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MAR VISTAEstudo da Maritimidade em FortalezaPresidente da RepblicaDilma Vana RousseffMinistro da EducaoFernando HaddadUniversidade Federal do CearReitorProf. Jesualdo Pereira FariasVice-ReitorProf. Henry de Holanda CamposEditora UFCEditorProf. Antnio Cladio Lima GuimaresConselho EditorialPresidenteProf. Antnio Cladio Lima GuimaresConselheirosProf. Adelaide Maria Gonalves PereiraProf. Angela Maria R. Mota de GutirrezProf. Gil de Aquino FariasProf. talo GurgelProf. Jos Edmar da Silva RibeiroColeo Estudos GeogrcosCoordenao EditorialCoordenadorProf. Eustgio Wanderley Correia DantasMembrosProf. Ana Fani Alessandri CarlosProf. Antnio Jeovah de Andrade MeirelesProf. Christian Dennys OliveiraProf. Edson Vicente da SilvaProf. Francisco MendonaProf. HrvThryProf. Jordi Serra i RaventosProf. Jos Borzacchiello da SilvaProf. Jean-Pierre PeulvastProf. Maria Elisa ZanellaMAR VISTAEstudo da Maritimidade em Fortaleza2a EdioEustgio Wanderley Correia DantasFortaleza2011D 192 mDantas, Eustgio Wanderley CorreiaMar vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. 2. edi-o./ Eustgio Wanderley CorreiaDantas. - Fortaleza: Edies UFC, 2011.103 p. ilust.ISBN:978-85-7282-431-6(Coleo Estudos Geografcos, n. 10)1. Vida litorneaBrasilNordeste 2. Geografa humana Brasil Nordeste I. Ttulo CDD: 304.209813Mar Vista: Estudo da Maritimidade em Fortaleza 2011 Copyright by Eustgio Wanderley Correia DantasImpresso Brasil / Printed in BrazilEfetuado depsito legal na Biblioteca NacionalTodos os Direitos ReservadosEdies UFC (ColeoEstudos Geografcos)Pos-Graduao em Geografa da UFCCampus do Pici, Bloco 911,Fortaleza Cear - BrasilCEP: 60445-760tel. (85) 3366.9855Iax: (85) 3366.9864Site: www.posgeografauIc.bre-mail: edantasuIc.brDiviso de EditoraoCoordenao EditorialMoacir Ribeiro da SilvaReviso de TextoLeonora Vale de AlbuquerqueNormalizao BibliogrcaBibliotecria Perptua Socorro Tavares Guimares CRB 3/801Capa

Programao VisualLuiz Carlos Azevedo Catalogao na FonteBibliotecria Perpetua Socorro Tavares Guimares CRB 3/801SUMRIOAPRESENTAO......................................................................................................7CONSIDERAES INICIAIS .....................................................................................11CAPTULO 1MATRIZ DA CONSTRUO DA MARITIMIDADE NO CEAR COLONIAL .......................15CAPTULO 2MARITIMIDADE EM UMA CIDADE MARCADA PORIMAGINRIO INTERIORANO: Construo daCapital do Serto ...........................................................................232.1AAbertura de Fortaleza para o Mar .............................................................252.2Fortaleza, Cidade Litornea-Interiorana ........................................................312.3Cidade Marcada por Imaginrio Interiorano.................................................37CAPTULO 3O TRIUNFO DO MAR: Transformaes Ocorridas no Sculo XX ................................433.1A Incorporao das Zonas de Praia de Fortaleza como Espao deLazer e Veraneio ..........................................................................................453.1.1A ocupao da periferia pelas classes abastadas...................................463.1.2A ocupao da periferia pelos pobres......................................................483.1.3A construo da cidade policntrica e a zona de praia: entre 1940 e 1970..................................................................................513.1.4Reforo do movimento de ocupaodas zonas de praia nos anos 1940-1970.....................................................................................533.1.5Fortaleza se volta para o mar, ps-1970.................................................593.1.6Os calades..........................................................................................603.1.7Os polos de lazer.....................................................................................663.2Veraneio e Incorporao da Totalidade dos Espaos Litorneos do Cear .....703.3Cidade Litornea-Interiorana que se faz Litornea-Martima Ps-Final dos Anos 1980............................................................................................753.3.1Fortaleza se volta para a zona costeira...................................................763.4Fortaleza, Centro de Recepo e de Distribuio dos Fluxos Tursticos .........793.5A Construo da Imagem Turstica de Fortaleza: A Cidade do Sol .................87CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................93BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................96APRESENTAOMarVista,deEustgioDantaschegasuasegunda edio.Olivroaexpressodasmltiplaspossibilidadesde leituradastramasurbanasconstrudasnatessituradeumaci-dademultifacetada.Seucontedotraduzacomplexidadedas relaestravadasnacidadedeFortaleza,capazesderevelara dinmicadametrpolenaperspectivadeseusvnculoscomo litoralecomomar.Acidadesobestaticadiscutidanuma condiodeobjetoambivalente.Focalizaumtemaemergente na pauta urbana das cidades litorneas. Dispondo de excelente fundamentaotericaeembasamentometodolgicoadequa-do, relaciona, com muita propriedade, os vnculos entre o litoral e o mar pondo na ordem do dia um tema pouco discutido pelas cinciassociaiscontemporneas.Seguroemseusargumentos, elaborouumlivronecessrioeinovador,ampliandoadiscus-so e alargando o campo de anlise de um conceito presente, de forma compulsria nos textos sobre mar, brisa, turismo e lazer. Munido de vigoroso referencial terico e metodologia cujo eixo de argumentao busca compreender a tessitura de uma relao conituada entre a cidade, o mar e o martimo em contraponto aos seus vnculos com o serto. Ttulo inusitado, tema inovador, abordagem reveladora. Atemtica do livro traz tona as trans-formaes urbanas de Fortaleza contextualizadas nas diferentes Eustgio Wanderley Correia Dantas8 concepes, olhares e prticas sociais tendo o mar como motivo e objetivo maiores. Constante na literatura e no cancioneiro cea-rense,omar,comotemtica,alcanounotoriedadenosversos de Alencar com os Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaba. Essa intimidade revelada nos tempos pretritos discutida por Eustgio Dantas, mostrandoaolongodotempoasrelaescontraditriasentre acidadeeomar.Omardosindgenaspescadoresemcontra-pontoaosertoprodutivogeradordecidadesevilas.Olitoral por sua vez no se prestou, durante muito tempo, ao processo de ocupao e organizao do espao. O autor estruturou seu livro de forma a revelar os diversos momentos de nossa capital. ComprovacomperspicciaoquedenominadeConstruo da Capital do Serto, discutindofaces complementares da ci-dade interiorana-litornea. Sua anlise privilegia a compresso tempo/espao.Aleituradolivropermitepercebermudanas na malha urbana de Fortaleza medida que ela descobre o mar e organiza sua litoralizao. Imagens do martimo so incorpo-radas medida que se atribuem novos usos do mar sob a gide do lazer e do veraneio.Com este livro, o autor d excelente contribuio com-preenso da metrpole como lcus da concentrao demogr-ca, dos apegos e desapegos na construo de vnculos com o mar eamaritimidade.Constriumtextodequalidade,desenvol-vido com embasamento terico soberbo e renado mtodo de pesquisa. Essa conjuno garantesua qualidade e o compromis-so em sua feitura considerando seu peso simblico. Pautado em questescontundentes,busca,naliteraturaquetemFortaleza comopanodefundo,outrosfundamentosparaseusargumen-tos.EustgioDantasbrinda-noscomumlivroimprescindvel para o conhecimento de Fortaleza no contexto das relaes co-tidianas contidas no universo mar e serto. Seu cunho analtico MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS9 original advm da maturidade adquirida nas lides de pesquisa e da necessidade de enfocar temas carentes de interpretaes mais profundas. Eustgio, em sua anlise e interpretao, surpreende peladensidade do texto e a consistncia na narrativa.Ao se de-cidir sobre as ambigidades travadas na cidade turstica conheci-da por seu mar de guas clidas, revela, com intensidade a cidade sertaneja construda em grande escala. O autor garante uma di-retriz ao livro, uma lgica explicativa ao longo de seu corpo ga-rantindonitidezaosmltiplosaspectosabordados.Oenfoque ousado e competente, um exerccio de qualidade, completo. Nocotidianourbanorepousaseupressupostoparaen-tender a dinmica metropolitana na dimenso da presena e da diferenciaomar/sertonointeriordacidade.Commaestria esegurana,oautorelaboraumageograaurbanapautadana relaoentreacidadeeomardesenhadanoemaranhadode suas vias, reconhecida nas diversas atividades e funes em seus diferentesterritrios.Seusreferenciaistericosbuscadosna Geo graa,temumforteteorhistricomedidaemquerecu-pera na literatura narrativas emblemticas capazes de explicar as relaes da cidade com o mar. OtextodeEustgioDantasprimaporsuaqualidade, tornando-se leitura obrigatria aos afeitos s questes urbanas, especialmente, as de Fortaleza. Encontraro no livro uma leitura inovadoradacidadequepermiteapreendersuadimensodu-alizadas nas relaes entre litoral e serto.A nova edio com-prova a qualidade do livro, essencial como subsdio acadmico, voltadoaospesquisadores,professores,alunoseopblicoem geral interessado em melhor compreender as relaes estabele-cidas entre cidade, mar e martimo. Jos Borzacchiello da Silva Prof. Titular da UFCCONSIDERAES INICIAISDeacordocomPeroneRieucau(1996),nonaldos-culo XX, o interesse pelo mar torna-se verdadeiro fenmeno de sociedade.Amatrizdatransformaositua-seentreossculos XVI-XVIII,momentoemqueoseuropeusseaventurampelos mares,emesforoalimentadopelocomrcio,pelageraode novosinstrumentos(abssolaeoastrolbio,entreoutros)e, at mesmo, pela reverso do quadro de imagens repulsivas asso-ciadas ao mar. EssasimagenseramtomarcantesqueJeanDelumeau (1978), em sua Histria do Medo no Ocidente, chega a denir o mar como espao associado constantemente ao medo. Os euro-peus evitavam aventurar-se muito distante da costa e dos mares interiores. Para eles, longe da costa, encontrava-se o desconheci-do, vinculado constantemente a representaes msticas as quais falavam de obstculos intransponveis: o abismo que engolia os navios, o mar habitado por monstros e deuses colricos, o mar repleto de recifes desumanos Ademais, esse medo associava-se sempre a imagem relacionada morte. O mar propiciava in-vases. O mar das tempestades provocava naufrgios. O mar das Eustgio Wanderley Correia Dantas12 pilhagensdospiratas.Omarcomoelementohostil,comseus mangues geradores de miasmas que interditam as culturas. Necessriatornou-seareversodestasriedeimagens repulsivasparaoseuropeus:seresporessnciainterioranose, consequentemente,ligadosparteslidadaterra(LABLACHE, 1995) passarem a desaar o mar. A essa regra convm res-saltarexcees,pois,conformePrevelakis(1996),omartimo, naGrcia,sempreestevepostocomoelementoimportantena constituio do imaginrio social da sociedade.Alain Corbin (1988), ao evocar as guras iniciais da admi-raopelomar,apresentarpidatransformaoimposta,aps osculoXVII,pelaTeologiaNatural.EstavisodeDeusedo mundocontribuiuparaaeliminaodasimagensrepulsivas, apresentando a Terra como um livro redigido pelo Criador e de-dicado ao homem.Com base nesta premissa, constri-se agradvel viso dos espaoslitorneos,criadosporDeusparaobem-estardosho-menseparaodesenvolvimentodecondiesotimizadasna-vegao.Esse discurso signica verdadeiro [...]hinonavegaoqueaproximaoshomens,quepermi-teaomarinheirodeadmiraraTerrainteira,queencorajao comrcioe,sobretudo,queautorizaodeslanchedoesforo missionrio (CORBIN, 1988). Aliadoainovaesnodomniodanavegao,essedis-curso permite a transformao das zonas de porto em janelas, apartirdasquais,oscontatospuderamserestabelecidos.A modicao de mentalidade dos europeus, a fabricao de no-vosinstrumentosdenavegaoeosprogressosassociados oceanograa conseguem transformar o mar em trao de unio por excelncia.MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS13 Comasgrandesnavegaes,omartorna-seviadecircu-laonecessrianoHemisfrioAustral(LABLACHE,1995). Anovacaracterizaodomarconstituilgicaquedeixadeser continentalparasetornar,sobretudo,perifrica.Graasaoco-mrcio, o homem consegue abrir o mar a uma circulao sem li-mites, revelando nova familiaridade dos europeus com o elemen-tolquido.Evocarafamiliaridadeimplicaindicaodoquadro constituidor do movimento de expanso europeu dirigido para a Amrica, Austrlia e frica do Sul, que possibilita, a partir do xodo crescente de europeus para esses continentes, o estabele-cimento de contatos (comunicao) entre diferentes ecmenos distribudos no globo (LA BLACHE, 1995).A elaborao da noo de maritimidade no Cear, ou seja, da constituio das relaes da sociedade local com o mar, ser evidenciada a partir desse contato inicial e de seus desdobramen-tos. Em suma, da relao de estranhamento entre duas culturas e dois povos, autctones e europeus, que evolui, em virtude da miscigenao (MENEZES, 1995), para a formao de um ima-ginrio social brasileiro, que conforme Gilbert Durant (1996)[...] trata-se de uma relao na qual [] oconquistadorao assimilar to profundamente os valores locais (lugar geogr-co, climtico, civilizacional, tnico, etc.) propicia o nascimen-to de um povo, de uma cultura, de um imaginrio novo.Evidenciar-se-aelaboraodanoodemaritimidade comoresultadodoprocessodeocidentalizao,cujamatriz Fortaleza, cidade com estilo e ritmo amplamente marcados por relaes estabelecidas com o exterior, a Europa.Estaanlisebuscafundamentaramaritimidadeapartir das relaes que os homens (em Fortaleza-Cear) estabelecem entresieosemirido.Relaesarbitradas,comoveremosna sequncia, por uma dimenso de carter socioeconmico, tec-Eustgio Wanderley Correia Dantas14 nolgicoesimblicoquesuscitaaelaboraodeumanoo de maritimidade particular ao Cear, cuja capital a principal tributria.Esta noo evolui no tempo, em virtude da adoo de geo-estratgiaespeccadeorganizaodosespaossemiridosdo Nordeste, dado explicitador das nuanas do fenmeno de valo-rizao dos espaos litorneos cearenses, da descoberta muta-o turstica contempornea.Mediante trabalho fundado em duas lgicas de organiza-o do espao (a primeira, de carter antigo e a segunda, carac-terstica do sculo XX), respaldadas nas relaes especcas da sociedade local com os espaos litorneos, evidenciar-se- a ca-racterizaodeFortaleza,inicialmentecomoCapitaldoSerto e, posteriormente, como Cidade do Sol. A presente anlise pos-sibilitaracompreensodapassagemdeumacidadelitornea com alma de serto (litornea-interiorana) para cidade litornea que se torna martima (litornea-martima), em decorrncia da consolidao das novas prticas martimas associadas ao lazer e ao turismo. A segunda ediodstelivroconstitu-se, emparte, dere-sultadosdepesquisadesenvolvidanosltimosvinteanoseno cerne de reexes delineadoras de uma Geograa do Litoral nos trpicos. A de uma geograa capaz de apreender lgica contem-pornea de urbanizao litornea martima no Nordeste do Bra-sil e, com maior nfase, na cidade de Fortaleza/Cear/Brasil.CAPTULO 1MATRIZ DA CONSTRUO DA MARITIMIDADE NO CEAR COLONIALNo Cear colonial, o litoral no constitui ponto de pene-trao.Emboraaocupaoinicialocorrasobreestaparcelado territrio, aspectos tecnolgicos, naturais e simblicos apresen-taram-no como quadro imprprio penetrao e justicador do fraco desenvolvimento desta zona, em relao aoserto. Olito-ralmostra-secomopresafcilparao serto, evidenciando-se como tributrio e dependente desse espao. NoCear,oestabelecimentodeportosnolitoraleore-foro das cidades que os controlavam (Aracati, com sua zona de portosituadaatrslguasdestacidade,eSobral,dominando osportosdeCamocimeAcara)resultamnanfasedoserto como zona produtora de carne-seca e de outros artigos destina-dos ao mercado regional. Em virtude da dependncia em relao ao serto, o litoral se caracteriza como territrio da pesca, representando paisagem caracterstica das regies litorneas semiridas. Nessas regies, a Eustgio Wanderley Correia Dantas16 pesca reinava quase que absoluta, com fraca agricultura de sub-sistncia (a mandioca, o algodo, oscereais) em contraponto quela desenvolvida na Zona da Mata.ConformeindicaomazPompeuSobrinho(1937), noCear,existiaumaZonadePescadoresondepredominava oelementoindgena.Osindgenassedistribuamsobreoter-ritrio: do Rio Grande do Norte ao rio Cear, encontravam-se ndios da famlia Tupi (os Potiguaras) e, deste ponto at a fron-teiracomoMaranho,osdafamliaTapuia(osTremembs). Oterritrioachava-sequasequecompletamenteocupadopor indgenas,comalgumasexcees:a)naszonasdeporto,onde as trocas estabelecidas justicavam a presena de outros grupos tnicos; b) em Fortaleza, onde a posio de sede governamental garantia a presena desses grupos; c) em algumas vilas litorne-as do sculo XVIII, notadamente Aquiraz.Como a incorporao do litoral se funda em ocupao for-temente indgena e em desenvolvimento importante da ativida-de da pesca, pode-se pensar que a consolidao desta atividade se relaciona a este tipo de ocupao? Se a criao de gado, no serto, era desconhecida pelos ndios, no podemos dizer o mesmo no que se refere pesca. A pesca era conhecida pelos ndios brasilei-ros antes da chegada dos colonizadores e signicava, sobretudo, a procura por fontes de alimento que tornavam o mar atraente para a humanidade primitiva (LA BLACHE, 1995).Asingularidadedestazonaadenotersidomarcada pelolatifndio.Adivisodoterritriobrasileiroemsesmarias realiza-seto-somenteemzonaseconomicamenteviveis.Em decorrncia de suas caractersticas naturais e estratgicas, as zo-nas de praia interessam unicamente aos governantes portugue-ses, temerosos de provvel invaso estrangeira.Preocupados com a ocupao do territrio que represen-tasse obstculo defesa da colnia, a Coroa Portuguesaestabe-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS17 lecejurisprudnciassobreaocupaodasmarinhas(PORTO, 1965).AprimeiraguranaCartaRealde12denovembrode 1698, estipulando que os terrenos pertenciam ao rei, nico res-ponsvel (por meio de seus representantes) pela determinao de usos possveis (ABREU, 1997).As jurisprudncias no impediam a atividade da pesca, in-dicando abertura explorao baseada nesta atividade e possibi-litando o surgimento das primeiras comunidades de pescadores no litoral. Essascomunidadessooriginrias,principalmente,dos antigosgruposindgenasquehabitavamolitoral,sendosua emergncia resultante de aspectos judicirios e de inovaes tec-nolgicasadvindasdoOcidente.Noprimeirodomnio,dosas-pectos judicirios, assiste-se constituio de estrutura fundiria baseada na propriedade privada e que provoca o m dos desloca-mentos sazonais, em busca de alimento, notadamente a coleta de frutos e de mel, mas tambm para a caa. No segundo domnio, dasinovaestecnolgicas,observa-seprocessodeaperfeioa-mentodosequipamentosdepesca(especialmenteasembarca-es as jangadas) e da utilizao de instrumentos ocidentais (o anzol, a rede), que favorecem o desenvolvimento de comuni-dadesexclusivamentemartimas,fundadasapenasnapesca.De fato, trata-se de arsenal tcnico e de conhecimentos dos europeus que melhoram o savoir-faire do autctone. Esta potencializao , ao mesmo tempo, causa e consequncia da sedentarizao.Pode-seconcluirqueotipodesedentarismodosgrupos indgenas,moradoresnaszonasdepraia,resultadastrocases-tabelecidasentrendioseeuropeus,reforadaseenriquecidas pelofenmenodemiscigenaointensa,noqualoelemento vindo do serto junta-se ao do litoral. Elementos mestios que, fugindo das secas, encontram refgio nas comunidades de pes-cadores nas zonas de praia.Eustgio Wanderley Correia Dantas18 Acredita-se,entretanto,queessamiscigenaonoapaga as representaes dominantes doelemento indgena. Tal hege-monia evidencia-se, a princpio, na herana deixada no domnio dosmitosecrenasquemarcavamavidadascomunidadesde pescadores,dando-lhessentidoerespondendoaosreceiosem relaoaomar.Elamanifesta-se,emseguida,nofatodeestas comunidades serem verdadeiras sociedades de subsistncia.Noqueserefereaosmitosquealimentavamreceiosem relao ao mar, convm ressaltar aquele dos homens marinhos. Este mito, inicialmente mencionado por Jean de Lry (1994) no sculoXVI,foireapresentadoporGabrielSoaresdeSousa, no sculo XIX, em seu Tratado Descritivo do Brasil, de 1857. []nohdvidasenoqueseencontramnaBahiaenos recncavosdela,muitoshomensmarinhos,aqueosndios chamampelasualnguaipupiara,osquaisandampelosrios dgua doce pelo tempo do vero, onde fazem muito dano aos Figura 1Jangada Pintada por Henry Koster (1809)MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS19 ndiospescadoresemariscadoresqueandamemjangadas, ondeostomam,eaosqueandampelabordadagua,me-tidosnela;aunseoutrosapanham,emetem-nosdebaixo dgua,ondeosafogam;osquaissaematerracomamar vazia,afogadosemordidosnaboca,narizenasuanatura; edizemoutrosndiospescadoresqueviramtomaraestes mortos que viram sobre gua uma cabea de homemlanar um brao fora dela e levar o morto;e os quais viram se re-colheram fugindo terra assombrados, doquecaram to atemorizadosquenoquiseramtornarapescardaamui-tosdias;oqueaconteceutambmaalgunsnegrosdaGui-n;osquaisfantasmasouhomensmarinhosmatarampor vezes cinco ndios meus; e j aconteceu tomar um monstro destes dois ndios pescadores de uma jangada e levarem um, esalvar-se outrotoassombrado queesteve para morrer; e alguns morrem disto. (SOUSA, 1974). Figura 2 Jangada Pintada por James Henderson (1819-1821)Ainvocaodosndiospescadoresevidenciaoprocesso de sedentarizao que no elimina os mitos indgenas no scu-lo XVI, ao contrrio, eles constituem uma herana deixada para aqueles que se dedicavam pesca. Eustgio Wanderley Correia Dantas20 No que se refere constituio em sociedades de subsis-tncia, pode-se falar, de certa maneira, da reproduo do estilo devidaindgenaquecriaumquadrocomportamentalesocial desprovidodasvicissitudesdomercantilismo.Ospescadores pescavamexclusivamente para alimentar seus familiares,prti-cafrequentequelevaoscontemporneosaclassic-loscomo preguiosos, a exemplo dos ndios.As comunidades de pescadores encontram-se, na totali-dadedoterritriocearense,representandooutromodelode ocupao do espao, baseado essencialmente na pesca. Tal ati-vidadeengendraacriaodeverdadeirascomunidadesmar-timas no litoral, e at nas regies vizinhas de Fortaleza. Nesta cidade,elasconstituemogermedeformaodascomunida-des do Mucuripe e do Meireles (atualmente integradas zona urbana de Fortaleza).A preponderncia da pesca, nas regies litorneas vizinhas de Fortaleza, conduz Joo Brgido (1910) a referir-se a essa ci-dade como pequenino arraial de pescadores, onde residia o ca-pito-mor,alguns mercadores portugueses e pequena fora des-tacada de Pernambuco. Embora se tratando de efeito de estilo exagerado, torna-se necessrio ressaltar que, a esta poca, Fortaleza constitua-se em cidade pobre e sem comrcio importante, que, para assegurar a alimentao dos habitantes, tentava submeter as zonas vizinhas, entre outras, a dos pescadores. Este ensaio de dominao passa-va pela instaurao de regulamentao judiciria, iniciativa do Conselho Municipal, visando assegurar a sobrevivncia. Diantedestaperspectiva,avendadefarinharegula-mentada e a da carne, taxada. ConformeJooBrgido(1910), aregulamentaoadquirecartervexatrionoqueconcerne spescariaseaoconsumodepeixe.Trata-sedaordenanade 26/10/1811, pargrafos 1, 2 e 3: MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS21 1que todos os jangadeiros sero obrigados todos os dias a ir pescar com suas jangadas ao mar e isto a horas competentes, salvo quando o tempo for tal, que eles de fora no possam ir ao mar, debaixo das penas de 30 dias de cadeia, cada um dos jangadeiros; 2que para execuo deste artigo primeiro, elegem e deter-minamqueumdosjangadeirosdemaisporteecapacidade sejacabo,aquemtodososoutrosjangadeirosrespeitaroe obedecero,comoocialdejustia,candoestecaboobri-gadoafazersobreditosjangadeirosirempescarnomar,as-simcomopertencetambmaestecabodecidirseosventos eotemposofavorveisounoditapescaria,paraquea Cmara lhe mandar passar o seu alvar e gozar de todos os privilgioseimunidadesdequegozamosmeirinhos,com declarao porm que toda omisso que tiver sobredito cabo no seu ofcio ser castigado com 30 dias de priso e desde j nomeiamparacabodosjangadeirosAntonioRaimundodo Nascimento etc; 3que,primeiroquesesirvanarepartiodopescadoa todo pblico, se tirar com preferncia para o governador da capitania, para o ouvidorestando na vila, para os vereadores e procurador do conselho e almotacs, para os deputados das juntas,paraovigriodafreguesiaecapito-moretodosos mais empregados em ofcios de fazenda ou justia e igualmen-te para todos os ociais de tropa de linha.Com a regulamentao, os pescadores foram reduzidos a uma condio quase servil (BRGIDO, 1910), fato que colo-cavaemquestoestilodevidabaseadoemquadrocomporta-mental e social que escapava racionalidade mercantilista. CAPTULO 2MARITIMIDADE EM UMA CIDADE MARCADA POR IMAGINRIO INTERIORANO: Construo da Capital do SertoA lgica dicotmica entre o serto e o litoral s ser ques-tionada no incio do sculo XIX, com a adoo de geoestratgia reforando o papel de Fortaleza na vida econmica, poltica, so-cial e cultural da capitania. A geoestratgia inscrever Fortaleza na lgica caracterstica das cidades litorneas que se abrem para o exterior, sem abdicar, no seu caso, de herana proveniente de quadrosimblicodoserto.Constri-seumacidadelitornea-interiorana,queredescobreomarcontinuandointeriorana,li-gada ao serto. Este quadro simblico interiorano media a apro-ximaodacidadeaosespaoslitorneos.Aaproximaode ordemeconmica,reforadapormedidaspolticas,evoluilen-tamente para a abertura cultural da elite (em razo dos contatos estabelecidos com a Europa) diante das zonas de praia, ocupa-das exclusivamente pelos pobres, em especial, os pescadores.Eustgio Wanderley Correia Dantas24 O desenvolvimentodasprimeiras prticas martimas no Cear(ostratamentosteraputicos,osbanhosdemareasca-minhadas na praia)respondiaademandadeumasociedade de lazer (que construda e se amplia na capital) e se justica na construo da Capital do Serto, imagem resultante da simbiose entre serto e litoral, nutrida e alimentadora da abertura cultural dasociedadelocalquedescobreaszonasdepraia,semperder seu carter interiorano.O novo quadro, propiciador de abertura cultural da elite, d-segraas ao aspecto de ordem poltico-administrativa, nota-damenteaindependnciadoCearemfacedePernambucoe abertura dos portos brasileiros s naes amigas, que indicaram elementos possibilitadores da construo da dominao do lito-ral sobre o serto.Aps a independncia, o Cear comea a dispor de gover-nadorindependentedePernambuco.Ocontextopolticope emquestooquadroqueasseguravaadominaoeconmica de Pernambuco em detrimento de Fortaleza. Associada aber-turadosportos,acapitalpdelanar-senaimplementaode projetosvisandocomercializardiretamentecomaEuropa,co-locandoemxequeosistemaanteriorquesbeneciavadeter-minados portos.OgovernadorLusBarbaAlardodeMenezes(1806-1812), gurarepresentativa da poca, questiona, com frequn-cia,arelaodedependnciaquantoaPernambuco.Emdo-cumentosingular,evidenciaasboascondiesdenavegao existentesemFortaleza,notadamentesuaposiogeogrca (MENEZES, 1897). []de1803emdianteasuaagriculturatemidonomaior augmento, e muito mais ainda o seu commercio, em raso do seo local, por terem os seos portos a vantagem sobre os outros doBrasildeseremasviagensparaaEuropa,edahiparaos ditos,muitomaisabreviadas,porsopraremosventoscons-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS25 tantemente de nordeste para lste sueste, e de no encontra-remdoranteella,baias,eserdefacilreconhecimento,pelas grandes montanhas. (MENEZES, 1897).O resultado imediato deste embate foi a abertura de For-taleza para o mar, com consequente animao das zonas de praia (o porto), iniciada com o envio de navio carregado de mercado-rias e algodo a Londres em 1809 (BRGIDO, 1910). Figura 3 Carta de Fortaleza, incio sculo XIXFonte: Antnio Jos da Silva Paulet, Carte de la Capitainerie du Cear 1813.2.1A Abertura de Fortaleza para o MarGraas ao porto e ao desenvolvimento da cultura do algo-do,aaberturadeFortalezaparaomaracontece.Essacultura alimentaouxoexpressivodebarcostransportandomercado-rias, principalmente para a Inglaterra. Joo Brgido fala de volu-me correspondente a 16.000-17.000 arrobas por ano (240.000-255.000quilogramas),volumetosignicativo,quejusticao Eustgio Wanderley Correia Dantas26 estabelecimentodaprimeiracasacomercialemFortaleza,no ano de 1811, pelo irlands William Wara.Fortaleza foi a principal beneciria da intensicao da culturadoalgodonoCear,culturaqueprovoca,medida queoportosobressaa,adominaodasregiesprodutoras de algodo.Essa dominao, inicialmente restrita vizinhana de For-taleza, permite a armao da capital no quadro urbano estatal: decidadedeterceiraordemeposicionadaemoitavolugar,no sculo XVIII, torna-se cidade de primeira ordem, no sculo XIX, e classicada em segundo lugar, perdendo somente para Sobral, a principal cidade do Cear, entre 1800-1850.Fortalezacomeaaconformar-seaomodeloclssicodas cidades litorneas exercendo papel de capital. A reestruturao caracterizou-seporvivaconcorrnciaentreascidadescearen-ses. Para ascender segunda posio, Fortaleza investe sobre ci-dades importantes na poca, rivalizando com aquelas especi-camente Aracati, Ic e Crato que se inscrevem na lgica antiga de comunicao e so tributrias de Pernambuco. Noconitodeinteresses,Fortalezaempregatodasasar-mas de que dispe para ampliar a zona de inuncia e de domi-nao.Aproveitando-sedaposiodecapital(principalmente apsconsubstanciaodoBrasilimprio),legislasobretarifas alfandegrias e investe na construo de vias de comunicao.A primeira medida, inscritano domnio poltico-adminis-trativo, possibilita a incorporao das regies produtoras de al-godo gravitando na zona de inuncia de Sobral. A integrao d-se por motivo de baixa de 50% nas tarifas alfandegrias dos produtos exportados, a partir de Fortaleza. Aps a baixa, decre-tada em 27 de maio de 1803, todo o algodo produzido no norte do Cear passa a ser enviado, pelos portos de Camocim e Aca-ra, ao porto de Fortaleza.MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS27 A segunda medida, inscrita no domnio tecnolgico e com-plementar da primeira, determina a construo do sistema ferro-virioligandoFortalezaaoserto.Aconsolidaodessesistema propicia a incorporao gradual da zona produtora de algodo rea de inuncia e de dominao de Fortaleza: inicialmente nas vizinhanas de Fortaleza e posteriormente em detrimento das zo-nas de inuncia de Ic/Aracati e de Sobral.Aimplementaodosistemadeviasdesestruturaantiga lgica de comunicao, fundada nas vias de penetrao natural (osrios)enasestradasantigas,queimpediaaFortalezados-culoXVIIIdeexercerpapelrelevantenoquadrosocioespacial urbanodoCear.Pode-seconcluirqueacapitalaproveitou-se da colaborao da estrada de ferro com a navegao a vapor para se tornar ponto de drenagem de mercadorias, reforando, assim, as relaes entre litoral e serto (SILVA, 1992).Este reforo possibilita a gerao de importante uxo de-mogrco do serto para o litoral. Para se ter ideiadesse uxo, Fortaleza passa de uma populao estimada em 3.000 habitan-tes,em1800,para16.000habitantes,em1863ea21.372,em 1872. aevoluodemogrcaamatrizdetransformaesde ordemquantitativa(crescimentoeconmicoeampliaoda rea ocupada pela cidade) e qualitativa (construo de um qua-dro de vida urbano). medidaqueFortalezaconstrudaecresce,lanam-se asbasesdeconstituiodeumquadrodevidaurbanaespec-ca.Fala-seemespecicidadepararessaltaraimportnciado contingente populacional advindo do serto. Com a chegada ao litoral, esse contingente interiorano confronta-se com o meio e constri uma cidade que exprime as relaes com o semirido. Fundando-seemnovasrepresentaesdolitoral,anuncia-sea criao de novo homem e de nova sociedade em Fortaleza.Eustgio Wanderley Correia Dantas28 Fonte: Dantas 2000Mapa 1 Evoluo do sistema ferrovirio cearenseMAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS29 Os emigrantes do serto participaram ativamente do pro-cesso de ordenamento espacial de Fortaleza, notadamente aque-les quecompuseram a elite local.Aceitam incondicionalmente aprticaintervencionistaimpostapelaCoroaPortuguesa,ad-vinda do Ocidente, denotando grande fascinao exercida pela civilizaoocidental,semrompercomavontadedereforar relaes com o serto. Este estado de esprito se materializa no Plano Xadrez de Antnio Jos da Silva Paulet (aprovado pelo Conselho Munici-pal, em 1824), no qual as ruas principais, em traado quadran-gular,soconcebidasnosentidonorte-sul,partindodomare dirigindo-se para o serto.TalestadodeespritopersisteapsaIndependnciado Brasil,sendoretomadopelosdirigentesdoestadocomouma dasdiretrizesbsicasdosplanosurbansticos.Aelaboraodo Esquema Topogrco da Cidade de Fortaleza, por Adolfo Her-bster,em1875,insere-senestequadro.Apartirdoprojetode Antnio Jos da Silva Paulet, Herbster amplia o traado da cida-de com a construo de trs bulevares (atualmente as avenidas Imperador,DuquedeCaxiaseDomManuel).Oesquemafra-ciona a estrutura urbana, indicando: a) vias de circulao dirigi-das para o serto, que induzem a orientao da expanso urbana reforadoradopapeldeFortaleza,consideradacentrodarede urbana do Cear; b) embelezamento e controle social a partir do alinhamento das ruas, da construo de prdios modernos e, en-m, da destruio de imveis que no se inserem na geometria do esquema em xadrez.Trata-se, no ltimo caso,da construo, por parte dos agentesdoestado,deeleganteeinditamundanidade, erguendoclubessofisticadssimose recriandozonasp-blicasdestinadas s novas prticas de recreao e esportivas (PONTE, 1993).Eustgio Wanderley Correia Dantas30 Estavidadeculturaeociosidadepensadaparaepelas classes abastadas. Na tentativa de impedir aos pobres o acesso cidade, elas buscam transformar Fortaleza em lugar de residn-cia, de encontros e de festas.Mencionado projeto conduz explicitao de um espao de sociabilizao das classes abastadas distanciado das zonas de praia. Consequentemente, a cidade foi construda no sentido do serto, escolha marcada por imaginrio interiorano que impedia de ver o mar diferentemente, ou seja, como ponto de exportao eimportaodeprodutos.Nasce,portanto,acidadelitornea--interioranacujasparticularidadesdiferemdaquelasquecarac-terizam a cidade comerciante, aberta para o mar por intermdio de seu porto.Figura 4 - Esquema topogrco de Fortaleza, Adolfo Herbster, em 1875MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS31 2.2Fortaleza, Cidade Litornea-InterioranaAcidadelitornea-interioranasedesenvolveconser-vando ligaes pontuais com a zona de praia. Inicialmente, as mais frequentes, por meio do porto, nascem das necessidades deconsumodasclassesabastadasepropiciamaeclosoeo desenvolvimentodeimportantecomrciolocaldependente dazonaporturia.Posteriormente,asmenosfrequentesde-corremdasprticasteraputicas,derecreaoedelazerdas referidas classes.Asrelaesestabelecidaspormeiodoportoevidenciam acentuado grau de ocidentalizao das classes abastadas, direta-mente proporcional s demandas por mercadorias e, principal-mente, ideias ocidentais que chegavam pelo porto.apartirdoportoqueaelitelocalpodevoltar-separaa Europa, e principalmente a Frana. ConformeRaimundo Giro (1954), da Frana que chegam os produtos cobiados por esse segmento: para a indumentria, para a sade e para o crebro. A fascinao era tamanha que a elite encaminha seus lhos quele pasparaestudar,reforandoinunciadaculturafrancesana literatura e linguagem.O papel da zona porturia, como janela voltada para a Eu-ropa, ao qual se acrescentava o de zona exportadora de produtos, provoca grande movimento de mercadoria e de pessoas na praia Formosa. Tais uxos tornam-se viveis graas presena de di-versos estabelecimentos beira-mar, notadamente a Alfndega e os Entrepostos Comerciais. Este subespao foi planejado como espao da troca, reduzindo e justicando os contatos efmeros que as classes abastadas mantinham com as zonas de praia: des-locando-separaessesespaoscomoobjetivodepartirparaa Europa ou para outros pontos do territrio brasileiro, e em sen-Eustgio Wanderley Correia Dantas32 tido inverso. Fora destes momentos, o porto era desaconselhado s pessoas de bem, principalmente nas horas de transporte de mercadorias,quandosenotavauxointensodetrabalhadores vestindo simples tangas (PAIVA, 1971). Asrelaesderivadasdasprticasteraputicas,derecre-aoedelazer,resultamdiretamentedecomunicaotornada possvel por meio do porto. Por encontrar-se por trs da simples importaodemercadorias,aincorporaodeummodelode sociedade, os laos estabelecidos com a Europa ndam na assi-milaorelativadaculturaocidentalpelasclassesabastadasde Fortaleza.Entre as prticas vizinhas das prticas teraputicas ociden-tais, podemos incluir os banhos de mar e os usos associados ao tratamento da tuberculose. Os banhos de mar provocam, em Fortaleza, uma especiali-zao de alguns stios, na recepo daqueles que desejam se tra-tar tendo em vista as qualidades teraputicas da gua do mar. Este tipo de valorizao das zonas de praia ocorre, prin-cipalmente,naatualpraiadoMeireles.Emoposioaoses-tabelecimentoseuropeus,aschcarasexistentesnestarea, noserevestemderecomendaonormalizadapelodiscurso mdico. Tratava-se de modelo no estandardizado, em que os hspedestomavambanhodemarparasecurar:noexistia acompanhamento mdico, o que possibilitava grande liberda-de aos banhistas, que, porventura, poderiam se fazer acompa-nharporumadamadecompanhia.Asnicosaescapardesta prtica eram as crianas, que nadavam e pescavam nesses espa-os (FERNANDES, 1977). Independentementedesuaimportncianapoca,men-cionadaprticanoadquireasmesmasdimensesdosbanhos de mar na Europa, provavelmente por causa da fraca nfase que lhe dada pelos discursos mdicos. No Cear, perde em impor-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS33 tncia,secomparadacomosdiscursosversandosobreasqua-lidadescurativasdoclima,especicamentenotratamentodas doenas respiratrias.Os cientistas locais vo se interessar pela qualidade do cli-ma, construindo um quadro conceitual referenciador das condi-es de salubridade do Cear e de sua importncia no tratamen-todatuberculose.Fundando-senasmesmasreexestericas (as teorias de Lavoisier, considerando essencial o respirar bem), que conduziram valorizao das praias no tratamento da tuber-culose na Europa, esse quadro conceitual foi aplicado a um meio maisvasto.ComparandocomaEuropa,aspraiasdeFortaleza nodispemdamesmahegemonianostratamentosteraputi-cos, competindo com municpios sertanejos e serranos.Conforme omaz Pompeu de Souza Brasil (1896), a in-solao e os ventos so os elementos essenciais na construo da salubridade do clima, impedindo a proliferao de epidemias no estado, principalmente as que afetam as vias respiratrias. Em razo da salubridade, o Cear torna-se nacionalmente conhecido, atraindo uxo expressivo de doentes que buscam se curarnoapenasnasreasdepraia.Tuberculososseestabele-cem em cidades como Quixad, Quixeramobim e Ic. Doentes com beribri xam-se nas regies montanhosas, principalmente emBaturit(STUDART,1909).Esteuxodirigidoparaoin-teriorfazcomqueAntnioCunhaBarbosa,em1889,caracte-rizeesteestadocomoconvenienteaosindivduosacometidos de doenas pulmonares. Inuenciada pela moda, Fortaleza no escapa regra. Tanto que Elizabeth Agassiz (1938) a descreve, entre 1865 e 1866, como uma cidade salubre.[] o Cear no tem este ar triste, sombrio, que apresentam muitascidadesbrasileiras;sente-seallimovimento,vidae prosperidade. Em frente corre a larga praia de areias brancas, Eustgio Wanderley Correia Dantas34 e o murmrio do mar batendo nos arrecifes chega a ouvir-se at no centro da cidade. Parece que, assim colocado entre as montanhas e o mar, o Cear deve ser uma cidade salubre, e essa a reputao de que goza.ParaBarodeStudart(1909),Fortalezadesfrutades-tareputaoporsebeneciardetemperaturamdiaanualde 26,7C(atemperaturamximade30,4Ceatemperaturam-nima de 23,1C), de mdia de presso baromtrica de 762,4, de ndicepluviomtricode998mmedendicedeumidadede 72,6.Trata-se,portanto,deregioconvenienteaostuberculo-sos. A este dado, acrescenta-se o efeito das brisas constantes que distinguem Fortaleza deoutras cidades litorneas(Belm, Na-tal e Recife),notratamentodatuberculose. A anlise de documentos relacionados s causas das mor-tes em Fortaleza, no nal do sculo XIX e incio do sculo XX, permite precisar papel peculiar da cidade no tratamento de do-enas respiratrias (BSIL, 1896; STUDART, 1909). No que se refere recreao e lazer, um tipo encontrado emFortaleza,eadotadopelaelite,foramasserenatasorgani-zadas nas dunas prximas, nas noites de lua cheia. Constitui-se em prtica de ordem prxima quela desenvolvida pelos euro-peusnoscaladesacompanhandoazonadepraia.Tirava-se proveitodapaisagemcaractersticadaspraias,mascomuso diferenciado. A paisagem, em questo, possua uma particula-ridadedecorrentedaimpossibilidadedefrequentaraspraias duranteodia,poisatemperaturaelevadaimpediaexposio aos raios solares e qualquer atividade derecreao oude lazer (FERNANDES, 1977). As serenatas ocorriam noite, notadamente nas noites de lua cheia, logo que a iluminao pblica era apagada. Os partici-pantes se dirigiam s praias para se estabelecer nas dunas brancas iluminadas pela Lua, aproveitando-se das baixas temperaturas. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS35 Embora as prticas evocadas at o momento possuam pa-pelimportanteerepresentativodamaritimidadecaracterstica de Fortaleza, convm ressaltar que elas no promovem, na po-ca,processodeurbanizaodaszonasdepraia.Otratamento da tuberculose no se vinculava diretamente s zonas de praia e anaturezaefmeraedesregulamentadadasnovasprticasma-rtimas no justicava ocupao diferenciada daquela proposta pela lgica militar e estratgica de ocupao das zonas de praia, caracterstica dos terrenos de marinha. ReveladordestequadrooplanodeAdolfoHerbster (1875).Medianteaconstruodeconjuntodebulevares,ele orienta o crescimento de Fortaleza para a zona oeste (atual avenida Imperador),paraazonaleste(atualavenidaDomManuel)e para a zona sul (atual avenida Duque de Caxias). A zona nor-te, representada pelas zonas de praia, no foi considerada. Seu plano limita-se a orientar a ocupao da zona de porto, princi-pal lugar no estabelecimento de relaes da cidade com o mar, fatoqueapresentaaocupaodabeira-mar,reduzidazona porturia e vizinhana, especicamente na Prainha, onde se encontravamalgumascasas,umseminrioeaIgrejadeNos-sa Senhora da Conceio da Prainha (PEREI, 1877). Esta orientao,canalizadapelasestradasantigasdecomunicao com o serto, concentrava todos os contatos da cidade com o mar na zona porturia.Pode-se concluir que o fraco interesse pelas zonas de praia o segundo elemento limitante do fenmeno de urbanizao da beira-mar, acrescentando-se diretriz indicadora destes espaos como terrenos de marinha. Aindicaodepanoramaconstituidordeumacidade poucoligadaszonasdepraiaedestinada,principalmente,s classes mais abastadas, refora o carter do litoral como lugar de habitao das classes pobres da sociedade fortalezense.Eustgio Wanderley Correia Dantas36 As diculdades impostas, ao morar na cidade cons truda paraasclassesabastadas,induzemaocupaodaszonasde praiaporimportantecontingentedeemigrantespobresdo serto.Elesestabelecem-senosterrenosdemarinha,reaan-teriormente ocupada pelas comunidades de pescadores, deno-tando crescimento dos efetivos demogrcos, marcado por es-tado de saturao cujo testemunho, aps nal do sculo XIX, so as favelas. O primeiro tipo de ocupao, ligado pesca, encontra-se na totalidade do territrio cearense, mas o segundo, as favelas, representafenmenocaractersticodeFortaleza,cidadecujo forte uxo migratrio impediu integrao de todos os retiran-tesscomunidadesdepescadores.Nestestermos,podem-se caracterizar as zonas de praia em Fortaleza como territrio da pesca e lugar de habitao dos pobres, fato traduzido na presen-aenocrescimentodasantigascomunidadesdepescadores, notadamenteasdeMucuripe,epelaocupaodabeira-mar pelospobres,especialmenteaszonasdeconstruoprecria dasdunasdosOuteirosedoArraialMouraBrasil,nomdo sculo XIX.Apresenaeocrescimentodascomunidadesdepesca-dores nas zonas de praia so evidenciados na comparao entre duasdescriesrelacionadasaoMucuripe:aprimeira,deFeli-ppe Francisco Pereira, declarando, em 1877, que esta comunida-de no possua nada de especial; a segunda, de Antnio Bezerra, cronistaque,em1902,indicaquadrosocioespacialcomposto por pequena igreja e escola com professora.Aocupaodaszonasdepraiacomolugardehabita-odospobresevocada,em1889,porManoeldeOlivei-ra Paiva, ao descrever detalhadamente o estilo das casas dos Outeiros:MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS37 [...]deconstruofcileadequadaaoclima.Asparedes,de pauapiqueentaipadasderamoepalha.Nacobertalevee jungida com cips, os caibros formavam xadrez com o enva-ramento - onde mordiam as cabeas das palhas de carnaba, semelhantealequesfechados,eapertadinhosanodeixar sairumpingodechuva.Nointeriordesseprismaoco,em constanteequilbriocomaatmosfera,arranchavammarido, mulher, lhos e mais que houvesse. A abertura da frente cer-rava-se por uma porta de talos de palmas de carnaba, e a de trsvedava-secomumacortinadelona,pedaosdevelade barcaa.Doiscompartimentoshavia;umqueserviadesala de visita, de sala de jantar, cozinha e tambm de dormitrio, e outro, com as prerrogativas de camarinha. Recendia a fumaa e maresia. (PAIVA, 1971).2.3Cidade Marcada por Imaginrio Interiorano A relao de Fortaleza com o serto deixa marcas na pai-sagem,tantonacidadepropriamenteditacomoemsuavizi-nhana, que contm sinais vivos do serto. Esses sinais indicam a inuncia do serto sobre o quadro humano e arquitetural do municpio de Fortaleza, at mesmo sobre as zonas vizinhas. Em outros termos, o serto lhe serve de matriz.As marcas da simbiose entre serto e litoral so evidentes em Fortaleza. Tal simbiose forjou uma cidade litornea possui-dora de uma alma sertaneja, cidade, que por ser assinalada por umimaginriofortementeinteriorano,sevoltaparaointerior, esquecendo parcialmente o litoral.O imaginrio interiorano, que se legitima por meio da pai-sagem e suscita seu reforo, a base de todos os trabalhos sobre Fortaleza. Para se ter ideia, a partir desta paisagem encontrada nas vizinhanas da capital que o serto se apresenta inicialmente ao autor de Terra de Sol - costumes do Nordeste. Gustavo Barroso (1912) o descobre, graas s suas primeiras incurses pela zona Eustgio Wanderley Correia Dantas38 rural, momento em que nota que todos os imveis, at aqueles beira-mar,faziamrefernciapresenadohomemdoserto e de seus utenslios: a casa do Stio Curi, nas proximidades de Messejana; a casa do stio de Sabiaguaba, localizado beira-mar; a casa do stio de Jurucutuoca, ao lado do lago de Precabura, no caminho de Messejana a Cascavel.apartirdacontribuiodadaporaquelesqueprovm dosertoqueFortalezasetornainteriorana,cidadecomalma sertaneja. So estes atores que exercem papel relevante na cons-truodeFortalezaedequadrosimblicoqueacaracteriza (SOUSA, 1959).Portanto, em comparao com o serto, o fato de a cidade instalar-se no litoral no conta muito na constituio do imagin-rio social de seus habitantes. Grosso modo, o papel secundrio, frequentemente atribudo s zonas de praia, conduz ao esqueci-mento dessas zonas ou relatividade de sua expressividade.Da a obra de Manoel de Oliveira Paiva, A alhada, no ter sidovalorizadaemsuapoca.Acredita-sequeporapresentar, nonaldosculoXIX,umaFortalezamartima,preocupada em ver e sentir o mar (CAMPOS, 1996), distancia-se de outros trabalhos que procuravam homogeneizar o esprito de seus ha-bitantes a expensas do serto.Manoel de Oliveira Paiva (1971) descreve uma cidade di-cilmente percebida pelos compatriotas. Ele nos apresenta uma Fortaleza martima, em belas descries da paisagem litornea, compostadedunasbrancasedepraiasdeareiana,deverdes orestas de coqueiros e de cajueiros, bem como de mar rico em peixes.Estequadronaturaltornavapossveloestabelecimento de importante comunidade de pescadores. Tratava-se igualmen-te de territrio da pesca onde alguns viviam da colheita de fru-tos e da agricultura de subsistncia. Os autctones, distanciados da cidade, viviam em contato com aqueles que possuam stios MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS39 e/ou aqueles que se aventuravam a estas paragens para se curar (prticas teraputicas).Ao referir-se banhista originria de Fortaleza,Maria das Dores, Manoel de Oliveira Paiva conseguereconstituir a atmos-fera caracterstica das zonas de praia, no m do sculo XIX. Ele o fazemdoismomentos: a) inicialmente, pela explicitao de dois tipos de prticasmartimas diferenciadas, uma resultante dosurgimentodasociedadedelazer,cujosprimeirosmovi-mentos so perceptveis na poca, e outra resultante de movi-mento caracterstico das sociedades tradicionais, que induz os homens a se aproximarem do mar busca de alimentos ofere-cidospelomeio;b)posteriormente,nadescriopeculiarde cena em que as banhistas zombam de jovem vendedor de coco, pintando atmosfera no completamente harmoniosa, mas que torna possvel a coabitao, fruto de fraca taxa deurbanizao (como j indicado, concentrada nas zonas deporto e sua vizi-nhana)quepermitiaodesenvolvimentodapescanaspraias de Fortaleza.A presena desta zona etnogrca , por si s, forte argu-mento na crtica noode imaginrio social vinculada unica-menteaoserto.Aintercomplementaridadeentreasimagens vinculadas ao serto em aquelas advindas do litoral se impe na construo do imaginrio social cearense.Essasimagensrepresentamrelaesespeccasentreos homens e destes com o meio, denotando quadro sustentador do imaginrio social. A imagem do serto, apresentada nos termos indicados,attulodeexemplo,naobradeDjacirdeMenezes, OoutroNordeste.Aimagemdolitoral,expressandotendncia sobretudopotica,portratar-sedeimagemfundadanoolhar romntico dos viajantes, dos poetas e dos escritores diante dos habitantesdolitoralqueseaventuravamemsuasjangadasnas guas bravias do mar.Eustgio Wanderley Correia Dantas40 Gustavo Barroso menciona a necessidade de intercomple-mentaridade.Apsoseuestudosobreoscostumessertanejos no Cear (Terra de Sol), que o tornou clebre, ele retorna cena literria, com a publicao de livro consagrado maritimidade. Conforme o prprio autor, a impresso do serto no pode su-plantar a do mar. []Semeuprimeirolivro,TerradeSol,representaaslem-branasdeadolescnciabanhadapeloSoldoserto,nose-gundo, Praias e Vrzeas, o mar intervm e reclama sua parte, precisamente a metade. (BARROSO, 1939).Para Eduardo Campos (1988), a publicao de obra con-sagrada maritimidaderepresentaria tentativa de reconciliao domarinheiro Gustavo Barroso com o mar. Esta tomada de conscincia d vazo srie de descries consagradas saga dos pescadores (personagens hericos aden-trando pelo mar com suas jangadas frgeis para garantir sua so-brevivncia e de sua famlia) e paisagem tipicamente litornea (na qual a presena majestosa das jangadas, quebrando as ondas do mar cor de esmeralda ou repousando sobre as areias brancas, preponderante).Elasindicamquadrocomplexocentradono pescador, um homem livre que no marcado pelas mazelas do serto: o latifndio, a seca, a fome... O panorama caracterstico do incio do sculo XX apre-sentadoporGustavoBarrosopormeiodopersonagemMatias Jurema, velho pescador do Meireles. Contando a saga dos pes-cadores, ele contribui, assim, na formao do olhar dos contem-porneos, mostrando-lhes um mundo, ao mesmo tempo, prxi-mo e muitssimo diferente daquele do serto. Esta educao do olhar elemento basilar das novas atitudes diante do elemento lquido. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS41 Aaproximaoempreendida,naliteratura,porGustavo Barroso(seguindoostraosdeManoelOliveiraPaiva)seefe-tua,navidacotidiana,apequenospassos,provavelmenteem razodaorigeminterioranadoscontemporneos,serespouco habituados ao litoral. Portanto, tempo torna-se necessrio para que os habitantes de Fortaleza e a cidade propriamente dita vol-tem-se para o mar. O movimento de tomada de conscincia, no domnio da literatura, permitiu incorporao lenta e gradual das praias, com a adoo das novas prticas martimas interiorizadas pelas clas-sesabastadas,notadamenteosbanhosdemar,ascaminhadas nas praias e o veraneio.As novas prticas martimas, representativas da incorpora-odoshbitos europeus pelas referidas classes, suscitam tmi-domovimentodeurbanizaodaszonasdepraia.Movimento iniciado nos anos 1920-1930 na praia de Iracema, que se amplia, poucoapouco,atosanos1970,primeirocomaurbanizao da praia do Meireles, segundo com a incorporao gradual, pelo veraneio, das praias dos municpios vizinhos de Fortaleza.CAPTULO 3O TRIUNFO DO MAR: Transformaes Ocorridas no Sculo XXNo sculo XX, a maritimidade no Cear adquire caracte-rsticas diferenciadas das dos outros sculos. Se, entre os sculos XVII e XIX, a valorizao das zonas de praia advm, sobretudo, de modicaes de ordem poltica e econmica que as transfor-mamemlugarprivilegiadodastrocaselugardehabitaodas classes pobres (inicialmente com o estabelecimento das comu-nidades de pescadores, conforme poltica de defesa do territrio implementada pela Coroa Portuguesa e, posteriormente, com a xao de pobres nas zonas de praia de Fortaleza), no sculo XX, as transformaes de ordem cultural adquirem relevncia maior, provocandoaberturadaeliteemfacedosespaoslitorneos: abertura iniciada no perodo precedente e resultante do proces-so de ocidentalizao das elites locais, que altera gradualmente, aps os anos 1920-1930, os lugares tradicionalmente ocupados pelos portos, pelas comunidades de pescadores e pelos pobres, em lugar de lazer e de habitao das classes abastadas.Eustgio Wanderley Correia Dantas44 EssatransformaosematerializaemFortaleza,cidade aexercerpapelpreponderantenodesenvolvimentodasnovas prticas martimas no Cear. na capitalque essas prticas sur-gem, com os banhos de mar de carter teraputico, substitudos, comotempo,porprticasvinculadassociedadedelazerem emergncia (sobretudoos banhos de mar e o veraneio), prticas que, em oposio s primeiras, condicionam urbanizao sens-vel das zonas de praiaeseexpandemna totalidade dos espaos litorneos cearenses, com o veraneio. Figura 5 - Foto de Fortaleza, incio sculo XXA instaurao de novas prticas martimas, em Fortaleza, asituanoepicentrodofenmenodevalorizaodosespaos litorneos, adquirindo lugar central na anlise ora proposta.Portanto,pode-sefalardeumacidadelitorneaepos-suidoradealmasertaneja,queorientadoismovimentosca-ractersticos de valorizao das zonas de praia: o primeiro, em escalalocal,aps1920-1930,incorporaaszonasdepraiade MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS45 Fortaleza como espao de lazer e de veraneio; o segundo, em escala mais ampla, aps 1970, representa a ampliao, a partir deFortaleza,dasnovasprticasmartimas,especicamente com o veraneio, o qual afeta a totalidade dos espaos litorne-os do Cear.Indica-semovimentoquedirecionaacidadeparaomar, semenfraquecer-lheocarterinteriorano.Estacaracterizao marcaoinciodalitoralizaodoCear,processoligadoaofe-nmeno de constituio da cidade moderna.3.1AIncorporaodasZonasdePraia deFortalezacomoEspaodeLazere Veraneio Acriaodacidademodernajustica-senaconstituio deumaperiferiaquesecontrapeaoCentro.OCentroespe-cializa-se,cadavezmais,emlugardopoder,docomrcioede concentrao de servios diversos e tambm como lugar de en-controdaspopulaesabastadas(DANTAS,1995).Aperife-ria se transforma concomitantemente em lugar de habitao, de lazer e de veraneio das classes abastadas e lcus de habitao e trabalho dos pobres. Osdoismovimentospossuemcaractersticasespeccas. O das classes abastadas representa a fuga do Centro e o dos po-bresmarcatentativadeexpuls-losparazonasmenosvaloriza-das em Fortaleza. Eustgio Wanderley Correia Dantas46 3.1.1Aocupaodaperiferiapelasclasses abastadasA fuga das classes abastadas para a periferia atribuda por diversoscientistassociaisaodesejodeocuparreaslivresda presenadepobres.Essafugapercebidacomoresultadoda acumulao crescente destes no Centro.Entretanto,talanlisenobemfundada.Mesmoquea presena de pobres provoquerejeiodas classesabastadas, ela no pode ser tida como determinante de sua fuga para a perife-ria. Estes segmentos da sociedade seretiravam do Centro para se estabelecer em reas j ocupadas pelos pobres, notadamente ao norte e a leste.Necessrio torna-se considerar aspectos reforadores des-tes uxos. O primeiro relaciona-se ao fenmeno de especializa-odoCentrodacidade.Resultadodaespecializaodomer-cado fundirio urbano, ele induz a transferncia das residncias dasclassesabastadasparaaperiferia,domesmomodoqueo impedimentodoacessodospobres.Portanto,pode-sefalarde umamodicaodeusopelovalor.Valorque,emseumovi-mento, redene constantemente a dinmica de acesso ao solo urbano.CARLOS,1992).Osegundoaspectoconcernes diretrizesdominantesdosplanosurbansticosqueprovocam valorizaodedeterminadasreas,emdetrimentodeoutras. Explicam-se,nestestermos,asrazesdaintegraodazona oesteelestesomenteapsproposiesdoPlanodeAdolfo Herbsterem1875(SILVA,1992).Oterceiroaspecto,no menosimportante,edecartertecnolgico,marcadopela chegadadoautomvel.Ligadoaosegundoaspecto,relativo morfologia urbana, condio sine qua non do estabelecimen-todasclassesabastadaslongedoCentro.Graasatalmeio MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS47 detransporte,estesegmentodasociedadefortalezensepde distanciar-se, cada vez mais,da rea inicial de ocupao da ci-dade, sem deixar de satisfazer nela suas necessidades materiais e imateriaisJUC, 1993).A partir da evidenciao desses aspectos, v-se consolida-doomovimentodeurbanizaodaperiferia,queultrapassaa simples necessidade de espaos de habitao, ao responder por demanda de lugares de lazer e de veraneio.Dessamaneira,observa-se,deumlado,odeslocamento para o sul e oeste de Fortaleza, com o estabelecimento de bairro com vocao habitacional, notadamente os bairros de Benca edeJacarecangae,deoutrolado,odeslocamentoparalestee nortedacidade,respondendoaumademandaporlugaresde veraneio e de lazer, com a construo das primeiras chcaras, no atualbairrodoMeireles,ederesidnciassecundriasnapraia de Iracema.Ouxodasclassesabastadas,paraapartelesteenorte dacidade,representaaconsolidaodaprimeiratentativade ocupao de espaos encontrados alm das zonas consideradas como ideais para habitao: as areias, sujeitas ao direta dos ventos alsios e ocupadas por barracos. Estaszonasdacidaderenderam-seaoscaprichosdas classesabastadas,desejosasdeseestabeleceremchcarase ocupandoespaoshabitadospelospobres.ApraiadeIracema beneciou-sedamesmalgica,mas,nesteespaoaonortede Fortaleza,referidasclassesprocuravamdeleitar-secomode-senvolvimentodenovasprticasmartimas,notadamenteos banhos de mar e as caminhadas na praia, todas relacionadas ao veraneio e, principalmente, s demandas por lugares de lazer, em concorrncia direta com o Centro.Prticas e demandas, resultantes de modicao de men-talidadedasclassesabastadas,diantedosespaoslitorneos, Eustgio Wanderley Correia Dantas48 fazemcomqueapraiadeIracemadeixedesersimplesmente lugar de habitao de pescadores e recomendado pelos mdi-cos ao tratamento teraputico. A construo de linha de bon-de,naruaTabajaras,aconsolidacomoespaodelazeronde seconcentramasprimeirasresidnciassecundriasnapraia (CASTRO, 1977). A antiga praia do Peixe ocupada por residncias e clubes das classes abastadas. O veraneio instaura-se com a construo de casares como o do Coronel Porto (1926 atual Estoril), os clubes estruturam-se a partir da construo da primeira sede do NuticoAtlticoCearense(1929),napraiaFormosa,aolado da ponte metlica.Nestapoca,apraiatorna-seumdosmaisimportantes pontos de encontro da cidade, rivalizando com a praa do Fer-reira (ROCHA JNIOR, 1984).Asprticasexplicitadasanteriormenteocasionamaspri-meiras presses das classes abastadas sobre os espaos litorne-os, at ento ocupados pelos pobres. A partir de ento, estes l-timos, que haviam sido empurrados do Centro para essas zonas, cam ameaados.3.1.2A ocupao da periferia pelos pobresOmovimentodeocupaodaszonasdepraiapelospo-brescorresponde,essencialmente,demandaporhabitao, reprimida, dos retirantesque no conseguem seestabelecer na cidade, vendo-se forados por poltica higienista de ordenamen-to e controle social a se xar nos terrenos de marinha, lugar pri-vilegiado de concentrao deste segmento da populao.Ouxodepobres,beira-mar,suscitaaconstruode favelas em espao j ocupado por comunidades de pescadores, mostrando coabitao entre aqueles que residiam e os que tra-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS49 balhavam nessas zonas. nestestermos que se consolidam re-as como a do Arraial Moura Brasil, no sculo XIX, e a do Piram-bu, no sculo XX.Comachegadadasclassesabastadas,oquadromo-dicado.Seacoabitaotorna-sepossvelentrepescadorese pobres,elanovivelentreestesltimoseasclassesretro-mencionadas. Ondeestasclassesseinstalam,ocorremexpulses.Ini-cialmentenapraiadeIracema,comaespeculaofundiria,e, posteriormente, na praia do Meireles, evidenciando uma expul-so crescente dos antigos habitantes. S as jangadas continuam a beneciar-se das zonas de porto.Independentementededemandarelacionadaalugares detrabalhoedehabitao,interessantedenotar,entreos pobres, a necessidade de seapropriar destes espaos como as classes abastadas o faziam, tendo em vista a demanda por espa-osderecreaoelazerquegeraconitospeculiaresnapraia de Iracema. Figura 6 Moradia de pescadores na rea do PirambuFonte: lbuns de vistas do Estado do Cear. Fortaleza, 1908.Eustgio Wanderley Correia Dantas50 Osuxoseramquestionadospelasditaspessoasdebem, que tentavam impedir que determinados grupos tivessem aces-so aos banhos de mar, como supostas prostitutas habitantes do ArraialMouraBrasil.Noporacasoquequeixascontraeste tipo de usurio so feitas no comissariado, forando a xao de documento limitativo do acesso s zonas de praia pelo Servio de Inspeo da Polcia Marinha.De ordem do Exmo. Sr. Chefe de Polcia e de acordo com os artigos2e5,pargrafo1doRegulamentodaInspetoriada Polcia Martima, que baixou com o decreto n 819-A, de 20 de dezembro de 1924, e tendo em considerao as reiteradas reclamaes recebidas de diversas famlias, torno pblico que cou determinado a zona compreendida entre a ponte do ma-regrafo e a ponte de o quebra mar para o banho das mulheres devidaalegrenoportodestacapital,semexibirodeco-rocomquesedevamportar,restandoazonaoposta,da pontemetlicaemdireoaoMucuripe,paraasfamlias. (CAMPOS, 1993).Para estas pessoas de bem, a presena de pobres, tanto nas praiascomonasfestaspblicas,constituafaltadezeloeirres-ponsabilidade do governo (JUC, 1996).A valorizao da praia de Iracema, nos termos indicados, foi efmera. Os passeios beira-mar, os banhos de mar e as festas organizadasnosclubesforamdecurtadurao,poisaobrade construo do porto do Mucuripe, no nal dos anos 1940, acar-reta processo erosivo que atinge fortemente a praia e determina sada das classes abastadas.MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS51 3.1.3A construo da cidade policntrica e a zona de praia: entre 1940 e 1970 Oquadrodeocupaodosespaoslitorneos,descrito anteriormente,seampliacomocrescimentodeFortaleza.As consequncias,deordemeconmicaedemogrca,fazem-se sentir no espao. O crescimento econmico, decorrentedo es-tabelecimentodeorganismospblicos(mdosanos1950)e de indstrias pela poltica de industrializao da SUDENE (m dos anos 1960), refora o papel da capital como grande centro urbano e provoca sensvelaumento desuapopulao, em rela-o do Cear e da zona urbanizada. Trata-se da evidenciao de caractersticas materiais para aconstruodesuapolicentralidade.Estemovimento,quese arma em Fortaleza, nos anos 1970, induz a construo de infra-estruturadecomrcioedeservios,nosbairrosnobres,como Aldeota, com seu comrcio de luxo (SOUZA, 1978).A fuga das classes abastadas do Centro para a Aldeota, do mesmomodoqueadiversicaocomercialproduzidaneste subespao,suscitaaconstruodequadrosocioespacialcarac-terstico de Fortaleza. A bibliograa desta temtica fala de uma cidade que se di-videemduas:partelesteeparteoeste.Aprimeiracaracteriza--se como zona de habitao nobre, na qual se concentram, cada vez mais, as atividades comerciais e administrativas. A segunda se refora como lugar de habitao das classes menos abastadas (acompanhandoaestradadeferroeseconcentrandoaolado dasindstrias)epermanececompletamentedependentedo Centro. Emboraconsistamemmovimentoshegemnicosdees-truturao da cidade, no podemos esquecer que aos dois movi-mentos acrescenta-se outro de ocupao direcionada para o sul Eustgio Wanderley Correia Dantas52 (com a construo dos conjuntoshabitacionais) e continuao de movimento de ocupao da zona de praia (norte).Esta caracterizao traz consequncias para o Centro, que temacentralidaderedenidaemvirtudedacriaodaperife-ria e de novos centros. Este subespao transforma-se. De Centro Tradicional,eleconsolida-se,conformeJosBorzacchielloda Silva (1992), em Centro da Periferia.Refora-se, por isso, o papel do Centro como lugar de con-sumo e em oposio ao papel de lugar de encontro e de lazer das classesabastadas.Comaespecializaofuncional,asruaseas praas do bairro deixam de ser lugares de encontro por natureza e se transformam, progressivamente, em lcus de circulao, re-duzindo consequentemente a quantidade de lugares de lazer.Esta reduo impe-se como um dos elementos no me-nosrelevantesnaocupaodosespaoslitorneosdoestado. Entreasdemandasexpressasatopresente,aquelaporlugar de lazer apresenta-se como importante na construo da cidade policntrica.Assim,aocupaodazonalesteevidenciaaspectosdife-renciados: o deslocamento para a Aldeota, que substitui o Cen-tro como lugar do poder, do comrcio e dos servios, e o deslo-camentoparaapraiadoMeireles,comodemandaporespaos de habitao e lazer, onde os banhos de mar e os calades ocu-pam lugar considervel e no mesmo nvel de procura vericado na ocupao efmera da praia de Iracema dos anos de 1930.Valorizao desta monta transforma as zonas de praia em espaosconituais,marcadosporduaslgicas:umarepresen-tada pelos usos tradicionais (o porto, a pesca e a habitao dos pobres) e outra pelas novas prticas martimas (os tratamentos teraputicos, os banhos de mar, o veraneio...). A tendncia de incorporao das zonas de praia pela cidade torna-se assim reforada com a chegada das classes abastadas. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS53 3.1.4Reforo do movimento de ocupaodas zonas de praia nos anos 1940-1970 Entre os anos 1940-1970, conrma-se o processo de cons-truodecidadelitornea,comvalorizaodaszonasdepraia como lugar de habitao, de lazer e de veraneio. Este movimento atinge a praia de Iracema e seu entorno (aps a fuga da elite), a praiadoMeireles,assimcomoapraiadoPirambueoArraial Moura Brasil, com a construo da avenida Leste-Oeste.NapraiadeIracema,horeforodeperlbomio,com o estabelecimento de bares e de restaurantes frequentados pela classemdia. Observa-se o desenvolvimento de pequeno cen-tro de alimentao, de hotelaria e de lazer no vinculados va-lorizao da zona de praia erodida. Em virtude da concentrao desses servios, a praia torna-se ponto de encontro privilegiado da elite intelectual bomia.Nolitoraloeste,usoseatoresdiversosapresentam-se:o Arraial Moura Brasil, prximo do Centro da cidade, o Poo das Dragas, antiga zona porturia, e a praia do Pirambu, no extremo oeste, cuja dinmica de ocupao testemunha lgicas diferencia-das, resultantes, respectivamente, de polticas de controle social, de polticas de transferncia de atividades e do uxo migratrio do serto para o litoral. A partir dos anos 1930, o Arraial Moura Brasil se expande com a chegada das prostitutas que moravam no Centro. A trans-ferncia resulta de poltica de controle social visando limpar as ruas centrais, notadamente Baro do Rio Branco, Major Facun-do, Sena Madureira e Pessoa Anta, invadidas pelas Penses Ale-gres, os Cabars (JUC, 1996).O Poo das Dragas possua papel preponderante na cida-de. Era por meio do porto que Fortaleza estabelecia relaes co-Eustgio Wanderley Correia Dantas54 merciais com a Europa e portos brasileiros, exportando produ-tos advindos do serto e importando bens durveis e produtos de luxo; era por ele tambm que se tornava possvel a ida da elite Europaparaseimpregnardecultura.Emsuma,constitua-se em ponto central no estabelecimento de ligaes econmicas e culturais, a provocar a implantao de toda sorte de estabeleci-mentos: a alfndega, os escritrios de exportao, os depsitos demercadorias,assimcomoaconstruodebairropopular (Poo das Dragas), que fornecia mo-de-obra necessria ao de-senvolvimento das atividades porturias e os servios das pros-titutas aos marinheiros. AmudanadoportoparaoMucuripetransforma,nos anos 1950, o Poo das Dragas. A grande maioria dos estabele-cimentos transferida para a zona industrial da avenida Fran-cisco S ou para o novo porto. A favela permanece na zona de praia ao lado de rea privatizada com a construo de pequena indstria naval. A praia do Pirambu, por causa da sua localizao, afetada pelasguaspoludasprovenientesdosistemadeesgotamento sanitrio de Fortaleza, fato que torna difcil sua ocupao pelas classes abastadas, cujos membros, instalados no bairro de Jaca-recanga (zona oeste), jamais descem para a praia, no viabilizan-do sua apropriao para atendimento de seu lazer.MatriapublicadanojornalOPovo,nosanos1950,evi-denciaacaractersticadaspraiasencontradasaoestedapraia Formosa, indicando-as como poludas.AspraiasdeFortalezapodemserclassicadasdaseguinte maneira:praiaspoludas;praiasdecavalos;praiasdejeeps epraiasdeembriagados.Aspraiaspoludas[...]soaquelas encontradas a oeste da ponte metlica, do lado do Pirambu onde o emissrio do servio de esgotos lana os dejetos da capital [...] (JORNAL O POVO, 1951).MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS55 Em virtude desta classicao, a ocupao da zona de praia decorre de demanda alimentada pelos uxos migratrios serto-litoral, nos anos 1930. Os retirantes se instalam nestas paragens reforandoatendnciatradicionaldeocupaodaszonasde praia pelos pobres. A migrao do serto para o litoral no mostra, portanto, osmesmosresultadosdosmovimentosanteriores,hajavistao grandecontingentedeimigrantesimpedirsuaincorporao atividade da pesca, ocasionando a constituio da favela do Pi-rambu e a no insero nas comunidades de pescadores.Por serem as zonas de praia a oeste da cidade, de um lado, delimitadas pelo porto antigo e pelas favelas localizadas na praia Formosae,deoutrolado,marcadaspelapoluioeocupao popular,quecaracterizaapraiadoPirambu,asclassesmais abastadas voltam-se para a zona leste de Fortaleza, denotando e reforando a urbanizao da praia do Meireles, a partir da imple-mentao do Plano Diretor de Fortaleza de 1962.Esteplanoorientaocrescimentodacidadeparaolitoral, com a construo da avenida Beira-Mar (1963), que impe a inte-grao das zonas de praia cidade, ora como equipamento pbli-co de lazer, ora como lugar de habitao das classes abastadas. Indica-se expressivo processo de urbanizao paralela li-nha da costa, que se incorpora a outros movimentos tradicionais de expanso de Fortaleza, mas cuja fundamentao a modi-cao de mentalidade da sociedade local e, neste caso particular, das classes abastadas, em relao aolitoral. A construo da ave-nida Beira-Mar explicita tendncia de valorizao do litoral por estesegmentodasociedade,quehaviafeitodesteespaolugar privilegiado, no estabelecimento de clubes e de residncias. Deumapraiaocupadaporveranistas(cronistasmencio-namaexistnciadepequenaschcarasnestapraia.Conforme CordeiroNeto(1964)elaserampraticamenteinterditadas Eustgio Wanderley Correia Dantas56 populao,sendoquaseprivativasdosmoradores)epescadores (entreelesosexpulsosdapraiadeIracemaeosproprietrios depequenosbareserestaurantesque,segundoMello(1953), encontravam-se misturados praia, com suas jangadas e seus co-queirais), a Beira-Mar arma-se, aps os anos 1960, como lugar de encontro da sociedade e de habitao da populaoabasta-da. Em substituio praia de Iracema, estabelecem-se, naBei-ra-Mar,clubes,residnciasparaaelite,prdioscomerciais, bem como servios diversos.Entretanto,aespecializaofuncionalnochegaainvia-bilizar todos os usos antigos. Os pescadores permanecem at os anos 1990. Na ponta do Mucuripe, construram a sede da Col-niadePescadores.Nestemovimentoderesistnciaedeadap-tao nova dinmica de valorizao do litoral, cam na praia, as jangadas, as quais continuam a compor a paisagem, com suas cores, formas e sons, bem como seus uxos caractersticos.Comoconsequncia,tem-se,nosanos1970,aocupao da totalidade daspraias da zona urbana de Fortaleza. Do farol do Mucuripe praia da Barra do Cear, os atores transformam a zona em lugar privilegiado de veraneio, de lazer, de trabalho, de habitao,aproveitando-sedascaractersticasfsicasemarcan-do-o conforme seus hbitos, valores e costumes.Trata-sedequadrorelativamentebemdenido,compre-endendobairrosocupadospordiversosgrupossociaisepor inmeras atividades martimas. As praias de Iracema e do Mei-reles, ocupadas anteriormente por classes abastadas, como lugar de veraneio e de lazer, se transformam em lugar de habitao e de lazer. As praias do Mucuripe e do Pirambu, lugares apropria-dos pelos pobres (pescadores, prostitutas e retirantes), apresen-tam-se tanto como lcus de habitao quanto de trabalho. Nas praiasFormosaedoMucuripe,tem-seodesenvolvimentode atividades industriais e porturias. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS57 Observa-se um territrio de habitao e de lazer das clas-ses abastadas circundado por outros territrios complementares ouemcoexistncia:dospobres,daindstrianavaledoporto. Umconitoinstala-seentreosusosantigoseoslazerescomo novo uso. Entre estas duas lgicas de ocupao interpe-se a poltica pblica de organizao do territrio, que intervm nos espaos ocupados pelos pobres a oeste da praia de Iracema: a construo daavenidaLeste-Oeste,nosanos1970,queresultadaadoo de poltica de controle social (visando erradicar a zona de pros-tituio prxima do Centro) e de poltica de ampliao das vias decirculaoedeintegraoleste-oeste(comconstruode viapermitindogeraodeuxosentreoportodoMucuripee a zona industrial da avenida Francisco S). Tal poltica redunda na quase destruio do Arraial Moura Brasil e na diviso do Pi-rambu em duas partes, fato cujos impactos explicitam a poltica de erradicao das favelas. ApsaconstruodaavenidaLeste-Oeste,oArraial MouraBrasilconstitui-seemvagalembranasituadasmar-gens da avenida. A parte voltada para o mar foi substituda por umavialitornea,cujoslimitessoaindstrianavaleapraia do Pirambu. Os antigos habitantes foram deslocados para con-juntos populares construdos pelo Banco Nacional de Habita-o (BNH): o Palmeira, em Messejana e o Marechal Rondon, em Caucaia.No que respeita ao Pirambu, a avenida Leste-Oeste deixa de ser litornea e penetra a favela, provocando uma especializa-o ao longo da via, com instalao de comrcio diversicado e modicao da aparncia da favela com a construo de dplex. Outroaspectoimportanteadivisofeitapeloshabitantesda rea, que passam a conceber, aps a construo da avenida, o Pi-rambu como a parte do lado do mar. Essa diviso testemunho Eustgio Wanderley Correia Dantas58 de tentativa de diferenciao em face dos habitantes da zona de praia.Oladoopostobuscadistanciar-sedeimagemassociada aoslugarestradicionalmenteocupadospelaspopulaespo-bres,territriodaprostituio,dadroga.Emsuma,territrio dos excludos da sociedade. Figura 7 - Imagem da praia formosa com viso de trecho da Avenida Leste-OesteNo entanto, o olhar negativo, em relao ao mar, no invia-biliza os banhos. Durante os ns de semana, as famlias da zona oeste frequentam as praias do Pirambu para tomar banho. Vrios casais, jovens e crianas apropriam-se deste meio, a exemplo do ocorrido na praia Leste-Oeste. Se comparada com a zona leste, talconstataomereceserrelativizada,hajavistaosbanhosde mar no serem o epicentro do movimento de ocupao das zo-nas de praia. A predominncia de uso vinculado s necessidades de trabalho e de habitao sobrepe-se s demais, representan-do prtica tradicionalmente exercida. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS59 Figura8 - Arrail Moura BrasilApressoindicadaatopresentemomentorepresen-taelementocentraldetodososconitosexistentesnolitoral. Narespostademandaporzonasdelazeredehabitao,nas zonasdepraia,associadasademandasdosusostradicionais,a ao dos atores envolvidos, nestas prticas, com suas dimenses tcnicas e simblicas, limita-se a Fortaleza, engendrando atores locais e atingindo unicamente a zona urbana.Talcaracterizaorefere-seaoprincpiodoprocessode urbanizao das zonas de praia de Fortaleza, ampliando-se com a incorporao progressiva de novos atores vinculados ao vera-neio, aos uxos tursticos e demanda por zonas de lazer. 3.1.5Fortaleza se volta para o mar, ps-1970Aps a urbanizao das praias de Iracema e do Meireles, a cidade volta-se para o mar. As polticas pblicas que referendam asaesprivadascomaconstruodehotis,depousadas, de restaurantes, de barracas e de estaes aquticas, bem como os loteamentos e arranha-cus que suscitam a verticalizao da Eustgio Wanderley Correia Dantas60 zonalestedeFortaleza(principalmenteAldeotaeMeireles) constroem uma cidade litornea, capaz de responder demanda crescente por espaos de lazer e turstico. A primeira, relativa ao lazer, resulta de demanda internade uma classe privilegiada que se amplia gradativamente em face das classes menos abastadas. A segunda, relativa ao turismo, origina-se de demanda externa, que aumenta no transcorrer dos anos.Ao responder a essas demandas, a municipalidade investe na construo de calades e polos de lazer, nas zonas de praia.3.1.6Os caladesOprimeirocaladoconstrudofoiodaavenidaBeira-Mar, no m dos anos 1970. Por sua constituio, a zona de praia transforma-se em principal ponto de encontro de Fortaleza, em detrimento do Centro.A ao do estado, reforada pela Lei do Solo de 1979, en-seja a substituio gradual das ltimas residncias de pescado-resedaclassemdia,bemcomodospequenosrestaurantes, por hotis e arranha-cus luxuosos. A legislao, em virtude do processodeverticalizaoqueengendra,favoreceoaumento do preo da terra e provoca a transferncia dos bares e restau-rantes para a outra margem da avenida, substituindo as antigas barracas.Contraditoriamente,ainauguraodenovaslinhasde nibus, nos anos 1980, permite acesso a populaes pobres. Na tentativadeapropriaodestelugardelazer,sedeslocamdos quarteires populares para passear e tomar banhos de sol, na fa-mosa avenida Beira-Mar. A cada dez minutos, o nibus Grande Circular transportamilharesdeusurios. Como nos anos 1930, os pobres desejam usufruir os espaos de lazer reservados para as classes mais abastadas. A diferena sensvel no que se refere MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS61 ao volume deste uxo e ao lugar que os banhos de sol ocupam na sociedade, tornando-se, atualmente, mais importante do que os banhos de mar (URBAIN, 1996). A presena desses atores, associada poluio, contribui para o deslocamento do lazer das classes abastadas para a praia do Futuro e para clubes prossio-nais:dosadvogados,dosmdicos,dosengenheiros,dosjuzes etc. (COSTA e ALMEIDA, 1999).Os elementos referidos at ento contribuem para tornar aavenidaBeira-Marumlugarfrequentadoporatoresdiversos, que marcam seu territrio conforme usos e horrios diferencia-dos: os hotis e ats, em decorrncia de uxo turstico crescente, os apartamentos de luxo, nos quaisreside a classe abastada; os restauranteseosbaresdooutroladodocalado,queperdem lugar para os estabelecimentos anteriormente mencionados; os bares e restaurantes no calado, cuja clientela formada por tu-ristas e pessoas que passeiam e se bronzeiam na praia; a feira ar-tesanal no calado, na qual turistas compram produtos tpicos da regio; a Colnia de Pescadores que, at 1998, permanece no extremolestedocalado;osequipamentosdeginsticacolo-cadosdisposiodospraticantesdeesporte;oscabars,com clientela diversicada etc.Reina,portanto,atmosferaparticularnaavenidaBeira-Mar, marcada por uma diversidade de atores que se apropriam deste lugar peculiar. A zona de praia, com verdadeira barreira de arranha-cus e suas praias urbanizadas, incorporada, ora como perspectiva martima admirada apartir das janelas dos apar-tamentosluxuosos edos hotis; ora como lugar de realizao de uma srie de demandas de lazer e de turismo notadamente os banhos de mar, banhos de sol, passeios, exerccio de esporte e o trabalho de toda natureza, da prostituio pesca, bem como novasatividadescomorestaurantes,ocomrcioambulante,as atividades artsticas etc.Eustgio Wanderley Correia Dantas62 Com o objetivo de incorporar as zonas de praia como lugar de lazer para a populao e de responder demanda da indstria tursticaemergente,amunicipalidade,apartirdosanos1980, constri outros calades: nas praias de Iracema, do Futuro e da Leste-Oeste. O calado da Praia de Iracema foi construdo em espao erodidopelomar.Nele,osbareserestaurantesexercempapel preponderante na atrao de novos atores, dado que o diferencia da avenida Beira-Mar, onde a praia propriamente dita o valida-va como ponto de encontro das classes abastadas de Fortaleza. Trata-se de lugar dotado de excelentes bares, com msica (prin-cipalmente o forr para osturistas) e de timos restaurantes, ao longodo calado. O uso estimula a vida noturna, sendo o uxo fraco durante o dia, provavelmente por causa da ausncia de fai-xa de praia, importante na atrao de novos atores.A transformao da praia de Iracema, em lugar de encon-trodasclassesabastadasdeFortalezaedosturistas,suscitaa reaodeantigosmoradores.Aintelectualidadebomiarecla-madaperdadelugarquelhepertencia(LINHARES,1992). Os antigos moradores veem a substituio de suas manses por imveis comerciais (bares, restaurantes, pizzarias) e os que per-sistem so incomodados pelo barulho e uxo intenso dos novos usurios. Esta nova caracterizao possibilita, concomitantemente, o reforo da rea com construo de hotis, pousadas e ats, bem como de arranha-cus ofertando apartamentos para uma classe mdia que redescobre a rea como lugar de habitao. Propicia--se,portanto,ampliaodoparedodearranha-cusquese concentrava no Meireles, o que, com certeza, foi potencializado comaimplementaodeprojetopioneirodereconstruode praia localizada entre os dois calades da praia de Iracema e da avenida Beira-Mar. MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS63 ApraiadoFuturofoialtimazonadepraiaincor-poradazonaurbanadeFortaleza.Localizava-seemrea denominadadeStioCoc,naqualpredominavamusostra-dicionais (COSTA,1988),eque,aexemplodeoutraspraias, incorporou-seaoespaourbano,oracomoperiferiadezona porturia(oPortodoMucuripe),oracomolugarocupado para responder demanda das classes abastadas que frequen-tavam a praia do Meireles.Nas proximidades do porto, implanta-se a zona industrial cujainfraestruturapossibilitainstalaodeindstriadetrata-mentodeprodutosalimentares(trigoprincipalmente),dein-dstria naval, bem como de indstrias petroqumicas. Tal espe-cializao seguida pela construo progressiva das residncias depobres,acompanhandoaviafrrea,favelaVerdesMarese favela do Trilho, e sobre as dunas, favela do Castelo Encantado.Na faixa de praia contgua zona porturia, as classes abas-tadasquedispunhamdecarroapropriam-sedesuasparagens para se aproveitar de zona de praia ainda no ocupada pelos po-bres e no marcada por problemas de poluio. Este movimento inicia-se nos anos 1950 (Jornal O Povo, 1951) e consolida-se nos anos 1970.AconstruodasavenidasSantosDumonteZez Diogogeranovosfluxos:a)osnodesejadospelaelite.O parasofoidescobertopelosusuriosdenibus,provocan-dofugadosprimeirosparaoutraspraias.Asclassesmenos abastadas encontram condies para se estabelecer no local. OdeslocamentoparabairrosmaisaosuldoVicentePinzn refora a rea como popular, cada vez mais relacionada a ato-resvinculadospesca,aoportoeaocomrcioambulante depraia.Aconstruodeconjuntoshabitacionaispeloan-tigoBNH(ConjuntoHabitacionalNossaSenhoradaPaz ouSantaTerezinha),bemcomoosurgimentodefavelasre-Eustgio Wanderley Correia Dantas64 presentamestatendnciadeocupao;b)osresultantesda consolidaodareacomoespaodelazerehabitaodas classes abastada e mdia. Com a cesso de terrenos de mari-nha, os clubes instalam-se. Sobre as dunas, as classes abasta-das erguem suas manses dotadas de sistema de segurana. A classemdiamoraemapartamentos.Encontra-se,tambm, na rea, pequeno contingente de hotis; c) os caractersticos de demanda por espaos de lazer e turstico. Os usurios fre-quentam barracas na praia, que oferecem bebidas, alimentos ediversoparatodasortedeclientes,denotandoumaespe-cializaoespacialasbarracassituadasdoVicentePinzn at o cruzamento das avenidas Zez Diogo e Santos Dumont so frequentadas por clientes menos privilegiados, enquanto as situadas aps este cruzamento tendem a especializar-se no atendimentodefluxodelazerdasclassesabastadaemdia, bem como de representativo fluxo turstico. Atualmente, territrio de uso misto caracteriza a praia do Futuro,tornando-amaisdiversaqueasoutraspraiasdeForta-leza.aliqueamunicipalidadeconstri,nosanos1990,im-portantecaladodoportoaorioCoc.Aobradeengenharia reforaopapeldapraiadoFuturocomolugarderecepode expressivo uxo turstico. AdiversidadedapraiadoFuturogarantidagraasao comportamentodiferenciadodomercadofundirio.Sena praiadeIracemaenaavenidaBeira-Mar,aconstruodocal-ado implicou incremento do preo da terra, naquela praia os preos continuam baixos. A particularidade explica a permann-cia das classes menos abastadas e a chegada de outros usurios queocupavamzonasdepraiamaisvalorizadas,comoospes-cadoresqueconstroemsuaColniadePescadores,naavenida Zez Diogo, aps venda da antiga sede, no Mucuripe, para quitar dbitos com a Delegacia do Patrimnio da Unio.MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS65 As favelas, os bairros populares, os apartamentos, as resi-dncias da classe mdia e da classe abastada coabitam neste lugar heterogneo, com fraca taxa de verticalizao. Ademais, a baixa especulaoimobiliriapermitecontinuidadedasbarracasnas zonas de praia, acompanhando toda a extenso do calado.Aps os anos 1980, a construo de calades no se re-duz a uma poltica pontual de ao do poder pblico, represen-tandopolticamaisampladeconstruodeviasinterligando aszonasdepraia.Anteessaperspectiva,aPrefeituraprioriza caladoparaasseguraraligaoentreoscaladesdaaveni-da Beira-Mar e da praia de Iracema e calado na parte oeste, acompanhandoaavenidaLeste-OestedoMarinaParkata praia da Leste-Oeste. Ocitadocaladoestpreponderantementerelacionado ausosprivados.NazonaposteriorIndstriaNaval,circunda hotel cinco estrelas (Marina Park). A alguns metros desse hotel, ergue-se uma igreja catlica, atualmente frequentada pela classe mdiavindadeoutrosbairros,cujosveculosestacionados,na avenida Leste-Oeste, provocam transtornos para os que percor-rem a via, nas horas dos cultos. Na sequncia, reforando o uso, o Governo instalou o posto do batalho do Corpo de Bombei-ros e estao de tratamento sanitrio. A nica parte vinculada atividade de lazer situa-se na praia da Leste-Oeste, frequentada durante os ns de semana e feriados por habitantes da vizinhan-a, que se deslocam para passear, tomar banhos de mar e de sol, assim como para beber, em barracas. Diferentemente dos outros calades,caracteriza-sepelaocupaoquaseexclusivamente horizontal e uso predominantemente residencial, exceto no ex-tremo leste, onde se encontra o hotel Marina Park. Eustgio Wanderley Correia Dantas66 Figura 9 - Trecho do calado da praia Leste-Oeste3.1.7Os polos de lazerPararesponderdemandadasclassesmenosabastadas, porespaosdelazernapraia,aPrefeituraconstri,nosanos 1980, polos de lazer nas praias do Futuro e Barra do Cear. Aatraoexercidaporessespolossobrereferidasclas-ses, em seu entorno e bairros populares, conduz constituio depaisagempeculiar.Nospolosmencionados,soconstru-dasbarracaspopulares,especializadasnavendadebebidase ocupandotodaazonadepraia.Ocomrcioambulantetam-bm tem presena marcante, com contingente de homens, de mulheres e de crianas que oferecem seus produtos aos consu-midores potenciais. A adoo de polticas pblicas com a construo de cal-adese,emmenorproporo,depolosdelazereprivadas, durante os anos 1980 e 1990, coloca em cena uma cidade lito-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS67 rnea-martima que se alimenta dos uxos tursticos e de lazer. Estaspolticaspropiciamapredominnciadoslugaresdecon-sumo sobre os lugares de produo, marcada pela extenso das zonas ocupadas pelos calades e pela armao dos centros de lazer na paisagem litornea.Noqueserefereaoscalades,restritosinicialmente avenida Beira-Mar, acrescentam-se outros calades: o da praia de Iracema, da praia do Futuro e da Leste-Oeste, formando uma linha paralela a toda a costa leste e parte da oeste. A comunica-o entre os calades dessa linha impossibilitada, em virtude da existncia de lugares que se comportam como rugosidades. A ligao entre o calado da avenida Beira-Mar e o da praia do Fu-turo, bem como a ligao entre o calado da praia de Iracema e o da praia da Leste-Oeste, interrompida, respectivamente, pela zona porturia e pela praia privada da Indstria Naval. Os polos de lazer continuam limitados praia da Barra do Cear e do Futuro. O primeiro situa-se no extremo oeste da cida-de e o segundo pontuando o grande calado da praia do Futuro.A materializao das formas indicadas anteriormente pro-vocaaconsolidaodepaisagemcaracterizadapor:a)lugares em que predominam usos tradicionais e de lazer das classes me-nos abastadas. Oprimeirogruposecaracterizapelaurbanizaopredo-minantementehorizontal,marcadopelapresenadopolode lazer da Barra do Cear, com suas barracas populares, seus clu-bes-bares e algumas residncias secundrias; a grande favela do Pirambu, lugar de habitao das classes desfavorecidas e onde se encontramalgunspescadores;apraiadaLeste-Oeste,lugarde lazerdasclassesmenosabastadas,comapresenadebarracas populares,eaexistnciadebairropopularsobreasdunas,em frente do calado; b) lugares privatizados, onde se xaram ati-vidades porturias, tursticas, religiosas e de servios. Eustgio Wanderley Correia Dantas68 Figura 10 Polo de lazer da Barra do Cear, 1998OsegundogruporepresentadopelaIndstriaNaval, situadanoPoodasDragas,ohotelMarinaPark,construdo emreaerodidapelomar,aigrejaSantaEdwirges,obatalho do Corpo de Bombeiros e a Estao de Tratamento Sanitrio de Fortaleza; c) lugares tursticos, de lazer e de habitao da classe mdia. OterceirogruporetratadopelapraiadeIracema,onde se encontram, aps a construo do calado, bares, restauran-tes e bom nmero de arranha-cus. Estas formas exercem forte presso sobre as antigas residncias construdas nos anos 1930; d)lugarestursticos,delazeredehabitaodasclassesmais abastadas. OquartogruporepresentadopelapraiadoMeireles, onde as atividades de lazer e de turismo suscitam a concentra-o de restaurantes, de barracas e de uma feira artesanal no cal-ado.Noquerespeitasatividadescomerciais,situadasem frentedocalado,elassogradativamentesubstitudaspor arranha-cus(apartamentosdeluxoeats)queformamver-MAR VISTACOLEO ESTUDOS GEOGRFICOS69 dadeira barreira acompanhando a avenida Beira-Mar; e) luga-res privados de uso tradicional. O quinto grupo simbolizado pelo Porto do Mucuripe, com seu meio caracterstico a zona industrial, a favela e os cabars; f ) lugares de uso misto. O l-timo grupo representado pela praia do Futuro, coabitada por todasortedeatividadesedeatores(dasclassesmenosabas-tadas, mdias e mais abastadas de Fortaleza, bem como turis-tas,pescadores).Relativamenteshabitaes,encontram-se manses das classes abastadas sobre as dunas e apartamentos e casas da classe mdia, circundad