Maio de 68 Não Ocorreu - Deleuze e Guattari

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Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 1º quadrimestre de 2015 – Vol. 8 – nº 1 – pp.119-121 Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 1º quadrimestre de 2015 – Vol. 8 – nº 1 119 Maio de 68 não ocorreu * Gilles Deleuze & Félix Guattari Nos fenômenos históricos, como a Revolução de 1789, a Comuna, a Revolução de 1917, há sempre uma parte de acontecimento, irredutível aos determinismos sociais, às séries causais. Os historiadores não gostam muito deste aspecto: eles restauram causalidades retrospectivamente. Mas o próprio acontecimento está deslocado ou em ruptura com as causalidades: é uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um estado instável que abre um novo campo de possíveis. Prigogine falou destes estados em que, mesmo na física, as pequenas diferenças se propagam ao invés de se anularem, e em que fenômenos totalmente independentes entram em ressonância, em conjunção. Neste sentido, um acontecimento pode ser contrariado, reprimido, recuperado, traído, mas ele não deixa de comportar algo que não pode ser ultrapassado. São os renegados que dizem: isso está ultrapassado. Mas o próprio acontecimento, por mais antigo que seja, não se deixa ultrapassar: ele é abertura de possível. Ele passa para dentro dos indivíduos, tanto quanto para dentro da espessura de uma sociedade. E olha que os fenômenos históricos que invocamos eram acompanhados por determinismos ou causalidades, ainda que de outra natureza. Maio de 68 é antes da ordem de um acontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa. A sua história é uma “sucessão de instabilidades e de flutuações amplificadas”. Houve muitas agitações, gesticulações, falas, besteiras, ilusões em 68, mas não é isso que conta. O que conta é que foi um fenômeno de vidência, como se uma sociedade visse, de repente, o que ela tinha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa. É um fenômeno coletivo na forma de: “Um pouco de possível, senão eu sufoco...” O possível não preexiste, é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. O acontecimento cria uma nova existência, produz uma nova subjetividade (novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...). Quando uma mutação social surge, não basta extrair dela todas as consequências ou efeitos, segundo linhas de causalidade econômicas e políticas. É preciso que a * Texto originalmente publicado em Les Nouvelles littéraires, 3-9 maio de 1984, p. 75-76. Tradução para o português de Mariana de Toledo Barbosa, professora de Filosofia Contemporânea do Departamento de Filosofia da UFF.

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Deleuze e Guattari

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  • Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 1 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 1 pp.119-121

    Revista Trgica: estudos de filosofia da imanncia 1 quadrimestre de 2015 Vol. 8 n 1

    119

    Maio de 68 no ocorreu*

    Gilles Deleuze & Flix Guattari

    Nos fenmenos histricos, como a Revoluo de 1789, a Comuna, a Revoluo de 1917, h sempre uma parte de acontecimento, irredutvel aos determinismos sociais, s sries causais. Os historiadores no gostam muito deste aspecto: eles restauram causalidades retrospectivamente. Mas o prprio acontecimento est deslocado ou em ruptura com as causalidades: uma bifurcao, um desvio em relao s leis, um estado instvel que abre um novo campo de possveis. Prigogine falou destes estados em que, mesmo na fsica, as pequenas diferenas se propagam ao invs de se anularem, e em que fenmenos totalmente independentes entram em ressonncia, em conjuno. Neste sentido, um acontecimento pode ser contrariado, reprimido, recuperado, trado, mas ele no deixa de comportar algo que no pode ser ultrapassado. So os renegados que dizem: isso est ultrapassado. Mas o prprio acontecimento, por mais antigo que seja, no se deixa ultrapassar: ele abertura de possvel. Ele passa para dentro dos indivduos, tanto quanto para dentro da espessura de uma sociedade.

    E olha que os fenmenos histricos que invocamos eram acompanhados por determinismos ou causalidades, ainda que de outra natureza. Maio de 68 antes da ordem de um acontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa. A sua histria uma sucesso de instabilidades e de flutuaes amplificadas. Houve muitas agitaes, gesticulaes, falas, besteiras, iluses em 68, mas no isso que conta. O que conta que foi um fenmeno de vidncia, como se uma sociedade visse, de repente, o que ela tinha de intolervel e visse tambm a possibilidade de outra coisa. um fenmeno coletivo na forma de: Um pouco de possvel, seno eu sufoco... O possvel no preexiste, criado pelo acontecimento. uma questo de vida. O acontecimento cria uma nova existncia, produz uma nova subjetividade (novas relaes com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...).

    Quando uma mutao social surge, no basta extrair dela todas as consequncias ou efeitos, segundo linhas de causalidade econmicas e polticas. preciso que a

    * Texto originalmente publicado em Les Nouvelles littraires, 3-9 maio de 1984, p. 75-76. Traduo para

    o portugus de Mariana de Toledo Barbosa, professora de Filosofia Contempornea do Departamento de Filosofia da UFF.

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    sociedade seja capaz de formar agenciamentos coletivos que correspondam nova subjetividade, de tal maneira que ela queira a mutao. Isso uma verdadeira reconverso. O New Deal americano, a arrancada japonesa foram exemplos muito diferentes de reconverso subjetiva, com todas as espcies de ambiguidades e mesmo de estruturas reacionrias, mas tambm com a parte de iniciativa e de criao que constitua um novo estado social capaz de responder s exigncias do acontecimento. Na Frana, ao contrrio, depois de 68, os poderes conviveram o tempo todo com a ideia de que a poeira baixaria. E, com efeito, a poeira baixou, mas em condies catastrficas. Maio de 68 no foi a consequncia de uma crise, nem a reao a uma crise. Foi antes o contrrio. a crise atual, so os impasses da crise atual na Frana que decorrem diretamente da incapacidade da sociedade francesa para assimilar maio de 68. A sociedade francesa mostrou uma radical impotncia para operar, no nvel coletivo, uma reconverso subjetiva do tipo que 68 exigia; sendo assim, como poderia operar atualmente uma reconverso econmica em condies de esquerda? Ela no soube propor nada s pessoas: nem no domnio da escola, nem naquele do trabalho. Tudo o que era novo foi marginalizado ou caricaturizado. Hoje se vem as pessoas de Longwy se agarrarem ao seu ao, os produtores de laticnios, s suas vacas, etc.: o que mais eles poderiam fazer, se todo agenciamento de uma nova existncia, de uma nova subjetividade coletiva foi esmagado antecipadamente pela reao contra 68, quase to forte esquerda, quanto direita? Nem as rdios livres ficaram de fora. A cada vez, o possvel foi fechado.

    Os filhos de maio de 68 podem ser encontrados espalhados por a, ainda que eles prprios no saibam, e cada pas os produz sua maneira. A situao deles no muito animadora. No so jovens bem-sucedidos. So estranhamente indiferentes e, no entanto, muito informados. Deixaram de ser exigentes, ou narcisistas, mas sabem muito bem que nada responde atualmente sua subjetividade, sua capacidade de energia. Sabem at que todas as reformas atuais vo antes contra eles. Esto decididos a cuidarem da prpria vida, o melhor que puderem. Preservam uma abertura, um possvel. O seu retrato potico foi feito por Coppola em O selvagem da motocicleta [Rumble fish]. O ator Mickey Rourke explica: Trata-se de uma personagem que est no seu limite, no fio da navalha. Ele no do tipo Hells Angel. Tem massa cinzenta, e ainda por cima tem bom senso. Uma mistura de cultura de rua com cultura universitria. E esta mistura que o enloqueceu. Ele no v nada. Sabe que no existe trabalho para ele,

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    porque mais esperto do que qualquer um disposto a empreg-lo... (Libration, 15 de fevereiro de 1984).

    Isso pode ser dito do mundo inteiro. O que institucionalizado, no desemprego, na aposentadoria ou na escola, so situaes de abandono, pautadas pelo modelo da deficincia. As nicas reconverses subjetivas atuais, no nvel coletivo, so as de um capitalismo selvagem americana, ou ainda de um fundamentalismo muulmano como no Ir, de religies afro-americanas como no Brasil: so figuras opostas de um novo fanatismo (seria preciso acrescentar a o neo-papismo europeu). A Europa no tem nada a propor, e a Frana no parece ter nenhuma outra ambio, alm de assumir a liderana de uma Europa americanizada e excessivamente armada, que operaria desde cima a reconverso econmica necessria. O campo dos possveis est, no entanto, em outro lugar: segundo o eixo Oeste-Leste, o pacifismo, enquanto se prope a dissolver as relaes de conflito, de armamento excessivo, mas tambm de cumplicidade e de repartio entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica. Segundo o eixo Norte-Sul, um novo internacionalismo, que no se funde mais apenas em uma aliana com o Terceiro Mundo, mas em fenmenos de terceiro-mundanizao nos prprios pases ricos (por exemplo, a evoluo das metrpoles, a degradao dos centros, o aumento de um terceiro-mundo europeu, tais como analisados por Paul Virilio). S h soluo criadora. So essas reconverses criadoras que contribuiriam para resolver a crise atual e que dariam continuidade a um maio de 68 generalizado, a uma bifurcao ou flutuao amplificadas.