da questo, a mulher nesta narrativa tem uma multiplicidadede significaes: pecado, mistrio, diabrice e erotismo. Capitoa, essa mulhermultifacetada, vive em um espao deperturbao. (2008, p. 2). De carter regionalista,Capitoa tem como protagonista a gacha Maria Aparecida Belmonte, casada com ocapito Belmonte que, em 1893, no Rio Grande do Sul, lutou na Revoluo dofamoso Gumercindo Saraiva. Aps a morte de seu esposo, na guerra, Capitoa vempara o Mato Grosso e se instala na regio de Nioaque, transitando pela regio de BelaVista e Campo Grande, espaos onde se desenrola a trama. Usando a farda do maridomorto, uma inseparvel espada e um revlver de cabo preto, Capitoa, ou MariaAparecida, circula com seu bando pelos caminhos do interior de Mato Grosso, e comcoragem trava lutas renhidas contra bandidos que atacavam a regio. No entanto,apesar de geniosa e forte, autoritria e presunosa, tinha seus dons femininos. Amavae era amada. Odiava e era odiada. De acordo com Pires (1998, p. 19), sua vidaamorosa assumida como um romance que ultrapassa os laos da normalidade.

    Em Mana, atravs dos descaminhos tomados pela vida de Maristela, vamosencontrar, alguns anos antes da Guerra do Chaco, na entrada do labirinto emEncarnacin, a famlia e as professoras da protagonista adolescente. Preconceituosa,prepotente e hipcrita, a famlia de Maristela s se preocupa com a opinio dos

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    outros. No caso de Capitoa, ou de Maria Aparecida, a entrada do labirinto, no fim dosculo XIX e comeo do sculo XX, ocorre no Rio Grande do Sul, onde ela, comoAnita Garibaldi, representa o papel de esposa dedicada e de cidad, lutando na guerra,ao lado do esposo.

    Continuando a saga de Maristela pelos labirintos da vida, um dos elementosque desencadeia todo seu infortnio vem de Assuno e vai passar frias em sua casa:o primo Atlio, que a seduz e a engravida. A gravidez indicar a direo do labirintoque a conduzir pelos des/caminhos do inferno e para o fim do tnel, na capitalparaguaia, espao central do conto. Do mesmo modo que Maristela reagiu possibi-lidade do aborto, Maria Aparecida Belmonte, diante da morte do marido, no vaci-lou. Tirou-lhe a farda, o revlver e a espada e continuou comandando a tropa. Aslargas portas do inferno de Maria Aparecida comeam a abrir, mas a fortaleza damulher guerreira posta em cheque: Reza ante o corpo em decomposio. Escolheum lugar. No podia conduzi-lo. Muitos eram os cadveres estendidos no cho.Sepulta-o, ento, num cmodo da coxilha. (SEREJO, 1998, p. 193).

    Voltando ao labirinto de Mana, a adolescente Maristela resolve fugir paraAssuno e morar com Tia Severina, porm fica pouco tempo com ela. O marido daTia, Antero, tenta seduzi-la e ela, confiante, conta tia o que seu marido tentou fazer.A tia fica do lado do marido. O inferno de Maristela mais uma vez no terminou.Maria Aparecida Belmonte segue tambm para o centro de seu labirinto: Mato Gros-so. Nessa regio, nasce a Capitoa, como ficou conhecida por trajar a farda do falecido,uma bombacha grande, uma espada e um revlver 44 cabo preto, iniciou sua vida debandoleira e promscua, chegando a ter vrios amantes ao mesmo tempo, comoAnto, o possvel dcimo amante de Maria Aparecida. A arte manual da feia Capitoa manejar armas, homens e at mulheres. Sobre esta caracterstica, o narrador, em tomirnico, tece o seguinte comentrio: Era um gozo para todos quando ela, imponen-temente metida em seu traje masculino, tirava uma donzela e saa valseando pela salade cho batido. (Serejo, 1998, p. 193). Ela tambm foi considerada uma mulher-macho como Maristela, mas outros procedimentos indicavam tambm sua feminili-dade, pois noite se vestia de negros e compridos cabelos, pintava os lbios ecelebrava as delcias morais e carnais com o amante escolhido. (PIRES, 1998, p. 20).

    Neste ponto do labirinto de Maristela, a guerra uma das portas de seu inferno,pois ela conhece um tenente que se apaixonou por ela, mas uma revoluo no Paraguai ossepara e ele exilado em Clorinda. Assuno estava sitiada e Maristela passava por neces-sidades. Um dia, Atlio tenta seduzir Maristela, apresentando a frvola mulher a outroshomens com quem ela mantm relaes constantes. Durante cinco anos, ela visita seisvezes as parteiras mal informadas, o que apressa seus passos para a sada do labirinto.

    Capitoa passa pelo mesmo inferno de Maristela: a traio. Embora seja amantede Marcos, um inspetor de Quarteiro, que fora apaixonado por uma paraguaia deBela Vista, Capitoa apaixonada por um de seus amantes, o pernambucano PedroOzrio de Brito. Quando ele viaja para Porto Murtinho, pede pouso em Margarida,propriedade da Empresa Mate Laranjeira. Numa viagem de carreta de bois, ele conhe-ce e se apaixona por Anita, uma paraguaia moa e faceira e manca, vinda de Campan-

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    rio, fugida do cruel marido. Capitoa descobre o romance e manda dar uma surra noamante. Os seus capangas vo mais longe: descarregam uma chumbeira no nordesti-no que morre decorrente dos ferimentos, embora Capitoa fosse uma enfermeiradedicada: representava para ela o desfecho de um romance que foi, ao mesmo tem-po, infidelidade, vingana, sangue, sofrimento, bravura, agonia, morte, piedade, ter-nura, arrependimento e perdo! (SEREJO, 1998, p. 208).

    Terminada a guerra, Maristela volta a morar com Nen. Prostituindo-se, Maristelapega uma forte infeco. Conhece um velho que decide cuidar dela. Nessa altura dolabirinto, a imagem da prostituta Maristela comea a se desvanecer. No entanto, pen-sando estar grvida, Maristela conta ao amante e ele no aceita a situao. Ela o aban-dona e vai morar com Dona Silvana, at que o beb nasa. Pede mulher que seja amadrinha da criana, pois sente que o fim se aproxima, assim como na maior partedos contos de Borges, quando eles chegam neste ponto, a protagonista compreendesua histria e reconhece que est condenada. Fraca e doente, aos nove meses elaprocura o mdico e internada. Passados uns dias, Dona Silvana vai visitar Maristelae no a encontra, pois havia falecido. A criana que ela esperava era na realidade umtumor maligno no ovrio. Enfim, ela encontra a sada de seu labirinto.

    O desenlace de Capitoa difere do fim trgico da paraguaia Maristela no sentido deque a gacha Maria Aparecida no morre no final do conto, mas ferida na cidade deCampo Grande pelo Destacamento da Milcia do Estado, apagando dessa forma osrastros da valente Capitoa no labirinto de Maria Aparecida. O que fica somente umamulher marcada pelo tempo, pelo reumatismo, pelo desnimo, pelas mortes que dei-xou nas veredas labirnticas, pelos amores que ficaram marcados na alma e no corao.Capitoa, simbolicamente, morre na narrativa, mas a personagem Maria Aparecida Belmon-te apenas desaparece em outro labirinto, continuando o seu papel de mulher amante.

    CONCLUSO

    Enfim, por meio das duas representaes literrias da mulher, podemos perce-ber que as diversas vozes sociais implcitas no universo feminino de Mana eCapitoa apresentam-se permeadas de discursos alicerados sobre modos peculiaresde conceber o mundo e a vida, ora a favor do poderio local, como o narrador deCapitoa, a famlia de Maristela, e o delegado de Assuno; ora em oposio sociedade dominante, como o narrador de Mana e a prpria Capitoa.

    A imagem do labirinto recorrente nesta leitura, pois o sculo XX v labirintoat mesmo onde tal idia se acha inteiramente ausente (PEYRONE, apud BRUNEL,1997. p. 555). importante frisar que, ao percorrer os possveis labirintos das prota-gonistas Maristela e Maria Aparecida, percebemos a forte relao com a viso labirnticaborgeana:

    na imaginao de Borges, o livro e muito semelhante aolabirinto, ainda que este ltimo uma obra premeditada earbitrria. O nico objetivo de um labirinto chegar aocentro e o centro no significa nada, exceto a terminao

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    do caminho e a compreenso de uma ordem ou esquema.H uma analogia evidente com a existncia humana a quea meta a morte. Chegar meta e alongar o caminhopercorrido morrer.4 (FRANCO, 2002, p. 290).

    Para finalizar o confronto entre os dois contos, podemos dizer que as duasnarrativas configuram-se como produes culturais de relevante importncia para osestudos literrios e culturais da Repblica do Paraguai e do estado de Mato Grosso doSul, na fronteira Brasil-Paraguai e do lado brasileiro. Em prol da literatura paraguaia, anarrativa de Pl promove o que anteriormente chamamos de legitimao da identidadeliterria nacional paraguaia, pois na voz da mulher paraguaia, a escritora hispano-paraguaiaretrata a realidade e a expresso do povo paraguaio, consubstanciada pelo vis crtico-social; para a literatura sul-mato-grossense confirmamos o hibridismo da identidadeliterria local, por meio de elementos culturais paraguaios e sul-mato-grossenses,presentificados na linguagem potica e inovadora do regionalista brasileiro Helio Serejo.

    REFERNCIAS

    BARCO, Jos Vicente Peir; RODRGUEZ-ALCAL, Hugo. Narradoras paraguayas: anto-logias. Asuncin: Libros Libres, 1999.BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de mitos literrios. So Paulo: Jos Olympio, 1997.CULLER, Jonathan. Teoria literria: uma introduo. So Paulo: Beca Publicaes Cultu-rais, 1999.FERNANDEZ, Miguel Angel. Introduccin. In: Cuentos completos. Assuno: El Lector,2000.FRANCO, Jean. Histria de la literatura hispanoamericana. 15. ed. rev. e ampl. Barcelona:Ariel, 2002.HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.MORETI, Ariane Morales. A representao feminina em 4 contosde Hlio Serejo. Cultura doBrasil Central. Disponvel em: . Acesso em: 20 mar. 2008.PIRES, Enilda Mougenot. Prefcio. In: Contos crioulos. Campo Grande-MS: UFMS, 1998.PL, Josefina Pl. Mana. In: Cuentos completos. Assuno: El Lector, 2000.RODRIGUEZ-ALCAL, Hugo; CARUGATI Dirma Pardo. Historia de la literaturaparaguaya. Assuno: El Lector, 2000.SANTOS, Paulo Srgio Nolasco dos. Viagem ao Paraguai: Josefina Pl e Ldia Bais. In: Ooutdoor invisvel: crtica reunida. Campo Grande-MS: UFMS, 2006. p. 47-59.SEREJO, Hlio. Capitoa. In: Contos crioulos. Campo Grande-MS: UFMS, 1998.

    4 En la imaginacion de Borges el libro es muy semejante al laberinto, aunque este ultimo esuma obra an ms premeditada y arbitraria. El nico objeto de um laberinto es llegar al centroy el centro no significa nada, excepto la terminancon del recorrido y la comprensin de unorden o esquema. Hay una analogia obvia con la existncia humana en la que la metaes lamuerte. Llegar a meta y estender el camino recorrido es morir.