Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida. Amor, “serviço” e lírica...

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85-98 - 2010 Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida. Amor, “serviço” e lírica camoniana Micaela Ramon RESUMO: O soneto “Sete anos de pastor Jacob servia” goza de um estatuto privilegiado no conjunto da obra lírica de Camões, patente no apreço que gerações sucessivas de leitores por ele têm manifestado. Um dos melhores indicadores do grau desse apreço são precisamente os ecos da pervivência da escrita do poeta na produção artística subsequente. Neste sentido, a poesia camoniana mantém intacta a sua energia fecundante, tantos são os testemunhos da influência que exerce sobre os escritores contemporâneos. Na actual prosa de ficção portuguesa, sobressai o exemplo de Frederico Lourenço, autor cuja produção registra fortes relações de intertextualidade com a obra do grande vate do século XVI. Neste artigo procede-se a um estudo comparativo do conto “O Retrato de Camões”, de F. Lourenço, com o mencionado soneto camoniano procurando pôr em relevo a forma como a ficção de Lourenço pode contribuir para o surgimento de gerações sempre renovadas de apreciadores de Camões. PALAVRAS-CHAVE: Camões; poesia lírica; Frederico Lourenço; prosa de ficção; intertextualidade.

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    Mais servira, se no fora para to longo amor to curta a vida. Amor, servio e lrica

    camoniana

    Micaela Ramon

    RESUMO: O soneto Sete anos de pastor Jacob servia goza de um estatuto privilegiado no conjunto da obra lrica de Cames, patente no apreo que geraes sucessivas de leitores por ele tm manifestado. Um dos melhores indicadores do grau desse apreo so precisamente os ecos da pervivncia da escrita do poeta na produo artstica subsequente. Neste sentido, a poesia camoniana mantm intacta a sua energia fecundante, tantos so os testemunhos da influncia que exerce sobre os escritores contemporneos. Na actual prosa de fico portuguesa, sobressai o exemplo de Frederico Loureno, autor cuja produo registra fortes relaes de intertextualidade com a obra do grande vate do sculo XVI. Neste artigo procede-se a um estudo comparativo do conto O Retrato de Cames, de F. Loureno, com o mencionado soneto camoniano procurando pr em relevo a forma como a fico de Loureno pode contribuir para o surgimento de geraes sempre renovadas de apreciadores de Cames.

    PALAVRAS-CHAVE: Cames; poesia lrica; Frederico Loureno; prosa de fico; intertextualidade.

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    O conhecidssimo soneto camoniano que tem por incipit o verso Sete anos de pastor Jacob servia1

    um daqueles que se inclui certamente no rol das poesias do autor que tm gozado de maior popularidade junto de sucessivas geraes de leitores. Pouco menos de um sculo depois da publicao da primeira edio das Rimas, j Faria e Sousa2 lhe reconhecia um estatuto privilegiado no conjunto da obra lrica de Cames3 e o passar das centrias no parece ter sido suficiente para o fazer apagar da memria literria coletiva, perante a qual, alis, a figura e a obra do poeta quinhentista assumem contornos mticos que lhe asseguram lugar cimeiro no cnone literrio nacional.

    O apreo votado pelos leitores ao soneto no tem deixado de desconcertar a crtica que muitas vezes no v nele mais do que a poetizao narrativizada de um inslito episdio vetotestamentrio, no qual relatado um caso de troca de noivas envolvendo um amante devotado, um pai pouco escrupuloso no cumprimento das suas promessas e duas irms em constante rivalidade, tudo isto justificado pelos costumes da poca e pela vontade de Deus4. Sintomtico que o prprio Faria e Sousa, amante insuspeito de tudo quanto Cames escreveu ou poderia ter escrito, avalie o soneto dizendo yo le tengo por de los medianos suyos; porque en los primeros doze versos no ay cosa considerable ms de la limpieza en la relacion

    1 Todas as citaes da lrica de Cames sero feitas a partir da seguinte edio:

    CAMES, Lus de. Rimas Texto estabelecido, revisto e prefaciado por lvaro J. da Costa Pimpo. Apresentao de Anbal Pinto de Castro. Coimbra: Almedina, 1994.

    2 FARIA E SOUSA, Manuel de. Rimas Vrias de Lus de Cames, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, Primeira Parte, Tomos I e II, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1972. Todas as citaes da obra se reportaro a esta edio.

    3 Manuel de Faria e Sousa, no extenso comentrio que faz a este soneto, escreve: Es el [soneto] que de mi P. consigue ms nombre en Castilla (FARIA E SOUSA, 1972, p. 74).

    4 Veja-se: BBLIA SAGRADA, Gnesis, captulos 29-31.

    1.

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    desnuda del caso (FARIA E SOUSA, 1972, p. 74). E no entanto, o poema tem o condo de provocar uma guinada esttica em quem o l, talvez porque nele Cames recrie o sentido do texto bblico, expurgando-o de todos os pormenores prosaicos e fazendo sobressair o comportamento de constncia amorosa exemplar evidenciado por Jacob. Ora, so precisamente os dois versos que fecham o poema e que tommos de emprstimo para ttulo destas reflexes que exprimem essa tenacidade e imutabilidade do sentimento de Jacob por Raquel, a serrana bela que objecto da sua paixo.

    2. Esta VII Reunio Internacional de Camonistas, em que participam tantos e to ilustres amantes e conhecedores da obra de Cames, seguramente uma prova de que as contingncias inerentes curta vida humana no tm sido obstculo para que se manifeste o longo amor que a obra de Cames despertou praticamente desde o seu surgimento. De facto, Cames o autor que maior consenso rene enquanto smbolo da cultura de expresso portuguesa, j que a sua figura e a sua obra ultrapassam quer as fronteiras geogrficas da nao que o viu nascer, estendendo-se a outros paralelos onde se fala o Portugus, quer os limites da esfera do literrio, sendo-lhe associado um papel simblico de representante da Nao.

    No sejamos, porm, ingnuos a ponto de pensar que o amor devotado obra deste poeta, que projetou a lngua portuguesa no mundo e que oficialmente venerado como imagem isomrfica de Portugal e das Comunidades Portuguesas, tem sido objeto de um servio to persistente e to consistente quanto o que Jacob ofereceu a Labo em troca do prmio [que] pretendia.

    Se focarmos a ateno na instituio escolar, por exemplo, e fizermos incidir a nossa observao sobre o ensino bsico, isto , sobre aquele que, por ser obrigatrio e

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    teoricamente servir todos os jovens cidados do pas, deveria promover a dignitas da pessoa humana, desempenhando um papel efetivo na reduo das desigualdades e na construo da verdadeira democracia - e note-se que, fazendo eco de diversos estudos sociolgicos e com base em relatrios da OCDE, Boaventura Sousa Santos afirmava, h uma dcada atrs, que a massificao da educao no alterava significativamente os padres da desigualdade social (SANTOS, 1994, p. 184)5 poderemos ser levados a pensar que o servio prestado a Cames e ao conhecimento e estudo da sua obra nem sempre o espelho da constncia amorosa.

    Lusa Costa Gomes, num conto intitulado Que, escrito para anteceder o Canto VIII de Os Lusadas, em edio do jornal Expresso vinda a pblico em 2003, oferece um retrato do contexto escolar que poderia ser lido em registo irnico se no se impusesse a suspeita de se estar perante um exerccio de mimese com pretenses realistas. Escreve a ficcionista:

    Proposio. As armas e os bares assinalados, etc. Invocao. E vs, Tgides minhas, etc. Dedicatria e Narrao. Epopeia narrativa em verso, etc. Lus de Cames (1524?-1580). Morre a 1 de Junho de 1580, pobre e esquisito de todo. Sendo o seu enterro feito a expensas de uma instituio de beneficncia, a Companhia dos Cortesos. Salvou a sua obra com o brao no ar. Dez cantos, verso decasslabo, clssico ou herico, em estrofostncias, oito versos cada. O heri dOs Lusadas o povo portugus. Ocidental praia lusitana, sindoque. Baco, contra. Vnus, Jpiter e Marte, a favor. A nossa epopeia superior porque a Europa domina o mundo. O Renascimento nada do que humano me estranho. Isto sabia o Carlos com segurana. O resto logo se via, era questo de ir deitando o olho direita e esquerda, qui mais alm

    5 SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mo de Alice. O social e o poltico na Ps-

    Modernidade. Porto: Afrontamento, 1994.

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    ainda, e inventar medida (GOMES in CAMES, 2003)6.

    Com efeito, a escola, a coberto de uma pretensa preocupao com o respeito por estdios de imaturidade intelectual e cultural dos alunos, assume por vezes prticas bastante irrelevantes pautadas por um baixo grau de exigncia e de rigor. E no entanto, todos ns (e portanto a escola tambm) temos o dever de, como escreveu Rob Riemen em introduo Dcima Palestra do Nexus Institute, proferida por George Steiner e publicada com o ttulo de A ideia de Europa7, preservar a herana cultural e transmiti-la por todos os canais que tenhamos nossa disposio (STEINER, 2005, p. 14), pois a herana cultural, as importantes obras de poetas e pensadores, artistas e profetas, que uma pessoa tem de usar para a cultura animi (a expresso de Ccero), o cultivo da alma e do esprito humanos para que a pessoa possa ser mais do que aquilo que tambm : um animal (Idem, ibidem, p.15).

    3. Um dos canais consensualmente reconhecidos como forma de preservar e transmitir a herana cultural que os autores cannicos legam posteridade, gerao aps gerao, aquele que aberto pela rede de relaes intertextuais que os textos estabelecem entre si. Os ecos da pervivncia da voz de um escritor na obra de um outro escritor so a melhor prova que se pode obter da vitalidade das suas criaes; so tambm o indcio mais infalvel de que o ciclo vital de um poeta-enquanto-poeta, de que fala Bloom8, mantm intacto o seu dinamismo. 6 GOMES, Lusa Costa. Que. In: CAMES, Lus de. Os Lusadas. Comentrios de

    Jos Hermano Saraiva. Ilustraes de Pedro Proena. Canto VIII. Lisboa: Expresso, 2003.

    7 STEINER, George. A ideia de Europa. Lisboa: Gradiva, 2005. 8 BLOOM, Harold. A angstia da influncia. Uma teoria da poesia. Lisboa: Cotovia,

    1991.

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    Essa ainda, cumulativamente, uma forma de aferir a intensidade do amor e a qualidade do servio que uma determinada comunidade presta obra dos vultos importantes da sua cultura. Retomando Bloom, diramos que os exerccios de projeco, adaptao, deformao e recriao que as obras dos poetas verdadeiramente importantes estimulam (BLOOM, 1991, p. 19), exprimem a medida da sua grandeza, ao mesmo tempo que do forma prpria memria civilizacional que molda a sensibilidade tica e esttica de sucessivas geraes.

    Neste sentido, pode seguramente afirmar-se que a poesia de Cames mantm intacta a sua energia fecundante, tantos so os testemunhos da influncia que continua a exercer sobre mltiplos artistas contemporneos, provenientes das mais diversas reas, e cujas criaes so exemplos do poder modelizante da obra do poeta da lngua portuguesa.

    4. No panorama da literatura portuguesa contempornea, produzida por novos escritores com obra publicada j depois do incio deste sculo XXI, sobressai o caso de um ficcionista cujo amor pela obra de Cames, e nomeadamente pela sua poesia lrica, fica bem patente nas narrativas que escreve, sendo o autor das Rimas claramente assumido como uma referncia literria dominante. Referimo-nos a Frederico Loureno, escritor, como sabido, com obra publicada nos domnios da traduo literria, do ensaio e da narrativa biogrfica e ficcional. No que concerne esta ltima categoria, F.L. publicou uma trilogia romanesca composta por Pode um desejo imenso (2002)9, O curso das estrelas (2002)10 e beira do mundo (2003)11 e, mais

    9 LOURENO, Frederico. Pode um desejo imenso. Lisboa: Cotovia, 2002. 10 IDEM.O curso das estrelas. Lisboa: Cotovia, 2002. 11 IDEM. beira do mundo. Lisboa: Cotovia, 2003.

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    recentemente, um livro de contos a que deu o ttulo de A formosa pintura do mundo (2005)12.

    Os ttulos aqui evocados deixam claramente perceber o relevo dado por F.L. potica e aos poetas quinhentistas, com destaque especial para Cames. J noutro trabalho tivemos ensejo de reflectir sobre a influncia e a importncia da obra e da figura de Lus Vaz no universo ficcional do romancista13. Todavia, foi o conto que encerra a mais recente publicao do autor, e que se intitula O retrato de Cames (FPM, p. 213-226), que mais directamente motivou as reflexes que agora partilhamos.

    Este conto, semelhana de todos os outros que integram o volume, explora a temtica das implicaes inter-artes, mais concretamente das relaes entre pintura e escrita, essas duas formas de mimese por excelncia que, pelo menos desde a Arte Potica de Horcio, andam intimamente associadas. No caso concreto de O retrato de Cames, a narrativa tem incio com um episdio de troca de identidades que leva o narrador autodiegtico a relatar uma experincia de transcorporalizao atravs da qual assume a personalidade de um pintor encarregue de fazer o retrato de Cames14.

    Tal circunstncia apresentada como justificativa do fato de apesar de no final dOs Lusadas Cames ter oferecido os seus

    12 IDEM. A formosa pintura do mundo. Lisboa: Cotovia, 2005. No corpo do nosso

    texto, o ttulo da obra ser abreviado como FPM. 13 RAMON, Micaela..Cames na fico portuguesa contempornea. Para uma

    abordagem da trilogia ficcional de Frederico Loureno. Santa Barbara Portuguese Studies, volume VII 2003, coordenao de Jos Augusto Cardoso Bernardes, Santa Brbara: University of Califrnia, p. 265-281, 2006.

    14 O meu sonho foi sempre um e o mesmo: transcorporalizar-me para junto de Cames. Ora no outro dia, vinha eu muito emocionado de um almoo no restaurante Bica do Sapato, quando, junto Ermida de Nossa Senhora dos Remdios em Alfama, consegui (FPM, p. 215).

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    servios ao rei como poeta de campanha, no ter sido ele a embarcar rumo a Marrocos a 24 de Junho de 1578, mas outro poeta: Diogo Bernardes (FPM, p. 217). Assim, segundo cogitao do narrador da histria, Cames no acompanhou o rei at Alccer-Quibir por uma razo muito simples: estavam a pintar-lhe o retrato. Ou melhor dizendo: eu [o narrador-pintor] estava a pintar-lhe o retrato (FPM, p. 218). A partir deste ponto, a ao recua at ao dia imediatamente anterior largada dos galees de guerra usados por D. Sebastio na fatal incurso no norte de frica. Nessa tarde de Vero de 23 de Junho de 1578, num palcio com vista para o Tejo, pertena de um conde admirador e generoso mecenas do poeta dOs Lusadas (FPM, p. 219), o narrador-pintor aplica-se no relato da difcil tarefa da feitura do retrato que a expresso inaltervel do modelo, dardejando amargura e ferocidade, torna ainda mais complexa.

    Estas informaes disponibilizadas no incio do conto parecem desempenhar uma funo hermenutica, fornecendo uma espcie de chave interpretativa do texto. F.L. um autor cuja criao literria ficcional se caracteriza por dois traos definitrios constantes: por um lado, o pendor erudito das suas fices; por outro, a aparncia despretensiosamente pouco complexa das mesmas. Assim, se superfcie do texto o leitor se depara com um artifcio narrativo simples por meio do qual lhe vai ser apresentado um retrato algo heterodoxo da figura de Cames (fato para o qual alertado pelo prprio narrador ou ser pelo autor? que o pe de sobreaviso para a impossibilidade de penetrar a expresso do retratado e, consequentemente, dele fornecer uma imagem mimeticamente cabal), tal simplicidade apenas aparente, merc da rede de referncias intertextuais e arquitextuais que o conto estabelece.

    As narrativas de F.L. normalmente no convocam nenhuma instncia de recepo explcita. Contudo, o projeto

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    generativo que lhes subjaz pressupe um certo tipo de leitor-modelo capaz de reconhecer as remisses culturais que os textos convidam a fazer. No caso particular de O retrato de Cames essas remisses reenviam claramente para a prpria poesia lrica do poeta quinhentista.

    No conto, para alm do par protagonista constitudo por Cames e pelo seu retratista, sobressaem duas outras personagens, tambm elas funcionando em par, tanto mais que so gmeas. Falamos dos dois irmos filhos dos donos da casa, que o narrador identifica como sendo D. Anto e D. Ferno, e que se diferenciam apenas pela forma como interpretam o Guardame las Vacas do compositor espanhol Lus de Narvaez15. Isto o que o texto diz explicitamente. Porm, estes gmeos distinguem-se ainda pelo fato de um seguir para frica com o Rei e o outro ficar em terra j que a me, usando de cautela, s consentiu em que um deles fosse se o outro ficasse (FPM, p.220).

    A ocorrncia destas duas personagens, idnticas mas ao mesmo tempo dissemelhantes, institui no texto uma dualidade que projeta um feixe de sentidos muito prprio do discurso potico camoniano: trata-se da oposio de raiz platnica entre vida ativa e vida contemplativa. Assim um dos gmeos representa simbolicamente a vida ativa, marcada pela necessidade de fazer face s solicitaes prosaicas do quotidiano; o outro o cone da vida contemplativa, dedicada s artes e ao cultivo dos valores estticos.

    Segundo os princpios da teoria platnica, a vida ativa constitui um estdio, sujeito s contingncias existenciais, do qual o homem busca libertar-se a fim de ascender ao patamar superior onde lhe permitida a contemplao e o entendimento 15 Pelos acordes de vilhuela, glosando vagamente O guardame las Vacas, j sei qual

    dos gmeos . D. Ferno s sabe tocar Las Vacas no tom de f, ao passo que D. Anto s sabe as Vacas em sol (FPM, p. 220).

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    das coisas espirituais. Para alcanar tal ascenso, torna-se necessrio cumprir todo um programa de purificao expiatria, frequentemente metaforizado por meio do tema da viagem. assim que tambm neste conto esse tema aflorado, j que, no meio de despedidas assaz lacrimosas, o futuro glorioso heri de frica, D. Anto (FPM, p. 224), parte na expedio organizada por El-Rei. Atravs dela espera certamente superar os seus limites para desse modo se fazer merecedor de prmio.

    Pelo contrrio, a D. Ferno, o gmeo que simboliza a vida contemplativa, no lhe esto reservadas grandes faanhas de guerra, mas cabe-lhe emitir opinio sobre o retrato de Lus Vaz elaborado pelo narrador-pintor. Cames surge na tela com cabelos: pouco abundantes, ruos e grisalhos. O olho que lhe resta claro, azulado. No um homem belo, de forma alguma. Mas mesmo assim granjeou a estima dos gmeos: aos olhos deles, ele Aquiles, Ulisses, Viriato (FP, p.223).

    A natureza dos sentimentos que ligam estas trs personagens, isto , a essncia dos vnculos emocionais que se estabelecem entre o par de gmeos e a figura de Cames permanece, ao longo do conto, propositadamente ambgua. Em mais de uma ocasio, o narrador sugere uma ligao de carter amoroso entre eles. Tal sugesto resulta quer da existncia de uma pretensa cumplicidade entre o retratado e o pintor16; quer da provocao lanada por um criado-modelo que informa o narrador de que Lus Vaz tambm beijou o senhor D. Anto (FPM, p. 226); quer ainda da leitura da cena final em que o narrador diz ver o vulto () de Lus Vaz, inclinado sobre D.

    16 Ouvem-se vozes na sala. Suspendem-se os sons de Las Vacas no tom de f. A

    expresso no olho de Lus Vaz transmuda-se. Olha para mim e sorri. Imperceptivelmente, mas sorri. A ponto de se lhe verem os dentes, todos podres. Meu bom Simo diz-me concedei-me agora um breve espao de retemperana mais no preciso de dizer-vos, pois j tudo vos confidenciei (FPM, p. 221-222).

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    Ferno, que est sentado num banco de pedra, a dedilhar o instrumento (FPM, ibidem), para concluir, enfim, que afinal no poder ser D. Ferno quem acompanha Cames, mas antes D. Anto, dado que as glosas [de Las Vacas] esto a ser tocadas no tom de sol (FPM, ibidem).

    Embora nada no conto permita concretizar a insinuao que tem vindo a ser referida, ela abre no entanto possibilidades interpretativas que convocam nexos intertextuais com o soneto camoniano a que fazemos aluso no ttulo e no incio desta comunicao.

    Como em Sete anos de pastor Jacob servia, tambm nesta histria h um trio de personagens centrais ligadas entre si por relaes de tipo afetivo; nela comparecem igualmente dois irmos que representam, de forma simblica, a vida ativa (D. Anto/Lia) e a vida contemplativa (D. Ferno/Raquel); estes dois irmos so protagonistas de uma troca de identidades/papis; e, para finalizar, nem mesmo falta a confluncia de referncias atividade de pastorcia de gado, literal no caso do Jacob do soneto camoniano, metafrica no que concerne o conto de F.L., j que atravs da arte, mais concretamente da msica, que essas referncias so convocadas.

    Contudo, enquanto no soneto camoniano a troca dos objetos de desejo se d por interferncia alheia, obrigando o sujeito da paixo a repetir um ciclo de servio purificador que lhe permita alcanar o prmio que pretende, ou seja, Raquel, smbolo ideal das formas belas, nesta fico de F.L. a permuta ocorre aparentemente por consenso entre aqueles que a protagonizam. Desta forma, no h uma verdadeira substituio de um objeto de desejo que exclua o outro, mas antes uma confluncia num mesmo sujeito dos dois tipos de benesses a que o homem pode aspirar: as propiciadas pela vida ativa e aquelas que a vida contemplativa prodigaliza.

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    Assim se procede, neste texto, a uma reinterpretao do modelo platnico que sofre uma espcie de aggiornamento: no se trata j de representar alegoricamente o percurso de expiao e purificao que conduz da imanncia essncia; trata-se de reequacionar este trajeto adaptando-o imperfeio da dimenso humana. Por isso o leitor advertido no incio do conto para o carter eminentemente subjetivo daquilo que lhe vai ser narrado; por esse motivo tambm a fico termina com a confisso do narrador-pintor que afirma experimentar um misto de pena e alvio (FPM, p. 226) ao transcorporalizar-se de novo para o sculo XXI.

    5. No podemos terminar sem observar que estas narrativas com fundo histrico-literrio que F.L. constri, e nas quais a figura e a obra de Cames ocupam lugar cimeiro, se nos afiguram como autnticos exerccios de transcorporalizao. Por seu intermdio, a poesia camoniana assume formas contemporneas de existir, de se fazer ouvir e amar. Estas fices propem abordagens no-convencionais da lrica de Cames que, a nosso ver, podem ampliar os meios de acesso obra do grande poeta portugus do amor, mostrando a novas geraes de leitores novos perfis do rosto de Cames.

    Referncias Bibliogrficas

    BLOOM, Harold A angstia da influncia. Uma teoria da poesia. Lisboa: Cotovia, 1991.

    CAMES, Lus de. Rimas. Texto estabelecido, revisto e prefaciado por lvaro J. da Costa Pimpo. Apresentao de Anbal Pinto de Castro. Coimbra: Almedina, 1994.

    FARIA E SOUSA, Manuel de. Rimas Vrias de Lus de Cames, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, Primeira Parte, Tomos I e II, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1972.

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    GOMES, Lusa Costa. Que. In: CAMES, Lus de. Os Lusadas Comentrios de Jos Hermano Saraiva. Ilustraes de Pedro Proena. Canto VIII. Lisboa: Expresso, 2003.

    SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mo de Alice. O social e o poltico na Ps-Modernidade, Porto: Afrontamento, 1994.

    STEINER, George. A ideia de Europa, Lisboa: Gradiva, 2005.

    LOURENO, Frederico. Pode um desejo imenso. Lisboa: Cotovia, 2002.

    ____. O curso das estrelas. Lisboa: Cotovia, 2002.

    ____. beira do mundo. Lisboa: Cotovia, 2003.

    ____. A Formosa Pintura do Mundo. Lisboa: Cotovia, 2005.

    RAMON, Micaela. Cames na fico portuguesa contempornea. Para uma abordagem da trilogia ficcional de Frederico Loureno. Santa Barbara Portuguese Studies, volume VII 2003, coordenao de Jos Augusto Cardoso Bernardes, Santa Brbara: University of Califrnia, p. 265-281, 2006.

    ABSTRACT: The sonnet Sete anos de pastor Jacob servia enjoys a privileged status in the overall work of Cames, which is clearly acknowledged by the appreciation expressed by generations of readers. One of the best indicators of such is precisely the experienced (pervivncia) echoes of the poets writings in subsequent artistic production. In this sense, Camonian poetry preserves its fertilizing power, many are the testimonies of its influence on contemporary writers. In the current Portuguese prose fiction, stands the example of Frederico Loureno, whose works show strong intertextuality with the work of the great poet of the sixteenth century. This paper proceeds with a comparative study of the short story O Retrato de Cames (The Portrait of Cames) by F. Loureno, and the Camonian sonnet mentioned previously, seeking to highlight how the fiction of Loureno may contribute to the emergence of new generations of lovers of Cames.

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    KEY WORDS: Cames; Lyric poetry;fictional prose; Frederico Loureno; intertextuality

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