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˜ Quando você encontra algo raro e precioso, você deve compartilhá-lo ou protegê-lo? Cecelia Ahern L y r e b i r d Mais de 25 milhões de livros vendidos no mundo, da autora best-seller de Simplesmente Acontece e P.S. Eu te amo.

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˜

Quando você encontra algo raro e precioso, você deve compartilhá-lo ou protegê-lo?

CeceliaAhern

Lyrebird

Mais de 25 milhões de livros vendidos no mundo, da autora best-seller

de Simplesmente Acontece e P.S. Eu te amo.

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CeceliaAhern

Lyrebird

TraduçãoIvar Panazzolo Junior

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© 2014 Alloy EntertainmentPublicado sob acordo com Rights People, Londres© 2019 Editora Novo ConceitoTodos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio, seja este eletrônico, mecânico de fotocópia, sem permissão por escrito da Editora.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

1ª Impressão — 2019Impressão e Acabamento

Produção editorialEquipe Novo Conceito

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wunder, WendyO museu das coisas intangíveis / Wendy Wunder ; tradução Maria Angela Amorim

De Paschoal. -- Ribeirão Preto, SP : Novo Conceito Editora, 2018.

Título original: The museum of intagible things.ISBN 978-85-8163-874-4

1. Ficção norte-americana I. Título.

15-09338 CDD-813

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura irlandesa 813

Rua Dr. Hugo Fortes, 1885Parque Industrial Lagoinha14095-260 – Ribeirão Preto – SPwww.grupoeditorialnovoconceito.com.br

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Para Paula Pea.

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Não é o mais forte da espécie que sobrevive, nem o mais inteli-gente. É aquele que responde melhor às mudanças.

— Atribuído a Charles Darwin.

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Prólogo

Ele se afasta dos outros, e o falatório constante daquelas pessoas se mescla num som monótono e tedioso em sua cabeça. Não tem certeza se isso é

resultado da diferença de fuso horário após a longa viagem de avião ou se simplesmente não está interessado no que está acontecendo. Podem ser as duas coisas. Sente que está em algum outro lugar, afastado. E, se bocejar mais uma vez, ela não vai hesitar em chamar sua atenção para isso.

As pessoas não percebem quando ele se afasta ou, se percebem, não co-mentam. Ele leva o equipamento de som consigo; nunca o deixaria para trás. Não somente por causa de seu valor, mas porque já faz parte dele agora, como outro braço ou perna. É pesado, mas ele está acostumado ao peso, e aquilo é estranhamente reconfortante. Sente que uma parte de si lhe falta quando não está com o aparelho e caminha como se estivesse levando a bolsa com o equi-pamento de áudio mesmo quando não está, com o ombro direito caído para um dos lados. Pode significar que descobriu sua vocação para ser um profis-sional de gravação de sons, mas essa conexão subconsciente com o aparelho não traz nada de bom para sua postura.

Ele se afasta da clareira, indo para longe do abrigo dos morcegos, a cau-sa daquela conversa, e vai andando rumo à floresta. O ar fresco o atinge quando se aproxima das árvores.

É um dia quente de junho, o sol bate com força no alto de sua cabeça e começa a torrar a pele exposta da nuca. A sombra é convidativa; um grupo de mosquitos dança alucinadamente nos fachos de luz, parecendo insetos

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míticos. O chão da floresta é almofadado e fofo sob seus pés, com camadas de folhas caídas e cascas de árvore. Ele não consegue mais ver o grupo que deixou para trás e deixa de prestar atenção àquelas pessoas, enchendo os pulmões com o aroma refrescante dos pinheiros.

Coloca a bolsa com o equipamento de áudio a seu lado e deixa o micro-fone boom encostado em uma árvore. Espreguiça-se e se delicia com os esta-los dos braços e das pernas e com o alongamento dos músculos. Tira o blusão, e sua camiseta se ergue com o movimento, expondo-lhe a barriga; em segui-da, amarra a blusa ao redor da cintura. Tira o elástico que prende os cabelos longos e os amarra mais alto, formando o rabo de cavalo no alto da cabeça, sentindo o ar fresco no pescoço pegajoso. A cento e vinte metros acima do nível do mar, olha por sobre Gougane Barra e vê montanhas cobertas por árvores que se estendem até onde a vista alcança, e nenhum sinal de vizinhos por vários e vários quilômetros. Cento e quarenta e dois hectares de terras naquele parque nacional. É pacífico, sereno. Ele tem o ouvido apurado para os sons, o que foi adquirido com o tempo e pela necessidade. Aprendeu a escutar aquilo que as pessoas geralmente não ouvem. Ouve o gorjear dos pássaros, o farfalhar e o estalar de criaturas que se movem à sua volta, o ron-co baixo do motor de um trator ao longe, obras de construção escondidas em meio às árvores. É tranquilo, mas vivo. Inala o ar fresco e, quando o faz, ouve um graveto se quebrar atrás de si. Ele se vira rapidamente para trás.

Uma figura passa correndo e se esconde atrás de uma árvore.— Olá? — ele chama, ouvindo a agressividade em sua voz por ter sido

apanhado desprevenido.A figura não se move.— Quem está aí? — pergunta ele.Ela espia brevemente por detrás do tronco e, em seguida, desaparece

outra vez, como se estivesse brincando de esconde-esconde. Uma coisa esqui-sita acontece. Ele agora sabe que está seguro, mas seu coração começa a bater com força; o oposto do que deveria estar acontecendo.

Ele deixa o equipamento para trás e anda lentamente na direção dela, com o triturar e o estalar do chão revelando cada um de seus movimentos. Certi-fica-se de manter um espaço entre os dois, descrevendo um círculo amplo ao redor da árvore atrás da qual ela está escondida. Em seguida, ela fica total-mente à vista. Ela se retesa, como se estivesse se preparando para a defesa, mas ele ergue as mãos no ar, espalmadas, como se estivesse se rendendo.

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Ela estaria quase invisível ou camuflada na floresta se não fosse pelos cabelos loiros esbranquiçados e pelos olhos verdes, os mais penetrantes que ele já viu. Ele está completamente cativado.

— Oi — diz ele suavemente. Não quer assustá-la. Ela parece frágil, pres-tes a fugir, apoiada sobre os dedos dos pés, pronta para sair correndo a qual-quer momento se ele der um passo em falso. Assim, ele para de se mover, os pés enraizados no chão, as mãos erguidas e espalmadas, como se estivesse segurando o ar. Ou talvez seja o ar que o esteja segurando.

Ela sorri.O feitiço está lançado.Ela é como uma criatura mítica; ele mal consegue ver onde a árvore

começa e a mulher termina. As folhas que funcionam como teto para os dois se agitam ao sabor da brisa, criando efeitos de luz que se movem no rosto dela. Os dois estão se vendo pela primeira vez, duas pessoas completamente estranhas, incapazes de tirar os olhos uma da outra. Nesse momento, a vida dele se divide entre o que era antes de encontrá-la e aquele que passou a ser depois disso.

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Parte 1

Uma das mais bonitas, mais raras e provavelmente mais inteligentes de todas as criaturas do mundo é aquela artista incomparável, a ave-lira... É extremamente arredia e quase incrivelmente elusiva... carac-terizada por uma inteligência impressionante.Dizer que é um ser das montanhas só a explica parcialmente. É, cer-tamente, um ser das montanhas, mas nenhuma grande proporção dasterras altas que marque e delimite seus domínios pode reclamá-la como habitante... Seu gosto é tão exigente e definido, e sua disposição é tãojudiciosa que ela continua a ser seletiva nessas belas montanhas, e foium desperdício de tempo procurá-la em qualquer outro lugar — exce-to em situações de extrema amabilidade e grandiosidade.

Ambrose Pratt, A ciência da ave-lira.

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1Naquela manhã

–Tem certeza de que está bem para dirigir?— Tenho — responde Bo.

— Tem certeza de que ela está bem para dirigir? — repete Rachel, per-guntando a Solomon desta vez.

— Sim — responde Bo outra vez.— Existe alguma possibilidade de você parar de mandar mensagens de

texto enquanto dirige? A minha esposa está nos últimos meses da gravidez, e temos planos de conhecer o nosso primeiro filho — diz Rachel.

— Não estou mandando mensagens. Estou só olhando meus e-mails.— Ah, então tudo bem. Rachel revira os olhos e olha pela janela conforme a paisagem rural passa

rapidamente. — Você está correndo demais. E está ouvindo o noticiário. E está tão

abalada pela diferença de fuso horário que nem percebe.— Coloque o cinto de segurança, já que está tão preocupada.— Ah, isso é reconfortante — murmura Rachel enquanto espreme o

corpo no assento atrás de Bo e prende a fivela do cinto de segurança. Preferia estar sentada logo atrás do banco do passageiro, de onde poderia vigiar me-lhor o jeito como Bo dirige, mas Solomon empurrou o banco todo para trás, e ela não consegue se encaixar ali.

— E a mudança de fuso horário não me afeta — diz Bo, finalmente guar-dando o celular, para alívio de Rachel. Ela espera para ver se as duas mãos de

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Bo retornam ao volante, mas, em vez disso, a motorista começa a prestar atenção no rádio e a passar pelas estações.

— Música, música, música... por que ninguém mais conversa hoje em dia?— Porque às vezes o mundo precisa calar a boca — responde Rachel.

— Bem, não importa o que você diga, ele está sofrendo com a diferença de fuso horário. Não sabe nem mesmo onde está.

Solomon, cansado, abre os olhos para observar as duas. — Estou acordado — diz ele, preguiçosamente. — Estou só... vocês

sabem...Ele sente as pálpebras se fechando outra vez.— Sim, eu sei, eu sei. Você não quer ver o jeito como Bo dirige, já entendi

— diz Rachel.Logo depois de desembarcarem de um voo de seis horas vindo de Boston,

que pousou às cinco e meia da manhã, Solomon e Bo tomaram café no aero-porto, pegaram o carro e em seguida apanharam Rachel para uma jornada de trezentos quilômetros rumo ao condado de Cork, no sudoeste da Irlanda. Solomon havia dormido durante quase toda a viagem de avião, mas ainda assim não foi o bastante. Além disso, toda vez que acordava, percebia que Bo estava totalmente desperta e que passava cada segundo assistindo a todos os documentários que podia no sistema de entretenimento de bordo.

Algumas pessoas dizem, brincando, que são capazes de viver somente de ar. Solomon está convicto de que Bo é capaz de viver somente de informação. Ela ingere informação em quantidades astronômicas, sempre querendo mais, lendo, escutando, perguntando, procurando com tal intensidade que sobra pouco espaço para a comida. Ela mal se alimenta; a informação lhe dá forças, mas nunca a satisfaz. A fome de conhecimento e informação jamais é saciada.

Residindo em Dublin, Solomon e Bo haviam viajado a Boston para re-ceber um prêmio pelo documentário de Bo, Os gêmeos Toolin, que ganhou na categoria Contribuição de Destaque ao Cinema e à Televisão no Prêmio Anu-al do jornal Boston Irish Reporter. Era o décimo segundo prêmio que eles recebiam naquele ano, depois de terem sido honrados com vários outros.

Três anos antes, eles haviam passado um ano inteiro acompanhando e filmando dois irmãos gêmeos, Joe e Tom Toolin, que tinham setenta e sete anos na ocasião. Eram fazendeiros que moravam em uma parte isolada da área rural de Cork, a oeste de Macroom. Bo descobriu a história deles enquanto fazia pesquisas para outro projeto, e os dois rapidamente conquistaram seu

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coração, sua mente e, consequentemente, sua vida. Os irmãos moraram e trabalharam juntos desde que se conheciam por gente. Nenhum deles jamais chegou a ter um relacionamento amoroso com uma mulher ou com qualquer pessoa que fosse. Eles viviam na mesma fazenda desde que nasceram, traba-lharam com o pai e assumiram todas as tarefas quando ele faleceu. O trabalho era árduo e eles moravam em um lar muito básico e humilde, uma casa rural com piso de pedra, dormindo em camas de solteiro sem nada além de um velho rádio para entretê-los. Raramente deixavam sua propriedade, e as com-pras semanais eram entregues por uma senhora das redondezas que trazia os poucos itens que pediam e cuidava da casa. A relação dos irmãos Toolin e a perspectiva de vida deles arrebataram os corações das plateias tanto quanto os da equipe de gravação, pois, por trás daquela simplicidade, havia uma compreensão clara e honesta sobre a vida.

Bo produziu e dirigiu o documentário com sua própria empresa, a Boca a Boca Produções, com Solomon no áudio e Rachel operando a câmera. Eles eram membros da mesma equipe havia cinco anos, desde o documentário Criaturas de hábito, que explorava o número cada vez menor de freiras na Irlanda. Bo e Solomon estavam romanticamente envolvidos fazia dois anos, desde a festa não oficial de encerramento do documentário. Os gêmeos Toolin era a quinta produção deles, mas a primeira de grande sucesso, e o casal pas-sou esse ano viajando o mundo, indo a todos os festivais de cinema e a todas as cerimônias de premiação. Bo vinha recebendo prêmios e aprimorando seu discurso até a perfeição.

E agora eles estão novamente a caminho da fazenda dos gêmeos Toolin, que já lhes é tão familiar. Entretanto, não estão indo até lá para celebrar o sucesso recente com os irmãos. Vão participar do funeral de Tom Toolin, o gêmeo mais novo, que nasceu dois minutos depois do irmão.

— Podemos parar para comer alguma coisa? — pergunta Rachel.— Não é preciso. — Bo inclina-se perigosamente e estica a mão até o piso

do lado do passageiro, mantendo a outra ainda no volante enquanto o carro vai cruzando ligeiramente a faixa do acostamento.

— Meu Deus! — diz Rachel, sem conseguir olhar.Bo pega três barras de cereal e joga uma para ela. — Almoço. — Ela rasga a embalagem com os dentes e dá uma mordida.

Mastiga agressivamente, como se fosse um comprimido que precisa engolir, comida para ter energia, não para desfrutar.

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— Você não é um ser humano, sabia? — diz Rachel, desembrulhando sua barra de cereal e estudando-a, decepcionada. — Você é um monstro.

— Mas ela é o meu monstrinho desumano — diz Solomon, ainda grogue, estendendo a mão para apertar a coxa de Bo.

Ela sorri.— Eu gostava mais quando vocês dois ainda não estavam fodendo — diz

Rachel, desviando o olhar. — Você costumava ficar do meu lado.— Ele ainda está do seu lado — diz Bo, em tom de piada, mas ainda assim

falando sério.Solomon ignora a cutucada.— Se vamos dar pêsames ao pobre Joe, por que vocês me obrigaram a

trazer todo o meu equipamento? — pergunta Rachel, com a boca cheia de frutas secas e uvas-passas, sabendo exatamente o motivo, mas a fim de com-plicar as coisas ainda mais. Bo e Solomon eram divertidos daquela maneira; nunca completamente estáveis, sempre fáceis de perturbar.

Os olhos de Solomon se abrem enquanto ele estuda a namorada. Dois anos juntos romanticamente, cinco anos profissionalmente, e ele é capaz de enxergar através de Bo como se ela fosse uma vidraça.

— Você não está achando realmente que Bo está indo para esse funeral só porque é uma pessoa boa de coração, não é mesmo? — ele provoca. — Diretoras premiadas e mundialmente renomadas têm que ser receptáculos para histórias o tempo todo.

— Agora sim as coisas fazem sentido — diz Rachel.— Não tenho um coração de pedra — diz Bo, defendendo-se. — Assisti

ao documentário de novo durante o voo. Lembram-se de quem foi que disse as últimas palavras? Tom. “Qualquer dia que você consiga se levantar da cama é um bom dia.” O meu coração está partido por Joe.

— Ou trincado, pelo menos — provoca Rachel, gentilmente.— O que Joe vai fazer? — continua Bo, ignorando a cutucada de Rachel.

— Com quem ele vai conversar? Ele vai se lembrar de comer? Era Tom que organizava as entregas de comida e também quem cozinhava.

— Sopa em lata, torradas com feijão e chá com torradas não é exatamen-te o que eu chamo de cozinhar. Acho que Joe não vai ter dificuldades para assumir as tarefas — sorri Rachel, lembrando-se dos homens sentados juntos para enfiar pedaços de pão duro em sopa aguada nas tardes de inverno quan-do o sol se punha cedo.

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— Para Bo, isso é um banquete — brinca Solomon.— Imaginem o quanto a vida vai ser solitária para ele agora, no alto da-

quela montanha, especialmente na parte mais fria do inverno, sem ver nin-guém por uma semana ou mais.

Um momento de silêncio paira no carro enquanto todos ponderam sobre o destino de Joe. Eles o conhecem melhor que a maioria das pessoas. Ele e Tom lhes permitiram entrar em suas vidas e foram muito abertos a todas as perguntas.

Durante as filmagens, Solomon frequentemente se perguntava como um irmão conseguiria agir algum dia sem a presença do outro. Com exceção do mercado e de pastorear suas ovelhas, eles raramente saíam da fazenda. Uma governanta cuidava das necessidades domésticas dos dois, o que lhes parecia uma inconveniência em vez de algo indispensável. As refeições eram feitas rapidamente e em silêncio, engolindo a comida antes de voltarem ao trabalho. Os dois eram como duas gotas; um terminava as frases do outro, e ambos se moviam ao redor de si mesmos com tamanha familiaridade que aquilo mais parecia uma dança, mas não necessariamente em uma harmonia elegante. Em vez disso, era algo que foi aperfeiçoado com o tempo, sem intenção, sem que percebessem. Apesar de não terem movimentos graciosos, ou talvez por causa disso, era algo bonito de se ver, intrigante de se observar.

Eram sempre Joe e Tom, nunca Tom e Joe. Os dois eram idênticos na aparência e se mesclavam muito bem, apesar da diferença de personalidade. Faziam um sentido peculiar em uma paisagem sem sentido algum.

Havia pouca conversa entre eles; não precisavam de explicações ou des-crições. Em vez disso, a comunicação enfatizava sons que tinham significados para eles, acenos de cabeça, movimentos de dar de ombros, um aceno de mão, algumas palavras aqui e ali. Levava algum tempo para que a equipe de filma-gem compreendesse qualquer mensagem trocada entre os dois. Estavam tão sincronizados que eram capazes de pressentir o estado de humor, as preocu-pações e os medos um do outro. Um sabia o que o outro estava pensando a qualquer momento, e não davam a menor importância à beleza dessa conexão tão particular. Ficavam frequentemente confusos pela profundidade das aná-lises que Bo fazia a respeito deles. A vida é o que é, as coisas são como são, não faz sentido analisar, não faz sentido tentar mudar o que não pode ser mudado ou entender o que não pode ser entendido.

— Eles não queriam mais ninguém porque tinham um ao outro. Um era

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o bastante para o outro — diz Bo, repetindo uma frase que havia dito milha-res de vezes enquanto promovia seu documentário, mas ainda entoando cada palavra com sinceridade.

— Se eu estou atrás de outra história? — pergunta Bo. — Com toda a certeza, porra.

Rachel joga a embalagem vazia da barra de cereal por cima do ombro de Bo.

Solomon dá uma risada sarcástica e fecha os olhos. — Lá vamos nós de novo.