Manuel Querino - A Arte Culinaria Na Bahia

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Manuel Querino - A Arte Culinaria Na Bahia

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  • Manuel Querino

    A Arte Culinria na Bahia Reviso grfica e atualizao ortogrfica

    Iba MendesIba MendesIba MendesIba Mendes

    Publicado originalmente em 1928.

    Manuel Raimundo Querino

    (1851 1923)

    Projeto Livro Livre

    Livro 527

    Poeteiro Editor Digital

    So Paulo - 2014 www.poeteiro.com

  • PROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVREPROJETO LIVRO LIVRE

    Oh! Bendito o que semeia Livros... livros mo cheia...

    E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma

    germe que faz a palma, chuva que faz o mar.

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    Iba Mendes [email protected]

    www.poeteiro.com

  • NDICE

    A CULINRIA BRASILEIRA..............................................................................

    AO LEITOR.....................................................................................................

    GUISA DE PREFCIO...................................................................................

    ADVERTNCIA PRELIMINAR...........................................................................

    DOS ALIMENTOS PURAMENTE AFRICANOS..................................................

    DE ALGUMAS NOES DO SISTEMA ALIMENTAR DA BAHIA.......................

    DO PREPARO DE LICORES.............................................................................

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    A CULINRIA BRASILEIRA A APOTEOSE EM PARIS DO VATAP E DA FRIGIDEIRA DE SIRIS

    No dos nossos hbitos fazer transcries. Abrimos entretanto hoje, uma exceo, e bem justificada, para uma deliciosa A Semana, escrita no Jornal do Comrcio, do Rio, pelo ilustre homem de letras, nosso conterrneo, Constando Alves, com a sub-epigrafe "Glrias nacionais, e a propsito do sucesso que pratos da culinria brasileira obtiveram num banquete em Paris. como segue: A Soeiet Nationale d'Aclimatation houve por bem incluir no cardpio cosmopolita do seu recente banquete anual pratos genuinamente brasileiros. Quem se incumbiu do encargo, to cheio de responsabilidades, de organizar esta lista que eu no ouso chamar menu (para no assanhar contra mim os defensores do vernculo) j recebeu dos convivas, a quem felicitou, agradecimentos de inegvel sinceridade. Muito pde mentir a boca quando fala. Mas o que ela no pode fingir a gua que lhe vem da gula deliciada por obras primas da arte culinria, o encanto com que saboreia maravilhas criadas por cozinheiros, dignos pela sua benemerncia, de subirem a categoria dos deuses. Alm dessas homenagens da gratido mastigadora, o organizador do cardpio mereo o reconhecimento patritico de milhes de almas que embora daquele jantar no tivessem sequer sentido o cheiro, estilo impando de felicidade, como se houvessem comido a fartar. Tiveram tambm o sou regalo do bom de Brasileiros, porque, naquela mesa parisiense, figuraram honrosamente nos quitutes capazes de arrancar unnimes aplausos. Naquela mesa, posta num salo da cidade que distribuo a glria, houve para bem criar um concurso universal de comedorias. Pases entraram com pteos caractersticos, e o Brasil no se saiu mal, no voltou do certame cabisbaixo, vertendo lgrimas de fel sobre uma terrina desprezada. No, aquilo com que contribuiu para o xito da Testa, recebeu honrarias especiais de estmagos maravilhados.

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    Nem era para menos. Quem escolheu os pratos que devia representar a nossa cozinha, tem dedo! Tirou do nosso guarda-comidas jias preciosas. O que l apareceu sob o pseudnimo de timbales de mollusques et de crustaces trs apprecis au Brsil, a famosa frigideira de siris mole, a qual, sem exagero, cabe a denominao de divina. E que direi eu do Vatap, a mais prodigiosa inveno do gnio da Bahia? L estava ele, ciente do seu valor, certo de no ser vencido por preparava o seu complicado macarro, que lhe causava mais orgulho que o Barbeiro de Servilha.

    Espalhada pelo mundo a fama da nossa cozinha, quantos estrangeiros no viriam aqui, simplesmente para comer? No deixariam de amar a nossa natureza; ela porm, passaria ao papel secundrio de fornecer o elemento decorativo para o almoo ou o jantar. Almoar no alto do Corcovado, jantar sombra de mangueiras majestosas, que prazer! Mas a mesa, rstica ou pomposa, seria o principal. E a panela do vatap, consagrado pelo consenso unnime dos povos,ficaria mais alta que as nossas montanhas. Quando sassem daqui, lambendo os beios, os viajantes no teriam palavras azedas para os hspedes e levariam impresses intensas. A gratido do paladar mais duradoira que a de outros sentidos. Msica que entra por um ouvido pde sair pelo outro. A viso de uma paisagem esmorece na memria frgil. Mas a reminiscncia de um bom vatap eterna. Demais, quem teve a fortuna de prov-lo, quer repetio. E nem todos os que ouviram uma pera fazem questo de ouvi-la novamente.

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    No se diga que seja indigno do orgulho nacional o empenho de ganhar a ateno do mundo por quitutes. A celebridade alcanada por esse meio no inferior que se obtm pela filosofia, pela arte e pela cincia. Uma cozinheira pde revelar gnio e os gnios so iguais. Na culminncia da sua

    arte, ela fica no mesmo plano superior a que subiram KANT, RAFAEL, MOZART e outros habitantes das grandes alturas.

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    Quando Presidente da Repblica, THIERS era visitado por MIGNET, que aparecia em palcio, sempre, com um embrulho em baixo do brao. Aquilo havia de ser um livro; Pois, no era. O que ele levava era uma lata hipcrita, e dentro dela havia a famosa bouilabaisse, moda de Marselha. Fechavam-se os dois no gabinete da presidncia e a se entregavam delcia daquele prato regional, s escondidas de Me. THIERS, que obrigava o marido a uma severa dieta. Quando se despediam, era com esta frase de entusiasmo: obra-prima do esprito humano! Isso diziam dois historiadores, que deveriam reservar aquelas palavras para as obras de TCITO e TITO LVIO. Animados por esse exemplo, no hesitemos em afirmar que a humanidade nos deve obras-primas do esprito humano, dessas que glorificam uma nao e imortalizam um povo. O vatap pde considerar-se to sublime quanto a Crtica da Razo Pura, com a vantagem de ser igualmente profundo e mais acessvel ao gosto do gnero humano, que parece preferir melhor filosofiaos bons bocados. C.

    (De A Tarde de 16101930).

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    AO LEITOR Dando luz da publicidade a "Arte Culinria", obra do meu mui querido e saudoso Pai, devo dizer que no foram pequenas as dificuldades que enfrentei para que a mesma no ficasse no original. A admirao que todos os seus trabalhos tm merecido dos intelectuais baianos e, qui, do Pas inteiro, bem como a que mereceu a "Arte Culinria", lida de antemo, por um dos seus maiores apreciadores e bom amigo o Exmo. Sr. Alberto Moraes Martins Catarino, deram-me foras para que no esmorecesse na tarefa que ora cumpro, mais pelo amor filial do que por interesses mesquinhos. A todos que lerem este trabalho de meu Pai, o meu agradecimento profundo e a minha gratido.

    Paulo Querino

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    GUISA DE PREFCIO EM TORNO DA GEOGRAFIA DA ALIMENTAO

    Consideraes lidas em sesso do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia pelo

    Prof. Bernardino Jos de Souza, a respeito do trabalho "A Culinria Baiana" do Prof. Manuel Querino. Tanto que o meu velho amigo Professor Manuel Querino, indefesso Investigador das nossas coisas passadas, me anunciou o seu trabalho a respeito da "Culinria Baiana", dando-me a trao largo a diretriz por ele prosseguida em searas de todo descuidadas entre ns, na minha retentiva, um tanto disciplinada em ctedra que memria pede longo flego, surgiu a lembrana de umas pginas magistrais dadas a lume na "Revista da Sociedade de Geografia de Frana", em 1909. Lembrando-as, eu disse ao nosso prezado confrade que o seu trabalho era de grande conta, subindo-lhe a estima por iniciar no Brasil estudos muito srios e que desvelavam engenhos em meios mais cultos. De feito, quem j houver perlustrado as pginas de algum dos livros da moderna escola de gegrafos franceses, que teve como chefe o inolvidvel mestre Vidal de Ia Blache e tem hoje como expoente o emrito professor Jean Brunhes, do Colgio de Frana, certo, no h de estranhar os gabos que presenteio monografia que nos acaba de ler o velho professor pedindo ademais um voto de louvor na ata dos nossos trabalhos em homenagem ao opimo fruto de to relevante lavragem. De h muito, meus confrades, alm Atlntico, j se no insiste na importncia dos estudos consagrados alimentao, habitao e ao vesturio que constituem os trs fundamentas essenciais de toda a geografia econmica. Victor Brard, vigoroso publicista francs, socilogo de largos crditos em sua Ptria, notou bem justa que nos tempos antigos, quando se compuseram as epopias homricas, os homens no se classificavam segundo caracteres somticos, como a cor da pele, a conformao do crnio, etc., nem segundo os caracteres das lnguas ou dos dialetos que falavam, porm, sim, de acordo com seus alimentos. No se cuidava naquele ento de negros e brancos, pardos e amarelos: nomeavam-se to somente os comedores de peixe, comedores de ltus, os sitofgos, os ichtifagos, os lotofgos, acrescentando Brard que a classificao dos homens em "fagos" mais realista e mais verdadeira do que a classificao em "fonos, isto , embasada nas lnguas faladas. O gegrafo russo Voelkof, em 1909, em dois artigos publicados no rgo oficial da Sociedade de Geografia de Frana, patenteou a relevncia dos problemas da

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    geografia da alimentao, esboando uma classificao das gentes consoante as modalidades da alimentao pelos cereais, pela carne e pelos lacticnios, terminando por formular algumas concluses a respeito do futuro da alimentao, passveis apenas de objees pelo exclusivismo de vegetariano convencido e militante que o notvel mestre moscovita. Menor no foi a contribuio que trouxe aos novos estudos o professor alemo Lichtenfelt. Publicando em 1913 a sua obra Die Geschichte der Ernaehrung A Histria da Alimentao. As 365 pginas desse formoso trabalho so manancial abundoso de sugestes para historiadores e gegrafos, revelando-se-nos em linhas muito claras toda a importncia econmica e social do problema da nutrio humana. Jean Brunhes, que escreveu profunda sntese da Geografia Humana em livro admirvel que o consagrou a maior autoridade do Mundo latino em to belos granjeios, na lio inaugural de um curso de "Antropografia" no Colgio de Frana, chama a ateno dos estudiosos para um livro inteligente aparecido em 1912, da lavra de um ilustrado engenheiro e viajante que se ocultou sob o pseudnimo de Ali-Bab. Nesse trabalho intitulado Gastronomia Prtica. Estudos Culinrios, o seu autor traceja um quadro curiosssimo da geografia da cozinha, pondo em luz as condies e as causas geogrficas da repartio destas ou daquelas iguarias. No captulo preambular Ali Bab versa, a histria da gastronomia, dividindo-a em duas partes: uma histria das diferentes cozinhas e um quadro das cozinhas atuais. Eu cito apenas, ilustres confrades, os mais momentosos trabalhos a respeito dessa nova ordem de pesquisas cientficas: deixo margem os muitos artigos de vulgarizao dados a lume em revistas e peridicos. J notava Jean Brunhes que, quando se fala de cozinha, parece que se desce das regies superiores do pensamento para a ocupao trivial de problemas terra terra. Entretanto, so escrpulos superficiais que, precipuamente, se desmancham luz dos inestimveis servios que, para o conhecimento dos usos e costumes dos nossos mais remotos antepassados, tm prestado os restos de cozinha que a cincia europia apelida rebarbativamente kjokken modinger e entre ns se denominam sambaquis to abundantes na faixa litornea do Rio de janeiro ao Rio Grande do Sul. Alm disto, uma verdade inconteste que, no somente grupos tnicos, mas tambm certas naes e pases so definidos, ou se quiserem, parcialmente definidos, por sua alimentao corrente, por certas e determinadas iguarias preponderantes na alimentao de suas gentes ou caractersticas de suas cozinhas.

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    Sabem todos quem so os comedores de po, os bebedores de cerveja, os comedores de arroz e os bebedores de ch ou de mate. Uma iguaria ou um manjar nacional como o cocido espanhol, o polenta italiana, a mamaliga rumaica, a porridge escosesa, o stchi ou o bortsch da Rssia, a sexa da Sucia, o knckebrd da Finlndia, o yougourt da Bulgria, a miliasse dos departamentos franceses do Oeste, a gaude da Borgonha e do Franco Condado, o chuppatis da ndia Septentrional, o tzamba tibetano, o tofou japons, o couscoussou rabe da frica do setentrio, a tortilla mexicana, o churrasco platino, o puchero da Argentina, o jupar e o reviro das beiras do Paran, entre o Brasil e o Paraguai, o vatap e o caruru da nossa Bahia, so como espcies designais nacionais que despertam em nossos espritos excelentes representaes de um certo nmero de traos pertinentes a estas conectividades. Valendo-me da sugesto do insigne mestre francs, tantas vezes citado, eu vos perguntarei: Quantos Estados do nosso Brasil no poderiam ostentar como smbolo em seus estandartes particulares um prato ou um produto regional? O assunto realmente de alto interesse. Guerra Junqueiro escreveu estes versos robustos:

    "Bom estmago e ventre livreum patrimnio.

    A vida boa ou m, faz rir ou faz chorar,

    Conforme a digesto e conforme o jantar.

    Toda filosofia, pode cr-lo, Doutor,

    Ou tristonha, ou risonha, ou alegre, ou sombria

    Deriva em ns, to orgulhosas criaturas,

    De gastrointestinais combinaes obscuras".

    Avivando a vossa ateno no apreciar maduramente o invulgar da preciosa monografia do Prof. Manuel Querino, no me furto ao prazer de vos referir as palavras de Jean Brunhes em sua aula inaugural j referida, instando, persistente na monta de tais problemas: no curso de meus estudos em torno da pennsula balcnica e a respeito da geografia humana dos pases da mesma pennsula, liguei importncia excepcional a tudo o que constitui a alimentao costumeira, os alimentos tradicionais e o gnero de vida. Passeando um dia pelas ruas de Belgrado (capital do novo reino Serbo-Croata-Sloveno), percebi na frente de uma modestssima bodega uma mesa onde se achavam um Samovar e um Kanta; o Samovar o utenslio de cobre que serve para fazer ch; o Kanta um vaso cravado de cobre no qual se fabrica e vende a boza, que uma bebida de farinha de milho fermentada. Ora, o Somovar e o ch exprimem um costume russo, enquanto que a boza de origem turca. Nesse pas eslavo, que por tanto tempo esteve sob o domnio dos turcos, as influncias da Rssia e da Turquia

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    esto flagrantemente figuradas pela justaposio inesperada do Samovar e do Kanta.

    Ponderai, meus caros confrades, na acuidade da observao que resumbra destes perodos de ouro. A ficam estas palavras margem da criteriosa monografia oferecida hoje ao Instituto, em palestra saborida. No pretendi criticar-lhe a contextura, at porque s a conhecia no rpido sumrio de conversa ntima, numa dessas tardes amigas em que aqui nos encontramos, ns, os do grupo mantenedor da atuao diligente e viva do Instituto. O meu intuito foi apenas despertar os respeitos dos estudiosos desta tenda para a importncia atualssima que, nos meios cultos do velho e novo mundos, tm os estudos a cuja categoria pertence o trabalho do Prof. Manuel Querino. Ele , no Brasil e ao meu conhecimento, a primeira contribuio sria nessa provncia dos estudos histrico-geogrficos: cabe ao nosso Instituto a honra de mais uma iniciativa na labuta a que se devotam as sociedades congneres da Repblica. O meu voto final que a monografia do Prof. Manuel Querino seja capaz de empolgar o esprito de outros seareiros, de jeito que nos presenteiem ouvidas deleitosas como a de hoje, e mais do que isso, afirmem desenganadamente as fainas frutuosas do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia.

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    ADVERTNCIA PRELIMINAR H dilatados anos, tive que viajar o norte e o sul do Brasil, desde o Piau ao Rio de Janeiro; e nessa demorada excurso interessaram-me os costumes, os hbitos de cada regio, em que o sistema alimentar divergia fundamente do da minha teria, sem embargo de me proporcionarem refeies com a chancela, ou segundo a moda, da Bahia, desde que a mim se nomeava a naturalidade. Dessa poca longnqua surgiu-me a idia de esboar o trabalho que ora empreendo. A cozinha baiana, como formao tnica do Brasil, tambm representa a fuso do portugus, do indgena e do africano. fcil demonstrar. Embora a contribuio do silvcola fosse muito acanhada e rudimentar, todavia, deixou-a sua pamonha e a canjica feitas de milho, o beiju e o mingau preparados com farinha de mandioca ou com a tapioca, goma extrada da raiz desse arbusto, pooca ou paoca, um composto de farinha e carne assada pisada em pilo, o mate, o cururu ou cariru.

    O indgena fabricava mais de uma espcie de farinha, tanto que ao peixe seco esfarelado, numa espcie de ralo, dava o nome de farinha de peixe.

    A farinha de milho era o milho seco, retirada a pelcula, e bem pisado, misturado com pouca gua e cozido em banho-maria, como se pratica no serto. Do milho ou da raiz do aipim fermentados extrairiam os aborgenes uma bebida, extremamente acidulada que, com poucas libaes, produzia a exaltao de nimo, e, finalmente, a embriaguez. Era o cauim preparado pelas donzelas mais formosas da aldeia. O falecido e ilustrado Baro de Guajar (Histria Colonial do Par,) tratando da fabricao do cauim e referindo-se, em seguida, frugal alimentao indgena, informou: Era o sumo da macaxera, aipim, ou milho, amassado e mastigado, fervido depois em gua e, por fim, lanado em pote at fermentar. A alimentao era farta e variada, em certas pocas do ano. Consistia em caas, peixes, mariscos, batatas, e cereais naturais do solo. Abundavam nos bosques as antas, os porcos, os veados, as capivaras, as pacas e tantos outros animais conhecidos, alm de inmeras aves e rpteis, que habitavam nas praias, nas campinas e nas matas. Cingiu-se, pois, a contribuio do indgena em nos dar a conhecer os elementos, a matria prima por assim dizer, de que se serviam no preparo das refeies.

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    A classe pobre sertaneja faz, ainda hoje, largo uso alimentar de caa e aves, como porco do mato, caititu, capivara, veado, paca, tatu verdadeiro, cangamb, jacu, nambu, zabel, etc., em substituio da carne bovina e donde, talvez, provenha o vigor, a admirvel resistncia fsica dos homens do campo. O portugus abastado destinava, de preferncia, os escravos, que adquiria, aos trabalhos agrcolas; mas o comerciante, o capitalista, mandava-lhes ensinar as artes mecnicas, reservando sempre um africano ou africana para o servio culinrio, e da as modificaes modernas no arranjo das refeies moda do Reino, com a carne, peixes, mariscos, aves e animais domsticos. As iguarias em que o portugus fazia uso do azeite de oliveira, o africano adicionava, com eficcia, o azeite de dend ou de cheiro. A frigideira era preparada, de ordinrio, com bacalhau pisado, o azeite doce, banha de porco e ovos batidos; o africano melhorou-a consideravelmente, adicionando o leite de coco para tornar esse prato mais saboroso, o que incontestvel. No era tudo: substitua o bacalhau ou o peixe assado pela amndoa da castanha verde do cajueiro ou pelo broto, donde partem as palmas mais tenras do dendezeiro ou da carnaba. notrio, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelncia, a primazia, na arte culinria do pas, pois que o elemento africano, com a sua condimentao requintada de exticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando da um produto todo nacional, saboroso, agradvel ao paladar mais exigente, o que excele a justificada fama que precede a cozinha baiana. Fora o africano o introdutor do azeite de cheiro, do camaro seco, da pimenta malagueta, do leite de coco e de outros elementos, no preparo das variadas refeies domsticas da Bahia. Eminente mdico paulistano, h pouco extinto, traou no seguinte passo, verdadeiro hino de louvor arte culinria baiana: A nossa cozinha baiana, especialmente, no tem no mundo rival para o preparo

    do peixe. No s o seu vatap que se impe ateno universal; com razo que os baianos se orgulham da sua Moqueca de peixe, do seu Angu de quitandeira, do seu Caruru, do seu Ef e do seu Mocot. O leite de coco e o leo de Dend so dois condimentos portentosos na arte culinria baiana.

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    (DR. L. PEREIRA BARRETO A higiene da mesa - no Estado de S. Paulo, de 7 de Setembro de 1922). Os senhorios de eras afastadas, muitas vezes, em momentos de regozijo, concediam cartas de liberdade aos escravizados que lhes saciavam a intemperana da gula com a diversidade de iguarias, cada, qual mais seleta, quando no preferiam, contempl-los ou dar expanso aos seus sentimentos de filantropia em alguma das verbas do testamento. Era vulgar, nos jantares da burguesia, uma saudao, acompanhada de cnticos, em honra da cozinheira, que era convidada a comparecer sala do festim e assistir homenagem dos convivas. At as moas de famlia abastada se exercita dirigirem, sabiamente, o arranjamento das refeies quotidianas, ou o preparo dos finos manjares das mesas de banquete. Na elaborao desta monografia tive que me referir a miudezas descritivas, absolutamente dispensveis aos meus conterrneos, mas de inteira necessidade aos que me lerem l fora. Cada terra com seu uso da sabedoria popular.

    Bahia, 1922.

    M. Querino

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    DOS ALIMENTOS PURAMENTE AFRICANOS So estes os principais alimentos de que o africano fazia abundantemente uso, entre ns, e so, hoje em dia, preparados pelos seus descendentes, com a mesma perfeio: ACASS Deita-se o milho com gua em vaso bem limpo, isento de quaisquer resduos, at que se lhe altere a consistncia. Nestas condies, rala-se na, pedra, passa-se numa peneira ou urupema e, ao cabo de algum tempo, a massa fina adere ao fundo do vaso, pois, nesse processo, se faz uso de gua para facilitar a operao. Escoa-se a gua, deita-se a massa no fogo com outra gua, at cozinhar em ponto grosso. Depois, com uma colher de madeira, com que revolvida no fogo, retiram-se pequenas pores que so envolvidas em folhas de bananeira, depois de ligeiramente aquecidas ao fogo. ACARAJ A principal substncia empregada o feijo fradinho, depositado em gua fria at que facilite a retirada do envoltrio exterior, sendo o fruto ralado na pedra. Isto posto, revolve-se a massa com uma colher de madeira, e, quando a massa toma a frma de pasta, adicionam-lhe, como temperos, a cebola e o sal ralados. Depois de bem aquecida uma frigideira de barro a se derrama certa quantidade de azeite de cheiro (azeite de dend), e, com a colher de madeira vo-se deitando pequenos nacos da massa, e com um ponteiro ou garfo so rolados na frigideira at cozer a massa. O azeite renovado todas as vezes que absorvido pela massa a qual toma exteriormente a cor do azeite. Ao acaraj acompanha um molho, preparado com pimenta malagueta seca, cebola e camares, modo tudo isso na pedra e frigido em azeite de cheiro, em outro vaso de barro. ARROZ DE AUSS Cozido o arroz na gua sem sal, mexe-se com a colher de madeira at que se torne delido, formando um s corpo e, em seguida, adiciona- se um pouco de p de arroz para assegurar consistncia. Prepara-se, depois, o molho em que entram como, substncias a pimenta malagueta seca, cebola e camares, tudo ralado na pedra. Leva-se, o molho ao fogo com azeite de cheiro e um pouco de gua, at que esta se evapore.

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    Como complemento ao arroz de auss, o africano frigia pequenos pedaos de carne de charque que eram espalhados sobre o arroz juntamente com o molho. EF Corta-se a folha conhecida vulgarmente, por lngua de vaca ou a mostarda e deita-se ao fogo a ferver com pouca gua. Isto feito, escoa-se a gua, espreme-se a massa da resultante e coloca-se de novo na mesma vasilha com cebola, sal, camares, pimenta malagueta seca, tudo ralado conjuntamente na pedra e, finalmente, o azeite de cheiro. Prepara-se tambm o ef com peixe assado, ou com garoupa, caso em que esta cozida parte. Ainda mais: como o peixe assado sem sal, ralam-se os respectivos temperos, em quantidade suficiente e leva-se tudo ao fogo. O africano empregava ainda a folha de taioba no preparo do ef. CARURUEm seu preparo observa-se o mesmo processo do ef, podendo ser feito de quiabos, mostarda ou de taioba, ou de ef, ou de filtras gramneas que a isso se prestem, como sejam as folhas dos arbustos conhecidos, nesta capital, por unha de gato bertlia, bredo de Santo Antnio, Capba, etc, s quais se adicionam a garoupa, o peixe assado ou a carne de charque e um pouco de gua que se no deixa secar ao fogo. O caruru ingerido com acass ou farinha de mandioca. ECURUPreparado o feijo fradinho, como se fez com o acaraj, coloca-se pequena quantidade em folhas de bananeira, maneira do acass, e cozinha-se em banho-maria, isto , sobre garavetos colocados no interior de uma panela com gua. Depois de pronta, a massa diluda em mel de abelhas ou num pouco de azeite de cheiro com sal. uma verdadeira farofa. XIN-XIN Morta a galinha, depena-se, lava-se bem, depois de retirados os intestinos e corta-se em pequenos pedaos. Deitam-se na vasilha ou panela para cozinhar com sal, alho e cebola ralados. Logo que a galinha estiver cozida, adicionam-se camares secos em quantidade, sal, se for preciso, cebola, sementes ou pevides de abbora ou melancia tudo ralado na pedra, e o azeite de dend.

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    BOLAS DE INHAME Despido da casca, lava-se o inhame com limo e coze-se com pouco sal. Em seguida pisado em pilo e da massa se formam bolas grandes que so servidas com caruru ou ef. BOB DE INHAME Corta-se o inhame em pequenos pedaos, leva-se ao fogo com gua e finalmente tempera-se como o ef. FEIJO DE AZEITE (umulucu) Cozido o feijo fradinho, tempera-se com cebola, sal, alguns camares, sendo todas estas substncias raladas na pedra, adicionando-se, ao mesmo tempo, o azeite de cheiro. A iguaria s retirada do fogo depois de cozidos os temperos. ALUA O milho demorado na gua, depois de trs dias, d a esta um sabor acre, de azedume, pela fermentao. Ca-se a gua, adicionam-se pedao de rapadura e, diluda esta, tem-se bebida agradvel e refrigerante. Pelo mesmo processo se prepara o alu ou aru da casca do abacaxi. DENGUE O milho branco cozido, ao qual se junta um pouco de acar. EB preparado com milho branco pilado. Depois de cozido, certas tribos africanas adicionavam-lhe azeite de cheiro e outras oouri. Outro processo: misturam-se o milho e o feijo fradinho torrado, e, com uma pouca de gua, deitam-se a ferver; depois, juntam-se sal e azeite de cheiro. LATIP OU AMORI Era feito com as folhas inteiras da mostardeira, as quais, depois de fervidas, temperavam como o ef e deitavam a frigir no azeite de cheiro. ABAR Pe-se o feijo fradinho em vaso com gua at que permita desprende-lo da casca, e depois de ralado na pedra com cebola e sal, junta-se um pouco de azeite de cheiro, revolvendo-se tudo com uma colher de madeira. Finalmente, envolvem-se pequenas quantidades em folhas de bananeira, como se faz com o acass, e coze-se a banho-maria. ABERM Prepara-se o milho como se fora para o acass e deite se fazem umas bolas semelhantes s de bilhar, que so envolvidas em folhas secas de bananeira, aproveitando-se a fibra que se retira do tronco para atar o aberm. servido com caruru e tambm com mel de abelhas? Dissolvido na gua com acar, excelente refrigerante. Havia ainda o aberm preparado com acar,

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    cujas bolas, do tamanho de um limo eram ingeridas sem outro qualquer elemento adocicado. MASSA Rala-se o arroz, cozinha-se, e formam-se pequenas bolas que se envolvem em polvilho de arroz. So tambm refrigerantes, dissolvidas em gua com acar. O preto muulmano, porm, frigia essas bolas de arroz no azeite de cheiro, ou no mel de abelhas, constituindo essa iguaria verdadeira preciosidade, em suas cerimnias religiosas. IPET O inhame descascado, cortado mido, fervido at perdera consistncia, temperado com azeite de cheiro, camares, cebola e pimenta, estes ltimos ralados na pedra. ADO o milho torrado reduzido a p e temperado com azeite de cheiro, podendo juntar o mel de abelhas. OLUB Descascada e cortada a raiz da mandioca, em fatias muito delgadas, so estas postas a secar ao sol. Na ocasio precisa, so essas fatias levadas ao pilo, e a trituradas e passadas em peneira ou urupema. A gua a ferver, derramada sobre o p, produz o olub, que uma espcie de piro. OGUED a banana denominada da terra frita no azeite de cheiro. EFUN-OGUD Prepara-se com a banana de S. Tom, no amadurecida de todo, descascada, cortada em fatias e deitada ao sol para secar. Dias depois pisa-se, no pilo, passa-se na peneira e obtm-se a farinha chamada efun-ogued. ERAN-PATER um naco de carne verde, bem fresca, salgada e frita no azeite de cheiro. Os africanos ainda condimentavam as suas refeies com o atar (pimenta da Costa), em quantidade muito reduzida; com o ir, fava de um centmetro de dimetro, usada em quantidade diminuta; com o pejerecum ou bejerecum, outra fava de quatro centmetros de comprimento por dez milmetros de espessura, empregada no tempero do caruru; com o ier, semente semelhante do coentro e usada como tempero do caruru, do peixe e da galinha.

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    Faziam ainda os africanos largo emprego do egussi (pevide de abbora ou melancia) no condimento de certas iguarias. O africano, em geral, era sbrio no uso de bebidas alcolicas: no se davam ao vcio da embriaguez, mas do dendezeiro extraiam generoso vinho. Para esse fim, na parte superior do tronco dessa palmeira, faziam uma inciso e colocavam um pedao de bambu para servir de escoadouro da seiva. Ao lquido que caa em uma cabaa a amarrada, davam o nome de vinho de dend. Posteriormente, na Bahia, foi o vinho posto a fermentar e filtrado antes de engarrafado, e isso lhe imprimia certa potncia alcolica e caracterstica, sem embargo do paladar agradvel e saboroso.

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    DE ALGUMAS NOES DO SISTEMA ALIMENTAR DA BAHIA

    Como deixei entrever acima, proveio a cozinha baiana do regime alimentar portugus, alterado e melhorado pelo africano. Somente o cozinheiro baiano possui o segredo de tornar uma refeio saborosa e, por isto, de fcil ingesto. Nesta resenha, me referirei a alguns dos principais alimentos, propriamente baianos, e que, noutros Estados, so barbaramente adulterados. FEIJO DE LEITE Coze-se o feijo mulatinho ou o feijo preto, pisa-se ou mi-se no pilo para desprender o fruto da pelcula que o envolve. Neste processo preliminar, caso se queira desprezar a pelcula ou casca, preciso passar o feijo pisado na urupema como se usa em certas cozinhas, principalmente pela indigestibilidade da pelcula do feijo. Os hepticos no devem ingerir o feijo de outra forma. Em seguida, adicionam-se quantidade suficiente de leite de coco para dissolver a massa, um pouco de sal e acar e, finalmente, leva-se ao fogo at tomar ponto. O feijo de leite misturado com farinha servido, na Bahia, com bacalhau (cosido, assado ou ensopado), garoupa ou outra qualquer espcie de peixe. MOQUECA DE PEIXE FRESCO Escama-se o peixe, retira-se os intestinos e depois de bem lavado com bastante limo e gua vo-se depositando as postas em frigideira. Prepara-se depois o molho, composto de sal, pimenta malagueta, coentro, limo (de preferncia o vinagre), tomate e cebola, modo tudo em um prato, molho este derramado sobre as postas do peixe. Antes de levar a frigideira ao fogo para cozer o peixe, deita-se o azeite de oliveira ou o azeite de cheiro, conforme o paladar ou o gosto de cada domiclio, sendo preferido o emprego de ambos estes leos. MOQUECA DE XARO O xaru somente, de ano em ano, aparece nas guas do litoral baiano, isto , de dezembro a maro. Em eras remotas, o consumo desse peixe estava adstrito aos escravos, populao pobre e aos tripulantes dos navios que partiam para a costa de frica ou para o continente europeu. Escamado o peixe e bem lavado com limo e gua, tem-se o cuidado de retirar os vermes brancos que se criam no lombo e na cabea, principalmente se o xaru est gordo.

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    Estes vermes variam de extenso e espessura e, si no forem extrados, imprimem moqueca sabor adocicado. Concludo este processo preliminar, so as postas conservadas na gua, com limo espremido, at perder todo o sangue. Durante esta infuso prepara-se o mesmo molho da moqueca de peixe fresco, sendo que o azeite de oliveira dever ser preferido ao de cheiro ou de dend. Finalmente, so as postas de xaru depositadas na frigideira com o molho e levadas ao fogo. O xaru de escaldado obedece ao mesmo sistema dos outros peixes simplesmente cozidos. Variada a coleo de peixes que so colhidos em redes, anzis, mumus e camboas na baa de Todos os Santos, fora da barra do porto e no mar alto, caso em que os pescadores se utilizam de jangadas e grandes saveiros. Entre os peixes mais saborosos destacam-se pampo da espinha mole, cioba gorda, cavala, dento, curim, pescada, olho de boi, bicuda, tainha, corvina,

    taoca, vermelho e outros de preo inferior. Entre os mariscos contam-se o camaro, ostra, lagostim, polvo, caranguejo, siri e outros. MOQUECA DE OVOS Prepara-se primeiramente o molho como se fora para a moqueca de peixe fresco, e junta-se pouca quantidade de gua, afim de que sejam fervidos os temperos na frigideira. Manifestada a ebulio partem-se os ovos sobre b molho e cobre-se a frigideira para apressar o cozimento da moqueca. ESCALDADO DE PEIXE FRESCO Escamado e tratado o peixe fresco, pelo processo j exposto acima, passam-se sal e alho. Prepara-se ento o caldo, deitando gua no fogo, com azeite doce, tomate, cebola, coentro, mais um pouco de sal, jils, quiabos e ovos inteiros, se quiser. Quando o caldo estiver a ferver ento, e s ento, deita-se o peixe. Existem ainda os escaldados do peixe assado e do peixe frigido em azeite de oliveira, forma esta mais apreciada pelos paladares exigentes. O processo ou preparo o mesmo do escaldado de peixe fresco. J o escaldado de garoupa, peixe que abunda nos Abrolhos, ao sul do Estado da Bahia, exige maior cuidado do cozinheiro. Coloca-se, de vspera, o peixe em gua fria para diminuir a quantidade de sal que o conserva.

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    No dia seguinte, imerge-se-o em gua fervente, ocasio em que escamado e tratado, retirando-se do lombo uns vermes que a se localizam, embora no comprometiam eles o paladar de quem os ingere. questo de limpeza. Lava-se depois a garoupa com limo e em gua fria, despindo a de quaisquer apndices desnecessrios. Em seguida, prepara-se o mesmo caldo do escaldado de peixe fresco, adicionando-se leite de coco para tornar a garoupa mais saborosa, isto se quiserem. No menos meticuloso o escaldado de caranguejos vivos. Antes de tudo so lavados em gua fria, com pequena vassoura de piaaba, para limp-los da lama de mangue em que viveu. Isto posto, com uma faca afiada se retiram os pelos dos tentculos e finalmente so lavados em nova gua. Depois, deita-se gua no fogo com sal e quando surgir a ebulio desprendem-se os caranguejos da corda que os amarra e se os deitam, ainda vivos, na panela. Cozidos que estejam, so retirados do vaso e em seguida preparado o caldo, como ficou dito acima, relativamente ao escaldado de peixe fresco. Do caldo se faz ento o angu ou piro de farinha de mandioca. Nem todos sabem ingerir o caranguejo e escaldado pela dificuldade em separar o marisco dos diversos ossos que o compem. FRIGIDEIRA DE CAMARES Coloca-se o camaro seco num vaso com gua quente para facilitar o desprendimento das escamas, e pe-se o bacalhau a ferver. Retirado este do fogo, cata-se, isto , tiram-se as espinhas, pele, e pisa-se no pilo, como se pratica depois com os camares. Isto posto, misturam-se as duas substncias assim trituradas com os seguintes temperos: cebola, pimenta do reino em p, alho, tomate, coentro, vinagre, leite grosso de coco e azeite doce. Os temperos so machucados num prato, parte, e depois que so adicionados e revolvidos com a massa do camaro e bacalhau. Leva-se tudo ao fogo numa frigideira para ferver at secar a parte lquida. Batem-se os ovos, cuja quantidade depende da grandeza da frigideira, e a eles se acrescenta uma colher de farinha de trigo, depois de batidos. Parte dos ovos assim batidos misturada com a massa da frigideira, j temperada e esta nivelada com uma colher grande para receber, em seguida, rodas de cebola, com uma azeitona no centro de cada uma, e finalmente despeja-se a outra parte dos ovos batidos, e leva-se ao forno, para corar. Em

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    falta de forno, deitam-se bi asas em uma bandeja de folha de flandres e com ela cobre-se a frigideira para tomar cor e, para que o calor sobre a parte superior no diminua a espessura da frigideira convm que seja ela colocada sobre fogo muito brando, enquanto mantm a temperatura na parte inferior. No caso de ser o bacalhau substitudo pelo lagostim, passa este pelo mesmo processo daquele. Na frigideira da castanha verde do caju, esta substitui o bacalhau. Para esse fim, retira-se a amndoa da castanha, ferve-se para desprend-la da pelcula que a envolve e machuca-se para mistur-la com o camaro pisado. Em tudo o mais se observa o processo da frigideira de camares. Outra frigideira, muito apreciada, a do palmito do dendezeiro, cortado em pedaos" midos e levados ao fogo at se tornar de fcil diluio e cuja massa misturada com o camaro pisado. PEIXE SEM ESPINHA Depois de tratado como ficou exposto acima, com uma faca afiada, abre-se o ventre do peixe e retira-se a espinha dorsal; depois disso enche-se o espao vazio com os mesmos temperos da frigideira de camares. Isto feito, cose-se o ventre do peixe com alguns pontos de linha fina e coloca-se-o numa assadeira com azeite doce e leva-se ao forno para cozinhar. EMPADA DE CAMARES Prepara-se a massa de farinha de trigo em um pouco d'gua, sal, azeite doce e aafroa (urucu) - para dar cor. Depois de bem batida a massa, deita-se numa taboa bem limpa, e estendida com Um rolo at tomai-a bem delgada. Isto feito, corta-se a massa de acordo com o tamanho da frma, na qual estendida e enche-se de camares ensopados ou peixe do mesmo modo, com cebola e azeitonas. Corta-se uma parte da massa em forma de crculo, que a tampa; fazem-se uns bices em redor e fecha-se a empada. No centro da tampa coloca-se uma azeitona para enfeite. Deita-se finalmente no forno para assar. ARROZ DE FORNO O arroz bem lavado despejado em caldo de carne gorda, e este, ao ferver, temperado com cebola tomate ou melhor, massa de tomates, vinagre, pimenta do reino e cominho, tudo isso modo ou ralado em prato fundo comum, juntando-se tambm manteiga de vaca e banha de porco. Cozido o arroz despejado em um prato grande, redondo, e depois de bem acertado com uma colher, para torn-lo bem alto, e dar-lhe a forma de semicrculo, deitam-se rodas do chourio portugus e azeitonas, indo, afinal, ao forno para cotar.

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    MOCOT uma das refeies mais apreciadas pelo povo baiano e ainda pela classe abastada. Para isso aproveitam-se a unha o beio, o fato ou intestinos do boi, exceto o rim, o fgado e o corao. Os intestinos so lavados cuidadosamente com limo e gua, e depois partidos em pedaos. Com uma faca afiada limpa-se, ou melhor, descasca-se o beio e o mesmo se faz unha, mas de modo que se no retire toda a pele que cobre os ossos. Abre-se a unha ao meio para a lavagem com limo e finalmente tudo lavado em gua pura. Isto posto, vai o mocot ao fogo com gua, sem nenhum tempero. Depois de bem cozido a fogo forte, moem-se o sal, tomate, cebola, alho, cominho, pimenta do Reino e um pouco de vinagre, adicionando-se a isso hortel e uma folha de louro. Antes desses temperos, deita-se o toucinho bem lavado e tambm, si se quiser, a lingia da terra, ou melhor o chourio portugus. Convm advertir que o mocot dever ser cozido de vspera, pois sempre servido ao almoo do dia seguinte, quando se lhe deitam os temperos.

    SARAPATEL Morto o suno, recolhido o sangue que jorra da inciso feita com faca pontiaguda, em um vaso com vinagre ou sal. Os intestinos so bem lavados com limo e gua e depois de aferventados escorrida a gua. O mesmo processo se aplica ao bofe, corao, fgado, rins e lngua, conservando-se, porm, o caldo, j temperado com sal. Isto feito, corta-se tudo pelo mido, mistura-se com o caldo que fica de reserva e leva-se ao fogo, e logo que o sarapatel estiver cozido, despeja-se o sangue. Si o sarapatel for consumido no mesmo dia juntam-se aps o sangue, os temperos que so os mesmos do mocot. Em qualquer circunstncia, tempera-se o sarapatel pouco antes de ser ingerido. PERU CHEIO Depois de morta a ave despojada do pescoo, cabea e ps. Imerge-se-a n'gua a ferver depena-se, e trata-se maneira da galinha, sem abri-la; na parte posterior faz-se larga abertura por onde se retiram os intestinos e procede-se limpeza interior, com limo e gua. Com um garfo a ave inteiramente picada e metida depois em salmoura, ou vinho de alhos, composto de vinagre, alho, cominho, pimenta do reino em p,

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    sal e hortel. Estas substncias bem modas, em preto fundo, so untadas interna e externamente, ficando o peru de infuso, nos temperos, por algumas horas. Prendem-se as pernas, na parte posterior, frege-se um pouco de farinha de mandioca na manteiga, adicionam-se azeitonas e rodas de chourio e, depois, enche-se o papo da ave com estas substncias. Do-se pontos com linha branca no tronco do pescoo e coloca-se o peru em frigideira grande com um pouco de manteiga. Leva-se ao forno, mudando-o sempre de posio at cozer. GALINHA DE MOLHO PARDO Antes de dar o golpe no pescoo da ave, deita-se um pouco de vinagre na vasilha que tiver de recolher o sangue. Depois de imergida em gua fervente e depenada passada em labaredas para despi-la de qualquer penugem, e em seguida lavada com limo e gua e cortada aos pedaos. Tempera-se com sal, vinagre, alho, manteiga, cominho e pimenta do reino em p, hortel, cebola, tomate, toucinho e chourio e leva-se ao fogo para cozer. Isto feito, deita-se o vinagre com sangue, que o que constitui o molho pardo, e, proporo que este despojado, revolve-se a panela com a colher de madeira para que o sangue no talhe. GALINHA DE MOLHO BRANCO A ave preparada da mesma forma que a galinha de molho pardo, sendo dispensado o sangue. Os temperos so ainda os mesmos, mas a hortel substituda pelo coentro e a manteiga pelo azeite doce. Cozida a galinha e antes de retiral-3: do fogo adiciona-se quantidade suficiente de ervilhas. FEIJOADA condio essencial que o,feijo seja novo para que a feijoada se torne apetitosa, preferindo-se o denominado mulatinho, si bem que outros dem mais valor ao feijo preto. Isto posto, separam-se os gros de todos os resduos estranhos ou danificados pelo gorgulho ou caruncho e finalmente so lavados em gua fria. Enquanto isto se faz, leva-se ao fogo a carne de charque para escaldar e por fim lavada com gua e assim limp-las de qualquer impureza com o auxlio da faca de cozinha ou instrumento cortante. O feijo, a carne de charque, a carne verde ou moqueada e o toucinho so postos ao fogo e depois de tudo bem fervido, adicionam lingia, carne de porco salprezada, que lavada para retirar o sal, e finalmente moem-se a cebola, pimenta do reino, tomate e alho em um pouco de vinagre e com essa mistura tempera-se a panelada.

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    Alm desses temperos costumam adicionar uma ou meia folha de louro, conforme a quantidade da feijoada. Para torn-la mais agradvel ao paladar, ainda se juntada: chouria portuguesa e no ato de retirar a panela do fogo deita-se um pouco do azeite ou graxa que envolve a chouria do Reino. Se a feijoada de feijo preto, neste caso, depois de catado, aferventado, escorrido, e lavado ainda depois com gua quente. O mais como ficou explicado acima, em relao ao feijo mulatinho. Pode-se finalmente deitar o feijo em um vaso com gua, de vspera, depois de catado, e lev-lo ao fogo no dia seguinte. As pessoas que padecem do estmago ou do fgado costumam mandar pisar o feijo, depois de aferventado, e pass-lo na urupema para retirar a casca ou pelcula exterior. O mesmo regime dever ser seguido pelas pessoas idosas. LEITOA ASSADA Dever ser nova, isto , de dois a trs meses. Morto o suno, trata-se de retirar o pelo com gua a ferver, limpando a pele com uma faca. Lavada a leitoa, retiram-se-lhe os intestinos, os olhos, e a lngua, lavando-se tambm o ventre do animal com limo e gua. Isto posto, coze-se o ventre da leitoa com linha branca e se a deita de infuso em vinha atalho ou vinho de alhos, constitudo dos seguintes temperos: alho, pimenta do reino, cominho, cebola, sal, tudo ralado e quantidade suficiente de vinagre. Essa operao se faz de vspera e at o dia seguinte a leitoa voltada de posio, dentro da vinha d'alho, e nesse nterim costumam picar o corpo do suno com um garfo para absoro dos temperos. No dia imediato, a leitoa levada ao forno para assar, untando-a com um pouco de manteiga de vaca, tambm chamada de tempero ou manteiga salgada. Uma vez retirada do forno, duas azeitonas substituiro os olhos do animal, e em torno do focinho enrolar-se- um trocado de papel branco, recortado, para encobrir os dentes. Cumpre reparar que conveniente aferventar a leitoa em uma concha grande de barro ou outro vaso adequado, isso depois da infuso e

    antes de ir ao forno, pois acontece muitas vezes que o suno assado apenas exteriormente. Em poca anterior, eram os intestinos da leitoa bem lavados com limo e gua, cortados em pequenos pedaos, aferventados e novamente introduzidos no ventre do animal, ocasio em que se fazia a costura a linha. Era a leitoa cheia. VATAP DE GALINHA Morta a galinha, depenada, lavada com limo e gua, partida em pequenos pedaos que so depositados na panela e temperados logo com vinagre, alho, cebola, e sal, tudo modo com o machucador de

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    madeira, em prato fundo. Pe-se o panela ao fogo e quando o contedo estiver seco adiciona-se pouca gua, afim de continuar o cozimento. Enquanto a galinha est a cozer, rala-se o coco, retira-se o, leite grosso com muito pouca gua e reserva-se. Novamente, deitasse mais gua no coco para se ter o leite mais delgado, que bem misturado com o p do arroz, principalmente, e derramada essa mistura na panela,revolve-se ou mexe-se constantemente com uma colher grande, de madeira. O processo de fcil desempenho: ralado o coco, a massa depositada numa urupema e espremido mo com muito pouca gua; tem-se, pois, o leite grosso ou puro. Os resduos so postos a um lado da urupema e a recebendo maior quantidade d'gua so novamente espremidas para se ter o leite fino ou delgado. Ato contnuo, moem-se os camares em poro, cebola, pimenta malagueta em pequeno pilo, ou por outro qualquer processo, junta-se diminuta quantidade de gua, enquanto se dissolvem essas substncias e despejam-se na panela, continuando a mex-la com a colher. Quando a panela estiver a ferver deitam-se o azeite de cheiro e o leite grosso, que ficou de reserva. Tem-se pronto o vatap de galinha, privativo das mesas elegantes. O vatap de garoupa o mais comum, pois considerado de maior sabor que o de galinha. Bem lavada a garoupa com limo levada ao fogo com pouca gua. O mais como ficou exposto acima. A quantidade de garoupa no dever exceder de meio quilo. Outras formas h de vatap: de carne verde, bacalhau, peixe assado ou salgado etc. Este ltimo levado ao fogo juntamente com todos os temperos do vatap de galinha, exceto o leite grosso o azeite de cheiro que so deitados na panela, em ltimo logar. MANIOBA Colhe-se certa poro das folhas tenras do aipim; convenientemente lavadas e livres dos talos, trituram-se no pilo, ou em mquinas comuns, usadas para moer milho, coco, carne, etc. Espreme-se o sumo que desprezado ou deitado fora. As folhas assim pisadas vo ao fogo com pouca gua at ferver de modo que fiquem delidas. A carne de charque, cabea de porco partida, mocot moqueado de gado bovino, toucinho em quantidade suficiente, sal, alho, folha de louro e de hortel, pimenta e tudo isso quando estiver a ferver recebe as folhas pisadas do aipim, e deixa-se cozinhar bem.

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    Fica subentendido que no se pode determinar a quantidade de cada tempero nas comidas. Depende do paladar de quem as prepara; o princpio geral tudo de mais sobra.

    DA SOBREMESA BAIANA Inteiramente nula foi, entretanto, a influncia africana no preparo de doces e guloseimas de sobremesa, o contrrio do regime alimentar. Os conventos da capital e alguns estabelecimentos profanos tiveram notria nomeada no enfeite e acondicionamento de bandejas de doces finos, destinada a casamentos, batizados, bailes e banquetes. A variedade desses doces, tanto em calda como secos ainda hoje tem muito apreo, principalmente os de calda, trabalhados em frutas do pas como: ara, laranja da terra, caju, jenipapo, limo, cidra, banana, abacaxi, manga, mangaba e outras. Entre os doces secos sobressaem; o po-de-l, o bolo ingls, sequilhos, pasteis, bolachinhas de goma, etc.

    O Convento da Soledade sempre se avantajou aos demais no preparo de doces, sendo freqentes as encomendas para fora do Estado, e at para o estrangeiro. O Convento do Desterro, de preferncia, ainda fabrica uma farinha alimentar, muito recomendada aos convalescentes. Em sua composio, entram o milho, a araruta, a tapioca e farinha de trigo. Fabricam ainda as franciscanas do Desterro uma tecidos que cobrem os ossos superiores s patas dos bovinos. alimento destinado s pessoas acometidas de afeco pulmonar. As religiosas da Lapa trabalham admiravelmente em doces de banana, queimados de gua de flor, e em xaropes de angico e de babosa (alos), especifico das molstias do aparelho respiratrio, e bem assim em saborosas canjicas de milho verde, No Convento das Mercs fazem-se doces de qualidades diferentes, e tambm confeitos que so engastados em ramos de folhetas. Assim, cada estabelecimento religioso da Bahia possui a sua especialidade. Alm das frutas cultivadas no Estado, entre as quais sobressaem a inexcedvel laranja do Cabula subrbio da capital, a manga de enxerto de Itaparica, o imbu sertanejo, as uvas brancas de Itiba e Juazeiro, enfeitam a sobremesa baiana estes outros saborosos pratos. CANJICA DE MILHO VERDE Previamente, ralam-se os cocos ou sejam cinco para vinte e cinco espigas de milho.

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    Debulhados, ou melhor, retirados os gros da espiga, cortando-os com uma faca e recolhidos em urupema, depois de limpos, so ralados em mquina americana ou na pedra. Depositada a massa em vasilha grande com gua, os resduos que vm tona so apanhados mo e passa-se na urupema, ou melhor, na estopinha, a massa contida na vasilha, espremendo-a mo. Reservam-se as sobras que so novamente raladas na pedra, passadas e espremidas na estopinha... O vaso ou panela que recebe a massa do milho espremida conservada em repouso, por algum tempo, e, finalmente, escorre-se a gua. Em seguida, massa que ficou aderida ao fundo do vaso, adiciona-se o sal e o leite de coco mais fraco; leva-se ao fogo e mexe-se incessantemente com uma colher grande, de madeira, at que a canjica comece a engrossar, ocasio em que se deita o acar para no embolar, e quando a canjica estiver em efervescncia tempera-se com manteiga fina, leite grosso de coco, gua de flor de laranjeiras e gua de erva doce e cravo, fervidos parte. Finalmente, deixa-se cozer bastante at tomar ponto grosso. Nessa ocasio, retira-se a canjica do fogo e depositada em pratos grandes. Convm lembrar que a canjica, depois de levada ao fogo, nunca se deixa de revolv-la com a colher. Quando a canjica estiver fria polvilhada com canela em p, antes de ser servida. Requer a canjica de milho verde o emprego do leite grosso de coco e do leite mais fraco. Este ltimo o que se mistura com a massa do milho, enquanto o dissolve para ser levada ao fogo. proporo que a ebulio se manifesta e a canjica no estiver ainda cozida, o que se conhece pelo sabor de milho verde, junta-se outra quantidade de leite fraco, e assim por diante. Quanto ao leite grosso, consta do lugar indicado no texto. Em suma: a melhor lio na factura da canjica depende da observao pessoal. Prepara-se ainda a canjica de flor de arroz e de milho verde pilado, o que no se deve confundir com o p do dito milho. Pe-se o milho pilado de infuso na gua durante dois dias. Nesta operao no se intrometem as mos na vasilha, sob pena de deteriorar ou azedar o milho. De 24 em 24 horas escorre-se a gua. A canjica de milho pilado mal difere da de milho verde. DOCE AMBROSIA Prepara-se o doce ambrosia com ovos, coco e acar. Com uma faca retira-se a pelcula exterior do coco, rala-se espremendo-se a massa, e

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    o leite, grosso ou puro, recolhido em vaso de loua. Deita-se a calda (gua com acar) ao fogo e logo que a mesma esteja em ponto forte, batem-se os ovos que so depois derramados no leite de coco e adiciona-se essa mistura calda. Dado o novo ponto derrama-se sobre o doce gua de flor de laranjeiras e cravo em gro. Tudo isso se faz a fogo lento e revolvendo o doce, levemente, com uma colher. Para seis ovos so precisos dois cocos e meio quilo de acar bem alvo, e assim nessa proporo. gua de flor, quanto bastante. DOCE DE CAJU Toma-se de uma porcelana ou outro vaso vidrado, com gua at o meio. Sobre o lquido espreme-se metade de um limo. Isto feito, descasca-se o caju, que dever ser maduro, empregando-se nessa operao uma faca bem amolada, de modo que esta apenas levante a pelcula que envolve o fruto e seja a mesma retirada com o auxlio dos dedos polegar e indicador. proporo que caju despido da pelcula exterior mergulhado ou depositado dentro da porcelana. Depois disto, tomam-se os cajus, um a um, introduz- se lhe um palito de madeira (o emprego do palito prefervel, pois o garfo modifica a cor natural do caju) e espreme-se, sem que se retire todo o lquido. Antes disso, seciona-se ou corta-se com a faca o orifcio superior, para retirar a parte escura de contacto com a castanha e o mesmo se pratica na parte inferior. Tem-se, pois, o caju, preparado para ser deitado na calda, que dever ser preparada em panela vidrada. O fruto a cosido e aguarda se que a calda tome ponto.

    Como se v, o processo muito simples. Retirada a panela do fogo, pe-se a esfriar, e depois que o doce distribudo peras compoteiras. BOLO DA BAHIA Tomam-se seis gemas de ovos, meio quilo de acar, cem gramas de manteiga, o leite de um coco grande ralado, e batem-se as gemas

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    com o acar e depois com manteiga e uma mo cheia de massa de mandioca-puba.

    Distribui-se tudo isso por pequenas frmas tintadas de manteiga, as quais so levadas ao forno, em fogo brando, at cozinhar. Outra forma Batem-se meio quilo de acar, e dezesseis gemas de ovos, como se fora para o feitio de po-de-l. As claras dos mesmos ovos so batidas, em separado, como se foram para suspiros, e adicionam-se primeira composio, como tambm meio quilo de farinha do reino e igual quantidade de manteiga fina. Toda essa composio vai ao forno em vasos especiais. BOLO DELICIOSO Misturam-se cinco colheres de farinha de trigo, duas de manteiga fina, e oito de acar, mais quatro ovos, sendo dois com as claras e dois com as gemas, e o leite puro de um coco.. Toda essa fuso, bem batida, leva-se ao forno para cozer e corar. As frmas so internamente tintadas de manteiga comum. Outra forma Batem-se bem, e separadamente, seis claras de ovos, e depois outras tantas gemas. Juntam-se duas colheres de farinha de trigo, 100 gramas de queijo ralado, 500 gramas de acar, em frma de calda e o leite de dois cocos. Bate-se toda essa composio e leva-se ao forno, na vasilha competente. BOLO INGLS (de 250 gramas) Batem-se separadamente seis ovos, trs com a clara e trs com a gema, inclusive 250 gramas de acar.

    Em seguida, derrete-se ao fogo 250 gramas de manteiga fina, e depois de fria despeja-se o lquido sobre os ovos j batidos, juntam-se 500 gramas de farinha de trigo e bate-se novamente para formar uma s massa. A forma, antes de recolher a massa ou pasta, untada internamente com manteiga comum, e finalmente levada ao forno para cozei. Para o preparo do bolo ingls com o peso de 500 gramas, as substncias acima indicadas so elevadas ao dobro e assim por diante, observando se a mesma proporo. BOLACHINHAS DE GOMA Para certa quantidade requerem-se: 2 litros de goma seca, 2 cocos bem secos,

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    250 gramas de acar, 2 ovos, 50 gramas de manteiga fina. Ralam-se os cocos e tira-se o leite grosso espremendo a massa com o auxlio de um guardanapo bem limpo. Em seguida, batem-se os ovos e juntam-se a manteiga e o acar Esses ingredientes sero bem revolvidos at formar um s corpo. Finalmente, adiciona-se a goma aos bocados e vai-se revolvendo com uma colher at formar uma pasta espessa, e para isso se faz preciso o auxlio das mos, para que a massa se torne mais compacta. Isto feito, vo se retirando pequenos nacos da massa, os quais tomaro a forma redonda, revolvidos entre as palmas das mos e depois levemente achatadas. proporo que assim se pratica, enfeita-se cada bolachinha com a presso de um garfo na parte superior, e por ltimo depositado em bandejas de folha de flandres para ir ao forno. Substituindo a goma da mandioca pela flor de milho e, observando em tudo o mais o processo exposto acima, ter-se- a bolachinha de milho. PASTIS A massa para os pastis preparada do mesmo modo que a da empada, sem a aafroa, e o azeite doce substitudo pela banha de porco. Estendida a massa na tbua, corta-se- do tamanho que se quiser. Enche-se a massa com carne de porco, passada em mquina, e os temperos de carne. Dobra-se a massa de modo a lhe dar a forma de semicrculo, e passa-se a carretilha.

    Na frigideira com manteiga de porco vo-se colocando os pastis a frigir e depois de corados se retiram do fogo. Finalmente, so cobertos de acar refinado. Sendo o pastel de aletria esta cozida com cravo, canela, gua de flor e acar. Deixa-se esfriar num prato, e, depois vai-se envolvendo na massa a quantidade de aletria que possa caber numa colher de sopa, como na outra espcie de pastis.

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    DO PREPARO DE LICORES LICOR DE BANANA Descasca-se, dilui-se ou machuca-se a banana chamada de So Tom, e pe-se de infuso em um pouco de lcool. Decorridos quinze dias, espreme-se a polpa num pano e o lquido misturado com calda de acar bem alvo, que deve ser um pouco encorpada ou em ponto grosso. LICOR DE CACAU Torram-se as bagas ou frutos do Cacau, descascam-se, pisam-se em almofariz e deitam-se de infuso, no lcool. Dias depois; ca-se a massa e o lquido misturado com a calda, conforme o paladar de quem o prepara. LICOR DE A RAA Vinte e quatro aras, especialmente os brancos, so coitados, postos de infuso num litro de lcool, de 22 gros. No fim de quinze, dias espremem-se num pano e ao lquido adiciona-se a calda. LICOR DE GROSELHA Qualquer poro- da fruta primeiramente posta a ferver. Isto feito, escorre-se a gua e levam-se as frutas ao fogo com um pouco de acar. Antes de tomar ponto, retiram-se do fogo e perdido o calor, misturam-se com cachaa, em poro muito reduzida. LICOR DE UMBU OU IMBU Retiram-se os caroos da fruta, a casca e a polpa so colocadas num vaso com cachaa. Depois de oito dias espreme-se a infuso num pano, prepara-se a calda e mistura-se. Todos os licores de frutas, depois de preparados, devem-se conservar alguns dias engarrafados antes de serem servidos; pois se tornam mais agradveis ao paladar. Quanto mais velhos mais saborosos. LICOR DE JENIPAPO Descasca-se o fruto j maduro e corta-se a polpa conservando os caroos. Isto feito, deposita-se a massa, (polpa e caroos) numa terrina com quantidade de boa cachaa que for necessria. Depois de oito ou dez dias, espreme-se a infuso em pano bem limpo com a presso manual, filtra-se plo processo comum, e adiciona-se calda. Para conservao, por muito tempo, porm, faz-se mister adicionar uma colher ou meio clice de lcool, a cada litro de licor.

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    No convm ferver o jenipapo, como fazem muitos fabricantes, pois a ao do

    calor deteriora o licor depois de pronto. Ainda mais: no entram na infuso os caroos que apresentarem qualquer alterao, caso em que s se aproveita a polpa. Somente por brevidade, e por no imprimir maior vulto a esta despretensiosa monografia, eximo-me de aludir, mais extensamente, arte culinria, tanto que omite qualquer referncia particular ao papel dos legumes no sistema alimentar da Bahia, no qual a influncia africana ainda se sobrepe do portugus.

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  • BIOGRAFIA

    Nasceu em Santo Amaro da Purificao, em 28 de julho de 1851, filho do carpinteiro Jos Joaquim dos Santos Querino e Luzia da Rocha Pita. Os pais morreram quando Manuel ainda era jovem. rfo, o menino encontrou conforto na casa de uma amiga da famlia, que o levou para Salvador, onde recebeu como tutor o Bacharel Manuel Correia Garcia, professor aposentado da Escola Nacional. A tutela de Manuel Garcia garantiu uma boa formao para o pequeno Querino, que aprendeu a ler com o bacharel. Mais tarde, foi Garcia quem incentivou o jovem, j em idade prpria, a aprender o ofcio de pintor. Depois de uma curta temporada no Piau, Manuel Querino foi recrutado para a Guerra do Paraguai, seguindo para o Rio de Janeiro em meados da dcada de 1860, onde trabalhou como escrita do seu batalho. Em 1970, findada a guerra, voltou para a Bahia, onde passou a trabalhar como pintor durante o dia e estudar humanidades noite, no recm-criado Liceu de Artes e Ofcios da Bahia, sendo aluno de Miguel Navarro y Caizares. Posteriormente, tambm frequentou o curso de Desenho e Arquitetura na Academia de Belas-Artes, tendo obtido destaque como exmio desenhista geomtrico. Em Salvador, depois de ser iniciado na poltica por intermdio de seu padrinho Manuel Pinto de Souza Dantas, chefe do Partido Liberal, Querino passou a ser atuante na luta abolicionista e no movimento republicano. Manifestou-se nas cesses da Sociedade Libertadora Baiana e no jornal Gazeta da Tarde, onde escreveu uma srie de artigos denunciando o absurdo da escravido e proclamando a necessidade da abolio imediata e redentora. Em 1975, Manuel Querino participou ativamente das diversas reunies entre operrios da construo civil, que resultaram na fundao de uma das primeiras cooperativas de trabalho do Brasil, a Liga Operria Baiana. A cooperativa quebrou o monoplio dos arrematantes de obra, que pressionavam o salrio dos operrios para baixo, e realizou inmeras obras para particulares e para o Governo. No entanto, a Liga veio a desfazer-se no final da dcada de 1870. Apesar da decepo com a extino da Liga Operria, Manuel Querino no desanimou e seguiu a luta em favor da classe operria e da Repblica. Em 1887 lanou o seu jornal chamado A Provncia, que circulou desde 20 de novembro de 1887, dia do lanamento, at o final de 1888. Querino produziu o que se chamaria hoje de um jornalismo militante, no era jornalista por profisso, mas utilizava o seu jornal para difundir a suas ideias e opinies. Mais tarde, no inicio da dcada de 1890, Manuel Querino tornou-se um dos membros do diretrio geral do Partido Operrio, criado em 1890. No entanto, o

  • partido no teve vida longa e dissolveu-se dando origem a um movimento de classe sem finalidades eleitoreiras, batizado Centro Operrio da Bahia. Ainda ao longo da dcada de 90, Querino tomou parte no Conselho Municipal de Salvador (atual Cmara Municipal) por duas ocasies, entre 1890 e 1891 e posteriormente entre 1897 e 1899, antes de abdicar da poltica em favor da carreira de intelectual. Com o abandono da poltica, Manuel Querino voltou seus olhos para a pesquisa das manifestaes populares e da cultura afro-brasileira, tendo escrito inmeros livros sobre o tema, com nfase na historia da Bahia, em artes e costumes. Foi seguramente o primeiro intelectual a reconhecer e divulgar a contribuio das culturas africanas cultura brasileira. Como pesquisador, coletou fontes orais e buscou o reconhecimento da contribuio do negro na histria do Brasil. Seus escritos sobre personalidades negras e mestias insurgiam contra o preconceito e a inferioridade que cercavam o negro deste pas. Especialista na temtica da formao social do Brasil, Querino renegou e combateu as previses pessimistas que faziam intelectuais defensores do racismo cientfico como Gobineau e Lapouge, entre outros. O seu artigo O Colono Preto como Fator de Civilizao Brasileira, apresentado no Sexto Congresso Brasileiro de Geografia uma resposta aos escritos de Nina Rodrigues. Alm de publicar inmeros artigos na Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia, instituto do qual era membro-fundador, podemos destacar entre as diversas obras de Manuel Querino: Artistas Baianos (1909), A Bahia de outrora (1916) e O Colono Preto como Fator da Civilizao Brasileira (1918). Seu trabalho mais conhecido, no entanto, a publicao pstuma Costumes Africanos no Brasil (1938), composto por um conjunto de artigos do autor selecionados por Arthur Ramos. Manuel Querino foi um dos mais destacados intelectuais baianos, considerado pelo professor Jeferson Bacelar (UFBA) como um dos fundadores da Antropologia brasileira. Faleceu em Salvador, no dia 14 de fevereiro de 1923, vtima da malria. Inmeras homenagens sucederam a morte do intelectual, na Cmara Municipal de Salvador, no Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia, no Liceu de Artes e Ofcios e na Escola de Belas Artes, entre outros lugares pelos quais Querino passou e por onde contribuiu com sua luta, sua inteligncia e seu talento.

    Museu Afro Brasil www.museuafrobrasil.org.br