Manifesto Contra o Trabalho - Krisis

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1999

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MANIFESTO CONTRA O TRABALHO (1999)
(ED. ANTIGONA, Lisboa, 2003 Trad. do alemo de Jos Paulo Vaz, revista por Jos M. Justo)I. A DITADURA DO TRABALHO MORTOCada um tem que poder viver do seu trabalho, reza o princpio em vigor. Poder viver , portanto, algo que est condicionado pelo trabalho, e no h direito vida onde esta condio no estiver preenchida.Johann Gottlieb Fichte
Fundamentos do Direito Natural segundo os Princpios da Doutrina da Cincia, 1797.Um cadver domina a sociedade o cadver do trabalho. Todas as potncias do globo esto coligadas em defesa desta dominao: o Papa e o Banco Mundial, Tony Blair e Jrg Haider, sindicatos e empresrios, ecologistas alemes e socialistas franceses. Todos eles s tm uma palavra na boca: trabalho, trabalho, trabalho.Quem ainda no desaprendeu de pensar reconhece sem dificuldade a inconsistncia desta posio. Porque a sociedade dominada pelo trabalho no vive uma crise transitria, antes est chegada ao seu limite ltimo. Na sequncia da revoluo microelectrnica, a produo de riqueza desligou-se cada vez mais da utilizao da fora de trabalho humano numa escala at h poucas dcadas apenas imaginvel na fico cientfica. Ningum pode afirmar com seriedade que este processo voltar a parar, e muito menos que possa ser invertido. A venda dessa mercadoria que a fora de trabalho ser no sculo XXI to promissora como foi no sculo XX a venda de diligncias. Porm, nesta sociedade, quem no consegue vender a sua fora de trabalho torna-se suprfluo e atirado para a lixeira social.Quem no trabalha, no come! Este princpio cnico continua em vigor, hoje mais do que nunca, precisamente porque est a tornar-se irremediavelmente obsoleto. Trata-se de um absurdo: a sociedade, nunca como agora, que o trabalho se tornou suprfluo, se apresentou tanto como uma sociedade organizada em torno do trabalho. Precisamente no momento em que est a morrer, o trabalho revela-se uma potncia totalitria que no tolera nenhum outro deus junto de si. Dentro da vida psquica, dentro dos poros do dia a dia, o trabalho determina o pensamento e os comportamentos. E ningum poupa despesas para prolongar artificialmente a vida desse dolo, o trabalho. O grito paranico dos que clamam por emprego justifica at que se aumente a destruio dos recursos naturais, com resultados h muito conhecidos. Os ltimos obstculos total comercializao de todas as relaes sociais podem ser postos de lado, sem qualquer crtica, na mira de meia dzia de miserveis postos de trabalho. E a ideia de que melhor ter um trabalho qualquer do que no ter nenhum trabalho tornou-se uma profisso de f universalmente exigida.Quanto mais se torna claro que a sociedade do trabalho chegou definitivamente ao fim, mais violentamente se recalca este facto na conscincia pblica. Por diferentes que possam ser, porventura, os mtodos de tal recalca mento, tm um denominador comum: o facto, mundialmente constatvel, de o trabalho se revelar irracional enquanto fim em si mesmo, de ser algo que se tornou a si prprio obsoleto, transformado, com a obstinao tpica de um sistema delirante, em fracasso pessoal ou colectivo dos indivduos, das empresas ou de certas localizaes geogrficas. As limitaes, que objectivamente so do prprio trabalho, devem passar por problema subjectivo dos excludos.Enquanto para uns o desemprego se deve a reivindicaes exageradas, falta de disponibilidade ou de flexibilidade, outros acusam os seus gestores e polticos de incompetncia, de corrupo, de ganncia ou de traio a determinadas regies. Mas, ao fim e ao cabo, toda essa gente est de acordo com o ex-presidente da Alemanha, Roman Herzog: seria preciso um abano em todo o pas, exactamente como se o problema fosse idntico falta de motivao de uma equipa de futebol ou de uma seita poltica. Todos devem, de uma forma ou de outra, agarrar-se ao remo com fora, mesmo que o remo tenha desaparecido h muito, e todos devem, de uma forma ou de outra, pr mos obra, mesmo que j no haja nada para fazer (ou s coisas sem sentido). O subtexto desta mensagem triste inequvoco: aquele que, apesar da sua aplicao, no obtiver as boas graas do dolo trabalho responsvel por essa situao, e no tem que haver problemas de conscincia em abat-lo ao activo ou p-lo na rua.E esta mesma lei, que dita o sacrifcio do homem, vigora escala mundial. Uns aps outros, pases inteiros vo sendo triturados pela engrenagem do totalitarismo econmico, comprovando sempre o mesmo: pecaram contra as chamadas leis do mercado. Quem no se adaptar incondicionalmente e sem reservas ao curso cego da concorrncia total ser punido pela lgica da rentabilidade. Os que hoje so promissores sero a sucata econmica de amanh. Mas os psicticos econmicos dominantes nem por isso se deixam abalar minimamente na sua bizarra explicao do mundo. Trs quartos da populao mundial foram j declarados, em maior ou menor medida, lixo social. As localizaes privilegiadas desaparecem em catadupa. Depois do desastre dos pases em vias de desenvolvimento, do Sul, e depois dessa seco da sociedade mundial do trabalho que era o capitalismo de Estado, no Leste, so os alunos exemplares da economia de mercado do Sudeste asitico que desaparecem no inferno das falncias. E tambm na Europa alastra h muito o pnico social. Mas, na poltica e na gesto, os respectivos cavaleiros-da-triste-figura limitam-se a prosseguir, cada vez com mais raiva, a sua cruzada em nome do dolo trabalho.II. A SOCIEDADE DO APARTHEID NEOLIBERALO impostor tinha destrudo o trabalho, e ainda levara consigo o salrio de um trabalhador; agora h-de trabalhar sem salrio, mas, mesmo na masmorra, h-de pressentir a bno do sucesso e do ganho []. Pelo trabalho forado, dever ser educado para o trabalho moral, enquanto actividade pessoal e livre.Wilhelm Heinrich Riehl
O Trabalho Alemo, 1861.Uma sociedade centrada na abstraco irracional do trabalho desenvolve necessariamente a tendncia para o apartheid social, se a venda eficaz dessa mercadoria que a fora de trabalho deixa de ser a regra para passar a ser a excepo. H muito que esta lgica secretamente aceite e at apoiada activamente pela totalidade das faces integrantes do imenso campo do trabalho, que abrange todas as tendncias polticas. J no discutem a questo de saber se cada vez maiores camadas da populao so empurradas para a marginalizao e excludas de qualquer participao social, mas apenas como impor esta seleco.A faco neoliberal entrega o trabalho sujo, social-darwinista, mo invisvel do mercado. Neste sentido, as estruturas do Estado social so desmanteladas de modo a marginalizar o mais discretamente possvel todos aqueles que j no conseguem participar na concorrncia. S reconhecido como ser humano quem pertencer confraria cnica dos vencedores da globalizao. Todos os recursos do planeta so naturalmente usurpados pela mquina autotlica do capitalismo. Quando j no so aplicveis de forma rentvel para esse fim, so deixados de pousio, mesmo que ao lado populaes inteiras morram de fome.Para tratar do lixo humano indesejvel h a polcia, as seitas religiosas redentoras, a Mafia e a sopa dos pobres. Nos Estados Unidos e na maior parte dos Estados do centro da Europa h mais gente na priso do que em qualquer ditadura militar mediana. Na Amrica Latina so diariamente assassinados pelos esquadres da morte da economia de mercado mais meninos de rua e outros pobres do que oposicionistas nos tempos da mais negra represso poltica. Aos excludos j s resta uma funo social: a de servirem de exemplo dissuasor. A sua desgraa dever servir para espicaar todos aqueles que ainda se encontram na corrida para a terra prometida da sociedade do trabalho a lutar por um lugar, ainda que entre os ltimos, e para manter a prpria multido dos perdedores num movimento febril, de modo a que no lhes ocorra a ideia de se revoltarem contra as exigncias desavergonhadas do sistema.Mas, mesmo obrigando a maior parte dos indivduos a pagar o preo da auto-renncia, o admirvel mundo novo da economia de mercado totalitria reserva-lhes um lugar de homens-sombra numa economia-sombra. S lhes resta servir humildemente os mais bem pagos ganhadores da globalizao, desempenhando o papel de mo-de-obra barata e de escravos democrticos da sociedade de prestao de servios. Os novos trabalhadores pobres esto autorizados a limpar os sapatos aos ltimos homens de negcios da moribunda sociedade de trabalho, a vender-lhes hambrgueres contaminados ou a vigiar os seus centros comerciais. Os que tiverem deixado o crebro no vestirio podem ainda sonhar com a possibilidade de se tornarem milionrios na prestao de servios.Este mundo de terror j uma realidade para milhes de seres humanos nos pases anglo-saxnicos, para j no falar no Terceiro Mundo e na Europa de Leste; quanto Eurolndia, mostra-se decidida a recuperar rapidamente o tempo perdido. A imprensa econmica h muito que deixou de fazer segredo da perspectiva que idealiza para o futuro do trabalho: as crianas do terceiro mundo, que limpam os pra-brisas dos automveis nos cruzamentos poludos, so o luminoso exemplo de iniciativa empresarial que deve orientar, to solicitamente quanto possvel, os desempregados da nossa sociedade, supostamente carenciada de prestao de servios. O modelo do futuro o indivduo na qualidade de empresrio da sua fora de trabalho e da sua proteco social, escreve a Comisso para as Questes do Futuro, dos Estados Livres da Baviera e da Saxnia. E prossegue: A procura de servios indiferenciados, directamente prestados a um particular, tanto maior quanto menos custarem os servios, ou seja, quanto menos ganharem os prestadores de servios. Num mundo em que as pessoas ainda tivessem respeito por si prprias, uma tal afirmao provocaria necessariamente uma onda de revolta social. Mas, num mundo de animais de trabalho domesticados, suscita apenas um incuo encolher de ombros.III. O NEOAPARTHEID DO ESTADO SOCIALQualquer trabalho melhor do que nenhum.Bill Clinton, 1998.Nenhum trabalho to duro como no ter trabalho.Tema de uma exposio de cartazes do Organismo Federal de Coordenao das Iniciativas dos Desempregados da Alemanha, 1998.O trabalho cvico deve ser recompensado, mas no simplesmente remunerado []. Quem presta trabalho cvico libertase tambm do estigma do desemprego e da assistncia social.Ulrich Beck, A Alma da Democracia, 1997.As faces antineoliberais do campo de trabalho, que a sociedade no seu conjunto, podem porventura no gostar muito desta perspectiva, mas so precisamente aquelas que mais fervorosamente defendem a ideia de que um homem sem trabalho no um homem. Nostalgicamente agarradas concepo fordista do ps-guerra, assente no trabalho de massas, pensam apenas em ressuscitar esses tempos idos da sociedade do trabalho. O Estado deveria voltar a encarregar-se daquilo que, em dado momento, o mercado no capaz de fazer. A suposta normalidade da sociedade do trabalho deveria ser estimulada atravs de programas de emprego, da obrigatoriedade de trabalho comunitrio para os beneficirios do rendimento social, de subsdios relocalizao de empresas, de endividamento pblico e de outras medidas polticas. Esta estatizao do trabalho, uma espcie de requentamento pouco convicto, no tem a mnima hiptese de xito; no entanto continua a ser o ponto de referncia ideolgico para largas camadas da populao ameaadas pela derrocada social. E a prtica poltica da decorrente, precisamente na ausncia de esperana que a caracteriza, mostra ser tudo menos emancipatria.A transformao ideolgica do trabalho escasso em primeiro direito do cidado de um Estado leva consequentemente a excluir todos os que no sejam cidados desse Estado. A lgica de seleco social no , pois, posta em causa, mas apenas definida de outra forma: a luta individual pela sobrevivncia deve ser mitigada por critrios de natureza tnica e nacional. A escravatura nacional para os nacionais, o grito que sai da alma do povo que, no amor perverso pelo trabalho, se reencontra como comunidade nacional. O populismo de direita no faz segredo desta concluso. A sua crtica sociedade da concorrncia apenas visa a limpeza tnica das zonas de retraco da riqueza capitalista.Pelo contrrio, o nacionalismo mais moderado, de inspirao social-democrata ou verde, pretende equiparar os imigrantes mais antigos populao autctone, e inclusivamente fazer deles cidados nacionais, mediante atestado de bom comportamento servil e de carcter garantidamente inofensivo. Porm, deste modo, a crescente excluso dos refugiados do Leste e do Sul pode ser mais facilmente legitimada em termos populistas e posta em prtica de maneira mais discreta naturalmente sempre escudada numa torrente de palavras de humanidade e civilizao. A caa ao homem movida aos ilegais, acusados de pretenderem apoderar-se dos empregos nacionais, no deve deixar um rasto sujo de fogo e sangue em solo ptrio. Para o efeito existem o servio de fronteiras, a polcia e os pases-tampo do reino de Schengen, que tudo resolvem segundo a lei e o direito, de preferncia longe das cmaras de televiso.A simulao estatal do trabalho j , em si, violenta e repressiva. Ela serve a vontade incondicional de prolongar por todos os meios disponveis a dominao exercida pelo dolo do trabalho, mesmo para alm da sua morte. Este fanatismo burocrtico do trabalho no permite que os excludos, os sem emprego e sem oportunidades, ou aqueles que encontram boas razes para se recusarem a trabalhar, possam ficar em paz nos ltimos nichos, j de si drasticamente reduzidos, do Estado social em desmantelamento. So arrastados por assistentes sociais e por funcionrios dos servios de emprego para a sala de interrogatrios do Estado e obrigados a ajoelhar-se publicamente diante do trono do cadver dominante.Se em tribunal vigora normalmente o princpio de que na dvida a deciso deve favorecer o ru, aqui inverte-se o nus da prova. Os excludos, se no futuro no quiserem viver do ar ou da caridade crist, devem aceitar qualquer trabalho, por mais sujo ou escravizante, ou um qualquer programa de ocupao, por mais absurdo, demonstrando assim a sua disponibilidade incondicional para o trabalho. Se aquilo que lhes cabe fazer no tem seno um longnquo sentido, ou releva do mais puro absurdo, perfeitamente indiferente. S preciso que continuem em movimento perptuo, para que nunca esqueam a lei a que a sua existncia tem de obedecer.Noutro tempo, trabalhava-se para ganhar dinheiro. Hoje, o Estado no poupa despesas para que centenas de milhares de pessoas simulem um trabalho inexistente em estranhos ateliers de formao ou em empresas ocupacionais, preparando-se para um posto de trabalho regular que nunca conseguiro. Inventam-se constantemente novas medidas, cada vez mais estpidas, apenas para garantir a aparncia de que a vazia rotina social pode permanecer em movimento at eternidade. Quanto mais destituda de sentido a obrigatoriedade do trabalho, mais brutalmente haver que martelar no crebro das pessoas o princpio de que no pode ganhar-se o po de outra maneira.Nesta perspectiva, o New Labour e os seus imitadores em todo o mundo mostram-se perfeitamente compatveis com o modelo neoliberal da seleco social. Com a simulao de emprego e com a fico enganosa de um futuro positivo para a sociedade de trabalho, cria-se a legitimidade moral para tratar de forma ainda mais dura os desempregados e os que se recusam a trabalhar. Ao mesmo tempo, o trabalho obrigatrio imposto pelo Estado, os subsdios ao salrio e o chamado trabalho cvico reduzem cada vez mais os custos com a mo-de-obra. Fomenta-se assim em grande escala todo o prspero sector que vive dos baixos salrios e do trabalho de misria.A chamada poltica activa de trabalho, segundo o modelo do New Labour, no poupa sequer os doentes crnicos ou as mes solteiras com filhos pequenos. Quem recebe apoio estatal s consegue libertar-se do estrangulamento da burocracia quando o seu nome estiver no jardim das tabuletas. O nico sentido de toda esta impertinncia consiste em levar o maior nmero possvel de pessoas a no apresentar qualquer pretenso ao Estado e em exibir perante os excludos instrumentos de tortura suficientemente monstruosos para que qualquer trabalho de misria lhes parea comparativamente mais aceitvel.Oficialmente, o Estado paternalista apenas brande o chicote por amor e com a inteno de educar severamente aqueles seus filhos que so considerados preguiosos, para que tenham um futuro melhor. Mas, na realidade, estas medidas pedaggicas tm como nico e exclusivo fim afastar os clientes da porta a pontap. Que outro sentido poderia ter uma medida como a de mandar desempregados para a colheita dos espargos? Nos campos, esses desempregados servem para afastar os trabalhadores sazonais polacos, que alis aceitam salrios de misria apenas porque, de regresso ao seu pas, o cmbio faz com que tais salrios se transformem numa quantia aceitvel. Mas a medida posta em prtica no ajuda os trabalhadores forados, nem lhes abre qualquer perspectiva profissional. E, para os produtores de espargos, os licenciados e operrios especializados, contrafeitos, que lhes cabem em sorte tambm no so mais do que um estorvo. Contudo, no momento em que, noite, aps doze horas de costas curvadas sobre o solo ptrio, o desespero fizer com que a disparatada ideia de abrir uma venda ambulante de cachorros parea mais agradvel, ento o auxlio flexibilizao ter produzido o seu desejado efeito neobritnico.IV. O EXACERBAMENTO DA RELIGIO DO TRABALHO E O DESMENTIDO DO RESPECTIVO DOGMAO trabalho, por mais baixo que seja, por mais que tenha em vista apenas o dinheiro, est sempre em relao com a natureza. O simples desejo de executar um trabalho conduz sempre mais e mais verdade, s leis e preceitos da natureza, que so a verdade.Thomas Carlyle
Trabalhar e no Desesperar, 1843.O novo fanatismo do trabalho, com o qual esta sociedade reage morte do seu dolo, a consequncia lgica e o estdio final de uma longa histria. Desde a poca da Reforma, todas as foras dirigentes da modernizao ocidental pregaram a santidade do trabalho. Sobretudo nos ltimos cento e cinquenta anos, todas as teorias sociais e correntes polticas foram dominadas pela ideia do trabalho. Socialistas e conservadores, democratas e fascistas, combateram entre si de toda a maneira e feitio, mas apesar do dio mortal que votaram uns aos outros, sempre sacrificaram em comum ao dolo do trabalho. LOisif ira loger ailleurs (O ocioso ir viver para outro lado), dizia o texto do hino da Internacional dos trabalhadores o eco macabro dessas palavras foi a divisa Arbeit macht frei (O trabalho liberta), exibida por cima do porto de Auschwitz. As democracias pluralistas do ps-guerra fizeram todas as suas juras em nome da ditadura perptua do trabalho. E at a Constituio da muito catlica Baviera aconselha os seus cidados na mais pura tradio luterana: O trabalho a fonte do bem-estar do Povo e goza de especial proteco por parte do Estado. No final do sculo XX todas as contradies ideolgicas se esbateram. Apenas ficou o dogma comum e impiedoso segundo o qual o trabalho o destino natural do Homem.Hoje, a prpria realidade da sociedade do trabalho que desmente este dogma. Os sacerdotes da religio do trabalho sempre pregaram que o homem, segundo a sua suposta natureza, seria um animal laborans. S se tornaria ser humano na medida em que, como fez Prometeu, submetesse a matria natural sua vontade, realizando-se a si mesmo nos seus produtos. Este mito do conquistador do mundo, do demiurgo que escuta uma vocao, sempre foi, alis, um autntico escrnio em relao ao carcter do processo moderno de trabalho, embora pudesse ter ainda algum substrato real na poca dos capitalistas-inventores, do tipo Siemens ou Edison, e dos operrios qualificados que havia entre o seu pessoal. Hoje, essa pose tornou-se completamente absurda.Quem hoje em dia perguntar a si prprio qual o contedo, o sentido que continuar a funcionar a qualquer preo, e ponto final. Quanto descoberta do sentido, para isso existem os departamentos de publicidade, exrcitos inteiros de animadores e de psiclogas de empresa, os consultores de imagem e as dealers da droga. Quando se papagueia interminavelmente o lema da motivao e da criatividade, certo e sabido que de uma e da outra j nada sobra, a no ser enquanto auto-engano. por isso que hoje as capacidades de auto-sugesto, de autopromoo e de simulao de competncias se contam entre as virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das professoras e dos arrumadores de automveis.Tambm a afirmao de que o trabalho seria uma necessidade eterna, imposta ao homem pela natureza, foi completamente posta a ridculo pela crise da sociedade do trabalho. H sculos que vem sendo pregado o princpio da inevitvel adorao do dolo trabalho, quanto mais no fosse porque as necessidades no poderiam ser satisfeitas por si mesmas, sem o suor do labor humano. E a finalidade de toda a organizao do trabalho seria, obviamente, a satisfao dessas necessidades. Se isto fosse verdade, a crtica do trabalho seria to pertinente como a crtica da fora da gravidade. Mas, nesse caso, como poderia uma lei natural, que o fosse realmente, entrar em crise ou inclusivamente desaparecer? Os porta-vozes do campo de trabalho social, desde a senhora neoliberal que come caviar e manaca pela eficincia, at ao sindicalista tipo barriga-de-cerveja, quando invocam o carcter pseudo natural do trabalho, entram em crise de carncia argumentativa. Ou, como querero eles explicar-nos que hoje em dia trs quartos da humanidade se estejam a afundar na necessidade e na misria, s porque o sistema da sociedade do trabalho j no pode utilizar os seus prstimos?J no a maldio do Antigo Testamento comers o teu po com o suor do teu rosto que pesa sobre os excludos, mas uma nova e implacvel condenao: tu no comers, porque o teu suor suprfluo e invendvel. E ser isto uma lei natural? No seno um princpio social irracional, que surge como coero natural apenas porque, ao longo dos sculos, destruiu ou submeteu a si todas as outras formas de relao social, impondo-se de modo absoluto. a lei natural de uma sociedade que se considera profundamente racional, mas que, na verdade, apenas segue a racionalidade finalista do seu dolo, o trabalho, dispondo-se mesmo a sacrificar-lhe, a ele e respectiva objectividade coerciva, os ltimos resqucios da sua humanidade.V. O TRABALHO UM PRINCPIO DE COERO SOCIALO trabalhador, portanto, s se sente em si fora do trabalho; no trabalho sentese fora de si. S est sua vontade quando no trabalha, quando trabalha no est no seu domnio. Assim, o seu trabalho no voluntrio, mas imposto; trabalho forado. No constitui a satisfao de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. A estranheza do trabalho ressalta claramente do facto de se fugir dele como da peste, logo que no exista nenhuma coero material ou de outro tipo.Karl Marx
Manuscritos Econmico-Filosficos, 1844.No h, em rigor, qualquer identidade entre o trabalho e o facto de os homens transformarem a natureza e se relacionarem uns com os outros em determinadas actividades. Enquanto existirem seres humanos, eles ho-de construir casas, fabricar roupas, produzir alimentos e muitas outras coisas, ho-de educar os filhos, escrever livros, discutir assuntos, construir jardins, compor msica e tanto mais. Esta uma verdade banal e evidente. O que no evidente que a actividade humana em si, o puro dispndio de fora de trabalho, sem que se leve em considerao o respectivo contedo e independentemente das necessidades e da vontade dos envolvidos, se torne num princpio abstracto que domina as relaes sociais.Nas antigas sociedades agrrias havia todas as formas possveis de dominao e de dependncia pessoal, mas no existia uma ditadura do trabalho, enquanto abstraco. certo que as actividades levadas a cabo na transformao da natureza e nas relaes sociais no eram de modo algum autodeterminadas, mas to-pouco estavam na dependncia de uma ideia abstracta de dispndio de fora de trabalho; pelo contrrio, tais actividades encontravam-se enquadradas em complexos dispositivos de normas, configuradas por preceitos religiosos, tradies sociais e culturais, e estabelecendo obrigaes recprocas. Cada actividade tinha o seu tempo e o seu lugar prprios; no existia uma forma geral e abstracta de actividade.S o moderno sistema de produo de mercadorias, com a sua finalidade autotlica de transformao permanente de energia humana em dinheiro, veio criar esse domnio particular, apartado de todas as outras relaes sociais e abstrado de qualquer contedo, que leva o nome de esfera do trabalho a esfera da actividade no autnoma, incondicional, no relacional, robotizante, separada do restante contexto social e obedecendo a uma abstracta racionalidade finalista de economia empresarial, independente das necessidades. Nesta esfera, separada da vida, o tempo deixa de ser tempo vivido e vivenciado, torna-se simples matria-prima que tem de ser optimizada: tempo dinheiro. Cada segundo contabilizado, cada ida casa-de-banho um escndalo, cada conversa um crime contra a finalidade autonomizada da produo. No local de trabalho, apenas pode ser gasta energia abstracta. A vida fica l fora ou porventura em parte nenhuma, porque a cadncia do trabalho rege interiormente todas as coisas. At as crianas so domesticadas pelo relgio, para que um dia possam ser eficientes. As frias s servem para a recuperao da fora de trabalho. E mesmo s refeies, nas festas e no amor, o ponteiro dos segundos faz tiquetaque na nossa cabea.Na esfera do trabalho no conta aquilo que se faz, mas sim que o fazer, enquanto tal, seja feito, pois o trabalho um fim em si mesmo justamente na medida em que traz consigo a valorizao do capital-dinheiro a infinita multiplicao do dinheiro por intermdio do dinheiro. O trabalho a forma de actividade prpria desta absurda finalidade autotlica. por isso, e no por quaisquer razes objectivas, que os produtos so todos eles produzidos como mercadorias. S sob a forma de mercadoria representam a abstraco dinheiro, cujo contedo a abstraco trabalho. Nisto consiste o mecanismo da engrenagem social autonomizada em que se mantm aprisionada a humanidade moderna.E precisamente por isso tambm que o contedo da produo indiferente, como indiferente a utilizao dada s coisas produzidas e as consequncias sociais e naturais da produo. Saber se se constroem casas ou se se produz armamento, se se imprimem livros ou se se cultiva tomate transgnico, se em consequncia as pessoas adoecem, se a atmosfera poluda ou se apenas espezinhado o bom gosto nada disto interessa, desde que, de umm modo ou de outro, a mercadoria possa ser transformada em dinheiro e o dinheiro, de novo em trabalho. Que a mercadoria exija um uso concreto, e que este eventualmente seja destrutivo, coisa que no tem o mnimo interesse para a racionalidade da economia empresarial, pois para esta o produto no mais do que o portador de um trabalho pretrito, de trabalho morto.A acumulao de trabalho morto enquanto capital, representada sob a forma de dinheiro, o nico sentido que o sistema de produo de mercadorias conhece. Trabalho morto? Uma loucura metafsica! Sim, mas uma metafsica que se tornou realidade palpvel, uma loucura objectivada que domina esta sociedade com mo de ferro. No eterno comprar e vender, os homens no se relacionam como seres sociais conscientes, limitam-se a executar como autmatos sociais a finalidade autotlica que lhes prescrita.VI. TRABALHO E CAPITAL SO AS DUAS FACES DA MESMA MOEDAO trabalho tem cada vez mais a boa conscincia do seu lado: o gosto pela alegria chama-se j `necessidade de descanso, e comea a corar de vergonha de si prprio. `Temos de fazer isto por causa da sade, dizemos s pessoas que nos surpreendem num passeio pelo campo. Por este caminho, poder chegar-se rapidamente ao ponto de no mais se ceder ao gosto pela vita contemplativa (ou seja, ao gosto de passear em companhia de pensamentos ou de amigos) sem desprezo por si prprio e sem m conscincia.Friedrich Nietzsche
cio e ociosidade (em A Gaia Cincia), 1882.A esquerda poltica sempre adorou o trabalho com particular fervor. No s elevou o trabalho ao estatuto de essncia do Homem, como produziu a mistificao de transform-lo num princpio pretensamente oposto ao capital. Na sua perspectiva, o escndalo no o trabalho, mas sim a explorao do trabalho pelo capital. Por isso, o programa de todos os partidos dos trabalhadores sempre foi somente libertar o trabalho, mas no libertar do trabalho. Ora, o antagonismo social entre capital e trabalho uma mera contradio de interesses distintos no interior da finalidade autotlica do capitalismo (embora o poder de cada uma das partes seja muito diferente). A luta de classes era a forma de expresso desses interesses antagnicos no terreno social comum do sistema de produo de mercadorias. Fazia parte da dinmica interna da valorizao do capital. Quer a luta fosse por salrios, por direitos, por condies de trabalho, ou por postos de trabalho, o seu pressuposto cego continuava sempre a ser a engrenagem dominante com os seus princpios irracionais.O contedo qualitativo da produo conta to pouco do ponto de vista do trabalho como do ponto de vista do capital. Apenas interessa a possibilidade de vender de forma optimizada a fora de trabalho. No se trata de determinar colectivamente o sentido e a finalidade da actividade prpria. Se algum dia existiu a esperana de poder realizar-se uma tal autodeterminao do processo produtivo dentro das formas do sistema de produo de mercadorias, a verdade que as foras do trabalho h muito puseram de lado essa iluso. Hoje interessa apenas o posto de trabalho, o emprego e a prpria literalidade destes conceitos demonstra o carcter autotlico de todo o empreendimento e a privao de responsabilidade que caracteriza os envolvidos.Em ltima anlise, o que se produz, para que fins e com que consequncias, assunto absolutamente indiferente tanto para o vendedor da mercadoria, que a fora de trabalho, como para o respectivo comprador. Os trabalhadores das centrais nucleares e das fbricas de produtos qumicos protestam veementemente quando se pretende desactivar as suas bombas-relgio. E os empregados da Volkswagen, da Ford ou da Toyota, so os mais fanticos defensores do programa suicida da indstria automvel. No apenas porque tm obrigatoriamente de se vender para poderem viver, mas porque na realidade se identificam com esta existncia tacanha. Para os socilogos, os sindicalistas, os padres e outros telogos profissionais da questo social, esta a prova do valor tico-moral do trabalho. O trabalho forma a personalidade, dizem eles. Com razo. Forma de facto a personalidade dos zombies da produo de mercadorias, que j no conseguem conceber uma vida fora da sua amada engrenagem, qual se vo ajustando dia aps dia.Porm, da mesma forma que a classe operria enquanto classe trabalhadora nunca foi um antagonista em contradio com o capital e nunca foi o agente do processo de emancipao do homem, tambm os capitalistas e gestores no governam a sociedade em obedincia a uma maldade decorrente da vontade subjectiva de explorao. Em toda a histria, nunca houve uma casta dominante que levasse uma vida to pouco livre, to deplorvel, como os acossados executivos da Microsoft, da Daimler-Chrysler ou da Sony. Qualquer senhor feudal sentiria o mais profundo desprezo por tal gente. Porque, podendo ele entregar-se ao cio e delapidar a sua riqueza em quantas orgias lhe apetecesse, as elites da sociedade do trabalho no tm o direito de desfrutar de nenhuma pausa. Mesmo quando esto fora da engrenagem, no sabem fazer outra coisa que no seja infantilizarem-se. O cio, os prazeres do conhecimento ou dos sentidos, so-lhes to estranhos como ao material humano de que so feitos. So eles prprios meros servos do dolo trabalho, simples elites funcionais da finalidade autotlica irracional da sociedade.O dolo dominante sabe impor a sua vontade sem sujeito pela coero tcita da concorrncia, qual tambm os poderosos tm de curvar-se, exactamente quando gerem centenas de fbricas e transferem milhes, de lugar em lugar, volta do globo. Se assim no fizerem, sero postos de lado com a mesma frieza com que o a fora de trabalho suprflua. Ora, precisamente esta sua inimputabilidade que torna os funcionrios do capital to desmesuradamente perigosos, e no a sua vontade subjectiva de explorao. No esto autorizados menos ainda do que a qualquer outro indivduo a interrogarem-se sobre o sentido e sobre as consequncias da sua infatigvel actividade, e no podem dar-se ao luxo de ter sentimentos ou atenes. por isso que se consideram realistas quando devastam o mundo, desfiguram as cidades e levam as populaes misria no meio da maior riqueza.VII. O TRABALHO DOMINAO PATRIARCALA humanidade teve de se submeter a provaes terrveis at que surgisse o eu, o carcter idntico, orientado para fins e masculino, do ser humano; e ainda alguma coisa desse processo que se repete na infncia de cada um.Max Horkheimer e Theodor W. Adorno
Dialctica do Esclarecimento, 1944.Mesmo que a lgica do trabalho e da sua metamorfose em matria-dinheiro pressione nesse sentido, nem todos os domnios da sociedade, nem todas as actividades efectivamente necessrias se deixam comprimir nesta esfera do tempo abstracto. Por isso, em conjunto com a esfera separada do trabalho, e at certo ponto como seu reverso, surgiu tambm a esfera do lar, da famlia e da intimidade.Nesse domnio, definido como feminino, cabem as muitas e repetitivas actividades da vida do dia-a-dia, que quando muito s excepcionalmente podem ser transformadas em dinheiro: desde limpar a casa at cozinhar, passando pela educao dos filhos e pelo cuidado dos idosos, at ao trabalho do amor da tpica dona de casa ideal, que retempera o seu marido trabalhador, quando chega esgotado a casa, e lhe recarrega as energias afectivas. A esfera da intimidade, enquanto reverso do trabalho, portanto declarada pela ideologia burguesa da famlia como esfera da vida prpria embora, na realidade, seja a maior parte das vezes apenas um inferno na intimidade. De facto, no se trata da esfera de uma vida melhor e verdadeira, mas de uma forma igualmente limitada e reduzida da existncia, que simplesmente se apresenta afectada pelo sinal contrrio. Esta esfera ela prpria um produto do trabalho, dele separada, certo, mas na realidade s existente na relao com ele. A sociedade do trabalho nunca teria podido funcionar sem esse espao social segregado, que o das formas de actividade femininas. Ele o pressuposto tcito de uma tal sociedade e, simultaneamente, o seu resultado especfico.O mesmo vlido tambm para os esteretipos sexuais, que foram sendo generalizados no decurso do desenvolvimento do sistema de produo de mercadorias. No um simples acaso o facto de a imagem da mulher como um ser submetido aos impulsos da natureza, irracionalidade e s emoes, se ter tornado um preconceito generalizado precisamente em conjunto com a imagem do homem de trabalho, criador de cultura, racional e com domnio sobre si. E tambm no um acaso que a autodomesticao do homem branco para as exigncias do trabalho e da respectiva administrao estatal dos indivduos tenha coincidido com sculos de feroz caa s bruxas. E tambm a apropriao do mundo pelas cincias naturais, cujo incio ocorre em simultneo com esses factos, foi, na sua raiz, contaminada pela finalidade autotlica da sociedade do trabalho e pela sua atribuio de papis sociais em funo do sexo. Assim, o homem branco, para poder funcionar sem atritos, expulsou de si todos os sentimentos e necessidades emocionais, que, no reino do trabalho, s representam factores de perturbao.No sculo XX, e em especial nas democracias fordistas do ps-guerra, as mulheres foram sendo introduzidas de forma crescente no mundo do trabalho. Mas o resultado foi apenas o surgimento de uma conscincia feminina esquizide. Pois, por um lado, a introduo das mulheres na esfera do trabalho no podia trazer uma libertao, mas apenas a mesma submisso ao dolo trabalho, idntica dos homens. E, por outro lado, mantendo-se intocada a estrutura da dissociao, tambm a esfera das actividades definidas como femininas permaneceu fora do mbito oficial do trabalho. As mulheres foram assim submetidas a uma dupla carga e expostas a imperativos sociais totalmente contraditrios. No domnio do trabalho ficaram at hoje esmagadoramente relegadas para posies mal pagas e subalternas.E no sero decerto as reivindicaes conformes ao sistema, a luta por quotas destinadas s mulheres ou por igualdade de oportunidades, a mudarem seja o que for. A deplorvel viso burguesa de uma conciliao do trabalho com a famlia deixa intocada a separao das esferas do sistema de produo de mercadorias e, com ela, a estrutura de dissociao sexual. Para a maioria das mulheres, tal perspectiva simplesmente invivvel e, para uma minoria de mulheres mais bem pagas, transforma-se num posicionamento prfido, fazendo delas vencedoras no mbito do apartheid social, exactamente na medida em que podem delegar a casa e o cuidado dos filhos em empregadas mal pagas (e naturalmente do sexo feminino).Na sociedade global, a sacralizada esfera burguesa da chamada vida privada e da famlia , na verdade, cada vez mais esvaziada e degradada, porque a usurpao por parte da sociedade do trabalho exige a pessoa toda, total sacrifcio, total mobilidade e completa disponibilidade de tempo. O patriarcado no abolido; apenas se torna mais selvagem na crise inconfessada da sociedade do trabalho. Na mesma medida em que o sistema de produo de mercadorias entra em colapso, as mulheres vo-se tornando responsveis pela sobrevivncia, em todos os planos, enquanto o mundo masculino prolonga, em simulao, as categorias da sociedade do trabalho.VIII. O TRABALHO A ACTIVIDADE DE HOMENS PRIVADOS DE AUTODETERMINAOA identidade entre trabalho e ausncia de autodeterminao demonstra-se, no apenas factual, mas tambm conceptualmente. No h muitos sculos, a conexo entre o trabalho e a coero social estava inteiramente presente na conscincia das pessoas. Na maior parte das lnguas europeias, o conceito trabalho refere-se originariamente apenas actividade do homem sem autodeterminao, do indivduo dependente, do servo ou escravo. No espao lingustico alemo, Arbeit significava o trabalho servil de uma criana rf ou abandonada, e por isso cada na servido. No latim, laborare significava algo como cambalear sob uma carga pesada, e em sentido geral designava o sofrimento e o vexame do escravo. As palavras romnicas trabalho, travail, trabajo, etc., derivam do latim tripalium, uma espcie de jugo utilizado para torturar e castigar escravos e outros indivduos destitudos de liberdade. Na expresso idiomtica alem Joch der Arbeit (jugo do trabalho) ecoa ainda esse sentido.Ou seja, tambm na sua origem etimolgica trabalho no sinnimo de uma actividade humana autodeterminada, antes designa um destino social infeliz. a actividade daqueles que perderam a liberdade. Assim, a extenso do trabalho a todos os membros da sociedade no mais do que a generalizao da dependncia servil, e a moderna adorao do trabalho a mera exaltao para-religiosa deste estado.Esta relao s pde ser recalcada com xito e a respectiva exigncia social interiorizada, porque a generalizao do trabalho foi acompanhada pela objectivao do moderno sistema de produo de mercadorias: a maior parte dos indivduos no est debaixo do chicote de um senhor, individualizado como pessoa. A dependncia social tornou-se uma conexo abstracta interna do sistema e por isso mesmo tornou-se total. Ela pode ser detectada em toda a parte, mas por isso mesmo praticamente inapreensvel. Quando todos se tornam escravos, todos se tornam simultaneamente senhores traficantes de escravos e fiscais, mas traficando-se a si prprios e fiscalizando-se a si mesmos. Todos obedecem ao dolo invisvel do sistema, o Grande Irmo da valorizao do capital, que os mandou para o tripalium.IX. A HISTRIA SANGRENTA DA VITRIA DO TRABALHOO brbaro preguioso e diferencia-se do homem cultivado na medida em que se compraz no seu embrutecimento, pois a formao prtica consiste justamente no hbito e necessidade da ocupao.Georg W. F. Hegel
Princpios da Filosofia do Direito, 1821.No fundo, sente-se agora [] que um tal trabalho a melhor polcia, que retm cada indivduo pelo freio e que sabe impedir com firmeza o desenvolvimento da razo, do desejo e do prazer da independncia. Pois faz despender enorme quantidade de energia nervosa, e subtrai essa energia reflexo, meditao, ao sonho, inquietao, ao amor e ao dio.Friedrich Nietzsche
Os Apologistas do Trabalho (em Aurora), 1881.A histria da modernidade a histria do processo de instaurao do trabalho, que deixou em todo o planeta um amplo rasto de devastao e horror. Pois nem sempre esteve to interiorizada como hoje a exigncia de despender grande parte da energia vital em benefcio de uma finalidade autotlica externamente definida. Foram necessrios vrios sculos de violncia aberta e em grande escala para literalmente submeter os homens tortura do servio incondicional do dolo trabalho.A princpio, no era a ampliao das relaes de mercado supostamente favorecedoras do crescimento do bem-estar, mas sim a fome insacivel de dinheiro dos aparelhos estatais absolutistas que obrigava ao financiamento da mquina militar dos primrdios da modernidade. S o interesse desses aparelhos estatais, que pela primeira vez na histria submetiam a totalidade da sociedade ao estrangulamento burocrtico, veio acelerar o desenvolvimento do capital mercantil e financeiro das cidades, muito para alm das relaes comerciais tradicionais. S assim o dinheiro se converteu em motivao central da sociedade, e a abstraco do trabalho em exigncia social central, sem considerao das necessidades.No foi por vontade prpria que a maioria dos homens passou a produzir para mercados annimos e portanto para uma economia monetria generalizada, mas sim porque, com o absolutismo, a fome de dinheiro monetarizou os impostos e aumentou-os de maneira exorbitante. Os indivduos tinham que ganhar dinheiro, no para si, mas para o Estado militarizado do incio da modernidade: para as novas armas de fogo, para a logstica e a burocracia estatais. Foi assim, e no de outra forma, que veio ao mundo a absurda finalidade autotlica da valorizao do capital, e, com ela, a do trabalho.Em breve, os impostos e taxas deixaram de ser suficientes. Os burocratas absolutistas e os administradores do capital financeiro puseram-se a organizar de forma coerciva os indivduos como material directo de uma mquina social de transformao de trabalho em dinheiro. O modo tradicional de vida e de existncia da populao foi destrudo; no porque esta populao se tivesse desenvolvido de forma livre e autodeterminada, mas porque tinha de ser utilizada como material humano numa mquina de valorizao que estava posta em andamento. Os indivduos foram expulsos das suas terras pela fora das armas, para darem lugar criao de ovelhas necessrias s manufacturas de l. Os direitos tradicionais, como a liberdade de caa, pesca e recolha de lenha nas matas, foram extintos. E quando as massas pauperizadas deambulavam pelos campos, mendigando e roubando, lanaram-nas em casas de trabalho e nas manufacturas, para serem seviciadas com os instrumentos laborais de tortura e para lhes inculcar, pancada, uma conscincia de escravos, a fim de se tornarem dceis animais de trabalho.Mas esta transformao gradual dos seus sbditos em material do dolo fazedor de dinheiro tambm no podia s por si satisfazer durante muito tempo os monstruosos Estados absolutistas. Estenderam, pois, as suas pretenses a outros continentes. A colonizao interna da Europa efectuou-se a par da colonizao externa, primeiro nas Amricas e em algumas regies de frica. A, os feitores do trabalho perderam definitivamente os escrpulos. Em campanhas militares de roubo, destruio e extermnio sem precedentes atiraram-se aos mundos recentemente descobertos onde as vtimas nem sequer eram consideradas seres humanos. O canibalismo das potncias europeias da sociedade de trabalho nascente definia as culturas estrangeiras subjugadas como selvagens e canibais.E estava assim legitimada a eliminao ou escravizao de milhes de homens. A escravatura pura e simples em que se baseava a economia das grandes plantaes e da extraco de matrias-primas que conseguiu ultrapassar as dimenses da escravatura antiga conta-se entre os crimes fundadores do sistema de produo de mercadorias. Utilizou-se a pela primeira vez, em grande escala, a eliminao pelo trabalho. Foi a segunda fundao da sociedade do trabalho. O homem branco, marcado pelo ferrete da autodisciplina, podia agora descarregar sobre os selvagens o seu complexo de inferioridade e o desprezo reprimido que tinha por si prprio. Tal como as mulheres, os selvagens eram para ele seres prximos da natureza e primitivos, um misto entre o animal e o homem. Immanuel Kant supunha, com preciso lgica, que o babuno saberia falar se quisesse; s no falava porque temia ser recrutado para o trabalho.Esta elucubrao grotesca lana uma luz reveladora sobre o Iluminismo. O ethos repressivo do trabalho da modernidade, que, na sua verso protestante original, se baseava na misericrdia divina e, a partir do Iluminismo, na lei natural, adoptou a mscara de misso civilizadora. Cultura, neste sentido, submisso voluntria ao trabalho; e trabalho masculino, branco e ocidental. O contrrio, o no-humano, a natureza disforme e sem cultura, feminino, de cor e extico, ou seja, tem que ser submetido coero. Numa palavra, o universalismo da sociedade do trabalho inteiramente racista, logo desde as suas razes. A abstraco universal do trabalho s pode autodefinirse pela delimitao face a tudo aquilo que nele no se integra.Em ltima anlise, o herdeiro do absolutismo no foi a burguesia moderna, oriunda dos pacficos negociantes das antigas rotas comerciais. Foram antes os condottieri dos bandos de mercenrios da modernidade nascente, os directores das casas de trabalho e das casas de correco, os arrendatrios da colecta fiscal, os feitores de escravos, os agiotas e outros carrascos similares que formaram o solo social materno do mundo empresarial moderno. As revolues burguesas dos sculos XVIII e XIX nada tinham a ver com a emancipao social. Limitaram-se a reorganizar as relaes de poder no interior do sistema de coero existente, libertando as instituies da sociedade de trabalho dos interesses dinsticos obsoletos e impulsionando a respectiva coisificao e despessoalizao. Foi a gloriosa Revoluo Francesa que, com um pathos muito especial, proclamou o dever do trabalho, e que, numa lei para a abolio da mendicidade, introduziu novas casas de trabalho.Ora, isto era exactamente o contrrio do que pretendiam os movimentos sociais rebeldes que eclodiram margem das revolues burguesas, sem nelas se dissolverem. J muito antes tinha havido formas completamente autnomas de resistncia ou de objeco, que costumam deixar a historiografia oficial da sociedade do trabalho e da modernizao sem saber o que fazer delas. Os produtores das antigas sociedades agrrias, que nunca se resignaram a aceitar inteiramente as relaes de dominao feudal, estavam ainda menos dispostos a aceitar serem convertidos em classe trabalhadora de um sistema que lhes era exterior. Desde as guerras dos camponeses, nos sculos XV e XVI, at aos levantamentos britnicos, denunciados como sendo movimentos de destruidores de mquinas, e revolta dos teceles na Silsia, em 1844, estende-se toda uma cadeia ininterrupta de lutas encarniadas de resistncia contra o trabalho. A implantao da sociedade do trabalho significou, ao longo de vrios sculos, a guerra civil, umas vezes mais aberta, outras vezes latente.As antigas sociedades agrrias eram tudo menos paradisacas. Mas, ainda assim, para a maioria, a coero monstruosa da emergente sociedade do trabalho representou exclusivamente um agravamento da sua situao, um tempo do desespero. Na realidade, apesar de todas as restries, os indivduos tinham ainda algo a perder. Aquilo que na falsa conscincia do mundo moderno surge como as trevas e os flagelos de uma Idade Mdia ficcionada foi, na verdade, o horror da histria desse mesmo mundo moderno. Nas culturas pr-capitalistas e no-capitalistas, dentro e fora da Europa, o tempo dedicado diria e anualmente actividade de produo era muito mais reduzido do que ainda hoje para o moderno empregado de uma fbrica ou de um escritrio. E a produo dessas sociedades estava longe de ser to intensificada como na sociedade do trabalho, uma vez que toda a actividade era atravessada por uma cultura de cio e de relativa lentido. Com excepo das catstrofes naturais, as necessidades bsicas materiais estavam muito mais amplamente asseguradas para a maioria da populao do que em longos perodos da histria da modernizao e melhor tambm do que no horror dos bairros de lata gerados nos nossos dias pelo mundo da crise. Para alm do mais, nessas sociedades o poder no se entranhava at aos poros como na sociedade do trabalho totalmente burocratizada.Da que a resistncia contra o trabalho s militarmente pudesse ser quebrada. Ainda hoje os idelogos da sociedade do trabalho continuam a fugir hipocritamente deste facto: a cultura dos produtores pr-modernos no se desenvolveu para outras formas; ela foi simplesmente afogada no seu prprio sangue. Nos nossos dias, os esclarecidos democratas da sociedade do trabalho preferem responsabilizar por todas essas monstruosidades as circunstncias pr-democrticas de um passado com o qual eles j nada teriam a ver. No querem admitir que a histria terrorista do incio da modernidade revela tambm, involuntariamente, a essncia da actual sociedade do trabalho. A administrao burocrtica do trabalho e a integrao estatal dos seres humanos nas democracias industriais nunca puderam negar as suas origens absolutistas e coloniais. Alis, sob a forma da coisificao orientada para a coeso do sistema despessoalizado, a administrao repressiva dos seres humanos em nome do dolo trabalho continuou sempre a crescer e invadiu todos os domnios da vida.Precisamente hoje, na agonia do trabalho, volta a sentir-se novamente a mo de ferro da burocracia, como nos primrdios da sociedade do trabalho. Ao organizar o apartheid social e ao procurar, supostamente, debelar a crise atravs da escravatura estatal democrtica, a administrao do trabalho revela-se como o sistema de coero que sempre foi. Do mesmo modo, a brutalidade colonial regressa novamente sob a forma da administrao econmica coerciva do Fundo Monetrio Internacional nos pases da periferia, que vo sendo arruinados uns atrs dos outros. Depois da morte do seu dolo, a sociedade do trabalho volta a recorrer, em todos os sentidos, aos mtodos dos seus crimes fundadores, que contudo no a podero salvar.X. O MOVIMENTO OPERRIO: UM MOVIMENTO EM PROL DO TRABALHOO trabalho deve empunhar o ceptro,S deve ser servo quem no cio insistir;O trabalho deve governar o mundo,Pois s por ele o mundo pode existir.
Friedrich Stampfer
Honra ao Trabalho, 1903.O movimento operrio clssico, que s entrou em ascenso muito depois do declnio das antigas revoltas sociais, j no lutava contra as exigncias do trabalho; pelo contrrio, desenvolveu precisamente uma hiperidentificao com aquilo que lhe parecia ser inevitvel. Interessava-se apenas por direitos e correces no seio da prpria sociedade do trabalho, cujas coeres j tinha amplamente interiorizado. Em vez de criticar radicalmente a transformao da energia humana em dinheiro enquanto finalidade autotlica irracional, assumiu ele mesmo o ponto de vista do trabalho e interpretou a valorizao do capital como um facto positivo em si mesmo e, portanto, neutro.Assim, o movimento operrio assumiu, sua maneira, a herana do absolutismo, do protestantismo e do Iluminismo burgus. A infelicidade do trabalho foi convertida numa falsificao: o orgulho do trabalhador, que vinha redefinir em termos de direito do homem a autodomesticao do indivduo como material humano do dolo moderno. Os domesticados hilotas do trabalho trataram de, at certo ponto, dar a volta questo no plano ideolgico, desenvolvendo um autntico zelo missionrio dirigido em dois sentidos: por um lado, a reivindicao do direito ao trabalho, por outro, a exigncia de obrigao de trabalho para todos. A burguesia no era combatida enquanto suporte funcional da sociedade do trabalho, mas, pelo contrrio, censurada como parasita, em nome do trabalho. Todos os membros da sociedade, sem excepo, deviam ser compulsivamente recrutados para os exrcitos do trabalho.O movimento operrio passou assim, ele prprio, a ser um pace-maker da sociedade capitalista do trabalho. Foi ele que imps, contra a tacanhez dos funcionrios burgueses do sculo XIX e dos incios do sculo XX, as ltimas etapas da coisificao dentro do processo de desenvolvimento do trabalho, alis em analogia com aquilo que a burguesia fizera um sculo antes, ao assumir a herana do absolutismo. Tal s foi possvel porque os partidos operrios e os sindicatos, como consequncia da sua divinizao do trabalho, desenvolveram uma atitude positiva face ao aparelho de Estado e s instituies da administrao repressiva do trabalho, que de facto no pretendiam eliminar; pretendiam sim ocupar esses postos numa espcie de marcha atravs das instituies. Assumiram, portanto, como anteriormente acontecera com a burguesia, a tradio burocrtica da administrao dos indivduos na sociedade do trabalho, que vinha do absolutismo.A ideologia da universalizao social do trabalho exigia tambm um novo quadro de relaes polticas. Em lugar da velha articulao entre os diferentes estados da sociedade, cada um com direitos polticos distintos (por exemplo, o direito de voto em funo do nvel de imposto pago), na sociedade do trabalho, que ainda s parcialmente estava instituda, tinha de ser introduzida a igualdade universal, democrtica, tpica do Estado do trabalho na sua mxima perfeio. As desigualdades decorrentes do funcionamento da mquina da valorizao do capital, logo que esta passou a determinar toda a vida social, tinham que ser reequilibradas pelo Estado social. O movimento operrio encarregou-se tambm de fornecer o paradigma para este efeito. Sob o nome de social-democracia, tornar-se-ia o maior movimento civil da histria, que, no entanto, s podia ser a sua prpria armadilha. Porque na democracia tudo negocivel, menos o carcter coercivo da sociedade do trabalho, que um pressuposto axiomtico. O que pode ser debatido so apenas as modalidades e as formas da coero. H sempre a escolha entre o Omo e o Persil, entre a peste e a clera, entre o descaramento e a estupidez, entre Kohl e Schrder.A democracia da sociedade do trabalho o sistema de dominao mais prfido da histria um sistema de auto-represso. Por isso, esta democracia nunca organiza a livre deciso dos membros da sociedade sobre os recursos comuns, mas apenas a forma jurdica das mnadas de trabalho, socialmente separadas entre si, que tm de vender concorrencialmente a sua pele nos mercados de trabalho. A democracia o contrrio da liberdade. E assim, os democrticos homens do trabalho dividem-se necessariamente em administradores e administrados, em empreendedores e empreendidos, em elites funcionais e material humano. Os partidos polticos, e especialmente os partidos dos trabalhadores, espelham fielmente esta relao na sua prpria estrutura. A diviso entre dirigentes e dirigidos, bares e arraia-mida, militantes e simpatizantes, torna evidente que o quadro de relaes nada tem que ver com um debate franco e com uma tomada de decises aberta. Faz parte integrante da lgica deste sistema que as prprias elites apenas possam ser funcionrios no autnomos do dolo trabalho e das suas decises cegas.Pelo menos desde o Nazismo, todos os partidos so simultaneamente partidos dos trabalhadores e partidos do capital. Nas sociedades em vias de desenvolvimento, do Leste e do Sul, o movimento operrio transformou-se em partido do terrorismo de Estado ao servio da recuperao do atraso na modernizao; no Ocidente, transformou-se num conjunto de diferentes partidos populares, com programas e figuras de representao meditica intermutveis. A luta de classes est no fim, porque a sociedade do trabalho est no fim. As classes sociais revelam-se categorias sociais funcionais do sistema fetichista colectivo; agonizam medida que tal sistema vai agonizando. Se os Social-Democratas, os Verdes e os ex-Comunistas se destacam na administrao da crise, desenvolvendo programas de represso particularmente abjectos, com isso apenas revelam que so os legtimos herdeiros de um movimento operrio que nunca teve outro objectivo seno o trabalho a qualquer preo.

XI. A CRISE DO TRABALHOO primeiro princpio moral o direito do homem ao seu trabalho. [] A meu ver no h nada mais detestvel do que uma vida ociosa. Nenhum de ns tem esse direito. A civilizao no tem lugar para os ociosos.Henry FordO prprio capital a contradio em processo, [] pois esforase por reduzir o tempo de trabalho a um mnimo, enquanto, por outro lado, pe o tempo de trabalho como nica medida e fonte da riqueza. [] Assim, por um lado, chama a terreiro todos os poderes da cincia e da natureza, bem como os da combinao e do intercmbio sociais, para fazer com que a criao de riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho nela aplicado. Por outro lado, pretende medir pelo tempo de trabalho estas gigantescas foras sociais assim criadas, e contlas dentro dos limites requeridos para que o valor criado se mantenha como valor.Karl Marx
Esboo da Crtica da Economia Poltica, 1857/1858.Aps a Segunda Guerra Mundial, durante um brevssimo perodo histrico, poderia parecer que, com a indstria fordista, a sociedade do trabalho se havia consolidado num sistema de perptua prosperidade, no qual, custa do Estado social e do consumo generalizado, pudesse apaziguar-se duradouramente a insuportabilidade da coero prpria da finalidade autotlica. Independentemente de esta imagem ser uma fantasia tpica dos hilotas da periferia democrtica, reportando-se apenas a uma pequena minoria da populao mundial, tal ideia no podia deixar de revelar tambm a sua inconsistncia nos pases desenvolvidos. Com a terceira revoluo industrial, a da microelectrnica, a sociedade do trabalho atingiu o seu limite histrico absoluto.Era logicamente previsvel que este limite tinha de ser atingido mais cedo ou mais tarde, j que o sistema centrado na produo de mercadorias padece desde a sua origem de uma insanvel contradio interna. Por um lado, ele vive de sugar energia humana em grandes quantidades, atravs do dispndio de fora de trabalho inerente ao seu mecanismo Quanto mais energia, melhor. Por outro lado, contudo, a lei da concorrncia da economia empresarial obriga a um permanente aumento da produtividade, num processo em que a fora de trabalho humana vai sendo substituda por capital fixo cientificizado.Esta contradio interna tinha sido j a causa mais profunda de todas as crises anteriores, nomeadamente da devastadora crise econmica mundial de 192933. Porm, essas crises puderam sempre ser ultrapassadas atravs de um mecanismo de compensao: em cada novo patamar de produtividade, aps um determinado perodo de incubao, por intermdio da extenso do mercado a novas camadas de consumidores, o sistema acabava por absorver mais trabalho do que aquele que havia sido eliminado pelo processo de racionalizao. Diminua o dispndio de fora de trabalho por produto, mas em termos absolutos eram produzidos mais produtos, de tal forma que a diminuio acabava por ser compensada, inclusivamente com ganho. Enquanto a inovao ao nvel dos produtos superou a inovao ao nvel dos processos, a contradio interna do sistema pde traduzir-se num movimento de expanso.O exemplo histrico mais impressionante o automvel: com a linha de montagem e outras tcnicas da racionalizao cientfica do trabalho (usadas pela primeira vez na fbrica de automveis de Henry Ford, em Detroit), o tempo de trabalho por automvel ficou reduzido a uma pequena fraco do tempo anteriormente gasto. Simultaneamente, o trabalho intensificou-se gigantescamente, ou seja, multiplicou-se exponencialmente a absoro de material humano em igual perodo de tempo. Sobretudo aconteceu que o automvel, at ento um produto de luxo acessvel apenas s camadas mais altas da sociedade, foi introduzido no consumo de massas devido ao embaratecimento resultante do processo.Desta forma, apesar da racionalizao introduzida pela produo em cadeia com a segunda revoluo industrial, a do fordismo, foi possvel continuar a satisfazer a um nvel bastante elevado o apetite insacivel que o dolo trabalho tem de energia humana. Ao mesmo tempo, o automvel um exemplo central do carcter destrutivo do modo de produo e de consumo da sociedade de trabalho altamente desenvolvida. No interesse da produo em massa de automveis e da generalizada circulao individual, a paisagem asfaltada e destruda, o ambiente envenenado, e aceita-se resignadamente que nas estradas de todo o mundo, ano aps ano, decorra uma terceira guerra mundial no declarada, com milhes de mortos e estropiados.Ora, sucede que, na terceira revoluo industrial a da microelectrnica -, este mecanismo de compensao por expanso soobra. verdade que com a microelectrnica tambm so embaratecidos muitos produtos e criados outros novos (sobretudo no campo dos media). Mas, pela primeira vez, a inovao nos processos ultrapassa a inovao nos produtos. Pela primeira vez, h mais trabalho eliminado pela racionalizao do que aquele que pode ser reabsorvido pela expanso dos mercados. No desenvolvimento lgico da racionalizao, a robtica electrnica substitui a energia humana e as novas tecnologias das comunicaes tornam o trabalho humano suprfluo. Desaparecem por inteiro sectores ou nveis anteriormente existentes na construo, na produo, no marketing, no armazenamento, na venda e mesmo na gesto. Pela primeira vez, o dolo trabalho submete-se involuntariamente a um regime de racionamento duradouro. E com isso cava a sua prpria sepultura.Como a sociedade democrtica do trabalho constitui um sistema autotlico amadurecido, fechado sobre si mesmo, orientado para o consumo de fora de trabalho, a sua estrutura no aceita a simples passagem para uma reduo generalizada do tempo de trabalho. Por um lado, a racionalidade econmica empresarial exige que quantidades cada vez maiores de indivduos permaneam duradouramente desempregados, e portanto postos margem da possibilidade de reproduo da vida que imanente ao sistema, mas por outro lado, o nmero sempre mais reduzido dos empregados submetido a uma exigncia de trabalho e de eficincia cada vez maior. No meio da riqueza, mesmo nos centros do capitalismo, regressam a pobreza e a fome. H meios de produo que ficam parados, terrenos de cultivo que ficam de pousio em larga escala, como em larga escala ficam vazias as habitaes ou edifcios pblicos, enquanto o nmero dos sem-abrigo cresce imparavelmente.O capitalismo torna-se uma instituio de minorias escala global. No seu desespero, o dolo trabalho, agonizante, torna-se o canibal de si prprio. Em busca de sobras de trabalho para se alimentar, o capital faz estourar as fronteiras da economia nacional e globaliza-se numa concorrncia nmada, em que cada grupo procura desalojar o outro. Regies inteiras do mundo so privadas dos fluxos globais de capital e de mercadorias. Com uma onda de fuses e de aquisies hostis sem precedentes histricos, os cartis armam-se para a ltima batalha da economia empresarial. Os Estados e naes desorganizados implodem, e as populaes, empurradas para a loucura pela luta concorrencial de sobrevivncia, digladiam-se na guerra tnica dos bandos.XII. O FIM DA POLTICAA crise do trabalho arrasta consigo necessariamente a crise do Estado e, portanto, da poltica. Basicamente, o Estado moderno deve a sua carreira ao facto de o sistema produtor de mercadorias precisar de uma instncia superior que garanta, no quadro da concorrncia, os fundamentos jurdicos e os pressupostos da valorizao do capital incluindo um aparelho repressivo para o caso de o material humano se insubordinar contra o sistema. Na sua forma amadurecida de democracia de massas, no sculo XX, o Estado teve de assumir, de forma crescente, encargos de natureza socio-econmica: no apenas o sistema de segurana social, mas tambm a sade e a educao, a rede de transportes e de comunicaes, infra-estruturas de todo o tipo que se tornaram indispensveis para o funcionamento da sociedade do trabalho, enquanto sociedade industrial desenvolvida, mas que no podem ser organizadas de acordo com o processo de capitalizao da economia empresarial. E isto porque as infra-estruturas tm de estar permanentemente disponveis para o conjunto da sociedade e tm de cobrir todo o territrio, no podendo portanto ser obrigadas a adaptar-se s conjunturas da oferta e da procura no mercado.Mas como o Estado no uma unidade autnoma de valorizao do capital, e portanto no pode transformar trabalho em dinheiro, tem de ir buscar dinheiro ao processo de capitalizao realmente existente para financiar as suas tarefas. Esgotado o processo de ampliao do capital, esgotam-se tambm as finanas do Estado. Aquele que parecia ser o soberano da sociedade revela-se afinal totalmente dependente da cega e fetichizada economia da sociedade do trabalho. Pode legislar como bem entender, mas, quando as foras produtivas crescem para alm do sistema de trabalho, o direito estatal positivo fica no vazio, uma vez que s pode referir-se a sujeitos do trabalho.Com o desemprego de massas, sempre crescente, secam as receitas estatais provenientes dos impostos sobre os rendimentos do trabalho. As redes sociais rompem-se assim que se atinge uma massa crtica de suprfluos que, em termos capitalistas, s podem ser alimentados atravs da redistribuio de outros rendimentos financeiros. Na situao de crise, com o acelerado processo de concentrao do capital, que ultrapassa as fronteiras das economias nacionais, desaparecem tambm as receitas fiscais resultantes da tributao dos lucros das empresas. Os trusts transnacionais obrigam os Estados em competio pelos investimentos prtica do dumping fiscal, social e ecolgico. precisamente este processo que leva o Estado democrtico a transformar-se em mero administrador da crise. Quanto mais se aproxima do estado de emergncia financeira, mais se reduz ao seu ncleo repressivo. As infra-estruturas so orientadas segundo as necessidades do capital transnacional. Como outrora nos territrios coloniais, a logstica social restringe-se cada vez mais a um nmero restrito de centros econmicos, enquanto o resto fica abandonado. Privatiza-se o que pode ser privatizado, mesmo que com isso cada vez mais pessoas fiquem excludas das mais elementares formas de abastecimento. Quando a valorizao do capital se concentra num nmero cada vez menor de ilhas do mercado mundial, deixa de ser possvel dar cobertura ao abastecimento das populaes em todo o territrio.Na medida em que tal no diga directamente respeito aos sectores relevantes para a economia, j no interessa saber se os comboios andam ou se as cartas chegam ao destino. A educao passa a ser um privilgio dos vencedores da globalizao. A cultura intelectual, artstica e terica entregue ao critrio do mercado e agoniza. O sistema de sade deixa de ser financivel e degenera num sistema de classes. Primeiro lenta e disfaradamente, depois de modo aberto, passa a valer a lei da eutansia social: quem pobre e suprfluo deve morrer mais cedo.Apesar de toda a abundncia de conhecimentos, capacidades e meios da medicina, da educao, da cultura, da infra-estrutura geral, a lei irracional da sociedade do trabalho, objectivada em termos de restrio ao financiamento, fecha-os a sete chaves, desmantela-os e atira-os para a sucata exactamente como acontece com os meios de produo agrrios e industriais que deixaram de ser rentveis. O Estado democrtico, transformado num sistema de apartheid, nada mais tem para oferecer queles que at agora eram os cidados do trabalho do que a simulao repressiva da ocupao em formas de trabalho barato e coercivo, e o desmantelamento de todas as prestaes sociais. Num estdio mais avanado, a prpria administrao estatal que pura e simplesmente se desmorona. Os aparelhos de Estado tornam-se mais selvagens, transformando-se numa cleptocracia corrupta, os militares transformam-se em bandos armados mafiosos e a polcia em assaltantes de estrada.No h poltica no mundo que possa parar este desenvolvimento e, muito menos, invert-lo. Pois a poltica , por essncia, uma aco em referncia ao Estado; consequentemente, com a desestatizao, ela fica sem objecto. A frmula democrtica de esquerda, que fala da progressiva configurao poltica das relaes sociais, torna-se cada dia mais ridcula. Para alm de uma represso sem fim, do desmantelamento da civilizao e do apoio ao terror econmico, j no h nada para configurar. Uma vez que a finalidade autotlica da sociedade do trabalho o pressuposto axiomtico da democracia poltica, no pode haver nenhuma regulao poltico-democrtica para a crise do trabalho. O fim do trabalho o fim da poltica.

XIII. O CAPITALISMO DE CASINO E O SEU JOGO DE SIMULAO NA SOCIEDADE DO TRABALHOLogo que o trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de ser a respectiva medida, e portanto deixa de ser o valor de troca [a medida] do valor de uso. [] Em consequncia, a produo fundada no valor de troca desmoronase e o prprio processo imediato de produo material despojase da sua forma mesquinha e contraditria.Karl Marx
Esboo da Crtica da Economia Poltica, 1857/58.A conscincia social dominante engana-se sistematicamente a si mesma sobre a verdadeira situao da sociedade do trabalho. As regies em colapso so ideologicamente excomungadas, as estatsticas relativas ao mercado de trabalho so descaradamente falsificadas, as formas de pauperizao so dissimuladas pelos media. A simulao o trao caracterstico mais central do capitalismo em crise. Isto vale tambm para a prpria economia. Se, pelo menos nos pases ocidentais que constituem o ncleo do sistema, subsistiu at agora a aparncia de que o capital podia acumular-se mesmo sem trabalho e que a forma pura do dinheiro sem substncia podia garantir o contnuo crescimento do valor, tal aparncia ficava a dever-se a um processo de simulao nos mercados financeiros. imagem e semelhana da simulao do trabalho atravs das medidas coercivas da administrao democrtica do trabalho, formou-se uma simulao da valorizao do capital atravs da desarticulao especulativa entre o sistema de crdito e os mercados bolsistas da economia real.O consumo de trabalho presente substitudo pelo recurso ao consumo de trabalho futuro, que nunca chegar a realizar-se. Trata-se, de certo modo, de uma acumulao de capital num fictcio futuro do conjuntivo. O capital-dinheiro, que j no pode ser reinvestido de forma rentvel na economia real, e que por isso no pode absorver mais trabalho, tem de se deslocar em fora para os mercados financeiros.J o impulso fordista da valorizao do capital, nos tempos do milagre econmico, aps a Segunda Guerra Mundial, estava longe de ser totalmente auto-sustentvel. O Estado contraiu crditos em quantidades at ento desconhecidas, muito para alm das suas receitas fiscais, porque as condies estruturais da sociedade do trabalho j no podiam ser financiadas de outra maneira. O Estado empenhou assim todas as suas efectivas receitas futuras. Desta maneira surgiu, por um lado, uma possibilidade de investimento financeiro para o capital-dinheiro excedente emprestava-se ao Estado a troco de juros. O Estado pagava os juros custa de novos emprstimos, reinjectando novamente o dinheiro emprestado no circuito econmico. Por outro lado, o Estado financiava as despesas sociais e os investimentos infra-estruturais, criando assim uma procura que, em termos capitalistas, era necessariamente artificial, uma vez que no tinha a cobertura de qualquer dispndio de trabalho produtivo. O boom fordista foi assim ampliado para alm daquele que seria o seu verdadeiro alcance, por via de um processo em que a sociedade do trabalho procedia sangria do seu prprio futuro.Este elemento simulativo do processo s aparentemente ainda intacto de valorizao do capital chegou ao seu limite ltimo juntamente com o endividamento estatal. As crises de dvida dos oramentos estatais, no s no Terceiro Mundo, mas tambm nos pases desenvolvidos, deixaram de permitir que a expanso continuasse a realizar-se por este processo. Foi esse o fundamento objectivo da campanha vitoriosa da desregulamentao neoliberal, que, segundo a respectiva ideologia, deveria ir de par com uma reduo drstica da quota do Estado no produto social. Na realidade, a desregulamentao e o desmantelamento das responsabilidades do Estado foram anulados pelos custos da crise, ainda que sob a forma de custos da represso e da simulao estatais. Deste modo, so muitos os Estados em que a quota do Estado no produto efectivamente aumentou.Mas a acumulao do capital j no pode continuar a ser simulada atravs do endividamento do Estado. E por isso que, desde os anos oitenta, a criao complementar de capital fictcio se transfere para os mercados bolsistas. Neles, h muito que no se trata de obter dividendos, ou seja, a distribuio de lucros da produo real, mas apenas de obter ganhos de cotao pelo aumento especulativo do valor dos ttulos de propriedade at nmeros de grandeza astronmica. A relao entre a economia real e o movimento especulativo dos mercados financeiros foi virada de pernas para o ar. J no o aumento especulativo das cotaes a antecipar a expanso da economia real, mas pelo contrrio a criao fictcia de valor, sempre em alta, que simula uma acumulao real que simplesmente deixou de existir.O dolo do trabalho est clinicamente morto, mas recebe respirao artificial atravs da expanso aparentemente autonomizada dos mercados financeiros. As empresas industriais obtm ganhos que j no resultam da produo e da venda de bens reais, que h muito se tornaram empreendimentos votados ao insucesso, mas sim da especulao em aces e divisas levada a cabo pelos seus habilidosos departamentos financeiros. Os oramentos pblicos apresentam receitas que no resultam de impostos ou de emprstimos, mas da participao zelosa da administrao financeira no jogo de azar dos mercados. E os oramentos privados, que viram as receitas reais provenientes dos salrios e honorrios reduzir-se drasticamente, s conseguem manter um nvel elevado de consumo custa de ganhos na bolsa. Surge assim uma nova forma de procura artificial que, por sua vez, arrasta consigo uma produo real e receitas fiscais reais sem cho debaixo dos ps.Desta maneira, a crise econmica mundial vai sendo adiada pelo processo especulativo; mas, como o aumento fictcio do valor dos ttulos de propriedade s pode ser a antecipao da futura utilizao real de trabalho (numa escala astronmica) que nunca vir a acontecer -, ento o embuste objectivado ter forosamente de se desmascarar aps um certo tempo de incubao. O colapso dos emerging markets na sia, na Amrica Latina e no Leste da Europa foi s um aperitivo. Ser apenas uma questo de tempo, e entraro igualmente em colapso os mercados financeiros dos centros capitalistas nos Estados Unidos, na Unio Europeia e no Japo.Este contexto percebido de uma forma totalmente distorcida pela conscincia fetichizada da sociedade do trabalho e em particular pelos tradicionais crticos do capitalismo, esquerda e direita. Fixados no fantasma do trabalho, nobilitado enquanto condio supra-histrica e positiva da existncia social, confundem sistematicamente causa e efeito. O adiamento temporrio da crise atravs da expanso especulativa dos mercados financeiros aparece, assim, de forma invertida, como suposta causa da crise. A maldade dos especuladores na expresso vulgarmente usada, mais ou menos mesclada de pnico lev-los-ia a arruinar completamente a bela sociedade do trabalho, gastando de forma extravagante o bom dinheiro, que existe de sobra, em vez de o investirem de forma respeitvel e slida em maravilhosos postos de trabalho para que uma humanidade de hilotas imbecilizados pelo dolo pudesse continuar a ter o seu pleno emprego.No entra nestas cabeas este facto simples: no foi de forma nenhuma a especulao que fez parar os investimentos reais, porque estes j tinham deixado de ser rentveis em consequncia da terceira revoluo industrial. O disparo especulativo s pode ser um sintoma disso mesmo. O prprio dinheiro, que aparentemente circula em quantidades infinitas, j no bom, mesmo em sentido capitalista, mas apenas simples ar quente com que foi sendo empolada a bolha especulativa. Qualquer tentativa de drenar um pouco esta bolha, recorrendo a projectos tributrios mais ou menos imaginativos (Taxa Tobin, etc.) para reconduzir novamente o capital-dinheiro s rodas alegadamente correctas e reais da engrenagem da sociedade do trabalho, s pode acabar por levar ao seu mais rpido rebentamento.Em vez de se compreender que todos nos tornaremos inexoravelmente no rentveis e que, por isso, o prprio critrio da rentabilidade que preciso atacar, como princpio obsoleto que , e, juntamente com ele, o respectivo fundamento na sociedade do trabalho, em vez disso, demonizam-se os especuladores. Esta imagem barata do inimigo cultivada em unssono por radicais de direita e independentes de esquerda, por honestos funcionrios sindicais e keynesianos nostlgicos, por telogos sociais e apresentadores de talk shows, ou seja, por todos os apstolos do trabalho honrado. Poucos esto conscientes de que da at reactivao da loucura anti-semita vai apenas um pequeno passo. O apelo ao capital criativo e de sangue nacional contra o capital-dinheiro, judeu, internacional e usurrio, arrisca-se a ser a ltima palavra da esquerda dos postos de trabalho intelectualmente desorientada. Que era a ltima palavra da direita dos postos de trabalho, desde sempre racista, anti-semita e antiamericana, isso j se sabia.

XIV. O TRABALHO NO PODE SER REDEFINIDOOs servios indiferenciados, directamente prestados a um particular, podem aumentar no s o bem-estar material do indivduo, mas tambm o bem-estar imaterial. Assim, um prestador de servios aumenta o bem-estar do cliente ao assumir trabalho que este teria de executar. Em simultneo verifica-se um acrscimo do bem-estar do prestador de servios, uma vez que essa actividade faz crescer a sua auto-estima. Exercer um servio indiferenciado e personalizado melhor para a psique do que estar desempregado.Relatrio da Comisso para Questes do Futuro, dos Estados Livres da Baviera e da Saxnia, 1997.Atm te com firmeza ao conhecimento que vai sendo comprovado no trabalho, pois a prpria natureza o confirma e lhe d o seu consentimento. No fundo, no tens outro conhecimento alm daquele que adquiriste pelo trabalho; tudo o mais so apenas hipteses do saber.Thomas Carlyle
Trabalhar e no Desesperar, 1843.Aps sculos de domesticao, o homem moderno j nem consegue imaginar uma vida para alm do trabalho. Enquanto princpio imperial, o trabalho no s domina a esfera da economia, em sentido estrito, como impregna toda a existncia social at aos poros do dia-a-dia e da existncia privada. O tempo livre que literalmente um conceito prisional h muito que serve para renovar o stock de mercadorias, garantindo assim a necessria venda das mesmas.Mas, fora do escritrio ou da fbrica, a sombra do trabalho estende-se sobre o indivduo moderno muito para l desse dever interiorizado de consumo de mercadorias como finalidade autotlica. Logo que se levanta do sof em frente da televiso e comea a agir, qualquer coisa que faa transforma-se numa espcie de trabalho. O praticante de jogging substitui o relgio de ponto pelo cronmetro, a engrenagem fabril tem o seu renascimento ps-moderno nas mquinas cromadas dos ginsios, e os trabalhadores em frias fazem nos seus automveis tantos quilmetros como se tivessem de realizar o objectivo anual de um motorista profissional de longo curso. E at mesmo o foder se orienta pelos formatos DIN da investigao sexolgica e pelos padres de concorrncia das fanfarronices dos talk shows.Se o rei Midas ainda achava que era uma maldio o facto de transformar em ouro tudo aquilo em que tocava, o seu moderno companheiro de sofrimento j ultrapassou esse estdio. O homem da sociedade do trabalho j no consegue sequer perceber que, graas equiparao de todas as coisas pelo padro do trabalho, todo o fazer perde o seu sentido especial e torna-se indiferente. Pelo contrrio, o que acontece que ele s confere sentido, justificao e significado social a uma actividade qualquer precisamente atravs dessa equiparao indiferena do mundo das mercadorias. Por exemplo, com um sentimento como o luto, o sujeito do trabalho no sabe que fazer; todavia, a transformao do luto em trabalho do luto transforma esse corpo estranho emocional num valor conhecido, mediante o qual pode estabelecer trocas com os seus semelhantes. O prprio sonhar torna-se trabalho do sonho, o conflito com uma pessoa amada passa a trabalho da relao, e a convivncia com as crianas transforma-se em trabalho educativo; todas essas actividades so assim privadas de realidade e tornadas indiferentes. Sempre que o homem moderno insiste em fazer algo com seriedade, tem na ponta da lngua a palavra trabalho.O imperialismo do trabalho traduz-se portanto na linguagem do dia-a-dia. No s estamos habituados a empregar inflacionadamente a palavra trabalho, como tambm a us-la em dois planos de significao completamente diferentes. H muito que trabalho no significa apenas (como seria pertinente) a forma de actividade, prpria da sociedade capitalista, dentro da engrenagem da finalidade autotlica; o conceito tornou-se igualmente sinnimo de qualquer actividade com um objectivo e, desta forma, apagou o seu rasto.Esta falta de preciso conceptual prepara o terreno para uma certa crtica, bastante corrente, mas muito pouco fivel, da sociedade do trabalho, crtica que opera precisamente ao contrrio, isto , a partir de uma interpretao positiva do sentido do imperialismo do trabalho. Acusa-se a sociedade do trabalho precisamente de, com as suas formas de actividade, no conseguir ainda um domnio suficiente sobre a vida, porque concebe o trabalho de maneira alegadamente demasiado restritiva, excomungando moralmente do respectivo mbito o trabalho individual ou a auto-ajuda (trabalho domstico, ajuda de vizinhana, etc.), para apenas aceitar como verdadeiro trabalho aquele que remunerado segundo os critrios do mercado. Assim, uma reavaliao e uma ampliao do conceito de trabalho deveriam eliminar essa rigidez unilateral e a estratificao hierarquizada dela decorrente.Esta forma de pensar no visa, portanto, a emancipao das coeres dominantes, mas apenas uma correco semntica. A crise iniludvel da sociedade do trabalho deveria ser solucionada pela conscincia social atravs da elevao efectiva nobreza do trabalho das formas de actividade at hoje consideradas inferiores e marginais esfera da produo capitalista. S que a inferioridade destas actividades no apenas o resultado de uma determinada viso ideolgica, antes pertence estrutura fundamental do sistema de produo de mercadorias e no pode ser superada por simpticas redefinies morais.Numa sociedade dominada pela produo de mercadorias enquanto finalidade autotlica, s pode valer como riqueza verdadeira aquilo que puder ser representado sob forma monetarizada. O conceito de trabalho determinado por este contexto brilha imperialmente sobre todas as outras esferas, mas de facto apenas de um modo negativo, na medida em que revela que elas so dele dependentes. Assim, as esferas externas produo de mercadorias ficam necessariamente na sombra da esfera da produo capitalista, porque no entram na lgica abstracta empresarial da economizao do tempo mesmo e precisamente quando so necessrias vida, como no caso da esfera segregada, definida como feminina, das actividades domsticas, da prestao de cuidados individualizados, etc.Uma ampliao moralizante da esfera do trabalho, em lugar da sua crtica radical, no apenas encobre a realidade do imperialismo social da economia produtora de mercadorias, como se adapta da melhor maneira s estratgias autoritrias da administrao da crise por parte do Estado. A exigncia, vinda dos anos setenta, de reconhecimento social do trabalho domstico e das actividades do terceiro sector enquanto trabalho plenamente vlido, comeou por especular com a ideia das prestaes financeiras estatais. Mas o Estado, na sua crise, vira o feitio contra o feiticeiro e mobiliza o impulso moral desta reivindicao no sentido do famoso princpio de subsidiariedade, exactamente contra as expectativas materiais da dita reivindicao.O cntico celestial sobre as virtudes do voluntariado e do trabalho cvico no diz se se pode ir depenicar alguma coisa ao tacho das finanas do Estado, que anda bastante vazio, antes funciona como libi do recuo do Estado em matria social, dos programas de trabalho forado em curso e da tentativa mesquinha de transferir o peso da crise principalmente para as mulheres. As instituies pblicas abandonam os seus compromissos de ordem social e substituem-nos por um apelo mobilizao de ns todos, um apelo simptico e sem custos: de preferncia, que seja a iniciativa particular de cada um a combater a misria prpria e alheia, e basta de exigncias materiais. E assim que uma manipulao acrobtica do sacrossanto conceito de trabalho, apresentada enquanto programa emancipatrio, abre as portas de par em par tentativa estatal de concretizar a supresso do trabalho assalariado pela eliminao do salrio, conservando o trabalho na terra queimada da economia de mercado. Sem querer, o que se prova com isto que hoje a emancipao social s pode ter como contedo, no a revalorizao do trabalho, mas a sua desvalorizao consciente.

XV. A CRISE DA LUTA DE INTERESSESComprovase que, em virtude de leis inelutveis da natureza dos homens, h muitos seres humanos que ficam expostos misria. So os infelizes que tiraram um bilhete em branco na grande lotaria da vida.Thomas Robert MalthusPor muito que a crise fundamental do trabalho seja recalcada e transformada em assunto tabu, a verdade que ela marca com o seu cunho todos os conflitos sociais da actualidade. A passagem de uma sociedade de integrao de massas para uma ordem de seleco e apartheid no conduziu a uma nova ronda da antiga luta de classes entre o capital e o trabalho, mas sim a uma crise das categorias da prpria luta de interesses imanente ao sistema. J na poca da prosperidade, aps a Segunda Guerra Mundial, a antiga nfase da luta de classes tinha empalidecido. No porque o sujeito, em si mesmo revolucionrio, tivesse sido integrado atravs de processos de manipulao e corrupo num discutvel bem-estar, mas, pelo contrrio, porque no desenvolvimento fordista se revelou a identidade lgica entre o capital e o trabalho, enquanto categorias sociais funcionais de uma mesma forma social fetichista. O desejo imanente ao sistema de vender nas melhores condies possveis a mercadoria fora de trabalho deixou de ter qualquer elemento que apontasse no sentido da transcendncia do sistema.Se, ainda nos anos setenta, se tratava de conquistar uma participao de camadas mais vastas da populao nos frutos envenenados da sociedade do trabalho, at esse impulso se dissolveu nas novas condies de crise da terceira revoluo industrial. S enquanto a sociedade de trabalho estava ainda em expanso foi possvel conduzir em larga escala a luta de interesses das suas categorias sociais funcionais. Contudo, exactamente na medida em que desaparece a base comum, os interesses imanentes ao sistema deixam de poder agregar-se no plano social geral. Desencadeia-se uma des-solidarizao generalizada. Os trabalhadores assalariados desertam dos sindicatos, os gestores deixam as associaes empresariais. Cada um por si, e o deus sistema capitalista contra todos: a to invocada individualizao no seno mais um sintoma da crise da sociedade do trabalho.Tanto quanto ainda subsistam interesses que possam ser agregados, so-no apenas ao nvel microeconmico. Porque, na mesma medida em que passa a ser um privilgio poder deixar que a vida seja triturada ao sabor da economia empresarial, com o correlativo desprezo pela emancipao social, tambm a tarefa de representar os interesses da mercadoria fora de trabalho degenera numa brutal poltica de lobbies dizendo respeito a segmentos sociais cada vez mais reduzidos. Agora, quem aceita a lgica do trabalho tem de aceitar tambm a lgica do apartheid. Hoje, trata-se unicamente de garantir clientela prpria, estritamente delimitada, que pode continuar a vender a sua pele custa de todos os demais. H muito que as assembleias de trabalhadores e as comisses de empresa deixaram de considerar que os seus verdadeiros adversrios esto na administrao das unidades empresariais; passaram a v-los nos assalariados das empresas concorrentes e nas localizaes estratgicas alternativas, quer seja na cidade vizinha ou no Extremo Oriente. E quando se coloca a questo de saber quem ser liquidado no prximo avano da racionalizao empresarial, at a seco do lado e o colega mais prximo passam a ser inimigos.A des-solidarizao radical est longe de dizer respeito apenas aos conflitos empresariais e sindicais. O princpio do salve-se quem puder domina todos os conflitos de interesses precisamente porque, na crise da sociedade do trabalho, todas as categorias funcionais persistem, mais fanaticamente ainda, na sua lgica prpria, segundo o princpio de que todo e qualquer bem-estar humano s pode ser mero produto residual da rentabilidade e da valorizao do capital. Todos os lobbies conhecem as regras do jogo e agem de acordo com elas. Cada moeda obtida pela clientela alheia uma moeda perdida para a clientela prpria. Cada rotura na outra ponta da rede social aumenta deste lado as possibilidades de obter mais um adiamento da ida para a forca. O reformado torna-se adversrio natural de todos os contribuintes; o doente, inimigo de todos os beneficirios da segurana social; o imigrante, objecto de dio de todos os nacionais enfurecidos.A pretenso de utilizar a luta de interesses imanente ao sistema como alavanca da emancipao social esgota-se irreversivelmente. E desta maneira, portanto, chega ao fim a esquerda clssica. O renascer de uma crtica radical do capitalismo pressupe uma rotura categorial com o trabalho. S quando se estabelecer um novo objectivo de emancipao s