MAIORIDADE PENAL - portal.trf1.jus.br · levantam-se as vozes a favor da redução da maioridade...

1
MATÉRIA DE CAPA Referida norma não possu i clare- za suficiente para alcançar situações em que o adolescente, ao cometer cri- me violento e intencional, revela total insensibilidade frente à vida humana. Sendo assim, dois novos parágrafos de- veriam ser agregados ao art. 112, para melhor discipl ina do assunto: Art.l l 2........................ .. ......... . ( ... ) § Os ado lescentes que venham a ser responsabili zados pe la morte inte n- cional consumada ou tentada de alguma pessoa e que revelar em grave desvio de personalidade, constatado em laudo pericial fundamentado, estarão sujeitos a tratamento in dividual, especiali zado e multidiscip lin ar. § 5° O tratamento previsto no pará- grafo ante ri or terá duração máxima de dez anos, terminando antes desse prazo quando laudo médico, psicológicoou psi- qu iátrico, que deve ser re novado de a no em ano ou quando houver determinação j ud ici al, atestar a cessação do grave des- vio de pe rso na li dade. Direito Penal e legislação emergencial e simbólica A alteração da legislação penal em momentos de crise pop ular e midiáti- ca aguda tende a não atender os fins le- gítimos do direito penal (proteção frag- mentária e subsidiária de bens jurídicos relevantes) . Ao contrário, retrata u ma norma à qual se atribui um papel"per- vertido", porque relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de fins psicos- sociais alheios. Ou seja, não visa dissua- dir o potencial infrator da prática de cri- mes, e sim acalmar o cidadão. Ora, um direito penal com tais carac- terísticas carece de legi timidade, por- quanto manipula a opinião púb lica, que reage com rigor desproporcional a de- litos determinados e seus autores, me- diante a introdução, no orden amento jurídico, de disposições excepcionais, mesmo diante da impossibili dade de seu cumprimento, o que mina o poder intimidativo da norma. Como corretamente advertem Has- semer e Mufioz Conde, "a explosiva mescla de grandes 'necessidades de atuação' social, de quase cega na efi- cácia dos meios jurídico-penais e dos déficits enormes que têm esses instru- mentos quando aplicados à realidade, pode fazer surgir o perigo de que o direi- to penal viva da ilusão de solucion ar re- almente se us problemas, o que a cur to prazo pode ser gratificante, mas a largo prazo é destrutivo." 2 Particul armente, quando a po lítica ass ume a forma de espetáculo (a expres- são é de Zaffaroni), "as decisões orien- tam- se não tanto no sent ido de modifi- car a realidade, senão no de modificar a imagem da realidade nos espectadores: não tanto a satisfazer as reais necessida- des e a vontade política dos cidadãos, senão a seguir a corrente da ch amada opinião públi ca [ ...]. O déficit da tute- la real de bens jurídicos é compe nsa- do pela criação, no público, de uma ilu- são de segurança e de um senti mento de confiança no ordenamento e nas ins- tit uições, que tem uma base real cada vez mais escassa: com efeito, as normas continu am sendo violadas e a cifra ne- gra das infrações permanece altíssima, enquanto as agências de controle penal seguem [iludindo I com tarefas instru- mentais de impossível realização." 3 O uso desvirtuado do direito penal vem se acentu ando nos últimos anos. Retratadas como um "produto espeta- cular" pela dia, que as mercadeja em autênticos melodramas diários, a crimi- nalidade e a persecussão penal banaliza- ram - se de tal modo que, também, os "po- líticos" delas se utilizam em suas campa- nhas e discursos no Parlamento, apenas para lembrar os efeitos aparentes. Como exemp lo de emprego eleit o- reiro do direito penal, vale rememorar o "escândalo dos remédios falsos", que ensej ou a aprovação imedi ata da Le i no 9.677/98, visando alterar o marco pe- nal de diversas condutas relacionadas ao tema, como a falsificação de remé- dios que, a partir de então, é sancionada com pena mínima de dez anos de reclu- são. Observe-se, porém, que condutas de menor gravidade, como a falsifica- ção de creme para ali sar o cabelo, rece- beram a mesma sanção. Em seguida, foi ed i tada a Lei no 9.695/98, que classifica de "hediondos" diversos desses delitos, como queria o legislador desde a lei an- terior, m as que não fora possível devido a defeito na técnica legislativa. Em lugar de providências adminis- trativas eficazes no tocante à prevenção da falsificação de medicamentos, privi- legi ou-se a edição de uma nova lei pe- nal (lembre-se que, na ocasião, o País se encontrava às portas das eleições presi- 34 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XI- N• 245 - 31 DE MARÇ0 /2007 POR MÔNICA SIFUENTES H á uma gravura bastante conhe- cida do pintor espanhol Francis- co Goya, po r ele mesmo deno- mi nada de "O sono da razão gera mons- tros", apropriada para retratar o nosso tempo presente e, mais particularmen- te, a discussão em torno da maiori dade penal. Nela, um artista ou escritor en- contra-se debruçado sobre a sua mesa, a cabeça baixa apoiada nos braços, como se est ivesse dormindo. À sua vo lta sur- gem cri aturas estranhas e assustado- ras, mistura de corujas de bicos afiados, com asas de morcego e olhos de gato. Se- res fantasmagóricos, prontos a invadir o subconscient e, atormentando a razão, que a eles não reage. denciais). Impressionante, porém, foi o fato de a Lei no 9.677/98 ter sido propos- ta e aprovada em qu arenta e oito horas. Conclusão Dados da Coordenadoria de Análise e Planej arnento da Secretaria da Seguran- ça Pública de São Paulo, consolidados a partir de 2001, revel am dimin uta parti- cipação de menores nos crimes violen- tos. Sendo assim, fica-se sabendo, desde logo, que a redução da maioridade pe- nal não diminuirá os índices de violên- cia, cuja prática quase sempre tem como protagonistas maiores de 18 anos. Eventual mudança na Constituição Federal, no que diz respeito à idade da imputab ilidade penal, caso fosse possí- vel, seria caracteri zada como um direi- to penal emergencial e simbólico. Pouca ou nenhuma eficácia prática apresenta- ria. Daí nosso posicionamento contrá- rio à redução da maioridade penal. MAIORIDADE PENAL 1\ 1\1 \L Existem várias interpretações, inclusi- ve psicanalíticas, para essa imagem cria- da por Goya, que, dizem os especialistas, an tecipou o modernismo. Lacan afirmava que o sono da razão se alimenta dos mons- tros que gera. Os alemães, da Escola de Frankfur t, entendiam que o oposto tam- bém era verdadeiro: a razão desperta pro- duz mons tros igualmente repugnantes. A interpretação mais simples, no entan- to, parece satisfatória: enquanto a razão dorme, os monstros espreitam e atacam. No debate em torno da maioridade penal, dá-se o mesmo: a razão e o bom senso adormecem, mas as horrip il an- tes criaturas estão vivas. São as cenas da barbárie que se repetem todos os dias, à exaustão: pessoas queimadas vivas, den- tro de ôn ibus ou automóveis, crianças arrastadas pelas ruas até a morte, cor- pos dilacerados, sangue na calçada. Ce- nas impactantes de uma realidade que é cada vez mais terrível e monstruosa. Todas as vezes que uma tragédia maior ocorre, que um crime bárbaro é cometid o, levantam-se as vozes a favor da redução da maioridade pe nal e reabrem-se as dis- cussões, sem n enhum resultado, diga-se. O projeto de lei que cui da do ass unto dor- me nas prateleiras do Congresso há mais de 10 anos. No entanto, já em 2002, pes- Não obstante tal entendimen to, é evi- dente que crimes violentos praticados por menores, com requintes de cruelda- de inusitada, não devem con tinuar sub- metidos à atual discipl ina do Estatuto da Criança e do Adolescente. Somos favo- ráveis à ampliação do tempo de perma- nência desse infrator nos estabelecimen- tos adequados à sua faixa etária. Alterar os limites do ECA para três anos de internação e 21 anos de idade é a providência mais sensata neste mo- mento, pois não estaria o legislador des- respeitando os compromissos interna- cionais assumidos pe lo Brasil, no sen- tido de manter a imputab ilidade penal em 18 anos, tendência que se consolida no mundo democrático. Nosso maior problema, como con- clu iu Gilb erto Dimenste in (Folha de o Paulo de 25. 02.07, p. C9), "não é de maioridade pe nal, mas de men oridade dos adultos". 4 quisa encomendada pela Agência Estado revelava que 87% dos brasileiros entrevis- tados se manifestara a favor da redução de idade para a responsabilização crimi nal. Sinceramente, penso que a maiorida- de para efeitos penais deveria ser reduzi- da, sim, de 18 para 16 anos. Não vejo por- que o menor com 16 anos completos es- teja ap to ao exercício maior da cidadania, que é o direito de escolher os seus repre- sentan tes, inclusive o próprio Presidente da República, e não tenha esclarecimen- to e amadurecimento suficientes para decidir entre o certo e o errado, e respon- der pelas conseqüências dos se us atos. Ademais, a maioridade civil fo i reduzida recentemente, com o novo di go, de 21 para 18 anos, e não haveria nenhuma co- moção q ue também o fosse a penal, cujo Código, de 1942, espelhava uma realida- de bastante diferente da n ossa. Mas é preciso abrirmos os olhos para comp reen der que o real problema não é es pecificamen te esse. Reduzir ou não a maioridade pe nal é um paliativo, dis- cussão que acaba por encobrir e disfarçar uma triste verdade: a sociedade está do- ente e o Es t ado agoniza, em face da cri- minalidade. Alguém, no m un do em que vivemos, ainda por acaso alime nta a ilu- são de que red uzir a maiori dade penal NOTAS impli caria redução na violência? Ou in i- biria os jovens del inqüentes de continu- ar a cometer crimes? O verdadeiro debate, q ue parece estar esquecido, é: O que temos feito pelas nos- sas crianças e adolescentes? Onde estão as políticas públicas para diminuir a desi- gualdade social? Já se ouviu falar de políti- cas preven tivas para a crirninalidade? Até quando permaneceremos impávidos nes- se sono letárgico? Até quando fecharemos os olhos a tantas atrocidades? Queremos escola de quali dade para todas as nossas crianças, queremos em- prego para jovens e adultos, queremos menos criminalidade nas ruas e na tevê, que remos presíd ios e punição pa ra os crimi nosos, queremos que o tráfico de armas e de drogas não continue a ali- mentar o grande monstro da violência. Queremos ter, ao menos , o direito de vi- ver com dignidade, e em paz! O sono da nossa consciência tem pro- duzido monstros que andam impunemen- te pelas ruas, assaltando, estuprando, ma- tando e, o que é pior, rindo da nossa impo- tência. Mas eles têm um ponto fraco: só nos atacam porque estamos dormindo. • MONICA SIFUENTES é Ju í za Federal em Brasília. Gilrnar Pentead o. Menor participa de 1% dos homicídios em SP, Folha de S. Paulo, lo de janeiro de 2004, p. C3. 2 Hassemer, Win fried; Mufioz Co nde, Francisco. La Responsabilidad por El Producto en Derecho Penal, Valença, Tirant lo Blanch, 1995, p. 33. 3 Baratta, AJessandro. Funciones instrumentales y simbólicas dei Derecho Penal: una dis- cusión en la perspectiva de la criminología crítica. Pena y Estado, Barcelona, Promocio- nes y Publicaciones Universitarias, no l, p. 53, set./dez. 1991. 4 Cf. Dimenstein, G il bert o, que evocou a história pessoal de Expedito Resende, um cearense, professor de engenharia química da Universidade Federal do Ceará, que descobriu o biocliesel, desenvolveu o bioquerosene (novo combustível para avião, ex- traído do óleo de babaçu), criou a vaca mecânica (para produção do leite de soja) et c. e que é filho de José Parente que, com doze anos de idade, deixou sua Sobral, rumo à Fortaleza, para ganhar a vida e ensinar que "o gosto pelo conhecimento é a melhor he- rança que posso deixar". LUIZ F LA. VIO GOMES é Doutor em Direito Penal pela Faculdade de D ireito da Universida- de Complutense de Madri ; Mestre em Direito Penal pela USP; Secretário-Geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN) ; Consultor e Parecerista, fundador e presidente da Rede de Ensino LFG (líder mundial em ALICE BIANCHINI é Doutora em Direito Penal pela PUC/SP; Mestre em Direito pela UFSC; Professora do Mestrado em Dire ito da Unisul; membro do Instituto Panamericano de Políti- ca Criminal (IPAN) e Coordenadora-Geral dos Curs os de Especialização Telepresenciais e Virtuais da Rede de Ensino Lu iz Flávio Gomes. REVISTA JURÍDICA CONSULEX- ANO XI - N• 245 - 31 DE MARÇ0 /2007 35

Transcript of MAIORIDADE PENAL - portal.trf1.jus.br · levantam-se as vozes a favor da redução da maioridade...

Page 1: MAIORIDADE PENAL - portal.trf1.jus.br · levantam-se as vozes a favor da redução da maioridade penal e reabrem-se as dis cussões, sem nenhum resultado, diga-se. O projeto de lei

MATÉRIA DE CAPA

Referida norma não possui clare­za suficiente para alcançar situações em que o adolescente, ao cometer cri­me violento e intencional, revela total insensibilidade frente à vida humana. Sendo assim, dois novos parágrafos de­veriam ser agregados ao art. 112, para melhor disciplina do assunto:

Art.l l 2 ................................... . ( ... ) § 4° Os adolescentes que venham a

ser responsabilizados pela morte inten­cional consumada ou tentada de alguma pessoa e que revela rem grave desvio de personalidade, constatado em laudo pericial fundamentado, estarão suje itos a tratamento individual, especializado e multidisciplinar.

§ 5° O tratamento previsto no pará­grafo anterior terá duração máxima de dez anos, terminando antes desse prazo quando laudo médico, psicológicoou psi­quiátrico, que deve ser renovado de ano em ano ou quando houver determinação jud icial, atestar a cessação do g rave des­vio de personalidade.

Direito Penal e legislação emergencial e simbólica

A alteração da legislação penal em momentos de crise popular e midiáti­ca aguda tende a não atender os fins le­gítimos do direito penal (proteção frag­mentária e subsidiária de bens jurídicos relevantes) . Ao contrário, retrata uma norma à qual se atribui um papel"per­vertido", porque relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de fins psicos­sociais alheios. Ou seja, não visa dissua­dir o potencial infrator da prática de cri­mes, e sim acalmar o cidadão.

Ora, um direito penal com tais carac­terísticas carece de legitimidade, por­quanto manipula a opinião pública, que reage com rigor desproporcional a de­litos determinados e seus autores, me­diante a introdução, no ordenamento jurídico, de disposições excepcionais, mesmo diante da impossibilidade de seu cumprimento, o que mina o poder intimidativo da norma.

Como corretamente advertem Has­semer e Mufioz Conde, "a explosiva mescla de grandes 'necessidades de atuação' social, de fé quase cega na efi­cácia dos meios jurídico-penais e dos déficits enormes que têm esses instru­mentos quando aplicados à realidade, pode fazer surgir o perigo de que o direi-

to penal viva da ilusão de solucionar re­almente seus problemas, o que a curto prazo pode ser gratificante, mas a largo prazo é destrutivo."2

Particularmente, quando a política assume a forma de espetáculo (a expres­são é de Zaffaroni), "as decisões orien­tam-se não tanto no sentido de modifi­car a realidade, senão no de modificar a imagem da realidade nos espectadores: não tanto a satisfazer as reais necessida­des e a vontade política dos cidadãos, senão a seguir a corrente da chamada opinião pública [ ... ]. O déficit da tute­la real de bens jurídicos é compensa­do pela criação, no público, de uma ilu­são de segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas ins­tituições, que tem uma base real cada vez mais escassa: com efeito, as normas continuam sendo violadas e a cifra ne­gra das infrações permanece altíssima, enquanto as agências de controle penal seguem [iludindo I com tarefas instru­mentais de impossível realização."3

O uso desvirtuado do direito penal vem se acentuando nos últimos anos. Retratadas como um "produto espeta­cular" pela mídia, que as mercadeja em autênticos melodramas diários, a crimi­nalidade e a persecussão penal banaliza­ram -se de tal modo que, também, os "po­líticos" delas se utilizam em suas campa­nhas e discursos no Parlamento, apenas para lembrar os efeitos aparentes.

Como exemplo de emprego eleito­reiro do direito penal, vale rememorar o "escândalo dos remédios falsos", que ensejou a aprovação imediata da Lei no 9.677/98, visando alterar o marco pe­nal de diversas condutas relacionadas ao tema, como a falsificação de remé­dios que, a partir de então, é sancionada com pena mínima de dez anos de reclu­são. Observe-se, porém, que condutas de menor gravidade, como a falsifica­ção de creme para alisar o cabelo, rece­beram a mesma sanção. Em seguida, foi editada a Lei no 9.695/98, que classifica de "hediondos" diversos desses delitos, como queria o legislador desde a lei an­terior, mas que não fora possível devido a defeito na técnica legislativa.

Em lugar de providências adminis­trativas eficazes no tocante à prevenção da falsificação de medicamentos, privi­legiou-se a edição de uma nova lei pe­nal (lembre-se que, na ocasião, o País se encontrava às portas das eleições presi-

34 REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XI- N• 245 - 31 DE MARÇ0 /2007

• POR MÔNICA SIFUENTES

Há uma gravura bastante conhe­cida do pintor espanhol Francis­co Goya, por ele mesmo deno­

minada de "O sono da razão gera mons­tros", apropriada para retratar o nosso tempo presente e, mais particularmen­te, a discussão em torno da maioridade penal. Nela, um artista ou escritor en­con tra-se debruçado sobre a sua mesa, a cabeça baixa apoiada nos braços, como se estivesse dormindo. À sua volta sur­gem criaturas estranhas e assustado­ras, mistura de corujas de bicos afiados, com asas de morcego e olhos de gato. Se­res fantasmagóricos, prontos a invadir o subconsciente, atormentando a razão, que a eles não reage.

denciais). Impressionante, porém, foi o fato de a Lei no 9.677/98 ter sido propos­ta e aprovada em quarenta e oito horas.

Conclusão Dados da Coordenadoria de Análise e

Planej arnento da Secretaria da Seguran­ça Pública de São Paulo, consolidados a partir de 2001, revelam diminuta parti­cipação de menores nos crimes violen­tos. Sendo assim, fica-se sabendo, desde logo, que a redução da maioridade pe­nal não diminuirá os índices de violên­cia, cuja prática quase sempre tem como protagonistas maiores de 18 anos.

Eventual mudança na Constituição Federal, no que diz respeito à idade da imputabilidade penal, caso fosse possí­vel, seria caracterizada como um direi­to penal emergencial e simbólico. Pouca ou nenhuma eficácia prática apresenta­ria. Daí nosso posicionamento contrá­rio à redução da maioridade penal.

MAIORIDADE PENAL 1\ 1\ 1 \L

Existem várias interpretações, inclusi­ve psicanalíticas, para essa imagem cria­da por Goya, que, dizem os especialistas, antecipou o modernismo. Lacan afirmava que o sono da razão se alimenta dos mons­tros que gera. Os alemães, da Escola de Frankfurt, entendiam que o oposto tam­bém era verdadeiro: a razão desperta pro­duz monstros igualmente repugnantes. A interpretação mais simples, no entan­to, parece satisfatória: enquanto a razão dorme, os monstros espreitam e atacam.

No debate em torno da maioridade penal, dá-se o mesmo: a razão e o bom senso adormecem, mas as horrip ilan­tes criaturas estão vivas. São as cenas da barbárie que se repetem todos os dias, à exaustão: pessoas queimadas vivas, den­tro de ônibus ou automóveis, crianças arrastadas pelas ruas até a morte, cor­pos dilacerados, sangue na calçada. Ce­nas impactan tes de uma realidade que é cada vez mais terrível e monstruosa.

Todas as vezes que uma tragédia maior ocorre, que um crime bárbaro é cometido, levantam-se as vozes a favor da redução da maioridade penal e reabrem-se as dis­cussões, sem nenhum resultado, diga-se. O projeto de lei que cuida do assunto dor­me nas prateleiras do Congresso há mais de 10 anos. No entanto, já em 2002, pes-

Não obstante tal entendimento, é evi­dente que crimes violentos praticados por menores, com requintes de cruelda­de inusitada, não devem continuar sub­metidos à atual disciplina do Estatuto da Criança e do Adolescente. Somos favo­ráveis à ampliação do tempo de perma­nência desse infrator nos estabelecimen­tos adequados à sua faixa etária.

Alterar os limites do ECA para três anos de internação e 21 anos de idade é a providência mais sensata neste mo­mento, pois não estaria o legislador des­respeitando os compromissos interna­cionais assumidos pelo Brasil, no sen­tido de manter a imputabilidade penal em 18 anos, tendência que se consolida no mundo democrático.

Nosso maior problema, como con­cluiu Gilberto Dimenstein (Folha de São Paulo de 25.02.07, p. C9), "não é de maioridade penal, mas de menoridade dos adultos".4

quisa encomendada pela Agência Estado revelava que 87% dos brasileiros entrevis­tados se manifestara a favor da redução de idade para a responsabilização criminal.

Sinceramente, penso que a maiorida­de para efeitos penais deveria ser reduzi­da, sim, de 18 para 16 anos. Não vejo por­que o menor com 16 anos completos es­teja apto ao exercício maior da cidadania, que é o direito de escolher os seus repre­sentantes, inclusive o próprio Presidente da República, e não tenha esclarecimen­to e amadurecimento suficientes para decidir entre o certo e o errado, e respon­der pelas conseqüências dos seus atos. Ademais, a maioridade civil fo i reduzida recentemente, com o novo Código, de 21 para 18 anos, e não haveria nenhuma co­moção que também o fosse a penal, cujo Código, de 1942, espelhava uma realida­de bastante diferente da nossa.

Mas é preciso abrirmos os olhos para compreender que o real problema não é especificamente esse. Reduzir ou não a maioridade penal é um paliativo, dis­cussão que acaba por encobrir e disfarçar uma triste verdade: a sociedade está do­ente e o Estado agoniza, em face da cri­minalidade. Alguém, no mundo em que vivemos, ainda por acaso alimenta a ilu­são de que reduzir a maioridade penal

NOTAS

implicaria redução na violência? Ou ini­biria os jovens delinqüen tes de continu­ar a cometer crimes?

O verdadeiro debate, que parece estar esquecido, é: O que temos feito pelas nos­sas crianças e adolescentes? Onde estão as políticas públicas para diminuir a desi­gualdade social? Já se ouviu falar de políti­cas preventivas para a crirninalidade? Até quando permaneceremos impávidos nes­se sono letárgico? Até quando fecharemos os olhos a tantas atrocidades?

Queremos escola de qualidade para todas as nossas crianças, queremos em­prego para jovens e adultos, queremos menos criminalidade nas ruas e na tevê, queremos presídios e punição para os criminosos, queremos que o tráfico de armas e de drogas não continue a ali­mentar o grande monstro da violência. Queremos ter, ao menos, o direito de vi­ver com dignidade, e em paz!

O sono da nossa consciência tem pro­duzido monstros que andam impunemen­te pelas ruas, assaltando, estuprando, ma­tando e, o que é pior, rindo da nossa impo­tência. Mas eles têm um ponto fraco: só nos atacam porque estamos dormindo. •

MONICA SIFUENTES é Juíza Federal em Brasília.

Gilrnar Penteado. Menor participa de 1% dos homicídios em SP, Folha de S. Paulo, lo de janeiro de 2004, p. C3.

2 Hassemer, Winfried; Mufioz Conde, Francisco. La Responsabilidad por El Producto en Derecho Penal, Valença, Tirant lo Blanch, 1995, p. 33.

3 Baratta, AJessandro. Funciones instrumentales y simbólicas dei Derecho Penal: una dis­cusión en la perspectiva de la criminología crítica. Pena y Estado, Barcelona, Promocio­nes y Publicaciones Universitarias, no l, p. 53, set./dez. 1991.

4 Cf. Dimenstein, Gilberto, que evocou a história pessoal de Expedito Resende, um cearense, professor de engenharia química da Universidade Federal do Ceará, que descobriu o biocliesel, desenvolveu o bioquerosene (novo combustível para avião, ex­traído do óleo de babaçu), criou a vaca mecânica (para produção do leite de soja) etc. e que é filho de José Parente que, com doze anos de idade, deixou sua Sobral, rumo à Fortaleza, para ganhar a vida e ensinar que "o gosto pelo conhecimento é a melhor he­rança que posso deixar".

LUIZ F LA. VIO GOMES é Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universida­de Complutense de Madri; Mestre em Direito Penal pela USP; Secretário-Geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN); Consultor e Parecerista, fundador e presidente da Rede de Ensino LFG (líder mundial em

ALICE BIANCHINI é Doutora em Direito Penal pela PUC/SP; Mestre em Direito pela UFSC; Professora do Mestrado em Dire ito da Unisul; membro do Instituto Panamericano de Políti­ca Criminal (IPAN) e Coordenadora-Geral dos Curs os de Especialização Telepresencia is e Virtuais da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.

REVISTA JURÍDICA CONSULEX- ANO XI - N• 245 - 31 DE MARÇ0 /2007 35