Máquinas do conforto. A divulgação dos eletrodomésticos e ... · empregada. De outro, torcer...

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1 Máquinas do conforto. A divulgação dos eletrodomésticos e a divisão de gênero nos lares de 1960. RAFAELA CRISTINA MARTINS* Desde a década de 1950, último período de governo Vargas, o incentivo a indústria passava a ser um dos pontos centrais na política econômica do governo. Os sistemas de transporte e energia receberam contribuição através de um crédito externo de 500 milhões de dólares. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) foi criado em 1952 com a intenção de apressar o aumento de diversas áreas da indústria brasileira. Após a queda de Vargas o governo de Kubitschek continuou a investir na indústria, através de seu programa de metas que iria promover a infraestrutura e o incentivo à industrialização 1 . Foram anos de crescente desenvolvimento industrial, ainda que a economia do país fosse considerada essencialmente agrícola. Além disso, a população urbana aumentava cada vez mais a partir dos anos de 1950 2 . Durante a decade de 1960, após o Golpe de 1964, o país passava pelo que foi chamado de “milagre econômico”, muitas oportunidades de emprego foram criadas, ocorreu a ampliação do setores médios da sociedade e também o aumento da desigualdade social. Isto dinamizou o consumo trazendo boas sensações a população, ao passo que muitos se sentiam insatisfeitos com a imposição de um governo militar com a limitações de seus direitos democráticos. De outro lado, a proliferação de novas profissões e atividades bem remuneradas para quem tivesse um minínimo de formação, abrindo portas à efetiva possibilidade de acesso a posições confortáveis na sociedade aquisitiva em formação. De um lado, não perder um número de jornais alternativos. De outro, para novos aquinhoados, investir na bolsa. De um lado, comprar um televisor em cores, deixando o preto e branco para a empregada. De outro, torcer contra o Brasil no final da Copa. De um lado, ter dinheiro para fazer turismo na Europa. De outro, ter medo de não receber o visto de saída. 3 Essas mudanças causaram diferentes impactos nas diversas áreas da vida cotidiana, especialmente na vida privada. As novidades produzidas pela indústria * Aluna de Doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 1 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. Pp. 409-427. 2 Ibidem, p. 529 – 535. 3 ALMEIDA, M. H. T.; WEIS, L. “Carro zero e pau de arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil. Vol. 4. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. P. 333.

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Máquinas do conforto. A divulgação dos eletrodomésticos e a divisão de gênero

nos lares de 1960.

RAFAELA CRISTINA MARTINS*

Desde a década de 1950, último período de governo Vargas, o incentivo a

indústria passava a ser um dos pontos centrais na política econômica do governo. Os

sistemas de transporte e energia receberam contribuição através de um crédito externo

de 500 milhões de dólares. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

(BNDE) foi criado em 1952 com a intenção de apressar o aumento de diversas áreas

da indústria brasileira.

Após a queda de Vargas o governo de Kubitschek continuou a investir na

indústria, através de seu programa de metas que iria promover a infraestrutura e o

incentivo à industrialização1. Foram anos de crescente desenvolvimento industrial,

ainda que a economia do país fosse considerada essencialmente agrícola. Além

disso, a população urbana aumentava cada vez mais a partir dos anos de 19502.

Durante a decade de 1960, após o Golpe de 1964, o país passava pelo que foi

chamado de “milagre econômico”, muitas oportunidades de emprego foram criadas,

ocorreu a ampliação do setores médios da sociedade e também o aumento da

desigualdade social. Isto dinamizou o consumo trazendo boas sensações a população,

ao passo que muitos se sentiam insatisfeitos com a imposição de um governo militar

com a limitações de seus direitos democráticos.

De outro lado, a proliferação de novas profissões e atividades bem remuneradas para quem tivesse um minínimo de formação, abrindo portas à efetiva possibilidade de acesso a posições confortáveis na sociedade aquisitiva em formação. De um lado, não perder um número de jornais alternativos. De outro, para novos aquinhoados, investir na bolsa. De um lado, comprar um televisor em cores, deixando o preto e branco para a empregada. De outro, torcer contra o Brasil no final da Copa. De um lado, ter dinheiro para fazer turismo na Europa. De outro, ter medo de não receber o visto de saída. 3

Essas mudanças causaram diferentes impactos nas diversas áreas da vida

cotidiana, especialmente na vida privada. As novidades produzidas pela indústria

* Aluna de Doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 1 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. Pp. 409-427. 2 Ibidem, p. 529 – 535. 3 ALMEIDA, M. H. T.; WEIS, L. “Carro zero e pau de arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil. Vol. 4. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. P. 333.

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adentravam as casas daquelas pessoas que podiam comprá-las, como é o caso dos

eletrodomésticos. Em retrospectiva, no final dos anos de 1920, refrigeradores elétricos

eram consumidos por clientes bastante específicos, significavam máquinas caras e

importadas direto dos Estados Unidos, e geralmente só poderiam ser obtidas através

de encomenda4.

Com o passar dos anos o desenvolvimento industrial do país e a expansão de

empresas de energia, que distribuíam gás e eletricidade, a produção e o consumo de

utensílios domésticos aumentou. A empresa nacional Walita em 1956 chegou a

fabricar um milhão de aparelhos eletrodomésticos5, embora caiba ressaltar que o

consumo desses itens ainda era restrito a uma parte menor da população que poderia

pagar por eles.

As mudanças sentidas pela população não decorriam apenas da economia

e do aumento da população urbana, novas formas de saber e seus grupos de

profissionais, cada vez mais organizados, como é o caso dos engenheiros e,

posteriormente, os arquitetos, passaram a interpretar e estudar a cidade de acordo com

dados específicos utilizados para resolução de problemas urbanos através de suas

técnicas.

A moradia era um dos temas recorrentes de debate desses especialistas,

seguido da família, que era bastante discutido por tais profissionais, como médicos,

engenheiros e assistentes sociais, e debatido de maneira ainda mais normativa nas

revistas femininas desde os anos de 1920. O enfoque dado por esses periódicos

especificava o papel de cada gênero na família e mesmo após a década de 1940 é

possível encontrar nessas revistas a imagem da mulher submetida a uma suposta

superioridade masculina. O livro de Carla Bassanezi Pinsky, Virando as páginas,

revendo as mulheres6, deixa claro essa questão. De maneira até muito unilateral,

Pinsky oferece um panorama sobre como as revistas femininas lidaram com a figura

da mulher e as relações de gênero entre os anos de 1945 e 1964.

A ideia aqui proposta de pesquisar os eletrodomésticos e, através de seus usos,

a reafirmação da especialização funcional e de gênero dos cômodos da casa pareceu

4 FARIAS, Claudio L. de; AYROSA, Eduardo; CARVALHO, Gabriela; et. Al. Eletrodomésticos:

Origens,História & Design no Brasil. Rio de Janeiro: Frahia, 2006. p. 60. 5 Ibidem, p. 78. 6 BASSANEZI, C. B. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

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ainda mais plausível depois do descobrimento do livro de Inés Pérez7. Se trata de

um estudo sobre Mar del Plata entre os anos de 1940 e 1970, ou seja, entre o

peronismo e a ditadura, sobre os modos de habitar através da chegada dos

eletrodomésticos. O material escolhido pela pesquisadora foram revistas, anúncios

publicitários, dados demográficos, políticas habitacionais e entrevistas de antigos

moradores da cidade. Através das experiências de homens e mulheres Pérez procurou

entender o processo que tornava a habitação mais repleta de máquinas e novas

tecnologias, dessa forma pretendia demonstrar como os mais diversos modos de viver

passaram a ser influenciados pelo modelo familiar nuclear que se baseia em uma

diferenciação dos papeis de gênero.

En esto trabajo sostendré la hipótesis de que a partir de mediados de los años 40 se popularizó un modelo de demosticidad que, a pesar de presentarse como continuador de los imperativos presentes em décadas anteriores, introdujo ciertos elementos novedosos. Puntualmente, cobró fuerza una imagen del hogar como espacio confortable para la que el consumo de nuevas tecnologías y artefactos doméstico resultaba central. En buena medida la familia (nuclear y afectiva) y el hogar (confortable) constituyeron las principales referencias en los discursos que promovían el consumo en esos años. Distintos estereotipos de género acompañaron esto modelo. Por una parte, se observa una reedición del modelo de mulher doméstica que habia cristalizado en las primeras décadas del siglo XX, en el que la profesionalización del ama de casa se apoyó en la mecanización de las tareas domésticas y en una nueva demarcación de sus responsabilidades. Por outra parte, la democratización de la casa propria y el tempo libre habilitaron la extensión de unas masculinidades domésticas en las que el hogar era a un tempo el sitio y el objeto de prácticas que puden nombrarse com el oxímoron “ócio productivo”.8

Ou seja, para Pérez as novas tecnologias não apenas introduziam conforto e

maior tempo livre das atividades domésticas, como também davam suporte para

7 Inés Pérez é professora licenciada m História pela Universidad Nacional de Mar del Plata e doutora em Ciências Sociais e Humanas pela Universidad Nacional de Quilmes, atualmente é docente da Universidad deMar del Plata onde também faz parte do Grupo de Estudios sobre Familias, Géneros y Subjetividades. O livro em questão é: PÉREZ, Inés, El hogar tecnificado. Familias, género y vida cotidiana. 1940-1970. Buenos Aires: Biblos, 2012. 8 Ibidem, p. 27. Tradução livre: Este trabalho sustentará a hipótese de que a partir de meados dos anos 40 se popularizou um modelo de domesticidade que, apesar de já estar presente em décadas anteriores, introduziu certos elementos novos. Especificamente, centrou-se numa imagem da casa como lugar confortável de maneira que era central o consumo e uso de novas tecnologias. Em boa medida a família (nuclear e afetiva) e o lugar (confortável) constituíram as principais referências nos discursos que estimulavam o consumo nesses anos. Estereótipos distintos de gênero acompanharam esse modelo. De um lado se observa uma reedição do modelo de mulher doméstica que havia se cristalizado no começo do século XX, no qual a profissionalização da dona de casa se apoiou na mecanização das tarefas domésticas e em uma nova definição de responsabilidades. Ao passo que a democratização da casa própria e o tempo livre possibilitaram a extensão de masculinidades domésticas nas quais o lugar era ao mesmo tempo espaço e objeto de práticas que podem ser nomeadas com o paradoxo "ócio produtivo”.

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divisão de papeis de gênero na família. A pesquisadora não apenas centra sua

pesquisa nos ambientes e afazeres femininos, como também em espaços e objetos

masculinos que, de acordo com o parágrafo citado, tinham maior relação com o

“ócio produtivo”, o descanso, do que com trabalho.

A mulher seria a dona de casa, aquela que cuida dos filhos e do marido, uma

figura pertencente à cozinha e à sala de estar, aquela que está em harmonia ou

camuflada no interior doméstico. Ao passo que o homem seria provedor e chefe da

família, a ele pertencem o escritório e a sala de jantar, os objetos desses cômodos

serviriam para individualizar ainda mais o homem. Essa desigualdade ressaltada

entre a mulher parecer atrelada ao espaço doméstico enquanto outros objetos

serviriam para destacar o homem como centro do ambiente e da família foi a tese

defendida no doutorado de Vânia Carneiro de Carvalho, chamada Gênero e Artefato9,

Carvalho denomina essas diferenças de ações centrífugas para as mulheres, e ações

centrípetas para os homens.

Em resumo, as ações femininas e masculinas no espaço doméstico, descritas respectivamente como ações centrífugas e centrípetas, produziram repertórios materiais e formas de mobilização diferenciados. As ações femininas – alargadas por toda a casa, porém sem comprometer a identidade específica de seus espaços e objetos e concentradas em representações artísticas de elementos da natureza – contribuíram para a formação de um perfil pessoal incentivado a abrir mão da própria individualidade a favor de uma atuação como integradora das diferenças de seus membros. As ações masculinas, por sua vez, nos mostram uma forma de apropriação material voltada para o fortalecimento de um perfil individualizado. Em última instância, podemos dizer que para o homem convergem todas as coisas da casa, inclusive sua mulher. Tal força centralizadora não excluiu a existência de territórios sexualmente marcados. Pelo contrário, estimulou um ideal de convivência complementar entre marido e esposa.10

Carvalho centrou seu estudo até a década de 1920, porém é interessante observar

como alguns aparelhos ligado ao trabalho doméstico ainda estavam atrelados a figura

feminina, ao passo que outros objetos, como os aparelhos de som e televisão são

associados a imagens de homens. Isso é o que ocorre nessas duas propagandas veiculas

no jornal Estado de S. Paulo em 1960. Na primeira imagem a lavadora de roupas é

dedicada a “dona de casa” e há a figura de uma mulher bem vestida ao lado do

eletrodoméstico. O texto esclarece para quem e porque veio a máquina: “Para a dona-

de-casa, os tempos mudam para melhor… Melhor vida… maior eficiência… estilo

9 CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008. 10 Ibidem, p. 114.

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atual… técnica de vanguarda… com a bossa nova da lavadora automática da

Brastemp.” Ou seja, a dona de casa ao mesmo tempo se preocupa com os serviços

domésticos e a modernidade, utiliza para seu trabalho o que existiria de mais atual e

eficiente. A imagem feminina embora seja atrelada à aspectos da vida privada pode não

ser necessariamente a mulher submissa, ela se preocupa com a aparência e busca

alternativas modernas para suas tarefas. Ainda é uma imagem ligada ao ambiente

doméstico? Sim, com certeza. Mas, podemos questionar o quanto de submissão há nessa

imagem, afinal ela ainda pode ser atraente e livre para buscar seus meios de trabalho,

mesmo que este seja o doméstico.

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O Estado de S. Paulo, São

Paulo, 11, 23 de mar. de 1960.

Já a segunda imagem traz a propaganda de um aparelho de som, a imagem além

de trazer a figura do aparelho também mostra um casal, o homem sorrindo fitando a

mulher e esta parece estar numa posição de admiração. Talvez não por acaso a

propaganda coloque o homem numa posição na qual, já conhecendo o aparelho, o

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mostra para a mulher. Ele é quem tem o domínio dessa máquina, ele é quem está

sorrindo ao olhar a expressão de admiração da mulher. As palavras usadas para

descrever o aparelho se remetem a “pureza do som” e também a adjetivo usado

principalmente para descrever carros, como “possante”, objeto que também tem busca

bastante apelo da figura masculina.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25, 20 de mar. de 1960.

Ambas as propagandas tentam explicitar a inovação tecnológica, essa mesma

que levaria a novos hábitos, poderia levar também a uma forma de habitar diferente?

Uma nova maneira questionadora dos paradigmas da família e das relações gêneros?

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Ou os meios de comunicação e venda de eletrodomésticos, como as revistas e

anúncios de jornais, reafirmariam o papel da mulher como responsável pelos afazeres

domésticos? Existiram discursos, contrários aos estabelecidos, que enfatizariam a

eficácia dos eletrodomésticos como forma de economizar o tempo do indivíduo e não

da mulher especificamente?

A partir dessas questões deu início a possibilidade de uma pesquisa que

envolvesse um cruzamento de informações entre eletrodomésticos, habitação e

relações de gênero, para entender como a habitação tradicional e ideal se dividiria

não apenas em espaços funcionais como também em ambientes masculinos e

femininos.

No período escolhido para trabalhar, que foi a década de 1960, as instalações

elétricas e sanitárias estavam mais presentes nas moradias das grandes capitais, como

Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1960 também se iniciaram a produção de fontes

importantes como a revista Casa & Jardim que começou a circular em 1952. Uma

publicação que focava a decoração e construção voltada para o grande público e não

apenas para profissionais e especialistas do ramo. Essa revista tinha objetivo de expor

os novos utensílios domésticos do mercado e a modernização do lar. Além disso, a

pesquisadora Marinês Ribeiro dos Santos, que em sua tese explorou as publicações do

periódico na década de 1970, afirma ser característica da revista a exposição das

tecnologias modernas para moradias, daquilo que deveria ser objeto de desejo e de

consumo da classe média, porém não deixava espaço para a modificação da família

tradicional.

A revista surgiu como guia para o consumo doméstico de classe média durante um período de urbanização e industrialização acelerada. A missão do periódico era, justamente, apresentar soluções capazes de conciliar a preservação dos valores tradicionais da família com a modernização do espaço doméstico. Num cenário de transformações sociais e culturais, as donas de casa podiam orientar suas escolhas quanto às práticas cotidianas conforme a opinião de especialistas. O contato com a voz da autoridade oportunizava a atualização dos modos de viver conforme o novo “espírito dos tempos”. Com relação às identidades coletivas e à marcação de posições de classe, ao mesmo tempo em que Casa & Jardim construía estilos de vida mediante práticas de consumo, o periódico também funcionava como um espaço de visibilidade para o estilo de vida da classe média. Um tipo de reportagem característico da revista consistia em apresentar imagens e comentários sobre a arquitetura e/ou a decoração de residências pertencentes às pessoas de “bom gosto” da sociedade brasileira. 11

11 SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos Anos 1970: domesticidades e relações de gênero na revista Casa & Jardim. Florianópolis, SC, 2010. P. 63.

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Além da revista Casa & Jardim e as propagandas publicitárias também se

iniciava na década de 1960 uma feira que pretendia mostrar todas as inovações no

âmbito de utilidades domésticas. De esponjas e flores de plástico12 até máquinas de

lavar a UD (Feira Nacional de Utilidades Domésticas) atraía não apenas industriais

como uma parcela da classe alta e média da sociedade que poderiam consumir o que

seria o melhor da produção nacional para a modernização da decoração e tarefas

domésticas. Por esse motivo a feira tinha como público alvo a mulher que, segundo

Santos, seria uma dona de casa que buscava os mais modernos utensílios.

Além do setor comercial, Casa & Jardim também reconhecia as donas de casa como público privilegiado das Feiras de Utilidades Domésticas. Um texto de março de 1962 comenta que a organização do evento dedicava atenção especial às donas de casa, oportunizando a atualização quanto às novidades da indústria que poderiam contribuir com melhorias na rotina doméstica. Em alguns textos, esta atualização é relacionada de forma direta com a figura da dona de casa moderna.13

Como contraponto a essas fontes proponho buscar nos discursos, conceitos e

posturas de arquitetos modernos brechas nas quais a habitação foi pensada para além

da família tradicional nuclear e dos personagens fixos, marido e esposa. A engenheira

civil Carmem Portinho, segundo Ana Luiza Nobre, deixava claro em seus discursos a

liberação da “‘vocação natural’ da mulher para a maternidade e as tarefas domésticas”14.

12 O Suplemente Feminino do jornal Estado de S. Paulo de 25 de março de 1960 trouxe uma dura crítica à I Feira Nacional de Utilidades domésticas, apesar da crítica é possível entender que além da preocupação com a tecnologia e eletrodomésticos de luxo o feira também mostrava objetos variados: “Salvem-se, por exemplo, peças de cozinha e aparelhos de café, chá e jantar em plásticos inquebrantáveis, produtos de espuma destinados a limpeza e ao estofamento de móveis; alguns refrigeradores, peças sanitárias e um ou outro “stand” a apresentar um conjunt perfeito – e bem planificado [...]. A prateria e os talheres, louças, cristais, enfim, toda uma gama de utensilios domésticos reunidos em um só local oferecem ao visitante um espetáculo caótico e desastroso.” R. A. “Arte e forma”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25, 20 de mar. de 1960. 13 SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Domesticidade moderna e relações de gênero: o discurso funcionalista na revista “Casa & Jardim” durante as décadas de 1950 e 1960. In: Congresso Ibero Americano de

Ciência, Tecnologia e Gênero n. 8, 2010, Curitiba. P. 6. 14 O trecho analisado pela autora é esse: “O homem civilizado do século XX perdeu o contato com o problema de sua habitação, enquanto que o homem primitivo sempre procurou construir o seu abrigo com toda a simplicidade, sem pretensão, sem ênfase e sem falsidade. O Homo sapiens do século XX vive, em sua maior parte, em habitações mal projetadas técnica e economicamente, construídas em desacordo com a escala humana, de nível sanitário inferior, sem ar, sem luz, sem vista e quase sempre atulhadas de moveis incômodos, imensos e inúteis. Habitações que fizeram da mulher uma escrava doméstica, sempre preocupada com sua limpeza e conservação, onde o luxo, num desperdício chocante, substitui frequentemente o conforto. Parece-nos que já é tempo de oferecermos a este homem da era maquinista (…) uma habitação digna dele e de sua época. Uma máquina de habitar, bem equipada e organizada, que lhe possa restituir essa coisa inestimável, hoje quase perdida, que é a liberdade individual. Construamos o abrigo do homem como se constrói o seu automóvel ou o vagão da estrada de ferro em que viaja. Adaptemos a habitação à economia moderna”. PORTINHO, Carmem in: Revista

Municipal de Engenharia, janeiro de 1942. Apud NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho. O moderno em construção. Perfis do Rio, volume 25, Relume Dumará, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999. P. 44.

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Na visão reformista da diretora do Departamento de Habitação Popular, a habitação era “um serviço de utilidade pública, com a principal função de reeducação completa do operário brasileiro, que […] deveria estar incluída entre os serviços obrigatórios que o governo deve oferecer, como água, luz, gás, esgoto etc.”. Sem dúvida essa postura se inseria num projeto mais amplo de construção de uma nova sociedade para a qual, entre outras coisas, se previa um novo modo de morar, condicionado à revisão de um conjunto de valores considerados ultrapassados, entre eles o culto secular à dita “vocação natural” da mulher para a maternidade e as tarefas domésticas. Redefinir a posição da mulher na sociedade, romper a clausura do lar são ideais feministas que estão por trás da concepção de habitação defendida por Carmem Portinho em artigo publicado na Revista

Municipal de Engenharia (janeiro de 1942).15

No mesmo rastro, em busca de discursos sobre mulheres e habitação que se

destoam daqueles propagados pelas revistas femininas, Lina Bo Bardi16 pode servir de

exemplo. Se o discurso de Portinho expunha a necessidade de uma modificação da

moradia para maior autonomia da mulher e do indivíduo, Lina Bo Bardi tomou atitudes

e teve posturas de mulher já desvinculada dos moldes femininos da época. Como

mostrou Silvana Rubino em seu artigo “Corpos, cadeiras, colares: Charlotte Perriand e

Lina Bo Bardi”, a despeito do fascismo vivido na Itália, Lina Bo Bardi enfrentou as

limitações que aquele regime e período poderiam impor a uma mulher e foi uma das

duas mulheres que cursou Università degli studi di Roma.

Para se formar em arquitetura em Roma, Lina Bo apresentou como trabalho final de curso, um hospital-maternidade de arquitetura moderna. Além da nota relativamente baixa, foi desqualificada pelo diretor da escola, Marcello Piacentini, que teria dito que uma bella ragazza como ela terminaria se casando, e portanto estaria fora do exercício da arquitetura. A violência simbólica desse ato é simétrica à desqualificação sofrida por Charlotte no episódio do "bordar ou não almofadas", uma enunciação da norma de gênero que desqualifica e desinveste. Formou-se em 1939, com 25 anos.17

Lina Bo Bardi projetou sua própria casa, que foi construída em 1951, uma

moradia moderna com a cozinha munida de máquinas eficientes e sofisticadas.

Segundo Rubino, foi em um verbete da Enciclopédia da mulher que Lina Bardi

além de mostrar toda a modernidade de sua cozinha, ela própria é apresentada

como mulher moderna que sabe se utilizar desses ambientes. Até mesmo as roupas

usadas pela arquiteta rompem com a imagem tradicional da mulher no período.

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NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho. O moderno em construção. Perfis do Rio, volume 25, Relume Dumará, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999. P. 43 – 44. 16 Lina Bo era como a chamavam, seu nome completo era Acchilina di Enrico Bo, foi uma arquiteta italiana que atuou em São Paulo. 17 RUBINO, Silvana. “Corpos, cadeiras, colares: Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi” in: Cad. Pagu, no.34. Campinas jan./jun. 2010.

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E nessa casa, usada como exemplo de um morar moderno (os outros exemplos são casas projetadas por Vilanova Artigas), as imagens mostram uma mulher "moderna" que escapa ao padrão iconográfico do período. Lina está de calças compridas, de relógio, não porta vestidos ou aventais. A cozinha poderia se assemelhar à funcional cozinha americana, uma versão mais espaçosa e mais equipada da cozinha de Frankfurt – afinal era uma casa burguesa, enquanto a segunda destinava-se a conjuntos habitacionais – mas ela não representava a dona de casa suburbana do Kitchen Debate que ocupou a América do Norte no auge da guerra fria.

Essas personagens serviram de inspiração inicial para pensar, dentro da

arquitetura moderna no Brasil, uma antítese da habitação como espaço tradicional

da família nuclear e das relações de gênero fixadas em papéis específicos, nos quais

o homem era o centro da família e da casa e a mulher única responsável pelos serviços

domésticos.

Considerações finais

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa em início como tal há muitos

caminhos a serem explorados e até mesmo formulados. As primeiras possibilidades

apresentadas já levariam a outras inquietações, para exemplificar tais reviravoltas

apresento a seguinte questão: tratar as personagens Lina Bo Bardi e Portinho como

contraponto à mulher domesticada pode não ser a melhor maneira de abordar os temas

arquitetura moderna e eletrodomésticos, já que a primeira foi o meio facilitador do

segundo. Além disso, a imagem feminina vista através das revistas e propagandas foi

e ainda é permeada por padrões racial, de classe e beleza. Outro ponto importante a

ser explorado é a imagem da mulher domesticada e a relativização de sua submissão,

até que ponto essa mulher bela e moderna não teria liberdade e autonomia, mesmo que

fosse apenas dentro de seu ambiente doméstico, para escolher os produtos e as

máquinas que comporiam a peculiaridade de seu lar? Essas e outras questões, que

parecem já exaustivamente discutidas, devem ser revisitadas.

Fontes:

- Casa e Jardim, n. 54, julho de 1959.

- Casa & Jardim, n. 161, junho de 1968.

- O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25, 20 de mar. de 1960.

- O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11, 23 de mar. de 1960.

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Referências Bibliográficas:

- ALMEIDA, M. H. T.; WEIS, L. “Carro zero e pau de arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, L. M. (org.). História da vida privada no Brasil. Vol. 4. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

- CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008.

- BASSANEZI, C. B. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

- FARIAS, Claudio L. de; AYROSA, Eduardo; CARVALHO, Gabriela; et. Al. Eletrodomésticos: Origens,História & Design no Brasil. Rio de Janeiro: Frahia, 2006.

- FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.

- MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida

privada no Brasil, 4: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

- NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho. O moderno em construção. Perfis do Rio, volume 25, Relume Dumará, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999.

- PÉREZ, Inés. El hogar tecnificado. Familias, género y vida cotidiana. 1940-1970. Buenos Aires: Biblos, 2012.

- RUBINO, Silvana. “Corpos, cadeiras, colares: Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi” in: Cad. Pagu, no.34. Campinas jan./jun. 2010.

- SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos Anos 1970: domesticidades e relações de gênero na revista Casa & Jardim. Florianópolis, SC, 2010.

- ____________________________. “Domesticidade moderna e relações de gênero: o discurso funcionalista na revista “Casa & Jardim” durante as décadas de 1950 e 1960”. In: Congresso Ibero Americano de Ciência, Tecnologia e

Gênero n. 8, 2010, Curitiba.