Manual de Sociologia Da Cultura

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MANUAL DE SOCIOLOGIA DA CULTURA Ternas tk* Sociologia

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MANUAL DE SOCIOLOGIA DA CULTURA

Ternas tk* Sociologia

FRANCO CRESPI

MANUAL DE SOCIOLOGIA DA CULTURA

1997

editorial Estampa

FICHA TCNICA:

Ttulo original: Manuale di Sociologia delia Cultura

Traduo: Teresa Antunes Cardoso

Capa: Jos Antunes

Ilustrao da capa: Apoteose de Homero, pintura de Ingres, 1827, Museu do Louvre, Paris.

Fotocomposio: b&f Grficos - Miratejo

Impresso e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Grficas, Lda.

1.' edio: Editorial Estampa, Lda., Outubro de 1997

Depsito Legal: 117076/97

ISBN972-33-1313-8

Copyright: 1996, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma-Bari

Representada pela Agncia Literria Eulama Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1997

para a lngua portuguesa

NDICE

PREFACIO

11

I- CONCEITOS GERAIS

13

1.As origens histricas do conceito cientfico de cultura

14

2.A cultura como substituto do determinismo do instinto

21

3.Aco e mediao simblica: sentido e significado

25

4.A pluralidade das formas culturais

28

5.A relao entre teoria e investigao

31

II- AS TEORIAS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

33

1.Karl Marx e a crtica das ideologias

35

2.Max Weber e a relao entre conhecimento e estruturas sociais

39

3.Emile Durkheim e a origem social dos conceitos

42

4.Vilfredo Pareto: as derivaes

45

5.Georg Simmel: condicionamento social e liberdade do esprito

47

6.Max Scheler: formas do saber e sociedade

51

7.Karl Mannheim: ideologia e utopia

54

8.O fim das ideologias?

59

9.Poder, linguagem, comunicao

61

10. A sociologia da cincia

67

10.1.O debate epistemolgico na cincia contempornea

68

10.2.O programa forte na sociologia do conhecimento

73

III- TEORIAS GERAIS DA RELAO ENTRE CULTURA

E SOCIEDADE

79

1. Culturae sistema social

81

1.1A sociedade como realidade sui generis

e a funo da cultura

81

1.2A teoria cientfica da cultura

86

1.3Sistema da cultura e sistema social

88

1.4Cultura e dinmica social

96

1.5A cultura como reduo de complexidade

98

2.A cultura enquanto estrutura

107

3.Culturae aco social

111

3.1A interaco simblica

113

3.2A construo da realidade social

118

3.3Os procedimentos interpretativos

124

3.4A produo da sociedade

127

3.5Estilos de vida, distines sociais, estruturas

131

3.6Estratgias da aco e definio de competncias

135

3.7Os Cultural Studies

142

3.8Sistema cultural e integrao scio-cultural

143

IV- OS DIVERSOS MBITOS DE PRODUO DA CULTURA ....147

1.A linguagem

148

2.Concepes do mundo e relao com a transcendncia

152

2.1Omito

152

2.2As religies

157

2.3O rito

169

3.As expresses da arte

170

4.Os processos de socializao e de formao

185

4.1A socializao primria e o problema da identidade

186

4.2Processos educativos e de formao

190

5.Os processos e os meios de comunicao

196

5.1O conceito de comunicao

196

5.2Os meios de comunicao de massas

199

6.A produo do direito

206

7.A cultura nas organizaes produtivas

213

8.A cultura poltica

216

V- FORMAS E MTODOS DA INVESTIGAO

EMPRICA SOBRE FENMENOS CULTURAIS

219

1.O encontro entre horizontes culturais diversos

219

2.Anlises quantitativa e qualitativa

220

3.As representaes sociais

222

4.As histrias de vida

224

5.As anlises de contedo

225

6.A anlise da conversao

227

7.Tcnicas reactivas e no-reactivas

229

8.Validade e funes da investigao social

231

I I

VI - CULTURAE MUDANA SOCIAL

233

1.Aspectos tericos da mudana cultural

e dimenso da criatividade

233

2.Caractersticas da mudana cultural

nas sociedades contemporneas

239

2.1Auto-reflexividade da cultura e relativismo

239

2.2Cultura global e multiculturalismo

241

INDICAES BIBLIOGRFICAS

251

NDICE ANALTICO

269

NDICE ONOMSTICO

273

I

Advertncia: as datas que figuram junto ao nome do autor, no texto e na bibliografia reportam-se primeira edio original. Na bibliografia, tanto quanto possvel, procurou-se indicar a traduo italiana das obras estrangeiras, colocando a data de publicao na Itlia aps a indicao do editor.

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PREFACIO

Tem-se vindo a afirmar gradualmente, nos tempos modernos, a percepo de que a cultura uma dimenso constitutiva da nossa experincia de vida. A progressiva passagem da ideia de cultura como formao e enriquecimento do esprito ao conceito antropolgico de cultura como conjunto das representaes, valores e normas existentes num determinado contexto histrico e social determina, com efeito, a partir do sculo xvm, uma profunda transformao da nossa relao com a realidade natural e social, cujas consequncias tm vindo a amadurecer plenamente na nossa poca. Em simultneo, a sociologia da cultura surge como um dos efeitos deste processo e como uma das suas causas: o projecto de uma anlise cientfica do complexo mundo da produo cultural s poderia vir a nascer da nova conscincia relativamente presena alargada do simblico na nossa experincia. Todavia, o aparecimento de tal projecto contribuiu grandemente para o aumento da percepo do impacto exercido pela cultura em todas as situaes da nossa vida. O resultado desta transformao, no preciso momento em que se vai tornando claro que a cultura constitui o horizonte insupervel no interior do qual conhecemos e experimentamos a nossa realidade, tem igualmente evidenciado a fragilidade e os limites de qualquer forma cultural. Da a exigncia de aumentarmos a nossa capacidade de gerir as contradies emergentes da relao ambivalente que necessariamente mantemos com a cultura.

A presente obra prope-se apresentar uma introduo complexa temtica da sociologia da cultura, fornecendo um guia que nos permita orientarmo-nos no interior de uma vasta literatura, caracterizada por uma grande variedade de posies tericas e metodolgicas.

No primeiro captulo, aps a indicao, em sntese, das grandes linhas do processo histrico que conduziu inteno de estudar a cultura sob um ponto de vista cientfico, so abordadas algumas categorias conceptuais, que constituem pontos de referncia essenciais para se poder entrar no discurso especfico da sociologia da cultura. Nos dois captulos seguintes, vm apresentadas as

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PREFACIO

Tem-se vindo a afirmar gradualmente, nos tempos modernos, a percepo de que a cultura uma dimenso constitutiva da nossa experincia de vida. A progressiva passagem da ideia de cultura como formao e enriquecimento do esprito ao conceito antropolgico de cultura como conjunto das representaes, valores e normas existentes num determinado contexto histrico e social determina, com efeito, a partir do sculo xvm, uma profunda transformao da nossa relao com a realidade natural e social, cujas consequncias tm vindo a amadurecer plenamente na nossa poca. Em simultneo, a sociologia da cultura surge como um dos efeitos deste processo e como uma das suas causas: o projecto de uma anlise cientfica do complexo mundo da produo cultural s poderia vir a nascer da nova conscincia relativamente presena alargada do simblico na nossa experincia. Todavia, o aparecimento de tal projecto contribuiu grandemente para o aumento da percepo do impacto exercido pela cultura em todas as situaes da nossa vida. O resultado desta transformao, no preciso momento em que se vai tornando claro que a cultura constitui o horizonte insupervel no interior do qual conhecemos e experimentamos a nossa realidade, tem igualmente evidenciado a fragilidade e os limites de qualquer forma cultural. Da a exigncia de aumentarmos a nossa capacidade de gerir as contradies emergentes da relao ambivalente que necessariamente mantemos com a cultura.

A presente obra prope-se apresentar uma introduo complexa temtica da sociologia da cultura, fornecendo um guia que nos permita orientarmo-nos no interior de uma vasta literatura, caracterizada por uma grande variedade de posies tericas e metodolgicas.

No primeiro captulo, aps a indicao, em sntese, das grandes linhas do processo histrico que conduziu inteno de estudar a cultura sob um ponto de vista cientfico, so abordadas algumas categorias conceptuais, que constituem pontos de referncia essenciais para se poder entrar no discurso especfico da sociologia da cultura. Nos dois captulos seguintes, vm apresentadas as

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diversas posies que constituem a abordagem terica da disciplina: a anlise da relao entre conscincia e contexto social surge considerada como propedutica, no s porque a anlise da relao entre conhecimento e contexto social constituiu o incio do discurso sociolgico sobre a cultura, mas tambm porque permite explicar os pressupostos epistemolgicos deste ltimo.

A partir dos problemas colocados a nvel terico, a nossa reflexo prossegue, no captulo quarto, atravs da anlise dos diversos mbitos de produo da cultura, mostrando como o aparelho conceptual, inicialmente considerado, encontra uma aplicao concreta numa srie de aspectos particulares.

O captulo quinto dedicado ilustrao de algumas caractersticas especficas dos mtodos de investigao emprica sobre fenmenos culturais, enquanto o ltimo captulo aborda directamente, no quadro da relao entre cultura e mudana social, as contradies concretas que se revelam na nossa sociedade em consequncia do desenvolvimento contemporneo de uma cultura relativamente homognea a nvel planetrio e da acentuao, num sentido especfico, das diferenas culturais.

Um texto introdutrio, como o presente, no poder obviamente pretender esgotar a complexidade de uma temtica que, sobretudo nos anos recentes, suscitou uma infinidade de novas reflexes e novos contributos. Todavia, tais circunstncias podero levar-nos a pensar se, eventualmente, no teremos conseguido formular as bases para um ulterior aprofundamento, que leve ao avano no conhecimento de uma matria que no s apresenta um indubitvel interesse no plano cognitivo, como poder vir tambm a contribuir para o estabelecimento, ao nvel da nossa experincia existencial, de uma correcta relao com as formas culturais. De facto, num mundo caracterizado pela crise dos valores absolutos, se no pretendermos cair mais uma vez em formas regressivas que os retomem como tais, h que aumentar a capacidade de gerir a insegurana que nasce do reconhecimento da radical parcialidade das formas culturais, desenvolvendo uma ateno nova relativamente nossa comum pertena a uma condio existencial que, no seu sentido, surge como irredutvel ordem simblica.

Desejo expressar aqui os meus vivos agradecimentos, pelas suas preciosas observaes e teis sugestes, aos colegas que, no todo ou em parte, tiveram a pacincia de ler o manuscrito: Simona Andrini, Andrea Bixio, Ceclia Cristofori, Paolo Mancini, Raffaele Rauty, Ambrogio Santambrogio, Roberto Segatori, Gabriella Turnaturi.

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I - CONCEITOS GERAIS

I

Em 1871, o etnlogo americano Edward Tylor definia a cultura como aquele conjunto de elementos que inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, usos e quaisquer outras capacidades e costumes adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade (Tylor, 1871). esta uma das primeiras tentativas para uma definio cientfica de cultura, ou de elaborao de um conceito capaz de delimitar de um modo suficientemente rigoroso o mbito dos fenmenos culturais enquanto objecto de anlise das cincias sociais.

Na realidade, o termo cultura, como constataremos ao longo deste trabalho, presta-se a muitas e diversas interpretaes. Em 1952, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn, desenvolvendo uma anlise histrico-crtica das definies de cultura propostas pelos especialistas das cincias sociais, puderam inventariar mais de cento e cinquenta. Kluckhohn tentou sintetizar na lista que se segue os diferentes tipos de definio da cultura: 1) o modo de viver de um povo na sua globalidade; 2) a hereditariedade social que um indivduo adquire no seu grupo de pertena; 3) uma maneira de pensar, sentir, crer; 4) uma abstraco derivada do comportamento; 5) uma teoria elaborada pelo antroplogo social sobre o modo como efectivamente se comporta um grupo de pessoas; 6) a globalidade de um saber colectivamente possudo; 7) uma srie de orientaes generalizadas relativamente aos problemas recorrentes; 8) um comportamento aprendido; 9) um mecanismo para a regulao normativa do comportamento; 10) uma srie de tcnicas que permitem a adequao, quer ao ambiente circundante, quer aos outros homens; 11) um aglomerado de histria, de um mapa, de uma peneira, de uma matriz (cf. Kroeber, 1952; Kroeber-Kluckhohn, 1963; Kluckhohn, 1949; Geertz, 1973, pp. 40-41).

Como vemos, os tipos de definio variam na medida em que se coloca a tnica sobre a dimenso subjectiva da cultura ou sobre a presena do aspecto humano referente aos valores, modelos de comportamento, critrios normativos interiorizados (modos de pensar, sentir, crer; orientaes estandardizadas; mecanismos de regulao do comportamento, etc), ou ainda sobre o carcter, por

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assim dizer objectivo, que as formas culturais assumem enquanto memria colectiva ou tradio codificada e acumulada no tempo (hereditariedade social, depsito do saber, das tcnicas, composto de histria, superfcie geogrfica). Enfim, outras definies tendem a sublinhar que o conceito de cultura no passa de uma abstraco que permite ao cientista social orientar a sua investigao.

Os diversos elementos que surgem condensados no termo cultura fazem ressaltar, por um lado, a dimenso descritiva e cognitiva da cultura; as crenas e as representaes sociais da realidade natural e social, ou as imagens do mundo e da vida, que contribuem para explicar e definir as identidades individuais, as unidades sociais, os fenmenos naturais; por outro, a dimenso prescritiva da cultura, enquanto conjunto de valores que indicam os objectivos ideais a prosseguir, e de normas (modelos de aco, definio dos papis, regras, princpios morais, leis jurdicas, etc), que indicam o modo segundo o qual os indivduos e as colectividades devem comportar-se.

Ambas as dimenses, descrivo-cognitiva e ^prescritiva, se encontram quase sempre intimamente ligadas, enquanto o elemento normativo acha uma justificao nas crenas e nas representaes, porquanto estas surgem reforadas pelos processos de construo da realidade, influenciados pelas prescries normativas. Alm disso, a cultura apresenta-se como tradio, isto , como possibilidade de um acumular das experincias, enquanto depsito da memria colectiva.

A dificuldade de estabelecer de um modo preciso o conceito de cultura encontra-se ligada complexidade apresentada por este mesmo fenmeno e, caso no se pretenda apresentar uma definio redutora, ser necessrio tomar em considerao os diversos elementos que o compem. Um contributo decisivo neste sentido decorreu das diferentes abordagens tericas e metodolgicas a partir das quais a sociologia da cultura se tem vindo a articular (v. captulos n, ni, v), e tambm das anlises elaboradas nos seus diversos mbitos de aplicao (v. cap. iv).

Porm, antes de entrarmos no campo dessas diferentes interpretaes, ser til recordar as origens histricas do conceito cientfico de cultura (v. subttulo 1 do presente captulo) e, em seguida, esclarecer algumas categorias gerais que se encontram na base da funo simblica produtora de cultura (v. subttulos 2, 3, 4 do presente captulo). Alm disso, a fim de se compreender a funo dos modelos tericos considerados, ser tambm necessrio evidenciar o tipo de relao existente entre a dimenso terica e a da pesquisa emprica (v. subttulo 5 do presente captulo).

1. As origens histricas do conceito cientfico de cultura

Inicialmente, o termo cultura foi usado sobretudo para referir o processo de formao da personalidade humana atravs da aprendizagem, que os antigos

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Gregos designavam utilizando o conceito de paideia: em tal contexto, o indivduo considerado culto aquele que, assimilando os conhecimentos e valores socialmente transmitidos, consegue traduzi-los em qualidades pessoais. Este mesmo conceito igualmente usado na Roma Antiga: com efeito, a palavra cultura deriva do latim colere, que indicava inicialmente a aco de cultivar a terra e criar o gado. O termo sucessivamente alargado, em sentido metafrico, at cultura do esprito: se o termo humanitas, usado por Ccero, possivelmente o que melhor corresponde ao conceito grego de paideia, tanto Ccero como Horcio falam igualmente de um modo de cultivar o esprito, conceito esse que vir a ser retomado por Santo Agostinho. A utilizao, em sentido figurado, do termo cultura veio a alargar-se ulteriormente at incluir, alm do cultivar das prprias faculdades espirituais, tambm o da lngua, da arte, das letras e das cincias. Nos fins do sculo xvm este o significado dominante atribudo palavra cultura, que encontra uma expresso afim no vocbulo alemo Bildung, traduzindo exactamente o processo de formao do esprito (cf. Beneton, 1975, p. 25 e segs.).

Em meados do sculo xvm, com a afirmao do Iluminismo, o termo cultura sofre um ulterior alargamento do seu significado, vindo a integrar inclusivamente o patrimnio universal dos conhecimentos e valores formativos ao longo da histria da humanidade, e que, como tal, aberto a todos, constituindo, enquanto depsito da memria colectiva, uma fonte constante de enriquecimento da experincia. neste perodo que se afirma igualmente o conceito de civilidade ou civilizao, exprimindo o refinamento cultural dos costumes, em oposio pretensa barbrie das origens ou dos povos considerados no civilizados.

A ideia de civilidade produto da profunda transformao ocorrida no pensamento ocidental relativamente dimenso histrica; de facto, com o Iluminismo, e contrariando os conceitos teolgicos, vai-se confirmando a perspectiva evolutiva da histria da humanidade como um contnuo progresso determinado pelos seres humanos. A palavra francesa civilisation, possivelmente utilizada com esse novo sentido que lhe atribudo em 1757 pelo marqus de Mirabeau, evoca o desenvolvimento das formas de cortesia, o refinamento dos comportamentos, o controlo sobre as paixes e a violncia, que advm precisamente do desenvolvimento da cultura, enquanto resultado de um movimento colectivo que permitiu humanidade a sada do estado primitivo (cf. ibid., p. 35). Nesta perspectiva vem-se ento configurando uma concepo, funcional no que se refere ao colonialismo, da misso dos pases civilizados relativamente aos povos selvagens: a oposio entre selvagens e civilizados, que se encontra na base de todo o pensamento antropolgico do sculo, destinada a ser superada justamente atravs da "civilizao dos selvagens", isto , atravs da sua integrao progressiva no universo dos povos civilizados representado pelo Ocidente (ibid.).

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A partir da Frana, o termo civilizao estende-se rapidamente Inglaterra (civilization), enquanto na Alemanha sobretudo a palavra Kultur que assume um significado anlogo ao da francesa civilisation.

Concluindo a exposio da gnese do conceito de cultura em termos cientficos, o que interessa evidenciar aqui , por um lado, a transformao do significado de cultura, ocorrida no sculo xvm, de formao do esprito para conjunto objectivo de representaes, modelos de comportamento, regras, valores, enquanto patrimnio comum realizado ao longo da evoluo histrica e, por outro lado, a nova conscincia que vem a distinguir-se do carcter histrico--relativo das diversas configuraes culturais, conforme o tipo de sociedade e as diferentes pocas.

Se certo que a ateno diversidade das culturas j se encontrava presente em historiadores da Antiguidade, como Herdoto ou Tcito, sobretudo nos sculos xvn e xvm que se vai desenvolvendo uma nova sensibilidade relativamente especificidade dos contextos histrico-sociais. A descoberta do Novo Mundo por Cristvo Colombo assinala o incio de uma percepo acrescida das grandes diferenas que podiam apresentar as caractersticas culturais dos ditos selvagens relativamente s dos ocidentais.

Nos sculos xvn e xvm, um grande nmero de relatos de viagens, escritos por homens enviados pelas potncias monrquicas europeias, exploradores e missionrios, contribuiu para dar a conhecer crenas, usos e costumes dos diferentes povos da sia e da Amrica. Tais documentos contriburam igualmente para a implantao, no sculo xvm, de uma moda literria baseada na comparao entre os costumes europeus e os dos outros povos. Como exemplos dessa literatura so ainda hoje famosas, entre outras obras, as Cartas Persas de Montesquieu, de 1721, e as Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, de 1726.

Nas Cartas Persas, Montesquieu imagina dois persas que, aps a sua chegada a Paris, escrevem aos seus compatriotas, descrevendo, com um olhar claramente naf, o modo de vida dos parisienses. Os hbitos correntes, os preconceitos, as prticas consideradas pelos franceses como normais deixam de surgir como um dado adquirido: as instituies, as obrigaes sociais, as regras da vida civil so mostradas sem a reverncia que tradicionalmente lhes atribuda, e acabam por surgir como absurdas e ilgicas (cf. Hazard, 1963, pp. 15 e segs.). Tambm Swift, nas Viagens de Gulliver, pe em evidncia todas as formas de vida habituais, criticando tudo aquilo que o mundo anglo-saxnico respeitava, venerava e amava: os homens de Estado mostram-se ignorantes e imbecis, os reis estultos, os intelectuais e filsofos loucos ou ftuos, e assim sucessivamente.

A par destes exemplos literrios vai-se desenvolvendo, ao longo de todo o sculo xvm, o interesse pelo globo terrestre considerado no seu conjunto, e isso por parte de filsofos como Voltaire, Diderot, Rousseau, e cientistas como Buffon, colocam igualmente em evidncia a diversidade presente nos moeurs, ou costu

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mes, que caracterizam os povos do mundo, enquanto as narrativas de viagem de um autor como Constantin Franois de Volney (1757-1820) pretendem, desmistificando as anteriores, de tipo fantasista ou romanesque, estabelecer, numa linguagem rigorosa e positive, os modos de vida dos pases ainda desconhecidos. O indivduo comea a ver-se a si prprio como cidado do mundo, e nesta poca que surge o neologismo cosmopolita (cf. Moravia, 1982, p. 255).

Assim se vo colocando as bases da difusa percepo, plenamente confirmada no nosso sculo, do relativismo cultural, ou seja, o reconhecimento de que cada cultura tem a sua prpria validade e coerncia e no poder ser julgada a partir dos critrios prevalecentes naquela que nos mais familiar. Aumenta gradualmente a conscincia de que os conceitos utilizados na representao e interpretao da realidade dependem da diversidade dos lugares; que as prticas de vida, anteriormente baseadas numa razo universal comum a todos, so, com efeito, resultado dos costumes historicamente estabelecidos; que hbitos primeira vista extravagantes podero surgir como aceitveis se se tiver em conta o ambiente social no qual encontraram a sua origem (cf. Hazard, 1963, p. 15 e segs.).

Pode ento ser denunciado o etnocentrismo, isto , a atitude de quem tende a julgar as culturas de outra poca ou de outros povos a partir dos valores e critrios vigentes na sua prpria cultura de pertena. Assim, verifica-se at a transformao da ideia de natureza humana como qualquer coisa de comum a todos, se se tiver em considerao o impacto que a educao e a vida social exercem sobre a base natural, ou seja, a dimenso constitutiva que as formas de cada cultura especfica exercem sobre a formao do indivduo humano.

A complexa transformao da percepo da dimenso cultural enquanto dimenso especfica prepara, desde o sculo xvm, uma progressiva tomada de conscincia da importncia que as formas simblicas possuem na vida humana. Nas sociedades tribais, onde os indivduos viviam num mundo de foras personificadas (animismo), a percepo da cultura no surgia como mdium especfico, enquanto imagens e smbolos eram imediatamente vividos como se da prpria realidade se tratasse. Pelo contrrio, nas sociedades modernas, a capacidade crtica e o aprofundamento das formas do saber cientfico confirmam a percepo da relatividade das diferentes ordens culturais. Tal percepo encontrara j a sua origem no momento da formao das primeiras unidades sociais nascidas da reunio de indivduos provenientes de diferentes tradies. Na cidade-estado (por exemplo, a polis grega), a presena de indivduos de origem heterognea, e que j no se encontravam ligados entre si por vnculos tribais mas antes por interesses funcionais ligados defesa e ao comrcio, havia criado a exigncia de se definir, para todos os cidados, valores e normas propriamente polticos (ou seja, ligados s coisas prprias daplis), relativamente autnomos das ordens sagradas das suas comunidades de origem. Vieram assim a coexistir na polis divindades de origem diversa. Mas a passagem do regime tribal ao da

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unidade social assinala igualmente o incio daquele processo de secularizao que Max Weber identificou como um progressivo desencanto do mundo, no qual, finalmente, amadurece o reconhecimento de que a ordem simblica uma dimenso especfica, diferente da realidade (cf. Halton, 1992). Neste contexto, muitos dos aspectos habitualmente considerados como naturais, e que, por conseguinte, no eram postos em causa, revelam-se efectivamente como produtos culturais, ligados a uma situao histrica especfica. A acentuao da dimenso histrico-temporal, que a partir do sculo xvm caracteriza a filosofia moderna, revela ser, com efeito, um factor determinante para a emergncia de uma cincia antropolgica da cultura, que se orienta para as diversas formas de expresso simblica, a fim de as analisar na sua especificidade.

Nos Principi di una Scienza Nuova, de Giambattista Vio (1744), j encontramos formulada uma nova arte crtica, ou seja, uma filosofia que se prope examinar a filologia enquanto doutrina de todas as coisas as quais dependem do humano arbtrio, como so as histrias das lnguas, dos costumes e dos factos e bem assim da paz e da guerra dos povos. No preciso momento em que o Iluminismo pretende eliminar todos os preconceitos de tipo teolgico-religioso, a fim de reconsiderar cada um dos aspectos da realidade e da vida humana luz da pura razo, vai-se afirmando em Vio, pelo contrrio, uma nova forma de ateno mitologia, poesia arcaica, s fbulas, enquanto documentos da verdadeira histria das gentes mais remotas. Os diferentes tipos de linguagem e de expresso, os rituais, a arte, os contos tradicionais, so trazidos dignidade de documentos histricos que devem ser analisados como tais. Ser sobretudo na primeira metade do sculo xix que Vio, exaltado pelos romnticos, conhecer a sua poca de maior celebridade, influenciando o desenvolvimento do Historicismo Alemo, que se mostrou determinante no modo como evidenciou a especificidade das ditas cincias do esprito (que incluam a histria, a psicologia, a sociologia), relativamente s cincias da natureza.

No entanto, para compreender tal processo h que recordar o contributo fundamental dado pela filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) para o reconhecimento da especificidade da dimenso cultural. Na sua concepo dialctica da Histria, Hegel interpretou, como sabido, as diversas pocas da vida da humanidade como etapas sucessivas de um processo de maturao do esprito, sublinhando assim as diferentes formas culturais que, na poca, foram disso expresso. Considerando cada uma dessas formas um sistema coerente de significados, em correlao com uma experincia histrica particular, Hegel interpretou as formas culturais como esprito objectivo, isto , como forma de cristalizao de significados relativamente aos quais o esprito, enquanto processo evolutivo em constante mutao, tem, de vez em quando, assumido as suas distncias, negando as formas constitudas a fim de as poder abranger numa sntese superior. Independentemente da complexa estrutura filo

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sficaque caracteriza a Fenomenologia dello spirito (1870) de Hegel que, obviamente, no poderemos aqui ter em conta, a possibilidade de individualizar as formas culturais como objectivaes histricas concretas e documentos da experincia humana contribuiu muito para que se comeasse a prestar uma ateno especial s comparaes entre essas formas.

Desenvolvendo uma crtica quer ao conceito teleolgico da Histria em Hegel, quer ao dogmatismo cientfico do positivismo, um dos principais expoentes do historicismo alemo, o filsofo Wilhelm Dilthey (1833-1911), sublinhava que qualquer acontecimento e qualquer poca histrica possuem a sua prpria individualidade e uma coerncia interna de significado, que devem ser interpretadas no sentido que lhes prprio e irrepetvel e, por conseguinte, no so passveis de integrao em princpios gerais abstractos. Nesta base, Dilthey, retomando uma distino j formulada por Johann Droysen (1868) entre Verstehen (compreender) e Erklaren (explicar), propunha que se distinguisse entre cincias da natureza e cincias do esprito ou cincias histrico-sociais (cf. Dilthey, 1910). O que distingue estas ltimas das primeiras precisamente a especial ateno aos significados vividos na experincia histrica e, portanto, s formas culturais que lhes conferem expresso. A conscincia do facto de toda a aco humana poder ser compreendida somente em referncia aos valores e modelos culturais que a orientam comportar tambm, como mais claramente veremos adiante (v.cap.u, par. 2, 10,10.1,10.2), uma profunda transformao da epistemologia cientfica, porquanto se dever reconhecer que o prprio saber das cincias naturais parte de pressupostos e de problemas que pertencem ao contexto cultural do cientista. O que levar a uma reviso radical do conceito de neutralidade e objectividade do saber cientfico, assumido acriticamente pelo positivismo.

Dentro da perspectiva aberta pelo historicismo alemo, surgir de novo a j referida distino entre cultura e civilizao, mas estes dois conceitos deixaro de ser considerados no seio de uma concepo evolucionista, ou seja, como etapas de um progresso considerado como um dado adquirido, para o serem como categorias histricas ou tipos ideais para a interpretao de processos histricos especficos. Em tal contexto, o termo civilizao vem a assumir, na generalidade, uma conotao negativa.

Ferdinand Tnnies (1855-1936), na sua obra Comunit e societ, publicada em 1887, realara a comunidade como sendo a forma prpria das sociedades pr-industriais, baseada navontade orgnica (Wesenwille), isto , no predomnio dos vnculos naturais relativos vida biolgica, ao instinto, ao prazer e ao substracto inconsciente do sentimento e da memria. A base da comunidade a famlia, enquanto unidade constituda sobre a compreenso recproca e a solidariedade de intenes dos seus membros. comunidade contrape Tnnies a sociedade, enquanto forma prpria da sociedade urbano-industrial, baseada na vontade convencional (Kurwille), ou seja, em relaes de tipo artificial, esta

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belecidas no contrato e no direito, na racionalidade instrumental e no princpio da concorrncia. Na sociedade prevalecem o clculo utilitarista e a especulao, a solidariedade familiar cede o seu lugar ao individualismo e aos grupos ligados aos interesses econmicos, e comunidade domstica estvel sucede-se o instvel par conjugal. Nesta perspectiva, a Kultur surge como a expresso vital dos valores substanciais que caracterizavam a comunidade, enquanto o termo Zivilization se refere ao novo regime que prprio da sociedade. A cultura veio assim a transformar-se em civilizao, a qual assinala o declnio da cultura (cf. Tnnies, 1887).

De modo anlogo, para Oswald Spengler (1880-1936) o termo Kultur, entendido como civilizao, ou seja, como momento vital e criativo de uma cultura ligado a dimenses orgnicas ou instintivas, contrape-se ao termo Zivilization, enquanto momento que indica o declnio de um ciclo cultural, a sua fase terminal e crepuscular, na qual predomina o pensamento abstracto e a dimenso inorgnica, representada pelo domnio da tcnica, a omnipotncia do dinheiro e o regime de massas. Sob este ponto de vista, Spengler desenvolve a sua interpretao de // tramonto deli'occidente, obra na qual, propondo uma viso cclica da histria, assinala o fim do conceito unilinear da histria como progresso (cf. Spengler, 1922).

A distino entre Kultur e Zivilization tambm retomada por Alfred Weber (1868-1958), em termos problemticos no que se refere sua validade cientfica, mas sempre num contexto em que a concepo evolutiva do sculo xix j se revela como consumada (cf. Weber, 1935). Mais tarde, e seguindo nesta mesma linha, Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) desenvolveram a sua crtica radical do Iluminismo e as suas anlises das formas de alienao que caracterizam a actual sociedade de consumo (cf. Horkheimer-Adorno, 1947; Adorno, 1951).

No seio da complexa experincia histrico-cultural aqui esboada, o desenvolvimento da etnologia, da antropologia cultural e da sociologia, na segunda metade do sculo xix e no sculo xx, contribuiu grandemente para o aprofundamento do fenmeno cultura, determinando de modo decisivo o aumento da nossa conscincia no que se refere influncia preponderante que as representaes culturais exercem sobre o nosso modo de sentir, pensar e agir.

Antes de chegarmos aos ncleos problemticos colocados pela relao entre as estruturas sociais, formas do conhecimento e modelos culturais (v. cap. n), e antes de analisarmos as diversas teorias sociolgicas da cultura (v. cap. ih), ser oportuno tentar compreender, em termos gerais, como se coloca a cultura no interior da experincia existencial prpria do ser humano. Tal reflexo, com efeito, fornecer-nos- uma orientao de fundo e uma chave de leitura para a elaborao das diversas questes levantadas pela sociologia da cultura.

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2. A cultura como substituto do determinismo do instinto

Quem quer que se proponha observar a realidade social comea por se encontrar perante uma srie infinita de actos realizados por um grande nmero de indivduos, isto , acontecimentos que ocorrem, no tempo e no espao, de modo irreversvel: uma vez realizados, tais actos deixam de poder ser considerados como no tendo ocorrido. Tendemos imediatamente a interpretar esses actos, relacionando-os com significados que nos so familiares: se, de manh, um grande nmero de indivduos sai para a rua num dia til, pensamos que se esto a dirigir para os seus locais de trabalho; se constatamos que certos indivduos esto vestidos de uma certa maneira, estabelecemos uma relao entre esse facto e a sua profisso, a moda, a temperatura, etc. Todavia, nem sempre os comportamentos por ns observados so facilmente compreensveis: poder-se- tratar de actos individuais que s possam ser compreendidos em funo dos motivos particulares que movem os prprios indivduos e no se revelem imediatamente evidentes, como o caso de algum que seja movido por ideais religiosos que no partilhamos, por tradies culturais por ns ignoradas, por paixes e emoes que nos so estranhas, e assim sucessivamente. O problema complica-se ulteriormente se, de um mundo que nos familiar, passamos a um mundo que nos desconhecido: esta, por exemplo, a situao normal na qual vem a encontrar-se o etnlogo ou o antroplogo cultural quando se propem observar a vida social de populaes ditas primitivas, em tudo diferentes daquela qual eles pertencem por nascimento.

Aquilo que aqui nos interessa, sobretudo, trazer evidncia que a aco humana se transforma para ns num facto inteligvel unicamente se a colocamos em relao com um significado, esteja este relacionado com uma inteno ou com as motivaes subjectivas, mais ou menos conscientes, da actuao de um actor social, ou surja integrado como referncia a modelos ou regras culturais prprias do contexto social no qual se manifesta a aco. Todavia, uma primeira dificuldade advm do facto de nem sempre ser fcil estabelecer qual o significado a que o agir efectivamente se refere. E bastante difcil alcanar as motivaes interiores das aces de outrem, isso porque, muito frequentemente, o prprio indivduo nem sempre est consciente das razes que o conduzem. Assim, hoje em dia opta-se por considerar os valores culturais definitivos e as regras codificadas que orientam a aco, de preferncia a referir as motivaes interiores (v. cap. m, 3).

No caso da aco humana no podemos, portanto, continuar a proceder a generalizaes excessivas, dado haver situaes em que a experincia dos indivduos varia em conformidade com o tempo e o espao e outras em funo das vivncias pessoais que presidiram existncia de cada um.

diferente o caso dos que se propem observar o modo de agir dos animais, se se tratar de indivduos isolados ou em colectivo (manada, bando, formigueiro,

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colmeia, etc). Embora tambm aqui o nosso esforo consista em correlacionar um certo comportamento com significados que se mostram plausveis, no procuramos tais significados nas motivaes subjectivas ou nos modelos culturais presentes nos indivduos observados, mas tomamos como referncia paradigmas de tipo funcional (problemas de sobrevivncia, de defesa, reproduo e outros) e estruturas do cdigo gentico (instintos). Neste caso, os erros de interpretao so devidos ao nosso escasso conhecimento dos reais mecanismos que determinam o comportamento animal; porm, uma vez correctamente identificados os mecanismos, poderemos, na generalidade, aplicar esses conhecimentos aos comportamentos que se lhes assemelham. Se certo que at no mundo animal existem alguns comportamentos adquiridos atravs de experincias casuais e, por isso, no directamente redutveis a um determinismo de tipo gentico, a referncia a umacultura animal, por vezes utilizada pelos etlogos, deve entender-se no no sentido prprio, mas antes no metafrico, porque no animal a elaborao da experincia surge de modo diverso da que caracteriza os seres humanos e mantm-se condicionada sobretudo pelo automatismo de tipo gen-tico-instintivo.

A relao especial que, no mundo social, vem a estabelecer-se atravs da aco e do significado apresenta uma grande complexidade, porquanto no ser humano, mesmo no tendo desaparecido completamente o automatismo instintivo, este tem vindo notoriamente a enfraquecer e foi quase completamente substitudo pelo impacto dos modelos e orientaes culturais, que incidem profundamente sobre a psique dos indivduos (necessidades, sensibilidade, conhecimentos, emoes, etc).

A ruptura da relao imediata com o prprio ser natural que caracteriza o indivduo humano representada pelo aparecimento da conscincia. Seja qual for o modo como se pretenda interpretar o processo atravs do qual isso se verificou, mantm-se o facto de o indivduo se manifestar como o ser que tem conhecimento de que existe. Tal conhecimento cria uma espcie de fractura no natural comportamento imediato, que impede a simples espontaneidade. Sem o suporte dos modelos culturais adquiridos a partir do nascimento, o ser humano no sabe como comportar-se (cf. Crespi, 1982; 1994a). Por isso Arnold Gehlen (1940) pde falar do homem como de um animal diminudo que, para se poder orientar, deve necessariamente tomar como pontos de referncia representaes e modelos culturais. Tais modelos, sendo resultado da sedimentao, na memria colectiva ou na tradio, de um patrimnio de experincia, diminuem (Entlasten) o problema que consiste em saber como comportar-se sem que, de cada vez, seja necessrio recomear ex novo. Logo, no regime de vida caracterizado pela conscincia de si, a cultura surge como um substituto social do determinismo do instinto, embora, pelas razes que daqui a pouco analisaremos, a cultura no consiga reproduzir de modo igualmente forte o automatismo daquele.

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A cultura desenvolve uma funo de mediao simblica; a linguagem, as representaes da realidade, as narrativas mitolgicas, a religio, a expresso artstica, as tcnicas, o saber cientfico, a filosofia, os sistemas do direito, os modelos de comportamento, etc, constituem outras tantas formas que exercem funes de mediao nas nossas relaes com o prprio Eu, com os outros, com as coisas.

Ter conscincia de si quer dizer ter presente o nosso ser no mundo, mas tambm a nossa possibilidade de no ser, ou da morte, isto , colocar a si prprio o problema do sentido da vida: quem somos, donde vimos, para onde vamos, o que justo fazer, o que nos espera depois da morte? Perante a complexidade da realidade que nos circunda e da que a nossa experincia existencial integra, a cultura, fornecendo nas diferentes situaes histrico-sociais uma srie de explicaes e representaes, ou seja, de significados determinados, cumpre uma funo fundamental de reduo da complexidade, ou seja, selecciona, a partir das infinitas possibilidades da aco e da experincia, alguns modelos de comportamento especficos que, no entanto, variam no tempo e no espao.

Uma das razes pelas quais as formas culturais se modificam conforme o tempo e as vrias situaes sociais encontra-se ligada ao facto de a cultura, enquanto reduo, no conseguir esgotar a complexidade do real e da experincia. Como melhor veremos mais adiante (v. cap. vi), a cultura, na sua relativa autonomia, constitui um depsito de experincia na base do qual a reflexo e a capacidade criativa dos indivduos elaboram novas formas expressivas. Sempre que se alteram as condies histrico-ambientais ou nascem novas exigncias individuais ou colectivas, a cultura deve adaptar as suas prprias interpretaes e reformular as suas prprias respostas, fornecendo novos significados mais adequados s exigncias do momento. Isso explica a razo pela qual a cultura j no consegue reproduzir o automatismo do determinismo biolgico, ainda que tenda a absolutizar as suas formas expressivas e as suas regras, at ao ponto de quase se transformar numa segunda natureza. Por exemplo, a regra cultural que veta as relaes sexuais entre pessoas da mesma famlia, ou seja, o tabu do incesto que encontramos presente em quase todas as sociedades conhecidas (cf. Lvi-Strauss, 1947, pp. 66-67), tende a ser esquecida na sua qualidade de produto cultural: est to interiorizada atravs do processo de socializao que passa a ser sentida como qualquer coisa de natural, ou seja, assumida como um dado adquirido, a ponto de provocar um sentimento espontneo de repugnncia pelo prprio acto ou de criar um grave sentimento de culpa naquele que o realiza. Isso no impede, todavia, tal como o provam os numerosos episdios de infraco deste tabu, que at mesmo uma regra que se apresenta de modo to absoluto possa vir a ser infringida.

A cultura, enquanto substituto do determinismo do instinto, no s assume as funes de orientao do indivduo como tambm institui as condies de previsibilidade que constituem um requisito essencial para que se torne poss

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vel a instaurao de uma ordem social, qualquer que esta seja (cf. Weber, 1922, i, p. 20 e segs.). Com efeito, a sociedade baseia-se numa srie de regras partilhadas, que consentem que se actue tendo como referncia o agir de outrem, de modo a que se coordenem as diversas aces individuais na base do princpio da reciprocidade das expectativas, isto , com base naquela situao social que surge definida como dupla contingncia, caracterizada pelo facto de, perante a minha expectativa de que o outro se comporte de determinado modo, eu tambm me encontrar sempre em situao de dever corresponder expectativa existente no outro em relao a mim (cf. Parsons, 195 lb ; Luhmann, 1984, p. 207).

A presena de regras partilhadas, sejam estas definidas segundo um cdigo ou uma lei formal (normas jurdicas, regras da conduo automvel, etc), ou na base dos usos e costumes efectivamente praticados no contexto social (modos de actuao tradicionais, regras de boa educao, etc), obriga-nos, por um lado, relativamente ao nosso comportamento e, por outro, facilita as nossas inter--relaes. Assim, torna-se evidente que a funo de garantir a previsibilidade social surge tanto mais liberta da cultura quanto mais naturais se mostram as regras, isto , quanto mais espontaneamente so levadas prtica, sem a conscincia de que se trata de regras culturais, o que significa que se revelam fixas a partir de uma seleco que, todavia, sempre convencional.

Poder-se-ia dizer que a funo da cultura obtida custa de uma soluo paradoxal: enquanto reduo de complexidade, qualquer forma de determinao dos significados e das regras no pode ser mais do que o produto parcial de uma seleco feita a partir de exigncias de tipo aleatrio. como se os membros da sociedade, tendo como base uma complexa experincia histrica colectiva, tivessem acordado considerarem certos valores, certas normas ou certos tipos de comportamento como incontroversos: para se obter este resultado torna-se necessrio esquecer o carcter aleatrio e convencional da determinao de tais significados e consider-los como absolutos.

Nas sociedades ditas primitivas e, em grande parte, at mesmo nas pr--modernas, a falta de ateno especificidade da dimenso cultural favorece tal absolutizao: aquilo que era determinado pela autoridade da tradio dificilmente se apresentava sujeito discusso. O aumento do conhecimento sobre a cultura, o qual, como j vimos (v. 1 deste captulo), caracterizou as pocas moderna e contempornea, desenvolveu o nosso esprito crtico, tornando hoje mais difcil esquecer o carcter convencional das regras, com o consequente enfraquecimento das nossas diferentes ordens sociais, devido ao aumento do grau de imprevisibilidade dos comportamentos, e, por conseguinte, da complexidade dos nossos sistemas sociais.

Torna-se assim nitidamente bvia a tenso que caracteriza, por si s, a relao entre as formas de determinao cultural, enquanto reduo de complexidade, por um lado, e a indefinio que deriva da prpria complexidade da experincia e do agir humanos, por outro.

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A dimenso reflexiva, representada pela conscincia de si prprio, comprometendo o imediatismo e a espontaneidade naturais, comporta o facto de o indivduo humano, para agir num sentido social, ou seja, para estar orientado no sentido da coordenao requerida pela reciprocidade das expectativas, dever estar, por assim dizer, convencido a aceitar certas regras e certos modelos de comportamento; com efeito, exactamente isto que acontece desde o incio da vida de cada um de ns, atravs da prtica quotidiana das relaes com os adultos, a linguagem e as formas de educao, configurando todos estes elementos o cham&o processo de socializao (v. cap. iv, 4, 4.1, 4.2).

Todavia, o indivduo humano, no se encontrando programado com base no determinismo do instinto, como acontece com o animal, pode sempre recusar-se a aceitar os significados e as regras que lhe so propostos pela sua sociedade de pertena. Ter conscincia de si quer dizer, ao mesmo tempo, ser capaz de identificar-se com determinadas formas de significado (por exemplo, definies sociais da identidade) e de negar essas mesmas formas. Por esta razo, a plasticidade do comportamento humano infinitamente maior que a dos animais, do mesmo modo que infinitamente maior o seu grau de imprevisibilidade.

A fim de melhor compreendermos os problemas originados pela cultura e pela sua funo na sociedade, convm, neste momento, aprofundar particularmente a natureza da relao entre aco humana e formas de mediao simb-lico-normativa.

3. Aco e mediao simblica: sentido e significado

Dissemos anteriormente que toda a aco enquanto tal s se torna para ns inteligvel se tivermos em conta o significado que orienta a prpria aco, quer esse significado seja por ns atribudo ao modo de agir de outrem, quer tal venha indicado por aquele que actua como explicao da inteno desse seu modo de agir (sem que, alis, essa explicao deva necessariamente esgotar a complexidade dos significados da sua aco: por exemplo, possvel que existam motivos inconscientes, alm de nos podermos encontrar perante um fenmeno de auto-engano, etc).

O que importa estabelecer aqui que a referncia ao significado, ou melhor, a intencionalidade da aco, enquanto expresso de indivduos dotados de conscincia de si, um elemento constitutivo do prprio conceito de aco. Neste ponto, todavia, surge uma dificuldade relativa posio do significado face aco. Se, com efeito, no ocorre aco sem significado, dever-se- concluir que o significado precede a aco.

Na prtica, surge como confirmado o facto de que cada indivduo nasce no seio de um contexto social j formado e de uma cultura especfica que lhe transmitida pelos adultos atravs da linguagem, dos hbitos alimentares, das

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expresses de afecto, das regras para a educao, das narraes interpretativas da vida e do mundo, da definio dos papis e de tantos outros aspectos. S num segundo momento o indivduo consciente, atravs de uma elaborao pessoal dos significados que lhe foram transmitidos, e levando prtica a capacidade de negao, que inicialmente referimos, pode transformar tais significados at produo de novos significados.

Em princpio, pelo contrrio, temos de reconhecer que a aco precede o significado, porquanto este ltimo no pode ter outra origem que no seja o prprio agir, isto , a experincia existencial dos sujeitos e a sua capacidade para darem origem a formas de expresso simblica.

Posto isto, de que modo possvel resolver tal contradio?

Na tradio filosfica ocidental, a partir sobretudo de Descartes e at de Kant, Hegel e Husserl, tal problema era resolvido atravs da atribuio conscincia de uma funo fundamental. Assim, a conscincia surgia dotada de uma extraordinria clarividncia acerca da prpria identidade, como transparncia imediata da prpria experincia de si e princpio de racionalidade. Era a prpria conscincia, enquanto unidade vivente, que produzia os significados, quer fosse compreendida enquanto conscincia individual ou enquanto subjectividade transcendental ligada a uma estrutura espiritual comum a todas as conscincias singulares. Assim se estabelecia uma prioridade do momento cognitivo relativamente realidade existencial.

No entanto, nos tempos modernos tal posio radicalmente colocada discusso, a partir da crtica feita ao conceito de imediatismo da conscincia por autores como Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger. Foi efectivamente realado que a relao que o indivduo consciente estabelece consigo prprio surge, desde o incio, atravs das formas culturais e que a identidade da conscincia , em grande parte, produto da linguagem e dos significados, os quais, em cada contexto histrico-social concreto, contribuem para definir a subjectividade. A prpria ideia de indivduo varia de poca para poca e de uma para outra forma de cultura.

A conscincia, encontrando-se baseada na memria, surge constituda internamente por formas narrativas que conferem uma coerncia a elementos em si heterogneos, ou melhor, atravs de racionalizaes que, indo incidir, por exemplo, sobre as pulses inconscientes, reduzem, de facto, a complexidade da experincia da prpria conscincia. Segundo este ponto de vista, a dimenso reflexiva da conscincia emerge no interior de um mundo histrico-social, culturalmente j definido. Hoje, a prioridade tradicionalmente atribuda ao momento cognitivo da conscincia enquanto racionalidade que se autofundamenta assim substituda pelo reconhecimento da prioridade da dimenso ontolgica, no sentido de que o ser individual concreto surge lanado desde o incio na fatalidade de um mundo j existente. A conscincia subjectiva apresenta-se, ento, no como princpio fundamental, mas como capacidade de elaborao dos significados e de identifi

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cao com as determinaes constitudas e, tambm, pelas razes acima indicadas, como capacidade de distanciao ou de negao daquelas.

Esta fundamental ambivalncia da relao que a conscincia estabelece com a cultura interpretada por Georg Simmel (v. cap. 11,5) como uma relao trgica: Perante a vida da alma que vibra sem repouso, desenvolvendo-se no infinito e que, num certo sentido, criadora, encontra-se o seu produto consistente, idealmente inamovvel, que possui o efeito retroactivo de fixar, ou antes, de tornar rgida aquela vitalidade: frequentemente, como se o dinamismo criador da alma morresse no seu produto. (Simmel, 1911, p. 193) Se a cultura, enquanto produto objectivado, pode surgir como uma forma de rigidez relativamente vitalidade do esprito, este, todavia, para se realizar, deve passar atravs da cultura, que constitui uma fonte de inexaurvel enriquecimento (cf. ibid., p. 212).

Efectivamente, a cultura configura-se como um patrimnio de sedimentao das experincias, representaes e valores transmitidos atravs da linguagem, dos textos escritos, dos monumentos, etc, que esto na base da memria individual e colectiva. Tal como sublinhou Maurice Halbwachs (1925), o socilogo francs que muito provavelmente forneceu o contributo mais sistemtico para o estudo da memria colectiva, os contedos da memria, isto , o conjunto de imagens do passado que um grupo social conserva e reconhece enquanto elementos significativos da sua histria (Jedlowski, 1989, p. 75), so na realidade o resultado de um constante trabalho de seleco e reconstruo do prprio passado, que advm das experincias do presente.

Assim, neste contexto, a conscincia no surge como a primeira fonte do sentido, mas antes como um princpio activo capaz de seleccionar e elaborar significados anteriormente apresentados. , todavia, a prpria presena desse princpio activo, manifestado, antes de mais, como capacidade de distanciao das objectivaes anteriormente fornecidas, ou ainda da sua negao, que revela que o fenmeno da conscincia tem a sua raiz na prpria vida, ou melhor, na existncia, enquanto abertura original que d o sentido.

Distinguindo entre sentido e significado, podemos referir o sentido original como a prpria complexidade da situao existencial que se antecipa a toda a reduo determinada de significado. Como tal, o sentido j no surge esgotado dos significados culturais conscientes, os quais, de vez em quando, tendem a interpret-lo: permanece, por assim dizer, no fundo da actividade de produo expressiva, que se encontra na base das formas culturais concretas. Assim, quando dizemos que a aco precede o significado, referimo-nos dimenso da abertura existencial original, no interior da qual emerge o agir antes de qualquer actividade reflexiva. Por conseguinte, esse agir surge como a primeira fonte da produo reflexiva dos significados. Pelo contrrio, ao afirmarmos que o significado precede a aco fazemos referncia situao histrico-social concreta, caracterizada pela memria cultural, na qual vm a encontrar-se os actores sociais a partir do momento do seu nascimento.

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Deste modo surge resolvida a aparente contradio entre as duas afirmaes, ambas verdadeiras, mas possuindo como referncia aspectos diversos.

Todavia, oportuno sublinhar, alm do carcter aparentemente abstracto do discurso at aqui apresentado, a utilidade, para a teoria sociolgica da cultura, de manter distintos os dois momentos da aco e da cultura: de facto, tal distino permite compreender, por um lado, que a aco seja eminentemente influenciada pela cultura e, por outro, que a aco seja ainda um princpio activo que, tendo a sua raiz no sentido existencial, possui a capacidade de transformar as formas culturais, negando as determinaes objectivadas dos significados, de modo a proceder criao de novas (v. cap. vi, 1). Neste contexto se compreende o facto de os actores sociais serem, ao mesmo tempo, produto da cultura da sua sociedade de pertena e fonte activa de produo de formas culturais sempre novas.

Assim se explica a razo profunda pela qual a cultura, entendida como o conjunto das formas de mediao simblica presentes num determinado contexto social, , simultaneamente, garantia de continuidade com o passado, patrimnio da memria histrica e realidade expressiva em mudana permanente.

O termo sentido, usado do modo acima indicado, no se confunde com a expresso senso comum, que por vezes se reporta quele conjunto de significados (conhecimentos, regras, hbitos, convenes, etc), geralmente partilhados e aceites por todos como bvios, e que constituem, por assim dizer, o substrato cultural da nossa existncia social. O senso comum consiste no "saber fazer" que no objecto de reflexo e acompanha a nossa vida de todos os dias, e naquele "saber reconhecer" imediato com o qual interpretamos habitualmente as coisas que nos rodeiam e os comportamentos das pessoas (Jedlowski, 1995, p. 10). Enquanto o conceito de sentido nos remete para uma categoria de tipo filosfico, o conceito de senso comum indica, a nvel emprico, um dos produtos do sistema dos significados.

4. A pluralidade das formas culturais

Em primeiro lugar, deveremos ainda clarificar um outro importante aspecto relativo cultura e, assim, interrogarmo-nos se, no seu conjunto, as formas culturais presentes numa determinada sociedade podem ser consideradas um sistema coerente de significados, ou seja, uma realidade complexa, na qual interagem elementos heterogneos e diferentes nveis.

Tambm neste caso a resposta no simples. Efectivamente, e sem que a dvida se coloque, sempre possvel sublinhar, referindo-nos a uma sociedade histrica concreta, a prevalncia de formas de representao, valores, princpios normativos e modelos de comportamento que apresentam entre si uma relativa coerncia. Neste caso, podemos falar de um sistema cultural dominante,

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o qual permitir distinguir, por exemplo, alguns traos caractersticos da cultura da sociedade europeia da Idade Mdia de outros que se reportem ao Renascimento.

Todavia, temos de reconhecer que, ao faz-lo, estabelecemos uma seleco: recorremos, com efeito, a uma espcie de simplificao que pode ser til, no plano interpretativo, para sublinhar certos aspectos relevantes, mas a coerncia por ns posta em evidncia significa frequentemente um modo de realar as diferenas numa realidade bem mais variada.

Na sociologia da cultura, alguns autores tendem a relevar o elemento unitrio, enquanto, por vezes, outros acentuam a heterogeneidade que caracteriza as formas culturais num mesmo contexto social. No sculo passado, por exemplo, prevalecia a tendncia para se considerar a cultura como ideia ou Esprito do Tempo (Zeitgeist), como base para se caracterizar a especificidade de uma determinada poca e de uma determinada sociedade. De facto, essa tendncia privilegiava a cultura avanada das elites presentes nessa sociedade, subestimando, por exemplo, as formas de cultura popular que podiam ter o seu fundamento em referncias mais tradicionais (cf. Minch-Smelser, 1992, p. 4).

Na antropologia cultural, entre o fim do sculo xix e o incio do sculo xx, autores como Edward B. Tylor (1832-1917) e Robert H. Lowie (1883-1957) tendiam a sublinhar os elementos comuns de cada cultura, enquanto conjunto coerente e integrado de elementos (cf. Tylor, 1871), enquanto numa perspectiva evolucionista Lewis H. Morgan (1818-1881) e Friederich Engels (1820-1895) realavam um princpio unitrio da cultura, ligado a cada um dos estdios da comunicao social, estabelecendo a relao entre um certo nvel tecnolgico e certas formas de expresso religiosa, certos costumes e ordens normativas.

Na sociologia, Emile Durkheim (1858-1917) indicava, pelo contrrio, um princpio de unificao da cultura no sistema educativo prprio de cada sociedade (v. cap. ii, 3; cap. iv, 4, 4.1, 4.2). Pitirim Sorokin (1889-1968) reunia os diversos aspectos da cultura num nico princpio organizativo, desenvolvendo uma tipologia de culturas internamente coerentes (v. cap. m, 1.4). De modo anlogo, Ruth Benedict (1887-1948) distinguia culturas integradas, permeveis a uma nica ideia dominante (por exemplo, carcter apolneo ou dionisaco) e culturas que, pelo contrrio, apresentavam um alto grau de incoerncia (cf. Benedict, 1934). Talcott Parsons identificava em cada cultura um sistema global dominante de valores (cf. Mtinch-Smelser, 1992, pp. 6-13; v. cap. m, 1.3).

Numa recente anlise do problema, o socilogo americano Neil Smelser props que se considerasse o conceito de cultura preferencialmente como a chave interpretativa utilizada pelo observador e no como a simples descrio de uma realidade emprica. O salientar do grau de coerncia das diferentes culturas dependeria, em grande parte, do esquema conceptual por cuja utilizao se optasse, conforme a preferncia fosse orientada no sentido de evidenciar os elementos comuns ou as diferenas. O que no significa que a conceptualizao

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usada seja necessariamente arbitrria e no tenha em conta aspectos que possam empiricamente ser colocados em relevo, ainda que devamos estar conscientes do carcter de interveno selectiva que qualquer tipo de anlise da sociedade comporta (cf. Miinch-Smelser, 1992, p. 22 e segs.).

Porm, na sociologia da cultura, sobretudo a partir dos anos setenta, foi-se sempre afirmando, de modo crescente, a tendncia para se sublinhar o carcter variado dos significados culturais presentes numa determinada sociedade e a pluralidade das suas origens. Enquanto Talcott Parsons concebia a cultura como um sistema relativamente coerente de valores e normas (v. cap. m, 1.3), posteriormente, sobretudo devido influncia do socilogo Pierre Bourdieu (v. cap. iii, 3.5) e do antroplogo Clifford Geertz (1973), vieram a distinguir-se diversas ordens da experincia cultural, consoante nesta prevalea a tradio, o senso comum, o saber cientfico, as componentes ideolgicas, a religio ou as formas artsticas. Essas diferentes ordens esto geralmente presentes num mesmo contexto social, e at podem estabelecer confrontos entre si: por vezes, os actores sociais chegam a esse ponto, conforme as exigncias contingentes e os problemas prticos que se vem obrigados a resolver. A cultura surge ento como um conjunto polivalente, diversificado e frequentemente heterogneo de representaes, cdigos, leis, rituais, modelos de comportamento, valores que constituem, em cada situao social especfica, um conjunto de recursos, cuja funo prpria surge diferentemente definida consoante os momentos. A cultura pode assim ser definida como o conjunto das formas simblicas publicamente disponveis atravs das quais os indivduos, seleccionando instrumentos diversos a fim de construrem a sua linha de aco, traduzem e exprimem significados (cf. Keesing, 1974), um pouco como acaixa de ferramentas (tool kit) ou um repertrio, contendo smbolos, narraes, rituais e concepes do mundo, que os indivduos, seleccionando instrumentos diversos para a construo da sua linha de aco, possam utilizar em configuraes especficas, que variam no tempo (cf. Hannerz, 1969, p. 186 e segs.; Swidler, 1986, p. 273; v. cap. m, 3.6).

A pluralidade das fontes dos modelos culturais e o prprio carcter incoerente daqueles que surgem considerados como sistemas culturais so igualmente sublinhados pela sociloga americana Diana Crane, que prope a distino entre cultura registada (recorded) e cultura no registada (unrecorded). Na primeira esto includas todas as formas documentadas de cultura (textos escritos, filmados, produtos construdos pelo homem, meios de comunicao electrnicos, etc.) utilizadas nos diversos mbitos da cincia, da tecnologia, da lei, da educao, da arte e do divertimento. A cultura no registada, pelo contrrio, reporta-se a atitudes, crenas, valores partilhados, que possam ou no encontrar expresso nas formas registadas da cultura (cf. Crane, 1994, p. 2 e segs.).

Neste contexto surgem tambm articuladas e discutidas as distines, que ulteriormente viremos a reencontrar, entre cultura dominante e formas de

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contracultura ou de subcultura (por vezes tambm referida atravs da expresso cultura da pobreza), ou de cultura das minorias; entre cultura de elite e cultura popular ou de massas, entre cultura de classe e cultura dos movimentos, nas quais encontram geralmente expresso as realidades relacionadas com a idade (cultura juvenil), com o sexo (cultura feminina), com a origem tnica (cultura tnica), etc.

Existe um outro mbito especfico, traduzido na expresso cultura material, que utilizado pela primeira vez pela escola histrica francesa dos Annales (cf. Bloch, 1939; Braudel, 1967) e, posteriormente, retomado por numerosos antroplogos e socilogos (cf. Sahlins, 1976; Lefebvre, 1974; Mukerji, 1994). De facto, tal expresso refere-se aos diversos produtos culturais que assumem uma existncia autnoma objectiva, tais como os utenslios, os produtos artesanais, a maquinaria tcnica, a habitao, os edifcios pblicos, as estruturas virias e urbansticas, os meios de transporte, os hbitos alimentares, as estruturas criadas para a defesa militar, os jardins, os sistemas de distribuio de gua, o design dos objectos e tantos outros.

5. A relao entre teoria e investigao

Decorrente dos diversos conceitos at agora avanados, a dimenso terica possui um importante papel na definio do mbito da sociologia da cultura. Todavia, esse papel surge integrado na sua constante relao com a dimenso da investigao social.

Como veremos adiante, de modo mais aprofundado, (v. cap. n, 2, 10.1), o conhecimento sociolgico, sendo embora particularmente orientado para a observao emprica dos fenmenos sociais, no pode prescindir da elaborao de teorias, ou melhor, dos paradigmas conceptuais que orientam a pesquisa, apontando, por vezes, os critrios na base dos quais devero ser seleccionados os elementos a tomar em considerao. Com efeito, perante a realidade, to complexa, o conhecimento no se configura como uma simples reflexo neutra sobre factos objectivos, mas antes como uma interveno activa para a constituio do ponto de vista especfico a partir do qual a realidade estudada (v. cap. ii, 2). Assim sendo, o objecto de estudo no subsiste de modo independente da perspectiva terica adoptada, sendo, de certo modo, formado a partir desta, na medida em que cada cincia no s estuda relaes especficas entre elementos, mas tambm sistemas de relaes, individualizando selectivamente essas relaes, segundo a perspectiva cognitiva por esta adoptada.

Por outro lado, tal como evidenciado pela sociologia do conhecimento (v. cap. ii), cada saber nasce em estreita relao com o contexto scio-cultural concreto, com as tradies implantadas na comunidade cientfica na qual se integra o cientista e com as experincias de vida deste. De facto, a elaborao

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terica vai buscar os seus primeiros elementos conceptuais no s ao mbito do senso comum, mas tambm ao das reflexes tericas precedentes que se vieram a suceder no tempo.

A teoria o conjunto dos pressupostos e postulados, das definies e proposies descritivas que, unidas logicamente entre si, constituem o esquema conceptual de referncia geral, a partir do qual vm sucessivamente deduzidas as hipteses, isto , as suposies especficas sobre as relaes existentes entre as variveis. Com este ltimo termo vm indicados cada um dos factores identificados na base da teoria, que so directamente verificveis no plano emprico.

Dado que, na sociologia como nas outras cincias empricas, a teoria possui sobretudo uma funo instrumental finalizada na observao, a prpria teoria pode ser considerada uma hiptese geral de fundo, susceptvel de permanentes revises, a partir das experincias de observao directa dos fenmenos. Assim, existe aqui uma estreita relao entre teoria e investigao emprica, na medida em que a primeira orienta a segunda e esta contribui para a definio da primeira, numa constante relao circular. A validade de uma teoria especfica deve, por conseguinte, ser avaliada a partir da capacidade que esta possui para colocar em evidncia os aspectos considerados relevantes para a compreenso dos processos que presidem construo da realidade social.

Antes de considerarmos os mbitos especficos de aplicao da sociologia da cultura e as formas da investigao emprica que lhe so prprias (v. caps. iv e v), deveremos entrar no cerne do seu debate terico.

No segundo captulo ocupar-nos-emos das diversas abordagens tericas que se reportam relao entre as formas do conhecimento e as estruturas sociais. Esta problemtica preliminar, porm, ser limitada anlise das teorias que se debruam, na generalidade, sobre a relao entre cultura e sociedade, e que sero examinadas no captulo terceiro. A dimenso cognitiva, sendo embora uma parte do complexo fenmeno da cultura, apresenta aspectos especficos que permitem, antes de mais, formular interrogaes sobre o estatuto do saber cientfico, os seus fundamentos, as suas possibilidades e limites, isto , permitem evidenciar quais os pressupostos epistemolgicos que se encontram na base do saber sociolgico. Desse modo poderemos compreender como se coloca a sociologia relativamente s outras formas do saber cientfico.

Obviamente que a distino entre as teorias referentes relao entre conscincia e realidade social e as teorias que consideram a relao entre esta e a cultura na sua globalidade no deve ser entendida de modo rgido: como veremos, muitas vezes no s so os prprios autores que se ocupam de ambos os aspectos, como tambm subsistem estreitos laos entre ambas as perspectivas.

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II - AS TEORIAS DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

A vasta produo terica desenvolvida no sector da sociologia do conhecimento, podendo embora ser considerada uma disciplina autnoma, igualmente uma parte constitutiva da sociologia da cultura entendida em sentido lato e, como j foi dito, representa, sob certos aspectos, a premissa desta.

A sociologia do conhecimento examina a relao entre as estruturas concretas da sociedade e as formas do saber, colocando em evidncia as influncias recprocas entre essas duas dimenses. O pressuposto existente na base de tal anlise que as diferentes teorias filosficas, teolgicas, polticas e cientficas so interpretaes da realidade que, tendo origem no interior dos diversos contextos sociais, reflectem destes, em grande parte, as condies e os problemas que lhes so especficos. Se todavia, e frequentemente de modo decisivo, os processos de formao do pensamento so influenciados por factores no tericos, por sua vez, os resultados interpretativos, conseguidos atravs de tais processos, podem contribuir para determinar a actuao social, definindo metas colectivas a alcanar e propondo modelos prticos concretos, at se constiturem como uma fora activa na transformao das prprias estruturas da sociedade.

Em sociologia, o termo estrutura remete, efectivamente, para cristalizaes de particulares modos de ser e de agir que, em estreita relao com as caractersticas materiais do ambiente especfico e os recursos neste disponveis, se consolidam por forma a perdurarem no tempo, condicionando a consequente actuao social. Logo, tambm as estruturas so, em grande parte, produto da cultura e configuram o sistema social atravs de mediaes simblico-normativas, que definem as posies e os papis no seu interior e fixam, no seu conjunto, as instituies vigentes. Nos confrontos da aco social, as estruturas apresentam, com efeito, a mesma ambivalncia das formas de mediao simblica: por um lado, as estruturas, enquanto produto da experincia e da memria colectivas, constituem um suporte indispensvel que facilita o agir; por outro, enquanto formas objectivadas essencialmente redutoras, podem constituir um obstculo

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ou, de qualquer modo, uma limitao s possibilidades de inovao do prprio agir e, assim, serem consideradas constritivas. Relativamente ao conceito de estrutura, a palavra processo, pelo contrrio, indica a dimenso dinmica da realidade social, isto , a interaco complexa entre elementos diversos, presentes no agir social, que pode ser percepcionada pelo observador segundo linhas de desenvolvimento que do origem a determinados efeitos concretos ou a determinados mbitos de significado. O carcter de objectivao prprio das estruturas no deve fazer esquecer que estas s subsistem graas constante reproduo de formas de agir ligadas a determinados modelos e que, assim, possuem um carcter processual. A relao entre formas de conhecimento e estruturas sociais pode, ento, ser tambm compreendida como inter-relaes entre processos diversos de produo da realidade social.

O socilogo alemo Karl Mannheim (v. 7 do presente captulo) designou a funo da sociologia do conhecimento segundo dois nveis distintos: como teoria, procura analisar a relao entre o conhecimento e a existncia; como investigao histrico-sociolgica, esfora-se por encontrar as formas que tal relao assumiu no desenvolvimento intelectual da humanidade. (Mannheim, 1929, p. 267, itlico meu.)

Como veremos, a sociologia do conhecimento teve, na nossa poca, uma grande influncia no desenvolvimento da epistemologia filosfica e cientfica, modificando at, de modo decisivo, a concepo dos processos cognitivos.

Aplicando s prprias teorias sociolgicas os mtodos de interpretao especficos da sociologia do conhecimento, poderemos observar que esta surge no sculo passado enquanto disciplina autnoma, num momento de profundas alteraes sociais ligadas ao desenvolvimento da industrializao. Na origem da sociologia do conhecimento parece encontrar-se, sobretudo, a inteno de denunciar a falsidade das doutrinas polticas, econmicas e filosficas que haviam encontrado a sua expresso na sociedade pr-industrial: sob este ponto de vista, podemos dizer que o incio da sociologia do conhecimento vai receber inspirao dos movimentos de pensamento que caracterizaram o Iluminismo, enquanto projecto global de desmistificao racional dos preconceitos ligados s doutrinas teolgicas e metafsicas tradicionais.

Interpretando a histria como progresso constante do esprito humano, os filsofos do Iluminismo partilhavam a ideia de que o pensamento da sua poca era superior ao das pocas passadas e, assim, contriburam para que se sublinhasse o nexo entre as diversas formas de pensamento e as diferentes pocas com as suas particulares caractersticas histrico-sociais.

Sucessivamente, considerando a histria como o desenvolvimento dialctico de um esprito em constante superao, Hegel (1807) acentuar a relao entre as representaes filosficas e tico-religiosas e as diversas pocas. Estavam assim colocadas as premissas para a sociologia do conhecimento e, com efeito, Karl Marx (1818-1883), o autor ao qual reconhecido, em primeiro lugar, o

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mrito de ter dado um impulso decisivo ao tipo de anlise que ulteriormente vir a ser desenvolvido naquela disciplina, poder facilmente ser reconhecido como um dos herdeiros directos dessa orientao.

1. Karl Marx e a crtica das ideologias

Colocando como primeiro pressuposto real, do qual se pode partir para uma compreenso da histria humana, a produo dos meios de subsistncia, Marx considera o trabalho como a actividade fundamental que, na relao com as efectivas condies materiais com o ambiente e os recursos nele disponveis, define os modos de reproduo (famlia) e as formas da organizao social (relaes de produo, modos de produo). Neste contexto, a prpria conscincia que os indivduos possuem de si e da sua situao social surge como produto das relaes sociais. O desenvolvimento da conscincia, que inicialmente simples percepo do ambiente sensvel imediato, decorre do desenvolvimento das foras de produo e das novas formas de organizao social derivadas da afirmao do princpio da diviso do trabalho: A conscincia , portanto, desde o seu incio, um produto social, e assim permanece enquanto existirem os homens. (cf. Marx, 1846, p. 243.)

Com a distino entre trabalho manual e trabalho intelectual, presente na nossa tradio cultural desde a Antiguidade, a conscincia tende a considerar-se como autnoma em relao ao mundo e julga poder dar vida a formas culturais independentes da realidade que a circunda: a filosofia, a moral, a teologia.

Com efeito, para Marx, tal autonomia da conscincia perfeitamente ilusria, na medida em que aquela reflecte constantemente a realidade da praxis existente em cada contexto histrico-social. Tal praxis, formada pelas foras de produo (recursos naturais e tcnicas disponveis) e pelas relaes de produo (propriedade dos meios de produo, tipo de relaes de trabalho internas organizao produtiva), constitui a estrutura de suporte ou, como mais tarde diro os tericos marxistas, a infra-estrutura que determina as formas da superstrutura social, representada pelo conjunto das formas de interpretao mtica, artstica, filosfica, religiosa e no s dos sistemas normativos institucionais como tambm dos contedos da conscincia individual e colectiva (cf. Marx, 1867). Assim, para conhecer a verdadeira natureza dos fenmenos que se apresentam a nvel superstrutural torna-se necessrio coloc-los em relao com os factores infra-estruturais que os determinam.

Com base neste pressuposto, o projecto de desenvolvimento de uma teoria cientfica da sociedade, isto , uma teoria que reflicta as condies reais da dinmica emprica que preside aos processos histrico-sociais, vem a ser realizado a partir de Marx, atravs da crtica das teorias clssicas da economia poltica de Smith e de Ricardo e da crtica do socialismo utpico de Proudhon e

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outros. Com efeito, o objectivo da investigao cientfica consiste, para Marx, em alcanar a essncia interna dos fenmenos, para alm das aparncias enganosas que recolhem as preferncias das interpretaes tericas, as quais, no sendo conhecedoras dos seus condicionamentos sociais e econmicos, se transformam, de facto, em justificaes daquilo que existe ou, como hoje diramos, constituem racionalizaes daquilo que na realidade complexo e contraditrio.

De imediato, necessrio observar que a referncia ao conhecimento cientfico, assumido ainda da maneira ingnua decorrente da tradio positivista de Augusto Comte (1798-1857), permite a Marx no submeter a sua prpria teoria ao critrio geral, por ele adoptado, de considerar a actividade terica como reflexo da realidade da praxis econmico-social: enquanto exactamente cientfica, a sua teoria pretende reconhecer as condies empricas efectivas que determinam o curso da histria e, muito especialmente, at mesmo as formas do saber no cientfico. A sua teoria pretende-se, portanto, autenticamente objectiva e desligada de qualquer influncia que no seja a do conhecimento directo da realidade.

Constituindo este pressuposto acrtico a mais grave limitao das posies de Marx, isso nada retira importncia da intuio deste acerca da relao que subsiste entre a realidade histrico-social e as formas do conhecimento, nem ao interesse que apresentam as suas primeiras tentativas no sentido de encontrar tal relao nas teorias por ele analisadas.

Poderemos, com efeito, encontrar um primeiro exemplo de anlise da sociologia do conhecimento na j referida crtica das teorias clssicas da economia poltica, na qual Marx procura mostrar como tais teorias representam a justificao de um estado de coisas determinado pelo modo de produo e pelos interesses objectivos da classe empresarial burguesa. Marx censurara os economistas por ignorarem as diferenas histricas e verem, em todas as formas de sociedade, a sociedade burguesa (cf. Marx, 1851, i, p.33). O conceito de homo oeconomicus, que se encontra na base dessas teorias, surge efectivamente como uma abstraco directamente decalcada do modelo concreto do indivduo burgus, considerado como o tipo de homem no sentido absoluto, e as relaes especficas dentro da sociedade burguesa surgem interpretadas como leis de natureza eterna e independente (ibid., p. 9). Do mesmo modo surgem entendidas como necessidades naturais aquelas que, na realidade, so necessidades sociais, culturalmente induzidas a partir de uma forma de produo que cria o estmulo para o consumo (cf. ibid., p. 18).

Anloga crtica colocada por Marx s teorias do socialismo utpico, o qual, na sua abstraco, se revela pouco atento s influncias que sobre este exerceu o modo de produo capitalista. Marx censurara vivamente Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), autor do famoso ensaio Sistema delle contraddizioni economiche o filosofia delia misria (1846), por no ter compreendido que so as foras produtivas que determinam as relaes sociais e por considerar como

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categorias eternas e universais conceitos que, na realidade, no passam de um produto histrico transitrio: Aabstraco, acategoria considerada enquanto tal, isto , separada dos homens e das suas actividades materiais naturalmente imortal, imvel e imutvel, s ela uma forma do ser de pura razo. (Marx, 1846, p. 285) Para Proudhon, a existncia burguesa uma verdade eterna: Ele considera os produtos da sociedade burguesa como existncias eternas independentes, dotadas de vida prpria, no apenas como apresentando-se na sua mente... Ningum compreende que o modo de produo burgus histrico e transitrio, exactamente como o era o modo de produo feudal. (ibid., pp. 285-286)

A partir do reconhecimento de que nenhuma categoria terica pode ser considerada desligada do contexto histrico-social no qual se encontra integrada, Marx desenvolve a sua crtica da ideologia.

O termo ideologia havia sido introduzido, em fins do sculo xvm, pelo filsofo francs Antoine Destutt de Tracy (1754-1836) para indicar o conjunto das anlises referentes s origens das ideias, a gramtica e a lgica. A palavra idologues designa, nesse mesmo perodo, os filsofos que, como Pierre Cabanis (1757-1808), o referido Destutt de Tracy e Jean Condorcet (1743-1794), criticavam as teorias metafsicas dos philosophes tradicionais, acusando-as de serem abstractas e fantasiosas, porquanto no se apresentavam baseadas na observao emprica e no clculo matemtico. No entanto, posteriormente, o mesmo termo idologues assume um significado depreciativo: com efeito, Napoleo us-lo- para designar o tipo de intelectual da abstraco ou de m f.

Prosseguindo na mesma direco, o prprio Marx utiliza a palavra ideologia para referir aquelas representaes ilusrias da realidade que servem para ocultar as efectivas contradies daquela e para legitimar os interesses do poder constitudo. A religio, a filosofia, a historiografia, as teorias polticas, morais, econmicas so, para Marx, o reflexo e o revestimento da desigualdade social e das oposies objectivas dos interesses de classe. Tais teorizaes ocultam a relao entre as formas do pensamento e os seus efectivos condicionamentos histrico-sociais, dando lugar a falsas universalizaes, cuja funo sobretudo a de justificar a ordem constituda e orientar as frustraes prprias dos indivduos no sentido de ideais abstractos (a vida no Alm, a racionalidade, a justia, etc), de modo a afrouxar as tenses conflituais presentes na sociedade e a manter o consenso. Assim, as ideologias so, sobretudo, um instrumento de poder e de manipulao da conscincia.

Ligado ao conceito de ideologia encontra-se tambm o conceito de falsa conscincia, ou seja, de uma conscincia que no toma em conta o carcter histrico das formas de mediao simblica que utiliza e os verdadeiros motivos do seu agir: os sistemas ideolgicos podem ser vistos como o resultado da elaborao, a nvel intelectual, da falsa conscincia e, ao mesmo tempo, como os factores que induzem essa falsa conscincia, consolidando-a.

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Por trs de qualquer forma ideolgica dominante possvel, segundo Marx, encontrar os interesses das classes que se encontram no poder. A verdadeira natureza de tal forma pode ser identificada apenas atravs da anlise, numa concreta situao histrica, da sua relao com as estruturas das relaes de produo subjacentes, que determinam as representaes da realidade natural e social e as explicaes e interpretaes que destas so apresentadas (cf. ibid.).

Ao pensamento de tipo ideolgico contrape Marx, como j foi dito, o saber propriamente cientfico, que se baseia na anlise emprica das dimenses objectivas representadas pelas foras e pelas relaes de produo, enquanto factores determinantes dos efectivos interesses e das efectivas relaes de poder entre as classes. E obrigao do saber cientfico desmascarar as ideologias, a fim de promover uma conscincia ciente das razes profundas que se encontram na base dos problemas com que se dever confrontar no plano prtico.

Um dos problemas a que a crtica da teoria marxista teve de fazer face consistiu em saber se a relao entre estrutura e conscincia, entre base econmica subjacente e formas do saber, no dever ser entendida como um rgido determinismo, no sentido em que os condicionamentos estruturais so a causa das formas culturais concretas do conhecimento, segundo um esquema de tipo unidireccional ou se, pelo contrrio, subsistem em Marx os pressupostos que permitem mostrar at mesmo a influncia que as formas do conhecimento podem exercer sobre as estruturas, segundo um esquema de tipo circular. Na realidade, encontram-se presentes em Marx duas almas, na medida em que, por um lado, na referncia ao modelo de inspirao positivista, Marx levado a acentuar as suas explicaes num sentido rigidamente determinista, mas, por outro, impelido pela influncia da posio historicista de inspirao hegeliana e romntica, sobretudo quando anuncia a aco revolucionria que dever conduzir a uma radical superao do capitalismo, a revalorizar os elementos subjectivos da conscincia de classe, enquanto fora activa de promoo da mudana poltico-social.

No que se refere sociologia do conhecimento, foi sobretudo este segundo aspecto que veio a ser evidenciado pelos intrpretes do pensamento de Marx, na via de uma mais equilibrada avaliao da circularidade das influncias recprocas, estrutura material e forma do saber. J Friederich Engels (1820-1895), o pensador e homem poltico que, como sabido, colaborou intimamente com Marx na construo da sua obra, havia dado indicaes neste sentido, precisando, poucos anos aps a morte daquele, que s em ltima instncia se pode dizer que a produo e reproduo da vida real determinante na histria, mas que, de algum modo, nem ele prprio nem Marx haviam pensado em considerar o factor econmico como o nico factor determinante: as formas polticas da luta de classes e os seus resultados, as constituies promulgadas pela classe vitoriosa aps ter vencido a batalha, etc, as formas jurdicas, e at o reflexo de todas estas lutas reais no crebro dos que nela participam, as teorias polticas,

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jurdicas, filosficas, as concepes religiosas e a sua ulterior evoluo at se constiturem num sistema de dogmas, exercem efectivamente a sua influncia sobre o curso da luta histrica e, em muitos casos, determinam-lhe de modo preponderante a forma. Existe aco e reaco recproca entre todos estes factores... (Engels, 1890, p. 1242)

2. Max Weber e a relao entre conhecimento e estruturas sociais

Um aprofundamento decisivo para a clarificao da relao entre formas de conscincia e estruturas sociais e econmicas, segundo o princpio da reciprocidade da sua respectiva influncia, foi levado a cabo por Max Weber (1864-1920), a partir da sua crtica da concepo positivista da cincia.

O debate que teve lugar na Alemanha, na segunda metade do sculo xix, acerca da distino entre cincias da natureza e cincias do esprito, ou cincias histrico-sociais, colocara efectivamente as premissas para uma profunda transformao do prprio conceito de cincia. Tal como foi anteriormente referido (v. cap. i, 1), com o propsito de fundamentar a autonomia cognitiva das cincias histrico-sociais relativamente s cincias da natureza, o filsofo alemo Wilhelm Dilthey, a partir do pressuposto da essencial historicidade do ser humano, havia defendido, contra a concepo dialctica da Histria de Hegel, a individualidade especfica de cada poca histrica. Cada poca, mais do que ser interpretada enquanto momento de um processo histrico global e, assim, ser reorientada para princpios gerais abstractos, surge compreendida na sua coerncia interna de significado e na sua irrepetvel unicidade. Cada poca , portanto, considerada em si prpria e apresenta-se como incomparvel relativamente a outras pocas. Nesta perspectiva, as disciplinas que se propem estudar os fenmenos histrico-sociais devem usar mtodos de anlise especficos, que tenham em conta os significados ciclicamente participantes e as motivaes psicolgicas que orientam o agir.

O conceito eErlebnis, de experincia imediatamente vivida pela conscincia do sujeito, no interior de um mundo de significados histricos, constitui, para Dilthey, o primeiro dado, a unidade mnima de anlise das cincias do esprito (cf. Dilthey, 1910, p. 47). A experincia vivida pelos sujeitos na sua vida quotidiana, relativamente a formas concretas de mediao cultural e condies histrico-sociais particulares, s pode ser estudada mediante um processo de compreenso, baseado na capacidade do observador para reviver e reproduzir tal experincia, no contexto da situao social concreta e dos sujeitos que passaram a acto o acontecimento histrico ou nele participaram. Enquanto as cincias naturais se encontram orientadas no sentido de colocar em evidncia leis gerais e explicar (Erklaren) os acontecimentos com base em nexos causais, as cincias do esprito esto orientadas para colocar em evidncia a unicidade

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dos eventos e compreend-los (Verstehen) em relao com os significados neles vividos (cf. Dilthey, 1883).

Para os objectivos da sociologia do conhecimento, a distino de Dilthey adquire uma importncia decisiva, enquanto reconhecimento do relevo assumido pela dimenso cultural no processo de compreenso do agir humano, comportando igualment