MANÍACO DA BICICLETA: DA CONSTRUÇÃO DE UM MITO AO DISCURSO SENSACIONALISTA - MARÍLIA CRISPI DE...

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MARÍLIA CRISPI DE MORAES MACIEL MANÍACO DA BICICLETA: DA CONSTRUÇÃO DE UM MITO AO DISCURSO SENSACIONALISTA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Ciên- cias da Linguagem. Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Fábio Messa. PALHOÇA, 2006.

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A construção de mitos noticiosos como estratégia sensacionalizante dos textosjornalísticos é o tema dessa pesquisa. A abordagem parte de teorias da semântica e da pragmáticapara verificar evidências de construção de realidades pela imprensa. A cobertura midiáticado caso policial “Maníaco da Bicicleta” serve de suporte à pesquisa e mostra como aimprensa utiliza a função referencial da linguagem para fins de convencimento em suas campanhas.Amparado no mito da isenção, o jornalismo aposta na credibilidade da opinião públicapara transformar-se em núcleo de poder na sociedade pós-moderna. Para manter viva acredibilidade através da aparente isenção, o jornalismo recorre a uma falsa polifonia quandooferece aos consumidores de notícias opiniões de pessoas diferentes, porém com o mesmoponto de vista. Os discursos das autoridades competentes servem apenas para ratificar visõesestereotipadas repetidas continuamente pela imprensa. Através da aplicação de teorias semânticase pragmáticas aliadas a uma visão multidisciplinar é possível interpretar os textos jornalísticoscom maior clareza para desconstruir os mitos e as realidades inventadas.Palavras-chave: mito, pragmática, semântica, sensacionalismo.

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  • MARLIA CRISPI DE MORAES MACIEL

    MANACO DA BICICLETA:DA CONSTRUO DE UM MITO AO DISCURSO SENSACIONALISTA

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestradoem Cincias da Linguagem como requisitoparcial obteno do grau de Mestre em Cin-cias da Linguagem.

    Universidade do Sul de Santa Catarina.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio Messa.

    PALHOA, 2006.

  • MARLIA MACIEL

    MANACO DA BICICLETA:DA CONSTRUO DE UM MITO AO DISCURSO SENSACIONALISTA

    Esta dissertao foi julgada adequada obteno do grau de Mestre em Cincias

    da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Cincias da Lin-

    guagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.

    Palhoa SC, ____/___/_______.

    ______________________________________________________

    Prof. Dr.

    Universidade de Local

    ______________________________________________________

    Prof. Dr.

    Universidade de Local

    ______________________________________________________

    Prof. Dr.

    Universidade de Local

  • s minhas filhas gatha e Stfanie,Luzes incandescentes nos momentos de escurido.A Sandro, pelas idas e vindas.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Doutor Jos Kormann, pelo exemplo.Ao Professor Doutor Fbio Messa, pela orientao francae pelo jeito bem humorado de encarar a vida.Aos mestres do curso, pela disposio em repartirem co-migo seus conhecimentos.Aos meus pais, pela vida.Aos colegas da Fundao Cultural de So Bento do Sul,pelo apoio incondicional.

  • O progresso obra dos que trabalham e se empenham emconquistar a cada dia uma nova possibilidade, e no da-queles que voluntria ou involuntariamente submergem novazio da decepo, abandonando a luta para entregar-senos braos da inrcia.(Pecotche: 2002, 70)

  • RESUMO

    A construo de mitos noticiosos como estratgia sensacionalizante dos textos

    jornalsticos o tema dessa pesquisa. A abordagem parte de teorias da semntica e da prag-

    mtica para verificar evidncias de construo de realidades pela imprensa. A cobertura midi-

    tica do caso policial Manaco da Bicicleta serve de suporte pesquisa e mostra como a

    imprensa utiliza a funo referencial da linguagem para fins de convencimento em suas cam-

    panhas. Amparado no mito da iseno, o jornalismo aposta na credibilidade da opinio pbli-

    ca para transformar-se em ncleo de poder na sociedade ps-moderna. Para manter viva a

    credibilidade atravs da aparente iseno, o jornalismo recorre a uma falsa polifonia quando

    oferece aos consumidores de notcias opinies de pessoas diferentes, porm com o mesmo

    ponto de vista. Os discursos das autoridades competentes servem apenas para ratificar vises

    estereotipadas repetidas continuamente pela imprensa. Atravs da aplicao de teorias semn-

    ticas e pragmticas aliadas a uma viso multidisciplinar possvel interpretar os textos jorna-

    lsticos com maior clareza para desconstruir os mitos e as realidades inventadas.

    Palavras-chave: mito, pragmtica, semntica, sensacionalismo.

  • ABSTRACT

    The construction of the myths how sensationalist strategy of the journalistic texts

    is a theme of this research. The study starts of semantics and pragmatics theories to verify

    evidences of the constructions of the reality by press. The mediatic coverage of the case Ma-

    niac of the Bike is the base of this research and it shows what the media use the referential

    function of language to convince about their campaigns. The journalism, supported by ex-

    emption myth, bet in the credulity of the public opinion to be transform in the center of the

    power in the post-modern society. To maintain alive the credulity by the apparent exemption,

    the journalism run over to false polyphony when offer to consumers of the news opinions of

    different people, but with the same point of view. The discourses of capable authorities only

    serve to confirm stereotypes repeated continually by the press. Through the application of

    semantic and pragmatic theories added the multidisciplined vision its possible to interpret the

    journalist texts more clearly to deconstruct the myths and untrue realities.

    Keywords: myth, pragmatic, semantic, sensationalism.

  • LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 PRIMEIRO RETRATO FALADO DO MANACO DA BICICLETA.................................41FIGURA 2 CAPA A NOTCIA ON-LINE 4/11/00.....................................................................................58FIGURA 3 CAPA A NOTCIA ON-LINE 7/11/00.....................................................................................92FIGURA 4 AN CIDADE ON-LINE 27/10/00............................................................................................164FIGURA 5 CAPA A NOTCIA ON-LINE 17/04-02.................................................................................177FIGURA 6 CAPA A NOTCIA ON-LINE 18/04/02.................................................................................195FIGURA 7 CAPA A NOTCIA ON-LINE 19/04/02.................................................................................223

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................................................101. JORNAL: ESPAO PRIVILEGIADO REPRODUO DE MITOS..................................................15

    1.1 NASCE O MANACO DA BICICLETA....................................................................................................301.2 INFLUNCIA DA PS-MODERNIDADE NO DISCURSO JORNALSTICO.......................................36

    2. SOB O OLHAR PANPTICO DA MDIA...................................................................................................612.1 MANIQUESMO PRESERVADO..............................................................................................................692.2 PODER EMBASADO EM TEORIAS.....................................................................................................................722.3 A ESCOLHA DAS FONTES.............................................................................................................................. 842.4 O FALSO RETRATO....................................................................................................................................... 902.5 COERNCIA EM CIMA DO MURO ................................................................................................................... 99

    3. ESTRATGIAS SEMNTICAS E PRAGMTICAS NO JORNALISMO.............................................1063.1 DA PRAGMTICA TICA ................................................................................................................. 1143.2 O DIFCIL CAMINHO DA TICA ................................................................................................................ 1191.3 - EM BUSCA DE EVOLUO ........................................................................................................................ 1243.4 O RETRATO ERA FALSO, O QUE FAZER? ..................................................................................................... 1263.5 ESVAZIAMENTO ESTRATGICO ............................................................................................................... 151

    4. O PODER VITIMIZADOR DA IMPRENSA..............................................................................................1544.1 O SENSACIONALISMO DA IMPRENSA SRIA............................................................................................. 1584.2 A VIOLNCIA COMO PRODUTO................................................................................................................... 1754.3 POSSVEL ESCAPAR AO SENSACIONALISMO?........................................................................................... 186

    5. A POLIFONIA JORNALSTICA A SERVIO DOS ESTERETIPOS................................................1895.1 FRMULA FIXA: UM RECURSO CMODO .................................................................................................... 1945.2 INIMPUTABILIDADE ARGUMENTO RARO NA PSIQUIATRIA........................................................................ 2035.3 NOVAS DENNCIAS: MARLON TAMBM ROUBOU...................................................................................... 222

    CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................................................232REFERNCIAS..................................................................................................................................................238ANEXO 1 VIOLNCIA URBANA DISCUTIDA EM JOINVILLE..........................................................241ANEXO 2 ENTIDADES DE JOINVILLE COBRAM SEGURANA.......................................................244ANEXO 3 JOINVILLE REIVINDICA MELHORIAS NA SEGURANA...............................................246ANEXO 4 CAPTURA DE TARADO FICA SEM REFORO....................................................................249ANEXO 5 JOINVILLE COBRA MAIS AES PARA A SEGURANA........................250ANEXO 6 VTIMA DE RETRATO FALADO AGUARDA SOLUO DO GOVERNO......................253ANEXO 7 INTERNET LEVANTA NOVO BOATO SOBRE ESTUPRADOR.........................................255ANEXO 8 OPERAO NORTE SEGURO TEM BALANO POSITIVO..............................................259ANEXO 9 OPERAO NORTE SEGURO MANTIDA E AMPLIADA...............................................263ANEXO 10 - MANACO VAI RESPONDER POR OUTRO ESTUPRO....................................................267ANEXO 11 ESTRUPADORES CULPAM FORA DO MAL...................................................................269ANEXO 12 MANACO PEGA 17 ANOS DE CADEIA..............................................................................272ANEXO 13 - JUSTIA ORDENA INDENIZAO.....................................................................................274

  • 10

    INTRODUO

    Estudar os trs momentos distintos que compuseram a cobertura de um caso poli-

    cial denominado de O Manaco da Bicicleta e, a partir de tal fragmentao, determinar as

    estratgias discursivas utilizadas para mitificar a realidade, atravs da funo referencial da

    linguagem jornalstica, foi a fonte motivadora para esta pesquisa.

    Algumas hipteses nortearam o trabalho: a imprensa, mesmo a que se intitula s-

    ria e comprometida com a tica, tambm utiliza estratgias sensacionalistas para ampliar o

    interesse do pblico por suas matrias. A fim de alimentar o interesse pelos acontecimentos

    que produz, o jornalismo utiliza-se de meios para construir realidades, atravs de esteretipos

    e simulacros. De engrenagem que sustentava as relaes de poder pela disseminao peridica

    e organizada de um saber, a imprensa transformou-se em ncleo de fora na rede do poder e,

    para tanto, assume um papel de vigilante onipresente e onisciente capaz de supliciar os acusa-

    dos antes mesmo de suas condenaes o que, por vezes, como no caso do Manaco da Bici-

    cleta, incorre em atentados tica e efeitos negativos vida de inocentes. O jornalismo, espa-

    o polifnico por natureza, utiliza-se em suas campanhas persuasivas de uma falsa multi-

    plicidade de vozes, atravs do privilgio s fontes oficiais, ou discurso de autoridade com-

    petente que s faz ratificar opinies pr-estabelecidas e estereotipadas. A cobertura miditica

    intensifica-se no perodo de construo de mitos de bandidos, mas decai no momento da puni-

    o dos mesmos.

  • 11

    Para abordar a validade de tais hipteses, a pesquisa valeu-se de conhecimentos

    multidisciplinares, que possibilitaram a contextualizao das informaes prestadas nos textos

    jornalsticos, sobretudo de embasamento semntico-pragmtico a fim de identificar atravs

    de marcas lingsticas aspectos como intencionalidade, sensacionalizao, mitificao e

    outros que contribuem para a construo de realidades pelo jornalismo.

    O corpus da pesquisa compe-se dos textos jornalsticos publicados pelo jornal A

    Notcia durante toda a cobertura do caso Manaco da Bicicleta, bem como matrias jornalsti-

    cas sobre o tema segurana pblica, co-relacionadas ao caso central. A princpio, havia tam-

    bm a inteno de se tomar depoimentos de reprteres e editores envolvidos na cobertura,

    porm, no decorrer do trabalho, optou-se por privilegiar o discurso das matrias jornalsticas

    j publicadas como objeto de anlise, visto que, sobre esta concepo da poca da cobertura,

    a mesma que chegou ao grande pblico, que a pesquisa pretende debater.

    Muito mais que apontar falhas e formular crticas o que esta pesquisa enseja

    provocar reflexes acerca do fazer jornalstico enquanto funo social de bem informar, tarefa

    das mais difceis posto que o jornalismo tornou-se um negcio e, como tal, demanda interes-

    ses econmicos. Alm disso, h um modus operandi enraizado que privilegia frmulas sensa-

    cionalistas e espetacularizantes.

    A escolha pelo caso Manaco da Bicicleta no se deu ao acaso. Trata-se de um

    episdio do jornalismo catarinense em que a sensacionalizao e mitificao, alm da confi-

    ana excessiva na fonte oficial, trouxeram conseqncias danosas, atravs da divulgao de

    um falso retrato falado de um estuprador que, na verdade, tratava-se da fotografia de um ino-

    cente. As implicaes ticas do caso serviram de motivao para provocar uma reflexo mais

    ampla, atravs da abordagem multidisciplinar, das caractersticas do fazer jornalstico.

    O texto que vir a seguir no se presta a uma leitura esparsa, pois obedece linea-

    ridade da cobertura jornalstica realizada entre setembro de 2000 e junho de 2002 e, por isso,

  • 12

    cada captulo mescla o embasamento terico a sua aplicao prtica na interpretao dos tex-

    tos jornalsticos coletados. No primeiro captulo, para que o leitor possa contextualizar seu

    entendimento, h um resumo do caso, desde o surgimento do Manaco da Bicicleta, passando

    pela acusao errnea de um inocente e terminando com a priso do verdadeiro culpado. A

    construo do mito do Manaco da Bicicleta pela mdia e as conexes deste processo com o

    texto ficcional so temas abordados no captulo inicial. Como os textos so sempre reflexos

    de determinada ideologia, o captulo 1 tambm relaciona o fazer jornalstico atual ao contexto

    da ps-modernidade.

    O captulo dois discute as implicaes das relaes de poder na produo jorna-

    lstica. A quem interessa mitificar? um dos questionamentos que a pesquisa busca respon-

    der. Sob o escudo da iseno e da credibilidade popular, rgos de imprensa passam a

    funcionar como ncleos de poder. Com isso, os veculos de comunicao assumem posio

    equivalente a de outros ncleos de poder (econmico, poltico) e ficam em condies de dis-

    putar em p de igualdade a satisfao de interesses prprios. Para tanto, a imprensa investe-se

    de poder vigilante, no de corpos, mas de imagens. O sustentculo deste poder est na credi-

    bilidade da opinio pblica a quem, por enquanto, ainda interessa outorgar ao jornalismo tal

    funo de guardio da moral. Assim, o jornalismo produz suas prprias verdades ainda que,

    para isso, necessite inventar acontecimentos e fatos ou mitificar personagens. Nestas relaes

    de poder, privilegia-se a voz da autoridade competente, o discurso oficial em detrimento da

    checagem de outras verses. Tal atitude acaba por pr-julgar pessoas obrigado-as a uma con-

    denao pblica ainda que inocentes.

    nesta abordagem do poder que a pesquisa busca os ensinamentos de Michel

    Foucault, pois o jornalismo, alm de contribuir para a manuteno de estados de poder, tam-

    bm se constitui em um ncleo de poder. As estratgias discursivas utilizadas para manter

    essa relao de poder da imprensa so alvo de reflexes no segundo captulo.

  • 13

    A importncia dos aspectos semnticos e pragmticos para uma compreenso glo-

    bal dos textos jornalsticos o cerne do captulo 3, afinal, como ocorre com qualquer enunci-

    ado, o texto jornalstico concebido para executar uma ao social, logo, repleto de inten-

    es. Neste ponto da pesquisa impossvel dissociar o fazer jornalstico da tica que se requer

    da profisso. tambm o momento de verificar, atravs dos textos noticiosos coletados, a

    rpida mudana estratgica do jornal A Notcia no sentido de imputar s fontes oficiais toda a

    responsabilidade pela divulgao de uma informao errada, o falso retrato falado. Da mesma

    forma, opera-se uma readequao do mito Manaco da Bicicleta com o surgimento de um

    elemento novo e no previsto na trama: o inocente Alosio Plocharski, cuja fotografia espa-

    lhou-se por Joinville como se fosse o retrato falado do estuprador.

    Depois do episdio do falso retrato falado, o Manaco da Bicicleta deixa de ser o

    assunto em voga nas pginas de A Notcia para somente reaparecer em 2002, quando Marlon

    Cristiano Duarte, o verdadeiro autor dos estupros preso. O quarto captulo trata desse mo-

    mento e das estratgias de sensacionalizao adotadas pela imprensa que se intitula sria. O

    mesmo veculo, que condena o sensacionalismo, utiliza frmulas espetacularizantes para

    atrair a ateno do leitor para determinado assunto. O captulo 4 tambm discute a violncia

    enquanto produto dos meios de comunicao de massa, alm de tratar dos processos de viti-

    mizao impostos pela imprensa.

    O quinto captulo traz baila o apego da imprensa aos esteretipos, mais especifi-

    camente a recorrncia, nas matrias jornalsticas, ao discurso justificador, no caso em tela o

    discurso psiquitrico acerca de traumas de infncia que justifiquem crimes de violncia sexu-

    al. Tal recurso j foi de tal sorte disseminado pela imprensa e pelas obras de fico, em espe-

    cial pelo cinema, que os prprios criminosos logram possvel valer-se da alegao de insani-

    dade para escapar priso comum. Como se ver no captulo cinco, trata-se de uma viso

  • 14

    estereotipada, uma vez que a Psiquiatria estabelece como muito raros os casos em que se pode

    aplicar a inimputabilidade para autores de crimes sexuais.

    De ru confesso, o Manaco da Bicicleta passou vtima durante a cobertura jor-

    nalstica de sua priso. Como demonstraro as notcias selecionadas no captulo cinco, o dis-

    curso de arrependimento e alegao de insanidade de Marlon Cristiano Duarte ratificado

    pelo jornal atravs da escolha de uma viso estereotipada e unilateral de fontes que fortalecem

    a argumentao do estuprador.

    A pesquisa, portanto, trata da cobertura miditica do caso Manaco da Bicicleta

    em trs momentos: a construo do mito, a transformao de um inocente em culpado pela

    divulgao de um falso retrato falado e a priso do verdadeiro estuprador, com evidente esva-

    ziamento de interesse miditico para a punio do culpado.

    Repensar o fazer jornalstico o desafio que este estudo pretende propor. Em

    tempos de informao cada vez mais rpida e multifacetada insistir em estratgias de espeta-

    cularizao do real pode trazer como conseqncia a corroso da credibilidade nos meios no-

    ticiosos, mesmo naqueles declaradamente anti-sensacionalistas. Simulacros e realidades

    construdas em nada contribuiro para a anlise racional dos problemas que envolvem os ci-

    dados. Se o compromisso primeiro do jornalismo com o direito informao, faz-se neces-

    srio reavaliar as estratgias mitificadoras. Se o comprometimento primordial do jornalismo

    passou a ser com o capital, ento fique tudo como est e aguarde-se que os prprios consumi-

    dores de notcias esvaziem o poder da imprensa atravs do descrdito em suas palavras e ima-

    gens de realidades construdas.

  • 15

    1. JORNAL: ESPAO PRIVILEGIADO REPRODUO DE MITOS

    A imprensa encarrega-se todos os diasde mostrar que a reserva de significantes mticos

    inesgotvel(Barthes: 1993, 148)

    Pergunte s pessoas que motivos as levam a ler jornais e logo surgem respostas

    como: para obter informao ou para saber a realidade ou para se atualizar. O jornalismo re-

    trata e refrata a realidade, talvez mais a segunda que a primeira ao. Apropria-se de fatos

    para alimentar os mitos dirios que cria. Constri realidades. Mas, se assim, por que razes

    os consumidores1 de notcias continuam a ler jornais no papel ou na web, continuam a assistir

    os noticiosos da TV e a ouvir os programas jornalsticos de rdio com a voracidade de quem

    necessita desses produtos? Os menos afeitos a uma reflexo podero optar pela ingnua cre-

    dulidade dos consumidores de notcias ou pela natural curiosidade humana, mas a motivao

    parece estar mais relacionada a uma ferramenta que o homem inventou h milhares de anos: a

    criao de mitos para explicar a sua realidade.

    O desenvolvimento das tecnologias de informao possibilitou campo frtil para a

    disseminao mais veloz de mitos. Em seu Mitologias (1993), Roland Barthes evidenciou

    essa presena mitificadora na sociedade ocidental. no jornalismo, entretanto, que o mito

    encontra condies ainda mais propcias para sua expanso. Com carter axiomtico, a not-

    1 As pessoas pagam para obter informaes, seja atravs de jornais impressos, TVs, rdio, etc. Da a opo pelaexpresso consumidores de notcias.

  • 16

    cia, a reportagem, os editorais impem informaes como se estas fossem verdades incontes-

    tveis, ao menos naquele momento. Segundo Lage (2001: p.6), a notcia dispensa argumen-

    taes e usualmente as provas; quando as apresenta ainda em forma de outros enunciados

    axiomticos. No raciocina; mostra, impe como dado e assim furta-se anlise crtica. A

    notcia assume o papel de afirmao ou, como constata Maingueneau: 2002, p.40, enquanto

    no discurso publicitrio, o receptor sabe de antemo que existe uma segunda inteno, o dis-

    curso jornalstico legitimado e o leitor o compra porque quer informar-se. Assim tambm o

    mito apresenta dupla funo: designa e notifica, faz compreender e impe. (Barthes:1993,

    p.139)

    Estudos sobre comunicao de massa, sobre semntica e pragmtica, j deixaram

    evidentes a impossibilidade da neutralidade total seja no jornalismo, seja em qualquer outro

    tipo de discurso. Vejam-se como exemplos trabalhos de Koch (2000), Alsina (1986), entre

    tantos outros. Tal concluso propositadamente no assimilada pelos veculos de comunica-

    o que continuam a ostentar a bandeira da iseno jornalstica como estratgia de marke-

    ting diante de seus consumidores. A capacidade de expressar a veracidade dos fatos at

    utilizada como divisor de guas entre o jornalismo srio e o dito sensacionalista, como adiante

    se verificar.

    Se o encantamento atual do mito noticioso no pode ser atribudo exclusivamente

    ingenuidade do pblico consumidor, por que consegue propagar-se? Algumas hipteses

    podem ser consideradas: a inteno do prprio consumidor de tentar explicar sua confusa rea-

    lidade; falta de opes j que os mitos esto por toda parte; imposio da imprensa. Mas, e

    quando a mitificao deixa de apenas deformar a realidade para contrariar o fato real? Que

    conseqncias um flagrante erro de informao pode trazer ao esquema mitificador da im-

    prensa? So questes para as quais o estudo de caso Manaco da Bicicleta poder apontar

    respostas ou, pelo menos, provocar novas reflexes.

  • 17

    Entre agosto e outubro de 2000, uma srie de estupros ocorreu em Joinville, maior

    cidade de Santa Catarina. Os crimes foram atribudos, pela imprensa e pelas autoridades poli-

    ciais, ao Manaco da Bicicleta, porque o criminoso costumava ser visto em uma bicicleta

    azul.

    Em 5 de novembro de 2000, o programa Fantstico, da Rede Globo, exibiu um

    retrato falado do suposto estuprador que, segundo a Delegacia de Investigaes Criminais

    (DEIC), fora elaborado com base no depoimento das vtimas e melhorado com o uso de com-

    putador. No dia seguinte, pressionada pela imprensa estadual, a Secretaria de Estado da Justi-

    a e Cidadania divulgou o retrato aos veculos de comunicao de Santa Catarina, alm de

    espalhar o rosto do manaco pela cidade, atravs de cartazes. Na verdade, o retrato falado

    tratava-se da reproduo de uma fotografia de Alosio Plocharski. A polcia sabia que havia

    cometido um erro, pois poucos minutos aps a apario de Plocharski no Fantstico enviou

    policiais casa do rapaz e nada encontraram que o incriminasse. Mesmo assim, o retrato foi

    entregue ao restante da mdia na segunda-feira. Dias antes, Plocharski fora detido como sus-

    peito, mas nenhuma vtima o reconhecera.

    Apavorada com a repercusso do falso retrato falado, a famlia Plocharski procu-

    rou a imprensa para dizer que a polcia havia usado indevidamente uma foto de Alosio. No

    dia 8 de novembro, o jornal A Notcia explica o engano policial. A Rede Globo limita-se a

    uma nota curta, corrigindo a informao do Fantstico. J era tarde. O pai de uma das vtimas

    chegou a ir at a casa dos Plocharski disposto a matar Alosio. Nas ruas, as pessoas continua-

    vam achando que o rapaz era mesmo o Manaco da Bicicleta, apesar do desmentido da im-

    prensa. Alosio perdeu o emprego na malharia onde trabalhava, o pai entrou em depresso e

    tornou-se alcolatra e o av morreu vtima de um infarto.

    Dois anos mais tarde, o estuprador da bicicleta azul voltou a atacar, e a polcia

    prendeu Marlon Cristiano Duarte, que confessou o estupro de cinco mulheres. Eis o resumo

  • 18

    do caso que servir de ferramenta a este estudo. Teorias semnticas sero teis, adiante, para

    identificar as diferentes estratgias adotadas pela imprensa nos diversos estgios evolutivos do

    caso, a comear pela construo do mito do Manaco da Bicicleta, seguida pela descoberta do

    erro de informao e pela priso do verdadeiro autor dos estupros. Que caminhos a construo

    mitolgica do caso Manaco da Bicicleta percorreu nessas diversas instncias o que busca-

    remos definir.

    Para Barthes (1994: p. 147), a significao mtica no nunca completamente

    arbitrria, sempre em parte motivada, contm fatalmente uma parte de analogia. Tal cons-

    tatao perfeitamente perceptvel nos textos noticiosos. O jornal no inventa seus persona-

    gens, mas transforma-os em mitos. No caso do Manaco da Bicicleta, uma srie de estupros

    realmente ocorreu em Joinville no segundo semestre do ano 2000, mas coube imprensa miti-

    ficar os fatos. Uma das primeiras providncias tomadas no processo de mitificao foi deno-

    minar o personagem central que ganhou a alcunha de Manaco da Bicicleta.

    As primeiras notcias sobre o estuprador encarregaram-se de descrever o agressor

    de tal forma a constituir no imaginrio dos leitores um perfil do protagonista: sujeito asseado,

    mos macias, fala mansa, guarda-p de operrio, dono de uma bicicleta azul, com preferncia

    por mulheres de classe mdia-alta. Tal estratgia assemelha-se em muito s tcnicas de estru-

    turao de texto prprias da narrativa ficcional, com a presena de personagens marcantes;

    foco narrativo em terceira pessoa (no jornalismo centrado na figura onipresente e onisciente

    do reprter); enredo que alterna momentos de clmax e declnio, determinados pela freqncia

    de matrias sobre o mesmo tema; espaos e tempo bem determinados: regio central de Join-

    ville, noite.

    O mito precisa de uma fora motivada. A srie de estupros tornou-se o dispositivo

    detonador da construo de um novo mito noticioso: o Manaco da Bicicleta. Imperativo e

    interpelatrio por natureza, o mito tem campo frtil para se desenvolver na linguagem axio-

  • 19

    mtica da notcia. A principal particularidade apontada por Barthes para o mito, o fato de seu

    significante ser formado pelos signos j existentes da lngua, refora-se nos textos noticiosos

    pela frmula mtica incorporada ao cotidiano de que os jornais retratam a realidade. No

    caso particular dos mitos noticiosos, alm de construir-se a partir de uma cadeia semiolgica

    pr-existente, o mito insere-se numa cadeia mitolgica tambm j existente, a que considera o

    jornalismo como cenrio de revelao de fatos verdicos.

    A mitificao do Manaco da Bicicleta ou de qualquer outro personagem noticioso

    que pode nascer tanto na editoria de poltica como na de moda, no espontnea. intencio-

    nalmente construda com o objetivo de atrair a ateno do consumidor de notcias. O prprio

    encadeamento de matrias e sutes sobre o mesmo tema, a personificao dos atores principais

    e a caprichosa denominao de cada caso mtico revelam tal intencionalidade. Para Barthes

    (1992: p.145), o mito uma fala definida pela sua inteno, muito mais que pela sua literali-

    dade. Barthes tambm afirma que o significante do mito apresenta-se de uma maneira amb-

    gua: simultaneamente sentido e forma, pleno de um lado, vazio de outro (Barthes: 1992, p.

    138). justamente este vazio de forma que a construo mtica no jornalismo busca preencher

    e por isso os casos, sejam policiais ou de qualquer outra editoria, passam a ganhar contornos

    que se assemelham ao texto ficcional.

    Ao perceber que um determinado assunto poder desdobrar-se em vrias sutes,

    ou seja, matrias de continuidade sobre o mesmo tema, o editor trata logo de tomar algumas

    providncias que preencham o vazio da forma do mito, prestes a nascer. Um dos primeiros

    passos batizar com um nome atraente o caso ou os principais personagens envolvidos, tal

    como em O Manaco do Parque, O Bandido da Luz Vermelha, O Caso Morel, O Men-

    salo, e assim por diante. O passo seguinte dotar os personagens centrais de caractersticas

    marcantes, por vezes estereotipadas. Neste processo, como se verificar adiante, uma das es-

    tratgias adotadas recorrer aos depoimentos de especialistas que corroborem com a imagem

  • 20

    fabricada para os protagonistas da trama. A freqncia de matrias sobre o mesmo tema e,

    mais que isso, a interseco com assuntos similares tambm artifcio adotado para transfor-

    mar determinado caso em uma novela da vida real a ser imposta na agenda setting2 dos

    consumidores de notcias.

    Todas as estratgias citadas acima so meios de deformar o sentido. Barthes

    (1992: pp144-145) alerta:

    O mito um valor, no tem a verdade como sano: nada o impede de ser um per-ptuo libi: basta que o significante tenha duas faces para dispor sempre de um ou-tro lado: o sentido existe sempre para apresentar a forma; a forma existe semprepara distanciar o sentido. E nunca h contradio, conflito, exploso entre o sentidoe a forma, visto que nunca est no mesmo ponto.

    O mito no elimina o sentido, mas prende-se ainda que por tnue linha a um

    fragmento de realidade e, por isso pode ser encarado como fato ou utilizado para explicar ou

    aceitar a realidade. O jornalismo, por seu carter informativo, de predomnio da funo refe-

    rencial3 da linguagem, oferece condies bastante propcias para alimentar a relao de fatua-

    lidade com os mitos que veicula.

    No caso Manaco da Bicicleta, um acontecimento inesperado obrigou a uma rpi-

    da desconstruo do personagem mtico criado, j que o retrato do bandido divulgado pela

    fonte oficial imprensa era uma farsa. Volvel por natureza, o mito no foi sacrificado nem

    pela prpria verdade que veio tona. Outra vez, conservou o sentido inicial a onda de estu-

    pros mas moldou nova forma e o caso ganhou um novo personagem de destaque: o inocente

    Alosio Plocharski, confundido com o manaco. Essa rpida re-adequao do mito possvel

    por se tratar, segundo Barthes (1992: p. 144), de um sistema duplo, onde se produz uma esp-

    cie de ubiqidade: o ponto de partida do mito constitudo pelo ponto terminal de um sentido.

    2 Assuntos colocados na pauta de discusso dos grupos sociais pelos meios jornalsticos.3 Expresso adotada pelo lingista Roman Jakobson para designar a funo de informar.

  • 21

    E como um mito pode mudar de forma, tomar nova direo dentro do texto jorna-

    lstico sem colocar em risco a credibilidade do veculo, isso , sem que o consumidor de not-

    cias aperceba-se da construo mitolgica inicial? Recorra-se a Koch (2000: p.124) para uma

    resposta possvel:

    A afirmao possui o dom de criar a iluso de que, ao ser feita, tem o poder de criara prpria realidade das coisas, no entanto, ela resulta sempre de uma opinio, mani-festando uma determinada atitude do locutor em face dessa realidade e do(s) seu(s)interlocutor(es).

    No o que diz, mas a forma afirmativa como o jornalismo diz que garante a

    aparncia crvel do mito reformulado.

    As razes que movem o jornalismo a propagar seus mitos so muitas. A princpio,

    pode parecer contradio que justamente os meios destinados a informar com iseno pres-

    tem-se reproduo de mitos. Tal julgamento seria por demais simplista. Voltemos a uma das

    funes originais do mito enquanto fala: ajudar o homem a compreender sua realidade. O

    acordo tcito entre o agente produtor de mitos e aquele que os consome est diretamente rela-

    cionado a essa razo original de buscar explicaes para o real. Estereotipar os personagens

    centrais de matrias jornalsticas , tanto para o emissor quanto para o receptor das notcias,

    um meio prtico de buscar o entendimento rpido da realidade construda. Assim, repetem-se

    casos de manacos que j foram vtimas de abuso sexual na infncia, polticos corruptos,

    bombeiros heris, negros discriminados... E quando busca o esteretipo como recurso facili-

    tador do entendimento para as histrias do cotidiano, inicia-se o processo de mitificao.

    A razo econmica tambm contribui para alimentar a criao de mitos pela im-

    prensa. Mitificar um caso torna-o mais atraente ao consumidor. Uma histria que se desenrola

    por dias ou meses agua a curiosidade e ajuda a vender a notcia por mais tempo. H que se

    considerar ainda o modus operandi vigente. Qualquer reprter foca4 logo incentivado a se-

    4 Reprter novato

  • 22

    guir o exemplo de colegas mais experientes, a aprender com estes os macetes da profisso. A

    construo mitolgica dos casos at mesmo estimulada por editores sedentos por uma boa

    manchete, por um assunto que renda sutes nos dias seguintes. Nesse aprendizado, vale refa-

    zer a matria com maiores detalhes sobre o personagem central, suas caractersticas fsicas e

    psicolgicas, seus hbitos, seus antecedentes. Nem sempre, contudo, possvel obter todas

    essas informaes de modo suficientemente realista e ento os esteretipos surgem como al-

    ternativa para satisfazer o gosto do editor e do consumidor da notcia.

    Reconhecer a mitificao como presena constante nos textos jornalsticos no si-

    gnifica, de forma alguma, crucificar os profissionais da imprensa como se fossem os sujeitos

    mais mal intencionados do planeta. Na verdade, a mitificao carrega intencionalidade em seu

    bojo, mas est to enraizada no fazer jornalstico e em muitos outros fazeres humanos que

    se tornou prtica quase espontnea porque pertence ao campo da ideologia. Barthes (1992: pp

    161-163) constata:

    A semiologia ensinou-nos que a funo do mito transformar uma inteno histri-ca em natureza, uma contingncia em eternidade. Este processo o prprio processoda ideologia burguesa. Se a nossa sociedade objetivamente o campo privilegiadodas imagens mticas, porque o mito formalmente o instrumento mais apropriadopara a inverso ideolgica que a define: a todos os nveis de comunicao humana, omito realiza a inverso da antiphisis em pseudo-phisis.[...] O mundo oferece ao mitoum real histrico e o mito devolve uma imagem natural deste real.

    Se o mito percebido como fato real pelos consumidores de notcias, tambm o

    por grande parte de seus construtores. O reprter anseia por produzir textos que interessem a

    seu pblico, quer acompanhar casos que rendam manchetes, assim como o reprter fotogrfi-

    co busca o melhor ngulo ainda que a imagem construda seja o reflexo de sua interpretao

    estereotipada dos personagens. Somos todos hospedeiros dos mitos e nos habituamos tanto a

    sua presena que nem mais percebemos que esto ali. Abramo (2004: p. 24) afirma que a

    maior parte dos indivduos move-se num mundo que no existe, e que foi artificialmente cria-

    do para ele justamente a fim de que ele se mova neste mundo irreal. Os mitos so constru-

  • 23

    dos de acordo com determinadas orientaes ideolgicas to profundamente enraizadas que se

    confundem com a realidade.

    O psiquiatra Isaac Charam enumera algumas idias mticas acerca de estupradores

    que costumam povoar as matrias jornalsticas e o imaginrio popular: que o homem estupra-

    dor sofre de um desejo sexual incontrolvel; que o estuprador sempre doente mental; que o

    estuprador sempre de classe social baixa; que j teve problemas com a lei ou que geralmente

    de cor negra. (Charam: 1997, p.162) Da mesma forma, outras mitificaes so alimentadas

    pelas notcias peridicas. Um exemplo claro pode ser a falta de credibilidade enfrentada pela

    classe poltica. A sucesso de manchetes que do conta da corrupo entre representantes po-

    lticos, aliada s esquetes de programas humorsticos e charges que exploram este filo de

    maneira cmica contribuem para criar um pr-julgamento generalizado de que a poltica

    desonesta. Tal pensamento acaba por provocar o afastamento e o desinteresse das pessoas

    pela poltica. Em conseqncia, haver cada vez menos pessoas bem intencionadas dispostas

    a disputar cargos pblicos por eleio.

    Os mitos edificados, sustentados ou expandidos pela imprensa so reflexos ideo-

    lgicos. Para Bakhtin (2004, p.31), Tudo que ideolgico um signo. Sem signos, no

    existe ideologia. O mito noticioso no criado apenas para alimentar o interesse do leitor,

    mas para difundir ou reforar determinadas posies ideolgicas dominantes. Abram-se aqui

    parnteses para lembrar que, no caso do Manaco da Bicicleta, havia em Joinville um clamor,

    inclusive da classe empresarial, por melhorias no setor de segurana pblica. Em 2000, po-

    ca da divulgao do falso retrato falado, instalou-se na cidade uma operao especial de segu-

    rana chamada Norte Seguro a fim de coibir roubos, furtos e assaltos e, claro, capturar o

    smbolo do estado de insegurana: o Manaco da Bicicleta, temido por atacar e estuprar mu-

    lheres em plena rea central da cidade. Intensificar as buscas ao manaco e providenciar sua

    captura era uma forma de dar resposta positiva aos apelos da populao por maior segurana.

  • 24

    Quanto mais aterrorizante parecesse a figura do manaco, maior seria o sentimento de alvio

    dos joinvilenses ao v-lo preso.

    tambm Bakhtin quem alerta (2004, p. 32): Ele (o signo) pode distorcer a rea-

    lidade, ser-lhe fiel ou apreend-la de um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito

    aos critrios de avaliao ideolgica. E sendo a palavra, como atesta Bakhtin, um fenmeno

    ideolgico por excelncia, no h como dissociar no texto jornalstico tal relacionamento to

    natural. No caso Manaco da Bicicleta, contudo, a realidade surpreendeu o mito criado. O erro

    de divulgar um falso retrato falado para acalmar as cobranas populares por mais segurana

    acabou enveredando por um caminho at ento inesperado: a apario de Alosio Plocharski

    denunciando o uso indevido de sua fotografia. Erros flagrantes dessa natureza so importantes

    para quebrar a fora espontnea da reproduo de mitos pela imprensa. Em seu cotidiano, no

    af de preencher pginas e pginas com informaes que interessem o leitor, o jornalista

    apressado por natureza do ofcio nem sempre se d conta dos mitos que ajuda a construir e

    das formas estereotipadas que ajuda a eternizar para a opinio pblica. Somente quando peca-

    dos ticos vm tona que se pode provocar uma pausa para a reflexo acerca da recriao

    automatizada da realidade nos jornais.

    Tal reflexo acerca do fazer jornalstico e da criao ou divulgao de mitos pode

    levar a uma mudana de posio, ao menos temporria, capaz de produzir a corroso de este-

    retipos e o conseqente abalo nas formas ideolgicas at ento consolidadas. Para Bakhtin

    (2004:p. 41):

    A palavra ser sempre o indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais[...] A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulaes quantitati-vas de mudanas que ainda no tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ide-olgica.

    Quando um mito noticioso sofre uma ruptura em sua construo, surge a oportu-

    nidade de se estudar a ideologia que o sustentava, porm, o enraizamento ideolgico to

  • 25

    profundo que se torna mais cmodo e fcil deformar o prprio mito, sem destru-lo. Foi o que

    ocorreu no caso Manaco da Bicicleta, como adiante se ver. A descoberta do falso retrato

    falado destruiu a inteno da polcia de utilizar as buscas ao manaco como mostra de ao

    eficaz contra a insegurana, mas no destruiu o mito construdo e, para isso, a estratgia utili-

    zada aps explorar o novo personagem da histria Alosio Plocharski foi a de esvaziar o

    caso para, dois anos mais tarde, traz-lo novamente baila, com a priso do estuprador con-

    fesso.

    Em seus estudos, Bakhtin (2004: p.46) j afirmava que o signo se torna a arena

    onde se desenvolve a luta de classes, mas tambm observava que a classe dominante tende a

    conferir ao signo ideolgico um carter acima das diferenas de classe para, dessa forma, aba-

    far a luta dos ndices sociais de valor. Os rgos jornalsticos que se auto-intitulam srios e

    no-sensacionalistas so campos perfeitos para disfarar as intenes do signo ideolgico,

    isso porque se encarregaram de criar para si prprios os mitos da credibilidade e da iseno.

    Os fatores que levam o jornalista a reproduzir em seus textos a ideologia domi-

    nante so diversos e, como esto geralmente inter-relacionados, tornam-se prticas espont-

    neas do cotidiano. A linha editorial de cada veculo obedece aos interesses empresariais de

    seus proprietrios. Por mais tico que tente ser, o veculo de comunicao de massa essenci-

    almente um negcio e, como tal, precisa garantir lucros para sua subsistncia. Buscar a verso

    de um fato pelo ponto de vista de uma fonte oficial costuma ser sempre mais fcil e rpido do

    que localizar e checar outras fontes envolvidas. O tempo corre contra o jornalista e optar pela

    reproduo de esteretipos acelera o processo de confeco e posterior compreenso do texto.

    A introspeco tambm se insere em determinada situao social, portanto os saberes acumu-

    lados do reprter impregnam o texto que escreve. Isso significa que a ideologia a que esteve

    submetido estar presente no resultado final de seu trabalho ainda que esta no tenha sido sua

    inteno primeira. O jornalista escreve para seu leitor, isso significa que, como em qualquer

  • 26

    tipo de enunciao, o texto noticioso no deixa de considerar o seu receptor, suas expectativas

    e suas relaes anteriores com a informao ou como argumenta Bakhtin (2004: p.146):

    A transmisso leva em conta uma terceira pessoa a pessoa a quem esto sendotransmitidas as enunciaes citadas. Essa orientao para uma terceira pessoa deprimordial importncia: ela refora a influncia das foras sociais organizadas sobreo modo de apreenso do discurso.

    Habitualmente o leitor espera a punio aos bandidos. Essa expectativa de castigo

    inibe, por exemplo, a iniciativa de ouvir as motivaes dos crimes enquanto valoriza a verso

    oficial do fato. Quando, porm, o caso ganha maior repercusso, como assassinatos ou estu-

    pros em srie, a verso dos criminosos passa a ser explorada, mas ainda com a busca de justi-

    ficativas oficiais de psiclogos, psiquiatras ou outras fontes de discursos competentes, como

    denomina a filsofa Marilena Chau (1981: p.7). O jornalista, ao privilegiar as fontes oficiais

    ou competentes acredita estar atendendo expectativa do leitor de no dar voz aos autores

    do crime, sempre pr-julgados como culpados. Tal atitude j incorporada ao modus operandi

    do reprter acostumado a alimentar os mitos criados e a privilegiar as fontes oficiais, por ve-

    zes, pode acarretar informaes erradas como ocorreu com Alosio Plocharski, vtima de um

    falso retrato falado, ou como os envolvidos no emblemtico caso da Escola Base5.

    Ainda mais do que a punio ao crime, o leitor, conforme a viso jornalstica vi-

    gente, quer estar informado sobre os atos de violncia da atualidade. Importa mais saber o

    que ocorreu do que como e por que ocorreu. Eis uma das razes pelas quais o perodo de

    construo de mitos de bandidos costuma merecer maior ateno e mais espao nos jornais do

    que os desfechos dos casos e julgamentos de criminosos.

    Se, conforme Bakhtin (2004: p.94), a palavra est sempre carregada de um con-

    tedo ou de um sentido ideolgico ou vivencial, o texto jornalstico no pode mesmo ser a

    5 Cf. RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base Os Abusos da Imprensa. So Paulo: tica, 1995.

  • 27

    reproduo da realidade, mas sim a construo da realidade. o fato contado a partir de de-

    terminados pontos de vista, geralmente os oficiais ou de autoridades competentes, aglutina-

    do ao repertrio acumulado pela vivncia de quem escreve e sob a influncia das supostas

    expectativas do leitor. Somente quando esta recriao da realidade causa um dano flagrante

    vida de algum, como ocorreu com Alosio Plocharski, que se pode ter noo das conse-

    qncias embutidas no fazer jornalstico mesmo de veculos que se autodenominam compro-

    metidos com a tica e anti-sensacionalistas.

    Em pesquisa acerca do texto argumentativo, Citelli (1994: p. 6) afirma:

    De instrumento que ajudava a nomear as coisas, a linguagem passou a ser identifica-da como elemento de constituio dos sentidos, capaz de no apenas representarcomo tambm de criar realidades, exercendo um forte papel direcionador ou redire-cionador das relaes sociais.

    Embora Citelli refira-se ao texto argumentativo, h que se considerar que, no texto

    noticioso a exposio das informaes como fatos realmente ocorridos e a juno de opini-

    es de autoridades competentes objetivam um convencimento de que a verso ali expressa

    retrata o fato em si, tal como ocorreu. Ao redigir uma notcia, o jornalista no deixa de utilizar

    determinado ponto de vista que resultado de suas experincias acumuladas, fruto de sua vi-

    vncia social, das ideologias assimiladas ao longo dos anos. Para Citelli (1994: p. 19), o ponto

    de vista decorre de vrios aspectos: do lugar social de onde se opera; do discurso individual

    marcado por outros discursos, da trajetria pessoal de cada um, suas leituras e vivncias.

    A mitificao de personagens que rendam uma sucesso de matrias sobre o

    mesmo tema uma das principais ferramentas utilizadas pelo jornalismo atual na construo

    de realidades. Tal como nas obras de fico, o autor de textos jornalsticos esmera-se em bus-

    car um cenrio adequado, na composio de caractersticas marcantes (mos macias, bem

    asseado, guarda-p de operrio, sempre numa bicicleta azul foram algumas das caractersticas

  • 28

    utilizadas para compor o perfil do Manaco da Bicicleta), alm de escolher um bom ttulo ou

    nome para o caso em questo.

    O texto jornalstico ainda possibilita utilizar como estratgias de construo da re-

    alidade as relaes interdiscursivas6, pois est sempre relacionado a um discurso mais abran-

    gente, de forma que o contexto maior valida o menor. As relaes intertextuais7 tambm so

    comuns nas matrias que rendem sutes. Ao mitificar um caso, a inteno do jornalista pro-

    longar o interesse do leitor pelo assunto, ou seja, supe-se que o consumidor de notcias vai

    acompanhar o desenrolar da trama, tal como o faria numa novela televisiva. Por isso, as sutes

    tm o cuidado de oferecer uma continuidade ao assunto principal reforando-o na agenda

    setting.

    Recorrer ao discurso da autoridade competente para validar o texto enquanto re-

    lato verdico do fato outra estratgia adotada pelo jornalismo na construo da realidade e na

    reproduo de mitos. A polifonia8 presente nos textos jornalsticos, no entanto, pode apenas

    reforar a ideologia dominante porque privilegia a fonte oficial ou a autoridade competente. A

    opinio de um psiquiatra acerca da ligao dos atos de um estuprador a possveis traumas de

    infncia, por exemplo, j virou frmula fixa9 e apenas ratifica a inteno do reprter de forne-

    cer alguma explicao para os crimes. No o reprter que fala, mas uma autoridade compe-

    tente que endossa sua idia pr-concebida da explicao mais aceita pelo pblico.

    At mesmo as citaes literais utilizadas no texto jornalstico no passam de re-

    cortes do depoimento de algum, com a vantagem de poderem ser utilizadas para eximir o

    reprter de alguma acusao de erro de interpretao. Vejamos o que Maingueneau (2002:

    6 Relao entre discursos diferentes como o histrico, econmico etc.7 Textos que mantm relao com outros textos8 Multiplicidade de vozes em um mesmo texto.9 Estratgia que se repete com freqncia.

  • 29

    pp.139-141) observa no uso do discurso relatado (reproduo da enunciao de outrem) e do

    discurso direto (citao, no caso do jornalismo):

    O discurso relatado constitui uma enunciao sobre outra enunciao; pe-se em re-lao dois acontecimentos enunciativos, sendo a enunciao citada, objeto da enun-ciao citante. Quando simplesmente indicamos que o enunciado se apia em ou-tro discurso, estamos usando da modalizao do discurso segundo. [...] Diferente-mente da modalizao em discurso segundo, o discurso direto (DD) no se contentaem eximir o enunciador de qualquer responsabilidade, mas ainda simula restituir asfalas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situaes deenunciao: a do discurso citante e a do citado. [...] O Discurso Direto sempre ape-nas um fragmento de texto submetido ao enunciador do discurso citante, que dispede mltiplos meios para lhe dar um enfoque pessoal.

    Para modalizar o discurso segundo, no texto jornalstico, recorre-se ao que Main-

    gueneau denomina de grupos preposicionais: segundo X, para X, conforme X, etc. Ao utilizar

    esta ferramenta, o jornalista deixa claro que determinada opinio no sua, mas da fonte.

    Ocorre, porm, que a escolha da fonte e o recorte dos trechos citados so, sim, do reprter e

    por isso, como atesta Maingueneau, h mltiplos meios para lhe dar um enfoque pessoal. A

    citao, muitas vezes, apenas ratifica um ponto de vista que prprio do autor do texto jorna-

    lstico. No caso Manaco da Bicicleta, como veremos no prximo captulo, a escolha da fonte

    policial serviu para ratificar a informao de que havia mesmo um novo retrato falado do es-

    tuprador, feito com auxlio de computador. A fonte escolhida, ao contrrio das expectativas

    triviais da imprensa, no era confivel e forneceu uma informao errada. No havia novo

    retrato falado, mas sim a escolha da fotografia de um inocente que se assemelhava s caracte-

    rsticas do culpado.

    A utilizao do discurso citado tambm uma ferramenta para tecer a construo

    da realidade no texto jornalstico.

  • 30

    1.1 NASCE O MANACO DA BICICLETA

    No jornal A Notcia, sediado em Joinville e de abrangncia estadual, a primeira

    reportagem sobre o Manaco da Bicicleta surgiu em 7 de outubro de 2000. O primeiro registro

    de estupro atribudo ao manaco da bicicleta, entretanto, de 29 de agosto, e o segundo de 20

    de setembro do mesmo ano. Nos dias 3 e 4 de outubro, mais trs mulheres foram atacadas.

    Nenhum destes atos foi noticiado antes. Obviamente, a polcia tambm levou algum tempo

    para relacionar os ataques a um mesmo agente agressor. Ainda assim, estranho que os casos

    de violncia contra as vtimas no tenham recebido ao menos uma nota no caderno AN Cida-

    de, sobretudo se levarmos em conta a funo primordial do jornalismo: informar a populao.

    Se os jornais tivessem divulgado antes os ataques do estuprador, as mulheres vtimas em

    potencial teriam mais chance de preveno.

    Antes de 7 de outubro, o AN Cidade no menciona os estupros ocorridos em

    agosto e setembro, mas veicula diversas notcias e reportagens de maior flego acerca dos

    problemas de segurana pblica em Joinville. A preocupao fica clara nos ttulos e subttu-

    los:

    a) 31 de agosto Moradores do Javirituba e Ademar Garcia tm medo/ Motivo a

    onda de assaltos e arrombamentos nos dois bairros.

    b) 31 de agosto - X da Questo [programa radiofnico] discute segurana em

    Joinville (a matria destaca a promessa da Polcia Militar de intensificar policiamento.)

    c) 3 de setembro Joinville tem nmero deficiente de PMs (a matria faz compa-

    rao com o efetivo de Florianpolis, com o dobro de policiais em relao a Joinville. Aponta

    Joinville como segundo municpio do Estado com maior ndice de criminalidade.

  • 31

    d) 6 de setembro Programa de Segurana Interativa debatido (trata de reunio da

    polcia militar com lderes comunitrios)

    e) 19 de setembro Roubo de veculos alarma populao/ Companhias de seguro

    deixam de dar desconto para Joinville (matria destaca o roubo de 13 veculos em quatro dias)

    f) 20 de setembro - Trs crimes registrados no espao de uma semana chocam po-

    pulao e causam espanto na cpula da polcia do municpio (com chamada de capa e desta-

    que para a falta de estrutura da polcia civil)

    g) 23 de setembro - X da Questo discute segurana (reporta-se novamente ao

    programa radiofnico que entrevistou o delegado da Polcia Federal que reclama da falta de

    estrutura)

    h) 24 de setembro Consumo e trfico de drogas vm crescendo. Afirmao do

    delegado Paulo Jung que diz que efetivo da Polcia Federal insuficiente.

    26 de setembro Joinvilenses se mobilizam pelo fim da violncia (matria sobre

    adeso da populao campanha anual de combate explorao infanto-juvenil)

    O jornal A Notcia, em sua edio estadual, tambm d destaque aos assaltos,

    furtos de veculos e homicdios, no ms de setembro, mesma poca em que lideranas empre-

    sariais da cidade mobilizam-se para pedir melhorias no setor de segurana pblica. No dia 7

    de outubro surge a figura do Manaco da Bicicleta e no dia 10 de outubro A Notcia divulga o

    primeiro retrato falado do estuprador.

    A seqncia de matrias sobre a insegurana dos joinvilenses tem seu clmax com

    a divulgao da onda de estupros. As diversas reportagens sobre o mesmo tema compem o

    cenrio ideal para o surgimento de um personagem o Manaco da Bicicleta - que se tornaria,

    a partir de 7 de outubro, o smbolo da violncia na cidade. No dia 13 de outubro, o jornal di-

    vulga a unio de vrios segmentos policiais para combater a criminalidade em Joinville: Po-

    lcia se une no Norte para conter criminalidade, o ttulo da matria. Em 3 de novembro,

  • 32

    com bastante alarido na mdia, instala-se oficialmente a Operao Norte Seguro, com reforo

    de 163 policiais e 2 helicpteros. A Secretaria de Segurana Pblica promete esforo especial

    para prender o Manaco da Bicicleta e no dia 5 de novembro o falso retrato falado divulgado

    no programa Fantstico, da rede Globo e, no dia 7, para os jornais estaduais.

    O Manaco da Bicicleta faz sua estria nas pginas policiais de A Notcia j mi-

    tificado e personifica a onda de crimes que tira o sossego das lideranas da cidade. A prop-

    sito, um quadro comparativo de crimes cometidos em 1999 e 2000, divulgado pela Polcia

    Militar no jornal A Notcia de 4 de novembro de 2000, mostra que o alardeado crescimento da

    criminalidade que culminou na operao Norte Seguro no estava assim to longe dos ndices

    obtidos no ano anterior.

    Tabela 1 Principais ocorrncias policiais em JoinvillePrincipais ocorrncias policiais de Joinville

    1999 2000 * Mdia ms1999 2000Homicdios 19 19 1,58 1,9Furto de Veculos 1.121 1.002 93,42 100,2Roubo/assalto a banco 23 9 1,92 0,90Roubo/assalto a residncias 56 56 4,67 5,60Roubo/assalto nibus coleti-vo 19 33 1,58 3,33

    Assalto contra pessoa 447 394 37,25 39,40Assalto est. comercial 352 362 29,33 36,20Estupros 15 9 1,25 0,9Tentativa estupro 39 24 3,25 2,40Recup. vec. furtados 256 321 21,33 32,10* Janeiro a 31 de outubro de 2000 Fonte: Polcia Militar de Joinville

    A estatstica da PM para 2000 levava em considerao os primeiros dez meses do

    ano contra os doze meses do ano anterior. Ainda assim, o nmero de roubos/assaltos a banco,

    contra pessoa, estupros e tentativas so iguais ou menores que as estatsticas de 1999. O cres-

    cimento ocorre nos casos de homicdios, em que, com dois meses a menos j se registrava o

    mesmo nmero de assassinatos do ano anterior, assim como o nmero de assaltos e roubos a

    residncias. O maior salto de incidncias ocorre nos assaltos a nibus coletivos, assunto bem

  • 33

    menos explorado na imprensa que os roubos a bancos/caixas eletrnicos. A anlise dos nme-

    ros da polcia, utilizados para justificar a ao integrada da operao Norte Seguro, refora a

    tendncia mitificao do tema violncia pela imprensa joinvilense.

    A apario de um estuprador em srie era o ingrediente que faltava para justificar

    o estado de insegurana da maior cidade catarinense em setembro de 2000 e desencadear a

    Operao Norte Seguro, como resposta aos apelos da populao por maior segurana.

    O esboo da ao integrada das polcias que culminaria na Operao Norte Seguro

    resposta prtica s solicitaes das lideranas locais ocorre cinco dias aps a primeira apa-

    rio do Manaco da Bicicleta em A Notcia, em matria de 7 de outubro de 2000. Note-se que

    o Manaco j aparece com seu codinome e com as caractersticas utilizadas para compor seu

    perfil. Aps esta matria, as notcias sobre estupros e tentativas tornam-se mais freqentes,

    mesmo quando os casos no so atribudos ao Manaco da Bicicleta.

    A Notcia 7/10/00

    Manaco da bicicleta estupra em Joinville

    Sete mulheres j deram queixas na polcia nos ltimos 40 dias.

    ltimo caso foi na quinta-feira.

    (Arlei Zimmermann)

    Um homem de estatura mediana, aproximadamente 1m65, loiro, olhos

    claros e que anda sempre com uma bicicleta azul, possivelmente de marcha, est

    aterrorizando a comunidade de Joinville. Em menos de dois meses, segundo a pol-

    cia, ele j estuprou sete mulheres. O caso mais recente aconteceu na noite de

    quinta-feira, onde foi vtima uma adolescente de 14 anos. A Delegacia da Mulher, da

    Criana e do Adolescente, que investiga o caso junto com a Polcia Militar, segundo

    a titular, delegada Ruth Henn, dever divulgar na segunda-feira o retrato falado do

    criminoso.

  • 34

    O manaco sexual, conforme a delegada, tem em torno de 25 anos e tem

    preferncia por mulheres da classe mdia para cima. Ele tem uma boa aparncia e

    s vezes usa uma roupa parecida com uniforme, no estilo de um guardap. Costuma

    usar um bon, para esconder o rosto, e anda sempre com uma bicicleta azul. Quan-

    do aborda as vtimas, revista as bolsas delas, rouba documentos e faz ameaas,

    caso elas venham a registrar o fato na polcia. "Por este motivo deve haver outras

    vtimas que no tiveram coragem de levar o caso polcia", acredita a delegada.

    O suspeito tem abordado as vtimas nas proximidades da prefeitura anti-

    ga, no bairro Amrica, quase centro. Porm, segundo a delegada, leva as mulheres

    para locais diferentes, onde as violenta sexualmente.

    A titular da Delegacia da Mulher, da Criana e do Adolescente diz que a

    polcia passou a investigar desde que foram registrados os primeiros casos. Agora

    contam com o apoio da Polcia Militar. "Vamos intensificar o policiamento naquela

    rea", diz o major Calixto Antnio Fachini. O comandante do 8 BPM, tenente-

    coronel Jari Luiz Dalbosco, tambm j se inteirou do fato e prometeu apoiar a Polcia

    Civil na tentativa de prender o manaco.

    O delegado do 5 DP, Alberto Cargnin Filho, tambm prometeu colocar

    uma equipe na rua para investigar o caso, junto com a Delegacia da Mulher. Caso

    algum tenha uma pista sobre o manaco sexual, poder telefonar para o disque-

    denncia da Delegacia da Mulher, (nmero 1380), ou para o 190, da Polcia Militar.

    Tarado, armado de revlver, ataca vtimas

    em ruas do bairro Amrica

    Os registros de ocorrncias comearam a aparecer em 29 de agosto. De

    acordo com uma das vtimas, caminhava pela rua Almirante Tamandar, no bairro

  • 35

    Amrica, prximo ao centro, por volta das 21h30, quando foi abordada pelo suspeito.

    Loiro, estatura mediana, olhos claros, sotaque normal, usando um bon e moletom

    azul, armado com um revlver, ele ameaou a vtima. Disse que era um assalto e a

    forou ir at um matagal, nas proximidades, onde a estuprou.

    No dia 20 de setembro, noite, na rua Max Colin, mais uma vez o sus-

    peito abordou outra jovem e a violentou sexualmente. Nove dias depois, na mesma

    rua, o mesmo manaco abordou outra vtima. Usando um guardap marrom e um

    bon escuro, com a arma em punho, tambm ameaou a jovem e a levou at as

    proximidades do Colgio Ivan Rodrigues, onde praticou o estupro.

    No dia 3 de outubro, tera-feira, o suspeito fez duas vtimas. Uma delas

    foi violentada sexualmente em plena luz do dia, no viaduto da Expoville. No mesmo

    dia, s 20 horas, na rua Emlio Artmann, prximo Comercial Afonso Dunke, no

    bairro Amrica, o manaco atacou outra jovem. S que desta vez a vtima conseguiu

    fugir.

    No dia 4 de outubro, quarta-feira, uma adolescente foi abordada na rua

    Max Colin, em frente prefeitura antiga. Levada para a avenida Beira-Rio, nas pro-

    ximidades do Sesc, foi violentada sexualmente. O estupro ocorrido na noite de

    quinta-feira tambm aconteceu no matagal das proximidades do Servio Social do

    Comrcio (Sesc). A vtima, de 14 anos, tambm foi abordada nas proximidades da

    prefeitura antiga. (AZ)

    No texto jornalstico transcrito aparece duas vezes a expresso sempre com uma

    bicicleta azul que enfatiza a relao que o reprter deseja atribuir entre o meio de transporte

    e o codinome adotado para o autor dos estupros. Interessante observar que Joinville conhe-

    cida como a Cidade das Bicicletas porque muitos de seus habitantes, em especial os da classe

    operria, utilizam este veculo para ir ao trabalho.

  • 36

    Os estupros e tentativas, que at ento no estavam na pauta policial de A Notcia,

    ganham nfase a partir do ttulo. A matria trata de caracterizar fsica e psicologicamente o

    autor dos estupros, tarefa essencial mitificao. Alm da emblemtica bicicleta azul, o Ma-

    naco descrito como agressor que prefere mulheres de classe mdia pra cima, com guarda-p

    de indstria, bon, loiro, estatura mediana, olhos claros. Em matrias seguintes, estas caracte-

    rsticas sero aprimoradas: mos macias, bem asseado e fala com boa dico (A Notcia

    9/11/00).

    O esforo para caracterizar o Manaco da Bicicleta faz parte do processo de miti-

    ficao. Isso no significa m-f de quem escreve e sim uma resposta quase espontnea

    obrigao - imposta por circunstncias no suficientemente claras de transformar o caso dos

    estupros no clmax das matrias acerca da insegurana dos joinvilenses.

    A forma adotada para mitificar o personagem central da nova trama jornalstica

    deriva da interao com discursos bem mais abrangentes que vo de fatores econmicos e

    sociais a interesses polticos ou derivados de um cenrio ainda maior: a ps-modernidade.

    Citelli: 1994, p.56, observa que os textos so constitudos a partir de lugares histricos: Vi-

    vemos em permanente dilogo com vrios discursos circundantes. A insero do discurso

    jornalstico no contexto ps-moderno uma conseqncia natural.

    1.2 INFLUNCIA DA PS-MODERNIDADE NO DISCURSO JORNALSTICO

    O jornalismo, impresso ou no, transformou-se rapidamente em espao ps-

    moderno por excelncia tal como ocorreu com a arquitetura e seus ambientes fragmentados,

    com diferentes estilos justapostos. No ambiente ps-moderno a prpria realidade se fragmenta

  • 37

    porque as pessoas assumem mltiplos papis. Da mesma forma, no jornalismo, a colcha de

    retalhos, a bricolagem de assuntos diversos, aparentemente desconectados, est presente. na

    mdia, e conseqentemente no jornalismo, que o simulacro ganha fora. Tome-se aqui em-

    prestado de Harvey, 1998: p. 261, o conceito de simulacro enquanto estado de rplica to

    prxima da perfeio que a diferena entre o original e a cpia quase impossvel de ser per-

    cebida, mas no se restrinja tal idia apenas s imagens materiais, ou seja, pinturas, fotogra-

    fias, mas tambm s imagens no tangveis que se vo construindo com a ajuda de profissio-

    nais como assessores de imprensa, estrategistas da comunicao, marketeiros, entre outros.

    Ao construir uma realidade, o jornalismo utiliza-se de simulacros. No caso em

    questo, do Manaco da Bicicleta, a divulgao de um falso retrato falado nada mais foi do

    que o uso extremo de um simulacro que, no fosse a indignao manifesta da famlia Plochar-

    ski, passaria despercebido pelos leitores e pelos prprios profissionais da imprensa. Mas si-

    mulacro ainda maior toda a construo do mito do Manaco da Bicicleta como bode expiat-

    rio da onda de insegurana que tomava conta de Joinville poca, e aqui est mais uma reali-

    dade construda com ajuda da mdia, visto que os prprios dados da Polcia Militar, na Tabela

    1, provam que o crescimento da criminalidade em relao ao ano anterior no era assim to

    alarmante quanto faziam crer as matrias jornalsticas.

    Na ps-modernidade, os simulacros sucedem-se uns aos outros. Para solucionar a

    instabilidade causada pela criao de um clima de insegurana em Joinville, adota-se a cons-

    truo de uma imagem oposta: o reforo policial e a caada ao manaco como forma de rees-

    tabelecer a ordem. Harvey: 1998, p.260, constata:

    Tanto as corporaes, como os governos e os lderes intelectuais e polticos valori-zam uma imagem estvel (embora dinmica) como parte de sua aura de autoridade epoder. A mediatizao da poltica passou a permear tudo. Ela se tornou, com efeito,o meio fugidio, superficial e ilusrio mediante o qual uma sociedade individualistade coisas transitrias apresenta sua nostalgia de valores comuns. A produo e vendadessas imagens de permanncia e de poder requerem uma sofisticao considervel,porque preciso conservar a continuidade e o dinamismo do objeto, material ouhumano da imagem.

  • 38

    Logo, para uma falsa ampliao da violncia inventada pela mdia, surge uma fal-

    sa soluo atravs da criao de um novo mito e da divulgao de seu falso retrato. No so,

    contudo, apenas os simulacros que inserem o jornalismo como engrenagem importante dos

    tempos ps-modernos. A compresso do espao-tempo tambm afeta o fazer jornalstico

    como um todo. Para entender tal fator necessrio considerar que, mais do que um movi-

    mento cultural, a ps-modernidade antes uma transformao provocada pelas mudanas

    econmicas. Na dcada de 70, o sistema fordista que desde 1914 regia o capitalismo entra em

    declnio, e a competio internacional se intensifica originando a globalizao. Para adequar o

    capitalismo aos novos tempos, surge o que Harvey denomina de acumulao flexvel, com

    setores de produo inteiramente novos, diferentes servios financeiros e tecnolgicos. O

    mercado de trabalho passa por radical reestruturao, com o surgimento de novos regimes

    contratuais, tais como agncias de temporrios, subcontrataes e autnomos. Todo este cen-

    rio econmico desemboca no sentimento de instabilidade que toma conta dos tempos ps-

    modernos. Nada mais seguro, tudo voltil e pode ser descartado.

    Em uma poca em que o instantneo prevalece sobre o perene, o jornalismo tam-

    bm fica mais descartvel. As grandes reportagens cedem espao s notcias mais curtas e

    mais superficiais. A acelerao do tempo e a compresso do espao, motivadas pelas adapta-

    es do capitalismo tardio, para usar a expresso de Jameson: 1988, torna ainda mais super-

    ficial o texto jornalstico, posto que os consumidores de notcias tm cada vez menos tempo

    para ler e esto habituados s informaes instantneas da TV e, mais recentemente, da Inter-

    net. Sob presso. Fica cada vez mais difcil reagir de maneira exata aos eventos. [...] A rea-

    lidade antes criada do que interpretada em condies de tenso e de compresso do espao-

    tempo, afirma Harvey, 1998: p.275. Se o jornalismo, por sua natureza, j precisava ser rpi-

    do, com a compresso espao-temporal tal necessidade passou a ser ainda mais implacvel.

    Ao discorrer sobre os padres de manipulao da imprensa, Abramo: 2004, p.27, cita a

  • 39

    fragmentao como uma das estratgias manipulatrias. Tal padro consiste em fragmentar

    o todo real em fatos particularizados, em casos desconectados entre si, desligados de seus

    antecedentes e conseqentes no processo em que ocorrem, ou reconectados e revinculados de

    forma arbitrria e que no corresponde aos vnculos reais, mas a outros ficcionais e artificial-

    mente inventados. Ao fragmentar um mesmo tema, como o Manaco da Bicicleta, em vrias

    notcias, vrios dias, diferentes editorias e, depois, ao vincular o tema a outros assuntos simi-

    lares, a imprensa no apenas se adapta compresso espao-temporal ps-moderna como

    tambm utiliza este mecanismo como ferramenta de manipulao da realidade. Dessa forma,

    tornou-se possvel associar o Manaco da Bicicleta imagem-smbolo da insegurana em

    Joinville no ano de 2000.

    A nsia pela agilidade leva, no caso do jornalismo, a outro atropelo ps-moderno:

    a troca da tica pela esttica. Em seu estudo sobre a Esttica do Grotesco, Sodr et Paiva:

    2002, p.38, recorrem a Jan Mukarovsky, um dos expoentes do Crculo Lingstico de Praga,

    para atestar que:

    A arte no naturalmente a nica portadora de funo esttica: qualquer fenmeno,qualquer fato, qualquer produto da atividade do homem podem tornar-se signo est-tico. O elemento esttico funciona assim como signo de comunicao abrindo-separa uma semntica do imaginrio coletivo e fazendo-se presente na ordem das apa-rncias fortes ou das formas sensveis que investem as relaes intersubjetivas noespao social.

    Casos como o do Manaco da Bicicleta demonstram que, no jornalismo atual, no

    h tempo para a investigao mais minuciosa e ento se apela para caminhos mais curtos tais

    como ouvir apenas as fontes oficiais, buscar o aval de autoridades competentes para discur-

    sos previamente engendrados, privilegiar uma nica verso do fato, recorrer a esteretipos e

    at divulgar um falso retrato falado.

    No ambiente voltil da ps-modernidade, onde a imagem ou a representao as-

    sumem papel mais importante do que os fatos, a tica cede espao para a esttica at mesmo

    em reas como o jornalismo, embora este ainda insista em ostentar a imagem de baluarte de

  • 40

    seriedade e respeito. Importa entregar a cada dia um exemplar repleto de belas fotografias, de

    diagramao atraente e de recortes curtos do cotidiano de uma realidade construda. Embora

    trabalhe com matria-prima da vida real, o jornalismo ps-moderno parece tratar as pessoas

    envolvidas em suas notcias como se fossem personagens de fico. de Harvey: 1998,

    p.262, a constatao:

    Toda essa indstria se especializa na acelerao do tempo de giro por meio da pro-duo e venda de imagens. Trata-se de uma indstria em que reputaes so feitas eperdidas da noite para o dia, onde o grande capital fala sem rodeios e onde h umfermento de criatividade intensa, muitas vezes individualizada, derramado no vastorecipiente da cultura de massa serializada e repetitiva.

    Como uma das engrenagens do perodo ps-moderno, o jornalismo tambm se

    preocupa mais com o significante do que com o significado, com o meio, mais do que com a

    mensagem, com os signos mais do que com as coisas que eles representam, com a esttica

    mais do que com a tica.

    Aparentemente, a tica ps-moderna campo da pluralidade ideolgica. Assim

    fosse, o jornalismo deveria tambm ser espao para a multiplicidade de vozes. Na realidade, o

    que o ps-modernismo faz quadricular, no sentido foucaultiano10, as vozes minoritrias,

    em maioria as informaes veiculadas. Ouve-se, por exemplo, com maior freqncia as vo-

    zes da polcia do que a das vtimas e acusados. Tanto verdade que o falso retrato falado do

    Manaco da Bicicleta foi divulgado como informao de fonte oficial e s foi desmentido

    porque o inocente lesado decidiu opinar. Isso prova que, embora o jornal possa dar espao

    opinio plural, no seu cotidiano, a maioria das fontes oficial.

    Os textos a seguir, extrados do jornal A Notcia, exemplificam a preparao de

    um cenrio. Trata-se de mais uma etapa na construo de novo simulacro, ou seja, para com-

    bater a onda de violncia em Joinville surge a reao das foras repressoras do crime. Em

    10 de outubro, dois dias depois da apario da primeira reportagem acerca do Manaco da

  • 41

    Bicicleta, a polcia divulga o primeiro retrato falado do estuprador, ainda sem utilizar a foto-

    grafia de Alosio Plocharski.

    As matrias sobre o Manaco da Bicicleta tornam-se freqentes, um caso para ser

    acompanhado dia a dia. Note-se que, alm de reforar a construo do personagem principal,

    transform-lo em smbolo da criminalidade joinvilense, os textos preparam terreno para a rea-

    o policial, uma resposta governamental sociedade.

    Indivduo tem estatura mediana, loiro, olhos claros e dentes separadosFigura 1 primeiro retrato falado do Manaco da Bicicleta

    A Notcia 10/10/2000

    Sai retrato falado de estuprador

    Sete jovens foram violentadas nos ltimos 40 dias

    (Arlei Zimmermann)

    Joinville - As polcias Civil e Militar de Joinville continuam as buscas ao

    manaco sexual, que, conforme registros, j fez sete vtimas, todas da classe mdia

    10 Cf FOUCAULT, Michel. A Microfsica do Poder. 12 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

  • 42

    alta. Graas reportagem do jornal A Notcia, publicada no sbado, a polcia j re-

    cebeu telefonemas dando pistas sobre o tarado. O retrato falado do manaco, um

    homem de estatura mediana, loiro, olhos claros e dentes separados, aproximada-

    mente 24 anos, foi feito no sbado por um policial da Deic e j se encontra dispo-

    sio das autoridades.

    Das sete vtimas, at o momento, apenas quatro delas fizeram ocorrnci-

    as na Delegacia da Mulher, da Criana e do Adolescente. Os outros registros foram

    feitos no Centro de Operaes Militares (Copom). O caso mais recente aconteceu na

    noite de quinta-feira, quando o manaco violentou sexualmente uma menina de ape-

    nas 14 anos. Ela estava caminhando nas proximidades da Prefeitura antiga, no bair-

    ro Amrica, quase centro, quando foi abordada pelo suspeito que estava armado e

    de bicicleta.

    Com a arma em punho, o tarado levou a menor at um matagal, nas pro-

    ximidades do Servio Social do Comrcio (Sesc), onde a estuprou. Neste mesmo

    local ele j havia violentado outras mulheres. Conforme a polcia apurou, o suspeito

    aborda as vtimas, que so de classe mdia alta, fala que um assalto e manda

    elas ficarem caladas, sob a mira de um revlver.

    Depois ele pega as bolsas delas e procura os documentos. quando faz

    ameaas de morte s vtimas, caso elas levem ao conhecimento da polcia. Como se

    no bastasse, manda as vtimas segurarem a mo dele, como se fossem suas na-

    moradas. Empurrando a bicicleta, leva as mulheres at um matagal, nas proximida-

    des do Sesc, na avenida Beira-Rio, ou atrs do Ginsio Ivan Rodrigues, ou at

    mesmo nos matos prximo Expoville, onde as violenta sexualmente.

    Das sete vtimas abordadas por ele, uma delas conseguiu fugir. O local predileto do

    manaco atacar no bairro Amrica, prximo a prefeitura antiga. Geralmente ele

  • 43

    est de agasalho, bon e sempre de bicicleta. s vezes usa uniforme de alguma

    empresa, como se fosse um guardap.

    A matria publicada no dia 10 de outubro de 2000 d continuidade ao texto de

    apario do manaco, publicada no dia 7. Mais uma vez fica evidenciado que os estupros j

    vinham ocorrendo h mais tempo 40 dias, reconhece o texto jornalstico mas a cobertura

    miditica sobre o caso s inicia em outubro, justamente no momento em que a cidade atraves-

    sa uma crise na segurana pblica. Alm do retrato falado e de uma nova vtima, a matria

    no traz mais novidades sobre o caso, mas cumpre a funo de reforar as caractersticas do

    personagem central da trama, sua preferncia por mulheres de classe mdia-alta e sua atuao

    no centro da cidade, fato que intensifica o sentimento de insegurana da populao. A expres-

    so sempre de bicicleta justifica a alcunha do estuprador.

    J no primeiro pargrafo, o jornal chama para si a responsabilidade de colaborar

    com a polcia, de ser participante ativo na caada ao manaco, atravs da frase Graas re-

    portagem do jornal A Notcia, publicada no sbado, a polcia j recebeu telefonemas dando

    pistas sobre o tarado. Com tal atitude, o veculo trabalha a sua prpria imagem de meio de

    utilidade pblica e de exerccio do poder da comunicao junto comunidade.

    Observe-se tambm que a unio das polcias civil e militar na caada ao manaco

    fica evidente na primeira frase do texto, preparando cenrio ideal para o surgimento da Ope-

    rao Norte Seguro que viria em novembro.

    No dia seguinte, o assunto ganha continuidade atravs de solicitao da polcia

    para que a populao colabore com as investigaes. Como fato novo, o texto traz apenas a

    deteno de quatro suspeitos liberados por no serem reconhecidos pelas vtimas. O restante

    da matria mera instigao aos leitores para que fiquem em alerta.

  • 44

    A Notcia 11/10/00

    Vtimas de manaco no reconhecem 4 suspeitos

    Joinville - Quatro suspeitos de serem o manaco sexual que anda aterro-

    rizando a comunidade de Joinville foram detidos pela Polcia Militar e liberados por

    no serem reconhecidos pelas vtimas. Segundo o major Calixto Fachini, do 8 Ba-

    talho da Polcia Militar, de extrema importncia que a populao continue dando

    informaes sobre pistas do tarado da bicicleta. Conforme registro policial, sete

    mulheres de classe mdia alta j foram vtimas do suspeito.

    Qualquer informao, conforme o major, podem ser repassadas pelo te-

    lefone disque-denncia 1380, ou para o 190, que do Centro de Operaes Milita-

    res (Copom). "Enquanto no encontrarmos este monstro no vamos parar com

    as investigaes", revela Fachini. Segundo ele, os suspeitos detidos para averi-

    guao tinham caractersticas do manaco, porm, como no foram reconhecidos

    pelas vtimas, foram liberados.

    Desde sbado, quando o jornal A Notcia divulgou a matria, dando inclu-

    sive as caractersticas e os locais em que o manaco da bicicleta anda agindo, tanto

    a Polcia Civil como a Polcia Militar esto recebendo telefonemas com pistas do ta-

    rado. Por causa da divulgao dos fatos, a comunidade est alerta, principalmente

    as mulheres que estudam noite. Na Associao Catarinense de Ensino (ACE) e no

    Colgio Bom Jesus, os estudantes fixaram o retrato falado do manaco no interior

    dos dois estabelecimentos de ensino.

    O suspeito, conforme retrato falado feito por um policial da Deic, tem em

    torno de 24 anos, estatura mediana, loiro, olhos claros e tem dentes separados.

    Geralmente ele usa um bon e anda sempre com uma bicicleta azul de marcha. Ele

    costuma atacar as vtimas nas proximidades da Prefeitura antiga, na rua Max Colin,

  • 45

    bairro Amrica, quase centro. Armado com um revlver, o tarado ameaa as vtimas

    e as carrega para locais estratgicos, sem movimento, como num matagal prximo

    ao Servio Social do Comrcio (Sesc), fundos da Expoville e fundos do Ginsio Ivan

    Rodrigues. Das sete vtimas, apenas uma no foi estuprada porque conseguiu fugir.

    A locuo anda aterrorizando, logo no incio do texto, dita o tom do objetivo da

    notcia: aumentar as atenes da populao sobre o manaco. A deteno dos quatro suspeitos

    esboa a reao policial. A fala da autoridade competente, no caso o major Calixto Fachini,

    divide a responsabilidade pela segurana com a comunidade, como evidenciam os trechos:

    de extrema importncia que a populao continue dando informaes sobre pistas e Qual-

    quer informao, conforme o major, podem (sic) ser repassadas pelo telefone disque-denncia

    1380, ou para o 190, que do Centro de Operaes Militares (Copom). A citao de Fachini

    tambm serve para enfatizar a ao policial, ou seja, para responder s cobranas da comuni-

    dade: "Enquanto no encontrarmos este monstro no vamos parar com as investigaes".

    Prepara-se o bode expiatrio. De repente, a soluo para a onda de insegurana joinvilense

    parece estar resumida a uma ao: prender o Manaco da Bicicleta. Ao utilizar a expresso

    monstro para referir-se ao manaco, o discurso do major contribui para a mitificao do

    estuprador.

    Novamente, o jornal aproveita a matria para firmar-se como guardio dos inte-

    resses comunitrios: Desde sbado, quando o jornal A Notcia divulgou a matria, dando

    inclusive as caractersticas e os locais em que o manaco da bicicleta anda agindo, tanto a Po-

    lcia Civil como a Polcia Militar esto recebendo telefonemas com pistas do tarado. Por causa

    da divulgao dos fatos, a comunidade est alerta.

    Casos como o do Manaco da Bicicleta transformam-se em novelas policiais no

    cotidiano do jornalismo. O mesmo ocorre com escndalos polticos e at com dramas pessoais

    de pessoas famosas, como jogadores de futebol, por exemplo. As mitificaes dos persona-

  • 46

    gens envolvidos alimentam as sutes que se sucedem dia aps dia at que um novo assunto

    possa substituir com a mesma presteza o espao privilegiado da editoria. No dia 12 de outu-

    bro, A Notcia divulga novo caso de estupro em Joinville. No h qualquer relao com o Ma-

    naco da Bicicleta, mas o fato serve de pretexto para que o personagem permanea em evi-

    dncia. O texto no informa qualquer descrio do novo estuprador, apenas diz que estava em

    um Fiat Uno azul. Em contrapartida, refora a caada dos policiais ao Manaco da Bicicleta,

    repete as caractersticas do mesmo e volta a apelar para que a populao fornea pistas sobre

    o tarado, da bicicleta, no do Fiat Uno.

    A Notcia 12/10/00

    Mais uma jovem estuprada em Joinville

    Joinville - Mais um estupro ocorrido por volta das 21 horas, na rua Cara-

    muru, lateral da BR-101, bairro Nova Braslia, em Joinville, est sendo investigado

    pela polcia. Desta vez a vtima foi uma jovem de 26 anos. O suspeito do crime, de

    acordo com o major Calixto Fachini, do 8 Batalho da Polcia Militar no tem nada

    a ver com o manaco da bicicleta. Segundo relatou a vtima no posto da Polcia

    Militar do Nova Braslia, ela caminhava pela rua Caramuru, entre 20 e 21 horas,

    quando foi abordada por um homem tripulando um Fiat Uno azul. Com a arma em

    punho, ele a obrigou a entrar no veculo e rumou em direo BR-101, onde vio-

    lentou sexualmente a vtima.

    Depois do estupro, o desconhecido abandonou a jovem nas proximidades

    do Motel Granville, na BR-101. No posto policial, ao ver o retrato falado do manaco

    da bicicleta, a vtima no o reconheceu. "A princpio, ela disse que era parecido, de-

    pois mudou de idia", disse um policial do posto. De acordo com ele, encaminhou a

    jovem Delegacia da Mulher, da Criana e do Adolescente, onde foi feito o registro.

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    Enquanto isto, policiais militares e civis continuam caa do mana-

    co da bicicleta, que loiro, olhos claros, estatura mediana e tem os dentes separa-

    dos. At o momento ele suspeito de ter atacado sete vtimas.

    Se algum tiver alguma informao sobre pista do tarado, poder telefo-

    nar para o disque-denncia 1380, ou para o 190 da Polcia Militar. (Arlei Zimmer-

    mann)

    Sem ganchos11 novos que pudessem estimular nova sute sobre estupros, A Not-

    cia divulga, em 13 de outubro, matria acerca da unio das polcias civil e militar para conter

    a criminalidade em Joinville. Na verdade, as duas esferas policiais, como demonstram as ma-

    trias anteriores, j vinham trabalhando juntas no caso.

    A Notcia 13/10/00

    Polcia se une no Norte para conter criminalidade

    Joinville - Toda polcia de Joinville est mobilizada para tentar conter a

    onda de crimes que vem atingindo a maior cidade do Estado. No ltimo ms vri-

    os assaltos a caixa eletrnicos, homicdios e at o aparecimento de um manaco

    sexual, que j teria estuprado sete mulheres, est deixando a cpula da Segurana

    Pblica em estado de alerta. A delegada regional, Marilisa Boehm, encontra no de-

    semprego uma razo para o aumento da criminalidade.

    J esto na cidade policiais da Diretoria de Investigaes Criminais

    (Deic) de Florianpolis. Eles estariam investigando vrios crimes. A delegada regi-

    onal, porm, no quis antecipar qual (sic) setor os policiais esto trabalhando. "Es-

    11 Fato novo utilizado para iniciar uma matria.

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    tamos com o apoio do Deic e da Dop (Diviso de Operaes Policiais) de Joinville

    numa operao conjunta", limita-se a dizer.

    Assaltos ousados, crimes misteriosos e um homem de alta periculosi-

    dade amedrontando as mulheres da cidade. Esse o atual retrato de Joinville. O

    ms passado j est sendo chamado de "setembro negro" para a polcia civil e

    militar do municpio. Uma reunio entre os dois rgo (sic) est colocando em prti-

    ca o que j deveria ter sido feito h muito tempo. "Estamos unidos para combater

    a criminalidade. Polcia Civil e Militar esto nas ruas e todas delegacias esto inte-

    gradas", diz a delegada.

    De 13 de setembro a 9 de outubro aconteceram em Joinville seis homic-

    dios e seis furtos de caixa eletrnicos. As investigaes sobre as mortes so rega-

    das de mistrios e muitas dvidas. A maior delas sobre a morte do professor e

    contabilista Vilson Bibow, 40, encontrado em sua casa, no dia 13 de setembro, com

    um tiro na cabea. Segundo laudo do Instituto Mdico Legal (IML), Bibow levou um

    tiro queima-roupa de revlver calibre 38. Um ms depois do crime no h novida-

    des sobre a autoria do disparo.

    Alm do crime do professor outros cinco ainda esto sem respostas. Os

    trs corpos encontrados perto do lixo municipal com sinais claros de execuo con-

    tinua (sic) um mistrio. "Vrias delegacias esto trabalhando nos casos e breve-

    mente teremos uma resposta concreta", diz Marilisa Boehm.

    O furto de caixas eletrnicos tambm preocupa. A ousadia dos ladres

    tanta que na madrugada da ltima segunda-feira seis homens encapuzados invadi-

    ram o prdio do frum, na avenida Beira-rio, renderam um policial militar e furtaram o

    caixa eletrnico. A mquina foi encontrada na mesma manh, no bairro Morro do

    Meio, com o cofre arrombado.

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    No entanto, nada preocupa mais a polcia de Joinville do que u